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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ CAMPUS SENADOR HELVÍDIO NUNES DE BARROS RAFAELA DE CARVALHO LIMA CENSURA MUSICAL ÀS CANÇÕES ALEGRIA ALEGRIA E É PROIBIDO PROIBIR DE CAETANO VELOSO NA DITADURA CIVILMILITAR PICOSPI 2014 RAFAELA DE CARVALHO LIMA CENSURA MUSICAL ÀS CANÇÕES ALEGRIA ALEGRIA E É PROIBIDO PROIBIR DE CAETANO VELOSO NA DITADURA CIVILMILITAR Monografia apresentada ao Curso de Licenciatura Plena em História da Universidade Federal do Piauí Campus Senador Helvídio Nunes de Barros Como requisito para a obtenção do grau de Licenciado sob orientação do professor profº Ms Naudiney de Castro Gonçalves Picos PI 2014 RAFAELA DE CARVALHO LIMA CENSURA MUSICAL ÀS CANÇÕES ALEGRIA ALEGRIA E É PROIBIDO PROIBIR DE CAETANO VELOSO NA DITADURA CIVILMILITAR Monografia apresentada ao Curso de Licenciatura Plena em História da Universidade Federal do Piauí Campus Senador Helvídio Nunes de Barros Como requisito para a obtenção do grau de Licenciado sob orientação do profº Ms Naudiney de Castro Gonçalves Aprovada em BANCA EXAMINADORA Profº Ms Naudiney de Castro Gonçalves Orientador Profº Ms Gleison Monteiro Profº Ms Dayvide Magalhães Picos PI 2014 Esse trabalho é dedicado aos meus pais sinônimo maior de amor incondicional e infinito exemplo de vida trabalho amor e dedicação AGRADECIMENTOS Agradeço primeiramente a Deus por ser essencial em minha vida autor do meu destino meu guia o meu socorro durante o processo de produção deste trabalho Agradeço aos meus pais Francisco Rocha Lima e a minha mãe Francisca Gardete de Carvalho Lima que sempre me apoiaram nos estudos afim de que eu me tornasse uma pessoa melhor e mais preparada não só para o mercado de trabalho mas para a vida Agradeço pelo incentivo nas horas difíceis em que por muitas vezes me senti desanimada e cansada agradeço imensamente aos dois que apesar de todas as dificuldades me apoiaram e me ajudaram em tudo o que precisei Obrigada aos meus avós Rita Maria e João Rodrigues por sempre me darem apoio moral e financeiro para que eu pudesse permanecer na faculdade e concluir a graduação em História gostaria de agradecer as minhas irmãs Eliete Lima Juliana Lima e Luciana Lima que sempre me motivaram e me incentivaram a não desistir nas horas em que me viram desanimada e jururu pelos cantos por conta da minha árdua vida acadêmica sempre me fizeram entender que o futuro é feito da constante dedicação no presente Meu muito obrigada aos meus tios e tias primos e primas em especial ao meu querido primo Weverton Lima que sempre me foi muito útil na digitação dos meus trabalhos enfim agradeço a todos os meus familiares que de alguma forma contribuíram para minha tão sonhada e almejada formação acadêmica Agradeço aos meus amigos companheiros do curso de história que fizeram parte da minha formação e que vão continuar presentes em minha vida com certeza Gostaria de agradecer de mais a minha querida e amada amiga Jéssica Campos Teresa por sempre ter me ajudado desde o inicio do curso nas provas trabalhos seminários e muitas outras coisas que eu tenho certeza que só ela por sua fiel amizade a minha pessoa seria capaz de fazer muitíssimo obrigada amiga nunca jamais esquecerei de todas as vezes em que você generosamente me ajudou Outra pessoa que também não poderia faltar é a minha queridíssima amiga Ana Clara que mais do que ninguém ao longo destes quatros anos e meio me ajudou me recebeu em sua residência me aguentou sempre com toda paciência do mundo nunca me deixou na mão em nenhum momento de dificuldade que encontrei durante o curso me ajudava a fazer resenhas a estudar para os seminários foi minha orientadora na produção do primeiro capitulo do tcc resumindo foi meu anjo da guarda dentro e fora da Universidade Federal Agradeço à primeira pessoa com quem fiz amizade logo no primeiro dia de aula minha inseparável amiga Tamires Maria de Moura minha parceira de todas as tardes com quem divide cada hora cada minuto cada segundo dentro da universidade minha parceira de conversas e confidências formamos até uma dupla Chris e Greg só tenho a lhe agradecer minha amiga por todas ás vezes em que você esteve comigo não só no que diz respeito a vida acadêmica pois se formos contar quantos trabalhos provas e seminários fizemos juntas não precisa nem contar pois foram todos que surgiram no decorrer do curso lhe agradeço principalmente por aguentar meus ataque de loucuras meus ataques de risos nas horas menos conveniente meus estresses por motivos que você sabe bem quais eram quais são e daqui até um certo tempo ainda serão Nunca esquecerei de todas as coisas que aprontamos juntas amiga Agradeço a todos os professores por me proporcionar o conhecimento não apenas racional mas a manifestação do caráter e afetividade da educação no processo de formação profissional como o meu querido professor Gleison Monteiro a minha inesquecível e dedicadíssima professora Nilsangêla Cardoso e ao meu estimado professor José Lins Agradeço a todos por terem não somente me ensinado mas por terem feito aprender Agradeço incondicionalmente ao meu orientador Naudiney de Castro Gonçalves pela orientação apoio e confiança quando decidiu me aceitar como sua orientanda obrigada por nortear minhas ideias pelas dicas cedidas com tanta precisão e dedicação Tudo que o senhor me falou foi muito útil na produção deste trabalho de conclusão de curso Agradeço a todos da Universidade Federal do Piauí Campus Senador Helvídio Nunes de Barros minha querida federal pela oportunidade de fazer o curso Enfim meu muito obrigada a todos O cantor compositor baiano Caetano Veloso não apenas lançou o tropicalismo a partir de um festival de músicas Caetano transcendeuse o de muito construindo nos últimos trinta anos uma sólida carreira em que se destaca um poeta de alto nível Souza 2010 RESUMO Ao longo do século XX houve muitas mudanças no cenário político brasileiro dentre as quais uma das mais significativas foi o estabelecimento do regime ditatorial que vigorou no país entre 1964 e 1985 Neste período a música se tornou no período ditatorial a voz que não se calou e por meio dela muitos artistas lançaram seus protestos e mobilizou uma revolução artística cultural Caetano Veloso foi um personagem importante neste contexto histórico Assim sendo este trabalho teve por objetivo principal realizar uma análise sobre as canções de Caetano Veloso durante a ditadura civilmilitar afim de relacionar o trabalho deste artista no contexto da censura que ocorreu no Brasil durante este período Para realização deste trabalho recorremos ao levantamento bibliográfico a busca por matérias entrevistas imagens e textos que abordassem a temática aqui proposta e concluímos que Caetano Veloso enalteceu a felicidade e a alegria chamando a uma relutância afirmativa construtiva fazendo de seus versos um chamado à vida e um levante intelectual contra a morte e o silêncio pelo medo praticado por determinados segmentos do regime PALAVRASCHAVE Ditadura Caetano Veloso Censura Música ABSTRACT Throughout the twentieth century there were many changes in the Brazilian political scenario among which the most significant was the establishment of the dictatorship that ruled the country During this time the song became the dictatorial period that the voice is not silenced and through many artists have launched their protests and mobilized a culturalartistic revolution Caetano Veloso was an important character in this historical context Therefore this study was aimed to perform an analysis on the songs of Caetano Veloso during the civilmilitary dictatorship in order to relate this artists work to the context of censorship that occurred in Brazil during this regime For this study we used the bibliographic survey the search for materials interviews images and texts that addressed the theme proposed here and conclude that Caetano Veloso praised the happiness joy calling the affirmative constructive reluctance making one of his verses called to life and an intellectual revolt against the main practice of supporters of the dictatorship the death and silencing by fear KEYWORDS Dictatorship Caetano Veloso Censorship Music LISTA DE SIGLAS AI Ato Institucional DCDP Divisão de Censura de Diversões Públicas DFSPDepartamento Federal de Segurança Pública DOPSDepartamento de Ordem Política e Social MPBMúsica Popular Brasileira SCDPServiço de Censura e Diversões Públicas LISTA DE IMAGENS Imagem 01 Grupo Tropicalista 22 Imagem 2Caetano Veloso e Gilberto Gil 26 Imagem 3 Caetano Veloso e Gilberto Gil Exilados 30 Imagem 4 Capas do álbum joia antes e depois da aprovação dos censores 31 Imagem 5 Os Atos Institucionais desmantelaram as liberdades 34 Imagem 6 Povo manifestando contra a censura 36 SUMÁRIO INTRODUÇÃO 12 1 A NEGAÇÃO DAS LUZES A DITADURA E OS MOVIMENTOS ARTÍSTICOS 15 11 A ditadura e suas ferramentas de censura 15 12 Obras de Caetano Veloso 1967 1972 e o surgimento do grupo Tropicalista 21 13 Prisão e Exílio de Caetano Veloso 26 2 SEM LENÇO SEM DOCUMENTO NADA NO BOLSO OU NAS MÃOS UM GRITO CONTRA O PODER ALIENANTE NA ÉPOCA DA DITADURA MILITAR 32 21 Os Atos Constitucionais e os representantes das músicas nas décadas do terror 32 22 A voz do debochado Alegria Alegria e É proibido proibir e suas entrelinhas 37 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS 44 REFERÊNCIAS 45 12 INTRODUÇÃO Ao longo do século XX houve muitas mudanças no cenário político brasileiro dentre as quais uma das mais significativas foi o estabelecimento do regime ditatorial que vigorou no país Desde que comecei a compreender a história de meu país passei a me questionar como em algum momento da vida de meus antepassados poderia alguém não cantarolar um trecho de uma canção ouvir a música que gostasse ou ainda fosse proibido de manifestar sua opinião Considerava esta uma situação difícil de imaginar haja vista que na minha vida isto sempre foi algo tão natural quanto respirar pois a liberdade é um dos melhores sentimentos do homem Saber que meu país em algum momento as pessoas não tinham liberdade de se expressar de sentir e fazer aquilo que gostavam incutiu em mim um desejo de saber mais entender melhor este período compreender o que acontecia àquela época Foi esta curiosidade que me impulsionou a fazer uma pesquisa que envolvesse como temática o período da ditadura civilmilitar que durante anos foi vigente no meu país Contudo na busca por leituras que me levassem a conhecer melhor este contexto histórico me chamou atenção um movimento com características e tons de revolução a Tropicália Esta foi uma das mais significativas rupturas ocorridas em diversos aspectos estéticos e culturais no Brasil à época Durante a pesquisa pude observar alguns nomes da música brasileira no rol dos artistas que sofreram com a censura Porém me apeguei às letras das canções de Caetano Veloso sobretudo os trechos da música Alegria Alegria que sempre vinha à minha mente à medida que avançava em meus estudos Passei a entender seus versos ler as entrelinhas e perceber a arte e a poesia deste artista que se demonstrava contra o regime ditador usando a arte da palavra e não a violência ou a luta armada Caetano Veloso na verdade abria caminho para revolução intelectual que visava despertar o povo da situação alienante à qual estavam submetidos tentando acordá los para ver o aprisionamento em que os ditadores os estavam colocando Partindose da ideia de que a ditadura militar no Brasil traz um leque de possibilidades de estudos pretendemos focar o tema a partir das músicas de Caetano Veloso durante este período A música se tornou a voz que não se calou e por meio 13 dela muitos artistas lançaram seus protestos e mobilizaram uma revolução artística cultural De fato Caetano Veloso alavancou uma luta em prol da cultura e do direito de expressar a arte que nada mais fez além de refletir a realidade daquela época Neste contexto este trabalho teve por objetivo principal realizar uma análise sobre as canções de Caetano Veloso durante a ditadura civil militar afim de relacionar o trabalho deste artista ao contexto da censura que ocorreu no Brasil durante este regime e busca entender o que as letras das canções que foram censuradas refletiam no momento histórico em que o país se encontrava Para realização deste trabalho recorremos ao levantamento bibliográfico a busca por matérias entrevistas imagens e textos que abordassem a temática aqui proposta de modo que após o levantamento procedeuse a leitura e organização do material elencado Contamos com as contribuições teóricas de Zemová 2009 Carrocha 2007 Bruzadelli 2008 Paranhos 2009 para construção desta pesquisa Neste trabalho serão destacados as características da ditadura e como esta interferiu nas manifestações culturais do Brasil Para tanto se faz necessário uma contextualização da época Assim sendo este trabalho encontrase estruturado em dois capítulos O primeiro capítulo faz um retrospecto sobre a implantação da ditadura militar e como se deu este processo no país relacionando com o surgimento da censura que atingiu várias camadas artísticas principalmente a da música demonstrando os mecanismos que o governo instituiu para investigar e censurar tudo o que se acreditava ser um perigo para o regime ou para a moral do país Tratamos ainda de explicitar como a censura atuava e os critérios envolvidos para que se tomassem a decisão de prender ou exilar os artistas da época Adentramos no contexto de surgimento das repressões e das investigações acerca de obras composições e manifestações artísticas que pudessem conferir caráter de revolta ou de rebeldia frente ao sistema estabelecido Ainda neste capítulo falamos do movimento Tropicalista e das obras de Caetano Veloso como alvo de censura fazendo uma retrospectiva à seu exílio e os sentimentos que assolaram a vida deste artista No segundo capítulo buscamos entender o contexto em que estão inseridas as canções de Caetano Veloso analisando relatos de pessoas que sofreram perseguições durante este período Ao analisar as canções de Caetano que foram censuradas as relacionamos à Legislação da época 14 Este trabalho tratou da censura às músicas de Caetano Veloso Esperamos contribuir com a compreensão desta época tão marcada por perseguições violência e repressão pois a arte permite retratar um momento a alma e os sentimentos não apenas do seu autor mas de toda uma coletividade no armazenamento de memórias de uma época tão relevante para história política brasileira 15 1 A NEGAÇÃO DAS LUZES A DITADURA E OS MOVIMENTOS ARTÍSTICOS 11 A ditadura e suas ferramentas de censura Em 31 de março de 1964 com o apoio dos Estados Unidos os militares derrubaram o governo de João Goulart Nesse período se instaurou no Brasil a ditadura militar período em que pessoas foram agredidas torturadas assassinadas e muitas desapareceram O novo Presidente o marechal Humberto de Alencar Castello Branco considerava qualquer um que não apoiasse o golpe enquanto comunista e seriam considerados uma ameaça à ditadura Com o novo Governo iniciouse um período de terror vergonha e opressão uma verdadeira mancha na história do Brasil No cenário político ao lado da supressão das liberdades públicas a tortura embaralhase com a ditadura e tornase o elo final de uma corrente repressiva radicalizada em todos os níveis violentando a própria base da sociedade 1 Mesmo em uma época de censura as pessoas tentavam da forma que podiam vencer a opressão dos ditadores Um exemplo disto foi o grupo dos artistas músicos cineastas artistas plásticos escritores e poetas cada um em sua área contribuindo com o que sabiam fazer de melhor questionar os fatos e informar a população sobre o que estava ocorrendo no momento Artistas como Caetano Veloso Geraldo Vandré Chico Buarque de Holanda Gilberto Gil entre outros cantavam toda a sua indignação contra a ditadura militar Músicas como Pra não dizer que não falei das flores Geraldo Vandré Panis et circenses Caetano Veloso e Gilberto Gil Apesar de você Chico Buarque e muitas outras embalaram os ânimos e a esperança de quem lutava por seus direitos e liberdades Por sua vez o regime militar utilizouse de vários métodos persecutórios para saber tudo sobre aqueles envolvidos com a música programa de rádio TV e as formas de comportamento que pudessem se opor ao regime Em consequência disto á utilização da censura com finalidades políticas tornouse habitual ampliandose o raio de atuação da Divisão de Censura de Diversões Públicas DCDP 1 GASPARI Elio A Ditadura Escancarada Editora companhia das letras São Paulo 2002 ISBN 8535902996 16 Neste contexto surgem as repressões e investigações a cerca de obras composições e manifestações artísticas que pudessem conferir caráter de revolta ou de rebeldia frente ao sistema estabelecido A instituição escolhida para análise foi a Divisão de Censura de Diversões Públicas DCDP que segundo Vieira 1 seria o responsável pela censura de produções artísticas durante o regime militar tem sua gênese em decreto de 1934 com o qual Getúlio Vargas criou o departamento de propaganda e difusão cultural DPDC Criado pelo decreto Nº 24651de 10 de Junho de 1934 estava ligado ao Ministério da Educação o controle de propaganda do rádio e do cinema A Legislação que os militares utilizaram na organização da censura a partir de 1964 foi adaptada tendo por base as leis do Estado Novo Com o golpe militar logo nos primeiros momentos se teve a visão de que era necessário centralizar essa censura No ano de 1966 por meio do Decreto Lei nº 43 de 18 de novembro é regulamentada a exclusividade de competência da União para exercer atividades referentes à censura concentrando o departamento da censura em Brasília BRASIL 1996 A partir daí foi criada uma equipe improvisada e muitas vezes formada por mão deobra desqualificada para exercer a função de censor Os funcionários vinham de outros departamentos governamentais e por esse motivo tinham uma grande dificuldade para avaliar de forma coerente os trabalhos culturais Instalada oficialmente no ano de 1972 a Divisão de Censura de Diversões Públicas DCDP subordinado ao Departamento de Polícia Federal do Ministério da Justiça foi uma instituição estatal Sui generis pois com a sua existência respondia a anseios não somente de cunhos políticos não apenas de execução de uma política forjada para a estabilização e a consolidação para o estado ditatorial Suponha que a livre expressão pública de ideias poderia abalar além da estabilidade do Governo a harmonia social e o caráter moral dos indivíduos Caberia assim ás autoridades segundo essa visão proteger a sociedade estabelecendo o saudável identificando e eliminando o perigoso VIEIRA 2010 P12 2 No que se refere ao trabalho dos censores da Divisão de Censura de Diversões Públicas DCDP o processo de análise de uma composição era bastante burocrático a gravadora ou até mesmo o próprio compositor enviava a letra de uma determinada música para ser estudada pelos censores da turma de música da divisão O trabalho de 2 Idem 17 análise das composições ficava sobre a responsabilidade de uma ou mais pessoas isso aconteceu até 1968 quando o art 13 da Lei Nº 5539 estabeleceu o número de três censores por obra a ser analisada Os vetos que eram feitos às letras das músicas eram justificados em nome da preservação dos valores tradicionais Assuntos como homossexualidade o consumo de drogas questões de divórcio e emancipação feminina foram proibidos de serem mencionados nas letras das canções O veto foi criado não apenas para manter a moral e os bons costumes mas para aprimorar de certa forma o gosto e elevar o nível cultural do povo brasileiro Usando um discurso éticomoral que permeou todo esse aparelho repressivo que visava principalmente garantir a aceitação dos atos praticados pelo regime Composições eram vetadas pelo simples fato de conter erros gramaticais por serem ofensivas ou por serem considerados de má qualidade musical Os censores eram vistos como uma espécie de críticos musicais e na maioria das vezes as canções eram vetadas por não satisfazerem o gosto musical dos mesmos A censura musical e todas as outras que foram criadas que fizeram parte do conjunto de diversões públicas eram feitas previamente A censura era uma atividade legal do Estado desde a constituição de 1934 que introduziu aos espetáculos de diversão pública Com o passar dos anos foi constituída uma nova Legislação censória pelo regime militar os novos mecanismos foram criados para atender melhor as necessidades coercitiva A ação censória foi institucionalizada em códigos e leis foi orientada com intuito de preservar amoral vigente e o poder constituído Muitos artistas foram obrigados a modificar o conteúdo de suas obras algumas vezes era necessário mudar apenas palavras para que pudessem ser aceitas pelos órgãos responsáveis pela censura de cunho moral e político3 Artistas como Geraldo Vandré Chico Buarque tiveram muitas de suas canções vetadas boa parte delas devido a questões políticas O caso dos dois cantores citados anteriormente teve grande repercussão no período da ditadura militar Vários outros artistas também tiveram suas obras censuradas por razões políticoideológicas o que 3 HOLANDA Chico Buarque ObraRoda viva peça em dois atos de Chico Buarque 18 não foi diferente para Caetano Veloso que também teve várias de suas canções censuradas4 Diferente do que muitos pensam a censura musical não foi criada pelo regime militar Ela foi adaptada paulatinamente de acordo com as necessidades do período com o intuito de preservar a moral e os bons costumes A forte capacidade de influência da música fez com que o regime militar voltasse boa parte de sua atenção para as manifestações culturais5 A parir de 1965 houve a inauguração do novo prédio do Departamento Federal de Segurança Pública DFSP no Distrito Federal dando início ao processo de centralização da atuação sensória no Serviço de Censura de Diversões Públicas mas aplicado apenas regionalmente Em 1966 com o Decreto nº 43 foi estabelecida a exclusividade da União para a excursão da censura Já no momento inicial do regime a censura precisava passar por algumas mudanças tanto na questão da centralização como também nas questões referentes à profissionalização e unificação Esse processo de centralização foi fundamental para a censura na medida em que ela foi fundamental para a censura visava também uma atuação mais coerente e uniforme 6 De certa forma isso simplificaria a vida dos artistas e produtores que ao invés de ter que obter mais de uma liberação das obras agora só requeria apenas uma liberação por parte dos censores que seria valida para todo país Apesar da centralização ser uma demanda dos próprios censores e regulamentada por lei federal os próprios chefes de censuras centrais temiam que o processo de centralização trouxesse problemas Um exemplo disso foi o que aconteceu no Paraná em 1968 O coronel Waldenar Bianco chefe da censura no Paraná não se conformava em ter que acatar as ordens do Planalto Central pois o mesmo dizia que há coisas que servem para São Paulo e Guanabara mas não servem para o Paraná 4 SOUZA Amilton Justo de É o meu parecer a censura política de protesto nos anos de chumbo do regime militar do Brasil 19691974 Dissertação João Pessoa 2010 5 VIEIRA Nayara da Silva Entre o imoral e o subversivo a divisão de censura de Diversões Públicas DCDP no regime militar 19681979 67 CAROCHA Maika Lois Pelos versos das canções um estudo sobre o funcionamento da censura musical durante a ditadura militar brasileira 19641985 Rio de Janeiro UFRJPPGHIS 2007 V 130f 297 cm 2007 19 O coronel decidiu então ir a Brasília na companhia de mais quinze censores com objetivo de obter o direito de julgar o teatro sob um ponto de vista paranaense O objetivo dos censores regionais era não perder de forma alguma o poder de censurar independentemente da opinião da censura federal Além do que a censura musical ficava muito isolada em Brasília e por esta razão era impossível desativar as censuras regionais já que estas eram responsáveis diretas pela fiscalização da programação musical de bares consertos festivais e show nos seus estados O decreto nº 56510 de junho de 1965 que em seu artigo 176 versou sobre a unificação dos critérios para a liberação das letras de música7 Neste momento as letras passavam a ser censuradas apenas em Brasília e aquele que requeresse a censura se tornaria o seu outorgante este por sua vez teria que anexar o original e duas cópias carbônica sem borrão ou rasura e a letra da música tinha um prazo de 30 dias para ser examinada Porém paulatinamente o processo de censura que era realizado na capital começou a ficar comprometido devido à fragmentação dos órgãos censores haja vista que não mais apenas o DCDP era responsável pela análise das músicas mas também por outros departamentos A Censura de Diversões Públicas foi apenas uma das formas criadas pela ditadura militar com interesse de garantir a sua legitimação no interior da própria corporação militar e perante a sociedade civil Como a Censura de Diversões Públicas era apenas parte do aparelho repressivo montado pelo regime militar havia sempre a comunicação entre as diferentes instâncias que formavam aparelho da censura Os censores sempre procuravam trocar informações sobre os artistas os que ficavam responsáveis pela análise das letras das músicas que solicitavam dossiês dos artistas ao Departamento de Ordem Política e Social DOPS que mantinha contato com a DCDP e as SCDPs regionais Os artistas que tinham suas letras muito visitadas pela censura passavam a ser monitorados pelo DOPS que enviava relatórios bimestrais á DCDP Este foi o caso de muitos artistas da MPB Música Popular Brasileira como Chico Buarque Caetano 7 CAROCHA Maika Lois Pelos versos das canções um estudo sobre o funcionamento da censura musical durante a ditadura militar brasileira 19641985 Rio de Janeiro UFRJPPGHIS 2007 V 130f 297 cm 2007 20 Veloso Geraldo Vandré e muitos outros que tiveram suas canções censuradas e às vezes até mutiladas8 Os censores de Diversões Públicas tinham suas atividades legitimadas por lei portanto a música o teatro a televisão e o cinema eram constantemente vigiados pelos policiais boa parte da sociedade brasileira de certa forma aceitava e até achava normal este tipo de regulamentação no cotidiano No período da ditadura militar a censura praticada pelo regime não foi homogênea Houve a censura de diversões públicas que foi legalizada e conhecida pela sociedade e a censura de imprensa que foi imposta por atos revolucionários como o AI5 A censura feita pelo DCDP já existia no Brasil há muito tempo era usada a favor da moral e dos bons costumes enquanto que a censura de imprensa não tinha sido sequer legalizada Na Década de 1960 houve uma explosão de grandes festivais da música popular brasileira e de grandes acontecimentos que marcaram a historia do país Segundo Vinci a música foi e ainda é no Brasil uma das formas de expressão escolhida para comunicar de maneira geral para protestar As pessoas daquela época tinham mais acesso a música do que a outros meios de comunicação como jornais livros e revistas além do que a música era vista com mais interesse pelo público jovem da época Foi neste período que surgiram os protestos juvenis contra a ameaça dos governos É nesse cenário de medo e intimidação que os festivais da MPB ganharam grande destaque através das metáforas presentes nas letras das canções Essa foi uma das formas que o público jovem encontrou para se expressar política e ideologicamente perante aquele momento de repressão da ditadura militar Esses festivais da MPB eram apresentados por várias emissoras da televisão brasileira TV Record TV Rio Tupi e a Rede Globo em que intérpretes e compositores da música popular brasileira como Elis Regina Caetano Veloso Gilberto Gil Chico Buarque de Holanda e outros se enfrentavam em acirradas competições musicais acompanhadas pelo público que lotava os teatros durante as apresentações Dentre as músicas que eram apresentadas nas competições do programa uma ficou como a favorita do júri público pra não dizer que não falei das flores de Geraldo 8 CAROCHA Maika Lois Pelos versos das canções um estudo sobre o funcionamento da censura musical durante a ditadura militar brasileira 19641985 Rio de Janeiro UFRJPPGHIS 2007 V 130f 297 cm 2007 21 Vandré Essa canção virou hino da juventude contra a ditadura com ela os militares tiveram um dos motivos para decretar o Ato institucional nº 5 o famoso AI5 que impunha o recesso do Congresso das Assembleias Legislativas e da Câmara dos Vereadores e suspendia os direitos políticos por até10 anos e o habeas corpus nos anos de crime político contra a segurança nacional Apesar de ganhar o terceiro Festival Internacional da Canção FIC realizado pela Record em 1967 a canção Pra não dizer que não falei das flores de Vandré teve sua execução proibida durante anos pela ditadura militar A canção era considerada um hino contra a ditadura e trilha sonora de que acompanhou centenas de jovens nas passeatas que eram realizadas contra o duro regime da ditadura Neste cenário outro jovem cantor tornouse um perseguido pela censura militar Caetano Veloso viu sua carreira marcada pelo exílio e pelo veto de muitas de suas canções por ser considerado um subversivo 12 Obras de Caetano Veloso 1967 1972 e o surgimento do grupo Tropicalista Caetano Emanuel Viana Teles Velloso cantor compositor escritor nasceu em 07 de Agosto de 1942 em Santo Amaro da Purificação na Bahia onde desde a sua infância demonstrou interesse pela música e pelo cinema No ano de 1956 morou durante pouco tempo em Guadalupe no Rio de Janeiro onde frequentou o auditório da Rádio Nacional palco de apresentação dos maiores ídolos musicais brasileiros da época A partir de 1959 Caetano passa a conhecer o trabalho do músico João Gilberto através do LP Chega de Saudade o que influenciou bastante a trajetória do artista Sua trajetória musical começou de fato quando ele junto com sua família se mudou para Salvador no início dos anos 1960 A capital baiana vivia um momento de efervescência cultural E Caetano começou a tocar em barzinhos da cidade Foi na capital baiana que o cantor conheceu Gilberto Gil tornandose amigos inseparáveis e parceiros de muitas composições como Haiti Panis et circenses São João e muitas outras Nesse período Caetano teve a oportunidade de conhecer Gal Costa e Tom Zé que assim como ele também se tornariam componentes do grupo tropicalista A trajetória profissional de Caetano Veloso começou sob a influência de Maria Bethânia sua irmã mais nova que havia sido chamada para substituir a cantora Nara Leão no show Opinião em 1965 Nesse mesmo ano Maria Bethânia gravou É de manhã uma 22 composição de Caetano Veloso marcando a estreia da cantora com um compacto simples Em 1965 Caetano iniciou seu primeiro trabalho com a gravação de CavaleiroSamba em paz Em 1967 saiu seu primeiro LP Domingo com Gal Costa No ano seguinte Caetano liderou o movimento chamado Tropicalista um grande marco em sua carreira O Tropicalismo foi um movimento de grande relevância para a evolução da música brasileira mesmo muito jovem e com pouca experiência mas com muita vontade de dar um novo rumo à música popular brasileira MPB Caetano liderou o Tropicalismo que teve lugar entre 1967 a 1968 pautado pela intervenção crítico musical no cenário cultural brasileiro p10 9 O grupo Tropicalista contou com a participação de grandes artistas como Gilberto Gil Tom Zé os poetas Torquato Neto e Capinam Barros os maestros de formação erudita Rogério Duprate Dominiano Cozzella e Júlio Medaglia o grupo Os Mutantes a cantora Gal Costa e o artista Rogério Duarte entre outros que de alguma forma contribuíram para o sucesso do movimento Tropicalista O grupo está ilustrado na imagem abaixo Imagem 01 grupo Tropicalista Fonte Google imagens Acesso em 23 de maio de 2014 9 ZEMANOVÁ Lenka A vida e a obra de Caetano Veloso na época do tropicalismo São Paulo Contemporâneos 2009 23 Nesta época A música brasileira PósBossaNova e a definição da qualidade musical no país estavam cada vez mais dominados pelas posições tradicionais ou nacionalista de movimentos cujas ideias foram orientadas à esquerda Contra essas tendências os tropicalistas procuravam universalizar à linguagem da música popular brasileira incluindo elementos da cultura jovem mundial com o rock a psicodélica a guitarra elétrica p 10 10 Os tropicalistas trouxeram ideias novas que impulsionaram não só a modernização da música mas da própria cultura nacional O movimento era uma espécie de estética de vanguarda e as inovações não aconteceram apenas no ritmo das músicas mas nas próprias letras das canções misturando o rock a Bossa Nova o bolero a rumba e o samba O movimento quebrou as barreiras que permaneciam no país que estava acostumado com o pop x folclore alta cultura X cultura de massas Tradição X Vanguarda p1011 Os tropicalistas influenciaram não só na questão do gosto musical como também no critério político no comportamento na questão do corpo sexo e até mesmo na forma de se vestir com roupas mais coloridas mais despojadas O movimento trouxe novidade e ousadia para a época mas não chegou a durar muito acabou sendo reprimido pelo governo militar que tinha o poder na época porém o país já estava marcado pela descoberta do Tropicalismo O AI5 foi o principal instrumento de arbítrio da ditadura militar e entrou em vigor durante o Governo do então presidente Artur da Costa e Silva Com o AI5 o general presidente poderia tomar qualquer tipo de decisão sem dar nenhuma satisfação a ninguém poderia cassar mandatos de parlamentares fecharem o congresso nacional demitir Juízes suspender garantias do Poder Judiciário legislar por decreto proibir atividades ou manifestações sobre assuntos de natureza política enfim mandar e desmandar no país como bem entendesse As tensões no país chegaram ao máximo em 1968 Intensificaramse as greves operárias e manifestações estudantis Com o crescimento da oposição Costa e Silva na época pressionado pela extrema direita respondeu com o endurecimento político Em 13 de Dezembro o Ato 10 ZEMANOVÁ Lenka A vida e a obra de Caetano Veloso na época do tropicalismo São Paulo Contemporâneos 2009 11 Idem 24 Institucional Nº 5 decretou o fim das liberdades civis e de expressão p 1212 Após 1964 os movimentos e intelectuais de esquerda podiam agir livremente e fazer algumas passeatas tendo apenas pequenos problemas com a censura mas depois do AI5 em dezembro de 1968 o regime fechou de vez As passeatas agora eram dissolvidas a tiros de fuzil Chico Buarque traz em seu artigo A ditadura um pouco da sua indignação com a mesma em cada redação de jornal havia um imbecil da polícia federal para fazer a censura não poderia sair nenhuma notícia que desagradasse o Governo Além da censura o jornal não podia dizer que tinha sofrido a censura isso claro também era censurado p12 13 No campo da música isso não foi diferente Caetano Veloso teve várias de suas canções vetadas como já foi citado anteriormente Os censores que faziam as análises das letras das músicas não eram qualificados para exercer essa função ou seja não tinham preparação alguma para fazer as análises das obras Alguns cantores da época não lutavam contra o regime militar engajandose em outros manifestos No caso de Caetano Veloso sua luta era mais no sentido da contracultura ou seja os tropicalistas na época estavam mais voltados para os acontecimentos do maio de 1968 em París do que com as vertentes de esquerda que ocorriam naquele momento como marxismo leninismo soviético entre outros p214 Como o regime militar não conseguiu identificar a diferença Caetano Veloso foi perseguido e acusado de desrespeito sendo aprisionado e depois exilado em Londres onde permaneceu de 1969 até 1972 O regime era tão absurdo que qualquer forma de reação ou comportamento diferente era motivo para perseguição Na época em que Caetano Veloso foi preso os militares tinham de concreto a acusação de que ele e Gilberto Gil tinham desrespeitado o Hino do Senhor do Bonfim Petion de Vilar João Antônio Wanderley Juntouse a isto a provocação de Caetano Veloso na véspera de Natal de 1968 ao cantar Noite Feliz no programa Divino maravilhoso apontando uma arma para própria cabeça 12 Idem 13 HOLANDA Chico Buarque ObraRoda viva peça em dois atos de Chico Buarque 14 CALADO Carlos Tropicália a história de revolução musical São Paulo Ed34 1997 25 A censura da ditadura militar não obedecia a nenhum critério Qualquer ameaça militar não só ao regime por ela imposta ao país com a sociedade conservadora que a ajudou a ascender ao poder nele continua por mais de duas décadas Vestido de uma moral hipócrita o regime militar borrava qualquer obra que suspeitasse ofender á moral ou que se mostrasse obscena a essa moral LEEMEDDI 2008 Tudo que era considerado uma ameaça para o Regime Militar de alguma forma deveria ser reprimido não importava os métodos utilizados por ele A censura aos meios de comunicação músicas peças teatrais era uma forma de manter a ordem pois só poderia ser visto e ouvido aquilo que os militares consideravam importante e que não manchasse o que acreditavam ser a moral e os bons costumes da época 15 No que diz respeito á música Caetano Veloso sempre se mostrou incomodado com o velho estilo musical ele queria de alguma forma mudar esse ritmo que todos já estavam acostumados a ouvir Caetano Veloso queria algo mais verdadeiro que tratasse de fato da vida real dos brasileiros como ele mesmo disse em uma entrevista em 20 de agosto de 1967 Eu pessoalmente sinto necessidade de violência Acho que não dá pé a gente ficar se acariciando Me sinto mal já de estar ouvindo a gente sempre dizer que o samba é bonito e sempre refaz o nosso espírito Me sinto meio triste com essas coisas e tenho vontade de violentar isso de alguma maneira É a única que me permite suportar e aceitar a ideia de manter uma carreira musical porque uma coisa é inegável a música é a arte mais viva em todo o mundo O que acho é que a música tem sido utilizada muito pra gente se manter enganado e eu não quero mais Quero que a gente saiba mesmo que a gente engula e veja que a gente está num país que não pode nem falar de si mesmo A gente tem que passar a vergonha toda para poder arrebatar as coisas p 11716 Observamos que Caetano Veloso queria algo que estava totalmente fora do que os militares consideravam aceitos para a sociedade que desejavam naquela época Distante de termos políticos ele incomodava a ditadura militar com sua postura e seu modo hippie tropical de se vestir deixava a ditadura nervosa sempre despertando a desconfiança com suas atitudes estranhas ainda mais por viver na companhia de Gilberto Gil que tinha canções bastante contestadoras E justamente por este motivo teve várias de suas composições vetadas 15 CALADO Carlos Tropicália a história de revolução musical São Paulo Ed34 1997 16Idem 26 Imagem 02 Caetano Veloso e Gilberto Gil Fonte Google imagens acesso em 25 de maio de 2014 Durante a ditadura militar as intervenções de Caetano Veloso foram mais ao sentido de defesa da contracultura mais próximos dos acontecimentos do maio de 1968 do que propriamente contra o regime militar mas isso era suficiente para incomodar muito Os tropicalistas se preocupavam em ser de esquerda mas não eram marxistasleninistas stalinistas trotskistas ou maoístas no entanto os militares achavam aquilo tudo muito perigoso e não aprovavam sua irreverência artística O que podemos destaca na obra de Caetano Veloso é o fato de que ele sempre procurava colocar uma pitada de realidade em suas canções gostava de falar da atualidade sempre tratando da vida do cotidiano e dos lugares por onde passava Como destacamos anteriormente os militares reprimiam qualquer manifestação cultural que não se encaixasse nos moldes da sociedade que queriam manter naquela época Caetano Veloso por sua vez ao construir algo que não estava aceito nos padrões sociais acabou tendo várias letras de suas canções censuradas e foi reprimido durante boa parte do período da ditadura militar A música era a forma mais simples e acessível para expressar os sentimentos as ideias os interesses e todo processo que estava ocorrendo naquele momento 13 Prisão e Exílio de Caetano Veloso Caetano Veloso foi detido na manhã de 27 de dezembro de 1968 em seu apartamento no centro de São Paulo e levado por oficiais federais com pretexto de que 27 iria apenas prestar um depoimento Junto com Caetano Veloso foi detido Gilberto Gil e os dois foram colocados em uma perua veraneiro seguindo diretamente para o Rio de Janeiro17 Caetano Veloso e Gil estavam passando pela mesma situação mas os dois reagiram de forma diferente Caetano Veloso entrou quase em estado de choque ao perceber que tudo que estava acontecendo não passaria apenas de um simples interrogatório mas sim de uma prisão arbitrária enquanto que Gilberto Gil agiu com mais calma pois já vinha a algum tempo vislumbrando a possibilidade de ser preso por causa das programações do grupo tropicalista Depois da apresentação da canção é Proibido Proibir no Festival Internacional da Canção Caetano Veloso e o grupo Os Mutantes foram vaiados e agredidos com ovos tomates e pedaços de pau pela plateia que ficou furiosa com o desempenho ousado que os artistas apresentaram no palco Depois do ocorrido os próprios colegas do meio artístico começaram a criticar os tropicalistas que despertaram também a revolta nos pais de família e dos prefeitos das cidades interioranas que passaram a enviar cartas contra o programa exibido na TV Tupi No dia 13 de dezembro de 1968 o repressivo Ato Institucionais Nº 5 tinha deflagrado as primeiras prisões de intelectuais e aristas cassações políticas atos de censura e o fechamento do congresso p 11 18 Ainda muito recente mas já em ação o processo mais intenso do regime militar já mostrava sua barbárie com as torturas os espancamentos e assassinatos nas prisões Como acabara de serem impostas pelos ditadores as notícias sobre os acontecimentos ainda não tinham começado a circular pelo país Após ter passado algumas horas na sede do Ministério da Guerra Caetano Veloso foi despachado para o quartel da Polícia do Exército onde ficou trancafiado em uma cela solitária muito pequena tendo que dormir no chão sendo que no local havia apenas uma latrina e um chuveiro para que ele realizasse suas necessidades Caetano foi obrigado a passar a virada do ano de 68 para 69 na prisão sem se alimentar direito pois a comida que era cedida aos presos era horrível O líder do Tropicalismo passava boa parte do tempo lendo livros que eram introduzidos 17 CALADO Carlos Tropicália a história de revolução musical São Paulo Ed34 1997 18 Idem 28 clandestinamente em sua cela por um coronel rebelde que cumpria pena disciplinar no quartel da polícia do Exército Uma semana depois de ter ficado trancafiado em uma solitária Caetano Veloso foi transferido para outro quartel da Polícia do Exército em Deodoro na Zona Oeste onde permaneceu preso numa cela coletiva junto com outros prisioneiros que também pertenciam ao meio artístico como o ator Perfeito Fortuna Durante o dia a solidariedade dos presos amenizava a situação Para tentar animar mais um pouco e esquecer a injustiça de estarem detidos sem ter cometido crime algum eles cantarolavam mas bastava ouvir um pequeno barulho para que a repressão dos oficiais se manifestasse aos gritos É bom vocês calarem a boca já Se eu atirar e matar algum de vocês ninguém vai ficar sabendo p1219 Assim falava um soldado que ameaçava os presos com uma arma na mão apontada na direção dos presos Em outro episódio dois soldados armados com metralhadoras tiraram Caetano Veloso da cela alegando que estavam cumprindo ordem do oficial do dia O cantor ficou apavorado só em pensar que sua hora havia chegado com os piores pensamentos rondando sua cabeça e pensa logo que os soldados tinham lhe buscado para ser fuzilado Ele é levado pelos soldados até a barbearia do quartel para que raspassem complemente seus cabelos pois isto era feito com a intenção de intimidar e humilhar os presos Em Janeiro de 1969 Caetano Veloso e Gilberto Gil são definitivamente separados Os dois são transferidos para diferentes quartéis do Regimento de Paraquedistas Gilberto Gil é transferido para a unidade de infantarias e Caetano Veloso para a unidade de Aviação Os ídolos da MPB ficaram detidos em celas individuais um pouco maiores que as solitárias da polícia do Exército Caetano Veloso foi interrogado pela primeira vez após quase um mês de prisão no quartel dos Paraquedistas As sessões de perguntas costumavam acontecer pela manhã e era realizada pelo major Hilton um comandante bastante autoritário que fazia de tudo para obter qualquer informação contraditória nos depoimentos dos presos O comandante fazia perguntas sobre a família de Caetano Veloso queria informações referidas ao endereço ás relações de parentesco ou seja coisas que não 19 CALADO Carlos Tropicália a história de revolução musical São Paulo Ed34 1997 29 faziam o menor sentido para Caetano que respondia às perguntas cada vez mais preocupado No segundo interrogatório o comandante Hilton fez questão de saber dos mínimos detalhes da vida do cantor perguntou sobre as escolas em que ele tinha estudado se havia participado de manifestações públicas até chegar a perguntar sobre o show que ele Gil e os Mutantes haviam feito na boate Sucata show que tinha acontecido a cerca de três meses antes da prisão em 19 de outubro de 1968 O militar falou da denúncia que o radialista Ronald Juliano teria feito no programa chamado Guerra é Guerra O comandante também fala a respeito do motivo pelo qual Caetano Veloso e Gilberto Gil haviam sido presos A suspeita que você e Gil teriam desrespeitado dois símbolos nacionais durante a temporada daquele show Além de se enrolarem em uma bandeira verdeamarela teriam cantado uma versão pornográfica do Hino Nacional p1620 Caetano Veloso negou a acusação e foi contestado pelo militar que só acreditou na versão do interrogado depois do depoimento do empresário Ricardo Amaral proprietário da Sucata e o discotecário Dom Pepi Depois do depoimento das duas testemunhas o comandante teve a confirmação de que Caetano Veloso estava falando a verdade Logo em seguida o major prometeu a soltura de Caetano Veloso seu desejo de liberdade foi negado pelos superiores do comandante Hilton e o mesmo teve de enfrentar umas semanas a mais na prisão Tendo a promessa de soltura frustrada Caetano Veloso continuou sendo torturado psicologicamente por um oficial que sempre o observava no quartel do Regimento de Paraquedista Caetano Veloso ficou intrigado com a presença daquele homem que o observava o tempo todo sem dizer nada de um modo frio e duro A cena se repetiu até que um dia Caetano Veloso foi levado por um soldado armado com uma metralhadora até uma sala da Vila Militar e lá estava o misterioso soldado que pediu para que o outro militar os deixassem a sós O misterioso militar fezlhe algumas perguntas como por exemplo se o cantor se sentia injustiçado por estar preso A resposta de Caetano Veloso foi sim Eu me 20 CALADO Carlos Tropicália a história de revolução musical São Paulo Ed34 1997 30 sinto em seguida o militar fez uma longa preleção teórica falou sobre a rebeldia da juventude naquela época da força que a música pop e o rock tinham Que tudo isso poderia funcionar como elementos desagregadores dos valores tradicionais da família Uma força que no Brasil estaria sendo usada pela esquerda para destruir a estabilidade social e política que segundo o militar conseguida a tanto custo com a chamada Revolução de 64 p1821 Essa era a visão que os militares tinham sobre a música uma visão de destruição dos costumes e dos valores morais com sua capacidade de revelar a verdadeira realidade pela qual a sociedade estava passando naquele momento Depois de ouvir todas aquelas palavras do militar Caetano Veloso voltou para a cela um pouco mais calmo já que seu pensamento era de que chegando até a sala fosse vítima de algum tipo de tortura ou violência sexual Na quartafeira de cinzas Caetano Veloso e Gilberto Gil foram escoltados pelos agentes da Polícia Federal seguiram para Salvador em um avião da Força Aérea onde tiveram que se manter em regime de confinamento sem aparecer nem dar declarações em público 199722 Quase cinco meses após a prisão Caetano Veloso e Gilberto Gil na companhia de suas respectivas mulheres estavam juntos novamente no aeroporto do Rio de Janeiro para deixarem de vez o país Os dois foram acompanhados por um agente da Polícia Federal até o avião Caetano Veloso ficou exilado em Londres de 1969 até 1972 Imagem 03 Caetano e Gilberto Gil exilados Fonte Google imagens Acesso em 25 de maio de 2014 21 Idem 22 Idem 31 Mesmo depois de cumprir prisão e de ser exilado Caetano Veloso continuou sendo perseguido pela ditadura e pelos censores Em 1973 Caetano Veloso teve sua canção Deus e o Diabo vetada por causa do último verso Dos bofes do meu Brasil Na maioria das vezes diante do veto os próprios censores solicitavam para modificar a obra e ainda diziam como a música deveria ficar No caso de Caetano Veloso não foi diferente um censor sugeriu que o autor substituísse a palavra dos bofes mas como a análise das músicas não eram feitas apenas por um único censor um segundo censor mencionou que os versos o carnaval é invenção do diabo que Deus abençoou e Cidade maravilhosa Dos bofes do meu Brasil também eram ofensivos às tradições religiosas Outro fato que ocorreu na carreira do artista foi no ano de 1975 quando o álbum Joia foi lançado trazendo em sua capa Caetano Veloso junto com sua então mulher Dedé e seu filho seminus com o desenho de algumas pombas cobrindolhes as genitálias Como já havia de se esperar o álbum também foi censurado e relançado com uma nova capa contendo apenas o desenho das pombas Imagem 04 Capas do álbum joia antes e depois da aprovação dos censores Fonte Google imagens Acesso em 02 de junho de 2014 Esse período negligenciou as produções musicais da época taxandoas como impróprias e prejudiciais à moral nacional perseguindo e castigando severamente os autores e cantores da época porém essas canções eram maneiras de gritar a censura pela qual a nação passava 32 2 SEM LENÇO SEM DOCUMENTO NADA NO BOLSO OU NAS MÃOS 23 UM GRITO CONTRA O PODER ALIENANTE NA ÉPOCA DA DITADURA MILITAR Tendo em vista que a música foi umas das manifestações artísticas que mais sofreu com a censura pelo fato de entrar no inconsciente das pessoas com maior facilidade e de despertálas para o que estava acontecendo no país nesse período vários autores discos e músicas nem vieram a ser conhecidos Para dar amparo legal a essa censuras foram instituídos os Atos Constitucionais e a Música Popular Brasileira foi tratada como um ser nocivo pelo Estado capaz de fazer mal à população Esses mecanismos foram à maneira encontrada pelos militares para colocar em prática atos ilegais não calculados e até mesmo avessos à Constituição Neste capítulo procederemos com uma análise das letras de músicas de Caetano Veloso que foram censuradas Afim de subsidiar esta análise recorreremos aos Atos Constitucionais que foram utilizados para reafirmar essas ações Utilizaremos principalmente os AI 5 6 e 13 pelo fato de que estes foram mais especificamente criados para dar poder ao Estado de tomar medidas anticonstitucionais às pessoas Propomos analisar os relatos de pessoas que sofreram perseguições durante este período buscando ler as entrelinhas das canções de Caetano Veloso que foram censuradas e relacionálas as leis que surgiram neste período O Ato Institucional nº I datado de 09 de abril de 1964 concede aos militares poderes que antes eles não tinham proibindo diversas pessoas por dez anos de exercerem seus poderes políticos 21 Os Atos Constitucionais e os representantes das músicas nas décadas do terror O regime militar não foi um fato instantâneo que chegou e se estabeleceu enquanto regime este resultou de um processo gradual de desarticulação do regime 23 Trecho da música de Caetano Veloso Alegria Alegria lançada em 1967 33 democrático nacional24 Nesse ponto podese dizer que os Atos institucionais tiveram um papel relevante para que os militares reconfigurassem a vida política brasileira Podemos dizer que os Atos Institucionais eram decretos que eram validados sem que para isso houvesse a aprovação de um órgão legislativo assim o presidente determinava o que ia ou não ser validado sem que antes houvesse uma discussão entre os deputados e senadores que pudessem vetála ou reformála Este mecanismo deu poderes anticonstitucionais aos presidentes da ditadura e foi com o apoio destes que se tornou possível cercear e perseguir todos aqueles que se pronunciavam contra este regime Esses Atos Institucionais instauraram as características ditatoriais ao desrespeitar os princípios da Constituição de 1946 e acabaram com o valor jurídico da lei maior que regia a política nacional Ao todo foram impostos dezessete Atos Institucionais No momento em que se agravaram as atitudes da ditadura o Brasil vivia um momento em que se fortaleciam grupos estudantis e partidos políticos porém todas estas instituições caíram na clandestinidade através dessas leis O AI 5 foi um dos mais severos que foram baixados retificaram o poder dos presidentes em cassar todos os partidos que eles acreditavam ser comunistas O artigo 3º do AI 5 determinava que No interesse de preservar a Revolução o Presidente da República ouvido o Conselho de Segurança Nacional e sem as limitações previstas na Constituição poderá suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos e cassar mandatos eletivos federais estaduais e municipais Parágrafo único Aos membros dos Legislativos federal estaduais e municipais que tiverem seus mandatos cassados não serão dados substitutos determinandose o quórum parlamentar em função dos lugares efetivamente preenchidos25 Segundo Gustavo Alonso26 o AI5 foi o principal instrumento de arbítrio da ditadura militar Com ele o general presidente poderia sem dar satisfações a ninguém fechar o Congresso Nacional cassar mandatos de parlamentares isto é excluir o político do cargo que ocupava fosse senador governador deputado etc demitir 24 ALONSO Gustavo Ameo ou Ameo A Música Popular e as Ditaduras Brasileiras R Mest Hist Vassouras v 13 n 2 p 5582 juldez 2011 25 Atos Institucionais Disponível em httpwwwacervoditadurarsgovbr 26 ALONSO Gustavo Ameo ou Ameo A Música Popular e as Ditaduras Brasileiras R Mest Hist Vassouras v 13 n 2 p 5582 juldez 2011 34 juízes suspender garantias do Poder Judiciário legislar por decretos decretar estado de sítio enfim ter poderes tão vastos como os dos tiranos A imagem abaixo ilustra o sentimento que tomou conta da época em questão em que o medo e a repressão se tornou o algoz de todas as pessoas que lutavam contra a repressão Imagem 05 Os Atos Institucionais desmantelaram as liberdades democráticas no interior do país Fonte httpciadosblogueirosblogspotcombr Acesso em 17 de junho de 2014 A imagem acima ilustra a situação que se estabeleceu no Brasil em que as pessoas tinham suas vozes caladas e o grito dos oprimidos era censurado Nesse período a Música Popular Brasileira começa a atingir as grandes massas ousando a falar o que não era permitido à nação A MPB começou a incomodar o regime militar e o movimento tropicalista começou a ser o alvo dos censores pois seu cunho sociocultural passou a ser interpretado como uma manifestação política com intuito de balançar as bases deste Governo Justamente neste período artistas como Caetano Veloso Gilberto Gil Geraldo Vandré e outros começaram a ser torturados e alguns deles até exilados O AI 13 foi um dos atos que para coadunar as ações dos militares censores foi baixado pela junta militar que assumiu o poder em função da enfermidade de Costa e Silva em 5 de setembro de 1969 Este ato endureceu ainda mais o regime pois institucionalizou a 35 expulsão de qualquer cidadão que fosse considerado inconveniente para o regime do país27 Aldir Blanc foi um compositor de inúmeros medalhões da música popular brasileira viveu intensamente os anos de censura no País Suas composições sempre complexas na rima sofreram vetos e por esse motivo Aldir visitou com frequência a Divisão de Censura de Diversões Públicas O mesmo relata experiências que viveu durante a repressão aos artistas da época suas atitudes gostos e modos de viver passaram a ser alvo da censura Ao ser questionado sobre recordações de fatos nas ocasiões em que esteve presente na DCDP Aldir afirma que Uma vez eu estava presente aguardando para ser chamado e um sujeito aos berros entrou gritando que era preciso matar o Ney Matogrosso pois o neto dele não parava de imitar o Ney ficava rebolando envolto de uma cortina Esse cidadão culpava o cantor de insinuar um comportamento homossexual28 O AI 13 dava o poder de calar os artistas desta época e o relato de Aldir ilustra o terror que era vivido por aquelas pessoas que através das letras de suas músicas se manifestavam e tratavam da realidade que estavam passando O fato é que frente à força dos festivais da MPB no final da década de sessenta o regime militar viuse ameaçado Movimentos como a Tropicália com a sua irreverência mais de teor socialcultural do que políticoengajado passou a incomodar os militares29 Os Atos Inconstitucionais sobretudo o AI 5 foram os de maior repressão aos artistas Alguns representantes embrionários da MPB já eram vistos pelos militares como inimigos do regime entre eles Caetano Veloso Gilberto Gil Taiguara e Geraldo Vandré e assim as canções destes autores eram censuradas sem qualquer critério pré estabelecido de modo que as músicas eram vetadas por critérios imprecisos que podiam variar desde questões políticas ou sob a justificativa de proteção moral vigente A imagem a seguir revela o sentimento das pessoas pela luta contra a censura em prol da cultura 27 Atos Institucionais Disponível em httpwwwacervoditadurarsgovbr 28 Trecho de entrevista de Aldir Blanc no site httpwwwcensuramusicalcombr 29 SOUZA Amilton Justo de É o meu parecer a censura política de protesto nos anos de chumbo do regime militar do Brasil 19691974 Dissertação João Pessoa 2010 36 Imagem 06 povo manifestando contra a censura que se estabeleceu na década de 60 Imagem 06 httpciadosblogueirosblogspotcombr Acesso em 20 de julho de 2014 As pessoas viamse ameaçadas pelo regime e as músicas se tornaram o representante do movimento de contracultura que esperava que pudesse mostrar a sua arte sem que para isso corressem o risco de serem presos torturados ou mesmo mortos Vimos que os Atos Inconstitucionais foram uma ferramenta importantíssima para corroborar as ações dos ditadores em censurar os artistas brasileiros que por meio de suas canções que ganhavam ares de protesto Segundo afirma o produtor Manoel Barenbein em entrevista a censura invadiu a MPB30 quando trabalhava com cantores como Caetano Veloso Gilberto Gil e Chico Buarque o mesmo presenciou as ações do DCDP limitando uma época de intensa produção musical em que a história da música popular brasileira ficou repleta de álbuns atemporais Discos que registraram não apenas canções mas catalisaram todo o contexto musical de uma época 31 Nessa época todo movimento ou expressão artística era submetido aos olhos afiados da censura Por ela não passava crítica alguma ao Governo pois tudo era fiscalizado pelos órgãos responsáveis por tal função Adiante faremos uma análise das músicas de Caetano Veloso 30 Trecho da entrevista do produtor Manoel Barenbein ao site httpwwwcensuramusicalcombr 31 Idem 37 22 A voz do debochado Alegria Alegria e É proibido proibir e suas entrelinhas Como dito anteriormente muitas letras de canções foram censuradas durante a ditadura militar invariavelmente por pessoas que não tinha propriedade para analisar e interpretar essas músicas Entre as canções de Caetano Veloso que foram vetadas e às vezes até banidas dos discos a que teve maior repercussão foi Alegria Alegria lançada por Caetano Veloso em 1967 Caminhando contra o vento Sem lenço e sem documento No sol de quase dezembro Eu vou O sol se reparte em crimes Espaçonaves guerrilhas Em cordinales bonitas Eu vou Em carros de presidentes Em grandes beijos de amor Em dentes pernas bandeiras Bombas e Brigitte Bardot A música Alegria Alegria foi escrita musicada e interpretada pelo cantor compositor Caetano Veloso em novembro de 1967 e ajudou a criar o estilo intitulado de MPB Música Popular Brasileira Por essa razão Caetano Veloso teve grande parte de sua obra censurada pelo regime militar A canção relata a opressão que o cidadão comum sofria nas ruas nos meios de comunicação em sua cultura nativa e no seu próprio país Mais que uma forma de entretenimento a canção é uma forma de denúncia ao abuso de poder de forma Sem metafórica como nos diz os próprios versos da canção Caminhando contra o vento lenço e sem documento denuncia a violência praticada pelo regime sem luxos e sem fuzil sem fone sem telefone no coração do Brasil denúncia à precariedade na educação brasileira proporcionada pela ditadura que queria pessoas totalmente desligadas dos problemas sociais pelos quais passava o Brasil na época O sol nas bancas de revistasme enche de alegria e preguiça quem lê tanta notícia Na letra de Alegria Alegria Caetano Veloso utiliza um expediente inovador através de composições aparentemente sem nexo e fazendo uso de metáforas O 38 cantor e compositor denuncia os contrastes regionais sociais e econômicos do país com os versos Eu tomo uma CocaCola ela pensa em casamento Em carros de presidentes Em grandes beijos de amor Em dentes pernas bandeiras Bomba e Brigitte Bardot A música foi criada especialmente para ser apresentada no terceiro Festival da MPB da TV Record de São Paulo Caetano Veloso queria compor algo especial uma canção que pretendia ser uma espécie de manifesto uma síntese pessoal das conversas e discussões sobre os novos rumos artísticos da música popular brasileira Caetano Veloso queria compor algo simples para que as pessoas presentes no festival pudessem aprender facilmente a letra da canção que caracterizasse a nova atitude que ele mesmo queria inaugurar A apresentação da canção foi rápida No momento em que os Beat Boys sugiram no palco do Teatro Paramount com suas guitarras e cabelos longos vestidos de corderosa as vaias já começaram A apresentadora Sônia Ribeiro ainda não tinha anunciado o nome de Caetano Veloso quando a banda atacou a imponente introdução de Alegria Alegria No mesmo instante Caetano Veloso entrou em cena com um paletó de tweed marrom e uma camisa de gola rolê laranja Estava com uma expressão tão irada que chegou a assustar não só o casal de apresentadores como as pessoas sentadas nas primeiras filas da plateia p139 O resultado da apresentação se deu com a classificação da mesma em quarto lugar para desgosto de muitos que aplaudiram euforicamente a canção depois da aparição de Caetano Veloso no palco Caetano Veloso nesta canção discute sobre a exploração da violência dos militares de maneira que suscita a questão de que os governantes da ditadura não faziam questão de dar ensino qualificado e uma cultura apropriada aos brasileiros para deixálos cada vez mais alienados como podemos inferis dos versos Sem lenço sem documentoNada no bolso ou nas mãosEu quero seguir vivendo amorEu vou Segundo Adalberto Paranhos32 a letra de Alegria Alegria elevava e ressalta a ironia a rebeldia e o anarquismo fazendo um paralelo com trechos do cotidiano Os versos demonstram o abuso do poder empregado em todas as camadas sociais revela ainda uma crítica ao uso desmedido da violência e as más condições do contexto 32 PARANHOS Adalberto Música política e ideologia migrações de sentidos na canção popular ANPUH XXV Simpósio Nacional de História Fortaleza 2009 39 educacional e cultural estabelecido pelos militares aos quais interessava formar brasileiros passivos e inertes Era justamente esta denuncia velada que incomodava os censores e os mesmos empreendiam a perseguição a Caetano Veloso O sol se reparte em crimes Espaçonaves guerrilhas Em cardinales bonitas Eu vou Neste trecho o autor se refere aos indivíduos que se revelavam contra o regime e eram presas O sol se repartia entre as grades da janela da prisão pra onde iam os que praticavam o crime de não concordar com o regime político Espaçonaves na verdade são os tanques de guerra que eventualmente circulavam as ruas como forma de opressão da ditadura Outra canção de grande sucesso mas que também não foi aceita pelo público e pelos censores foi É proibido proibir uma composição de Caetano Veloso gravada em 1968 com acompanhamento musical da banda Os Mutantes A letra da canção mostra o quanto Caetano Veloso estava atento ás influências da cultura de massa no cotidiano da sociedade da época O poeta baiano traz na canção uma alusão à revolução sexual da pílula anticoncepcional como diz no verso A mãe da virgem diz que não e o anúncio da televisão A canção aborda vários temas fala das proibições das classes sociais da contradição da modernidade A mãe da virgem diz que não E o anúncio da televisão E estava escrito no portão E o maestro ergueu o dedo E além da porta Há o porteiro sim Eu digo não E eu digo não ao não Eu digo é Proibido proibir É proibido proibir É proibido proibir foi apresentada no festival de 12 de setembro de 1968 em São Paulo no Festival internacional da Canção A plateia já esperava o estilo politicamente incorreto de Caetano que veio novamente acompanhado por guitarras elétricas o 40 público presente fez uma péssima recepção à nova canção de Caetano Veloso que junto com os mutantes foram recebidos com gritos e vaias 33 O público encontrouse descontente não apenas pela presença das guitarras do grupo Os Mutantes mas por conta do visual criado por Caetano Veloso suas roupas espaciais e sua performance ousada de entrar rebolando no palco Mais surpreso e irritado o público que se fazia presente ficou com a aparição de Jhonny Dondurond um genuíno hippe norteamericano fugido do serviço militar em seu país ele entrou uivando e berrando palavras que o público não entendia A ideia da aparição de Dondurond na apresentação foi do próprio Caetano Veloso que planejou tudo para que ninguém soubesse e o impedisse de trazêlo ao palco Mesmo com toda a euforia e confusão que a canção de Caetano Veloso causou É proibido proibir foi classificada provocando ainda mais a ira da plateia que vaiava e gritava cada vez mais forte Caetano Veloso ficou indignado com a reação do público e não deixou por menos respondeu a agressão com um longo discurso que ficou marcado na história dos festivais de música dos anos 60 Mas é isso que é a juventude Que diz que quer tomar o poder vocês têm coragem de aplaudir este ano uma música tipo de música que vocês não teriam coragem de aplaudir no ano passado São a mesma juventude que vão sempre matar amanhã o velhote inimigo que morreu ontem Vocês não têm Fernando Pessoa E hoje vim dizer aqui que quem teve coragem de assumir a estrutura de festival não com o medo que o senhor Chico de Assis pediu mas com a coragem foi Gilberto Gil e fui eu Vocês estão por fora Vocês não dão pra entender Mas que juventude é essa Que juventude é essa Vocês jamais conterão ninguém Vocês são iguais sabem a quem São iguais sabem a que Aqueles que foram no roda viva e espancaram os atores Vocês não diferem em nada deles vocês não diferem em nada E por falar nisso Viva Cacilda Becker Viva Cacilda Becker Eu tinha me comprometido de dar esse viva aqui não tem nada a ver com vocês O problema é o seguinte vocês estão querendo policiar a música brasileira O maranhão apresentou este ano uma música com arranjo de Charleston Sabem o que Foi a Gabriela do ano passado que ele não teve coragem de no ano passado apresentar por ser americano Mas eu e Gil já abrimos o caminho O que é que vocês querem Eu vim aqui para acabar com isso Eu vim dizer ao Júri me desclassifiquem Eu não tenho nada a ver com isso Nada a ver com isso Gilberto GilGilberto Gil está comigo nós só entramos no festival para isso Não é Gil Não fingimos Não fingimos 33 CALADO Carlos Tropicália a história de revolução musical São Paulo Ed34 1997 41 aqui que desconhecemos o que seja festival não Ninguém nunca me ouviu falar assim Entendeu Eu só queria dizer isso baby Sabe como é Nós eu e ele tivemos coragem de entrar em todos os movimentos e sair de todos E vocês Se vocês foremSe vocês em política forem como são em estética estamos feitos Me desclassifiquem junto com Gil Junto com ele tá entendendo E quanto a vocês O Júri é muito simpático mas é incompetente Deus está solto Me dê um beijo meu amor eles estão nos esperando os automóveis ordem em chamas derrubar as prateleiras as estantes as estatuas as vidraças louças livros sim e eu digo sim e eu digo sim e eu digo não ou não e eu digo proibido proibir fora do tom sem melodia como é Júri Não entenderam Classificaram a melodia de Gilberto Gil Gil fundiu a cuca de vocês hem É assim que eu quero ver Chega p 221 22222334 Entre muitas formas de resistência e manifestação contra a ditadura estava à música manifestação artística cultural de forte teor político Porém nem todas as músicas que foram criadas no período do regime foram criadas como formas de protesto Caetano Veloso portanto não compunha canções diretas à ditadura mas que pelo simples motivo de serem criadas por ele já bastava para incomodar aos ditadores do regime Em entrevista ao site Censura Musical Manoel Barenbein 35 detalhou como a censura afetou artistas que fizeram parte do período mais produtivo da música no Brasil o mesmo afirma que Em 69 o Gil e o Caetano ficaram presos no Rio e enquanto se preparava a deportação deles os dois foram confinados em Salvador Eles não podiam sair da cidade não podiam fazer nada em público Na realidade estavam passando por uma fase de dificuldade econômica pois não podiam fazer show ou seja não podiam trabalhar Quem vive de música e não pode fazer show não consegue viver Aí a companhia decidiu ajudar e definimos com quem íamos gravar dois LPs e a gravadora daria um adiantamento dos direitos que eles teriam posteriormente ao lançamento dos discos As palavras de Manoel Barenbein revelam o tamanho das dificuldades que os cantores desta época passaram quando foram perseguidos pelo fato de cantarem a realidade a qual estavam subjugados A censura não apenas proibia uma palavra ou 34 CALADO Carlos Tropicália a história de revolução musical São Paulo Ed34 1997 35 Trecho da entrevista do produtor Manoel Barenbein ao site httpwwwcensuramusicalcombr 42 trechos de músicas ela roubava a dignidade do homem proibindoo de trabalhar e se sustentar As canções eram censuradas muitas vezes por uma ou outra palavra por pessoas que muitas vezes nem entendiam aquilo que estavam fazendo Segundo Carocha36 a censura musical como não poderia deixar de ser acompanhou o crescimento e solidificação de seu órgão central a DCDP Um complexo processo de centralização e uniformização da censura de diversões públicas durante o regime militar refletiuse incisivamente nos vetos às letras musicais e marcando seus autores Estes passaram a ser alvo de perseguição tendo muito de suas músicas censuradas Temos aqui o nome de algumas das canções de Caetano Veloso que foram censuradas Alegria alegria 1967 É proibido proibir 1968 Panis et circenses 1968 A voz do morto 1968 Tropicália 1967 Pipoca moderna 1973 Help 1973 Joia 1973 Soy loco por ti América 1968 Podres poderes 1984 Língua 1984 Leãozinho 1968 Araçá azul 1984 Pulsar 1973Doces bárbaros 1976 Embora a censura musical nunca tenha visado extirpar fisicamente o câncer do comunismo suas tentativas foram no sentido de eliminar a simples menção em letras de músicas da existência de algo que não era do interesse do regime militar e ao mesmo tempo extrair também das letras a propagação de novos costumes que também não atendiam aos seus interesses mantendo com isso uma visão de mundo próprio e de acordo com os ditames dos militares p 0537 Depois de muitos vetos e perseguições por parte da DCDP aos artistas esta foi extinta no ano de 1988 havendo a promulgação de uma nova constituição na qual ficava determinada a passagem da censura e diversões públicas para o âmbito do Ministério da Educação com o caráter classificatório A partir de todas essas composições e apresentações feitas pelos artistas brasileiros podemos perceber quão importante foi á participação dos mesmos num momento tão difícil e cheio de conflitos para a população brasileira que foi o momento do golpe militar de 1964 36 CAROCHA Maika Lois Pelos versos das canções um estudo sobre o funcionamento da censura musical durante a ditadura militar brasileira 19641985 UFRJPPGHIS 2007 37 CAROCHA Maika Lois Pelos versos das canções um estudo sobre o funcionamento da censura musical durante a ditadura militar brasileira 19641985 UFRJPPGHIS 2007 43 Caetano Veloso presenciou o momento em que o Brasil viu a música popular brasileira começa a se expandir de uma forma que ousava relatar o que não era permitido à nação neste contexto os movimentos como a Tropicália com sua irreverência passou a incomodar os militares Porém como resposta à perseguição e à repressão ele optou não pela briga armada mas pelo protesto em suas músicas 44 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS Sabemos hoje que a história política desse país é marcada pela mudança passando por regimes que foram desde o monárquico até o ditatorial Essa sucessão de regimes envolveu inúmeras brigas disputas conflitos e fatos que fizeram deste país uma nação alicerçada pela disputa do poder e pela resistência do povo brasileiro mediante as repressões que lhes foram impostas Caetano Veloso junto com outros cantores se tornou alvo do regime que impôs o seu domínio os seus valores e a sua concepção ao mundo social Contudo foram artistas como ele que com sua arte despertaram o medo destes dirigentes pois estes viam nas manifestações artísticoculturais uma ameaça a sua tirania Através de suas canções Caetano buscou chamar atenção para que as pessoas abrissem os olhos contra a falsa representação que os ditadores queriam passar de um Brasil democrático e sem problemas sociais porém artistas como ele foram silenciados através da censura oficial do Estado que cassaram e puniram representantes da cultura popular brasileira por escrever letras de canções de contestação política e social configurando uma oposição ao que eles propunham Porém apesar do exílio do medo e da humilhação às quais Caetano Veloso fora submetido não o impediu de através de suas músicas encontrar uma forma de conscientizar e incentivar a população a se rebelar e protestar contra o Governo da época Este trabalho permitiu lançar um olhar sob um passado que ficou registrado em letras de canções e apesar de escritas durante anos de sangue chamavam o povo a erguerse e resistir a este regime Caetano Veloso fez de seus versos um chamado à vida e um levante intelectual contra uma das mais nefastas práticas dos adeptos da ditadura a morte e o calar da voz pelo medo Medo esse que foi vencido pela celebre produção artística deste cantor dando ao povo a esperança de resistir Caminhando contra o vento sem a necessidade de se prender a burocracia sem lenço e sem documento de maneira que o povo assim como ele precisava caminhar e buscar o desprendimento das amarras que lhes foram impostas mas que não silenciaram o seu cantar 45 REFERÊNCIAS ALMEIDA VERAS Publicações unigranriobrindex phpmagistroarticleviewfile2014960 acesso em 15 de março de 2014 ALONSO Gustavo Ameo ou Ameo A Música Popular e as Ditaduras Brasileiras R Mest Hist Vassouras v 13 n 2 p 5582 juldez 2011 Atos Institucionais Disponível em httpwwwacervoditadurarsgovbr BRUZADELLI Victor Creti RIOS Sebastião Na frente do espelho a construção de imagens na tropicália Cadernos de Pesquisa do CDHIS n 38 ano 21 p 135 146 1º sem 2008 CALADO Carlos Tropicália a história de revolução musical São Paulo Ed34 1997 CAROCHA Maika Lois Pelos versos das canções um estudo sobre o funcionamento da censura musical durante a ditadura militar brasileira 1964 1985 Rio de Janeiro UFRJPPGHIS 2007 V 130f 297 cm 2007 GASPARI Elio A Ditadura Escancarada Editora companhia das letras São Paulo 2002 ISBN 8535902996 HOLANDA Chico Buarque ObraRoda viva peça em dois atos de Chico Buarque httpwwwchicobuarquecombrconstrucaoLindex Htmlacesso em 18 de fevereiro 2014 LEEMEDDI ProfessorJosimar blogspotcombr201404censuradacompositoresx censoresnahtml acesso em 13 de abril de 2014 PARANHOS Adalberto Música política e ideologia migrações de sentidos na canção popular ANPUH XXV Simpósio Nacional de História Fortaleza 2009 SOUZA Amilton Justo de É o meu parecer a censura política de protesto nos anos de chumbo do regime militar do Brasil 19691974 Dissertação João Pessoa 2010 VELOSO Caetano Alegria Alegria Intérpretes Beat Boys Gilberto Gil Os mutantes São Paulo c1967 1 CD É Proibido Proibir Intérprete Os mutantes São Paulo 1968 1 CD VIEIRA Nayara da Silva Entre o imoral e o subversivo a divisão de censura de Diversões Públicas DCDP no regime militar 19681979 46 VINCE httpwwwcontraversiacombrblogpage398 acesso em 12 de março 2014 ZEMANOVÁ Lenka A vida e a obra de Caetano Veloso na época do tropicalismo São Paulo Contemporâneos 2009 VERDADE TROPICAL CAETANO VELOSO Capa João Baptista da Costa Aguiar Sobre óleo de Mira Schendel Col Ricard Akagawa São Paulo Foto da capa Rômulo Fialdini Preparação Márcia Copola Revisão Carmen S da Costa Isabel Jorge Cury Dados Internacionais de Catalogação na Publicação CIP Câmara Brasileira do Livro SP Brasil Veloso Caetano 1942 Verdade Tropical Caetano Veloso São Paulo Companhia das Letras 1997 ISBN 8571647127 1 Música popular Brasil História e crítica 2 Tropicalismo Música Brasil 3 Veloso Caetano 1942 I 974407 CDD 781630981 Índices para catálogo sistemático 1 Brasil Tropicalismo Música popular 781630981 2 Tropicalismo Música popular brasileira 781630981 1997 Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA SCHWARCZ LTDA Rua Bandeira Paulista 702 cj 72 04532002 São Paulo SP Telefone 011 8660801 Fax 011 8660814 email coletrasmtecnetspcombr Para José Miguel Wisnik David Byrne E Silvina Garré Do Fundo escuro do coração solar do hemisfério sul de dentro da mistura de raças que não assegura nem degradação nem utopia genética das entranhas imundas e no entanto saneadoras da internacionalizante indústria do entretenimento da ilha Brasil pairando eternamente a meio milímetro do chão real da América do centro do nevoeiro da língua portuguesa saem estas palavras que embora se saibam de fato despretensiosas são de testemunho e interrogação sobre o sentido das relações entre os grupos humanos os indivíduos e as formas artísticas e também das transações comerciais e das forças políticas em suma sobre o gosto da vida neste final de século A palavra poeta encerrava tal grandeza como nenhuma outra poderia e mesmo que um tanto secretamente eu a acolhi em meu coração e procurei aplicála ao que eu fazia e faria embora não fosse poesia Nesta Verdade tropical o centro da atenção de Caetano Veloso é o tropicalismo seus pontos de partida afetivos e intelectuais seus protagonistas o modo como foi percebido por uma geração que cantava música popular apaixonadamente como quem toma partido as visões do Brasil delineadas a partir dele as formas que encontrou de se desdobrar ao longo do tempo Mas Caetano fala diretamente de si mesmo transformando a relação com a música num roteiro de sua vida pessoal Assim no capitulo Narciso em férias ele relembra os dois meses em que ficou preso na passagem de 68 para 69 Conta por exemplo como teve a chance de evitar a prisão de Gilberto Gil e não soube fazêlo descreve seu sono irremediável e o modo como vivenciou o erotismo naquele confinamento entre homens explica as tais fotografias da Terra que viu numa revista de variedades narra sem pressa uma situação que hoje lhe inspira um misto de humor e nojo no pátio do quartel dos pára quedistas sob um sol brutal com um cano de metralhadora ás costas eu cantava suavemente para o oficial de dia Caetano estende uma linha cronológica a partir da infância e da adolescência em Santo Amaro e embora se concentrando no período que vai até meados da década de 70 chega até o momento em que terminou de escrever este livro em julho de 97 De um extremo ao outro os temas se multiplicam as relações familiares a ditadura o exílio em Londres leituras decisivas e preferências literárias o sexo a experiência com as drogas Gil Bethânia e Gal João Gilberto e a bossa nova rocknroll e samba Chico Buarque Glauber Cinema Novo e amor ao cinema projetos estéticos das décadas de 60 e 70 os festivais e os programas de auditório a velha Record o teatro de Zé Celso e o de Boal o diálogo com os concretistas a contracultura de Zé Agrippino Beatles e Mutantes Rio São Paulo e Salvador etc Sem ser uma autobiografia Verdade tropical é Caetano Veloso por ele mesmo Pode ser a MPB por ela mesma ou nossos trópicos por um tropicalista por um brasileiro músico por um compositor brasileiro que aqui faz do tempo a torre mais alta do seu observatório É a primeira vez que ele usa longamente a escrita De muitas maneiras entretanto conhecemos de perto o autor de Verdade tropical suas canções misturamse ás nossas experiências traduzem nossa vontade de amor e de protesto sugerem o tom e o pulso de certas danças ocultas dentro de nós Neste livro está intacta sua capacidade de nos provocar de nos pôr em movimento com seu ouvido inquieto com a vitalidade de sua imaginação reflexiva com uma forma própria de falar a língua portuguesa Caetano Veloso nasceu em Santo Amaro da Purificação na Bahia em 1942 Cantor e compositor publicou o livro Alegria alegria e dirigiu o filme O cinema falado 1986 AGRADECIMENTOS Cristiana Lavigne leu o a amontoado de escritos que crescia na mesma medida em que ia se tornando intratável e apontando elos e sugerindo cortes me deu de volta a esperança de fazer dele um livro Rubem Fonseca que num diálogo telefônico internacional com Cristiana Lavigne ajudou a resolver um problema de informática leu o material já organizado e entre comentários muito encorajadores também ao telefone aconselhou na verdade impôs três cortes curtos e precisos como as frases que o fizeram famoso Duas dessas ordens foram imediatamente seguidas à risca e uma delas depois de muita hesitação apenas em parte Mais longe e mais perto Luís Tenório de Oliveira Lima me deu de presente no meio dos anos 70 um livro de Unamuno em que li as mais comoventes observações jamais feitas por um estrangeiro sobre a língua portuguesa o que mudou minha relação com as palavras Finalmente ainda mais longe mas muitíssimo mais perto Rodrigo Velloso me fez no final dos anos 50 uma assinatura da revista Senhor e assim tomei contato com os textos de Clarice Lispector cuja obra Rodrigo passou a comprar sistematicamente para mim como também a de João Guimarães Rosa e a de João Cabral de Melo Neto Isso me levou a amar os livros com uma profundeza que supera a falta de intimidade que ainda hoje tenho com eles Obrigado CV SUMÁRIO INTRODUÇÃO PARTE 1 Elvis e Marilyn Bethânia e Ray Charles Intermezzo Baiano PARTE 2 Transe Paisagem Útil Domingo Baihunos Alegria alegria Domingo no parque Tropicália 2002 A poesia concreta Chico Vanguarda Panis et Circensis É proibido proibir Divino Maravilhoso PARTE 3 Narciso em férias PARTE 4 Barra 69 London London Língua Afinidades eletivas Ameo ou deixeo Back in Bahia Araçá azul VEREDA Índice Onomástico INTRODUÇÃO No ano 2000 o Brasil comemora além da passagem do século e do milênio quinhentos anos do seu descobrimento Claro que a rigor o novo século começa em 2001 mas as comemorações e as fantasias supersticiosas terão lugar na noite de 31de dezembro de 1999 para 1º de janeiro de 2000 É um acúmulo de significados para a data não compartilhado com nenhum outro país do mundo A sobrecarga de presságios desencadeada por uma tal conjunção combina bem com a psicologia de uma nação falhada que encontra razões para envergonharse de um dia ter sido chamada de país do futuro Na verdade essas expectativas tomam hoje a forma de uma resignação prévia a novas frustrações mas a magnitude dessas decepções antevividas revela que feliz e infelizmente estamos muito longe de um realismo sensato Aprendemos desde a infância que o Brasil foi descoberto pelo navegador português Pedro Álvares Cabral a 22 de abril de 1500 Todos os outros países da América consideramse suficientemente descobertos em conjunto por Cristóvão Colombo em 1492 O Brasil no entanto teve que ser descoberto depois separadamente Quando menino em Santo Amaro da Purificação na Bahia eu já perguntava Por quê Podiam dizernos por exemplo que Colombo não passou das ilhas da América Central e que o continente propriamente dito só veio a ser alcançado pelos portugueses oito anos depois ou então que Cabral descobriu a existência da América do Sul de que os espanhóis não teriam a menor idéia mas não contamnos que o Brasil apareceu como um continente independente ou uma ilha descomunal no meio do Atlântico Sul para surpresa dos navegadores lusitanos que querendo costear a África para chegar às Índias afastaramse demasiadamente para oeste Que esse acontecimento histórico tão mal definido seja situado com tanta exatidão na metade do segundo milênio da nossa era só estimula a produção de uma autoconsciência nacional a um tempo inconsistente e exagerada Os Estados Unidos são um país sem nome América é o nome do continente onde entre outros os estados de colonização inglesa se uniram e a mera designação da união desses estados não constitui uma nomeação o Brasil é um nome sem país Os colonizadores ingleses deixaram a impressão de ter roubado o nome geral do continente para o país que fundaram Os portugueses não parecem ter chegado a fundar um país propriamente mas deram um jeito de sugerir que não aportaram a uma parte da América e sim a uma totalidade absolutamente outra a que chamaram de Brasil O paralelo com os Estados Unidos é inevitável Se todos os países do mundo têm hoje de se medir com a América de se posicionar em face do Império Americano e se os outros países das Américas o têm que fazer de modo ainda mais direto cotejando suas respectivas histórias com a do seu irmão mais forte e afortunado o caso do Brasil apresenta a agravante de ser um espelhamento mais evidente e um alheamento mais radical O Brasil é o outro gigante da América o outro melting pot de raças e culturas o outro paraíso prometido a imigrantes europeus e asiáticos o Outro O duplo a sombra o negativo da grande aventura do Novo Mundo O epíteto de gigante adormecido aplicado aos Estados Unidos pelo almirante Yamamoto será tomado por qualquer brasileiro como referente ao Brasil e confundido com o já considerado agourento deitado eternamente em berço esplêndido da letra do Hino Nacional A bula papal que criou o Tratado de Tordesilhas estipulando que as terras a serem descobertas a leste de um meridiano convencionado pertenceriam a Portugal e deixando as que estivessem a oeste dessa linha para a Espanha explica a necessidade de que se desse um novo descobrimento e de que este fosse português Mas eis que na escola aprendemos e a bela carta de Pero Vaz de Caminha narrando a viagem ao rei de Portugal nos assegura que o acaso empurrou a frota cabralina para a costa brasileira Ficamos assim com essa imensa ilha flutuante homônima da ilha utópica dos europeus medievais e talvez mais irreal do que ela esse enorme lugarnenhum cujo nome arde Em 95 o jornal Folha de S Paulo estampava na primeira página Relatório do Banco Mundial aponta o Brasil como o país em que há maior desigualdade social e de renda no mundo A matéria informa que 513 da renda brasileira está concentrada em 10 da população Os 20 mais ricos detém 675 enquanto os 20 mais pobres detêm apenas 21 É um legado brutal que minha geração ao chegar à adolescência sonhou fazer reverter Em 64 executando um gesto exigido pela necessidade de perpetuar essas desigualdades que têm se mostrado o único modo de a economia brasileira funcionar mal naturalmente e no plano internacional pela defesa da liberdade de mercado contra a ameaça do bloco comunista guerra fria os militares tomaram o poder Os estudantes ou eram de esquerda ou se calavam No ambiente familiar e nas relações de amizade nada parecia indicar a possibilidade de alguém em sã consciência discordar do ideário socializante A direita só existia por causa de interesses escusos e inconfessáveis Assim as passeatas com Deus pela liberdade organizadas por senhoras católicas em apoio ao golpe militar nos surgiam como cínicos gestos hipócritas de gente má A poetisa americana Elizabeth Bishop no entanto que viveu no Brasil de 52 a 70 em cartas a amigos nos Estados Unidos exulta com essas passeatas que segundo ela tinham sido originalmente organizadas como paradas anticomunistas mas que se tornaram marchas da vitória mais de 1 milhão de pessoas na chuva E conclui Era totalmente espontâneo eles não podiam todos ser ricos reacionários de direita Leio essas palavras hoje com mais assombro pela distorção da minha perspectiva na época do que pela ao menos equivalente exibida pela autora Não é sem malestar que tomo conhecimento de sua versão do golpe de Estado mas é uma lição a mais nestes tempos em que as virtudes privadas têm que se tomar como causa dos malefícios públicos constatar que alguém amável e uma mulher poeta no Brasil de então pudesse assim resumir o movimento militar que pôs na cadeia meus melhores colegas e meus melhores professores Uns poucos generais corajosos e os governadores dos três estados mais importantes se juntaram e depois de umas 48 horas difíceis tudo estava acabado As reações favoráveis têm sido realmente populares graças a Deus Havia o que se podiam considerar boas intenções na direita portanto Em 64 a esquerda parecia se compor de todos os brasileiros que merecessem sêlo e mesmo de todos os seres humanos dignos desse nome Antônio Risério anota em seu ensaio sobre a Bahia no período democrático pré64 que o intelectual austríaco Otto Maria Carpeaux quando chegou ao Brasil fugindo de Hitler já constatava que aqui quase todo o mundo era de esquerda O que se pretende contar e interpretar neste livro é a aventura de um impulso criativo surgido no seio da musica popular brasileira na segunda metade dos anos 60 em que os protagonistas entre eles o próprio narrador queriam poder moverse além da vinculação automática com as esquerdas dando conta ao mesmo tempo da revolta visceral contra a abissal desigualdade que fende um povo ainda assim reconhecivelmente uno e encantador e da fatal e alegre participação na realidade cultural urbana universalizante e internacional tudo isso valendo por um desvelamento do mistério da ilha Brasil Depois da revolução da bossa nova e em grande parte por causa dela surgiu esse movimento que tentava equacionar as tensões entre o BrasilUniverso Paralelo e o país periférico ao Império Americano País esse que se encontrava sob uma ditadura militar tida em parte como fomentada pelas manobras anticomunistas da Agência Central de Inteligência daquele império Um movimento que queria apresentarse como uma imagem de superação do conflito entre a consciência de que a versão do projeto do Ocidente oferecida pela cultura popular e de massas dos Estados Unidos era potencialmente liberadora reconhecendo sintomas de saúde social mesmo nas demonstrações mais ingênuas de atração por essa versão e o horror da humilhação que representa a capitulação a interesses estreitos de grupos dominantes em casa ou nas relações internacionais Era também uma tentativa de encarar a coincidência mera nesse país tropical da onda da contracultura com a voga dos regimes autoritários Que a música popular centralizasse as energias utilizadas na geração desse episódio só reafirma a força de uma tradição que possibilitou a bossa nova a música popular brasileira tem sido de fato para nós como para estrangeiros o som do Brasil do descobrimento sonhado e aqui já se vislumbra um outro descobrimento mútuo em que o coração tende mais para o índio que subiu à nau alienígena tão sem medo que ali adormeceu do que para o grande Pedrálvares que mal pôs os pés em solo americano Ela é a mais eficiente arma de afirmação da língua portuguesa no mundo tantos insuspeitados amantes esta tem conquistado por meio da magia sonora da palavra cantada à moda brasileira O movimento que nos anos 60 virou a tradição da música popular brasileira e sua mais perfeita tradução a bossa nova pelo avesso ganhou o apelido de tropicalismo O nome inventado pelo artista plástico Hélio Oiticica e posto como título em uma canção minha pelo homem do Cinema Novo Luís Carlos Barreto Tropicália de que o derivaram me soa não apenas mais bonito ele me é preferível por não se confundir com o lusotropicalismo de Gilberto Freyre algo muito mais respeitável ou com o mero estudo das doenças tropicais além de estar livre desse sufixo ismo o qual justamente por ser redutor facilita a divulgação com status de movimento do ideário e do repertório criados No entanto é com esse rabicho que a palavra aparecerá mais freqüentemente nas páginas que se seguem uma vez que tudo isto aqui não passa de um esforço de divulgação internacional do gesto De qualquer forma apesar de algum protesto íntimo há muito tempo que nós já admitimos o termo tropicalismo como eficaz operacionalmente Sou brasileiro e me tornei mais ou menos involuntariamente cantor e compositor de canções Fui um dos idealizadores e executores do projeto da Tropicália Este livro é uma tentativa de narrar e interpretar o que se passou João Gilberto meu mestre supremo respondendo sobre mim numa de suas raríssimas entrevistas disse que eu contribuía com um acompanhamento de pensamento para a música brasileira ou seja para o que ele faz Pois bem este livro significa a decisão de levar até o fim essa tarefa De certa forma é uma retomada da atividade propriamente críticoteórica que iniciei concomitantemente à composição e à interpretação de canções e que interrompi por causa da intensidade com que a introjetei na música Não é uma autobiografia embora eu não me negue a contarme com alguma prodigalidade É antes um esforço no sentido de entender como passei pela Tropicália ou como ela passou por mim por que fomos eu e ela temporariamente úteis e talvez necessários um ao outro O tom é francamente autocomplacente seria de todo modo requerida uma grande dose de autocomplacência para aceitar a empreitada Prometi a mim mesmo planejar minha vida de modo a poder parar em casa por pelo menos um ano para escrevêlo Incapaz de cumprir tal promessa terminei tendo de usar furtivamente os intervalos de gravações as madrugadas em hotéis depois de shows em excursões as folgas dos ensaios e as poucas horas vazias das férias de verão em Salvador para fazêlo Isso naturalmente superexpôs a dupla e algo contraditória tendência para a digressão e para a elipse que confunde meu pensamento minha conversa e minha escrita Tive também que me permitir transitar do narrativo ao ensaístico do técnico ao confessional e me colocar como médium do espírito da música popular brasileira e do próprio Brasil para abranger uma área considerável do mundo de idéias que o assunto central sugere O leitor certamente encontrará nas páginas que se seguem apesar de tudo isso uma prosa em geral bem mais distendida do que a desta introdução Uma olas razões de eu ter hesitado durante tanto tempo em topar escrever este livro foi a desconfiança de que o que eu poderia dizer nele e o modo como eu o poderia dizer seria afinal demasiado complicado para quem se aproxima de um livro sobre música popular e por demais próximo da música popular para quem está disposto a ler livros complicados Mas mesmo sem superar essa desconfiança e me perguntando à medida que ia escrevendo com grande interesse a quem poderia interessar um livro assim decidi não dar desmedida atenção ao temor de parecer pretensioso ou desproporcional ou quem sabe por demais modesto e preciso atendome à constatação de que os livros simplesmente devem ser escritos para quem gosta de ler livros Tenho encontrado pelo mundo muitas pessoas inteligentes que se interessam pela música popular brasileira talvez as anedotas confidências e análises que apresento aqui despertem sua curiosidade e as prendam à leitura Por outro lado o relato das experiências de um pop star intelectual de um país do terceiro mundo pode trazer uma ou outra luz inesperada sobre a aventura dos anos 60 já que esse período que só é considerado remoto e datado por aqueles que temiam os desafios surgidos então e que ainda os temem justamente por os saberem presentes demais em sua nova latência continua com sua temática aberta ao pensamento que se queira pôr acima dos costumeiros descarte ou nostalgia Do fundo escuro do coração solar do hemisfério sul de dentro da mistura de raças que não assegura nem degradação nem utopia genética das entranhas imundas e no entanto saneadoras da internacionalizante indústria do entretenimento da ilha Brasil pairando eternamente a meio milímetro do chão real da América do centro do nevoeiro da língua portuguesa saem estas palavras que embora se saibam de fato despretensiosas são de testemunho e interrogação sobre o sentido das relações entre os grupos humanos os indivíduos e as formas artísticas e também das transações comerciais e das forças políticas em suma sobre o gosto da vida neste final de século PARTE I ELVIS E MARILYN Costumo dizer que se dependesse de mim Elvis Presley e Marilyn Monroe nunca se teriam tornado estrelas Fui eu no entanto o primeiro a mencionar não sem que isso representasse um certo escândalo a CocaCola numa letra de música no Brasil Na segunda metade dos anos 50 em Santo Amaro eram muito poucos os meninos e meninas que se sentiam fascinados pela vida americana da era do rocknroll e tentavam imitar suas aparências Rapazes de jeans e botas moças de rabodecavalo e chiclete na boca eram tipos conhecidos nossos Mas não apenas eles eram minoritários eles me pareciam um modelo pouco atraente porque embora fossem exóticos eram medíocres Não quero dizer que se tratava de uma turma à qual eu não pertencia e com que eu mantinha uma relação de hostilidade mútua Não Aquilo era mais como que uma tendência que se manifestava de forma muitas vezes acanhada em poucos dos meus conhecidos e decididamente não entre os mais inteligentes ou os de personalidade mais interessante Mas isso não me levava a nada além de partilhar com os santamarenses razoáveis uma atitude crítica condescendente em relação ao que naqueles garotos parecia tão obviamente inautêntico Não era a inautenticidade cultural que criticávamos neles uma alienação das raízes regionais ou nacionais não lidávamos com tais noções embora uma forma branda e ingênua de nacionalismo não nos fosse totalmente estranha o que se criticava nesses meninos era a inautenticidade psicológica visível em seus esforços de copiar uni estilo que os deslumbrava mas cujo desenvolvimento eles não sabiam como acompanhar Riamos deles como se percebêssemos que atuavam como canastrões Mas o que mais me afastava dessa tendência de americanização era o fato de ela não ter chegado a mim com nenhum traço de rebeldia Quando eu tinha uns seis sete anos lá pelo fim dos anos 40 uma das nossas muitas primas mais velhas que moravam em casa conosco essa já devia ter então mais de trinta anos me disse entre divertida e irritada com aquela sinceridade desleixada com que desabafamos perante as crianças Meu filhinho eu queria morar em Paris e ser existencialista Fiquei curioso Minha Daia é assim que ainda hoje a poucos anos do ano 2000 chamamos essa adorável criatura o que é existencialista E ela com uma raiva deliberada crescendo na voz Os existencialistas são filósofos que só fazem o que querem fazem tudo o que têm vontade de fazer Eu queria viver como eles longe dessa vida tacanha de Santo Amaro Numa visão retrospectiva imagino que Minha Daia em sua definição do existencialismo que sem dúvida era um fenômeno pop nos anos 40 poderia estar apenas repetindo os versos de uma marchinha carnavalesca de grande sucesso chamada Chiquita Bacana na qual se completa o retrato da personagem que lhe dá titulo com a informação de que ela é existencialista com toda a razão só faz o que manda o seu coração mas evidentemente seu conhecimento do assunto ia além dessa informação contida na marchinha uma vez que ela se referira a filósofos existencialistas quando quis me contar sem imaginar que eu nunca iria esquecer sobre aqueles que lhe acenavam com uma vida mais livre do que aquela que lhe era possível levar em Santo Amaro Pois bem os nossos colegas americanizados da década seguinte não pareciam representar uma ameaça a nem mesmo uma revolta íntima contra essa vida tacanha Pelo contrario suas atitudes que sugeriam uma tentativa canhestra de ganhar status dentro de uma escala de valores já dados e mal interpretados eram a meus olhos uma nítida marca de conformismo Eu pessoalmente sabia que o que de fato importava para mim não os sensibilizava Santo Amaro era uma cidadezinha bastante homogênea do ponto de vista urbanístico e arquitetônico mesmo hoje algumas edificações ainda de pé datam do século XVIII e muitas do século XIX e já na metade do século XX não abrigava heterogeneidades sociais gritantes a baixa classe média que povoava os sobradões e as casinhas coladas umas às outras em frente a passeios arborizados com fícusbenjamins e ruas calçadas com paralelepípedos de granito nossa família pertencia a essa classe média meu pai era funcionário dos Correios e Telégrafos estava sempre muito perto da pobreza semirural que circundava a sede do município e fornecia mãodeobra para trabalhos domésticos mas não tinha nenhum contato direto com a riqueza o fausto que muitas famílias locais conheceram desde o período colonial até os fins do século XIX deixou a herança arquitetônica para funcionários públicos padres médicos dentistas juizes advogados e pequenos comerciantes mas a tradicional fonte de renda da região o açúcar com seus engenhos e usinas rodeados por vastos canaviais passou pouco a pouco a integrar patrimônios muito maiores centrados em outras áreas do pais de modo que nada do que se ganhava com o que a terra do município produzia era gasto em Santo Amaro e nenhum dos novos grandes proprietários vivia ali ou tinha nascido ali Eu levava uma vida pacífica em meio a uma família grande e amorosa nessa cidade pequena e bonita no seu urbanismo aconchegante No entanto não apenas a pobreza vista sempre tão de perto me levava a querer pôr o mundo em questão os valores e hábitos consagrados estavam longe de me parecer aceitáveis Era impensável por exemplo ter sexo com as meninas que respeitávamos e de quem gostávamos as moças pretas de famílias que beiravam a classe média tinham que ter seus cabelos espichados para que pudessem se sentir apresentáveis as mulheres e moças direitas não deviam fumar um cara com ar de cafajeste que comia os garotos mas repetiase sempre no ginásio que quem começa comendo acaba dando e esse mesmo cara já era tido como numa espécie de fase de transição encontrava um ambiente de cumplicidade masculina no botequim onde se insultavam os veados ou quem quer que ao grupo de freqüentadores parecesse levemente efeminado os homens casados eram encorajados a manter ao menos uma amante enquanto as mulheres amantes ou esposas tinham que ostentar uma fidelidade inabalável etc etc Claro que os princípios que estavam por trás desses hábitos não eram uma exclusividade de Santo Amaro nem mesmo das pequenas cidades do interior nos anos 50 com as variações de região classe e cultura acontecia mais ou menos o mesmo em toda parte E se hoje aqueles costumes parecem revolucionados a ponto de muita gente alardear a ameaça do caos os pressupostos que os sustentavam e que já estavam aí havia muito tempo permanecem ainda que muitas vezes sejam apenas matéria de discussão Que eu estivesse em desacordo com essas realidades era para mim muito claro Mas todas elas vividas em conjunto e somadas a tantas outras de que eu não tinha consciência produziam um malestar difuso que eu tentava esconjurar com pequenas excentricidades e grandes reflexões O ambiente em nossa casa era um tanto opressivo por impor se a cada um de nós como um mundo fechado em si mesmo Um mundo pacífico e terno mas talvez demasiado introspectivo O fato de meu pai trabalhar em casa a agência postaltelegráfica tinha então que ser na casa de seu chefe contribuía muito para criar essa sensação As dimensões gigantescas do sobrado e o número elevado de membros da família também eram fatores agravantes Muitos amigos nos freqüentavam Todos trazíamos nossos colegas para brincar Além das visitas que vinham ver nossos pais companheiros de estudo e trabalho de nossas irmãs e primas mais velhas apareciam para conversas Muitos eram visitantes diários indefectíveis Assim o casarão era um mundo também para toda essa gente que vinha do mundo Nós próprios saíamos pouco nunca nenhum de nós tendo tido o habito de ir brincar na casa dos outros Mas a vida alegre e sensual do recôncavo estava ali representada pela comida cuja famosa alta qualidade fechava ainda mais nosso mundo pela doçura no trato pelas rodas de samba que se refaziam a cada festa O que não devia estar em desarmonia com os costumes sombrios e solenes que nos davam a um tempo segurança e medo Tomávamos a benção aos nossos pais todas as manhãs ao acordar e à noite antes de ir para a cama Ouvíamos em resposta Deus lhe abençoe ou Deus lhe faça feliz ou Deus lhe dê sorte Tratávamos nossos pais por o senhor e a senhora nunca podendo usar o você íntimo no Brasil embora essa fosse uma forma abreviada de vosmecê um tratamento reverencial obrigatório até que representando uma grande distensão o senhor e a senhora vieram substituílo Não podíamos dormir sem rezar Ouvi mais de uma vez que poderíamos morrer durante o sono e ir para o inferno se fôssemos surpreendidos sem as orações Víamos famílias inteiras vestidas de negro em luto por algum parente morto e embora nossos mais velhos repetissem que mais importavam os verdadeiros sentimentos do que as convenções quando morreu Mãe Mina irmã de meu pai nossa tia muito querida cuja agonia eu próprio adivinhei pela respiração ofegante que ouvi de minha cama no meio da noite no quarto onde então eu e Roberto dormíamos com ela ficamos meses proibidos de tocar piano ir ao cinema dançar usar roupas coloridas cantar assoviar ou rir dentro de casa ou mesmo na rua na frente dos outros Havia o quarto do santo onde ficava um nicho com o Crucificado e imagens da Virgem de santo Antônio são José a pomba do Espírito Santo e o Menino Jesus Minha Ju a irmã de meu pai que dedicou sua vida a agudálo a nos criar trabalhando com ele no telégrafo e dandolhe a íntegra do seu salário comandava as orações treze noites para santo Antônio um mês para são José o Mês de Maria etc Tudo isso rezado a seco sem música ao contrário do que se fazia em outras casas embora na igreja Minha Ju fosse boa cantora do coro Eu me aconchegava nesses rituais mas a pouco e pouco fui me rebelando contra as formalidades Eu tinha intuições filosóficas complicadas Senti com muita força a evidência solipsista da impossibilidade de provar para mim mesmo a existência do mundo mesmo a do meu corpo Com angústia e orgulho eu aos sete ou oito anos sei que não pode ter sido depois disso pois o pensamento ocorreu no sobrado dos Correios antes de nos mudarmos para a casa da rua do Amparo o que se deu quando completei oito anos me prometia crescer para fazer um escândalo entre os homens a respeito da certeza de que se não posso sair de mim e não posso não há mundo nem coisas nem nada só meu pensamento E me encolhia diante do contrasenso de querer gritar para os outros homens que sabia que eles não existiam Eu então chegava mesmo a pensar que seria um modo de forçar algum acontecimento no mundo denunciar a sua inexistência Pouco depois de nossa mudança para a rua do Amparo eu que fizera a primeira comunhão e tinha de assistir á missa dominical decidi comunicar aos meus familiares que não acreditava em Deus nem nos padres Não o fiz em tom oficial nem mesmo com tanta clareza por ouvir de meus irmãos que isso representaria um desgosto terrível para Minha Ju Era curioso que não fosse assim necessariamente também para meus pais De fato eles eram os únicos que não iam á missa aos domingos aproveitando a saída de todos para ficarem a sós no único dia da semana em que meu pai não trabalhava Nessa casa da rua do Amparo onde minha mãe vive até hoje aconteceram as coisas mais importantes de minha formação Ali eu descobri o sexo genital vi La strada me apaixonei pela primeira vez e pela segunda que foi a mais impressionante li Clarice Lispector e o que é o mais importante ouvi João Gilberto Eu era tímido e espalhafatoso Introspectivo entregavame a muitas horas solitárias no galho do araçazeiro do quintal e ao piano da sala no qual tirava de ouvido canções simples aprendidas no rádio e cujas harmonias eram massacradas pelas limitações de minha percepção ou diante de telas em que pintava a óleo a princípio paisagens e casarios e mais tarde abstrações que eu pretendia que fossem muito expressivas Extrovertido falava com todo o mundo no ginásio usava com freqüência um pé de meia de cada cor deixava o cabelo crescer até muito além da tolerância de minha mãe para depois raspalo por inteiro não me intimidava quando tinha que cantar diante do público n palco do auditório nos dias de festa e eu imitava muito convincentemente o sotaque português e os arabescos vocais das cantoras de fado habilidade que levava as platéias a esquecerem o quanto a música portuguesa era convencionalmente considerada ridícula e a deixaremse emocionar por ela brindandome com ovações Em suma o personagem que eu via delinearse em mim como possível para mim pouco ou nada tinha a ver com o do jovem concorrente em um daqueles concursos de rocknroll que tinham se tornado uma mania no Rio e em Salvador seus participantes não demonstravam senão o desejo de se identificar com os estudantes de high school que eram vistos nos filmes jogando football americano e sendo encorajados por garotas que agitavam mamãesacode a eventual rebeldia de alguns deles sendo apenas um adorno a mais na imagem invejada Mas a influência americana na cultura brasileira não começou com o rocknroll Todos os mais velhos da minha família e das famílias amigas tinham tido uma educação formal e uma cultura literária afrancesada Mas o cinema e a canção popular americanos que nos anos 20 já marcavam forte presença na vida brasileira a partir dos anos 40 passaram a dominar a cena E se a musica popular americana encontrou sempre por aqui a competição não apenas da rumba cubana do tango argentino e do fado português mas também e sobretudo da música brasileira que nunca foi vencida no consumo nacional por nenhum produto de importação o cinema de Hollywood não encontrou quase nenhuma resistência nacional e conviveu com as produções européias e mexicanas sem maiores motivos para se sentir ameaçado Eu aprendia um pouco de inglês no ginásio e o único uso desse aprendizado era cantar trechos de canções americanas Todos sabíamos que no mundo inteiro Frank Sinatra tinha sido e continuava sendo a estrela indiscutível e Nat King Cole chegou a parecer por algum tempo uma estrela maior do que o próprio Sinatra Além disso ao lado de exitosas carreiras de artistas que apresentavam estilizações às vezes extraordinariamente bem concebidas de música característica das diferentes regiões do Brasil como é o caso de Luiz Gonzaga de Jackson do Pandeiro e de Pedro Raimundo havia lugar para o sucesso de um tipo como Bob Nelson que vestido de caubói cantava ostentando grande habilidade no yodle que aqui ficou conhecido como tiro leite numa engenhosa adaptação que dava conta da reprodução do efeito sonoro ao mesmo tempo que aludia à atividade tão tipicamente rural da ordenha versões para o português de canções do Oeste americano ou imitações destas compostas aqui mesmo Santo Amaro não era uma exceção naquele mundo onde o caubói americano era uma espécie de herói mítico incontestável Mas sobretudo nós ficávamos extasiados com os grandes musicais da Metro voltávamos para casa depois do cinema imitando os passos de Gene Kelly e Cyd Charisse De modo que os fãs de Elvis Presley quando apareceram deveriam ser os representantes de um mero movimento de atualização do acompanhamento que fazíamos da cultura de massas americana Mas decididamente eles não foram inicialmente recrutados entre os que partilhavam comigo as mesmas preocupações ou o mesmo tipo de sensibilidade Pode ser que os grandes estúdios de Hollywood tivessem e de fato tinham razões de sobra para não temer a concorrência dos europeus no mercado de distribuição de filmes no Brasil mas para mim e para meus amigos essa indiscutível realidade mercadológica não era uma evidência Certamente eu lembro uma curiosa piada muito em voga em Santo Amaro no fim dos anos 40 e que consistia em se alertar o interlocutor para um cisco inexistente na gola da roupa forçandoo assim a virar o rosto algo desconfortavelmente na direção do próprio ombro e aproximar o queixo da clavícula com as pálpebras superiores abaixadas o que levava quem iniciou a piada a mudar subitamente de tom e dizer como que flagrando o interlocutor numa tentativa de imitação de um tique sedutor de Rita Hayworth Olhar de Gilda Se este fosse um homem naturalmente o efeito cômico era intensificado E Minha Daia que nós em casa chamávamos de Bette Davis podia ser ouvida as vezes repetindo como se estivesse apenas pensando alto Nunca houve mulher como Gilda Contudo se hoje eu sei que ao tempo em que Marilyn Monroe crescia como figura mítica seria quase impossível encontrar um americano que sequer soubesse quem eram Françoise Arnou ou Martine Carol à época eranos inimaginável que alguém em qualquer parte do mundo não as conhecesse Os filmes franceses e italianos eram exibidos regularmente em Santo Amaro Os mexicanos também E se apesar da extraordinária beleza de Maria Felix percebíamos como que uma inferioridade do Olimpo da Pelmex não fazíamos nem nos parecia concebível que em parte alguma se fizesse nenhuma diferença de qualidade ou de importância entre as estrelas americanas e as européias No início da nossa adolescência era a exposição de intimidades eróticas o que nos atraia nos filmes franceses um seio de mulher um casal deitado numa mesma cama de ferro a indicação indubitável de que os personagens tinham vida sexual tudo o que não podia ser visto num filme americano os filmes franceses ofereciam com naturalidade E nós tínhamos a sorte de não ter de enfrentar àquela altura nenhum tipo de fiscalização da idade dos espectadores não havendo representantes do juizado de menores em Santo Amaro Mas o cinema italiano à medida que o tempo passava e nós crescíamos nos interessava cada vez mais pelo que considerávamos ser sua seriedade o neorealismo e seus desdobramentos nos foram oferecidos comercialmente e nós reagimos com a emoção de quem reconhece os traços do cotidiano nas imagens gigantescas e brilhantes das salas de projeção Um dos acontecimentos mais marcantes de toda a minha formação pessoal foi a exibição de La strada de Fellini num domingo de manhã no Cine Subaé havia sessões matinais aos domingos nesse que era o melhor o único que chegou a ter cinemascope dos três cinemas de Santo Amaro Chorei o resto do dia e não consegui almoçar e nós passamos a chamar Minha Daia de Giulietta Masina Seu Agnelo Rato Grosso um mulato atarracado e ignorante que era açougueiro e tocava trombone na Lira dos Artistas uma das duas bandas de música da cidade a outra se chamava Filhos de Apolo foi surpreendido por mim Chico Motta e Dasinho chorando à saída de I vitelloni também de Fellini e um pouco embaraçado justificouse limpando o nariz na gola da camisa Esse filme é a vida da gente Lembro de Nicinha minha irmã mais velha comentando que enquanto nos filmes americanos os atores trocavam algumas palavras à beira dos pratos de refeição e o corte sempre vinha antes que eles fossem vistos pondo a comida na boca e mastigando nos filmes italianos as pessoas comiam e às vezes falavam enquanto comiam Assim beldades que mais tarde Hollywood chegou a contratar e fazer conhecidas do público americano como Sophia Loren e Gina Lollobrigida chegaram até nós em primeira mão e ao lado de outras que mal foram notadas nos Estados Unidos como Silvana Pampanini Silvana Mangano Rossana Podestà foram por nós cultuadas como deusas Na verdade vimos antes motivos para deplorar do que festejar a ida das italianas para Hollywood as deslumbrantes moças simples que pareciam ter sido encontradas nas ruas de Nápoles tinham agora se tornado provincianas que uma vez na cidade grande tomaram um banho de loja que não lhes caiu bem na província quando se faz alguma fazse uma crítica mais severa do provincianismo do que a que se pode fazer na metrópole De todo modo nada nos indicava que Brigitte Bardot fosse ainda que minimamente inferior a Marilyn em número de admiradores em valor de cachê ou em representatividade do espírito do tempo Não só nas canções que vim a fazer já nos anos 60 e que bem ao gosto da estética pop ostentavam nomes de celebridades os nomes escolhidos foram de estrelas européias Claudia Cardinale Brigitte Bardot Alain Delon JeanPaul Belmondo no final dIa década de 50 por um instante interrompi os borrões abstracionistas e pintei um retrato de Sophia Loren a partir da fotografia de uma cena do filme A mulher do rio La donna del Pó um subproduto do neorealismo Quanto a Marilyn Monroe sem que seu papel de deusa da beleza nos parecesse convincente e sem que estivéssemos conscientes do fato de sua condição de americana ser necessária à produção de uma verdadeira celebridade mundial pouco víamos nela além de uma vulgar imposição comercial e se quiséssemos renovar nosso elenco de divas e encontrar substitutas para Ava Gardner ou Elizabeth Taylor Jane Russell ou Ingrid Bergman estávamos muito mais naturalmente inclinados a ir buscálas entre as italianas Quando já nos anos 60 a imagem de Marilyn ganhou importância para mim incluída num interesse maia abrangente pela cultura de massas ela era antes de tudo uma estrela das telas de Andy Warhol Mas mesmo isso me chegou de segunda mão Digo que foi a Marilyn de Warhol e quase poderia dizer também o Elvis de Warhol que se impôs a mim como figura de algum valor estético e interesse cultural porque foi a reconsideração dos ícones de grande consumo popular a crescente tendência a tomálos em si como informação nova como imagens brutas que comentavam o mundo se nós não as comentássemos o que comecei a intuir e a captar em conversas frívolas com amigos e em artigos frívolos de jornal na virada da década de 50 para a de 60 que coincidiu com minha mudança de Santo Amaro para Salvador Mas eu não tinha nenhum conhecimento do que se passava no mundo das artes em Nova Iorque na aurora da década louca Em outras palavras quem veio a realizar o gesto que deu sentido nítido a essas tendências quem veio a fazer a série de retratos de Marilyn e de Elvis foi Andy Warhol por isso credito a ele um tipo de percepção que desenvolvi e desenvolvi muito pouco pois quando mais tarde tudo veio à tona alguns amigos meus já tinham ido muitíssimo mais longe antes de aprender sequer o seu nome É como se Marilyn tivesse existido apenas para ser personagem do mundo de Warhol e como se pudéssemos dizer parafraseando Oscar Wilde sobre Balzac que o século XX tal como o conhecemos é uma criação de Andy Warhol Claro que a partir de um ponto mesmo sem conhecerlhes os nomes eram já influências indiretas dos artistas pop americanos que me atingiam através do que via e lia e mesmo ouvia em conversas de artistas e escritores brasileiros mais informados ou melhor formados do que eu Isso no entanto só veio a se dar de fato na segunda metade dos anos 60 Por enquanto basta dizer que o tipo de sensibilidade que instauraria um imaginário aparentado com o imaginário pop era ainda nesse início de década demasiado embrionário para determinar minhas escolhas e meus julgamentos Seria antes o caso de enfatizar quão submetido ele estava a outros movimentos do espírito que recebiam estímulos irresistíveis De fato havia outras razões para que em mim como na maioria dos outros garotos brasileiros da minha idade pois não era apenas em Santo Amaro que os fãs do rock eram minoritários a mitologia americana dos anos 50 não causasse impacto considerável E na verdade muito boas razões No início dos anos 80 Roberto Dávila um jornalista de televisão que mais tarde veio a ser viceprefeito do Rio me pediu que fosse a Nova Iorque com ele para ajudálo a entrevistar Mick Jagger para uma nova série de programas de entrevistas longas chamado Conexão Internacional Fui convidado segundo me disse ele porque eu sabia o que se passava no mundo do rocknroll e falava inglês ele faria perguntas jornalísticas ao Mick Jagger em francês e eu entremearia uma conversa mole em inglês sobre o que quer que nos fosse a mim e a Jagger comum Bem dizer que eu entendia de rocknroll e falava inglês só era verdade relativa ao fato de meu amigo jornalista nada entender de rock e não falar inglês absolutamente Mas o que não foi dito a minha presença no programa supostamente aumentaria a curiosidade a respeito do mesmo uma vez que um tipo como eu é freqüentemente referido na imprensa como o Bob Dylan brasileiro o John Lennon brasileiro ou o que no caso em pauta vinha bem a calhar o Mick Jagger brasileiro De todo modo como nunca encarei essas classificações imbecis com demasiada antipatia aceitei o convite Também por curiosidade e admiração por Mick Jagger Admiração que só fez crescer com esse quase impessoal contato pessoal embora a entrevista como programa de televisão não resultasse muito interessante sobretudo porque as respostas de Mick Jagger foram cobertas por uma voz que lia em primeiro plano a tradução em português O que é interessante contar aqui é que ao lhe perguntar como foi que o rock o conquistou eu lhe disse do meu inicial desprezo por Elvis e comentei que sendo eu da mesma geração dele Mick e como ele tendo chegado à universidade o rock primeiro me parecera primário e pouco estimulante e que para mim e para muitos outros brasileiros a bossa nova tinha tido um apelo fortíssimo que nos orientara para outra direção Ele me interrompeu para dizer Isso é bom Seria muito chato se não houvesse estilos diferentes em lugares diferentes e a música fosse mundialmente uniformizada Não o disse em tom de gentileza antes quase como uma branda repreensão pois ele aparentemente julgava que eu estava me penitenciando por não ter me interessado suficientemente cedo pelo rocknroll No entanto essa sua singela observação me soava natural e absolutamente correta Vivi e vivo como um acontecimento auspicioso o fato de a bossa nova ter surgido entre nós justamente quando eu e meus companheiros de geração estávamos começando a aprender a pensar e a sentir Eu tinha dezessete anos quando ouvi pela primeira vez João Gilberto Ainda morava em Santo Amaro e foi um colega do ginásio quem me mostrou a novidade que lhe parecera estranha e que por isso mesmo ele julgara que me interessaria Caetano você que gosta de coisas loucas você precisa ouvir o disco desse sujeito que canta totalmente desafinado a orquestra vai pra um lado e ele vai pro outro Ele exagerava a estranheza que a audição de João lhe causava possivelmente encorajado pelo título da canção Desafinado uma pista falsa para primeiros ouvintes de uma composição que com seus intervalos melódicos inusitados exigia intérpretes afinadíssimos e terminava na delicada ironia de suas palavras pedindo tolerância para aqueles que não o eram A bossa nova nos arrebatou O que eu acompanhei como uma sucessão de delícias para minha inteligência foi o desenvolvimento de um processo radical de mudança de estágio cultural que nos levou a rever o nosso gosto o nosso acervo e o que é mais importante as nossas possibilidades João Gilberto com sua interpretação muito pessoal e muito penetrante do espírito do samba a qual se manifestava numa batida de violão mecanicamente simples mas musicalmente difícil por sugerir uma infinidade de maneiras sutis de fazer as frases melódicopoéticas gingarem sobre a harmonia de vozes que caminhavam com fluência e equilíbrio catalisou os elementos deflagradores de uma revolução que não só tornou possível o pleno desenvolvimento do trabalho de Antônio Carlos Jobim Carlos Lyra Newton Mendonça João Donato Ronaldo Bôscoli Sérgio Ricardo seus companheiros de geração e abriu um caminho para os mais novos que vinham chegando Roberto Menescal Sérgio Mendes Nara Leão Baden Powell Leny Andrade como deu sentido ás buscas de músicos talentosos que desde os anos 40 vinham tentando uma modernização através da imitação da música americana Dick Farney Lúcio Alves Johnny Alf o conjunto vocal Os Cariocas revalorizando a qualidade de suas criações e a legitimidade de suas pretensões mas também driblandoos a todos com uma demonstração de domínio dos procedimentos do cool jazz então a pontadelança da invenção nos Estados Unidos dos quais ele fazia um uso que lhe permitiu melhor religarse ao que sabia ser grande na tradição brasileira o canto de Orlando Silva e Ciro Monteiro a composição de Ary Barroso e Dorival Caymmi de Wilson Batista e Geraldo Pereira as iluminações de Assis Valente em suma todo um mundo de que aqueles modernizadores se queriam desmembrar em seu apego a estilos americanos já meio envelhecidos marcou assim uma posição em face da feitura e fruição de música popular no Brasil que sugeria programas para o futuro e punha o passado em nova perspectiva o que chamou a atenção de músicos eruditos poetas de vanguarda e mestres de bateria de escolas de samba O fato de o impacto cultural causado pela bossa nova ter tido tal abrangência e penetração seria mais facilmente compreendido por seus observadores sobretudo seus observadores não brasileiros se se levasse em conta não apenas o peso histórico e sociológico que o aparecimento de uma música ultrasofisticada necessariamente representa num contexto como o brasileiro no qual convivem características do primeiro e do quarto mundos mas sobretudo alguns aspectos propriamente estéticos de grande sutileza e complexidade É muito comum por exemplo lerse em artigos estrangeiros sobre a bossa nova que o primeiro e fundamental gesto dos seus criadores foi tirar o samba das ruas afastálo de suas características de música de dança e transformálo num gênero pop para consumo de jovens urbanos de classe média Mas a verdade é que com o aparecimento de João Gilberto podese dizer que até o oposto aconteceu O samba já conhecia uma longa história de estilizações sofisticadas que desde o inicio do século o afastaram do batuque dos terreiros da Bahia onde ele nasceu com esse nome de samba e onde ainda é cantado tocado e dançado em sua forma primitiva como parte da cultura viva não apenas da população analfabeta dos bairros pobres ou das áreas rurais atrasadas mas também da classe média das cidades do recôncavo baiano e do partido alto das favelas cariocas cujos blocos carnavalescos foram pouco a pouco se transformando no Folies Bergère de rua que são as atuais escolas de samba as quais não obstante apresentam nos seus conjuntos de percussão as chamadas bateria a mais impressionante manifestação de originalidade e competência de toda a arte popular brasileira Não foram sequer aqueles modernizadores americanizados dos fins dos anos 40 e início dos 50 os já citados prébossanovistas Farney Alves e Alf que iniciaram a transformação do samba em gênero pop elaborado Primeiro o teatro e depois o rádio e o disco fizeram nascer sucessivas gerações de arranjadores cantores compositores e instrumentistas que criaram um samba domado e refinado sobretudo a partir dos anos 30 Quando João Gilberto inventou a batida que foi o núcleo do que veio a se chamar de bossa nova a forma samba canção dominava O que se chama sambacanção e que já foi apelidado meio pejorativamente de sambolero é uma espécie de balada lenta em que o ritmo do samba só é perceptível para um ouvido brasileiro treinado para reconhecêlo em todas as suas variações de andamento e acentuação Essa modalidade de samba vinha se desenvolvendo desde Noel Rosa inclusive com interpretações ostensivamente cool de Mário Reis um cantor de voz pequena e estilo desdramatizado e chegou a se constituir em parte predominante de uma fase da produção de Ary Barroso e Herivelto Martins além do Caymmi dos anos 40 Basta ouvir as gravações de Sílvio Caldas de Maria ou Tu de Ary Barroso ou Carinhoso de Pixinguinha por Orlando Silva todas dos anos 30 para saber que o samba domado e refinado dos estúdios e das partituras havia muito se tornara o gênero dominante sendo os registros de tratamento mais percussivo de samba de rua ou de terreiro antes a exceção do que a regra Nos anos 50 cantores como Ângela Maria Carmen Costa Nora Ney Nelson Gonçalves Cauby Peixoto e Dóris Monteiro para citar alguns poucos tinham no sambacanção de meio de ano em oposição aos sambas de dança compostos especialmente para o Carnaval o essencial de suas carreiras Nora Ney em particular com sua voz grave e sua dicção límpida fundou um estilo urbano e noturno marcado até mesmo por uma densidade digamos literária sobre o repertório de magníficos sambascanções de Antônio Maria Fernando Lobo e Pernambuco Curiosamente foi essa mesma mulher quem primeiro cantou publicamente um rock no Brasil Rock around the clock num programa de auditório da Rádio Nacional do Rio de janeiro que tive a sorte de ouvir mas isso não passou de um episódio isolado em sua carreira O sambacanção predominava também na produção comercial de baixa qualidade Mas mesmo os sambas de andamento rápido e até os que eram gravados para ser dançados no Carnaval recebiam tratamentos orquestrais e interpretações vocais que os afastavam da batucada primitiva Em suma o samba tem sido um gênero pop para consumo de populações urbanas desde sua consolidação estilística no Rio de Janeiro para a qual o teatro o rádio e o disco contribuíram decisivamente Só nestes últimos decênios do século é que começaram a se comercializar as gravações de sambas de escola com a exuberante percussão das baterias Inicialmente considerado um artigo para turistas o LP anual dos sambasenredos das grandes escolas de samba do Rio se tornou um item obrigatório na agenda das companhias de disco do Brasil e uma previsão também obrigatória no inimaginável orçamento de larga faixa de consumidores brasileiros É óbvio para mim que também essa elasticidade do mercado que passou a estender seus tentáculos na direção de formas brutas de manifestação musical não apenas os sambas de rua do Rio e as novíssimas formas de samba de rua da Bahia que já surgiram depois de formado o hábito de se gravar e radiodifundir esse tipo de coisa mas toda uma variada gama de estilos abordados de modo mais documental se deve em última análise à bossa nova E menos pela ação direta de alguns dos seus participantes que foram buscar as raízes de tudo no morro e no sertão e trouxeram de lá Cartola e João do Vale Zé Kéti e Clementina de Jesus do que pelo grau de elaboração da estilização conseguida sem a segurança que a bossa nova nos deu quanto à nossa capacidade de criar produtos acabados nós continuaríamos deixando os tamborins da Mocidade Independente de Padre Miguel e os harmônicos da voz de Nelson Cavaquinho longe dos estúdios O aparecimento da cantora Maysa uma bela mulher de dezoito anos e selvagens olhos verdes que com sua voz rouca transformouse da noite para o dia de jovem senhora da alta sociedade paulista em fetiche do mundo boêmio imediatamente antes da eclosão da bossa nova representou um coroamento dessa tendência para o samba canção interiorizado e intimista que ela própria como compositora que também era enriqueceu com algumas canções simples e exemplares que são pouco numerosas mas nunca foram esquecidas Há entre as mais belas melodias que ela gravou uma composição do Tom Jobim da fase prébossa nova um autêntico sambacanção chamado Caminhos cruzados que João Gilberto veio a regravar anos depois É útil comparar essas duas gravações para entender o significado do gesto fundamental da invenção da bossa nova A interpretação de João é mais introspectiva que a de Maysa e também violentamente menos dramática mas se na gravação dela os elementos essenciais do ritmo original do samba foram lançados ao esquecimento quase total pela concepção do arranjo e sobretudo pelas inflexões do fraseado na dele chegase a ouvir com o ouvido interior o surdão de um bloco de rua batendo com descansada regularidade de ponta a ponta da canção É uma aula de como o samba pode estar inteiro mesmo nas suas formas mais aparentemente descaracterizaclas um modo de radicalizando o refinamento reencontrar a mão do primeiro preto batendo no couro do primeiro atabaque no nascedouro do samba E o arranjo de cordas é do alemão Klaus Ogerman Quanto a mim encontro nessa gravação de Caminhos cruzados por João um dos melhores exemplos de música de dança e isto aqui não é uma opinião excêntrica rebuscada eu de fato gosto de sambar ao som dessa gravação e toda vez que o faço sinto a delícia do que é sambar e do que é saber que João Gilberto está me mostrando o samba samba que estava escondido num sambacanção que se não fosse por ele ia fingir para todo o sempre que era só uma balada Por ocasião de um recital de João em Nova Iorque em 1988 o jornalista Julian Dibell que sabe muito sobre a música popular brasileira e tem uma visão muitas vezes original e sempre inteligente sobre o tema publicou no jornal Village Voice um artigo em que ele procura dar ao leitor americano uma idéia da dimensão revolucionária da bossa nova no ambiente musical e social brasileiro caracterizando João Gilberto como o Elvis do Brasil Essa comparação feita quase em tom de brincadeira aparece como imediatamente rica de estímulos para uma mente brasileira Surgida no contexto apressado do jornalismo ela pode aparentar certa irresponsabilidade mas revela que seu autor tocou um ponto vivo da questão É claro que uma renovação do samba nascida de um requinte do gosto musical em grande parte desenvolvido no culto à qualidade da canção americana dos anos 30 e ao tratamento cool dos jazzistas dos anos 50 não pode ser identificada com o rock que é fundamentalmente um gesto de recusa a toda sofisticação O que pensar no entanto se os dois são convidados a desempenhar funções semelhantes Com efeito as reações contra o rock nos Estados Unidos e contra a bossa nova no Brasil se alimentavam da insegurança dos medíocres diante do que quer que ultrapassasse o convencional E os que desejavam transgredir as convenções e sair da mediocridade reuniamse em torno daqueles movimentos Em Santo Amaro nós cultuávamos João Gilberto em frente a um boteco modesto que chamávamos bar do Bubu por causa do nome do preto gordo que era seu dono Ele comprara o primeiro LP de João Chega de saudade disco inaugural do movimento e tocavao repetidas vezes Primeiro porque ele próprio gostava e depois porque sabia que nós íamos ali para ouvilo Éramos um grupo pequeno quatro ou cinco ginasianos sem dinheiro para comprar o LP A atmosfera de culto minoritário dessas cenas de audição oposta à explosão maciça do rocknroll na América do Norte não deve nos conduzir a uma negação do caráter geracional subversivo comum aos dois fenômenos e que é o cerne da argumentação daquele jornalista do Village Voice Por um lado quase todos os depoimentos de americanos que tiveram na adolescência o rocknroll como o som inspirador de suas ambições intelectuais políticas e existenciais guardam o tom de culto fechado de confraria esotérica apesar do ostensivo comercialismo dos discos de Chuck Berry Little Richard ou Bill Haley que os uniam em grupos por outro lado Bubu gostar de João Gilberto era apenas o primeiro sinal de que eu Chico Motta Dasinho e Bethânia não estávamos sós no entusiasmo da nossa descoberta breve a bossa nova teria um peso considerável mesmo no mercado de discos do país e o que é de fato mais revelador ainda hoje se qualquer um de nós cantar Chega de saudade a cançãohino do movimento num espetáculo para grande multidão num estádio de qualquer cidade brasileira será indubitavelmente acompanhado por um coro de dezenas de milhares de pessoas de todas as faixas etárias que cantarão cada silaba e cada nota da longa e rica melodia Tal não aconteceria se a canção escolhida fosse Blue suede shoes Roll over Beethoven ou Rock around the clock Nos anos 50 os brasileiros tinham como música comercial sobretudo aquele tipo de canção sentimental barata que depois de anos de bossa nova rock americano neorocknroll inglês tropicalismo e rock brasileiro Brock voltou a dominar o mercado no final dos anos 80 e início dos anos 90 qualificada como brega palavra dia gíria baiana hoje usada como adjetivo mas na origem um substantivo chulo que significava puteiro dizem que a partir do nome Padre Manuel da Nóbrega de uma rua de zona de prostituição em Salvador ou Cachoeira sobre cuja placa quebrada restavam apenas as dotas últimas sílabas do sobrenome do sacerdote Mas o rock marcava sua presença no mercado e ao lado de canções brasileiras eu aprendia no rádio versões para o português da nova música comercial americana O filme No balanço das horas Rock around the clock foi noticiado como tendo provocado devido ao entusiasmo dos espectadores depredações em cinemas do Rio de janeiro e quando afinal ele foi exibido em Salvador no Cine Guarany hoje Cine Glauber Rocha suei frio com medo de ser possuído por alguma força irracional como tantas vezes sentia no candomblé até me dar conta aliviado de que estava diante de uma chanchada bastante parecida com os únicos filmes brasileiros capazes de atrair filas quilométricas à porta dos cinemas a cada verão a comédias carnavalescas primárias e eficazes que lançavam entre piadas as marchinhas e os sambas ao som dos quais se dançaria no Carnaval seguinte Só que no caso do filme do rock por causa da onda feita na imprensa alguns espectadores fingiam estar irresistivelmente tomados pelo novo ritmo e dançavam de pé sobre as poltronas provavelmente para ver se quebravam algumas dando assim matéria para os jornais numa identificação com aqueles que tinham quebrado cinemas no Rio e que por sua vez identificavamse com os americanos de quem se dizia que tinham feito o mesmo nos Estados Unidos Um dos elementos que contribuíram para minha aliviada frieza diante do espetáculo de tela e platéia era a total ausência de novidade do rocknroll como dança um enigma até hoje para mim indecifrável Não que o rocknroll como música me soasse propriamente original só o timbre estridente e a intenção exibida é certo de modo um tanto canhestro de ser mais selvagemente rítmico do que a música americana vinha sendo até ali mas nem de longe como a brasileira ou a cubana já eram desde sempre diferençavam aos meus ouvidos as canções de No balanço das horas de por exemplo In the mood ou de tantas outras estilizações de blues de doze compassos feitas antes Mas a dança aquela em que o rapaz pega uma das mãos da moça e a faz girar depois eles se dão as quatro mãos e ele a puxa por entre as pernas etc é que era insuportavelmente igual a tudo o que se podia ver em filmes americanos dos anos 30 e 40 Mas a força irracional que levaria anos para me atingir parecia dominar grande parte dos espectadores O Cine Guarany no entanto nem mesmo estava cheio Espremido entre o sentimentalismo de puteiro e a crescente sofisticação dos músicos que possibilitaram o surgimento e das platéias que possibilitaram o sucesso da bossa nova o rocknroll não produziu no Brasil uma minoria de massa para usar o termo de Décio Pignatari que o transformasse num fenômeno comercial ou numa referência cultural irrecusável a extração social dos seus seguidores de primeira hora sendo muito difícil de definir uma vez que para que se o fosse requeriase ao mesmo tempo um gosto suburbano e poder econômico que permitisse acesso imediato a informações sobre a cultura americana discos filmes e revistas de modo que muitas vezes um fã de rocknroll tinha aquelas características de gosto mas não tinha meios de seguir por exemplo um curso particular de inglês e outras vezes sendo filho de família abastada tinha acesso a produtos americanos mas mantinha uma atitude elitista a que o rock mal se adaptava como um mero sinal exterior de modernidade Raramente os dois requisitos coincidiam num mesmo indivíduo ou num mesmo grupo ou um indivíduo ou grupo relacionavase com tais questões de maneira suficientemente livre e forte para formar uma personalidade ou um ambiente que pudesse se chamar de genuinamente roqueiro Ainda hoje no Brasil alguns paradoxos se estabelecem e algumas confusões se alimentam da falta de clareza com relação a esses aspectos da gênese do culto do rocknroll entre nos os grupos que começaram a surgir nos anos 80 não raramente combinam um charme de turma de periferia com um esnobismo de garotos de classe alta que sabem tudo sobre o que se passa na transvanguarda do pósneo rocknroll inglês não apenas os discos mas também e talvez principalmente publicações da imprensa sobre estilo etc ou mais recentemente na ciranda dos grupos de Seattle Quanto a mim não pode deixar de me soar gozado o uso da expressão de garagem para definir um rock selvagem despojado e antiburguês pois cresci sem automóvel e entre pessoas que não tinham nem se sentiam na posição de poder sonhar em ter automóvel A mera existência de uma garagem em casa teria sido para mim um sinal de vida luxuosa Sem dúvida essa reação é muito mais compreensível num menino que cresceu em Santo Amaro do que num outro que tivesse crescido em São Paulo Sobretudo ela é mais compreensível em alguém que cresceu no Brasil nos anos 50 isto é antes das conseqüências advindas da implantação da indústria automobilística do que em quem está crescendo agora De todo modo é certo que um americano estranharia a estranheza que experimentamos em face da eleição da garagem como caverna da subversão o que diz muito sobre nossas diferenças econômicas mas também sobre os esquisitos amortecedores que os impactos culturais de fenômenos de massa do chamado primeiro mundo encontram em países como o Brasil sobretudo no próprio Brasil Desse modo um jovem brasileiro talentoso que amasse o rock e quisesse desenvolver um estilo próprio dentro do gênero nos fins dos anos 50 enfrentava não apenas a ultramelódica tradição musical brasileira de base lusoafricana e veleidades italianas e a atmosfera católica da nossa imaginação mas também a dificuldade de decidir se por se afirmar socialmente como um pária ou como um privilegiado Sem dúvida casos de notável originalidade se contam entre os artistas brasileiros ligados ao rock que chegaram a desenvolver carreiras profissionais nos anos 60 antes ou independentemente da segunda investida do rock desta vez via Inglaterra ou seja daquilo que prefiro sempre chamar de neorocknroll inglês o dos Beatles e dos Rolling Stones Além daqueles que formados no gosto suburbano do rock se tornaram profissionais de estilos ingênuos copiados às vezes de copias italianas do pop americano mais tolo do inicio dos anos 60 como Cely e Tony Campelo Carlos Gonzaga etc ou tendo talento inventivo criaram soluções novas fundindo rhythmblues com samba Jorge Ben soul com baião Tim Maia ou poprock com bossa nova e canção italiana Roberto Carlos há alguns nomes que ficaram pela autenticidade de suas relações com o rock eou pela adequação a ele de seus temperamentos para sempre ligados ao verdadeiro rocknroll Creio que nenhum fã de rock no Brasil nenhum conhecedor de sua história nenhum interessado em tudo o que se passou por aqui desde que o fenômeno surgiu nos Estados Unidos discordaria da escolha para exemplificar essa última caracterização de dois nomes Erasmo Carlos e Raul Seixas Erasmo era um típico rapaz de subúrbio carioca Na verdade a Tijuca onde ele nasceu e cresceu é um bairro de classe média colocado ao centro da cidade do Rio de Janeiro mas os bairros da Zona Sul situados à beiramar embora bem mais afastados do centro ganharam de tal modo a hegemonia do gosto e o status do privilégio passaram de tal maneira a representar o que o Rio é para os seus habitantes para os seus visitantes estrangeiros e para os outros brasileiros que cresceram admirandoo de longe que mesmo uma zona central como a Tijuca é vista e vivida como subúrbio distante Mas a turma de aficionados do rock de que ele fazia parte juntamente com Tim Maia e Roberto Carlos se reunia à porta de um cinema do Méier o Imperator um dos maiores e melhores da cidade hoje transformado em casa de espetáculos de música e o Méier é um subúrbio de verdade se bem que o mais afluente dos muitos outros subúrbios ligados ao centro do Rio por uma linha de trens populares A personalidade artística de Erasmo Carlos ganhou forma definida e reconhecimento público a partir da primeira metade dos anos 60 quando ele se tornou o segundo homem da Jovem Guarda um programa de televisão cujo líder era Roberto Carlos um grande talento e um espanto de carisma Este último poderia com boas razões ser chamado de o Elvis do Brasil em plena maturidade da bossa nova tornouse um fenômeno de vendas cantando o quaserock Quero que vá tudo pro inferno recebeu reprimendas das autoridades eclesiásticas e então compôs Eu te darei o céu e foi chamado de rei título que ostenta até hoje sem que ninguém lho negue quando canta baladas sentimentais para um público de meiaidade Mas Roberto apesar de seus contatos com os amantes do rock da porta do Imperator foi como tantos outros de nossa geração no início de suas tentativas profissionais um seguidor de João Gilberto e chegou a gravar um compacto com pastiches de canções de bossa nova o que nos levaria aqui de volta à tese de Dibell e isso mais sua crescente identificação com as baladonas italianas e sua tantas vezes confessada adoração por Tony Bennett se foi condição da abrangência do seu sucesso e do peso de sua presença na história cultural brasileira recente mostra o quão afastado de uma genuína sensibilidade rocknroll formouse seu estilo Erasmo não apenas vicelíder da guarda de Roberto mas seu parceiro em todas as composições nunca pareceu atraído sinceramente por nada que não fosse d mundo do rock e tanto o despojamento do seu canto quanto a energia sexual de sua presença cênica alto pesado firme com o ar antiintelectual e antisentimental de quem vive os temas essenciais da vida com o corpo todo nessa combinação de homem pósindustrial e préhistórico para a qual o rock apontou com tanta insistência em toda parte do mundo fizeram dele para sempre uma figura de tão imponente inteireza que nem as oscilações do mercado nem as eventuais ingratidões de novos roqueiros nem o desprestígio do rock como acontecimento cultural de interesse podem abalar Mas nos anos 50 eu não tinha nenhuma notícia de Erasmo e seus amigos E quando me mudei para Salvador no primeiro ano da década seguinte o culto de João Gilberto tinha me levado não só a Ella Fitzgerald Sarah Vaughan e Billie Holiday mas também ao Modern Jazz Quartet a Miles Davis a Jimmy Giuffre a Thelonious Monk e sobretudo a Chet Baker cujos vocais sem vibrato e de timbre andrógino exerciam mais do que as belas e discretas improvisações no trompete um fascínio indizível que sua imagem à James Dean estampada nas capas dos discos só fazia confirmar Não tenho nenhuma lembrança de sequer ouvir menção aos nomes de Little Richard ou Chuck Berry e Elvis soava como as canções de Rock around the clock cantadas com um vozeirão másculo e cheio de vibrato enquanto sua figura tão freqüente na imprensa e nas portas de lojas de disco me sugeria a atriz Katy Jurado em travesti Por uma vez ele me atraiu vendo no cinema por acaso o trailer de King Creole experimentei uma excitação muito intimamente sincera e que tinha algo de difusamente sexual provocada sobretudo pelo jeito de ele dançar eu nunca o tinha visto antes em movimento mas também pelo canto mesmo e pela música Mas se ele me atraiu não me conquistou só vim a ver o filme inteiro já pelo final dos anos 70 na televisão a impressão se confirmou e o próprio filme me pareceu maravilhoso mas aí o rock já tinha um lugar assegurado na minha vida Naquela época ele passava ao largo Enquanto Erasmo no Rio conversava com Tim Maia e Jorge Ben sobre Bill Haley e seus Cometas em Salvador Raul Seixas um menino da burguesia baiana estudava inglês e planejava organizar um conjunto de rocknroll No fim da primeira metade da década de 60 enquanto Gilberto Gil Gal Costa Maria Bethânia Alcivando Luz Djalma Correia Tom Zé e eu ensaiávamos uma antologia de clássicos da música popular brasileira dos anos 30 aos 50 obrasprimas da bossa nova e algumas canções inéditas compostas por nós mesmos para apresentar na inauguração d Teatro Vila Velha uma pequena casa de espetáculos mandada construir numa alameda do Passeio Público o jardim do antigo Palácio do Governo com vista da Baía de Todos os Santos pelo grupo Teatro dos Novos excelentes atores e diretores saídos da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia Raul Seixas ensaiava covers como se diz hoje mesmo no Brasil de rocks americanos para cantar em inglês no Cine Teatro Roma uma sala grande e popular situada no largo de Roma a praça central do bairro da Cidade Baixa que tem o mesmo nome do cinema e do largo e da capital da Itália uma área de baixa classe média e de situação urbana periférica Diferentemente de Erasmo Raul tinha ambições intelectuais e estéticas cuja natureza não facilitava uma receptividade por parte de gravadoras ele só veio a se tornar nacionalmente conhecido como cantor e compositor depois da onda do neorocknroll inglês e sobretudo depois do tropicalismo O que propiciou uma aproximação entre nós que parecia impossível no nosso tempo de Salvador Suponho que Gilberto Gil chegou a conhecêlo pessoalmente naquela época Eu não desconhecia então a existência de sua banda Raulzito e Os Panteras de que tanto se falava Simplesmente nunca me senti estimulado a ir ver uma de suas apresentações E creio que ele tampouco tivesse visto nossos shows do Vila Velha pois nas nossas consideravelmente freqüentes e interessantíssimas conversas dos anos 70 ele sempre insistia no tema do pobre roqueiro sendo esnobado pelos bossanovistas o que nunca chegou a parecer expressar um verdadeiro ressentimento uma vez que nessas conversas predominava o tom de cumplicidade de baianos no Rio e todos sabíamos que ele tinha sido um menino muito mais rico ou muito menos pobre do que nós mas embora ele se queixasse de nós não termos ido vêlo cantar nunca mencionou que ele tivesse ido nos assistir Nesses encontros dos anos 70 sentíamos o sabor de conviver com um companheiro de geração e colega de profissão que tinha crescido e começado a trabalhar na mesma cidade que nós sem que nenhum tipo de atração nos tivesse reunido no primeiro momento Os nossos shows do Vila Velha que são o marco desse primeiro momento conheceram um grande sucesso junto a um público predominantemente universitário e gozaram de prestígio na imprensa local Os shows de Raul contavam com uma platéia grande adolescente e suburbana e eram noticiados pela imprensa sem antipatia mas não poderiam suscitar o respeito que nosso grupo de compositores músicos e cantores de música popular brasileira moderna encontrava entre os chamados formadores de opinião Raul sabia de nós tanto quanto nos dele Possivelmente mais E se suas queixas quanto à nossa atitude esnobe eram fundadas e justificadas ele próprio deixava ressurgir nessas reminiscências o tom agressivamente irreverente com que ele e sua turma se referiam à turma da bossa nova Isso tinha o poder de nos aproximar ainda mais Nós éramos os inventores do tropicalismo e o tropicalismo tinha trazido o rocknroll para o convívio das coisas respeitáveis o que fora decisivo para que Raul pusesse em prática suas idéias e pusesse suas idéias no mercado Ele nos era grato por isso e quando externava sua violência em relação à poesia rala e à música docemente presunçosa cultivada pelos que então eram citados sob a sigla MPB ele contava com nossa adesão entusiasmada nós já tínhamos e ele sabia voltado nossas baterias contra o que havia de tudo isso em nós mesmos Um dado curioso que ficou em mim como uma profunda marca desses encontro me parece cada vez mais revelador Por essa época Raul que esteve alguns anos casado com uma moça americana quase conversava mais em inglês do que em português mesmo quando todos os presentes eram brasileiros Seu inglês era fluente e natural e a nossos ouvidos soava perfeitamente americano Quando voltava para o português ele parecia fazer questão de exagerar nas marcas de baianidade os ós e és breves espalhafatosamente abertos a música da frase quase caricaturalmente regional a gíria antiquada da Salvador de nossa adolescência Essa combinação nós reconhecíamos no seu trabalho em seus discos e em suas apresentações ao vivo tudo o que não era americano era baiano E baiano no que a Bahia tem de distintivo não de integrador no que a Bahia tem de à idéia de um Brasil homogêneo Assim tudo o que na Bahia é sotaque tudo o que nela é nordestino tudo o que faz dela algo restrito a uma turma é escolhido enquanto tudo o que ali é língua geral tudo o que na Bahia é carioca tudo o que possa se chamar de brasileiro é rechaçado Nós não podíamos deixar de reencontrar aí traços de alguns sentimentos que se encontravam na raiz do tropicalismo De fato nós tínhamos percebido que para fazer o que acreditávamos que era necessário tínhamos de nos livrar do Brasil tal como o conhecíamos Tínhamos de destruir o Brasil dos nacionalistas tínhamos que ir mais fundo e pulverizar a imagem do Brasil carioca Celso Furtado em Formação econômica do Brasil A idéia de unidade nacional só aparece quando a capital se transfere para o Rio de Janeiro o Brasil com seu jeitinho e seu Carnaval o novo Carnaval da Bahia eletrificado rockificado cubanizado jamaicanizado popificado dominado pelo péssimo gosto da classe média provinciana é resultado desse assassinato do Carnaval brasileiro assassinato cujos autores intelectuais fomos nós mas também a incomparável vitalidade desse novo Carnaval em grande parte devida a essa mesma classe média provinciana e sobretudo a energia propriamente criativa que se vê em atividade na Banda Olodum no desfile do llê Aiyê na Timbalada ou na figura única de Carinhos Brown que reúne em si os elementos de reafricanização e neopopização da cidade se devem ao mesmo gesto nosso o que nos pode dar um alento e nos permite pensar nos momentos bons que há esperança pois a matança se revelou regeneradora acabar de vez com a imagem do Brasil nacional popular e com a imagem do Brasil garota da Zona Sul do Brasil mulata de maiô de paetê meias brilhantes e salto alto Não era apenas uma revolta contra a ditadura militar De certa forma sentíamos que o pais ter chegado a desrespeitar todos os direitos humanos sendo um fato consumado poderia mesmo ser tomado como um sinal de que estávamos andando para algum lugar botando algo de terrível para fora o que forçava a esquerda a mudar suas perspectivas Nós não estávamos de todo inconscientes de que paralelamente ao fato de que colecionávamos imagens violentas nas letras das nossas canções sons desagradáveis e ruídos nos nossos arranjos e atitudes agressivas em relação à vida cultural brasileira nas nossas aparições e declarações públicas desenvolviase o embrião da guerrilha urbana com a qual sentíamos de longe uma espécie de identificação poética Desse modo tínhamos por assim dizer assumido o horror da ditadura como um gesto nosso um gesto revelador do país que nós agora tomados como agentes semiconscientes deveríamos transformar em suprema violência regeneradora Uma violência desagregadora que não apenas encontrava no ambiente contracultural do rocknroll armas para se efetivar mas também reconhecia nesse ambiente motivações básicas semelhantes Por isso quando Raul Seixas alternava americanização com regionalismo esotérico eu não podia deixar de lembrar que tinha sido eu mesmo a dizer a um jornalista em 67 na primeira hora do tropicalismo a frase que pouco depois Tom Zé citaria numa canção típica daquele movimento Sou baiano e estrangeiro Mas a nossa Bahia era afinal de contas e se tomada a questão em profundidade a Bahia fundadora a Bahia mãe do Brasil Lembro do meu primeiro encontro pessoal com a grande artista plástica mineira Lygia Clark e de como gostei de ouvir dela que a Bahia está para o Rio como o Velho Testamento está para o Novo Na verdade queríamos ver o Brasil numa mirada em que ele surgisse a um tempo superRio internacionalpaulistizado préBahia arcaica e pósBrasília futurista Essa ambição nos afastava de fato de Raul Seixas na mesma medida em que eu já me sentia afastado dos amantes do rock nos anos 50 o deslumbramento com a coisa americana me parecia tolo e a marca distintiva de baianidade folclórica superficial Eu que cresci dançando sambaderoda e amando a música que se desenvolveu no Brasil pelo rádio e pelo disco sempre tive a nítida impressão de que Elvis foi um fenômeno cultural importante para toda uma geração de americanos porque teve seu destino individual ligado a forças no interior da sua sociedade que a levariam a gestos irreversíveis sendo um garoto branco que num país de racismo institucionalizado traduziu para a vasta platéia branca jovem o jargão rítmico e gestual dos negros exatamente às vésperas da queda das restrições raciais e da ascensão de uma postura crítica das novas gerações em relação ao já conquistado pelas velhas Mas que isso só se tornou possível pela atuação da sua figura do seu timbre e do seu clima pessoal sobre a mente americana tal como esta se encontrava no meio da década de 50 Assim como a imagem de Marilyn tocou num ponto da sensibilidade das massas americanas para o qual convergiam suas aspirações estéticas e suas fantasias sexuais Na medida mesma em que o que é importante para os Estados Unidos resulta relevante para o resto do mundo a figura de Elvis seu som e sua lenda marcaram fundamente o imaginário internacional Constatar isso não é considerar sequer possível uma adesão automática e sem mediações por parte de seus contemporâneos de outros países que não os Estados Unidos ao complexo de sentimentos que ele desencadeou entre os americanos Quando nos anos 60 Juracy Magalhães um político de peso que já fora governador da Bahia e que foi ministro das Relações Exteriores durante a ditadura declarou que o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil a frase era repetida como a mais infame demonstração da subserviência de que a esquerda acusava a direita Hoje são muitas as evidências de que por um lado qualquer tentativa de nãoalinhamento com os interesses do Ocidente capitalista resultaria em monstruosas agressões às liberdades fundamentais e de que por outro lado todo projeto nacionalista de independência econômica levaria a um fechamento do país à modernidade Isso pode dar um ar de mero bom senso e de poder de síntese à frase de Juracy mas não basta para legitimála plenamente A bem da verdade a frase repugname hoje talvez mais do que nunca ela nos indica o caminho da desistência da preguiça em face de possíveis responsabilidades históricas além de sugerir que não há a possibilidade de conflito de interesses entre os dois países Ter tido o rocknroll como algo relativamente desprezível durante os anos decisivos da nossa formação e em contrapartida ter tido a bossa nova como trilha sonora da nossa rebeldia significa para nós brasileiros da minha geração o direito de imaginar uma interferência ambiciosa no futuro do mundo Direito que passa imediatamente a ser vivido como um dever BETHÂNIA E RAY CHARLES Pouco antes de eu completar quatro anos de idade nasceu nossa irmã mais nova para quem eu escolhera o nome de Maria Bethânia por causa de uma bela valsa do compositor pernambucano Capiba que começava com estas linhas majestosas e à época indecifráveis para mim Maria Bethânia tu és para mim a senhora do engenho e era grande sucesso na segunda metade da década de 40 na voz potente de Nelson Gonçalves Naturalmente todos achavam graça no fato de eu saber cantar canções de gente grande e mais ainda na minha determinação de nomear minha irmãzinha segundo uma dessas canções Mas ninguém se sentia com coragem de realmente pôr esse nome tão pesado num bebê Como havia várias outras sugestões iam de Cristina a Gislaine meu pai resolveu escrever todos os nomes em pedacinhos de papel que depois de dobrados ele jogou na copa de meu pequeno chapéu de explorador e me deu para tirar na sorte Saiu o da minha escolha Meu pai então pôs um ar resignado que era uma ordem para que todos também se resignassem e disse Pronto Agora tem que ser Maria Bethânia E saiu para registrar a recémnascida com esse nome Recentemente ouvi de minhas irmãs mais velhas uma versão que diz que meu pai escrevera Maria Bethânia em todos os papéis Não é de todo improvável E de fato na expressão resignada de meu pai era visível ainda hoje o é na lembrança um intrigante toque de humor Mas embora me encha de orgulho o pensamento de que meu pai possa ter trapaceado para me agradar eu sempre preferi crer na autenticidade do sorteio essa intervenção do acaso parece conferir mais realidade a tudo o que veio a se passar desde então pois ela faz crescerem ao mesmo tempo as magias que nos dão a impressão de se excluírem mutuamente do presságio e da unicidade absolutamente gratuita de cada acontecimento Tenho muitos irmãos somos oito seis três mulheres e três homens nascidos de minha mãe e meu pai e mais duas que eles tomaram para si como filhas e acho que poderia escrever um livro grande e interessante sobre cada um deles mas quero me concentrar aqui em Bethânia porque ela além de como eu trabalhar com música popular o tema central e a razão de ser deste escrito foi influência determinante na formação do meu perfil profissional e mesmo do meu estilo de compor canções cantálas e pensar as questões relacionadas com isso Os três últimos anos que passamos em Santo Amaro marcaram o estreitamento dessa união que nascera com a escolha do nome Nicinha sendo já adulta e Irene ainda um bebê Clara e Mabel casadas Rodrigo e Roberto trabalhando em Salvador Bethânia e eu nos sentimos cada vez mais cúmplices Ela estava entrando na puberdade quando nos mudamos para Salvador Mas mesmo antes disso sua instabilidade emocional de préadolescente pedia minha solidariedade e alimentava minha mitologia rebelde comecei a achar que um dos meus papéis era o de explicar Bethânia aos meus pais embora essa pretensão tivesse algo de absurdo pois há um fato misterioso que deve ser considerado determinante da diferença de temperamento de Bethânia para o do resto da família ela é a preferida de minha mãe Não que ela tivesse desencadeado problemas escondidos e gerado a discórdia entre os membros da família mas ela como que dramatizava os conteúdos apaixonados e pouco sensatos com os quais não estávamos acostumados a lidar abertamente tematizando o ciúme a raiva a exigência de exclusividade o capricho E eu logo me senti o intérprete e comentador dessas dramatizações E nos dois sentidos como exegeta dos seus significados justificando seus efeitos e como aprendiz de sua moral tomandoas por paradigmas de realidades mais gerais Assim do mesmo modo que me cabia decifrarlhe as atitudes cabia a ela ensinarme o drama do mundo em lições práticas Diante por exemplo de uma enigmática resolução sua de trancarse no quarto e não falar com ninguém eu me inclinava a tentar interpretar sua atitude pelo que eu lia nas revistas a respeito da onda de inadaptação dos jovens aos mais velhos na verdade não o que é geralmente tomado como uma constante psicológica da adolescência mas o modo como esse tema se manifestou na época tornandose o fenômeno social que no Brasil foi apelidado segundo o título que se deu em português ao filme Rebel without a cause juventude transviada e ao mesmo tempo decifrar o sentido desse fenômeno através da observação do comportamento de Bethânia Evidentemente nada disso era consciente no grau em hoje o é hoje quando o analiso de memória como eu a amava muito e sabia que ela nos amava muito cada explosão irracional que partia dela me surpreendia assustava e preocupava antes que eu pudesse começar a pensar E eu desejava fazer a mediação curiosa que descrevi acima sobretudo porque sentia a necessidade de zelar pela paz em casa os elementos do conflito só num segundo momento se tornando matéria de relativamente fria observação intelectual Eles se tornavam tal sem embargo e eu comecei aos poucos a utilizar seus ensinamentos até mesmo na formação dos meus critérios de julgamento estético Bethânia ia fazer catorze anos e eu dezoito quando ns mudamos para Salvador Eu para cursar o clássico uma vez que o ensino em Santo Amaro só ia até o ginásio ela para cursar o ginásio pois meus pais tinham sempre posto as filhas mulheres para estudar em Salvador logo que saiam do primário enquanto os homens todos fizemos o primeiro ciclo do secundário em Santo Amaro mesmo Pode parecer curioso e de fato alguns amigos à época estranhavam mas eu não tinha nenhum desejo de deixar Santo Amaro e ir viver em alguma cidade maior Lembro de Roberto meu irmão imediatamente mais velho do que eu vociferando contra a vida estreita que se levava ali impaciente por ir embora para Salvador que pouco mais tarde ele estaria impaciente para deixar por São Paulo Emanuel Araújo meu colega do ginásio que se tornaria renomado artista plástico expressava sentimentos semelhantes aos de Roberto com ainda maior veemência e fez o mesmo itinerário Hercília a menina que eu amava com o coração maior que o mundo e que parecia uma moderna rainha do cinema europeu ainda hoje o chique de sua beleza e a delicada discrição de sua elegância impressionariam quem lhe visse uma fotografia de então tinha desenvolvido uma retórica de desprezo arrogante pela nossa cidadezinha natal que chegava a ser ofensiva Eu no entanto atavame à convicção de que se queria ver a vida mudada era preciso vêla mudada em Santo Amaro na verdade a partir de Santo Amaro De todo modo eu amava a cidade onde todos nascêramos e aprendêramos tudo o que sabíamos até ali inclusive a sugestão de ousadia transformadora embutida no canto de João Gilberto Mas o meu apego a Santo Amaro não era nada comparado à reação de Bethânia à nossa saída de lá no extremo oposto dos nossos amigos que queriam fugir ela simplesmente não aceitava a idéia da mudança Eu não encarava com desagrado a possibilidade de ir viver em Salvador a cidade de que eu mais gosto no mundo já era querida e conhecida desde a infância e se a questão era alargar os horizontes da vida Santo Amaro podia parecerme o lugar ideal para um santamarense tentar fazêlo mas mudar para Salvador não deveria significar um impedimento Salvador era bem perto de Santo Amaro tão perto que meu pai temia a anunciada construção da estrada de rodagem que segundo ele poderia fazer de Santo Amaro um mero subúrbio da Bahia Chamávamos Salvador de Bahia Uma cantiga de roda tradicional de Santo Amaro tomouse o tema oficial desse período de nossas vidas e na época compus uma canção utilizandoa como refrão seus versos singelos ficam tocantes na melodia em tom menor sobre um ritmo de marcha lenta Adeus meu Santo Amaro Que desta terra vou me ausentar Eu vou para a Bahia Eu vou viver eu vou morar Eu vou viver eu vou morar Era muito raro que alguém em qualquer cidade do recôncavo baiano se referisse à Cidade da Bahia como Salvador Embora hoje isso seja a regra eu mesmo dizer Salvador é como se fosse um aspecto a mais da natural para mim pois tenho morado com freqüência e demora no Rio adesão ao sotaque carioca Bethânia se recusava até mesmo a ver a Bahia Íamos para o Colégio Severino Vieira a pé ou de ônibus todos os dias e ela não atendia a nenhum dos meus estímulos de fazêla interessarse por uma árvore um transeunte um sobrado Calada e triste ela tolerava mal em casa as mínimas advertências de Nicinha que tinha vindo para cuidar de nós dois já que nossos pais tinham ficado em Santo Amaro e só se dirigia a mim para repetir o quanto detestava a Bahia e o quanto ansiava pelas férias para poder voltar a Santo Amaro No entanto da janela do apartamento que eu ela e Nicinha viemos dividir com Rodrigo e Roberto viase o Dique do Tororó com suas águas de um verde mutante e misterioso que me encantava e Bethânia à guisa de protesto começou a passar as tardes sentada no parapeito da janela olhando fixamente essas águas e terminou por apaixonarse por elas foram seu primeiro vínculo de amor com Salvador Talvez tenha sido por causa das águas do Dique do Tororó que minha campanha incansável para fazer Bethânia querer gostar de estar em Salvador atingiu seu objetivo num espaço de tempo consideravelmente curto se levarmos em conta a força da teimosia dessa minha irmã O fato é que um dia ela aceitou meu convite para irmos juntos assistir a A história de Tobias e de Sara de Paul Claudel pelo grupo da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia Salvador vivia um período de intensa atividade cultural graças à decisão do então reitor da Universidade Federal pública há também a Universidade Católica que é privada dr Edgar Santos de somar às atividades acadêmicas das faculdades convencionais escolas de música dança e teatro e de convidar os mais arrojados experimentalistas em todas essas áreas oferecendo aos jovens da cidade um amplo repertorio erudito Ao mesmo tempo a arquiteta italiana radicada em São Paulo Lina Bo Bardi tinha sido convidada pelo governo estadual para organizar o Museu de Arte Moderna da Bahia que a gente gostava de chamar pela sigla MAMB que me soava como mambo onde além do acervo crescente de obras brasileiras e estrangeiras víamos magníficas exposições didáticas que se fosse o caso contavam com alguns quadros e esculturas de grandes artistas Renoir Degas Van Gogh a que a senhora Bardi tinha acesso por ser mulher do diretor do Museu de Arte de São Paulo O Museu de Arte Moderna da Bahia funcionava no foyer todo em mármore e vidros do imenso Teatro Castro Alves que tinha sido quase inteiramente destruído por um incêndio apenas um dia depois de inaugurado poucos anos antes da criação do museu O foyer ficara intacto mas a sala de espetáculos tinha se transformado numa enorme caverna negra de que Lina Bardi utilizou a parte correspondente do palco para criar um pequeno teatro de meiaarena onde em sua colaboração com o diretor da Escola de Teatro Eros Martim Gonçalves montouse a Opera de três tostões de Brecht a tradução brasileira consagrada leva no titulo três vinténs mas na gíria baiana dizse de uma mulher que perdeu a virgindade que ela perdeu os três vinténs e assim esse sentido de hímen foi evitado optandose por tostões como recentemente numa nova montagem baiana optouse por minréis e depois Calígula de Camus Houve colaboração também com o critico de cinema Walter da Silveira na transformação da rampa que liga o foyer à sala de espetáculos num belo cineminha exclusivo do clube de cinema que ele fundara As sessões ali consistiam sobretudo em grandes filmes mudos Greed La petite marchande dallumettes Metropolis A nous la liberte Outubro etc ou velhos filmes falados que já não se veriam nos cinemas normais Cidadão Kane M Monsieur Verdoux etc ou ainda filmes que tinham sido vistos não fazia muito tempo Nazarin ou On the waterfont mas que reapareciam ali comentados pelo próprio Walrer da Silveira ou por um seu convidado Lembro de uma noite em que o ainda muito jovem mas já com fama de gênio Glauber Rocha comentou desfavoravelmente Umberto D de De Sica sua fala que precedia a projeção como era hábito no clube foi brilhantemente irreverente e opôs a secura de Rossellini seu favorito entre os diretores neorealistas ao sentimentalismo piegas de De Sica mas Umberto D me pareceu deslumbrante assim mesmo Instrumentistas e maestros da escola de música a cujos concertos sinfônicos ou camerísticos assistíamos no salão nobre da reitoria semanalmente também colaboraram na montagem da Ópera de Brecht e em alguns outros espetáculos teatrais e um ator da Escola de Teatro foi o narrador na apresentação de Pedro e o lobo O diretor da Escola de Música o maestro Koellreutter que tinha ensinado a Tom Jobim um homem brilhante e identificado com as vanguardas imprimiu um caráter muito vivo à programação de concertos tínhamos Beethoven Mozart Gershwin Brahms e tivemos David Tudor executando peças de John Cage para piano preparado e aparelhos de rádio lembro da gargalhada que tomou conta da sala e do próprio diretor da escola quando se ouviu logo que Tudor ligou o rádio a voz familiar do locutor Rádio Bahia Cidade do Salvador Foi para esse mundo extremamente excitante para mim que a inteligência e a sensibilidade de Maria Bethânia se abriram naquela noite de A história de Tobias e de Sara no pequeno mas excelentemente equipado Teatro Santo Antônio o palco oficial da escola Depois de ver Helena Ignez e Érico de Freitas sob uma luz que os transformava em visões celestiais dizerem o texto que nos soava cheio de misteriosa poesia até hoje Bethânia e eu imitamos com perfeição a voz de Helena dizendo Eu sou a romã Bethânia nunca mais deixou de sair comigo para concertos peças filmes e exposições e para todas as grandes festas populares que tomam anualmente as ruas de Salvador nos dias dos santos ou dos orixás de grande devoção Ela se enamorou sobretudo do teatro e em breve ambos cultuávamos os atores Helena Ignez Geraldo del Rey e Antônio Pitanga como se fossem grandes estrelas e de fato quem os vir nos filmes do Cinema Novo que eles vieram a protagonizar mais tarde poderá confirmar que todos eles tinham beleza carisma e talento suficientes para qualquer tipo de estrelato e Bethânia começou a desejar ser atriz Suas saídas noturnas não foram aceitas por meu pai sem restrições Na verdade ele chegou a decidirse por proibilas e só não o fez porque encontrou uma solução que era mais ou menos conciliatória e resultou muito produtiva ele me disse que já que eu advogava com tanta ênfase a freqüência de Bethânia em eventos culturais como necessária para sua formação de menina especial ele admitia que ela saísse à noite desde que fosse sempre comigo e que eu fechasse com ele um compromisso de responsabilidade por ela Meus pais tinham vindo de Santo Amaro para ficar conosco no segundo ano de nossa estada em Salvador quando o hábito de eu e Bethânia sairmos juntos estava se estabelecendo o que me leva a crer que o interesse de Bethânia pela vida em Salvador só começou perto do fim do nosso primeiro ano ali quase toda a primeira metade de 1960 ela passara fechada para o que quer que acontecesse na cidade além dos câmbios do verde do dique O compromisso que meu pai exigira de mim era algo que ele levava mais a sério do que eu poderia imaginar uma noite quando nossas saídas já eram um velho hábito voltei para casa deixandoa num lugar chamado Bazarte uma mistura de bar galeria de arte e clube de jazz aos cuidados de Roberto nosso irmão que como ela não queria sair dali no momento em que eu muito cansado resolvi ir dormir Foi uma das pouquíssimas vezes que meu pai levantou a voz para mim a única depois que cresci De nada adiantava eu repetir que Roberto tinha ficado com ela Meu pai gritava com uma veemência que dava medo Eu não fiz nenhuma combinação com Roberto a respeito de Maria Bethânia Chorei muito e prometi seriamente que aquilo não se repetiria e nunca mais cheguei em casa à noite sem ela Foi Álvaro Guimarães Alvinho quem nos lançou a mim e a Bethânia como profissionais da música Alvinho me tinha sido apresentado por Sônia Castro e Lena Coelho duas pintoras que dividiam um ateliê que eu freqüentava apaixonadamente como sendo um talentoso diretor de teatro que colaborara com o CPC Centro Popular de Cultura da UNE União Nacional dos Estudantes Nas nossas primeiras conversas ele me agradou em cheio e me interessou ao externar suas críticas ao teatro panfletário do CPC Também me falava muito de Glauber com quem tinha intimidade Ao planejar montar uma comédia brasileira do século passado ele me encomendou a trilha musical Recuseime a fazêla sob a alegação sensata de que não tinha competência Ele recusou minha recusa E me disse que só eu é que poderia fazer o que ele queria Ele nunca tinha me ouvido cantar ou tocar qualquer instrumento Lembreilhe isso Ele respondeu que se decidira ao me ouvir falar sobre a relação da música de João Gilberto com a de Dorival Caymmi Alvinho é assim Terminei compondo toda a música da peça e tocando piano nos espetáculos Menos de um ano depois ele resolveu montar O Boca de Ouro de Nelson Rodrigues e para abrir o espetáculo teve uma idéia absolutamente maravilhosa ao se apagarem todas as luzes antes que se visse qualquer ator em cena ouviase no escuro a voz única de Bethânia então uma total desconhecida cantando sem acompanhamento e sem amplificação Na cadência do samba de Ataulfo Alves Infelizmente o resto do espetáculo não estava à altura desse início mas quantos neste mundo o estariam e pouca gente chegou a presenciar essa estréia inusitada O culto à voz de Bethânia no entanto cresceu entre os artistas e boêmios de Salvador Ao freqüentar exposições no MAMB peças na Escola de Teatro o clube de cinema e a Casa da França para ver filmes de arte Bethânia e eu começamos a notar a presença quase certa de um rapaz moreno magro de óculos a quem já nos referíamos com divertida intimidade e que estávamos curiosos para conhecer Imaginávamos que ele gostava das coisas que nós gostávamos e achávamos sua cara muito boa Ele estava sempre sozinho e evidentemente não fazia idéia de que o observávamos Um dia Alvinho Guimarães me disse que queria fazer um filme para o qual naturalmente eu faria a trilha sonora Queria também que eu participasse com ele da feitura do roteiro Seria um filme sobre meninos de rua de Salvador foi feito chamou se Moleques de rua e eu fiz a trilha em que usei a voz de Bethânia Alvinho marcou um encontro à tarde na Escola de Teatro uma emoção estar ali de dia fora da hora de espetáculo e lá me apresentou ao amigo com quem queria que ambos trabalhássemos era o rapaz que Bethânia e eu víamos em todos os eventos Eu fiquei muito feliz Ele já era amigo de Alvinho fazia um bom tempo E os dois se entendiam muito bem Duda era assim que Alvinho o chamava sorria o tempo todo tinha os olhos larguissimamente amendoados por trás dos óculos e dizia coisas muito sérias a respeito de qualquer assunto Fiquei impressionado com a elevação do grau de exigência da conversa de Alvinho em sua presença Os dois tinham muito mais cultura do que eu e seus diálogos cheios de responsabilidade intelectual e comprometimento existencial logo se tornaram verdadeiros ensinamentos para mim Eu falava com humilde irresponsabilidade Passamos a andar juntos os três Eu saia muito também com meu irmão Rodrigo que estimulava meu interesse por cinema Havia um grupo de aspirantes a cineastas ou críticos de cinema que estavam freqüentando um curso ministrado não sei por quem sobre teoria e critica cinematográfica Rodrigo nos inscreveu a mim e a ele próprio nesse curso e ali encontramos alguns jovens críticos Geraldo Portela Carlos Alberto Silva Alberto Silva com quem eu gostava muito de conversar Mas as conversas com Duda e Alvinho sobretudo Duda faziam todas as outras parecerem tolas Falávamos de literatura cinema música popular falávamos de Salvador da vida na província da vida das pessoas que conhecíamos falávamos de política Alvinho tinha rompantes heróicos acho que foi ele quem me decidiu a colaborar com a campanha de alfabetização pelo método Paulo Freire Mais tarde depois do golpe ele me levou a alguns encontros secretos para a formação de um grupo dos onze uma idéia de Leonel Brizola para organizar uma resistência Embora política não fosse o nosso forte nessa época 63 com os estudantes organizados na UNE apoiando o presidente João Goulart ou pressionandoo para ir mais para a esquerda com Miguel Arraes fazendo um governo admirável em Pernambuco em estreita união com as camadas populares com os CPCS da UNE produzindo peças e canções panfletárias mas muito vitais éramos levados a falar freqüentemente sobre política o país parecia à beira de realizar reformas que transformariam sua face profundamente injusta e de alçarse acima do imperialismo americano Vimos depois que não estava sequer aproximandose disso E hoje nos dão bons motivos para pensar que talvez nada disso fosse propriamente desejável Mas a ilusão foi vivida com intensidade e essa intensidade apressou a reação que resultou no golpe Duda hoje o conhecido poeta e critico Duda Machado me impressionou com suas opiniões meditadas e exigentes Eu tomava a ele e a Alvinho como mestres Eu vira L aventura de Antonioni e o admirara Agora estavam passando La notte e eu reencontrei muito do que era belo naquele primeiro filme mas já alguns maneirismos esteticistas me agastavam e eu detestava os diálogos Além disso achei que Jeanne Moreau não estava á vontade Contudo elogiei o filme numa conversa em que frisei petulantemente que contra toda a moda crítica da época eu continuava preferindo Fellini a Antonioni Duda ouviu tudo e em vez de tomar partido veio com algo totalmente diferente Você tem que ver é A bout de souffle Acossado de Jean Luc Godard Esse cara tem uma outra coisa O resto fica desinteressante Eu era louco por Hiroshima mon amour Duda disse que mesmo Hiroshima mon amour era muito menos interessante do que A bout de souffle E eu fui ver o primeiro filme de Godard no Cine Capri no largo Dois de Julho Realmente fiquei maravilhado com a agilidade do ritmo e com a atmosfera poética Os planos eram mais plásticos do que os de Antonioni sem parecerem rigidamente controlados Duda lia os Cahiers du Cinéma e já estava por dentro do que Godard dizia e do que se dizia que Godard fizera depois desse primeiro filme Mas ele só falava a partir de uma constatação sua muito verdadeira Um dia fui elogiar Walter da Silveira o grande formador de críticos e cineastas baianos pelo tanto que tinha feito pela cultura cinematográfica em nossa terra e Duda retrucou dizendo que a ele Walter não ensinava nada porque era um crítico preguiçosamente complacente com os filmes de arte Basta ser autor dizia Duda pra ele elogiar Impressionavame não só que Duda tivesse razão em todas essas ocasiões mas sobretudo que ele estivesse sempre pensando as coisas num nível acima daquele no qual meu pensamento podia transitar Mas eu lhe mostrei Chet Baker e acho que também Billie Holiday Mostreilhe também algumas gravações de Thelonious Monk Sentiame à vontade para falar de bossa nova e de música popular brasileira em geral era um assunto que eu conhecia melhor do que ele Mas mesmo ai se sua opinião divergisse da minha ou se apresentasse a menor nuance em relação à minha eu parava para rever minha posição Bethânia gostou de saber que eu tinha encontrado aquele de quem já éramos amigos sem que ele o soubesse E Duda deslumbrouse com Bethânia Eu saia muito com Duda e Alvinho às vezes ficávamos no Jardim de Nazaré conversando até altas horas da madrugada Nesses encontros Bethânia não estava Mas saiamos também os quatro E Duda passou a vir vez por outra à minha casa Em breve Bethânia e ele conversavam também a sós De todo modo Bethânia não saia à noite sem mim Lembro do espanto e da raiva com que um colega de sala no Severino Vieira reagia a minhas referências a programas feitos em conjunto com minha irmã mais nova era inacreditável e mais ainda inaceitável para ele que um rapaz de dezenove anos saísse freqüentemente com a irmã de quinze ele próprio tinha uma irmã menor e sendo um moço másculo parecido com um garoto comum da alta classe média de qualquer cidade do Ocidente na segunda metade do século XX nada via na irmã além de um estorvo um amontoado de incompetências femininas e infantis a atrapalhar suas pequenas esportivas intelectuais amorosas aventuras cotidianas Eu e Bethânia ao contrário nos divertíamos muito na companhia um do outro e em nossos périplos pela vida cultural de Salvador nos primeiros anos da década de 60 descobrimos que éramos uma dupla algo insólita Ela lia Carson McCullers e Clarice Lispector escrevia uns textos bonitos de prosa poética e fazia pequenas esculturas em cobre e madeira Apaixonouse pela cor roxa e passou a fazer para si mesma roupas de cetim roxo Jamais vou esquecer uma cena que contada hoje pode parecer inspirada na Família Adams de que na época não tínhamos a menor notícia Na semana do Natal ela e eu estávamos no ponto de ônibus do Jardim da Piedade cercados de pessoas que voltavam das compras e entupiam as ruas O Natal nunca fora propriamente nossa festa favorita mas em Santo Amaro a gente gostava dos presépios que ainda se viam em Salvador em grande número pelas janelas das casas e sobretudo do hábito de cobrir o chão das casas com uma fina camada de areia branca da praia e encher os cômodos de ramos de pitangueira a planta nativa brasileira que dá aquela fruta vermelha pequena e cheia de gomos e cujas folhas exalam um cheiro absolutamente delicioso pelo frescor esse hábito também ainda permanecia em Salvador e mesmo os ônibus traziam na semana do Natal ramos de pitanga atados à frente e ao fundo Talvez a areia branquíssima trazida das dunas estivesse fazendo as vezes da neve e a pitanga as vezes do azevinho mas o resultado dava a impressão de um costume arraigadamente tropical O Natal das árvores de Natal cobertas de algodão imitando neve do Papai Noel em sua roupa vermelha debruada de arminho o Natal de Jingle bell que tomava conta de tudo a partir das grandes lojas de departamentos esse Natal nos parecia odiosamente vulgar e começamos a nos queixar disso em voz alta para silencioso escândalo das pessoas que esperavam o ônibus junto conosco carregadas de presentes Nossas reclamações começaram num tom brando e quase analítico mas num crescendo foram atingindo um gosto de humor negro deliberado e terminaram com um de nós dizendo numa imitação de Maria Muniz uma atriz de quem nos tornáramos amigos e que para dizer por exemplo que não gostava de pepino gritava com ênfase Se eu pudesse eu MATAVA o pepino Se eu pudesse eu MATAVA o Natal Bethânia não parecia a adolescente que era com uma expressão de mulher vivida uma testa enorme e um nariz muito adunco metida em vestidos retos de cetim roxo ela freqüentemente era tomada por mais velha do que eu Sua beleza exótica era então quase indecifrável Podese imaginar a estranheza que causava a pacatos cidadãos baianos um casal composto de uma figura dessas e um rapaz magérrimo dizendo alto na fila do ônibus Se eu pudesse eu MATAVA o Natal Uma vez num bar próximo ao Teatro Castro Alves ao ser apresentado por mim a ela o crítico de cinema e futuro cineasta Orlando Senna perguntou coisa rara pois ninguém naquela época nos achava parecidos se ela era minha irmã antes que eu respondesse ela disse seriíssima Não Somos amantes E manteve a farsa dessa seriedade por longos minutos No entanto éramos doces e alegres e como acontece com nossos outros irmãos sempre percebemos que em todas as rodas em que entramos tendemos a despertar muito carinho nas outras pessoas Fizemos amigos entre atores diretores músicos dançarinos e pintores e logo já havia quem pedisse para ouvir Bethânia cantar numa sala de apartamento ou à mesa de um bar ou barraca de festa de rua algum sambacanção de Noel Rosa ou de Dolores Duran só por causa do timbre único de sua voz de contralto A princípio não havia sequer uma remota sugestão de que ela viesse a se profissionalizar como cantora e essas exibições vocais eram feitas sem acompanhamento Mas minha mãe a meu pedido me dera um violão para eu tentar matar as saudades do piano que tínhamos na casa de Santo Amaro e que fora impossível trazer para Salvador Aos poucos fui conseguindo aprender a armar alguns acordes que serviam para me acompanhar em versões harmonicamente muito empobrecidas de canções simples logo Bethânia também estava cantando acompanhada por mim e ela própria tocando um pouco de violão Dizer que Bethânia participou do culto a João Gilberto e à bossa nova junto conosco não é mentir mas não dá uma idéia muito clara de como as coisas se passaram Por certo ela estava comigo e com Chico Motta e com Dasinho em frente ao bar de Bubu para ouvir Chega de saudade em 59 em Santo Amaro Ela também estava comigo e com Gal e com Gil alguns anos depois em Salvador quando nos sentávamos para cantar baixinho e ouvir as harmonias que Gil tirava de ouvido das gravações de João ou de Carlos Lyra Mas ela não se submetia às limitações nem se empenhava na disciplina que a adesão a um estilo novo exigia De certa forma o fato de ela ser tão mais moça do que eu contribuía para isso a bossa nova não era uma novidade pela qual ela teria que lutar era algo que estava começando a existir ao mesmo tempo que ela Mas acima de tudo havia uma razão de temperamento Gal Costa que era apenas um ano mais velha do que ela encontrara na bossa nova um estilo com que se identificar Bethânia em meio a tantos bossanovistas sentia falta da dramaticidade dos sambas antigos e enquanto nós a levávamos a ouvir Ella e Miles ela se interessava mais por Judy Garland e Edith Piaf O pessoal do grupo Teatro dos Novos uma dissidência da Escola de Teatro liderada pelo diretor exprofessor da escola João Augusto Azevedo e composta por brilhantes exalunos como Othon Bastos que fez o Corisco de Deus e o Diabo na Terra do Sol emprestavanos discos tanto de jazz como de canções francesas e da Broadway E se eu preferia Chet Baker Bethânia preferia Judy Garland Embora nenhum de nós dois hostilizasse ou mesmo desprezasse o gosto do outro Com o passar do tempo descobrimos que de certa forma Billie Holiday satisfazia plenamente os anseios estéticos das duas tendências e Amália Rodrigues como que pairava acima deles Para mim não chegou a ser uma fonte de angústia ler em não sei que revista americana uma declaração de Ray Charles algo depreciativa da bossa nova na mesma semana em que ouvi de Carlos Coquejo um juiz do trabalho que era apaixonado por música e conhecia João Gilberto pessoalmente a afirmação de que Ray Charles não despertava nenhum interesse em João Ray dizia que a bossa nova era apenas o velho ritmo latino com uma sincopa mais moderna e Coquejo contou que João considerava Ray Charles um folclórico Naturalmente não foi difícil entender que o bluesman que ligava o mais tradicional ao pop e cujo canto parecia ser o de Nat King Cole virado pelo avesso o de Johnny Mathis ao contrário era como que o verniz de sua superfície polida desdenhasse o que lhe chegou aos ouvidos sob a rubrica de bossa nova e perdoarlhe a referência displicente a um genérico ritmo latino tampouco tive dificuldade em entender o desprezo do criador da bossa nova um estilo refinadamente contido pelo que deveria parecerlhe uma mistura do característico com o comercial O que era talvez um pouco difícil para mim era saber como julgar o fato de eu gostar tão profunda e sinceramente da música de ambos A extraordinária cantora de fados portuguesa Amália Rodrigues já era conhecida desde muito antes de a bossa nova surgir e parecia eterna Judy Garland e Edith Piaf além de serem e soarem como coisa do passado não chegavam a me atingir tão profundamente quanto a Bethânia Billie Holiday era uma novidade vinda do passado mas era cool como os mais cool Ray Charles nos arrebatava e oferecia alimento para a nossa fome de modernidade com um estilo em tudo diferente do de João ou Jimmy Giuffe ou Chet Baker ou David Brubeck Lembro de uma tarde que passei ouvindo repetidas vezes a gravação de Ray Charles de Georgia on my mind no nosso apartamento de Salvador chorando com saudades de Santo Amaro saudades transcendentais a experiência da beleza do canto fazendo os conteúdos que tinham se tornado matéria de memória estarem mais presentes do que jamais estiveram vivenciados com mais verdade do que da primeira vez algo que vim a ver luminosamente representado pelas palavras no grande livro de Proust que li alguns anos depois e adequadamente analisado no livro de Gilles Deleuze sobre Proust que li muitos anos depois o que me levou a poder escrever a canção Jenipapo absoluto em que se diz Cantar é mais do que lembrar Mais do que ter tido aquilo então Mais do que viver do que sonhar É ter o coração daquilo Mas eu mantive minha hierarquia João era a informação principal a primeira referência além de ser a fonte central de fruição estética De fato quando chegou para mim a hora de Guimarães Rosa ou de Proust a hora de Godard a hora de Eisenstein de Stendhal de Lorca ou de Joyce e de Webern e Bach e Mondrian e Velásquez e Lygia Clark mas também a hora de Warhol e da revisão de Hitchcock a hora de Dylan de Lennon e de Jagger foi sempre aos valores estéticos que extraí de minha paixão por João Gilberto que me reportei para construir uma perspectiva Possivelmente Bethânia gostava de Ray Charles tanto quanto eu mas não se dedicava a ouvilo com tanta assiduidade nem dava às audições o caráter de quase pesquisa que eu me inclinava a lhes atribuir Quando chegou a hora do tropicalismo em que vários estilos extrovertidos foram convocados e o estilo cool da bossa nova aparecia apenas eventualmente como um elemento a mais nas canções colagens um dos seus primeiros anúncios foi feito por Bethânia chamandome a atenção para o que ela considerava a vitalidade de Roberto Carlos e seus colegas de Jovem Guarda e um dos principais elos de ligação entre o que fazíamos e o que estávamos passando a fazer consistia em meu gosto pela música de Ray Charles Ninguém encontrará nada que mereça ser considerado sequer um resquício de influência de Ray Charles na produção tropicalista E Maria Bethânia deve ter parecido representar a principio uma resistência contra o tropicalismo Mas não é na área das semelhanças que se devem buscar as razões de esses dois nomes aparecerem juntos aqui neste jeito encontrado por mim para começar a historiar o movimento Bethânia já era famosíssima quando essas idéias que vieram desembocar no tropicalismo começaram a surgir em torno de nós Ela havia sido chamada para substituir a cantora Nara Leão no espetáculo Opinião um grande sucesso no Rio em 64 Eu estava passando as férias de verão daquele ano na fazenda da família de meu amigo Pedro Novis no vale do Iguape entre Santo Amaro e Cachoeira Eu adorava Pedrinho e estava maravilhado com a fazenda Mas com poucos dias de estadia vime de súbito obcecado pelo pensamento de Maria Bethânia Eu simplesmente imaginava que ela precisava de mim com urgência e que isso tinha nexo com os shows do Vila Velha Pedrinho mostrouse duplamente incrédulo ao ouvir tal historia não existem premonições e eu só poderia estar envergonhado de dizer que não queria mais ficar na fazenda Eu ao contrário me sentia talvez na obrigação de deixála contra a minha vontade De todo modo não havia meios de ir para Salvador ele jamais diria a seu pai que uma viagem inesperada teria que ser feita por um motivo tão absurdo Dormi inquieto Na manhã seguinte chegaram de surpresa uns parentes de Pedrinho Eles almoçariam e seguiriam viagem estavam ali de passagem para Salvador Decidi ir com eles mas Pedrinho não aceitou Sua indignação e a inconsistência do meu motivo me paralisaram Vendo a caminhonete partindo tive certeza de que Bethânia tinha que me ter ao seu lado Mas Pedrinho ainda zangado frisou o fato de que eu havia perdido a única oportunidade de pôr em prática a idéia sem sentido De noite à mesa do jantar dr Renato o pai de Pedrinho comunicou meio solenemente que teria de ir a Salvador e que partiria na manhã seguinte bem cedo Era uma decisão nada usual ao chegar no Iguape ninguém da família queria sequer pensar em Salvador antes da data da volta aos estudos ou ao trabalho Mas dr Renato ficara febril de repente e estava preocupado Ouvindo isso falei nervosamente quase sem pensar e sem olhar absolutamente para Pedrinho Eu vou com o senhor De manhãzinha eu partia do Iguape onde deixava meu amigo entre irado e perplexo Já na estrada percebi o tamanho do ridículo da situação e intimamente quis voltar o que eu nem imaginava comunicar a dr Renato Como a estrada passava por dentro de Santo Amaro decidi saltar ali e ir visitar minha irmã Mabel já que agora totalmente cético não queria chegar a Salvador Surpreso dr Renato fez a parada e se despediu de mim sorrindo intrigado Quando me vi andando em direção à casa de Mabel imaginei que na verdade Bethânia estaria ali e era por isso que eu não tinha seguido para Salvador Mabel me recebeu surpresíssima de me ver à sua porta de manhã tão cedo Pergunteilhe logo se Bethânia estava com ela Com o olhar espantado ela me informou que claro que não que Bethânia nem sequer tinha planos de vir para Santo Amaro Relaxei meio aliviado meio decepcionado e resolvi de uma vez por todas não pensar mais no assunto Mas pouco antes do almoço para renovada surpresa de Mabel Bethânia chegou Logo perguntei o que tinha havido se ela precisava falar comigo Ela achou minha pergunta um pouco difícil de entender afinal ela decidira vir para Santo Amaro de repente sem nenhuma razão especial Durante o almoço recebemos um telefonema da atriz da Escola de Teatro Nilda Spencer que queria transmitir um recado a Bethânia Os produtores do Opinião convidavamna para ir ao Rio Fomos juntos para Salvador onde já nos esperava um par de passagens de avião No dia seguinte mantendo o respeito à exigência de meu pai eu estava no Rio tomando conta de Maria Bethânia Alguns meses depois da revolução como era chamado oficialmente o golpe de Estado que tinha instaurado o governo militar o musical Opinião reunia um compositor de morro Zé Kéti um compositor rural do Nordeste João do Vale e uma cantora de bossa nova da Zona Sul carioca Nara Leão num pequeno teatro de arena de Copacabana combinando o charme dos shows de bolso de bossa nova em casa noturna com a excitação do teatro de participação política O espetáculo ao mesmo tempo coroava a tendência de alguns bossanovistas Nara Leão entre eles de promover a aproximação entre a música moderna brasileira de boa qualidade e a arte engajada O movimento teve como precursor e incentivador O próprio Vinícius de Moraes o primeiro e principal letrista da bossa nova e apresentou por vezes excelentes resultados tendo o Brasil por causa disso criado talvez a forma mais graciosa de canção de protesto do mundo e inaugurava o show de música teatralizado entremeado de textos escolhidos na literatura brasileira e mundial ou escritos especialmente para a ocasião que veio a desenvolverse como uma das formas de expressão mais influentes na subseqüente historia da musica popular brasileira A canção Carcará de João do Vale era já o clímax do show na interpretação de Nara mas Bethânia com um talento dramático que Nara estava longe de possuir parecia dar corpo à canção que descrevia a vidência natural com que um gavião do tipo que habita o Nordeste o carcará ataca os borregos recém nascidos O refrão pega mata e come era repetido a intervalos com crescente intensidade Uma sugestão de comparação carcará mais coragem do que homem era suficiente no contexto para transformar a canção num vago mas poderoso argumento revolucionário Até hoje considero essa uma lindíssima canção composta num modo menor muito freqüente na música nordestina a primitiva Banda de Pífanos de Caruaru mesmo nas versões que faz de canções tonais conhecidas atua sempre dentro desse modo que parece transmitir a paisagem da região tanto quanto o sentimento básico dos seus habitantes um misto de melancolia e firmeza À primeira audição ela me impressionou mas me deixou por muito tempo intrigado com o sentido de sua mensagem A recriação da cena de rapina era magistralmente lograda pela composição e a altivez do grande pássaro ainda vinha elevada à categoria do mito pela linha sai voando e cantando carcaráááááá quando na canção se canta o canto da ave que lhe dá nome Mas tudo me punha diante de pistas falsas em meio a tantas outras canções em que se condenava o latifúndio e a exploração a idéia da rapina parecia adequarse á caracterização do explorador no entanto louvavase a saúde da ave rapace e mesmo sugeriase que do seu ato se extraísse uma lição No meio do número enquanto o trio acompanhante violão baixo e bateria executava uma série ascendente de modulações com os músicos repetindo cada vez meio tom acima a palavra carcará a cantora recitava informações estatísticas sobre a crescente emigração de nordestinos para as grandes cidades do Sul o que confirmava o caráter de protesto social da canção ou pelo menos transformava em ameaça de revolução sangrenta a retomada do refrão uns dois tons mais alto pega mata e come Imediatamente percebi que Bethânia faria daquilo um numero extraordinariamente eficaz E de fato desde a reestréia do Opinião Carcará com Bethânia se tornou um culto de platéias politizadas e desde que saiu num compacto um sucesso de massas Se alguma coisa se perdeu na passagem da interpretação de Nara para a de Bethânia foi o destaque do longo grito carcaráááááá que frisando o vôo alto do pássaro Nara fazia uma oitava acima o que em sua voz aguda e frágil tornavase quase lírico efeito que o contralto áspero de Bethânia não poderia e ela sabia que não deveria tentar No mais a canção simplesmente revelouse E como se tratasse tanto para o público em geral quanto para os próprios autores e diretores do show de uma revelação também daquela cantora tendeuse a atribuir a adequação da canção à intérprete mais ao fato de esta ser baiana o que do Rio para baixo se confunde facilmente com ser nordestina do que ao seu especial talento dramático e à sua personalidade guerreira Eu que conhecia a predileção de Bethânia por Noel Rosa e pelas canções de dordecotovelo do final dos anos 50 sabia que o Carcará seria episódico em sua carreira dessemlhe uma canção literária à francesa ou um bolero de puteiro contanto que tivessem potencial dramático e poder de identificação com sua sensibilidade e ela faria como de fato veio a fazer muitas vezes com exatamente esse tipo de material arrebatadores números de palco a música servindo ao drama como na ópera Mas para todos que só começaram a conhecêla então Bethânia chegou com uma marca de regionalismo que para nós foi motivo a princípio de surpresa curiosa e em breve de embaraços e malentendidos que na verdade nunca se desfizeram de todo É óbvio que se o Carcará tivesse caído nas mãos da gaúcha Elis Regina esta teria podido darlhe um tratamento mais próximo ao que lhe deu Bethânia do que àquele que lhe tinha dado Nara enquanto a baiana Gal Costa teria ficado mais perto desta Isso naturalmente não era possível de ser pensado pelos produtores do show um grupo de homens de teatro e intelectuais de esquerda que tinham entre outras coisas de arranjar uma linha de imagem para a nova estrela lançada É curioso constatar que para nós a primeira experiência com as falsidades do marketing tenha sido proporcionada por um grupo de artistas anticapitalistas Nara era uma moça típica da Zona Sul do Rio de Janeiro branca bonitinha e moderna Era também uma celebridade da bossa nova quando Opinião foi idealizado seu tipo em contraste com os dois homens negros e semiiletrados que dividiriam o palco com ela tinha sido parte integrante da própria concepção do espetáculo Bethânia se não levarmos em conta a seleta platéia que freqüentava o pequeno Teatro Vila Velha em Salvador era desconhecida do público e não era uma típica menina branca da classe média Seus cabelos crespos e de cor indefinida sua magreza sua testa alta encimando um nariz aquilino a própria voz de contralto e até mesmo a difícil caracterização por faixa etária Bethânia tinha dezessete anos mas não parecia uma adolescente embora as vezes parecesse uma menina criaram problemas para o diretor Augusto Boal os autores e produtores Oduvaldo Vianna Filho Ferreira Gullar Paulo Pontes e Armando Costa Eles devem ter tido muita dificuldade em encontrar um modo de vesti la penteála e mesmo apresentála ao público Em algum momento devem ter achado que seria preferível que a cantora indicada pela própria Nara porque a indicação fora sua para a substituição tivesse sido ou mais facilmente adequada ou muito menos talentosa As decisões que chegavam até nós de marcar uma prova de roupa ou um corte de cabelo vinham carregadas de ansiedade e se isso me tocava de modo algo desconfortável a mim que tinha 21 anos e estava ali apenas continuando a cumprir o compromisso que assumira com meu pai deve ter abalado Bethânia em áreas profundas de sua pessoa mexendo com a vaidade a insegurança o orgulho íntimo Mas ela reagiu heroicamente Era tranqüilo entre nós o sentimento de que sua integridade nossa integridade seria mantida em todos os níveis Mas histórias como a de que ela em Santo Amaro teria sido pontaesquerda naturalmente frisando a palavra esquerda de um time de futebol o que não era verdade apareceram nos informes biográficos que acompanharam a divulgação da estreante na imprensa E o cabelo preso atrás num penteado que neutralizava as questões racial etária e de beleza pessoal e dava um ar de seriedade digna e um tanto dessexualizada foi uma criação da equipe do show mas passou a ser visto como algo que tinha vindo da Bahia com ela Durante muito tempo Bethânia teve dificuldades de se desvencilhar publicamente desse penteado e da imagem de cantora de protesto nordestina e ao voltar ao Rio depois de uma temporada em São Paulo onde trabalhou em outros espetáculos dirigidos pelo mesmo Augusto Boal do Opinião e de um período de respiração na Bahia ela usou em shows uma peruca de longos cabelos lisos e foi pela primeira vez porque isso se repetiu em diversas ocasiões ao longo dos anos criticada por deixar as canções revolucionárias de sua região por um punhado de sambascanções boleros e baladas sentimentais Um compacto duplo que ela gravou com musicas de Noel Rosa passou quase despercebido e ao menos uma vez eu mesmo ouvi de uma moça bem informada do Rio a mulher de um produtor e diretor de cinema o comentário que já soava repetido de que Bethânia não podia cantar Noel por ser baiana e ter uma sensibilidade de gente do sertão Na verdade Bethânia veio a tornarse e é até hoje uma rainha da canção brasileira sobretudo pela densidade com que canta baladas de amor intenso embora ela também cante e com grande brilho sambas de escola do Rio sambasderoda da Bahia e eventualmente canções típicas do Nordeste Não foi como uma especialista em música nordestina que Maria Bethânia revelouse a Nara Leão uma cantora de talento de quem ela se lembrou quando foi preciso encontrar alguém para substituíla Ela estava na Bahia no fim de uma viagem de passeio que era também em parte uma expedição de pesquisa Nara era uma adorável criatura do tipo que só a Zona Sul do Rio pode produzir Mas era também alguém especial dentro desse mundo Sentiase nela o gosto da liberdade que tinha sido conquistada com dificuldade e decisão Por isso todos os seus gestos e todas as suas palavras pareciam nascer de um realismo direto e sério mas resultavam delicados e graciosos como os de uma menina tímida e passiva Não se pode esquecer que ela a essa altura devia ter vinte anos Seu nome estava ligado ao nascimento da bossa nova diziase e se diz até hoje que o movimento nasceu em seu apartamento de Copacabana e embora a essa altura ela ainda não fosse um sucesso de massas na Bahia nós conhecíamos sua lenda E ela por sua vez fora informada da nossa existência e marcou através de Roberto Santana que então produzia os nossos shows semiamadores no Vila Velha e que parecia estar namorando com ela de vir assistir a um nosso ensaio Ensaio não houve que eu lembre mas ela veio nos encontrar num local próximo ao teatro e nós conversamos e cantamos Havia já algum tempo que Nara vinha tentando ultrapassar o horizonte temático da bossa nova e fazer a música entrar na discussão dos problemas sociais e políticos que o novo teatro brasileiro e o Cinema Novo abordavam com freqüência e paixão e com isso realizar para além de sua mitológica relação com a gênese da bossa nova uma intervenção em nossa música popular de que ela fosse realmente a protagonista E assim foi O próprio espetáculo Opinião fora inspirado em seu gesto de voltar a atenção para o samba de morro e a musica do sertão nordestino e para as novas canções de cunho social que ela mais do que ninguém instigava os compositores a fazer Mais ainda foi um disco seu intitulado Opinião o nome de um samba de Zé Kéti que sugeriu o nome e o formato do show Entre nós na Bahia sua presença revelouse encantadora e um tanto enigmática ela fazia perguntas muito diretas em voz muito mansa e falava de seus interesses entusiasmantes num tom cético que nós interpretávamos creio que acertadamente como um misto de discrição e precaução No dia em que ela veio nos ver íamos ouvir uma gravação do mais recente de uma série de shows que tínhamos apresentado no Vila Velha desde a sua inauguração Antes de o Opinião ser concebido nós tínhamos inventado em Salvador nossa própria versão de show de música com conceito ideologia e literatura Diferentemente do Opinião nossos espetáculos pretendiam além de fazer referências às questões políticas e sociais criar uma perspectiva histórica que nos situasse no desenvolvimento da música popular brasileira Os títulos dizem muito Nós por exemplo o primeiro era um concerto de apresentação de jovens músicos quase todos absolutamente desconhecidos o por exemplo aí queria dizer não que nós éramos um modelo a ser seguido um exemplo mas que tínhamos certeza de que havia muitos outros toda uma geração a que nós por exemplo pertencíamos e que devia sua existência ao aparecimento da bossa nova O título do segundo show Nova bossa velha velha bossa nova mostra nossa intenção de inserir o movimento numa visão de longo alcance da história da canção no Brasil Tínhamos acolhido a sugestão de João Gilberto naquilo que ela parecia ter de mais profundo não nos satisfazíamos com a visão demasiadamente simplificada e imediatista dos que propunham fosse uma disparada de falsa modernização jazzificante da nossa música fosse uma sua utilização política propagandística fosse uma mistura das duas coisas Aceitávamos e incentivávamos tudo isso e mais importante admirávamos e amávamos muitas das obras que nasciam desses desdobramentos da bossa nova Mas toda a perspectiva crítica nos parecia empobrecida pelo esquecimento de uma linha evolutiva que tinha possibilitado o surgimento de João Jobim e Vinícius pela desatenção à nobilíssima linhagem a que eles se filiavam Esse segundo espetáculo era quase didático quanto a isso Fazíamos shows coletivos com números individuais que caracterizavam bem o estilo de cada um de nós e alguns números de grupo um duo de Bethânia e Gal um vocal com todos os participantes modernizando um sambamaxixe arcaico o Samba da bênção de Baden e Vinícius distribuído entre os participantes que substituíam as partes faladas por textos novos condizentes consigo com a turma e com suas pretensões etc mas já planejávamos realizar espetáculos individuais Ao lado de Nara naquele dia tentávamos ouvir algo da precária gravação que alguém tinha feito do Nova bossa velha velha bossa nova e começávamos a projetar o espetáculo solo de Bethânia éramos unânimes na opinião de que esta por sua potência cênica deveria iniciar a série dos individuais Nara não só mostrouse interessada por tudo o que fazíamos e dizíamos como ofereceu a Bethânia canções inéditas de sambistas do Rio sambas que ela própria tinha acabado de gravar e que lhe pareceram adequados às intenções de Bethânia Entre essas canções estava Opinião o samba de Zé Kéti que inspiraria o famoso show Um outro samba magnífico também de Zé Kéti Acender as velas foi transmitido por Nara a Bethânia Assim entre sambascanções de Noel Rosa e de Antônio Maria algum baião alguma marchinha antiga de Carnaval cantada em ritmo lento e novidades compostas por nós mesmos Bethânia em seu primeiro show individual cantou alguns dos temas centrais do espetáculo para o qual ela seria convidada e que a tornaria nacionalmente famosa O desprendimento de Nara nesse episódio pode ser em parte explicado pela atmosfera de busca coletiva e de mútua colaboração que marcou as relações entre 05 criadores de música popular no Brasil desde o final do período áureo da bossa nova até o final do período áureo do tropicalismo e que é ainda marca distintiva da MPB mas o que ressalta aqui são as características pessoais de Nara sua maneira espiritualmente aristocrática de ser prática e objetiva as delicadas cintilações de seu antiestrelato Claro que ela foi então e depois uma estrela verdadeira ao lado de Chico Buarque no lançamento de A banda ao lado dos tropicalistas na hora da primeira batalha ou sozinha primeiro mudando e depois relendo a bossa nova e mesmo afastada da profissão para dedicarse ao casamento e a uma nova vida de estudante universitária com sua graça de menina ela não contrastava com suas colegas dez ou quinze anos mais novas Nara brilhou no Brasil até morrer de um câncer no cérebro em 89 Diante do temperamento de Bethânia ela costumava reagir com um humor que frisava o contraste com seu próprio jeito despojado mas faziao num tom em que se percebia carinho e prova de conhecimento íntimo do estilo pessoal da outra e no qual o tema da competição era apenas um tempero a mais na composição cômica da caricatura Ela dizia por exemplo Quando venho te ver Bethânia penso logo em velas acesas rosas vermelhas e tapetes especiais e Bethânia ria desse seu retrato de primadona sabendo que a eterna menina em sua frente para quem tudo era simples e claro sabia que ela própria era um gigante da história da nossa musica e que o Brasil sempre saberia disso Apesar do entusiasmo com que eu atuava nos shows do Teatro Vila Velha cantando tocando um pouco de violão e sobretudo concebendo e fazendo a direção geral a direção musical ficava por conta de Gilberto Gil e Alcivando Luz não estava nos meus planos profissionalizarme em música popular Ter ido para o Rio com Bethânia no entanto tornou isso quase inevitável Minha canção De manhã que entre algumas outras composições do grupo baiano ela cantou a pedido dos produtores do Opinião foi a escolhida por estes para representar o ambiente musical de onde ela vinha e assim entrou no repertório do show e virou lado B do compacto bestseller do Carcará Muita gente de música apreciava a canção para minha surpresa pois eu embora a achasse bela a considerava muito primária e ela acabou sendo gravada pela mais clássica e classuda das cantoras tradicionais brasileiras a divina Elisete Cardoso e pelo mais popularesco dos filhos jazzísticos da bossa nova o musicalíssimo Wilson Simonal Curiosamente essa canção delicada cuja letra que fala de um amor puro ao nascer do dia me fora sugerida por um sambaderoda de Santo Amaro foi composta sobre a alternância de um lá menor com um ré sétima o que a leva para o modo menor nordestino que aparece também no Carcará Esse modo nada ten a ver com o sambaderoda que inspirou a letra nem com os sambasderoda eu geral ou com toda a música do recôncavo da Bahia na verdade o modalismo nordestino chegava a nós mais através do carioca Edu Lobo do que da divisa da Bahia com Pernambuco mas a sua mistura com a bossa nova trazia para esta um charme diferente e isso contribuiu tanto para a atração que essa minha canção exerceu sobre os músicos quanto para a caracterização das origens musicais de Bethânia que os autores do Opinião buscavam O fato é que a partir daí a ilusão de que a música seria algo provisório em minha vida passou a ser reiteradas vezes desfeita Quando o Opinião foi para São Paulo eu segui acompanhando Bethânia mas já tinha em mente tentar convencer meu pai a permitir que ela ficasse sob a responsabilidade de Augusto Boal o diretor do espetáculo em quem eu confiava Meu pai não era de modo nenhum um homem rígido e de fato mostrouse extremamente receptivo às escolhas limitações e peculiaridades tanto profissionais quanto existenciais dos filhos exigindo apenas que tudo sempre se desse com respeito e honestidade Ele e minha mãe ambos nascidos em Santo Amaro no início do século e tendo vivido sempre ali nunca reagiram às mudanças comportamentais por que o mundo passou enquanto nós crescíamos embora nunca tivessem se identificado nem permitido que nós nos identificássemos com a vulgaridade que vinha no bojo dessas transformações As restrições às saídas noturnas de Bethânia no início de sua adolescência e a exigência de minha permanência junto a ela no início de sua vida profissional foram o modo de meu pai tomando o máximo de cuidado permitir que nós fizéssemos o que tínhamos que fazer Depois da temporada em São Paulo quando o Opinião veio se apresentar na Bahia eu lhe falei sobre a possibilidade de deixar Bethânia sob a responsabilidade de Boal e ele que então conheceu o diretor pessoalmente concordou Mas Boal planejava para depois de encerrada a carreira do Opinião fazer um espetáculo novo com Bethânia e desta vez com seus companheiros de grupo Voltei portanto para São Paulo onde vivi uma experiência sofrida mas muito ilustrativa O governo militar que se instaurara com o golpe em 64 só é sentido como não ditatorial em retrospecto e se comparado à dureza do regime que passou a vigorar a partir de 68 Em 65 procuravase meios de gritar abaixo a ditadura e bem antes de começarem a crescer os movimentos estudantis que levaram multidões à rua a produção cultural sobretudo o teatro tomava a si a responsabilidade de veicular o protesto O critico literário e poeta Roberto Schwarz um intelectual de formação marxista escreveu em 68 um ensaio em que ao lado de uma tentativa de interpretação do tropicalismo descreve o tipo de cumplicidade entre palco e platéia que tinha se desenvolvido no período e mostra o quanto a posição de esquerda era hegemônica no meio cultural brasileiro Augusto Boal o carioca diretor do grupo paulista Teatro de Arena era um expoente desse teatro participativo e embora o seu Opinião apesar de muito bom não me tivesse parecido melhor do que os nossos próprios shows do Vila Velha ele era um homem brilhante e falava sobre a personalidade teatral que mais interessava aos brasileiros de então Bertolt Brecht com mais segurança e sinceridade do que qualquer outro que eu tivesse ouvido antes sobretudo ele acabara de estrear um novo espetáculo em São Paulo Arena conta Zumbi que me encantara O Zumbi também era um musical mas diferentemente do Opinião não era um apanhado de canções diversas entremeadas de textos e apresentadas por cantores e sim uma peça concebida em conjunto com um compositor cujas canções inéditas eram cantados por atores Nesse sentido se o Opinião se assemelhava aos shows de bolso dos clubes noturnos o Zumbi se assemelhava aos musicais da Broadway Não que ele não fosse também de bolso na arena do minúsculo teatro do grupo no centro de São Paulo com um elenco de cerca de dez pessoas todas com roupas idênticas na forma e variando apenas na cor os personagens passando de ator a ator o sistema do curinga Arena conta Zumbi era um primor de economia de meios uma lição de como obter efeitos com o máximo de despojamento Mas os efeitos almejados e assim obtidos bem como as licenças de estilização tanto da cena quanto da música eram da natureza dos encontradiços nos musicais convencionais o resultado era para mim como para o imenso publico que lotou o teatrinho por longos meses irresistível Recentemente a atriz Fernanda Montenegro freqüentemente considerada a maior atriz brasileira e de todo modo uma grande artista que além de encantar nos com o que faz ainda da exemplos de sabedoria orientandonos com uma visão sempre equilibrada mas nunca medíocre das coisas disse numa entrevista que falase muito na importância do teatro tropicalista de José Celso Martinez Corrêa e que a memória sempre celebra sua montagem de O rei da vela mas que o espetáculo mais importante da modernização do teatro brasileiro tinha sido Arena conta Zumbi A mera demonstração do desejo de compensar essa injustiça histórica de que o Zumbi era vítima apresentouseme como algo louvável senti uma grande e imediata alegria diante das palavras de Fernanda De fato não é pouca coisa que se tenha realizado um musical coerente e bem amarrado no Brasil algo que ainda hoje parece uma meta inalcançável para os brasileiros Noel Rosa e Ary Barroso Dorival Caymmi e Lamartine Babo sonharam com isso Edu Lobo o jovem autor da música do Zumbi conseguiu realizar o sonho em 65 na sua colaboração com Boal e Gianfrancesco Guarnieri os autores do texto Mas depois esquecemos voltamos a lamentar o fato de termos tantos compositores populares maravilhosos e não conseguirmos organizar uma tradição de musicais no teatro ou no cinema que nos enriqueça a vida com encantamentos As tentativas de Chico Buarque nesse sentido ainda que louváveis antes atestam esse esquecimento do que retomam o viço das conquistas O Teatro de Arena contava a história de Zumbi dos Palmares o líder escravo negro que criou o maior e mais famoso quilombo aldeia de exescravos rebelados da história da escravidão no Brasil A idéia de um território livre conquistado por ex cativos corajosos se prestava naturalmente a todo tipo de alusão ao governo militar e à nossa falta de liberdade sob ele Mas a glamourização da heroicidade do personagem central que no entanto era representado rotativamente por cada um dos atores numa homenagem às idéias coletivistas realçada pela graça da música abria como que uma clareira agradável em nossas mentes À época teria soado como uma verdadeira blasfêmia ou um esnobismo alguém dizer bem do Zumbi nesses termos eu próprio me dava motivos politicamente mais corretos do que esses para meu entusiasmo embora não escondesse totalmente de mim mesmo a importância profunda desses aspectos frívolos e gostasse do Zumbi como quem gosta de The sound of music ou do Peter Pan de Disney Um espectador culto de esquerda teria preferido uma desaprovação da peça motivada pela irresponsabilidade historiográfica dos autores ou pela simplificação maniqueísta a palavra aparecia muito no período dos enfrentamentos do povo heróico com seus algozes do que esse tipo de louvor A liberdade de gostar do Zumbi do modo como eu gostava ao mesmo tempo aproximoume e afastoume de Boal Para o espetáculo que planejou fazer conosco cujo título seria Arena canta Bahia ele nos encomendou canções especiais uma seleção de canções já existentes relativas à Bahia e sugestões para um roteiro Considerei e ainda considero perfeitamente justa a sua recusa da misteriosa e esquisita história infantil que em conjunto escolhemos como base para a criação da peça levados pela insinuação de Boal de que deveríamos partir de uma idéia folclórica baiana para chegar a uma peça moderna temperada com muita crítica social e também pela confusão de tentar escrever em grupo nós optamos por uma adaptação da macabra história da menina enterrada viva pela madrasta e que de por sob a terra onde brotam seus cabelos como capim sedoso canta todos os dias para o capineiro que tenta em vão dar fim ao teimoso capinzal que renasce diariamente à sombra de uma frondosa figueira Capineiro de meu pai não me corte meus cabelos que minha mãe penteava e minha madrasta me enterrou pelo figo da figueira que o passarinho bicou Era uma história fascinante e que como Boal tinha sugerido aparentemente só era conhecida por nós baianos na verdade curiosamente li há pouco tempo que a mãe de Heinrich e Thomas Mann que era brasileira da cidade litorânea fluminense de Parati contava uma variante dessa história aos filhos traduzindoa para o alemão exceto pela canção que ao que parece era a única coisa que ela havia guardado do português de sua infância mas não sei que tipo de crítica social nós tínhamos a esperança de enfiar nela O resultado foi uma tolice que nada tinha a ver com o mundo de Boal Antes de mostrar a ele nossos esboços eu já sabia que nada daquilo seria do seu interesse ou teria consistência para mesmo não o sendo impressionálo o único procedimento que me ocorreu para enriquecer o material foi tentar enfeitálo com imitações canhestras das aparências do estilo de Lorca Boal considerou com extrema delicadeza que tendíamos para uma atmosfera demasiado lírica e abandonando de todo as nossas idéias de enredo passou a escolher entre as canções que selecionamos um repertório que lhe permitisse encenar algo condizente com o seu prestigiado teatro de luta Duas coisas me saltaram à vista ele não aceitou uma só canção de Dorival Caymmi de quem naturalmente tínhamos sugerido muitas e diante das minhas restrições aos arranjos cheios de tiques nitidamente inspirados nos números de Elis Regina no programa de TV O Fino da Bossa que encontravam nele fácil acolhida quando sugeridos pelos músicos ele se justificou dizendo mais ou menos o seguinte Você pensa em termos de buscar uma pureza regional e por isso reage a esses efeitos eu penso em toda uma juventude urbana que eu preciso atingir e que entende essa linguagem Dois anos mais tarde no meio do furacão tropicalista eu muitas vezes encontrava na lembrança dessas palavras argumento para reafirmar minha posição Enquanto Boal em defesa das opções estéticas da esquerda desancava o nosso trabalho num manifesto assinado e distribuído à entrada de uma faculdade em São Paulo aonde nós os tropicalistas tínhamos sido chamados para um debate sobre o movimento O fato é que em 65 participei com entusiasmo do Arena canta Bahia pois era estimulante observar a mestria de Boal em compor desenhos moventes com nossos corpos e era uma felicidade estar ao lado de Bethânia Gil Gal Tom Zé e Piti mas disse a todos eles e repeti inúmeras vezes para mim mesmo que devia haver algo fundamentalmente errado em se montar um musical sobre a Bahia em que não havia lugar para uma canção de Caymmi As canções escolhidas tinham em comum uma caracterização nordestina que as afastava do estilo propriamente baiano da graça do gosto da visão de mundo que vige na região do recôncavo e na Cidade do Salvador Mas o Nordeste do Carcará era já marca da persona pública de Bethânia e da música de protesto em geral Eu no entanto sonhava a nossa intervenção na música popular brasileira radicalmente vinculada à postura de João Gilberto para quem Caymmi era o gênio da raça João embora nascido e criado no sertão baiano vizinho a Pernambuco sugeria uma linha mestra do desenvolvimento do samba que tinha sua origem no sambaderoda do recôncavo e seu ponto de maturação no samba urbano carioca e recusava estrategicamente exotismos regionais Mas a voz de um vaqueiro gemendo ou a vida estridente de um caipira estavam mais próximas do gosto que eu atribuía a João Gilberto do que a subsofisticada volta ao samba ruidoso via bateria jazzística ou as composições pretensiosas a partir de escalas nordestinas Doíame ouvir a voz crua de Bethânia empacotada nas convenções de sambajazz do Beco das Garrafas a rua de Copacabana onde se desenvolveu o estilo de que O Fino da Bossa era na TV Record de São Paulo extensão e ponto de divulgação Arena canta Bahia estreou num teatro relativamente grande o TBC antigo palco do Teatro Brasileiro de Comédia a grande e bem sucedida empreitada paulista dos anos 50 no sentido de criar uma companhia de alto nível técnico e intelectual para o teatro brasileiro mas não teve nem de longe o sucesso de Arena conta Zumbi A diferença na receptividade do público era merecida nosso espetáculo era limpo e simpático e os valores individuais apareciam como promessas excitantes lembro com ternura da admiração que Nara Leão externou pelos meus dotes cênicos mas viase que o que movia os artistas em cena era uma mistura das marcas dadas pelo diretor como algo abstrato com uma emoção cuja natureza esse mesmo diretor não parecia captar Sobretudo se as estilizações musicais ao gosto da época não atrapalhavam o Zumbi eram mortais para um espetáculo em que quatro autores e duas cantoras novos e chegados da província com idéias originais eram apresentados a um público de teatro que já tinha seus favoritos na música popular ainda que essas estilizações não estivessem aqui tão marcadamente presentes e algo do nosso próprio gosto tivesse sido timidamente introduzido O Zumbi era se quisermos esquecer a força de sua resultante originalidade uma espécie de musical offBroadway à beira de passar a onBroadway o Arena canta Bahia só nos levava a pensar que um show singelo como os do Vila Velha teria sido um nosso melhor cartão de visita Lembro de um começo de discussão com Boal por causa de um outro espetáculo musical que tinha estreado no Rio e a respeito do qual nossas opiniões divergiam diametralmente Era o inesquecível Rosa de Ouro que revelou Paulinho da Viola aos 24 anos e Clementina de Jesus aos sessenta e trouxe de volta a veterana Araci Cortes Para Boal esse espetáculo que me comovia pelo modo poético como apresentava músicos autênticos da mais refinada tradição de samba carioca era folclórico Naturalmente eu era tímido demais para argumentar contra Boal a quem respeitava e admirava e ele demasiadamente despreocupado das minhas opiniões para encorajar uma verdadeira discussão Mas me pareceu que descartar um espetáculo como aquele seria jogar fora uma oportunidade rara de ver exposto claramente o que sugerimos como beleza possível para nós E também que o nacionalismo dos intelectuais de esquerda sendo uma mera reação ao imperialismo norteamericano pouco ou nada tinha a ver com gostar das coisas do Brasil ou o que mais me interessava com propor a partir do nosso jeito próprio soluções originais para os problemas do homem e do mundo A solução única já era conhecida e chegara aqui pronta alcançar o socialismo E para isso todo truque era bom Qualquer interesse em refinarse a sensibilidade fosse no aprofundamento do contato com nossas formas populares tradicionais fosse na atitude vanguardista experimental era considerado um desvio perigoso e irresponsável Esta lembrança é vaga e diminuta mas persistente uma noite no apartamento da atrizcantora Marilia Medalha alguém mencionou o nome de Décio Pignatari talvez tenham dito que ele falara mal do Zumbi e respondendo a uma pergunta minha Boal descreveu em poucas palavras cheias de desprezo uma alienada teoria de revolucionar pela forma que a julgar pelo seu tom deveria naturalmente me parecer tão digna de esquecimento quanto a ele Por causa do sobrenome Pignatari o mesmo de uma família de imigrantes italianos que se tornou famosa pelo acúmulo de riquezas julguei que o poeta Décio fosse um milionário Só me lembro desse episódio porque justamente o esboço de teoria formalista que aparecera na crítica me intrigou e me atraiu Essas discrepâncias com o gosto e as posições de Boal eram um fator a mais a trazer infelicidade à minha estada em São Paulo Eu não apenas estava numa cidade que me parecia feia e inóspita eu também descobria que minha visão das coisas nem sequer poderia insinuarse nos ambientes geradores de cultura e que a chegada de Bethânia ao estrelato se tinha aberto portas para mim no terreno profissional não necessariamente significava que a intervenção estética que me parecia correta se fazia possível Isso tudo no entanto e apesar de todo o sofrimento mostra a meu ver a riqueza da experiência com Boal Ela serviu como estágio de sociabilidade num grande centro além de ter sido um período de adestramento cênico As divergências de visão e de atitude que aí aparecem em embrião desenvolveramse e aprofundaramse muito em dois anos e durante o tropicalismo tínhamos posições ostensivamente antagônicas mas em nenhum momento perdi de vista a grandeza e a importância de Boal e do Arena E estou seguro de que o que quer que Boal tenha visto em mim que o levou a imaginar uma montagem de Hamlet com ênfase no aspecto político e comigo no papeltítulo porque ele me sugeriu isso não se perdeu para sempre dentro dele É tocante também pensar como Bethânia que a essa altura já tinha conhecido um grande sucesso nacional e cujo temperamento levou sempre muita gente a atribuirlhe um estrelismo de diva de ópera dividiu o palco com seus companheiros desconhecidos do público obedecendo a uma decisão corajosa de Boal sem criar embaraços ou demonstrar ansiedade De fato depois da carreira de Arena canta Bahia Boal dirigiu outro musical Tempo de guerra tendo Bethânia à frente do mesmo elenco de baianos Exceto eu que com saudades da Bahia e de minha namorada que ficara lá Dedé uma estudante de dança com quem me casaria dois anos depois em pleno tropicalismo deixei São Paulo e as dúvidas a respeito das posições estéticas de Boal para trás e voltei a Salvador para morar namorar e planejar preguiçosamente um futuro de cineasta ou professor minha incapacidade de orientar os arranjos segundo o meu gosto e minhas idéias o que sempre atribuí à mediocridade de um talento musical que cria impossível desenvolver me fazia sonhar outra vez com um futuro afastado da música Embora a essa altura e justamente por causa dos problemas que tive de enfrentar em São Paulo já não me parecesse contraditório que eu gostasse de João Gilberto e de Ray Charles com quase igual intensidade e desejando que meus antigos colegas da música também pudessem saltar de um a outro de preferência a ficarem presos a um subprébebop homogeneizado eu me preparasse para estar à altura de acolher a próxima futura sugestão de Bethânia no sentido de prestar mais atenção em Roberto Carlos INTERMEZZO BAIANO Os meses quase um ano que passei em Salvador foram felizes e sem perspectivas Íamos para Itapuã passar dias inteiros na praia Fernando Barros meu colega do Severino tinha uma casa de veraneio que sua mãe quase não usava fora de temporada e nós às vezes passávamos dois dias seguidos lá Os pais de Dedé eram sempre informados mentirosamente por uma amiga dela de uma viagem à ilha de Itaparica ou ao recôncavo que as duas fariam juntas À noite íamos ao Abaeté beber cachaça e cerveja e cantar olhando a lua cheia Eu e Dedé namorávamos nas dunas na casa de Nando Barros na praia Nando era um amigo muito doce e generoso Tinha também um senso de humor muito peculiar Mas eu sentia uma certa ansiedade em relação ao futuro A música tinha se insinuado como profissão Na verdade com Bethânia nacionalmente conhecida e tendo gravado um samba meu tinha se imposto como um caminho a seguir Cinema dependia de uma disposição para levantar financiamento e de uma desinibição no trato com pessoas variadas todas com razões para estar tensas ante a iminência de um filme a se produzir que eu não tinha A pintura fora deixada de lado por eu então considerar melancólica a alternativa entre fazer coisas para burgueses pendurarem nas paredes ou fazer coisas que ninguém pudesse pendurar em lugar nenhum As questões propriamente plásticas foram perdendo sentido para mim Eu teria sido um defensor apaixonado do expressionismo abstrato O diretor de teatro João Augusto Azevedo e o ator Équio Reis me mostravam reproduções de Lautrec Matisse e Picasso o MAMB que me mostrara peças de Degas e Van Gogh fora fechado pelos militares e eu continuava a admirar as telas de Manabu Mabe e Antônio Bandeira Mondrian era um caso à parte aqueles quadrados e retângulos vermelhos azuis e amarelos pareciam feitos a régua nas reproduções e eu embora me perguntasse por essa razão se aquilo podia ser um caminho ou um fechamento reconhecia aquelas estruturas por trás de tudo o que chamávamos de moderno prédios móveis roupas e as notas sem vibrato do cool e da bossa nova A pesquisa ousada de Lygia Clark passara quase sem nota minha amiga Sônia Castro comentou um dia no ateliê que o abandono total da pintura como a conhecíamos a enchia de dúvidas Lembro nitidamente a menção da palavra pedra na descrição que Sônia fez do que viu de Lygia numa grande exposição coletiva do MAMB que eu não sei por quê não visitei Pareceme que ela que estava terminando um quadro abstrato que me parecia belo e que a levava às lágrimas enquanto era pintado se perguntou se valeria a pena abandonar o óleo a tela e os pincéis e participar de uma exposição com um saco plástico cheio de água com uma pedra em cima É curioso que eu tenha tal lembrança pois não sei o que poderia Lygia estar expondo em Salvador em 634 Acho que a frase de Sônia era uma espécie de suposição exagerada mas é curioso que o que Lygia veio a fazer e que eu homenageei numa canção de 71 If you hold a stone tenha tido tanto a ver com essa descrição O comentário revelava uma Sônia mais intrigada do que reativa e me fascinou eu era de fato o cara que gostava de coisas loucas como me disse o colega santamarense que me apresentou a musica de João Gilberto De todo modo eu deixava o acaso construir meu destino e em 65 mais constatava que a música decidiase por imporse a mim do que decidiame eu próprio por ela Eu oferecia no entanto uma certa resistência Em primeiro lugar depois da temporada em São Paulo eu não tinha vontade de sair da Bahia Depois havia minha até hoje não negada autêntica modéstia musical Eu sou relativamente tímido e sou capaz de humildade mas não sou modesto Não tenho vontade de me desvalorizar ou de me valorizar através do estratagema de subestimar me para provocar protestos nem tenho vergonha de reconhecer explicitamente valor ou grandeza no que eu faça ou mesmo em algumas características pessoais Mas considero minha acuidade musical mediana às vezes abaixo de mediana Isso mudou com a prática para minha surpresa Mas não me transformou num Gil num Edu Lobo num Milton Nascimento num Djavan Reconheço no entanto que tenho urna imaginação inquieta e uma capacidade de captar a sintaxe da música pela inteligência que me possibilitam fazer canções relevantes Sobretudo encontrome cantando o prazer e o aprofundamento do conhecimento que o ato de cantar me proporciona justificam minha adesão á carreira Mas aí também minhas limitações musicais se fazem sentir Minha primeira apresentação pública aos oito anos deuse num programa de calouros da rádio de Santo Amaro em que eu ao ouvir a introdução feita pela orquestra da marchinha Toureiro de Madri por mim mesmo escolhida entrei cantando em outro tom o que me desclassificou imediatamente Na adolescência porém eu já era o cantor favorito de todo o mundo no ginásio mas ainda hoje temo errar a tonalidade como no episódio do Toureiro Imagineime ensinando filosofia para secundaristas Ou inglês Eu voltaria a estudar para poder ensinar A carreira de professor sempre me atraiu Estar entre jovens e explicar coisas ter um grupo de pessoas admiradas e gratas pelo meu saber era uma fantasia freqüente Mas meus amigos me empurravam para a música e para o Rio Gil como já disse exigia minha participação Um dia Solano Ribeiro veio a Salvador à procura de canções para inscrever num festival que ele dirigiria na Tv Excelsior de São Paulo Ele queria que eu indicasse jovens talentos a serem descobertos e fazia questão de levar uma canção minha Achei gozado ser tratado como alguém já estabelecido na profissão Entregueilhe a canção Boa palavra que eu tinha feito a partir de refrões de sambasderoda do vale do Iguape A canção terminou sendo classificada e chamou a atenção de gente de peso Mas minha ida para o Rio se deveu mais que tudo à pressão feita por Roberto Pinho Roberto me fora apresentado por Alvinho Guimarães é notável como Alvinho Guimarães parece ter me apresentado a tudo e a todos como alguém que tinha idéias originais e um coração grande e puro Ele me impressionou desde os primeiros encontros pela certeza com que proferia suas observações a um tempo realistas e proféticas Ele fora formado pelo professor Agostinho da Silva o fascinante português fugitivo do salazarismo e que via no Brasil um esforço de superação da fase nórdicoprotestante da civilização Era um paradoxal sebastianismo de esquerda que se nutria de lucidez e franco realismo e não de mistificações Se aquilo era um ardil da saudade do catolicismo medieval lusitano ou um modo de expressar a intuição de uma via independente não ficava claro para mim Eu elegia conscientemente o aspecto da trilha inexplorada embora não deixasse de me entregar a supersticiosas constatações de coincidências entre as revelações e os fatos reais Roberto defendia Jung contra Freud nunca me convenceu e naturalmente indicava o sagrado e o profano de Mircea Eliade Logo estaria de moda o despertar dos mágicos de Jacques Bergier e Louis Powels e tudo isso apontava para saudades de tempos europeus préiluministas e mesmo prérenascentistas embora também para fantasias de futuro diferentes das marxistas e capitalistas Vi depois o nome de Powels em publicações de extrema direita européia em que marcas notáveis de identificação fascista não se escondiam ao lado do grande Eliade Powels publicou também um forte livro panfletário clamado Carta aberta às pessoas felizes em que defende com viva inteligência uma posição que seria melhor caracterizada como de antiesquerda O professor Agostinho interessado em ligar Brasil com África e Oriente no fim da vida ele estava apaixonado pela China póscomunista nunca derrapou para nenhum tipo de reacionarismo radical ele amava ver em Portugal o mais antigo país da Europa unificado e feito EstadoNação desde o século XII uma sugestão de futuro espiritualmente ambicioso sem negar os frutos da paixão nórdica pela tecnologia E quando ele dizia petulantemente que Portugal já civilizou Ásia África e América falta civilizar Europa estava sobretudo mostrando que queria pensar ao arrepio dos poderosos Roberto Pinho tomava nas mãos várias tarefas inspiradas nesse programa E embora conseguisse mais me fascinar do que convencer com o todo do pensamento me convenceu do detalhe de que eu deveria aceitar a sugestão do destino e ir fazer musica no Rio e em São Paulo porque coisas grandes necessariamente adviriam disso Não que eu cresse no aspecto transcendental do conselho Mas combinado com a insistência de Alvinho com a exigência de Gil com a cumplicidade de Dedé com a concordância de Duda e sobretudo com minha incapacidade de criar outras alternativas a pressão de Roberto parecia mais basearse na observação de possibilidades reais do que em visões e revelações vindas de outro mundo ele possivelmente considerava minhas canções mais originais e eu próprio mais inteligente do que eu admitiria Por muito tempo contudo fiquei na Bahia sem mover uma palha no sentido de organizar minha ida para o Rio sem sequer cogitar de arranjar moradia ali Até que no Carnaval de 1966 o próprio Roberto me apresentou a um artista gráfico chileno chamado Alex Chacon que viera do Rio para colaborar com ele em não sei que projeto Alex aderiu imediatamente à campanha para a minha ida Não lembro de vêlo me ouvindo cantar canções em Salvador O que o teria feito colaborar na campanha com tanto entusiasmo Minhas conversas A gravação de De manhã por Bethânia Lembro de ouvilo falar com entusiasmo cômico sobre a loucura do Carnaval da Bahia Ele estava impressionado e dizia que aquele bandolinzinho do trio elétrico só podia estar sendo tocado pelo diabo em pessoa Ele próprio parecia um diabinho muito magro e miúdo com os olhos extremamente vivos e aquele sotaque enfático das pessoas de língua espanhola Eu lhe perguntei como é que ele queria que eu deixasse uma terra daquelas Alex mudou logo de tom e disse que quanto a isso não havia questão ele me oferecia morar em seu apartamento Ele era casado com uma brasileira para quem os pais deixaram um amplo apartamento na avenida Nossa Senhora de Copacabana quase na esquina da rua Santa Clara onde eles viviam sem filhos Cerca de dois meses depois encorajado por Dedé que decidiu mudarse para o Rio por minha causa eu chegava de ônibus à estação rodoviária do Rio de Janeiro onde para minha surpresa me esperava a adorável Sylvia Telles a cantora segurando um cachorrinho no colo Ela me levou de automóvel até o apartamento de Alex e me disse que assim que eu estivesse pronto naquele mesmo dia iríamos à casa de Edu Lobo Este um grande compositor então na crista da onda me recebeu na noite daquele mesmo dia com um carinho e um interesse sinceros de que nunca me esquecerei e é a imagem da hospitalidade com que o Rio apesar dos preconceitos que depois vim a descobrir me acolheu E será sempre a medida de minha gratidão em que pesem as crises de fúria para com aquela que João Gilberto chama de a cidade dos brasileiros PARTE II TRANSE Se o tropicalismo se deveu em alguma medida a meus atos e minhas idéias temos então de considerar como deflagrador do movimento o impacto que teve sobre mim o filme Terra em transe de Glauber Rocha em minha temporada carioca de 667 Meu coração disparou na cena de abertura quando ao som do mesmo cântico de candomblé que já estava na trilha sonora de Barravento o primeiro longametragem de Glauber se vê numa tomada aérea do mar aproximarse a costa brasileira E à medida que o filme seguia em frente as imagens de grande força que se sucediam confirmavam a impressão de que aspectos inconscientes de nossa realidade estavam à beira de se revelar Glauber Rocha o jovem diretor baiano tinha se tornado a essa altura um verdadeiro líder cultural Depois de rodar Barravento quando ainda morava na Bahia ele impressionou diretores e críticos europeus com Deus e o Diabo na Terra do Sol filme cheio de uma selvagem beleza que nos excitou a todos com a possibilidade de um grande cinema nacional Não se tratava de uma conquista de padrão de qualidade essa tinha sido a meta da Vera Cruz produtora criada pelo empresário paulista Franco Zampari que construiu um estúdio bem estruturado onde se produziam até metade dos anos 50 filmes de bom acabamento Para dirigir o empreendimento Zampari convidou Alberto Cavalcanti o cineasta brasileiro que atuara com sucesso na Inglaterra e na França e voltava ao Brasil atendendo a esse convite da elite brasileira para instituir uma indústria cinematográfica de alto nível entre nós Era uma tentativa de superar o estágio primitivo do cinema comercial brasileiro representado pelas comédias carnavalescas cariocas conhecidas como chanchadas uma fórmula inaugurada com sucesso nos anos 30 O movimento do Cinema Novo na primeira metade dos anos 60 opôsse tanto ao academicismo das produções respeitáveis da Vera Cruz quanto ao primarismo das chanchadas A vitória de prestígio do movimento sobre essas duas tendências não foi atingida sem dificuldade e não se pode dizer que a desatenção quase hostilidade a produções como O cangaceiro Vera Cruz ou O homem do Sputnik chanchada não pareçam hoje francamente injustas Glauber liderou prática e teoricamente o movimento do Cinema Novo Seu livro Revisão crítica do cinema brasileiro argumenta em favor da criação de um cinema superior nascido da miséria brasileira como o neorealismo nascera da indigência das cidades italianas no imediato pósguerra Ali ele conclamava os jovens intelectuais de esquerda que se sentissem atraídos pelo cinema a inspiraremse no Nelson Pereira dos Santos de Rio 40 graus e naturalmente isso significava desprezar tanto os sensatos que apenas tentavam encenar diante da câmera histórias razoavelmente roteirizadas quanto os malandros que produziam diversão para um público semianalfabeto O filmeemblema é Deus e o Diabo na Terra do Sol Bons filmes do Cinema Novo como Os fuzis de Ruy Guerra ou mesmo Vidas secas de Nelson Pereira dos Santos para nos atermos aos filmes que foram feitos e lançados mais ou menos ao mesmo tempo que Deus e o Diabo na Terra do Sol e que são de resto juntamente com este as primeiras grandes realizações do movimento e portanto sua inauguração efetiva tinham entre outras a virtude de nos aproximar de um nível de feitura almejável embora por caminhos bem diversos daqueles percorridos pela Vera Cruz Anselmo Duarte ou o solitário autor de filmes bergmanianos Walter Hugo Khoury Deus e o Diabo na Terra do Sol era bom e mesmo melhor por outras razões ousava livremente acima e além da submissão aos esquemas industriais e da reverência ao já estabelecido artisticamente Abordando a temática do fanatismo religioso no Nordeste brasileiro com evidentes ecos de Os sertões o grande livro de Euclides da Cunha e retomando o imaginário do banditismo rural daquela região a marca forte de O cangaceiro Glauber sem temer a mão às vezes pesada às vezes canhestra com que exibia ensinamentos estéticos de Eisenstein Rossellini Buñuel ou Brecht mais nouvelle vague e alguns cacoetes aprendidos no então para nós emergente cinema japonês e lições ideológicas de marxistas apresentava um painel exuberante e algo disforme na Europa como no Brasil chamouse creio que com acerto barroco das forças épicas embutidas em nossa cultura popular Na verdade o resultado final desse filme o aproxima mais do genial Pasolini de O Evangelho segundo s Mateus do que de qualquer outro diretor a fotografia sem contraluz o delírio construído com matéria crua a imposição de um mundo mental às imagens tudo isso é compartilhado por esses dois filmes realizados no mesmo ano Mas Deus e o Diabo na Terra do Sol não se apoiava em algo como a poderosa singeleza dos Evangelhos ele tinha que dar conta de todo um imaginário e de toda uma problemática particulares do Brasil Viase na tela o próprio desejo dos brasileiros de fazer cinema Não era o Brasil tentando fazer direito ou provando que o podia mas errando e acertando num nível que propunha a partir de seu próprio ponto de vista novos critérios para julgar erros e acertos O cineasta espanhol Fernando Trueba me disse que mesmo os maus filmes brasileiros nunca são tão maus pois há sempre algo selvagem que os salva e que esse aspecto selvagem é o mesmo que se encontra concentrado nos bons filmes feitos no Brasil Isso é uma verdade perceptível até para estrangeiros mas ela não estaria sequer revelada se não fosse o Cinema Novo e o Cinema Novo não teria existido sem Glauber O que purifica os maus e ilumina os bons filmes brasileiros de qualquer época é a chama que arde em Deus e o Diabo na Terra do Sol Foi isso que fez de Glauber o mestre de seus pares além de personalidade influente posto que sempre polêmica ou exatamente por causa disso em todas as áreas de nossa vida cultural Quando Terra em transe estava sendo feito a expectativa em torno do que Glauber faria depois de Deus e o Diabo na Terra do Sol era enorme Fui sozinho a um cinema de Copacabana assistir ao novo lançamento Eu viera para o Rio em abril ou maio de 66 e depois de morar no apartamento de Alex Chacon em Copacabana mudeime para o Solar da Fossa como foi apelidado o precursor dos aparthotéis no Rio de Janeiro Era uma velha casa de fazenda que tinha sido transformada num conjunto de apartamentos com uma portaria de hotel barato e um mínimo de serviço de limpeza e arrumação de quartos Enormes corredores ao longo dos quais se alinhavam os apartamentos circundavam um jardim interno A proprietária ou aquela que todos tomavam por tal muitas vezes estava na entrada por trás do balcão com os cabelos oxigenados e fumando um charuto Mas essa descrição ou o apelido que o solar ganhou não deve levar à crença de que se tratava de um antro deprimente Ao contrário tudo ali era limpo alegre arejado e parecia sólido E a visão da proprietária de charuto entre os dedos mais sugeria a elegância excêntrica de uma personagem de filme alemão O enorme número de apartamentos quartoesala com banheiro razoável era ocupado principalmente por artistas músicos poetas desenhistas e atrizes iniciantes Uma gente que tinha descoberto um modo bonito de viver num ponto excelente do Rio de então encostado à rocha onde se abriu o Túnel Novo na confluência de Copacabana com Botafogo e a Urca por muito pouco dinheiro Dedé que tinha combinado de vir comigo para o Rio estava morando na casa da avó no Flamengo mas ficava no solar todo o tempo de que dispúnhamos para estar juntos O próprio apelido de Solar da Fossa o nome verdadeiro era Solar Santa Teresinha conotava sofisticação e mesmo refinamento uma vez que estar na fossa era expressão in usada por gente da Zona Sul carioca Era uma gíria de fãs de filmes de Bergman e pacientes de psicanálise O termo fossa apesar de seu significado original grosseiro na verdade não vivenciado pelos usuários da gíria todos eles moradores de bairros com serviço de esgoto e bom saneamento bastando dizer que eu mesmo vindo de uma cidadezinha do interior basicamente bem urbanizada usei por muito tempo a expressão sem atinar com o significado nauseabundo da palavra fossa se aplicava aos sambascanções modernos de Maysa Tito Madi e Dolores Duran da fase prébossa nova e era popularmente considerado chique O sentido metafórico que a palavra ganhou na gíria ou seja depressão psicológica tampouco era condizente com a atmosfera do solar Como jovens artistas achavam engraçado dizeremse na fossa e como os que os olhavam com curiosidade gostavam de repetir a expressão o protoaparthotel eleito para moradia de bossa ganhou o apelido folclórico Podiase atravessar a pé o Túnel Novo e em cinco minutos estavase na rua Prado Júnior onde se encontrava o restaurante Cervantes o centro da vida boêmia barata dos anos 60 com seus excelentes sanduíches de pão francês prensado que se podem encontrar ainda hoje e um ótimo chope Lembro que fui andando do solar até o cinema onde se exibia Terra em transe O filme como um todo no entanto me pareceu desigual E me agastava que ele não o fosse menos erao mesmo bem mais do que Deus e o Diabo na Terra do Sol As lamentações do seu principal personagem um poeta de esquerda em conflito íntimo por ambicionar muito além da justiça social o absoluto por vezes me soavam francamente subliterárias Além disso certos defeitos intoleráveis do cinema brasileiro as festas grãfinas inconvincentemente encenadas as figurantes mulheres que são incentivadas pelos diretores a fazer uma deplorável caricatura provinciana de glamour sexual a incapacidade de contar pelo menos um trecho de história com clareza mesmo quando a evidente intenção seria essa etc etc continuavam todos lá Mas como já tinha sido o caso com os dois filmes anteriores de Glauber e ainda que em menor intensidade com grande número de produções do Cinema Novo incessantemente explodiam na tela as sugestões de uma outra visão da vida do Brasil e do cinema que pareciam obsoletar esse tipo de exigência E no caso de Terra em transe o próprio poeta protagonista trazia envolta em sua retórica uma visão amarga e realista da política que contrastava flagrantemente com a ingenuidade de seus companheiros de resistência à ditadura militar recéminstaurada o filme é o momento do golpe de Estado reconstituído como um pesadelo pela mente do poeta ao morrer A impressão de que se tinha diante dos olhos uma refilmagem de La fièvre monte à El Pao de Buñuel com tiques de nouvelle vague e pinceladas do Fellini de 8 12 podia gerar confusão Mas essa confusão contribuía para a força paródica do filme E nem sempre desservia o personagem cuja desesperada tentativa de criticar com a maior lucidez possível os projetos políticos nos quais se envolvera e ao mesmo tempo realizar os gestos mais eficazes no sentido de consolidálos tipo do dilema que levou tantos à loucura ao misticismo ou às trincheiras opostas acabava por leválo de modo bastante gratuito à morte Não deixa de ser comovente pensar em como isso pode hoje passar sem grande margem de erro por uma biografia sucinta do próprio Glauber O filme naturalmente não foi um sucesso de bilheteria mas causou escândalo entre os intelectuais e artistas da esquerda carioca Alguns líderes do teatro engajado chegaram a proferir protestos exaltados ao final de uma sessão na porta de um cinema onde ele era exibido comercialmente Uma cena em particular chocava esse grupo de espectadores durante uma manifestação popular um comício o poeta que está entre os que discursam chama para perto de si um dos que o ouvem operário sindicalizado e para mostrar quão despreparado ele está para lutar por seus direitos tapalhe violentamente a boca com a mão gritando para os demais assistentes e para nós na sala do cinema Isto é o Povo Um imbecil um analfabeto um despolitizado Em seguida um homem miserável representante da pobreza desorganizada surge dentre a multidão tentando tomar a palavra e é calado com um cano de revólver enfiado na sua boca por um segurança do candidato Essa imagem é reiterada em longos closeups destacados do ritmo narrativo e desse modo se transforma num emblema Vivi essa cena e as cenas de reação indignada que ela suscitou em rodas de bar como o núcleo de um grande acontecimento cujo nome breve que hoje lhe posso dar não me ocorreria com tanta facilidade então e por isso eu buscava mil maneiras de dizêlo para mim mesmo e para os outros a morte do populismo Sem dúvida os demagogos populistas eram suntuosamente ridicularizados no filme ali eles eram vistos segurando crucifixos e bandeiras em carro aberto contra o céu do Aterro do Flamengo exibindo suas mansões de ostentoso mau gosto participando das solenidades eclesiásticas e carnavalescas que tocam o coração do populacho etc mas era a própria fé nas forças populares e o próprio respeito que os melhores sentiam pelos homens do povo o que aqui era descartado como arma política ou valor ético em si Essa hecatombe eu estava preparado para enfrentála E excitado para examinarlhe os fenômenos íntimos e anteverlhe as conseqüências Nada do que veio a se chamar de tropicalismo teria tido lugar sem esse momento traumático O golpe no populismo de esquerda libertava a mente para enquadrar o Brasil de uma perspectiva ampla permitindo miradas críticas de natureza antropológica mítica mística formalista e moral com que nem se sonhava Se a cena que indignou os comunistas me encantou pela coragem foi porque as imagens que no filme a precediam e sucediam procuravam revelar como somos e perguntavam sobre nosso destino Uma grande cruz na praia domina um grupo formado por demagogos políticos bichas com fantasias de luxo do baile do Municipal e índios de Carnaval experimentase a um tempo o grotesco e o arejado da situação dessa ilha sempre recém descoberta e sempre oculta o Brasil em meio à multidão de um comício um velhinho samba de maneira graciosa e ridícula lúbrica e angelical alegremente perdido o povo brasileiro é captado em seus paradoxos que não se sabe se são desesperantes ou sugestivos decisões políticas são discutidas num pátio cimentado em que as linhas negras de divisão entre as lajes ressaltam e desmentem as entradas e saídas das personagens a câmera passeia por entre os grupos de quatro cinco seis inquietos agitadores discordantes em suas táticas e seus movimentos corporais tudo numa fotografia em preto e branco em que enormes espaços de luz são assombrados por dominadoras manchas negras Era dramaturgia política distinta da usual redução de tudo a uma caricatura esquemática da idéia de luta de classes Sobretudo era a retórica e a poética da vida brasileira do pós64 um grito fundo de dor e revolta impotente mas também um olhar atualizado quase profético das possibilidades reais para nós de ser e sentir Contudo eu não teria talvez reagido como reagi a esses estímulos se não fosse pela influência determinante que já vinha fazia algum tempo exercendo sobre mim a inteligência e a sensibilidade de um intelectual singular que entrara em minha vida no último mês de 64 e que a essa altura dois anos depois já se tornara um verdadeiro amigo o também baiano Rogério Duarte que tinha se mudado para o Rio no ano em que eu chegara a Salvador Na primeira metade dos anos 60 antes de eu sair da Bahia ouvi o nome de Rogério Duarte repetido com freqüência nas conversas dos meus colegas na Faculdade de Filosofia Sua inteligência inquieta e pouco convencional tinha virado uma lenda Diziase que ele falava com grande brilhantismo e que suas opiniões às vezes chocantes impressionavam o interlocutor pelo calor com que eram defendidas Embora ele não tivesse sequer concluído o curso secundário fascinava estudantes e professores de curso superior Igualmente lendária se tornou sua paixão por uma moça à porta de cuja casa no bairro dos Barris contavase que ele se deixava ficar noites inteiras em muda serenata Tratavase de Anecir a irmã mais nova de Glauber que no tempo em que eu ainda estava na faculdade pouco antes do meu encontro com Rogério desempenhou papel decisivo em minha vida Quando cheguei ao Rio com Bethânia em 64 Rogério apareceu no Teatro Opinião e ao fim do espetáculo saímos para conversar Nada do que me tivessem dito sobre ele na Bahia poderia ter me dado a medida da impressão que ele me causou Sua voz era mais potente sua mente mais rápida e suas idéias mais desconcertantes do que eu teria sido capaz de imaginar Havia entre ele e seus discursos um comprometimento a um tempo visceral e metafísico que multiplicava o poder persuasivo dos argumentos E ele era surpreendentemente gentil e amigável Foi carinhoso e irônico por estar tratando com baianos um tanto mais novos do que ele e a gente sentia que era por estar comovido que ele idealizava uma nossa suposta pureza dizendo Vocês não são neuróticos vocês são diferentes daquela gente do meu tempo na Bahia Isso não o impedia no entanto de dinamitar nossa ingenuidade com tiradas politicamente blasfemas Ele parecia a um tempo querer nos resguardar de um certo cinismo amargo que a vida já lhe tinha ensinado e nos alertar contra a adesão inocente ao ideário dominante nos meios intelectuais Tremi ao ouvilo dizer que o prédio da União Nacional dos Estudantes devia mesmo ter sido queimado O incêndio da UNE um ato violento de grupos de direita que se seguiu imediatamente ao golpe de abril de 64 era motivo de revolta para toda a esquerda para os liberais assustados e para as boas almas em geral Rogério expunha com veemência razões pessoais para não afinar com esse coro a intolerância que a complexidade de suas idéias encontrara entre os membros da UNE fazia destes uma ameaça à sua liberdade O estranho júbilo de entender com clareza suas razões e mesmo de identificarme com elas foi maior em mim do que o choque inicial produzido pela afirmação herética Não tardei a descobrir que Rogério exibiria ainda maior violência contra os reacionários que apoiassem em primeira instância a agressão à UNE Isso que para muitos parecia absurda incoerência era para mim prova de firmeza e rigor ele detectava embriões de estruturas opressivas no seio mesmo dos grupos que lutavam contra a opressão mas nem por isso iria confundirse com os atuais opressores destes Esse mesmo brilho de inteligência e essa mesma inquietação de espírito é que tinham levado alguns lideres esquerdistas da UNE de quem sem embargo ele era amigo a apelidao de Rogério Caos E o valor pejorativo atribuído a esse apelido o magoara duplamente chamavam de caótico exatamente o que nele era mais lógico e construtivo e desprezavam O Caos que ele em outro nível era capaz de amar Em 66 poucos meses antes de eu ver Terra em transe Rogério me apresentara ao escritor paulista José Agrippino de Paula A simples presença de Zé Agrippino representava como que um aprofundamento das idéias mais audaciosas de Rogério De fato este me contara que ao ver Agrippino um dia andando na rua um total desconhecido e sem que lhe dirigisse a palavra ou dele ouvisse o que quer que fosse disse de si para si Nunca vi um homem tão inteligente em toda a minha vida Aproximouse desse estranho e assim nasceu a amizade entre eles Zé Agrippino opunha os ícones da cultura de massas americana ao intelectualismo das nossas rodas boêmias Mas adivinhavase por trás de sua iconoclastia uma valorização da literatura de língua alemã sobretudo Kafka e Musil mas acho que cheguei a ouvir falar em Hölderlin e sem dúvida Heidegger e Nietzsche e de língua inglesa Joyce e Melville e Swift mas também Kerouac e Ginsberg e os beats Ele me impressionou por exemplo ao alardear que preferia de longe os filmes de 007 a Jules et Jim o delicado filme de Truffaut que era muito amado pelas platéias universitárias Agrippino não era eloqüente como Rogério e jamais explicava ou justificava suas posições ele impunha sua presença pétrea e deixava suas conclusões caírem como tijolos no meio de uma roda de conversa Com um olhar ele desancava o nível baixo da competitividade brasileira em todas as áreas destruía a tradição funcionária pública destroçava as glórias nascidas das relações pessoais e exemplificava a força do chamado irracionalismo perante os espasmos do pensamento sistemático Sendo paulista Agrippino já via as coisas de uma perspectiva diferente da nossa ter nascido no Brasil por exemplo era para ele um acidente nem auspicioso nem deplorável apenas ele lhe media as vantagens e as desvantagens práticas com lúcida objetividade Que as desvantagens superassem de longe as vantagens isso nada tinha a ver com sua disposição afetiva em relação ao país era apenas um dado concreto a ser computado Ele foi para mim por muito tempo uma personagem de Rogério Sem dúvida a anedota que este contava sobre o encontro dos dois contribuía para essa impressão De todo modo ele encarnava com radicalidade um dito que Rogério repetia e eu não sei se era uma citação O problema para mim de escrever um romance é que eu não me contentaria em ser o autor quero ser o personagem Ambos estavam não obstante escrevendo cada um deles um romance Rogério o que teria sido sua estréia literária se ele não o tivesse destruído antes de tentar publicálo Agrippino seu segundo livro uma epopéia que ele intitulara Panamérica e em breve se seguiria a Lugar público lançado um ano antes de nós nos conhecermos Zé Agrippino parecia um homem das cavernas com sua barba negra e seu jeito pesado Ele nunca correspondia aos sorrisos convencionais que todos trocam entre si quando se olham casualmente o que me deixava muitas vezes constrangido Mas ele não era descortês ou grosseiro e quando um sorriso aflorava em seu rosto não vinha apenas valorizado pela raridade mas sobretudo adensado pela verdade e inevitabilidade Sua namorada Maria Esther Stockler também de São Paulo compartilhava naturalmente com ele a decisão de não fazer concessões aos ritos convencionais da convivência pequenoburguesa Ela mais do que ele exalava uma atmosfera aristocrática que era uma permanente lição sobre a verdadeira elegância sempre provando como e por que algo vulgarmente considerado vulgar um comprimento de saia um gesto uma cor podia ser afinal o melhor exemplo de refinamento Ela era dançarina e pertencia a uma família rica de São Paulo Os dois nunca se beijavam ou mesmo se tocavam em público Apenas chegavam juntos e saíam juntos Rogério contava que no entanto quando ele os hospedava na sua casa de Santa Teresa eles às vezes passavam uma noite e um dia inteiros no quarto sem sair nem mesmo para comer entregues sexualmente um ao outro Na praia ela era olhada com assombro pelas carioquinhas depiladas porque seus pêlos pubianos escorriam com a água por sob o biquíni pelas coxas abaixo e suas axilas tampouco eram raspadas No entanto sua imponência era a de uma rainha enquanto as outras pareciam coristas Eles liam revistas em língua inglesa e diferentemente de Rogério não usavam as gírias correntes ou palavrões Pareciam estrangeiros embora Agrippino fosse fisicamente um tipo brasileiríssimo enquanto Maria Esther tinha aspecto de caucasiana pura ou pessoas de outra época ele paleolítico ela prérenascentista ambos do futuro Tanto Rogério quanto Zé Agrippino me predispuseram a receber favoravelmente Terra em transe Rogério era amigo intimo de Glauber desde a Bahia e exercia sobre o cineasta forte influência pessoal Claro que não seria necessária uma indicação sua para que eu atentasse especialmente para um filme de Glauber Barravento sobre o qual eu escrevera um artigo elogioso num jornal de Salvador muito antes de conhecer Rogério me parecera extraordinariamente bonito e Deus e o Diabo na Terra do Sol era o mais exuberantemente sugestivo de todos os filmes do Cinema Novo Glauber ele mesmo era como já contei um mito para mim O bocaa boca prévio a respeito de Terra em transe esse titulo insinuava estarrecedoras novidades Zé Agrippino tinha visto uns copiões não sei como e fez comentários entusiásticos o que vindo do lacônico e exigentíssimo Agrippino soava já como uma convocação de militância a favor Contudo mais do que qualquer referência direta ao filme a que eu iria assistir a atmosfera estética e crítica que a convivência com esses dois me proporcionava foi determinante para que eu me preparasse de maneira especial para recebêlo Duda que chegara da Bahia para viver no Rio e até que arranjasse onde morar iria ficar no meu quarto do Solar da Fossa foi comigo ver pela primeira vez o filme que eu já via pela terceira ou quarta e apesar de minha propaganda prévia não gostou e disse que não gostou Seus motivos se distanciavam dos motivos dos esquerdistas convencionais Ele se ressentia mais da irregularidade estilística do filme de suas pretensões aparentes e objetivos falhados do que da política que porventura ali se veiculasse Eu não deixava de concordar com suas restrições na verdade como já disse tive que passar por reservas semelhantes para me decidir a favor do filme mas gostaria de poder explicarlhe à luz de que se dava minha necessidade de louvar Terra em transe Sem partilhar comigo o que já se tornara um clima de gosto e de pensamento Duda externava uma opinião que bem podia ter sido a minha caso eu não tivesse encontrado Rogério e Zé E me pareceu por alguns momentos que eu apenas estava me esforçando desajeitadamente para agradar meus novos mestres para chegar a formular opiniões que supunha serem as deles Esse malestar me ensinou muito sobre as pressões de grupo e me fez pensar em como formamos nosso gosto Em nossa conversa Duda mais uma vez me parecia rigoroso e sobretudo autêntico enquanto eu me debatia no vazio O curioso é que Rogério e Agrippino nunca comentaram comigo o filme depois que ele foi exibido Jamais cheguei a saber se a aprovação de Agrippino ao copião se estendeu ao filme inteiro depois de montado E Rogério que eu via bem mais freqüentemente agia como se não tivesse sequer assistido a ele O fato é que eu estava procurando sozinho E essa era a minha maneira de procurar a única possível Além disso é certo que o destino nos proporciona encontros reveladores de nossas vocações íntimas A história do encontro de Agrippino com Rogério tal como era narrada por este não deixa de ser uma parábola sobre isso Rogério e Zé Agrippino não menos do que Duda e Alvinho Guimarães já o tinham feito ampliavam problemas que meu espírito já conhecia em estado embrionário os quais se tornavam desafios que eu aceitava com voracidade Eu não sabia que Gobineau tinha formulado a sarcástica definição Le brésilien est un homme qui désire passíonnement habiter Paris O brasileiro é um homem que deseja apaixonadamente morar em Paris quando Zé Agrippino detectou e incentivou uma tendência antifrancesa na formação do gosto tropicalista De fato devia haver entre os estímulos do movimento uma reação por assim dizer natural ao antigo alinhamento com a cultura francesa E essa reação era expressão de um impulso que vem se desenvolvendo com vagar e ansiedade no espírito dos brasileiros no sentido de desvelar ou construir seu valor próprio Por outro lado ela servia também a um desejo expresso pelos produtores eruditos desejo que sendo um desdobramento do modernismo era uma marca da época de aproximarse da cultura de massas criticandoa ou identificandose com ela ou ainda criticandose através dela Gesto que teve sua contrapartida no surgimento de um experimentalismo de massas que o poeta vanguardista Décio Pignatari apelidou de produssumo unindo produção e consumo numa só palavra Ora numa redução aceitável podese dizer que a cultura francesa confundiase para nós com cultura erudita à qual quisemos então contrapor a cultura americana que chegava até nós principalmente como cultura de massas No entanto um autor francês tinha sido para mim o primeiro a sugerir essa atitude Foi Edgar Morin cujos livros Rogério comentava e às vezes me lia em voz alta quem ao tratar as estrelas hollywoodianas e as personagens das revistas em quadrinhos em ternos de uma nova mitologia abriu o caminho em minha mente para o entendimento que eu futuramente viria a ter da arte pop para a absorção mais intensa da poeticidade de Godard para todo um redimensionamento do rocknroll e do cinema americano Não deixa de ser curioso que eu aqui incluído Godard nessa lista Godard também era francês embora um tanto suíço e não menos do que Morin me induziu a atentar para a poesia da cultura de massas americana para Hollywood para a publicidade Seus filmes eram são ainda hoje meus preferidos entre toda a produção daquela época Desde o momento em que Duda me aconselhou a ver A bout de souffle que eu não apenas constatei que tinha encontrado um novo favorito no cinema mas também que todo o cinema tinha que ser revisto por causa dele Terra em transe me dera tudo num certo sentido mas o que queríamos fazer estaria muito mais próximo se nos fosse possível dos filmes de Godard Viver a vida Pierrot le Fou e Uma mulher é uma mulher são as obras fundamentais da fermentação inicial do tropicalismo E Masculinofeminino com suas cenas no estúdio de gravação seus filho de Marx e da Cocacola sua sexualidade adolescente foi visto por mim em São Paulo como um momento a mais no nosso cotidiano era como ir a um ensaio da peça de Zé Agripino e Maria Esther ou de Zé Celso era como ir gravar o Jovem Guarda como encontrar os Mutantes como simplesmente viver Mais tarde A chinesa e Weekend funcionaram como comentários maduros sobre a parte já vivida da aventura As leituras de Morin ou mesmo as conversas a seu respeito jamais aconteciam em presença de Agrippino Este dava mostra de não ter paciência com intelectuais franceses mesmo aqueles que engatinhassem em sua direção Ele que tampouco se interessava por Godard estava como que anosluz à frente de toda essa conversa que Rogério entretinha comigo sobre o belo e depois da revolução industrial o kitsch a arte da felicidade os cartazes publicitários os sambascanções de mau gosto Na verdade esse conjunto de temas surgiu entre mim e Rogério casualmente A princípio nossas conversas que se estendiam até a madrugada no solar e não raro continuavam na casa dele em Santa Teresa onde muitas vezes eu ficava para dormir consistiam em considerações a respeito do que acontecia à nossa volta teatro cinema canção popular além de comentários meio morais meio psicológicos sobre o comportamento de conhecidos ou a mera maledicência quando não se resumiam a monólogos inspirados de Rogério que podiam ter como tema Proust Mozart Heidegger Villa Lobos ou Lota Macedo Soares todos esses autores e personagens cuja intimidade eu não tinha sequer ambição de partilhar bastandome a felicidade de ouvir Rogério sobre eles pois embora eu Lessa Sartre e Fernando Pessoa e Lorca e Drummond eu cria que o conhecimento daqueles outros era da responsabilidade de gênios como Rogério ou de grandes e sisudos eruditos Mas Dedé que arranjara um emprego num jornal fora escalada para escrever uma matéria sobre fotonovelas Como por um lado ela não tivesse treinamento redacional adequado e por outro desprezasse e desconhecesse as fotonovelas pediu ajuda a Rogério Os argumentos que ele usou contra os preconceitos de Dedé em relação àquela forma de literatura levaramno a expor teorias diversas a respeito de manifestações culturais tidas como lixo Foi desse modo que Rogério me conduziu até Edgar Morin na verdade bem antes que Zé Agrippino me aparecesse pela primeira vez As idéias de Morin de imediato excitaram minha imaginação Zé Agrippino quando finalmente entrou em cena só fez aumentar essa excitação e levar minha imaginação mais longe revelando interesse pelo rock em detrimento da MPB afirmando que Chacrinha o espalhafatoso e original apresentador da TV brasileira era a personalidade teatral mais importante do país antevendo uma liberdade selvagem em meio à sociedade tecnológica Assim eu assisti a Terra em transe com a mente assombrosamente aberta a grandes expectativas de mudanças Se eu me identifiquei com Rogério logo ao conhecêlo foi porque minha situação entre meus colegas de esquerda na Universidade da Bahia fora semelhante à dele entre seus amigos da UNE no Rio Sem que desse motivos para confrontos do tipo que ele teve que enfrentar minha atitude reticente em face das certezas políticas de meus amigos suscitava neles uma irônica desconfiança Eu era um desses temperamentos artísticos a que os mais responsáveis gostam de chamar de alienados Minhas relações com os colegas de esquerda eram até mesmo ternas Mas o primeiro artigo longo que escrevi em minha vida muito mais longo do que qualquer crítica de cinema que eu tenha escrito antes foi uma catilinária contra o livro de José Ramos Tinhorão sobre música popular Este era um ensaio de sabor sociológico em que a bossa nova aparecia por um lado como submissão cultural ao modelo americano e por outro como apropriação indébita da cultura popular pela classe média Era a defesa articulada do ideário nacionalpopular que permeava todos os julgamentos dos esquerdistas brasileiros Escrevi o artigo para uma revista universitária porque achava intolerável que aquelas idéias fossem aceitas sem discussão pelos alunos mais inteligentes da universidade Eu sabia que a bossa nova era outra coisa e uma coisa preciosa para todos nós e produzi o texto como uma atitude de luta eu o queria uma intervenção eficaz na formação das mentes das pessoas com quem convivia A política propriamente dita que se manifestava na forma de campanhas para a presidência do diretório acadêmico de discussões em assembléias e de opiniões formadas sobre homens públicos cujos nomes e rostos eu mal podia lembrar me entediava Claro que as idéias gerais a respeito da necessidade de justiça social me interessavam e eu sentia o entusiasmo de pertencer a uma geração que parecia ter diante de si a oportunidade de mudar profundamente a ordem das coisas Mas a expressão ditadura do proletariado soava mal aos meus ouvidos Quando descreviam minha reação como um desvio pequeno burguês creio que eles estavam em certa medida com razão Não era apenas a palavra ditadura que eu rejeitava proletariado não me parecia propriamente estimulante eu via a pobreza miseravelmente desorganizada à minha volta e o proletariado dos artigos e dos discursos parecia formado por operários de capacete E operário de capacete era uma novidade que em Santo Amara onde eu continuava passando as férias de verão aparecera recentemente com a Petrobrás para a alegria de muitos jovens que em comparação com a vida que levariam não fosse por isso sentiamse ricos com os salários que lhes permitiam renovar as fachadas das casas o que destruiu em pouco tempo grande parte do tesouro arquitetônico do recôncavo Mas embora me sentisse dividido quanto ao que pensar ou mesmo sentir diante da descaracterização de minha cidade pois que de um Lado eu sentia saudade da unidade visual a que me acostumara mas de outro eu próprio tinha o desejo das casas modernas taqueadas e até mesmo sonhava em morar num apartamento novo e retilíneo que me livrasse do peso daqueles casarões cobertos de limo em meio aos quais eu nascera e crescera pareciame que um apartamento de ar impessoal traria alegria e liberdade à minha vida eu me sentia em questões para mim fundamentais muito mais longe do pequenoburguês do que os meus críticos eles nunca discutiam temas como sexo e raça elegância e gosto amor ou forma Nesses itens o mundo era aceito tal e qual Os homens eram substituídos pelos assalariados e como já disse assalariado era entre os mais pobres raridade desejável Eu sinceramente não achava que os operários da construção civil em Salvador ou os poucos operários das fábricas reconhecíveis como tais ou ainda os comparativamente muitos operários da Petrobrás tampouco as massas operárias vistas em filmes e fotografias pudessem ou devessem decidir quanto ao futuro da minha vida Portanto quando o poeta de Terra em transe decretou a falência da crença nas energias libertadoras do povo eu na platéia vi não o fim das possibilidades mas o anúncio de novas tarefas para mim PAISAGEM ÚTIL Rogério mudouse de Santa Teresa para o Solar da Fossa Duda estava morando comigo no meu quarto e do outro lado do corredor viviam o grande compositor cantor e violonista Paulinho da Viola e o letrista e escritor Abel Silva Creio que Paulinho o mais profundo e refinado defensor do samba tradicional carioca foi a primeira pessoa a ouvir uma canção tropicalista mostreilhe Paisagem útil logo que a compus e ele na sua nobreza viu naquilo algo diferente de tudo algo de que ele não podia propriamente gostar mas que reconhecia como íntegro em si mesmo como que pertencente a uma outra dimensão E ele me disse quase textualmente isso que acabei de escrever com uma clareza e uma elegância que me desarmaram como era possível que ele reconhecesse o teor da novidade que havia naquela canção e não demonstrasse nem entusiasmo nem revolta A reação de Paulinho um jovem exatamente da minha idade que eu admirava apaixonadamente me tranqüilizou mas foi como um balde de água fria Entre Paisagem útil e Alegria alegria eu passei meses ponderando sobre a força do projeto que se esboçava dentro de mim A firmeza tranqüila com que Paulinho reagiu a Paisagem útil que já desde o título uma inversão de Inútil paisagem o belo samba bossa nova de Tom Jobim revelava seu aspecto metalingüístico e paródico definiu de imediato a posição que ele manteria em relação ao tropicalismo tanto no seu período polêmico quanto no seu pósguerra Paisagem útil foi composta basicamente em ritmo de marcha rancho um tipo de marcha de Carnaval arrastado e solene que era a base de suntuosos desfiles os ranchos num tempo em que as escolas de samba ainda eram blocos modestos e desorganizados com uma melodia que mais parecia uma colcha de retalhos de frases musicais da tradição sentimental brasileira quando um ano depois vim a gravar essa canção imitei os estilos vocais de conhecidos cantores de serestas e uma letra que era a descrição em imagens fortemente visuais do parque do Aterro do Flamengo a então ainda recente obra de alargamento da avenida de praia daquele bairro levada a cabo por Lota Macedo Soares destacando o efeito de quase ficção científica dos seus traços modernistas mas sem perder de vista a atmosfera urbana dos veículos em velocidade e dos habitantes atarefados culminando com a visão de fato documental de um anúncio luminoso da Esso que ao fim da pista de velocidade surgia entre os postes altíssimos frio palmeiral de cimento por sobre os prédios do centro da cidade A canção se encerra com o acenderse dessa lua oval da Esso comovendo e iluminando o beijo dos pobres tristes felizes corações amantes do nosso Brasil A reação desapaixonada de Paulinho da Viola se a princípio me intimidou em pouco tempo revelouse paradigmática da forma de resistência que a história da música popular brasileira ofereceria ao tropicalismo Embora não premeditada essa estréia tropicalista exclusiva para Paulinho da Viola significou para além das minhas pretensões nascidas do diálogo com RogérioAgrippino uma conversa direta entre agentes da história da nossa música uma verificação das forças reais que se enfrentariam em futuros embates ações conjuntas desacertos e mutirões Bethânia depois de um recesso na Bahia onde ela se refez das pressões descaracterizadoras decorrentes do sucesso de Carcará estava de volta ao Rio e numa estratégia concebida em conjunto com o empresário Guilherme Araújo apresentavase numa boate de Copacabana cantando os sambascanções sentimentais de que sempre gostou e a que emprestava forte carga dramática Esse show tornouse um grande sucesso da noite carioca e Bethânia somou uma imagem de figura de culto à grande popularidade que conhecera logo de seu lançamento nacional o que a colocou no caminho certo para tornarse a diva que ela é até hoje Datam desse período suas aparições usando peruca de cabelos lisos e o pedido explícito que me fez para que eu nunca mais opinasse sobre como ela deveria orientar seu trabalho ou sua vida Esse pedido representava o golpe de misericórdia na responsabilidade sobre ela que meu pai tinha me outorgado e significou para mim um considerável alivio Para ela era a emancipação oficial Em conseqüência embora eu a visse toda noite por grande parte do tempo que durou sua primeira temporada na boate que a principio se chamava Cangaceiro mas em breve passou a se chamar Barroco sem que nem um nem outro nome determinasse de forma alguma o estilo de música que se ouvia ali a convivência entre mim e Bethânia se rarefez consideravelmente Guilherme Araújo me dera a incumbência de fiscalizar a produção do show ou seja cuidar para que tudo estivesse em ordem com os músicos a própria Bethânia o som a luz etc na hora de ela entrar em cena Lembro que Dedé ia comigo mas não tinha permissão de entrar por ser menor de idade tinha dezessete anos e ficava na porta esperando por mim Edu Lobo freqüentemente lhe fazia companhia em frente à boate ou nas suas imediações não raro eles ficavam sentados na beira da calçada até que eu pudesse sair Sandra a bela irmã mais velha de Dedé que viera ao Rio passar uma temporada aparentemente era o estímulo extra para mais esse gesto de generosidade por parte de Edu ela vinhaquase sempre acompanhando Dedé e em breve Edu já lhe fazia a corte no que não foi de todo malsucedido O mais importante baterista da história do samba moderno Edson Machado estava tocando com Bethânia assim como o pianista Osmar Milhito entre outros músicos todos muito bons todos jazzísticos e todos oriundos do Beco das Garrafas Bethânia não é em nenhum aspecto uma cantora jazzística Mas sua chama pessoal o sucesso que o show fazia e o mero gosto de tocar na noite não permitiam que esses músicos se sentissem entediados por estar tocando temas que lhes podiam parecer antiquados e ainda por cima arranjados de modo a produzir antes um efeito dramático do que uma exibição de musicalidade No entanto foi por essa época que aprendi que os instrumentistas se referem aos cantores jazzísticos ou não como canários ou sinos sempre em tom pejorativo Se Bethânia não queria meus conselhos ofereciame agora em nossas conversas uma versão mais consciente e explícita do seu modo típico de me ensinar sobre a vida Nossas conversas eram mais raras mas eram mais francas e por parte dela mais intencionais Assim foi que ela me chamou a atenção para o programa de Roberto Carlos na TV Eu freqüentava umas interessantes sessões semanais de MPB promovidas por Cléber Santos no Teatro Jovem no Mourisco Cléber é que tinha me indicado o Solar da Fossa como opção de moradia Nessas noitadas do teatro que ele dirigia compositores conhecidos mostravam canções inéditas e novos talentos se apresentavam Ali se ouvia música e se discutia sobre a produção de música sobre a profissão dos músicos e sobre os problemas estéticos da música pós bossa nova Sambistas tradicionais dos morros e estrelas da bossa nova podiam se encontrar no palco e na platéia Figuras como o filólogo Antônio Houaiss que nos anos 90 veio a ser ministro da Cultura e o apresentador Sargentelli que nos anos 70 e 80 se tornou famoso com seus shows de mulatas para turistas atuavam como mediadores A ênfase caia quase sempre na defesa das nossas tradições nacionais contra a internacional americanização Claro que eu contrapunha dentro de mim o que ouvia às idéias que me vinham de Rogério e Agrippino A própria postura de Cléber Santos e da turma do Teatro Jovem era de flexibilização das posturas ortodoxas da esquerda nacionalista E também não havia debate cultural ou político que escapasse das paródias caricaturais de Terra em transe Mas sempre podia aparecer alguém simplesmente maravilhoso que estivesse ou se pusesse acima de minhas dúvidas Um garoto judeu pernambucano de cara fechada e cabeça raspada pareceu ser esse alguém Com um ar de angryyoungman cantando uma canção sobre uma retirante nordestina demasiado individualizada para representar o povo do Nordeste ou os pobres com uma melodia diferente de todas as estilizações que a música de forte sabor modal daquela região do Brasil vinha sofrendo ele causou o único impacto de todas aquelas noitadas Um outro músico judeu muito talentoso Sidney Weissman esfriou meu entusiasmo com a revelação de que a suposta originalidade de Franklin Dario era esse o nome do garoto se devia unicamente ao fato de ele se apropriar de temas folclóricos judaicos A sua canção mais sedutora porém Ana foi embora foi logo gravada por Nara e a meu ver seu encanto resiste até hoje embora o que Weissman me disse então tenha se confirmado em larga medida o que mostra também o quanto eu era ignorante Franklin Dario só apareceu no Teatro Jovem duas ou três vezes tendo declarado que não queria fazer carreira ou tornarse conhecido pois nem sequer continuaria morando no Brasil queria ir para Israel e tornarse soldado para lutar pela defesa daquele país Ele de fato mudouse para Israel e ninguém nunca mais soube dele No início dos anos 80 quando me apresentei em Tel Aviv procurei noticias suas entre as comunidades de judeus brasileiros ali e nada encontrei Todas as discussões dentro ou fora do Teatro Jovem eram permeadas pelas idéias de arte nacionalpopular cultivadas desde antes do golpe de Estado no Centro Popular de Cultura da UNE e pelas exigências estéticas dos harmonicamente sofisticados filhos da bossa nova Bethânia cujo nãoalinhamento com a bossa nova a deixava livre para aproximarse de um repertório variado me dizia explicitamente que seu interesse pelos programas de Roberto Carlos que ela me convidava a partilhar se devia à vitalidade que exalava deles ao contrário do que se via no ambiente defensivo da MPB respeitável Era excitante imaginar quão escandaloso seria revelar no ambiente do Teatro Jovem interesse pela Jovem Guarda E de fato algum tempo depois os participantes daquelas reuniões reagiram com maior indignação ao fato de a bossanovista Sylvia Telles ter cantado num show estudantil em São Paulo uma canção de Roberto Carlos do que à vaia com que os estudantes paulistas puniram a ousadia da cantora Gil que estava em São Paulo mantendo mulher e duas filhas pequenas com um emprego na Gessy Lever aparecia com freqüência no programa O Fino da Bossa liderado por Elis Regina Esse programa era o maior sucesso da televisão brasileira e nascera da sagacidade empresarial dos donos da TV Record de São Paulo Paulo Machado de Carvalho e seus filhos em perceber o apelo de público o potencial de audiência e prestigio que a música popular representava no Brasil O jovem produtor Solano Ribeiro idealizador do primeiro festival da canção que teve lugar na concorrente TV Excelsior de São Paulo em que Elis explodiu cantando Arrastão de Edu Lobo e Vinicius de Moraes encontrara depois da breve mas promissora experiência na Excelsior a receptividade dos empresários daquela outra emissora e inaugurara ali um estilo de programa que influenciaria tanto a televisão quanto a música A idéia dos concursos de canções os festivais tinha sido emprestada do Festival de San Remo na Itália mas no Brasil pelo que se viu nessa primeira experiência ganharia características diferentes e um outro peso Depois da bossa nova passarase a levar música popular muito a sério no Brasil E isso em todos os sentidos dos aspectos propriamente musicais e literários aos políticos havia uma atitude pretensiosa e responsável em toda atividade ligada à canção Lembro de uma noite no Cervantes em que o prestigiado diretor teatral Flávio Rangel ao me reconhecer sentado a uma mesa próxima à sua e comentando minhas canções Um dia e Boa palavra que ele dizia considerar demasiadamente palavrosas gritavame com sua voz fininha e sem o menor pudor de parecer despropositado Há que ler Ezra Pound há que ler Ezra Pound eu próprio não sabia bem quem era Ezra Pound de quem vim a ouvir falar com incrível freqüência a partir do momento um pouco mais tarde em que travei conhecimento com os chamados poetas concretos de São Paulo mas todos os presentes tanto à minha mesa quanto à dele reagiram como quem soubesse tratarse de um nome digno de reverência O Arrastão de Elis tinha apresentado de forma televisiva uma eficientíssima síntese das ambições políticas da ala populistanacionalista com as experimentações jazzísticas da ala do Beco das Garrafas Comparado ao de Nara Sylvia Telles Carlos Lyra e sobretudo João Gilberto o estilo de Elis parecia enfático e extrovertido Mas ao contrário do que acontecera com Bethânia com Elis o drama e os grandes gestos voltavam à MPB via televisão e não via teatro Ela possuía uma voz limpa e brilhante e sua segurança em termos musicais impressionava A canção Arrastão revisitando a temática caymmiana de crônica da vida de pescadores pobres dava continuidade ao trabalho de estilização da música nordestina que vinha sendo desenvolvido por Edu Lobo o jovem carioca filho de nordestino que era o autorcantor do momento O pernambucano Fernando Lobo seu pai foi um excelente ainda que pouco profícuo compositor responsável por algumas obras primas dos anos 40 e 50 inclusive uma parceria com o próprio Caymmi As canções de Edu apresentavam a novidade de trazer de volta uma dimensão épica à música brasileira moderna o que produzia forte impressão de contraste com o intimismo lírico da bossa nova Mas embora representassem também a ressurreição dos sabores regionalistas essas canções não regrediam tecnicamente a primarismos harmônicos ou simplismos melódicos folclóricos prébossa nova Ao contrário Edu já era então o que tem sido até hoje um sofisticado harmonista um melodista inventivo e um estilista de forte marca pessoal Em Arrastão como em muitas outras composições suas da época inclusive as canções de Arena conta Zumbi o desejo de sair do apartamento para os grandes espaços do individual para o social do urbanismo neutro para o particularismo regional desejo que vinha filtrado por uma técnica de composição avançada levavao muitas vezes para mais perto de Hollywood do que seria aconselhável mas sem que isso chegasse a ameaçar a força de sua música rica e consistente O modo como Elis a apresentou na Tv pontilhada de convenções rítmicas que ela frisava com movimentos de quasedança excessivamente destros e a que não faltava um triunfal desdobramento de andamento no final talhou um estilo tremendamente eficaz de apresentação de música sofisticada na TV que fez dela uma grande estrela de massas com alta respeitabilidade técnica Sem deixar de entusiasmarme com seu evidente talento eu um joãogilbertiano radical me agastava com a vulgaridade dos efeitos jazzísticos précool e com a expressão corporal treinada pelo dançarino americano radicado no Brasil Lennie Dale O Fino da Bossa inspirado nos famosos espetáculos universitários de bossa nova promovidos por Walter Silva o PicaPau e musicalmente calcado nos shows do Beco das Garrafas de Copacabana onde brilharam Wilson Simonal Leny Andrade Edson Machado e tantos instrumentistas excelentes e onde Elis fez sua transição de cantora comercial de pop romântico de baixo nível para cantora do que se chamava de sambajazz era ambiente propício para um talento como o de Gil um compositor inspirado dono de exuberante técnica violinística e de um ouvido prodigioso que o capacitava a improvisar em scats comparáveis aos de Ella Fitzgerald Ele por causa de sua presença no Fino da Bossa tornarase consideravelmente conhecido e a pouco e pouco afastavase do emprego na Gessy Lever e acercavase da vida de artista DOMINGO Eu próprio que a essa altura não via para mim outra vida que não fosse uma vida de artista vira surgir a oportunidade de gravar um LP Edu que tinha me recebido com carinho desde o dia em que cheguei de Salvador num ônibus falava com interesse sobre minhas canções Dori Caymmi que eu conhecera na Bahia num passeio seu pela terra do pai Dorival e Francis Hime que me fora apresentado por Edu e Dori também demonstravam entusiasmo pelo que eu parecia prometer Eram todos jovens da minha idade e punham a curiosidade e o desejo de enriquecer o ambiente musical brasileiro à frente das ambições egóticas Eram naturalmente generosos e excitavamse com a relativa novidade que esse grupo de baianos apresentava Falavase de nós A afinação e a beleza de emissão de Gau era assim que escrevíamos o apelido só usado pelos muito íntimos até que Guilherme Araújo mudou a grafia para Gal pois a maioria das pessoas ainda a chamava de Gracinha eram tão cultuadas quanto a sua timidez Suponho que foi o próprio Dori que afinal produziu o disco quem convenceu João Araújo então diretor artístico da Philips atual PolyGram e hoje chefão da Som Livre o selo vinculado à TV Globo a fazer um LP reunindo Gal e eu Nós gravávamos de manhã horário reservado aos iniciantes e especialmente inapropriado para mim que sempre dormi tarde e demoro a me sentir inteiramente acordado Mas embora o sentimento dominante fosse o de frustração permanente alguma coisa do disco me agradava desde a feitura Mais que tudo os arranjos de Dori e seu jeito de tocar violão A voz de Gal naturalmente em quase tudo E até minha própria voz em Um dia e com reservas em Coração vagabundo Enquanto eu e Gal gravávamos esse disco que veio a se chamar Domingo Rogério e eu projetávamos um repertório para Gal que superasse tanto a oposição MPBJovem Guarda quanto aquela outra oposição mais profunda que se dava entre bossa nova e samba tradicional ou ainda entre música sofisticada moderna fosse bossa nova sambajazz canção neoregional ou de protesto e música comercial vulgar de qualquer extração versões de tangos argentinos boleros de prostíbulos sambascanções sentimentais etc Guilherme Araújo que se apaixonara pela força expressiva de Bethânia desde a primeira noite no Teatro Opinião quis passar da condição de mero produtor de espetáculos à de verdadeiro empresário e viu no grupo de amigos de Bethânia um possível elenco de contratados à altura de suas pretensões Guilherme era um personagem fascinante Prognata de braços finos e ombros estreitos ele que com sua feiúra combinada a um ar imodesto tinha tudo para ser repulsivo terminava por cativar quem quer que transpusesse a barreira do primeiro impacto e realmente dele se aproximasse Havia uma espécie de nobreza no seu jeito franco de emitir opiniões originais sobre o mundo dos espetáculos Ele repetia sem cessar um elogio a Bethânia que era uma síntese do seu critério Internacional meu querido Ela é a mais internacional de todas as artistas brasileiras Para ele nós os outros baianos éramos a confirmação do que ele vira em Bethânia Éramos chiques e modernos e poderíamos ser internacionais Mas embora ele tenha vindo a trabalhar de fato com todo o grupo e tenha permanecido ao lado de Gil de Gal e meu por muitos anos depois que Bethânia se desligou dele sempre me pareceu evidente que nenhum de nós jamais chegou a impressionálo como Bethânia o fez Ele abriu um escritório em Copacabana para dali dirigir os trabalhos e começou a fazer planos para seus novos contratados Convidou Dedé para ser sua secretária Ela que depois de uns meses num banco e outros num jornal estava precisando de emprego aceitou Guilherme estava seguro quanto a Bethânia e Gil cujas vidas profissionais tinham deslanchado Mas não via nenhuma possibilidade de eu subir num palco para cantar e viver disso Eu respondia com uma segurança que o fazia rir incrédulo que eu tinha certeza de ter talento para palco ou o que fosse mas o fato é que o que ele considerava a única saída possível para mim era o mesmo que eu me imaginava fazendo orientar os colegas escrever canções e roteiros para seus shows escrever releases para seus discos Quanto a Gal esta sim devia viver de cantar e ele via mesmo um futuro radioso para ela na profissão bastava que nós todos víssemos que com sua voz lindíssima e sua figura doce ela poderia tornarse uma espécie de nova rainha do iêiêiê Não uma cantora comercial qualquer mas uma nova forma de cantora comercial uma superWanderléa com um repertório inteligente Isso ele dizia e sorria de nossa reação temerosa e desconfiada Sobretudo Dedé para quem Gal era uma quaseirmã temia que Guilherme viesse a atirála na mais degradante vulgaridade O curioso é que os planos de Guilherme para Gal eram afinal de contas muito semelhantes aos que Rogério e eu estávamos a ponto de lhe propor Eu nada dizia a Guilherme sobre isso pois tinha medo de enfraquecer minha resistência a suas idéias mais frívolas ou de contaminar a nobreza de propósitos do projeto rogeriano com o que corria o risco de ser mero comercialismo empresarial Uma discussão paradigmática desses conflitos sutis foi a que envolveu o nome artístico de Gal Seu nome de batismo é Maria da Graça Costa Penna Burgos Desde Salvador escrevíamos Maria da Graça nos cartazes e nos programas dos shows do Vila Velha e a chamávamos de Gracinha no diaadia e carinhosamente de Gau Havia e há milhares de Gaus na Bahia é o apelido carinhoso de todas as Marias das Graças ou da Graça de lá Na verdade no caso da nossa Gal Maria da Graça era apenas o nome que constava na carteira de identidade e era usado como nome artístico para todos os efeitos seu nome era Gracinha assim é que nos referíamos a ela em presença de estranhos assim é que a apresentávamos a novos amigos Na intimidade no entanto nós a chamávamos de Gau Guilherme achava Maria da Graça inviável como nome de cantora Ele concordava que era belo e nobre mas sugeria uma antiga intérprete de fados portugueses não poderia servir para uma cantora moderna muito menos e aqui ele voltava a sorrir diabolicamente para uma nova rainha do iêiêiê Ele gostava de Gau Nós também Em primeiro lugar porque era seu nome real isso era fundamental para nós e depois porque era bonito e fácil de aprender além de ser marcante uma vez que no Rio e em São Paulo pelo menos esse não era um apelido comum como na Bahia Mas havia dois problemas Guilherme achava vulgar e pobre artista de nome único para ele era indispensável um sobrenome se o nome não fosse composto e mesmo os nomes compostos raramente eram aceitáveis Maria Bethânia era é claro uma exceção genial e Gau escrito assim com u parecialhe pesado e pouco feminino Como em quase todo o Brasil Gal e Gau têm pronúncia idêntica achamos praticamente indiferente que a grafia fosse a escolhida por ele que se referia a uma cantora francesa chamada Francis Gal como exemplo Restava a questão do sobrenome Gal Penna Gal Burgos Guilherme não sem razão preferiu Gal Costa Este era mais eufônico do que os outros dois Ele não ousava sair dos nomes verdadeiros por saber de nossa intransigência quanto a isso Mas eu não gostei Eu achava que já tinha concedido o bastante em aceitar o l que ele aceitasse o nome único Gal simplesmente era a melhor solução Mas ele insistiu no sobrenome e eu disse que Gal Costa parecia nome inventado parecia nome de produto parecia nome de pasta de dentes e finalmente se Gau não era suficientemente feminino Gal era abreviatura de general Com a subida do general Costa e Silva ao poder em substituição ao marechal Castelo Branco Gal Costa passava a ser homônima do segundo presidente do período militar Mas a própria Gal de quem afinal devia ser a última palavra aceitou o nome e ele funcionou muito bem com a imagem pop que se criou para ela Até hoje me irrita ouvir alguém comentar que Gal Gosta é um nome criado e que o verdadeiro nome dela é Gracinha ou Maria da Graça Gal ou Gau sempre foi mais seu nome do que Maria da Graça e só quem não a conhecia de perto é que pensa que seu nome íntimo era Gracinha e no entanto esse nome Gal Costa teve sabor de coisa inventada para mim mais do que para qualquer outro Hoje que todos a chamam simplesmente de Gal fico inteiramente em paz com essa história é seu nome seu nome verdadeiro e é um nome baiano profundamente autêntico e revelador da cultura particular do recôncavo da Bahia e da Cidade do Salvador além de ser bonito sonoramente e o modo mais carinhoso de se a chamar É como queria Guilherme internacional e pop mas é pessoal e regional até a ponta da raiz É um lance de poesia profunda feito de acaso e equívocos que serve como síntese do drama tropicalista Mas na altura eu que hoje o amo mais que ninguém fui quem mais reagiu contra esse nome Lembro de comentar com Rogério a discussão e ouvir dele a declaração de que sempre estaria no extremo oposto de Guilherme de quem se sabia fatal antípoda É impossível que o que ele planeja seja o mesmo que eu planejo pois ele é o empresário e eu sou o desempresário Contudo e apesar de falar com alguma ira na voz ele se esforçava para me fazer entender que ele pensava mais numa dialética necessária ao processo ou melhor ainda numa complementaridade do que numa competição que implicasse inimizade reles O mais bonito de tudo foi que Roberto Carlos e Erasmo Carlos atendendo a um pedido de fazer uma canção para o primeiro disco tropicalista que ela gravou apresentaram Meu nome é Gal em que sem nada saberem das exigências de Guilherme insistem no apelido monossilábico e num texto escrito para ser declamado por ela frisam que não precisa sobrenome pois é o amor que faz o homem Gal tinha vindo da Bahia como eu na esteira de Bethânia e Gil para tentar profissionalizarse Ela nunca tinha querido nada em sua vida a não ser cantar Eralhe inimaginável querer ser outra coisa que não cantora Gil formarase em administração e exercia a profissão Bethânia sonhara em ser atriz e chegara a escrever contos e fazer esculturas de madeira e cobre eu já fora pintor quisera ser professor e ainda queria ser cineasta mas ela seria cantora ou nada mais Desde criança Dedé contava Gal usava as panelas da cozinha para fazer o som de sua voz voltar ampliado aos seus próprios ouvidos e assim poder exercer melhor controle sobre a emissão como se estivesse num estúdio de gravação Todos os jovens músicos encantavamse com sua voz e a colaboração com eles na feitura de Domingo estava sendo muito boa Edu compôs uma canção no estilo do grupo baiano isso era um grande elogio pois o que ele compôs era enormemente mais requintado harmonicamente do que tudo o que fazíamos uma canção chamada Candeias sobre lembranças de suas férias pernambucanas para ela gravar no nosso disco e até hoje considero essa a melhor interpretação de Gal nesse primeiro trabalho Para mim tudo se fazia possível no estúdio minha timidez não era grande demais porque eu já estava mergulhado nos novos projetos que me distanciavam do material que gravávamos Conversando com Rogério e Agrippino discutindo com Guilherme ouvindo os conselhos de Bethânia sobre Roberto Carlos ouvindo o próprio Roberto Carlos vendo Terra em transe e Chacrinha compondo Paisagem útil e Alegria alegria eu cantava as canções de Domingo com considerável desassombro Ainda assim quando ouço hoje esse disco me espanto com o atraso com que ataco as notas e me irrito com a lentidão mental que isso revela Quando estou de bom humor atribuo isso ao horário matinal das sessões de gravação Domingo já devia estar pronto quando Gil que tinha deixado a Gessy Lever e se mudara com mulher e filhas para o Rio recebeu um convite de não sei quem em Pernambuco para fazer uma temporada de apresentações no Recife Guilherme foi com ele Quando os dois voltaram Gil estava transformado Talvez os muitos dias longe da família e ele era então um estreante naquela solidão de viagem que excita a mente o tivessem deixado mais sensível e receptivo aos estímulos do caráter cultural pernambucano às insinuações da singularidade da nossa situação de brasileiros sob um governo militar que odiávamos às contradições dos nossos projetos profissionais O fato é que ele chegou no Rio querendo mudar tudo repensar tudo sem descanso exigia de nós uma adesão irrecusável a um programa de ação que esboçava com ansiedade e impaciência Ele falava da violência da miséria e da força da inventividade artística era a dupla lição de Pernambuco da qual ele queria extrair um roteiro de conduta para nós A visão dos miseráveis do Nordeste a mordaça da ditadura num estado onde a consciência política tinha chegado a um impressionante amadurecimento o governo de Miguel Arraes tinha sido até sua prisão e deportação em 64 o mais significativo exemplo de escuta da voz popular e onde as experiências de arte engajada tinham ido mais longe e as audições de mestres cirandeiros nas praias mas sobretudo da Banda de Pífanos de Caruaru um grupo musical de flautistas toscos do interior de Pernambuco cuja força expressiva e funda marca regional aliavamse a uma inventividade que não temia se auto proclamar moderna a peça que mais nos impressionou chamavase justamente Pipoca moderna deixaramno exigente para com a eficácia de nosso trabalho Ele dizia que nós não podíamos seguir na defensiva nem ignorar o caráter de indústria do negócio em que nos tínhamos metido Não podíamos ignorar suas características da cultura de massas cujo mecanismo só poderíamos entender se o penetrássemos Diziase apaixonado por uma gravação dos Beatles chamada Strawberry fields forever que a seu ver sugeria o que devíamos estar fazendo e pareciase com a Pipoca moderna da Banda de Pífanos Por fim ele queria que fizéssemos reuniões com todos os nossos bemintencionados colegas para engajálos num movimento que desencadearia as verdadeiras forças revolucionárias da música brasileira para além dos slogans ideológicos das canções de protesto dos encadeamentos elegantes de acordes alterados e do nacionalismo estreito Nada disso era propriamente novo para mim exceto que tudo viesse assim de uma vez e tão sistematizado Não deixava porém de ser surpreendente que partisse de Gil Na verdade não só muito do que ele falava já estava nos meus projetos nunca realizados com Rogério para Gal na minha Paisagem útil e nas conversas de Guilherme como o próprio Gil já vinha produzindo com José Carlos Capinan uma série de canções prototropicalistas para o filme Brasil ano 2000 de Walter Lima Jr um projeto larga e fundamente influenciado por Terra em transe O modo como Walter encomendou as canções a própria idéia do filme faziam com que o que Gil e Capinan escreviam tivesse características do futuro movimento Mas agora Gil vinha com uma clareza e uma veemência que quase assustavam pois apesar de ter tido sempre mais interesse em política do que eu Gil é de ordinário adaptável e mesmo passivo Guilherme Araújo que tinha ido com ele para Recife certamente aproveitara a oportunidade de estarem os dois a sós para espicaçar a ambição artística de Gil Sim porque Guilherme deve ser visto não apenas como um empresário com senso de oportunidade mas talvez sobretudo como um jovem de temperamento criativo cujo sonho de mudar a face do show business brasileiro via no grupo baiano sua possibilidade de realização Ele foi de fato um coidealizador do movimento Suas habilidades propriamente empresariais foram sempre muito discutíveis embora aí também ele mostrasse originalidade e se tornaram bastante desastradas com o passar do tempo mas seu desejo de deixar uma marca indelével na história do entretenimento no Brasil realizouse plenamente Gil parecia antes ter usado esse empurrão dele como um detonador e um pretexto para extravasar seus próprios desejos De repente Guilherme agia como quem cumpre uma missão Sem um segundo de hesitação e já tendo me convencido a dar tanta atenção aos Beatles quanto a Roberto Carlos ele procurou todos os nossos colegas mais próximos e com os quais mais nos identificávamos e marcou reuniões para conversas Sérgio Ricardo que tinha feito a trilha sonora de Deus e o Diabo na Terra do Sol e se tornara um dos mais militantes dos compositores saídos da bossa nova Carlos Lyra tinha se mudado para o México mostrouse o mais interessado e combinouse que a primeira reunião seria em sua casa Suponho que só houve duas dessas reuniões Capinan Torquato Neto Sidney Miller Edu Chico Buarque e eu além de Sérgio Ricardo e Gil estávamos presentes a ambas Talvez Francis Hime e Dori tenham ido a uma ou outra Ou às duas Não estou certo O que lembro com clareza é que se por um lado Chico boêmio e desconfiado de programas embriagavase e ironizava o que mal ouvia Sérgio Ricardo tomava algumas palavras de Gil pelo que este não quereria que elas fossem tomadas por exemplo ser realmente popular levavao a sugerir que fizéssemos shows em portas de fábricas Gil tinha enormes dificuldades de se fazer entender Quando ele mencionava a música rural de Pernambuco quase se ouvia alguém responder que Edu já trabalhava com isso satisfatoriamente e quando ele falava nos Beatles alguns olhos baixavam outros arregalavamse todas as bocas silenciavam Ele não ousava falar em Roberto Carlos E depois de uma pausa tensa alguém se manifestava para tentar mostrar que entendera tratarse de uma estratégia esperta e um tanto desonesta mas fadada ao fracasso a qual consistiria em fazer uma música mais comercial para assim poder melhor veicular idéias revolucionárias Enfim Gil não chegou a desistir de se fazer entender pois os outros é que desistiram de tentar seguilo Restavanos seguir sozinhos Mas quem éramos nós Gil é claro e eu que naturalmente contaríamos com a participação de Gal para servir de intérprete e musa inspiradora além de Guilherme comprando e vendendo nossas idéias Bethânia Ela havia sido uma das pioneiras dos deslocamentos das canções de brega do mais rasteiro sentimentalismo agressivo e ao mesmo tempo recomendara Roberto Carlos era uma companheira óbvia Mas as coisas agora tinham mudado Com a chegada de Gil de volta do Recife todos os pontos dispersos e as tendências difusas se enfeixaram num projeto de movimento consciente e intencional que requeria uma espécie de militância E tanto Gil quanto eu conhecíamos o individualismo feroz de Bethânia e sabíamos que ela seria capaz de entender as mais densas das nossas idéias mas ainda assim mostrarse mais resistente a se deixar comprometer do que nossos colegas compositores que não tinham entendido nada O que afinal se passou foi que Bethânia ficou sempre ao par das nossas decisões e indecisões deu freqüentemente sua aprovação mas se manteve à parte defendendo a sangue e fogo sua individualidade Era a reafirmação de sua profunda inteligência em relação ao que costumamos chamar de vida Os outros dois companheiros naturais eram os poetas Capinan e Torquato José Carlos Capinan já era respeitado e famoso entre os universitários de Salvador antes de eu ingressar na Faculdade de Filosofia Lembro da tarde em que ele me foi apresentado em casa de Hélio Rocha um professor de sociologia que fora integralista tornarase esquerda católica e mantinha uma revista cultural chamada Afirmação cujos colaboradores eram jovens a quem ele gostava de receber para transmitir ensinamentos Eu tinha publicado um artigo sobre Hiroshima meu amor para a revista de Hélio e Capinan já vinha publicando poemas ali eu creio O fato de ele ser chamado sempre de poeta criara uma expectativa em mim de natureza quase sacra embora não fosse uma emoção intensa e sua figura franzina de menino amarelo e sardento do sertão tocantemente tímido mas eu próprio me sentia mais tímido me pareceu angelical ou essencialmente artística como se ele fosse a alma redimida do soldado amarelo do livro de Graciliano Ramos ou uma imagem de barro pintado representando um menino com uma gaiola de passarinhos feita por um artista do Nordeste Vi desde esse primeiro momento que eu gostaria dele sempre e que sempre seria difícil nossa comunicação ainda que sem conflitos Não havia identificação fácil em áreas da personalidade que servem à comunicação e havia demasiada identificação em regiões mais fundas e misteriosas ele tinha a desconfiada aridez do sertanejo que apreende tudo como se fizesse esforço e eu a doce receptividade do habitante do recôncavo que julga receber de graça os dons e as dores ambos no entanto estávamos apaixonados pelas palavras e pelas imagens invisíveis Capinan sempre estivera á minha esquerda digamos assim Atuante no CPC da UNE ele era o poeta revolucionário o poeta engajado da Bahia do inicio dos anos 60 Eu que olhava com certo descrédito tanto as certezas políticas que alimentavam seus poemas quanto a prática de fazer poemas nascerem de certezas políticas quaisquer que fossem entrevia em sua atmosfera pessoal e no que conhecia de seu trabalho alguma coisa que estava muito além disso Em suma ele me parecia um poeta de verdade e eu o considerava naturalmente superior a mim por isso a despeito de minhas reservas para com a poesia participante No momento de preparação do tropicalismo ele também já morando no Rio depois de algum tempo escondido para escapar à prisão em 64 estava amadurecendo os poemas que comporiam seu livro Inquisitorial em que o amor pelas palavras e pelas imagens invisíveis predomina sobre a retórica ideológica E quando isso acontece naturalmente a própria ideologia se complexifica e se adensa se transfigura Embora ele politicamente estivesse na posição de estranhar nossas novas idéias nunca se escandalizou com o que quer que disséssemos Perpassadas de um humor cáustico e irônico quase sádico suas conversas eram no entanto amenas e nunca desembocavam em discussão Ele antes tendia a complementar nossos raciocínios com enriquecedores corolários que por um triz não nos levavam para longe dos nossos interesses Ficava sempre a impressão de que ele entendera bem demais o que é o mesmo que dizer que ele não entendera Desse modo as conversas com ele ainda que pacificas não deixavam de ser algo tensas E tanto mais o eram quanto a cada passo ficava patente que seu inevitável distanciamento sua involuntária independência se devia à originalidade de seu projeto pessoal como poeta o qual crescia paralelo à sua atividade como letrista de musica popular Havia nele como que uma pureza que o punha acima das bossas elas manhas das malandragens comuns do ambiente boêmio que freqüentávamos E que ele passava muitas horas trabalhando seus poemas ou lendo extensivamente poetas vários eu adorava que ele me lesse poemas escolhidos de Miguel Hernández que antes disso eu só conhecia de nome citado num poema de João Cabral ou estudos sobre poesia relevantíssimo que ele me tenha querido atrair o interesse para um livro de dois irmãos paulistas poetas que não o entusiasmavam embora instigassem como ele me disse cujos nomes não guardei eram Augusto e Haroldo de Campos os líderes do movimento de poesia concreta surgido nos anos 50 e que viriam a ter participação intensa na história futura do tropicalismo embora nunca tenha esquecido o nome do autor que a dupla tratava de ressuscitar criticamente Sousândrade o singularíssimo poeta romântico maranhense cujo Inferno de Wall Street com suas estrofes capsulares e multilíngües seu tratamento dos aspectos materiais dos versos e suas imagens hermetizantes e inusitadas que antecipavam e até ultrapassavam alguns procedimentos modernistas Capinan me exibiu conseguindo causar viva impressão em mim sem contudo me fazer parar para estudar eu estava demasiadamente envolvido nos escândalos que eu próprio queria desencadear Ao contrário de Capinan Torquato Neto parecia entender imediatamente o que queríamos dizer mas estava sempre disposto a discutir Conversar com ele não representava para mim nenhuma tensão Tínhamos uma identificação fácil e as discussões eram amigáveis Ele me fora apresentado por Duda em Salvador aonde ele tinha vindo de sua Teresina natal para passar algum tempo antes de seguir para o Rio Também ele andava às voltas com um caderno cheio de poemas que um dia possivelmente seria um livro Torquato adorava Drummond e suas poesias eram francamente drummondianas Todas me pareciam bonitas elegantes soavam bem sensíveis e sóbrias delicadas e longas e não tinham a ingenuidade política de Capinan Mas a minha opinião sobre seus poemas não era diferente da sua própria era como se ele ainda não tivesse feito o primeiro E a ele faltava aquele comprometimento que fazia de Capinan um poeta talvez bom poeta talvez não tão bom mas um poeta Torquato não errava mas não estudava o bastante não se sentia gravemente responsável pela poesia Embora seu ouvido para os ritmos e para as rimas fosse muito mais espontaneamente sensível do que o de Capinan e a delicadeza de sua imaginação sempre parecesse mais fluente Vivíamos no mesmo mundo a comunicação entre nós era rápida e divertida Diferentemente dos baianos que tínhamos todos desenvolvido algum tipo de critica ao Rio de Janeiro Torquato adorava o Rio à maneira dos imigrantes tradicionais desejoso de afastarse rapidamente de sua província de origem e integrarse na vida carioca Ana a namorada com quem em breve se casaria uma mulher inteligente e de personalidade muito forte embora fosse baiana de nascimento tinha crescido no Rio e dizia rindo que odiava o sotaque que nós trazíamos de Salvador Torquato gostava de sentirse atuando na mesma cidade em que Antônio Maria atuara em que Otto Lara Resende atuava em que Rubem Braga atuava Sobretudo parecialhe um perpétuo milagre que ele vivesse na mesma cidade em que viviam Carlos Drummond de Andrade e Nelson Rodrigues Por vezes ele seguia um desses dois personagens na rua sem se deixar perceber assim ele acreditava e era como se tivesse participado clandestinamente de um ritual secreto O fato de um fotógrafo do centro da cidade exibir em sua pequena vitrine a ampliação de uma foto de Drummond enchiao de emoção Não sei bem por intermédio de quem ele foi introduzido nas reuniões da casa de Tereza Cesário Alvim de onde voltava com histórias sobre Paulo Francis e Flávio Rangel que lhe pareciam sempre mais saborosas do que a mim que o ouvia com agrado mais interessado nele do que no objeto dos seus relatos As vezes ele confessava que seu grande desejo era tornarse jornalista no Rio manter uma coluna Compraziase em pedir a todos os motoristas de táxi que o conduziam pela Zona Sul que tomassem a praia pois e aqui ele olhava sério para o motorista como se fosse a própria sensibilidade lírica desafiando o espírito prático é mais bonito Os motoristas cariocas metropolitanos práticos porém poéticos fingiam não ouvir esse último adendo e Torquato sorria maroto para mim duplamente feliz por fazer seu pequeno número de personagem folclórico da cidade e por reassegurarse de que essa cidade era o Rio de Janeiro Eu o adorava Nem com Duda nem com Rogério nem com Capinan muito menos com Zé Agrippino ou mesmo com Gil cujo cerrado companheirismo que nos unia nunca tomou a forma de uma amizade intima e confessional eu me sentia tão à vontade como com Torquato Ele bebia muito às vezes mostravase depressivo e terminou se suicidando fim de longa série de tentativas malogradas em 72 mas leveza é a palavra mais adequada para descrever a atmosfera que se instaurava para mim à sua aproximação Ele tinha feito parceria com Edu Pra dizer adeus uma linda canção da dupla tornouse como se diz um clássico e da segunda metade de 66 até mais ou menos o meio de 67 manteve estreita amizade com Chico Buarque que a essa altura já estava estabelecido no Rio com Marieta Severo Chico era meu camarada de noites bêbadas em São Paulo ao lado de Toquinho que não bebia antes de sua mudança para o Rio Eu ia a São Paulo participar de uma série de programas na TV Record na qual caí por acaso A canção Boa palavra que eu tinha escrito no primeiro semestre de 65 e à qual não dava muita importância terminou sendo classificada em quinto ou sexto lugar no festival da TV Excelsior e havia um prêmio Fiz algumas viagens a São Paulo para ir buscar esse prêmio era alguma coisa como uma passagem de ida e volta a Roma ou o dinheiro equivalente e eu queria o dinheiro equivalente pois pagava o aluguel do Solar da Fossa com os incertos direitos de De manhã mas nunca consegui receber nada Bethânia já na fase dos shows de boate tinha sido convidada para participar de um programa na Record chamado Esta Noite se Improvisa que consistia numa competição entre cantores e compositores a quem era dita uma palavra para que um deles aquele que com mais rapidez apertasse um botão que acendia um painel luminoso a seus pés cantasse uma canção que a contivesse Bethânia estava insegura pois embora fosse profissionalmente bom aparecer na TV Record ela não tinha jeito para esse tipo de brincadeiras e temia não acertar uma musica sequer Tentando mostrar a ela que aquilo era fácil na verdade era um jogo que fazíamos nas mesas do Cervantes muito antes da existência do programa sugeri que treinássemos eu dizia uma palavra e ela tentava lembrar uma música ela então dizia uma para que eu tentasse sempre crescendo em dificuldade de palavras freqüentes como flor ou coração até palavras raras como lancha ou considero Estávamos numa lanchonete próxima à TV Record onde Bethânia tinha de se apresentar para o ensaio Rimos muito pois enquanto Bethânia titubeava eu não só localizava cada palavra numa canção como quase sempre a sabia cantar inteira Um homem bonito e grisalho que estava sentado num banco alto junto ao balcão acabou de tomar o seu lanche pagou e se dirigiu a nós dizendo Eu sou Nilton Travesso produtor da TV Record como vai Bethânia e fazendo uma menção com o rosto em minha direção Quem é ele Travesso já sabia de minha existência por causa de De manhã e confirmado o que já suspeitava isto é que eu era o irmão de Bethânia que compunha canções ele me convidou ali mesmo para participar do programa Naquela mesma noite eu estreava na TV e a partir de então meu conhecimento de letras de canções brasileiras e minha memória se tornaram lendários Chico Buarque era meu maior competidor com uma vantagem seu repertório era extenso como o meu e sua memória igualmente fresca mas ele era ainda capaz de inventar na hora canções tão bem feitas que pareciam jóias da nossa tradição aos ouvidos dos responsáveis pelo programa Ganhamos vários automóveis Gordinis que vendíamos automaticamente sem sequer averiguar se perdíamos ou não alguma coisa nessa venda nos meses que se seguiram à minha estréia E eu fiquei além de famoso rico para os meus padrões Passei a ir quase semanalmente a São Paulo As noitadas com Chico e Toquinho eram deliciosas e com isso São Paulo deixou de ser o lugar detestável da minha primeira experiência Guilherme que a essa altura se dividia entre São Paulo e Rio e tentava nos convencer de que o Rio tinha sido ultrapassado alugara um apartamento na avenida Paulista onde me hospedava Chico tinha um carro e sabia tudo da cidade onde crescera e estudara Muitas vezes ele bebia demais e nós tínhamos que acordálo para que nos levasse de volta para casa Não nos dava medo o fato de ele ir praticamente dormindo até o assento do carro no qual uma vez dada a partida ele exibia uma destreza surpreendente Toquinho era um rapaz doce e sólido muito brincalhão mas sem malandragem o típico paulista que parece ingênuo aos olhos dos outros brasileiros Chico com seus lindos olhos verdes que fixavamse em nós com uma dureza diabólica era dono de um humor mais sádico do que o de Capinan Nessa época sua beleza era extraordinária mas entre angelical e demoníaca quase divina em todo caso não me parecia sexualmente atraente ao contrário da de Toquinho cujos braços e pernas de matéria compacta e pele morena homogênea faziam surgir de vez em quando em minha mente uma alegre e vaga promessa homoerótica o que me levou a brincar de chamálo sem que isso causasse constrangimento meu noivo Na verdade as meninas eram o tema mais freqüente das nossas conversas Chico fazia ciúmes de suas namoradas comigo e por vezes chegava a dizer a Dedé no Rio que eu as assediava Uma noite ele me pediu que o acompanhasse à porta da casa de uma antiga paixão sua cujos pais não queriam que ele namorasse e que estava voltando naquele dia da Europa onde passara longo tempo para que lhe fizéssemos uma serenata Estávamos todos bêbados e eu terminei subindo na árvore em frente à janela da moça de onde cantei não sei se uma velha seresta ou uma canção do próprio Chico Dedé ria das histórias que ele contava mas me fazia perguntas ansiosas quando ficávamos a sós A única vez que trai Dedé com uma dessas meninas de São Paulo não foi com uma namorada de Chico mas de Toquinho e foi no Rio E Chico nem chegou a saber Uma vez foi aos nossos amigos em São Paulo que Chico assustou com uma história a meu respeito Assim como eu ia muito a São Paulo ele vinha muito ao Rio Numa de suas voltas ele contou com grave discrição que eu tinha enlouquecido Manteve a mentira até que eu aparecesse por lá A notícia se espalhou entre os conhecidos naturalmente e Chico chegou ao requinte de detalhar para Toquinho que ficara consternado uma visita que Bethânia me teria feito no sanatório quase chorando ele repetia o que eu teria dito ao vêla na porta do quarto Sai carcará sai carcará Quando voltei a São Paulo encontrei diversas pessoas que se surpreendiam ao me ver me olhavam demoradamente prestavam demasiada atenção no que eu dizia Muitos perguntavam Você está bem É claro que eu reagia de modo estranho o que reforçava a história inventada por Chico Toquinho é que depois de observar minhas respostas pois ele tinha ousado fazer perguntas mais diretas teve a iluminação Filho da puta ele disse Chico é um filho da puta E riu ainda um pouco contrafeito Com o passar do tempo Chico que a essa altura já era uma grande estrela de certa forma ele tinha passado a ocupar o lugar de Edu com o estouro da singela marchinha A banda no festival da Record de 66 foi se demorando mais e mais no Rio até que veio de vez e paradoxalmente por morarmos na mesma cidade passamos a nos ver menos Ou talvez tenha sido simplesmente que eu à medida que ele se transferia para o Rio fui me demorando mais e mais em São Paulo Mas cheguei a presenciar um dos primeiros encontros determinantes entre ele e Marieta numa festa no Solar da Fossa E depois que eles passaram a morar juntos eu os visitava de vez em quando Mas Torquato criou o hábito de freqüentalos assiduamente Não foi sem desconfiança que Torquato recebeu as primeiras noticias de que nós nos empenharíamos em subverter o ambiente da MPB A essa altura eu já me sentia profissionalmente estável as apresentações semanais no Esta Noite se Improvisa me asseguravam algum dinheiro e fama e minha canção Um dia tinha ganho o prêmio de melhor letra no mesmo festival que consagrara Chico Na altura das reuniões de catequese organizadas por Gil Torquato já tinha aderido ao ideário transformador os Beatles Roberto Carlos o programa do Chacrinha o contato direto com as formas cruas da expressão rural do Nordeste tudo isso Torquato já tinha digerido e metabolizado com espontaneidade suficiente para deixar entrever sua apreensão da totalidade do corpo de idéias que defendíamos Ele superara as resistências iniciais por possuir uma inteligência desimpedida A partir de então sua concordância com o projeto passou a ser orgânica e se algo podia parecer preocupante era justamente sua tendência a aferrarse aos novos princípios como dogmas e a desprezar antigos modelos com demasiada ferocidade Enquanto Capinan parecia ocultar no fundo da alma o que sempre restaria de resistência aos riscos antinacionalistas antipopulistas e até vulgarizantes de nossa empreitada Torquato demonstrando entender de fato o sentido de se assumirem esses riscos mostravase pronto para se tornar um arauto algo intransigente Uma discussão que lembro ter tido com Torquato é reveladora de sua maneira de viver a passagem Creio que já em 67 começouse a falar num filme B brasileiro de que Glauber tinha gostado À meianoite levarei tua alma dirigido pelo paulista José Mojica Marins Tratavase de um filme de terror feito com a precariedade de um espetáculo de circo miserável em que Glauber dizia ter entrevisto um Nietzsche primitivo O diretor seu nome real José Mojica tirado do de um exfrade cubano ou mexicano que fez fama nos anos 50 cantando canções sentimentais com empostação lírica era já uma obraprima de kitsch latinoamericano circulava usando a mesma capa preta e as longas unhas exibidas pelo tipo que criara no filme e nos filmes que fez subseqüentemente um blasfemador macabro chamado Zé do Caixão Era já interessante que ele fosse um estreante independente uma figura solitária no panorama do cinema nacional E ao contrário de Walter Hugo Khoury um outro francoatirador autor de filmes europeizados e francamente elitistas Marins era em todos os sentidos popular No filme ele ao mesmo tempo que expunha as imagens reveladoras da nossa miséria investia contra as convenções religiosas inimigas de uma vontade individual desassombrada O imaginário católico aparecia mesclado à pornografia do terror Tudo isso com truques visuais risíveis e diálogos que revelavam semianalfabetismo Torquato insistia em que era puro charme de Glauber e meu demonstrar interesse estético por tal monte de lixo Ele não acreditava que eu visse ali uma versão radical do que Glauber tinha tentado em Terra em transe Mas era de fato difícil àquela altura admitirse uma postura crítica que pouco mais tarde veio a ser lugarcomum passou se a rever A mosca da cabeça branca Freaks O incrível homem que encolheu com olhos deslumbrados no Electric Cinema de Londres em 69 quando cheguei lá e o próprio Torquato é ainda hoje lembrado por sua participação como ator em Nosferatu no Brasil filme feito nos anos 70 por Ivan Cardoso iniciando um culto a Mojica Marins e afins culto esse defendido com ferocidade por Torquato na coluna que assinava então num jornal carioca de onde dirigiu em nome de um cinema marginal uma campanha contra o Cinema Novo com a qual eu nunca consegui me identificar Mas Torquato estava mais próximo de mim também em compreender que se Capinan se dispunha e preparava para ser o que antigamente se chamava de poeta nós outros tentávamos descobrir uma nova instância para a poesia De fato eu acreditava estar esboçando um modo de ser poeta que não dependesse dos ritos tradicionais do ofício Tinha a ilusão de que se podia utilizar o hábito de chamar os sambistas de morro de poetas e a adesão total de Vinícius de Moraes um poeta de verdade à canção popular para entrar em ligação direta com a grande poesia através da combinação da feitura de canções com uma postura pública que atuasse sobre o significado das palavras Na verdade eu nunca tinha até então ousado pensar em ser poeta minhas tentativas se deram no desenho e na pintura na prosa crítica cinema e música popular e na canção poeta inspirava demasiada reverência metia medo e vergonha eu tinha sempre me retraído ante a idéia Mas eu imaginava para mim desde criança uma espécie de grandeza alguma forma elevada de celebridade que eu já estava acostumado a considerar uma fantasia perfeitamente dispensável mas que me dispunha a cumprir e mesmo a desejar se me parecesse que a oportunidade se apresentava a palavra poeta encerrava tal grandeza como nenhuma outra poderia e mesmo que um tanto secretamente eu a acolhi em meu coração e procurei aplicála ao que eu fazia e faria embora não fosse poesia Mas o fato é que eu já considerava João Gilberto um artista maior em todos os sentidos Um poeta pelas rimas de ritmo e de frase musical que ele entretecia com os sons e os sentidos das palavras cantadas Um criador revolucionário como Glauber sem os defeitos sem mão pesada ou inábil Á altura de João Cabral e de João Guimarães Rosa mas atuando para uma larga audiência e influenciando imediatamente a arte e a vida diária dos brasileiros Eu podia ser um pouco Glauber um pouco João Gilberto com esse novo repertório de idéias que lançaríamos no seio da música popular E a música popular é a forma de expressão brasileira por excelência Sentiame assim superexcitado pelo que se delineava diante de mim E Torquato entendia minha excitação e desde que se converteu ao ideário partilhavaa comigo Hoje considero o ridículo da pretensão de ser meio Glauber meio João Gilberto Mas o ridículo não reside em a pretensão ser demasiado grande as idéias pretensiosas mesmo quando ridículas são motor e sinal de energia criadora O ridículo está em ser errada a equação Felizmente não se faria possível ser um pouco Glauber um pouco João isso era apenas um modo tolo de eu me dizer que tinha de me tornar eu mesmo BAIHUNOS É claro que eu não me via realizando essa aventura poética em meu próprio nome O senso de grupo que eu tinha era imensamente forte Quando Rogério ouvindome argumentar entusiasmado provocoume dizendo que eu era apenas um apóstolo e que Gil é que era o profeta pareceume que ele lia meus pensamentos mais recônditos Eu me sentia responsável por uma grande e bela tarefa pois Gil e Gal e também Bethânia apesar de seu grito de independência necessitariam sempre de minha orientação direta ou indireta mas a verdadeira mensagem poética se daria através do grupo e a partir de Gil Nunca foi em nenhum nível obscuro para mim que o grupo coeso ao qual eu pertencia era formado por nós quatro acontecesse o que acontecesse Eu sentia assim desde o Teatro Vila Velha Por um lado Tom Zé Alcivando Luz Djalma Correia Perna Fróes Piti Fernando Lona e por outro Alvinho Duda Waly Roberto Pinho e depois Rogério Agrippino Guilherme Torquato e Capinan eram colegas ou amigos amados e admirados às vezes uns mais que outros mas sem que significassem o que nós quatro significávamos para mim Duda e Waly e Torquato e mesmo Rogério foram meus amigos num grau de intimidade que minhas relações pessoais com Gil ou Gal nunca atingiram Mas a visão que eu tinha da unidade de destino de nós quatro a certeza de que éramos companheiros num nível de luta que os outros não conheceriam destacava o quarteto Talvez fosse apenas a captação da vocação para o estrelato e quantas vezes ai de mim passados muitos anos desses dias heróicos não pensei que talvez tudo não tivesse passado de uma mera atração para o estrelato mais vazio mas o fato é que eu via uma luz intensa sobre nós que não parecia pousar sobre os outros Eu não vivia o que se me apresentava como o preenchimento de ambições individuais minhas Na verdade minha convicção íntima era de que uma vez atingido o Ponto de nãoretorno eu deixaria os três à sua própria sorte Gil o verdadeiro músico Gal a verdadeira cantora Bethânia a verdadeira estrela dramática do canto e procuraria meu caminho como cineasta ou na literatura Em um ano um ano e meio estarei livre pensava O dinheiro entrava como uma avalanche Na verdade era muito pouco os Gordinis da TV Record os trocados dos direitos Mas me parecia muito Até então eu vivera mais do que com os incertos e minguados direitos com o dinheiro de Dedé de seus sucessivos empregos e ajudas bemvindas e substanciais que Minha Daia discretamente enviava da Bahia para mim tudo isso me assegurava o quarto no solar uma vitamina de abacate com waffles à guisa de café da manhã cigarros e cinema já que a refeição principal era almoço ou jantar eu fazia na casa da avó de Dedé Como nunca pude me interessar por dinheiro e portanto desconhecia os mecanismos que ele desencadeia eu achava que se com a mudança de situação por causa do Esta Noite se Improvisa já passara a haver tanto quando eu estivesse de fato profissionalizado poderia ganhar bastante para ficar longo tempo sem trabalhar nunca me passou pela cabeça que fosse necessário ou mesmo desejável passar a levar uma vida menos modesta O curioso é que não me parecia que nós fôssemos ser frustrados na expectativa de entrar com peso no cenário da MPB Não era algo que eu quisesse ou em que acreditasse era uma constatação do inevitável considerandose todos os dados E era uma tarefa Minhas conversas com Torquato com Rogério com Duda com Waly me enriqueciam intelectual e existencialmente mas os protagonistas do que ia se passar éramos Gal Bethânia Gil e eu Eu imaginava no entanto que uma vez cumprida a missão eu me desvincularia do grupo dos quatro para desenvolver estudos e trabalhos com Duda ou Waly Ou sozinho É interessante notar que aqui dois grupos se superpunham numa interseção De um lado os que viriam a ser os tropicalistas grupo que incluía Torquato Capinan e Rogério e em breve incluiria um grande número de cariocas e paulistas e de outro aquele que já era conhecido no Rio como o grupo baiano nós quatro Bethânia é que com sua recusa em militar deixava evidente esse desenho E eu no fundo agia como quem sempre poria o tropicalismo a serviço do grupo núcleo e não o contrário Na verdade havia uma tensão entre esses fatores Em 66 eu intuía o movimento sugerido por Gil como uma ação necessária para regenerar o tecido da MPB mas esse grande acontecimento seria também a meus olhos uma espécie de estratégia de lançamento definitivo do grupo baiano com seu peculiar repertório de interesses Ora como esse repertório significaria de todo modo uma transformação dos critérios de gosto então vigentes nossa entrada em cena só podia se dar através de um movimento de ruptura Mas essa entrada na verdade já se dera com a explosão popular de Bethânia e a complexificação de sua figura pública a partir dos shows de boate E com a freqüente exposição do talento de Gil no Fino da Bossa Que nossa chegada representava ao menos uma ameaça de ruptura já era notório No final dos anos 80 o jornalista carioca Paulo Francis escreveu de Nova Iorque para um jornal de São Paulo que ao ver Bethânia cantando o Carcará em substituição a Nara Leão em 64 percebera que o Rio mudara e ele passara desde então a considerar aquele momento como o marco da vinda dessa gente que ele despreza para o Rio nos anos 70 o jornal carioca O Pasquim nos apelidou de Baihunos numa campanha insistente em nos chamar de bárbaros invasores mas já em 66 na altura dos episódios que estou narrando falavase com um misto de carinho curiosidade e desconfiança sobre o grupo baiano inventouse o termo báfia um trocadilho com máfia para caracterizar nossa alegada tendência à ajuda mútua no que fomos também comparados aos judeus e last but not least circulavam rumores que inspiraram o termo surubaiana que podia ser apenas uma forma apimentada de referirse ao tratamento terno usual entre os membros do grupo ou um outro modo de dizer bâfia mas sugeria a intuição de uma mensagem sexual que se temia e talvez secretamente se desejava de nós Gal e eu não éramos famosos como Gil e Beta mas estávamos terminando de gravar um disco que de todo modo nos faria prestigiosos A rigor não havia necessidade de nenhuma estratégia de lançamento expressão que de resto nos pareceria de todo estranha naquela época profissionalmente as coisas estavam andando muito bem O movimento que Gil tentava organizar era antes um gesto generoso para com a música popular e pensando objetivamente arriscado para nossas carreiras No entanto para mim a própria idéia de missão caracterizava o possível movimento como necessário e isso trazia um certo ar de infalibilidade ao sucesso do empreendimento E se risco houvesse era claro que devíamos encarálo se quiséssemos ser conhecidos pelo que de fato éramos Mas já éramos conhecidos e não era pelo que não éramos Apenas só podíamos crescer numa direção que passasse pelo elenco de temas e problemas daquilo que veio a se chamar de tropicalismo Eu encorajava a impaciência de Gil porque no meu desejo fantasioso de fazer uma intervenção drástica na MPB e depois me retirar eu só podia ver essa ruptura que fatalmente representaríamos acontecendo bruscamente O fato de Bethânia já ter exposto o essencial de suas potencialidades o que não acontecia com os outros três colocavaa numa posição diferente Mas se ela havia chegado lá antes era porque ela era diferente sua personalidade seu temperamento seu destino destacavaa e por essa razão todos viam como mais ou menos natural que ela não quisesse tomar parte num movimento Esse movimento a incluía sem embargo e isso justamente porque ela detinha desde o nascedouro da empreitada parte da produção da sua temática fundamental Quanto a mim eu via minha inteligência sendo convocada a toda hora pelas novas configurações que desencadeamos eu vivia o transe Panamérica o livro de Zé Agrippino saiu finalmente Numa entrevista ao jornal do Brasil se não me engano ele tinha escolhido como exemplo do que não gostava por total incapacidade de identificação a música de Gilberto Gil Sou de São Paulo cresci entre vidro e concreto armado não suporto essa coisa doce baiana Prefiro o iêiêiê à MPB Mas mesmo no iêiêiê nacional sinto falta de violência Tudo era muito mole e ele era um homem urbano do mundo moderno não podia se reconhecer nessas manifestações da cultura brasileira Lembro que li essa entrevista na casa de Torquato ao pé da ladeira dos Tabajaras em Copacabana Torquato que conhecia pouco Agrippino achava tudo aquilo tolice Duda localizou imediatamente as ambições beatniks do entrevistado que ele também conhecia muito pouco e as descartou como sendo falsa novidade Eu me incomodei com a rejeição explícita a Gil Mas a escolha de seu nome me intrigava e subterraneamente me enchia de orgulho afinal Gil não era ainda um grande cartaz tampouco podiase dizer que ele representava a MPB como um todo ele não era um ídolo de massas nem mesmo um autor de imenso prestígio no primeiro time então por que Agrippino tinha escolhido justamente ele como figura paradigmática de uma sensibilidade à qual se opunha Pareciame uma secreta homenagem a Gil E confesso uma mensagem ainda mais secreta enviada ao meu senso crítico De fato conhecendo Agrippino como eu conhecia eu sabia que se quisesse desmerecer alguém ele simplesmente evitaria na verdade esqueceria o nome desse alguém Gil era de todo modo muito mais famoso que Agrippino e atacar alguém famoso era boa tática propagandística para um autor rebelde e iconoclasta Mas que ele atacasse um iniciante e Gil era então um famoso iniciante era prova de sua certeza da grandeza do futuro deste E como ele me conhecia de perto no pacote vinha uma provocação um desafio e algumas sugestões No fim dos anos 80 Agrippino retirado e solitário aceitou conceder entrevista pretextada por homenagens que lhe prestavam jovens admiradores de São Paulo e nessa entrevista disse lembrarse dos baianos tropicalistas mas nunca terse interessado muito por esse pessoal Eu sei que ele estava sendo sincero desta vez como da outra nunca se interessara muito pelo que fazíamos por algum tempo interessouse até mais do que esperava e por fim reencontrou a antiga e mais resistente indiferença Eu sabia à época daquela primeira entrevista que seu interesse era pouco mas esse pouco era muito para mim O que eu considerara uma secreta homenagem a Gil e uma mensagem secreta dirigida a mim era possivelmente algo ainda mais secreto para ele próprio Ele escolhera Gil ao acaso a proximidade a amizade com Rogério comigo etc sem dúvida fizeram o nome surgir em sua mente e certamente não precisara calcular para conhecer as vantagens e desvantagens possíveis que essa escolha acarretaria para ele para Gil para nós O abalo produzido em mim por sua opinião sobre Gil não fora na verdade muito grande eu apenas dava muita importância ao fato de ele dar alguma importância a nós E isso era tanto mais assim quanto eu me assombrava com o livro que ele acabara de publicar Panamérica não tinha nada a ver com o que eu conhecia e amava como literatura Um exemplo Naquele canto escuro atrás da pilha de latas onde eu Marilyn Monroe e Marlon Brando nos encontrávamos era mais escuro Eu levantei a saia de Marilyn Monroe e fiz com que ela sentasse no meu membro vertical e rijo Marilyn se movimentou para cima e para baixo e Marlon Brando excitado se masturbava olhando para Marilyn que subia e descia sentada sobre meu membro rijo O diretor Cecil B De Mille e o ator Tony Curtis voltavam empurrando o carrinho cheio de conservas Eu Marlon Brando e Marilyn Monroe mantivemos o rosto impassível acima da pilha de latas esperando o diretor e o ator Nós três éramos vistos por Cecil B de Mille da cabeça para cima o corpo estava escondido atrás da pilha de latas Cecil B de Mille passou acompanhado de Tony Curtis e nós o cumprimentamos com a cabeça e em seguida Marilyn recomeçou a se movimentar para cima e para baixo sentada no meu membro rijo Outro Che Guevara perguntou qual a arma que eu levava e eu mostrei uma faca pontiaguda e enferrujada Che Guevara perguntou se eu não tinha revólver e eu disse que tinha vendido o revólver que pertencia a meu pai Naquele instante eu lamentei ter vendido o revólver mas Che Guevara disse que estava bem com aquela faca e todos nós tínhamos confiança no que ele dizia e Che Guevara falava de uma forma rápida segura e tranqüila que eu e os outros guerrilheiros que apareceram escondidos na vala nos sentíamos corajosos e capazes de vencer a batalha Cada capitulo é um longo parágrafo único em que as figuras muitas vezes agigantadas de celebridades de Hollywood do mundo político esportivo ou musical todas universalmente reconhecíveis relacionamse com um narrador de linguagem repetitiva e imaginação acelerada que em nada se parece com um escritor O texto segue numa marcha cerrada impassível em face das enormidades que se descrevem e narram sem sutilezas ou variações de tom O próprio aspecto gráfico ou diagramático das páginas uma sucessão de retângulos idênticos formados por palavras que os preenchem totalmente sem a respiração de um espaço em branco um diálogo um travessão sequer produz uma sensação de severa monotonia visual que o caráter exuberantemente onírico do que é narrado não destrói As repetições dos atributos dos personagens e cenários funcionam como epítetos fugazes As palavras expõem visões não há nada além de superfícies Nenhuma concessão à psicologia ou à sociologia por um lado e por outro nenhuma indulgência com formalismos ou elegância estilística Para quem vinha da prosa rendilhada e lingüisticamente culta de Guimarães Rosa depois de ter passado pela secura de Graciliano Ramos e pela hipersensibilidade de Clarice Lispector Panamérica era um choque e um desafio Tal como no caso de Terra em transe Duda descartava a possibilidade de aderir a uma tal aventura Era evidente que ele gostara muito menos do livro de Zé Agrippino do que do filme de Glauber mas eu próprio não poderia dizer que me comprometeria com a defesa de Panamérica como me comprometi com a de Terra em transe Em primeiro lugar porque este prometia a inauguração de um imaginário e de um ideário enquanto no livro de Agrippino era o ideário e o imaginário já estabelecido em conversas no Solar da Fossa sobre Edgar Morin que aparecia sem nada que se assemelhasse a um tratamento literário para lhe dar textura Depois agora tratavase de um livro e era sempre menos arriscado expor julgamentos definitivos sobre um filme do que sobre um livro De todo modo Panamérica embora não sendo uma leitura propriamente agradável nem fácil de se recomendar me parecia uma obra mais inteiriça e uniforme do que o filme de Glauber Duda dizia que as virtudes que eu queria ver no livro talvez estivessem presentes nele se ao menos ele fosse melhor escrito mas eu considerava a radicalidade do projeto e decidi que ele merecia atenção Além disso deslumbrado como sempre fui com a inteligência sui generis de Agrippino eu naturalmente desconfiava antes de minhas deficiências do que das dele quando durante a leitura meu julgamento tendia para o negativo eu procurava pensar duas vezes O grande cientista brasileiro Mário Schemberg físico e conhecedor de literatura um intelectual refinadíssimo já então nos seus sessenta anos escreveu na orelha do livro que Zé Agrippino tinha nos dado uma epopéia contemporânea do Império Americano Schemberg era comunista e também um grande matemático interessado em sabedoria oriental do Mahabharata ao Zen O aparecimento de novas mitologias dizia ele é um dos aspectos mais importantes da vida do século XX O seu impacto sobre a cultura se vem fazendo sentir com amplitude cada vez maior atingindo formas tradicionais de expressão artística como a literatura e as artes plásticas depois de se ter manifestado no cinema e nas histórias em quadrinhos José Agrippino tomou do cinema figuras mitológicas assim como uma técnica de narração por imagens fugindo a qualquer análise psicológica Combina uma descrição minuciosa inspirada na Ilíada com uma imaginação fantástica autêntica que se relaciona com a das aventuras de Gulliver Homero e Swift são as duas grandes influências literárias de José Agrippino Apresentando um livro que nem podia ser um sucesso de vendas nem chegaria como não chegou a ter prestígio entre os literatos brasileiros e como despertar o interesse de estrangeiros sem sequer uma esperança de tradução Schemberg afirmava com tranqüilidade Panamérica representa uma contribuição de importância internacional para a utilização de alguns dos mitos fundamentais contemporâneos Eu meditava longamente sobre essas palavras e não me sentia na posição de endossálas ou desmentilas Elas que foram escritas a partir de um comprometimento profundo e não eram meros elogios retóricos de orelha de livro permanecem solitárias até hoje como opinião de peso intelectual favorável ao livro de Agrippino Afinal eu nunca tinha lido Homero ou Swift embora soubesse naturalmente do que se tratava e as considerações de Morin seriam só dele sobre a nova mitologia na cultura de massas que para mim ainda eram escandalosa novidade pareciam ser para Schemberg como de fato sempre pareceram ser para Zé Agrippino uma evidência banal As conversas com Rogério tinham me levado a encontrar um prazer estético insuspeitado nas revistas em quadrinhos prazer que eu imaginava inspirador de uma prosa poética em tudo diferente do estilo algo tosco algo clássico de Zé Agrippino Digo clássico e eu pensava exatamente nesses termos na época porque a escolha de palavras meramente designativas de objetos ou ações a absoluta ausência de gírias ou polissemia a univocidade das sentenças dava ao texto uma aparência de necessidade e perenidade em que nada dependia para o entendimento do tempo em que ele fora escrito ou fosse lido tudo era para durar para sempre e isso numa peça de ficção que começa com o narrador dirigindo Burt Lancaster num épico hollywoodiano e termina com a Estátua da Liberdade correndo por sobre uma multidão humana como um homem anda entre formigas Os personagens eram todos da mitologia dos mass media e o critério era que seus nomes fossem reconhecidos internacionalmente à primeira menção Numa cena em que o narrador depois de matar o adido militar americano foge e se confunde com um grupo de turistas que vão visitar o Cristo do Corcovado a descrição do passeio não deixa dúvidas de que se trata do monumento carioca Mas ao contrário das estrelas de Hollywood dos grandes políticos europeus dos revolucionários cubanos e da própria Estátua da Liberdade que são mencionados sem explicações pois seus nomes já dizem tudo o Cristo do Rio é descrito com objetividade detalhista embora com pequenas e calculadas distorções como algo remoto ou imaginado sem que se diga o nome da cidade ou do morro famoso sobre o qual se ergue Na primeira página já o narrador avista de seu helicóptero um negro que segura um lançachamas a expressão o negro é repetida várias vezes nesse primeiro capitulo num tom totalmente estranho ao modo de no Brasil se pensar a aparência racial de alguém soa demasiadamente precisa e objetiva sem nenhuma carga afetiva seja paternalismo orgulho eufemismo ternura ou repulsa Instaurase imediatamente um estranhamento entre o leitor e o livro que durará até a última página A impressão de que se diz o negro para colocarnos numa perspectiva norteamericana logo se desfaz para dar lugar á implacável neutralidade do olhar do narrador que parece escrever em pedra Ele conta na primeira pessoa as peripécias que vive como se fossem sonhos demasiadamente físicos luta com o gigante Di Maggio ama Marilyn de todas as formas e termina boiando no espaço entre destroços do Ocidente Um ano depois eu veria realizações de Agrippino como diretor teatral e mais tarde cinematográfico de que gostei absolutamente e que recomendaria sem restrições sua firmeza de propósitos a adequação da produção à inventividade a nitidez do acabamento e a humilhante superioridade de sua combinação de domínio dos meios com liberdade de visão me entusiasmavam Mas Panamérica não me fez colocar Agrippino acima dos escritores de que eu gostava nem me senti animado a recomendar sua leitura a quem quer que fosse ao passo que Terra em transe confirmava Glauber como o maior dos cineastas brasileiros e eu o aconselhava a todo o mundo Nos anos 70 ouvi Rogério Duarte elogiar Panamérica justamente por suas virtudes técnicas O livro é sobretudo muito bem escrito ele dizia como se isso tivesse sido desde sempre ponto pacífico E eu próprio hoje observo que a qualidade do texto de Agrippino parece evidenciarse com o tempo Em 67 o único comentário que ouvi de Rogério a respeito do livro feito em presença do autor numa mesa do Cervantes foi a constatação de que o que este escrevia não pertencia a nenhuma linhagem da literatura brasileira com exceção talvez dos modernistas Mário de Andrade e Oswald de Andrade Muito paulista Rogério dizia não sem uma gota de desdém não tem nada a ver por exemplo com a prosa de Guimarães Rosa e tem muito eu eu eu muita repetição do pronome pessoal ao que Agrippino respondeu A repetição do eu deve ser por causa do hábito de ler em francês e inglês e com um desprezo agressivo Guimarães Rosa NÃO quanto aos paulistas Mário de Andrade não esse não tem nada Oswald de Andrade sim é o único que tem alguma coisa Eu que a essa altura conhecia pouco de Mário e nada de Oswald não poderia imaginar que este último seria o ponto de união entre todos os tropicalistas e seus mais antagônicos admiradores Sem dúvida o encontro posterior com a obra de Oswald de Andrade entre outras coisas contribuiu para que eu valorizasse melhor a literatura de Agrippino Em 67 seu livro radical e possivelmente pioneiro no mundo apenas encheu minha cabeça de perguntas a respeito de literatura no Brasil e na América Latina a respeito de literatura no mundo periférico à grande economia mundial a respeito de literatura Essas perguntas não perderam sua pertinência ainda hoje Em suma Panamérica parecendo algo muito posterior ao tropicalismo não o influenciou na verdade o livro por pouco não inibiu seu aparecimento E o alongarme eu aqui sobre ele significa que ainda pergunto ao mundo o que é que de fato ele é afinal Rejeitando a baianidade de Gil a partir de um ponto de vista paulistano sem saber ainda que Gil queria estar mais próximo dele do que dos cariocas e lançando um livro de tão grande impacto como esse Agrippino me dera um ponto de referência inestimável para a medição do peso dos nossos atos ALEGRIA ALEGRIA Quando Domingo o disco que gravei com Gal foi lançado já estávamos em 67 Muitos dos nossos colegas cariocas reagiram a ele com muito maior entusiasmo do eu esperaria Lembro de rostos enternecidos e comentários que pareciam carícias sinceras A atitude de joãogilbertianismo radical combinada com uma originalidade que muitas vezes provinha mais de nossas limitações do que de nossa inventividade comovia bons músicos algo cansados dos tiques jazzísticos freqüentes em seu ambiente Uma gota de sabor regional verdadeiro ou falso completava o encanto desse disco modesto Eu ficara especialmente bem impressionado com os arranjos de Dori Caymmi que também assinava a produção Francis Hime e Roberto Menescal os outros dois arranjadores envolvidos sem dúvida confirmaram sua capacidade técnica e sua imaginação mas para mim foi Dori quem tornou possível que Domingo fosse o primeiro produto do grupo baiano que ostentava liberdade em relação aos vícios musicais da época Eu tinha finalmente algumas soluções parciais para os problemas que eu tentara discutir com Boal e não tivera coragem sequer de abordar com o maestro Cipó quando da gravação do primeiro LP de Bethânia A gravadora encarregouse da programação visual Gal e eu fomos levados para o Outeiro da Glória perto do centro do Rio para sermos fotografados em frente à igrejinha antiga para que parecesse que estávamos na Bahia Eram fotos em preto e branco e a que foi escolhida é simpaticamente inconclusiva e despretensiosa Mas um desenhista do departamento de arte da companhia cercoua daquelas letras que parecem estar se derretendo e de motivos decorativos igualmente em liquefação tão característicos da arte gráfica mais vulgar dos anos 60 em tons de azul e rosa fortes e eu fiquei deprimido O texto que eu escrevi para a contracapa era bom Sincero e claro ele rendia homenagens íntimas trazia muito de Santo Amaro e de Salvador em duas ou três linhas e sobretudo dava conta da defasagem entre o que o disco continha e meus interesses de então anunciava uma virada para o futuro em que eu estava engajado quase enunciava o tropicalismo Mostrei a Zé Agrippino e a Rogério em meu apartamento do Solar da Fossa o primeiro exemplar do disco Ansioso pela reação de ambos a meu texto uma vez que eu não tinha vitrola para ouvirmos as canções já estava me preparando para pedir desculpas pela ilustração quando Agrippino depois de parecer ter lido umas dez palavras da contracapa virouse para mim e disse Gostei muito da capa com esses desenhos e letras coloridas Surpreendime mas tive coragem de dizer que discordava Ele fez uma cara desalentada como se tivesse que voltar sempre muito atrás no seu caminho por causa da lentidão dos outros Rogério que trabalhava profissionalmente como programador visual de uma editora de livros e era um eloqüente teórico do desenho industrial pôsse no meio com observações técnicas muito específicas que serviam mais para desautorizar minha estranheza diante da opinião de Agrippino do que para esclarecer o sentido desta No entanto ele dizia claramente desaprovar a capa quase tanto quanto eu Na noite em que minha canção Um dia foi apresentada no festival da TV Record de 66 por Maria Odete a mesma cantora que defendera Boa palavra no da Excelsior uma moça de voz potente e ouvido preciso e que sendome uma total desconhecida fora escolhida pelos organizadores Guilherme Araújo me emprestara um terno seu para que eu estivesse bem vestido pois os compositores concorrentes eram eventualmente flagrados pelas câmeras sentados na platéia Como eu tinha encontrado o teatro lotado junteime aos espectadores que se sentaram no chão do corredor atapetado entre as fileiras de poltronas Não sei se isso influiu na reação dos telespectadores à minha aparição fugaz O fato é que até hoje ouço nas ruas por parte de desconhecidos a descrição vívida da lembrança do momento em que me viram de paletó sentado no chão ouvindo a música e recebendo a notícia do prêmio de melhor letra Poderseia dizer que tendo eu me tornado muito famoso nos anos subseqüentes essas pessoas comprazemse em reviver comigo o instante dessa primeira aparição como se fosse uma reminiscência íntima compartilhada Mas o curioso é que no dia seguinte à apresentação do programa já me abordavam nas ruas para comentar a cena e no mesmo tom Para mim o que ressaltou naquele primeiro momento foi o poder da televisão Alguns segundos no ar e de repente milhares de pessoas têm uma definição afetiva a seu respeito A TV Record tinha uma tradição de programas musicais de boa qualidade Elisete Cardoso e Ciro Monteiro os grandes veteranos eram seus contratados desde os anos 50 Roberto Carlos e a Jovem Guarda apareceram como uma diversão despretensiosa para adolescentes nas tardes de domingo O Fino de Elis até então campeão de popularidade começava a perder terreno nas pesquisas de audiência para a turma do iêiêiê Isso a guerra iêiêiê versus MPB era um velho tema de discussão nas reuniões do Teatro Jovem nos restaurantes boêmios e nos pátios das universidades Mas agora invadira as salas da diretoria da TV Record Elis que tinha ido passar férias na Europa assustarase ao voltar com a queda de popularidade de seu programa em horário nobre e a ascensão do competidor das tardes de domingo Paulinho Machado de Carvalho dono e diretorgeral da emissora convocou uma reunião com todos os mais importantes representantes da ala MPB para encontrar uma solução em conjunto Além de Elis foram chamados Wilson Simonal Nara Leão Jair Rodrigues Geraldo Vandré e Gil Vandré um paraibano bonito e carismático tinha sido parceiro de Carlos Lyra e no festival do ano anterior dividira com Chico o primeiro lugar contrapondo a A banda sua potente Disparada Esta bela canção magistralmente interpretada por Jair Rodrigues com a presença marcante de Airto Moreira na percussão tocando uma caveira de burro que nós não sabíamos que já tinha sido um truque de grupo cubano em filme de Hollywood era uma moda caipira modernizada e politizada com mestria composicional que lhe dava uma dimensão épica A retórica revolucionária aqui encontrava seu tom adequado É curioso pensar que A banda de Chico e a Disparada de Vandré empataram nesse concurso quando se tem em mente que aquela canção de Chico que o fez definitivamente popular está muito aquém de sua grandeza como poeta e músico enquanto a Disparada é muito superior ao que Vandré fez antes ou depois Gil ainda não tinha em seu currículo um feito semelhante ao de Vandré mas Elis tinha gravado com sucesso uma canção sua e ele próprio era figura freqüente em seu programa com talento exuberante o suficiente para que se tivesse certeza de seu grande futuro Ao receber o convite para participar do encontro marcado por Paulinho Machado de Carvalho Gil lhe pediu permissão para levarme Paulinho acedeu com a ressalva de que eu não teria direito a falar Eu iria como mero ouvinte na condição de conselheiro de Gil Elis acompanhada de seu marido Ronaldo Bôscoli o grande letrista e agitador da bossa nova já então produtor de TV era naturalmente o centro das atenções Todos falaram com entusiasmo sobre a necessidade de defender nossas características culturais Geraldo Vandré chegou a ficar com os olhos cheios dágua tomado pela própria eloqüência Gil corroborou as heróicas intenções somando a elas alguma reflexão sobre os novos meios de comunicação de massa restos quase irreconhecíveis dos seus discursos na casa de Sérgio Ricardo Paulinho Machado de Carvalho depois de ouvir todos concordar com as indignações e alistarse no exército de salvação da identidade nacional propôs que em vez de se tentar revitalizar o Fino da Bossa se criasse um novo programa desta vez democratizando as lideranças distribuindo entre as estrelas crescentes as responsabilidades Quatro núcleos se criaram um de Elis um de Simonal um de Vandré e um de Gil Cada um deles apresentaria um programa por mês no horário e dia do Fino um para cada semana O nome geral desse programa inspirado numa tentativa política de velhos lideres civis muitos deles antigos inimigos de retomar o poder das mãos dos militares seria Frente Ampla da Música Popular Brasileira Nara que ficara calada até então dirigiuse direta e exclusivamente a Paulinho Machado de Carvalho com muita calma dizendo Paulinho eu sou contratada da sua emissora continuarei cumprindo meus deveres profissionais Se me escalarem para um programa eu vou chegar na hora marcada Só quero lhe pedir que se for possível você diga a seus produtores que não me escalem num mesmo programa com Elis Regina pois ela declarou numa entrevista à revista Manchete que eu não sou cantora e que eu faço sucesso desrespeitando as forças armadas Aqui está a minha carteira da Ordem dos Músicos onde eu sou classificada como cantora Apenas Bôscoli tentou sem sucesso interromper pondo uma certa doçura na voz a fala límpida e desmistificadora de Nara A reunião se desfez burocraticamente Esse enfrentamento de Elis por Nara expunha uma velha tensão entre as duas grandes figuras de mulher Elis possuía um talento musical e uma voz com que Nara nem poderia sonhar Mas ela ascendera da condição de cantora comercial sem sucesso para a de representante do sucesso comercial da responsabilidade estética e política via televisão o que a deixava numa insegurança que chegava ao paroxismo quando confrontada com a trajetória de Nara fundadora da bossa nova aristocraticamente tranqüila em suas posições políticas e ambições intelectuais sem precisar provar nada ou exibir talentos excepcionais Nara parecia conceder em aparecer na televisão Isso instigara as declarações infelizes feitas por Elis à revista Manchete e que só agora encontravam resposta Por outro lado nada poderia ter sido dito naquela reunião absurda que pudesse melhor revelar o que realmente estava se passando do que o discurso que a indignação provocada em Nara por essas declarações a levara a proferir com tanta simplicidade Nada poderia ter sido mais profundamente político do que esse desabafo que era na verdade o contrário de um desaforo de diva enciumada O que ficou patente para todos foi não que Nara tivesse exibido mesquinha competitividade de estrela perante Elis mas que ela opusera uma análise realista dos motivos e conseqüências da reunião aos arroubos de autoengano a que todos tinham se rendido O programa não obstante foi ao ar Na noite do primeiro creio que a cargo de Simonal preparouse uma passeata em mais uma macaqueação da militância política Era a Frente Ampla da MPB Contra o iêiêiê com faixas e cartazes pelas ruas de São Paulo Eu conversara com Gil sobre a reunião Naturalmente o episódio de Nara versus Elis tomou conta do assunto durante a conversa Não tanto pelo seu sabor irresistível de fofoca mas pelo seu potencial crítico da conjuntura Ficou claro entre nós que todo aquele folclore nacionalista era um misto de solução conciliatória para o problema de Elis dentro da emissora e saída comercial para os seus donos Que Gil aproveitasse a oportunidade para lançar as bases da grande virada que tramávamos Mas nunca considerei aceitável que ele participasse ao lado de Elis Simonal Jair Rodrigues Geraldo Vandré e outros dizem que Chico chegou a se aproximar por alguns minutos dessa ridícula e perigosa jogada de marketing Nara e eu assistimos assombrados de uma janela do Hotel Danúbio à passagem da sinistra procissão Lembro que ela comentou Isso mete ate medo Parece uma passeata do Partido Integralista a versão brasileira do nazifascismo um movimento católicopatrióticonacionalista de extrema direita nos anos 30 do qual alguns antigos expoentes inclusive apoiavam o governo militar A necessidade de compensação por esse papelão exacerbou a minha verve rebelde Achei que na noite de Gil o programa deveria se transformar num escândalo antinacionalista e antiMPB Como as primeiras idéias próiêiêiê tinham partido de Bethânia e ela era a figura mais forte de nos quatro propus que ela contrariando todas as expectativas aparecesse no programa de minissaia portando uma guitarra elétrica de madeira maciça à moda roqueira e cantasse Querem acabar comigo a excelente canção de afirmação pessoal de Roberto Carlos de que ela tanto gostava Para enriquecer conceitualmente essa pretendida apresentação escrevi um texto sobre Roberto Carlos que Bethânia diria antes de cantar O texto tinha uma empostação literária que fazia dele um veículo para Bethânia cujos shows eram entremeados de falas poéticas ditas com muita verdade e inteligência o que já era marca do seu estilo cênico Não apenas Gil Nana Torquato e eu estávamos hospedados no Hotel Danúbio para trabalhar na elaboração do programa de Gil Geraldo Vandré e Lennie Dale o bailarino americano que ensinara Elis a dançar no Beco das Garrafas tinham também se mudado para lá Lennie estava colaborando com Vandré com quem mantinha estreita amizade na feitura do programa deste último De algum modo o texto que eu escrevera para Bethânia dizer caíra nas mãos de Vandré Era uma consideração da força mitológica da figura de Roberto Carlos de sua significação como vislumbre do inconsciente nacional de como ele era comoventemente a cara do Brasil de então Quando Beta depois de dizer isso cantasse Querem acabar comigo ficaria claro com o que queriam acabar e quem queria Vandré se enfureceu Surgiu na porta do quarto de Gil onde estávamos trabalhando e quase chorando com os pêlos dos braços arrepiados gritava que nós não podíamos fazer aquilo que seria um ato de agressão a tudo o que tínhamos de melhor que minhas observações sobre Roberto Carlos talvez fizessem sentido num ensaio sociológico mas não num programa em que a música brasileira tinha de se afirmar contra o que Roberto Carlos representava Tentei argumentar Mas ele estava demasiadamente emocionado e disse que faria tudo para impedir que aquilo acontecesse Ele ameaçava interromper o numero de Bethânia de criar um caso Gil tentava contemporizar Suas explicações não demoviam Vandré de sua decisão Percebemos que a situação era arriscada Bethânia um tanto surpreendentemente topara o lance Mas ela não tinha idéia da fúria que agora se manifestava em Vandré e poderia depois manifestarse em muitos mais Nos não a exporíamos a esse risco sem lhe contar o que estava se passando e ela se avisada talvez desistisse A conversa com Vandré não chegou a um termo propriamente Ele à medida que nós nos mostrávamos mais e mais conciliadores passou do tom revoltado para o tom lamentoso de quem implora Era pelo bem do Brasil Eu vi a coisa se esgarçando Mas não tendi a radicalizar minha posição Afinal Gil tinha um programa por fazer e eu não acharia saudável pôr toda a turma no fogo Bethânia principalmente só porque queria estar certo de que não engolira um sapo Mantivemos algo do planejado Não lembro claramente mias acho que Bethânia foi de minissaia discreta embora sem guitarra e definitivamente sem dizer o texto sobre Roberto Carlos cuja canção nem sei se foi cantada O que obscurece a lembrança e desestimula o impulso de ir conferir com Gil ou Beta é a considerável obscuridade que caiu então e para sempre sobre essa série de programas Sem se tornar uma marca definida Frente Ampla da Música Popular Brasileira com esse título quilométrico e sem uma estrela central tampouco se tornou um acontecimento cultural interessante para os estudantes que discutiam o assunto Tenho uma lembrança vaga do que aconteceu no palco do Teatro Paramount naquele mês Nem sei se vi os quatro programas Nada lembro do de Elis O de Simonal foi leve e suingado e bastante vazio O de Gil foi bastante confuso Lembro de Torquato que escreveu o roteiro conosco na coxia um pouco irritado com as improvisações vocais demasiado longas de Gil O público não sabia o que ouvir o que esperar não entendia nada O programa de que mais gostei afinal foi o de Vandré Ele ensaiara um número com Lennie Dale fortemente teatralizado quase dançado para sua bela canção Cipó de aroreira que resultou muito louco com Lennie de roupa preta colante estalando um chicote com que terminava por laçar Vandré como se fosse um número apache ou tangueiro ou uma cena de Rodolfo Valentino A letra da canção era política mas essa encenação davalhe uma conotação quase erótica que me agradava e que hoje seria tomada por uma exibição sadomasoquista Não estou dizendo isso para mostrar que eles estavam sendo divertidos involuntariamente embora isso fosse verdade numa certa medida Não era a impressão que eles me davam no entanto Tampouco quero insinuar que houvesse um caso de amor entre os dois artistas Na verdade nada indicava que assim fosse Mas havia um certo humor alimentado por eles mesmos a esse respeito Lennie era gay mas Vandré não e esse humor entrava conscientemente imagino na atmosfera do número Outro momento inesquecível dessa mesma noite mostra bem a dimensão dos equívocos dessa frente ampla Vandré convidara Clementina de Jesus a velha cantora negra lançada aos sessenta anos de idade no Rio por Hermínio Bello de Carvalho e o pessoal do Teatro Jovem no show Rosa de Ouro Conhecedora de velhos lundus e sambas arcaicos com uma voz grave e líquida e uma figura de mascara africana essa mulher era um tesouro que ficara escondido numa vida de empregada doméstica e seu descobrimento a essa altura um fato longamente festejado no Rio era profundamente significativo para a história da música brasileira Foi o convite menos óbvio e o mais inteligente de quantos se fizeram para essa série de programas Pois bem o público do Teatro Paramount jovem e paulista embora majoritariamente estudantil e nacionalista de esquerda não tinha idéia de quem fosse Clementina nem mesmo estava preparado para ouvir o samba em estado tão cru e tão autêntico Ao vêla surgir no palco murmurou assustado e ao ouvila cantar vaiou sendo que de alguns jovens presentes de ambos os sexos ouvi gritos de fora macaco Eu próprio entre revoltado e amedrontado levanteime e gritei para os que puderam e quiseram me ouvir Paulistas imbecis vocês não sabem nada Racistas filhos da puta Respeitem Clementina e sai do teatro O curioso é que nos anos 70 quando o mito de Clementina já tinha atingido São Paulo em 67 ela era um mito nacional mas São Paulo com suas grandes massas de cidade industrial sempre teve uma vida à parte ela um pouco esquecida no Rio e com o samba em baixa no mercado nacional encontrou por alguns anos refúgio em grandes casas noturnas paulistanas especializadas em samba sambão como lá se gostava de dizer casas que foram precursoras do renascimento comercial do samba sob o nome de partido alto uma variedade mais antiga semelhante ao sambaderoda da Bahia e depois pagode uma designação genérica de festa ou bagunça gíria freqüente entre gente do morro A reação que eu tive aquela noite no Teatro Paramount foi violenta mas quase imperceptível Eu já era conhecido por causa do Esta Noite se Improvisa e da fugaz aparição na platéia do festival na apresentação de Um dia mas não o suficiente para com minha atitude fazer calar uma turba barulhenta e desorientada Tendo assumido a tarefa que Gil tão claramente delineara decidi que no festival de 67 nós deflagraríamos a revolução No meu apartamentinho do Solar da Fossa comecei a compor uma canção que eu desejava que fosse fácil de apreender por parte dos espectadores do festival e ao mesmo tempo caracterizasse de modo inequívoco a nova atitude que queríamos inaugurar Paisagem útil não me parecia preencher esses dois requisitos Era bom que a nova canção fosse como aquela uma marcha de Carnaval transformada mas não uma arrastada e errática marcharancho Tinha que ser uma marchinha alegre de algum modo contaminada pelo pop internacional e trazendo na letra algum toque críticoamoroso sobre o mundo onde esse pop se dava Lembreime de uma canção que eu tinha feito dois anos antes na Bahia para um show que me tinham proposto fazer na Boate Anjo Azul requintado antro de artistas e intelectuais de Salvador e que era uma sátira sobre os jovens alienados da cidade intitulada Clever boy samba O show nunca aconteceu mas a canção diferentemente das outras que eu fazia então era cheia de referências a lugares badalados da cidade um deles era a porta da loja O Adamastor assim chamada não por causa do monstro do poema épico de Camões mas por ser o nome do seu proprietário seu Adamastor Rocha pai de Glauber a gírias da moda a trechos de canções americanas e a estrelas do cinema europeu no intuito claro de criar empatia fácil mas eu tinha certeza surpreendente com a platéia sofisticada do Anjo Azul Rapidamente compreendi que se o tom de mera sátira devia ser subvertido o esquema de retrato na primeira pessoa de um jovem típico da época andando pelas ruas da cidade o Rio agora com fortes sugestões visuais criadas se possível pela simples menção de nomes de produtos personalidades lugares e funções pois esse era o esquema de Clever boy samba devia ser mantido pois era o ideal para os novos propósitos À medida que a canção avançava eu percebia que como no caso de Paisagem útil havia a distância necessária para a crítica para mim uma condição da liberdade mas havia a alegria imediata da fruição das coisas Essa consciência da alegria assim situada me levou a eleger como titulo sem contudo incluir na canção o bordão alegria alegria que o animador de TV Chacrinha emprestara do bom cantor de sambajazz em vias de aderir a um comercialismo vulgar mas nem por isso menos delicioso Wilson Simonal Era um modo de deixar o ouvinte ao mesmo tempo perto e longe da visão de mundo do personagem que na canção diz eu vou Entre as imagens eleitas a menção à CocaCola como que definia as feições da composição inaugural e surgindo ali como que nãointencionalmente a CocaCola fez com que se recebesse Alegria alegria como um marco histórico instantâneo Chacrinha Abelardo Barbosa era um apresentador de rádio que passara com ganho para a televisão Pernambucano com pesado sotaque um homem de poucas letras já na meiaidade então ele comandava seu anárquico programa com um personalismo apaixonado e hipnótico Agredindo com humor mas sem humilhar verdadeiramente os calouros pobres e ignorantes que eventualmente ele interrompia com uma buzina semelhante à de Harpo Marx ele não apenas se punha mas estava de fato no mesmo nível dos candidatos e afora a buzina nada tinha de semelhante ao angelical Harpo sendo um mestiço barrigudo e de voz a um tempo rouca e estridente intrometendose nos números musicais de estrelas comerciais consagradas atirando bacalhau na platéia Chacrinha era um fenômeno de liberdade cênica e de popularidade Seu programa tinha enorme audiência e como se fosse uma experiência dadá de massas às vezes parecia perigoso por ser tão absurdo e tão energético Era o programa que as empregadas domésticas não perdiam e que atraiu a atenção exatamente de Edgar Morin que veio ao Brasil para estudálo Três anos depois no meu exílio londrino encontrei Morin num jantar na casa da adida cultural da França e ele ao saber que eu era brasileiro me perguntou imediatamente Como vai Chacrinha Alegria alegria seu bordão da temporada ele lançou muitos que entraram na linguagem cotidiana se tornou o título dessa minha canção projetada para ser um mero abrealas mas que se tornou o sucesso mais amplo e mais perene entre todas as minhas composições Isso dentro do território nacional uma vez que os estrangeiros mais próximos de mim neste caso não lhe percebem tanta graça Sendo que os brasileiros que nunca a esqueceram jamais se acostumaram com o titulo referindose a ela na maioria das vezes não pelo primeiro verso nem pelo último nem mesmo pelo quaserefrão eu vou mas pelo pregnante sem lenço sem documento que surge duas vezes e em posições assimétricas na longa letra Não creio que isso se deva simplesmente ao fato de a expressão alegria alegria não constar da letra da música É mais provável que a fenda de ironia que separa a canção de seu título tenha dissociado drasticamente uma do outro na mente do ouvinte comum De todo modo sem lenço sem documento corresponde à idéia do jovem desgarrado que mais do que a canção queria criticar homenagear ou simplesmente apresentar a platéia estava disposta a encontrar na canção O verso que se segue à segunda aparição desse quasetítulo Nada no bolso ou nas mãos foi tirado diretamente da última página de As palavras de Sartre numa brincadeira comigo mesmo eu tinha enfiado uma linha do que para mim era o mais profundo dos livros numa canção de circunstância A ambição que tinha me levado a compor tal canção no entanto era grandiosa e profunda Para o tratamento imaginei usar uma formação já existente no mundo do iêiêiê possivelmente a própria banda de Roberto Carlos o RC7 Foi mais por timidez do que por opção estética que não convidei os músicos do Rei O RC7 compunhase de um naipe de metais sobre uma base de baixo guitarra bateria e teclados e mais se aproximava de um som Motown ou James Brown do que de uma banda de neo rocknroll inglês A decisão de aproveitar algum grupo já existente e atuante na área do iêiêiê revela muito sobre a estratégia tropicalista mas também sobre seu significado último e mesmo suas limitações Em vez de trabalharmos em conjunto no sentido de encontrar um som homogêneo que definisse o novo estilo preferimos utilizar uma ou outra sonoridade reconhecível da música comercial fazendo do arranjo um elemento independente que clarificasse a canção mas também se chocasse com ela De certa forma o que queríamos fazer equivalia a samplear retalhos musicais e tomávamos os arranjos como ready mades Isso nos livrou de criar uma fusion qualquer uma maionese musical vulgarmente palatável mas também retardou e isso é deplorável sobretudo no caso de Gil um grande músico uma possível pesquisa nossa no terreno dos arranjos e da própria execução Eu tinha consciência de que estávamos sendo mais fiéis à bossa nova fazendo algo que lhe era oposto De fato nas gravações tropicalistas podemse encontrar elementos da bossa nova dispostos entre outros de natureza diferente mas nunca uma tentativa de forjar uma nova síntese ou mesmo um desenvolvimento da síntese extraordinariamente bem sucedida que a bossa nova tinha sido Para o que seria a estréia tropicalista a apresentação de Alegria alegria no festival da TV Record estávamos todos certos Gil Guilherme e eu de que um grupo de iêiêiê rock deveria ser contratado como acompanhante Antes que eu pudesse comunicar minha intenção de convidar o RC7 a Guilherme ele surgiu com uma solução irresistível A casa noturna paulista O Beco de Abelardo Figueiredo um velho conhecido de Guilherme tinha sob contrato um grupo de rock argentino chamado Beat Boys composto de jovens músicos portenhos muito talentosos e conhecedores da obra dos Beatles e do que mais houvesse Guilherme que os ouvira casualmente numa ida ao Beco me sugeriu que fosse conferir Ao vêlos e ouvilos soube que aquilo era a coisa certa O aspecto do grupo de rapazes de cabelos muito longos portando guitarras maciças e coloridas representava de modo gritante tudo o que os nacionalistas da MPB mais odiavam e temiam O som típico do neorocknroll inglês que eles reproduziam com segurança entraria como um último retoque da composição O mais curioso é que pensando como quem ia simplesmente samplear nem mesmo planejei uma adaptação da minha marchinha ao estilo da banda Era como se eu cresse que a fácil superposição de uma coisa à outra produziria o resultado explosivo desejado Os primeiros ensaios mostraram que tal superposição não seria tão fácil e o resultado que afinal se revelou explosivo mas por razões algo diferentes das que eu imaginava expõe a ingenuidade das soluções encontradas pela combinação de minha temeridade com a boa vontade dos garotos Contudo ouvindo a gravação hoje embora o andamento da versão de estúdio seja deprimentemente lento e meu canto demasiadamente tímido comovome com a forma da introdução com a citação velada de Fixing a hole com o acorde final saltando para fora do ambiente harmônico já de si cheio de mudanças bruscas enfim de tudo o que Marcelo Maurício Toyo Tony e Willie possibilitaram que acontecesse de interessante nessa experiência tateante e fundadora Há um critério de composição em Alegria alegria que embora tenha sido adotado por mim sem cuidado e sem seriedade diz muito sobre as intenções e as possibilidades do momento tropicalista Em flagrante e intencional contraste com o procedimento da bossa nova que consistia em criar peças redondas em que as vozes internas dos acordes alterados se movessem com natural fluência aqui optase pela justaposição de acordes perfeitos maiores em relações insólitas Isso tem muito a ver com o modo como ouvíamos os Beatles de que não éramos eu ainda menos do que Gil grandes conhecedores Na verdade foi uma composição de Gil Bom dia segundo ele influenciada pelos Beatles que sugeriu a fórmula A lição que desde o inicio Gil quisera aprender dos Beatles era a de transformar alquimicamente lixo comercial em criação inspiradora e livre reforçando assim a autonomia dos criadores e dos consumidores Por isso é que os Beatles nos interessaram como o rocknroll americano dos anos 50 não tinha podido fazer O mais importante não seria tentar reproduzir os procedimentos musicais do grupo inglês mas a atitude em relação ao próprio sentido da música popular como um fenômeno Sendo que no Brasil isso deveria valer por uma fortificação da nossa capacidade de sobrevivência histórica e de resistência à opressão Nós partiríamos dos elementos de que dispúnhamos não da tentativa de soar como os quatro ingleses No meu caso tanto em Alegria alegria quanto na posterior e mais rebuscada Clara há a presença assumidamente consciente à época do judaísmo pernambucano de Franklin Dario Os Beat Boys se sentiram à vontade com esse material algo original mas talvez pouco consistente para beatlemaníacos Nos anos 70 tanto eu quanto Gil viemos a compor pelo menos uma canção cada um com as características óbvias do estilo de composição de Lennon McCartney Essas músicas se identificam não sem uma gota de ironia de nossa parte com os pastiches de Beatles que proliferaram mundo afora na forma de temas de abertura de programas de TV O Sitio do Picapau Amarelo de Gil com efeito foi composta para a série televisiva do mesmo nome um programa para crianças baseado na obra de Monteiro Lobato o interessantíssimo autor brasileiro de livros infantis que atuou nos anos 20 30 e 40 A minha O leãozinho é uma canção de ternura por um rapaz bonito do signo de Leão que toca contrabaixo em bandas de rocknroll desde menino e que era menino quando os Beatles estavam no auge Mas essas canções são brincadeiras leves sobre o que já tinha se tornado lugarcomum muito diferente do caso das composições de 66 67 quando ouvíamos nos Beatles algo representativo do que nós próprios ambicionávamos fazer As canções tropicalistas não se pareceu com as canções dos Beatles não na mesma medida em que essas outras são paródias delas Suponho que foi o maestro Júlio Medaglia quem promoveu a aproximação entre nós e o grupo de músicos eruditos contemporâneos de São Paulo a que ele pertencia Medaglia pôs Gil em contato com Rogério Duprat que por sua vez o pôs em contato com os Mutantes A canção que Gil escolhera para apresentar o ainda não nomeado tropicalismo ao público do festival era uma adaptação de temas básicos de cantos de capoeira ao método harmônico de cortes bruscos aqui muito mais entremeados de trechos de harmonia fluente do que no caso de Alegria alegria como sustentação da narrativa fortemente visual na letra de um crime passional ocorrido entre gente humilde num domingo em Salvador Enquanto a minha canção se referia a estrelas de cinema Brigitte Bardot Claudia Cardinale o Domingo no parque de Gil fora concebido quase como um filme Com uma capacidade musical imensamente maior do que a minha Gil entrou num diálogo fascinante com o músico erudito de vanguarda Rogério Duprat e com o grupo de rock Mutantes criando um arranjo híbrido de trio de rock percussão baiana berimbau e grande orquestra Os Mutantes eram três adolescentes da Pompéia bairro de São Paulo de classe média mas com áreas operárias e velhas fábricas sucateadas que então apenas começava a tornarse célebre como celeiro de roqueiros Dois irmãos Arnaldo que tocava baixo e teclados e Sérgio Dias Baptista que tocava guitarra e uma garota Rita Lee Jones que cantava tocava percussões eventuais e um pouco de flauta Os três eram extraordinariamente talentosos Se os Beat Boys já tinham se profissionalizado na noite tocando competentemente covers dos Beatles dos Rolling Stones ou de The Doors os Mutantes ainda semiamadores pareciam não copiadores dos Beatles muito menos de alguns desses outros grupos de menor popularidade ou importância mas seus pares criativos na mesma linha Quando Duprat os apresentou a Gil este comentou comigo assustado São meninos ainda e tocam maravilhosamente bem sabem de tudo parece mentira Eles pareciam três anjos Sabiam tudo sobre o rock renovado pelos ingleses nos anos 60 tinham a cara da vanguarda pop da década Diferentemente dos roqueiros dos anos 50 eles eram refinados tinham um estilo de comportamento cheio de nuances e delicadeza Sérgio com apenas dezesseis anos exibia uma técnica guitarrística de primeira linha em nível internacional Rita e Arnaldo eram namorados desde a infância e tudo em volta deles tinha um sabor a um tempo anárquico e recatado Ela era extremamente bonita e sua porção americana muito evidente era filha de um imigrante americano com uma descendente de italianos lhe dava um ar em que se misturavam liberdade e puritanismo Os três eram tipicamente paulistas o que no Brasil significa uma mescla de operosidade e ingenuidade e talvez nós baianos lhes parecêssemos involuntariamente maliciosos numa entrevista à revista Veja para uma matéria comemorativa de não sei se de dez ou quinze anos do tropicalismo Arnaldo declarou que na época temia que nós propuséssemos sexo grupal ou algo assim Lembro apenas que por causa de Arnaldo tínhamos de evitar palavrões em presença de Rita Isso é tanto mais curioso se se leva em conta que nós sentíamos essa censura tácita apesar de não termos como especial característica de grupo o hábito de dizer palavrões eu próprio tendo crescido sem aprender a fazêlo com naturalidade Era no entanto prazeroso além de espantoso têlos por perto E o resultado do trabalho com eles e do trabalho subseqüente deles como grupo e como artistas individuais Rita tornouse e é até hoje a maior estrela feminina do rock brasileiro foi entusiasmaste Quando chegou a hora de as canções serem apresentadas os lances foram tão dramáticos quanto poderíamos ter esperado mas naturalmente de maneiras muitas vezes imprevistas O mero fato de eu ter comigo no palco um grupo de rock era já um escândalo antecipado Zé Agrippino que tinha me encontrado casualmente em São Paulo durante o período de ensaios me perguntou com um sorriso um tanto irônico não era sua especialidade como ia o projeto de cantar com um conjunto de iêiêiê A maioria das pessoas na platéia do Teatro Record aquela noite talvez não soubesse o que ia se passar mas não era um segredo e não é improvável que algum boato já circulasse na sala antes da minha entrada em cena O fato é que enquanto meu currículo era enunciado pelos apresentadores do programa os Beat Boys como estava estipulado que todos os grupos acompanhantes de cantores fizessem apareceram no palco para ligar seus instrumentos e tomar posição surpreendendo a platéia com seus cabelos longos suas roupas corderosa e suas guitarras elétricas de madeira maciça Iniciouse uma vaia irada que eu interrompi entrando em cena com uma cara furiosa antes que meu nome fosse anunciado o que assustou locutores diretores produtores e público Esse susto foi tanto maior quanto a constatação de que a nãoobservância da tradição de usar smoking na gala desses festivais não se restringia aos meninos da banda minha entrada intempestiva era ainda mais chocante por eu estar usando diferentemente de todos os outros cantores dos músicos e dos apresentadores um terno xadrez marrom e uma camisa de gola rulê laranjavivo tudo emprestado por Guilherme O curto silêncio que se seguiu ao meu surgimento sobre o palco foi interrompido pela voz da apresentadora dizendo o meu nome e quase sem intervalo pelas guitarras e bateria dos Beat Boys que atacaram a introdução Os três acordes perfeitos em estranha relação executados por instrumentos elétricos se impuseram e o silêncio da platéia conquistado pelo susto de minha entrada não foi mais ameaçado o que seria uma tumultuosa vaia se transformou em atenção redobrada E a canção caiu no gosto dos ouvintes que terminaram aplaudindo com entusiasmo Muito se falou a partir desse momento numa rivalidade entre mim e Chico Buarque Ele era a grande unanimidade nacional o jovem compositorcantor excelente e sedutor a estrela máxima desse público estudantil que lotava os auditórios dos festivais Era também o grande sintetizador das conquistas modernizadoras da bossa nova com os anseios de volta ao samba tradicional dos anos 30 e de avanço no sentido da crítica social Como letrista ele era ao mesmo tempo Vinicius de Moraes Caymmi Billy Blanco e Noel Rosa como músico era um pouco Carlos Lyra um pouco João Gilberto um pouco Ataulfo Alves um pouco Geraldo Pereira Seu estilo de certa forma contrapunhase ao de Edu com cujo estrelato o seu rivalizou ao iniciarse e nitidamente se opunha ao sambajazz de Elis e do Beco das Garrafas Tudo isso compunha uma imagem preciosa que sua beleza física sua educação naturalmente elegante seu gênio pessoal só faziam realçar Ele encarnava o melhor do melhor da história da música brasileira e era assim que todos o viam No ano anterior ao lançamento de Alegria alegria ele tinha vencido o festival com uma marchinha singela e antiquada chamada A banda uma crônica nostálgica da passagem de uma bandinha de música de sabor oitocentista por uma rua triste trazendo uma luz efêmera às vidas sem graça das personagens que a habitavam o que funcionava também como uma aparentemente casual metáfora da capacidade que a musica brasileira tem de gerar alegria para um povo que quase conta só com ela para isso A minha gente sofrida Despediuse da dor Pra ver a banda passar Cantando coisas de amor Alegria alegria com sua exibida aceitação da vida do século X mencionando a CocaCola pela primeira vez numa letra de música brasileira e vindo acompanhada por um grupo de rock apresentava um contraste gritante com a canção de Chico E eu naturalmente e ainda mais que chegava para talvez disputar com ele o mesmo lugar no olimpo das estrelas nacionais tinha que fatalmente fazer ao menos na imaginação das platéias o papel de seu antagonista Mas o que ninguém nunca disse nem mesmo eu que até aqui só falei em Beatles Gilberto Gil e Franklin Dario quando tratei da gênese de Alegria alegria é que Alegria alegria foi em parte decalcada exatamente de A banda A banda era claramente uma obra menor de Chico Buarque No seu compacto de estréia ele tinha lançado duas obrasprimas Pedro pedreiro e Sonho de um Carnaval diante das quais essa marchinha parecia o trabalho de uma criança Se Pedro pedreiro um marco na equação do problema participação versus qualidade estética se tornara um sucesso imediato entre os estudantes que freqüentavam os shows universitários de São Paulo e interessava como vim a saber depois aos formalistas da poesia concreta Sonho de um Carnaval de virtudes ainda maiores porém menos evidentes deliciava joáo gilbertianos inclusive o próprio João Gilberto e sambajazzistas além de agradar tradicionalistas do samba carioca como atesta a magnífica interpretação que lhe deu Paulinho da Viola em gravação dos anos 70 Já A banda se podia servir como porta de entrada num mercado mais amplo via TV ou como massificação da atmosfera lírica da persona pública de Chico não representava o alto nível de sofisticação composicional de sua produção Pois bem o que eu imaginara para Alegria alegria era um papel semelhante guardadas ou melhor superexpostas as diferenças de projeto e estilo entre mim e Chico Na verdade o fato de ser uma marchinha fazia de Alegria alegria no contexto do festival uma espécie de antiBanda que não deixava de ser outra Banda Os três primeiros versos das duas canções são permutáveis sobre as respectivas melodias e não apenas por serem heptassílabos o metro mais freqüente na poesia popular brasileira e na poesia ibérica em geral A letra de A banda na melodia de Alegria alegria soa particularmente natural Isso revela que ambas as canções se dirigiram a expectativas formais bem sedimentadas no gosto do público ambas são portanto igualmente antiquadas e ressalta o parentesco entre o personagem que diz Estava à toa na vida A banda e o que se vê caminhando contra o vento sem lenço sem documento Alegria alegria Se público imprensa e colegas apressaramse em observar a potencial rivalidade entre seus autores ninguém se dispôs a flagrar as semelhanças entre as duas canções Apenas a musicóloga Geni Marcondes que tinha sido mulher do maestro Koellreutter chegou perto ao afirmar que o sucesso de Alegria alegria se devia mais a sua parecença com as marchinhas de Lisboa do que a suas aspirações roqueiras E Augusto de Campos escreveu num artigo que Alegria alegria descreve o caminho inverso de A banda De todo modo essas coincidências de forma e fundo entre as duas canções que rapidamente analiso aqui não me eram de todo desconhecidas durante o trabalho de composição de Alegria alegria Eu não estava plenamente consciente de todos os seus aspectos e implicações mas sabia vagamente que Alegria alegria era entre outras coisas uma espécie de paródia de A banda um aproveitamento mais descarado da oportunidade do festival trazendo a um tempo mais crítica e mais aceitação do fenômeno TV Hoje considero muito revelador mais de minha ingenuidade do que de minha lucidez o fato de Chico ter se livrado de sua cançãocartãodevisita como eu não pude livrarme da minha Estou certo de que ele não se sentiria especialmente feliz se as pessoas ainda lhe repetissem que A banda é sua melhor música ou que ligassem seu nome exclusivamente a ela como freqüentemente fazem comigo em relação a Alegria alegria DOMINGO NO PARQUE Para entender a pertinência de observações como as feitas acima é preciso ter em mente a atmosfera em que se davam esses embates de canções no Brasil dos anos 60 O golpe militar levado a cabo em nome da guerra ao comunismo internacional tinha posto um oficial da chamada linha americana no poder o marechal Castelo Branco Isso quer dizer que ele diferentemente dos chamados prussianos que seriam nacionalistas estatizantes queria limpar o Brasil do esquerdismo e da corrupção para poder entregálo às modernidades do livre mercado Quase todos desconhecíamos essas nuances então e ainda quetivéssemos ouvido falar delas em nada isso nos teria mudado pois apenas víamos no golpe a decisão de sustar o processo de superação das horríveis desigualdades sociais brasileiras e ao mesmo tempo de manter a dominação norteamericana no hemisfério As pretensões de uma arte política esboçadas em 63 pelos Centros Populares de Cultura da UNE difundiramse por toda a produção artística convencional e apesar da repressão nas universidades e da censura na imprensa o mundo dos espetáculos viuse sob a hegemonia da esquerda Num ambiente estudantil altamente politizado a música popular funcionava como arena de decisões importantes para a cultura brasileira e para a própria soberania nacional e a imprensa cobria condizentemente Os festivais eram o ponto de interseção entre o mundo estudantil e a ampla massa de telespectadores Esta naturalmente era maior do que a de compradores de discos Mas em todos os níveis tinhase a ilusão mais ou menos consciente de que ali se decidiam os problemas de afirmação nacional de justiça social e de avanço na modernização As questões de mercado muitas vezes as únicas decisivas não pareciam igualmente nobres para entrar nas discussões acaloradas Claro que as meninas gritavam lindo quando Chico entrava no palco e embora com muito menor razão passaram a gritar também para mim mas as conversas e as hostilidades entre os grupos eram motivadas pela posição política de um autor por sua fidelidade às características nacionais por seu arrojo harmônico ou rítmico Era um luxo que fosse assim Com todas as tolices que esse quadro comportava viviase um período excepcionalmente estimulante para os compositores cantores e músicos E um ponto central era genuíno o reconhecimento da força da música popular entre nós Tudo era exacerbado pela instintiva repulsa à ditadura militar o que unia uma aparente totalidade da classe artística em torno do objetivo comum de lhe fazer oposição Esse clima que exercia estímulo igualmente forte sobre cineastas diretores de teatro poetas e artistas plásticos justificou um rótulo jocoso que provavelmente criado por mentes da direita com intuito desabonador não foi tomado sempre como pejorativo por parte daqueles em quem ele era aplicado esquerda festiva uma expressão de gênese e gosto aparentados com os de radical chic mas menos mordaz e antipática do que esta menos inteligente porém anônima mais popular e de todo modo mais generosa além de muito anterior é de fato um epíteto que nos sentiríamos felizes em poder aplicar literalmente por exemplo ao socialismo cubano Infelizmente a dura realidade nunca nos autorizou a fazêlo Na verdade muitas vezes nos anos 70 quando a prefeitura de Roma nas mãos do ainda existente Partido Comunista Italiano promovia shows de música brasileira e de Patti Smith pensei em como a expressão esquerda festiva era adequada PCI e em quão positiva ela era Naturalmente as várias tendências da esquerda se acusavam mutuamente de festivas isto é irresponsáveis exibicionistas mas a conotação agradável da palavra nunca se perdia de todo Sobretudo no meio artístico festivo por definição o xingamento expunha todas as suas nuances Mas o mero fato de que mesmo ali ele fosse usado denota o grau de tensão sob que se trabalhava A TV Record tinha se especializado em música como nenhuma emissora de TV em qualquer lugar do mundo jamais o fez que eu saiba até o advento da MTV Eram programas de auditório com audiências mais ou menos segmentadas Com o Fino da Bossa se iniciara a onda O jovem Guarda correndo em outra faixa crescia sem parecer a princípio ser uma verdadeira ameaça O sucesso de A banda justificou o lançamento de um programa com Chico e Nara uma espécie de réplica cool ao par Elis ReginaJair Rodrigues do Fino Jair Rodrigues um negro paulista de voz aguda e grande musicalidade mas sem cacoetes jazzísticos dividia a liderança do programa com Elis e o fazia com brilho em potpourris de sambas cantados em dueto com muito balanço mas ficava a impressão de que a responsabilidade final era de Elis de cuja figura emanava uma autoridade que ele não parecia querer nem precisar disputar Como o que viria a se chamar tropicalismo pretendia situarse além da esquerda e mostrarse despudoradamente festivo nós nos sentíamos imunes a julgamentos desse tipo Parti para a aventura de Alegria alegria como para a conquista da liberdade Depois do fato consumado eu sentia a euforia de quem quebrou corajosamente amarras inaceitáveis Gil ao contrário considerando que se se dava tamanho peso ao que se passava em música popular e se nós estávamos tomando atitudes drásticas em relação a ela algo pesado deveria nos acontecer em conseqüência um cálculo que eu em minha excitação evitei entrou em pânico Na noite de apresentação de Domingo no parque ele se escondeu sob os cobertores no quarto do hotel nós estávamos morando provisoriamente no Hotel Danúbio em São Paulo tremendo com o que parecia ser uma febre repentina e se recusou a ir para o teatro Ele tinha se separado de Belina sua primeira mulher uma baiana com quem já tinha duas filhas e iniciava um romance com Nana Caymmi filha de Dorival Nana que tinha cantado Bom dia do próprio Gil no mesmo festival para os apupos da platéia esforçavase para convencêlo a ir enfrentar o seu destino Guilherme Araújo também intercedeu O espetáculo já ia a meio quando Paulinho Machado de Carvalho diretorgeral e filho do dono da TV Record foi até o Hotel Danúbio e finalmente conseguiu arrancá lo da cama A apresentação de Gil foi deslumbrante Os Mutantes pareciam uma aparição vinda do futuro A fricção entre o tema afro baiano e o som deles era instigante Beatles berimbau ou Beatles x berimbau e a belíssima orquestração de Rogério Duprat dava a tudo aquilo um ar imponente e respeitável que trazia a platéia para anosluz de distância do momento em que apenas um dia antes esboçou vaiar Alegria alegria E o próprio Gil alegre e extrovertido como sempre não demonstrava em nada o medo de que fora possuído havia poucos minutos Muito pouco ele se dispôs a falar sobre isso nos dias e meses subseqüentes Mas com toda a insegurança íntima de um homem que mudava de vida saia de um casamento e sabiase responsável por uma espécie de revolução Gil deixou escapar breve e vagamente o sentido de uma angústia que um ano depois quando conseqüências terríveis se presentificaram ele soube ou pôde articular melhor Eu sentia que nós estávamos mexendo em coisas perigosas Suponho que as gravações do meu primeiro LP individual começaram por Alegria alegria que precisava estar pronta para sair em compacto simples imediatamente depois da apresentação na TV como era de praxe com todas as músicas dos festivais Não sei se a feitura de alguma outra faixa se iniciou antes da apresentação da canção Mas é certo que não muito tempo depois daquele festival de 67 eu já estava no estúdio acompanhado do produtor Manuel Barembein um judeu paulista narigudíssimo que era produtor contratado da Philips e que comprara nossa briga com carinho e determinação gravando as novas composições que na euforia em que me encontrava surgiam aos borbotões em minha cabeça Paisagem útil é claro seria incluída no novo disco como a irmã mais velha da nova família de canções Onde andarás um bolero meio sambacanção que eu tinha feito ainda no Rio sobre letra de Ferreira Gullar a pedido de Bethânia por funcionar como veículo para a exposição de paródias de estilos sentimentais considerados cafonas e para exemplo de como mesmo parodiandoos podiase amálos e enobrecêlos à maneira da própria Bethânia também entraria Eu tinha decidido inserir entre tantas faixas de aspecto comercial experimental ou vanguardaiêiêiê uma interpretação cem por cento pura de uma música de Dorival Caymmi meu compositor favorito e Dora tinha sido a escolhida porque mantendo o contraste desejado esse sambacanção de tom algo épico e distanciado os clarins da banda militar tocam para anunciar sua Dora agora vai passar venham ver o que é bom subrepticiamente confirmava as escolhas estéticas do disco Lembro que Zé Agrippino ao me ouvir dizer que queria gravar Dora de Caymmi resmungou Não Nesses casos tem de ser radical Mas eu não me deixei abalar Convidei Dori para que gravássemos só nós dois minha voz e o violão dele Dori meu amado arranjador de Domingo era filho do autor da canção e sobretudo o melhor violão de bossa nova na linha de João Gilberto fora o próprio João Gilberto Mas Dori que veio do Rio para São Paulo para gravar criou muitas dificuldades no estúdio aumentando minha timidez a um ponto extremo Várias vezes começamos e ele interrompeu dizendo não lembrarse da harmonia ou não saber qual a melhor harmonização perguntandome insistentemente num tom que me pareceu intimidantemente irônico se eu não sabia que acorde utilizar em tal ou qual passagem Eu me senti assustado despreparado para enfrentar a canção numa palavra desautorizado Dori saiu do estúdio sem que gravássemos sequer uma versão inteira mesmo ruim da canção dizendo não dá não dá sem deixar claro se a deficiência era só minha só dele ou dos dois Com tristeza e vergonha desisti de incluir Caymmi no disco de lançamento do movimento tropicalista Até hoje não sei como interpretar a atitude de Dori Eu sei que ele fazia parte de um grupo de músicos que consideravam o que eu e Gil fizemos como uma traição aos elegantes acordes dissonantes e ao cívico nacionalismo cultural Mas nem por isso ele deixara de vir até São Paulo para gravar comigo Talvez diante de minha insegurança ele tenha concluído que não valera a pena Talvez ele tenha topado num primeiro momento mas tenha se arrependido na última hora temendo participar aa traição envolvendo uma obraprima de seu velho pai Talvez ele por um lado estivesse sinceramente se sentindo ele próprio despreparado para gravar satisfatoriamente aquela canção e por outro percebesse que a minha pretensão de que a mera idéia de gravar Dora e de chamar Dori para fazêlo sampleálo já representava uma solução musical em si era realmente uma traição numa certa medida Manuel Barembein tentou criar um clima que facilitasse as coisas mas em vão aquela sessão de gravação fora trezentos por cento frustrada Não tanto assim para o próprio Barembein que queria que eu incluísse Clarice uma canção nada tropicalista que eu tinha feito com Capinan um ano antes e que ele adorava Como ele entendia a inclusão de Dora como uma mera pausa para relaxamento uma faixa para o disco respirar sentiuse à vontade para sugerir a substituição A princípio teimei em não aceitar Mas depois deprimido pelo episódio com Dori e enternecido com Barembein que me pedia em tom de súplica que gravasse Clarice só para ele cedi Meses depois quando o disco já estava na rua e as discussões sobre ele explodiam Gianfrancesco Guarnieri o grande autor e ator do Teatro de Arena numa mesa do Patachou o restaurante da rua Augusta que freqüentávamos me disse bêbado que apesar de ter ficado muito triste por eu ter me submetido ao comercialismo das multinacionais do disco continuava me amando porque vira que eu guardava um ponto puro em minha alma e que isso aparecia na redentora faixa Clarice do meu novo disco mal sabia ele que essa tinha sido a única concessão que eu fizera à PolyGram De qualquer forma fosse nas minhas relações com os maestros com o produtor ou com os instrumentistas para minha funda decepção pois eu imaginara em minhas noites de insônia um controle dos meios que faria de meu disco um produto internacionalmente inatacável eu me mostrava extraordinariamente tímido Minhas ambições eram muito maiores do que minha capacidade de concentração e de liderança e eu via surgir um aleijão Várias vezes conversando com Gil sobre como o acaso as pequenas peculiaridades psicológicas e vários outros imponderáveis além é claro da evidente pobreza técnica e material em que vivemos no Brasil se interpunham entre o que sonhávamos e o que podíamos fazer ouvi dele que o espírito do subdesenvolvimento assombrava os estúdios de gravação Os Mutantes pareciam em larga medida imunes a esses eflúvios e assim também mas por outras razões Rogério Duprat Tínhamos ainda temos ainda hoje como limite e horizonte os discos de João Gilberto arranjados por Jobim Elis e Roberto Carlos apresentavam exemplos opostos de profissionalismo e os resultados obtidos por ele nos interessavam mais do que os atingidos por ela mas complementarmente insatisfatórios O próprio Gil com seu ouvido incrível e sua habilidade como violonista seu senso rítmico destruidor era uma promessa constante de superação das deficiências do ambiente A colaboração entre ele Duprat e os Mutantes de que tivéramos uma amostra em Domingo no parque quando se espalhasse pelas faixas do LP que em breve fariam juntos compensaria eu pensava minhas próprias frustrações A medida que eu ia tocando para a frente as gravações do meu disco com todas as suas falhas pensei muitas vezes em como talvez fosse o caso de Gil e eu unirmos as forças na criação de um produto forte Nos anos 70 escrevi do exílio para O Pasquim comentando o lançamento do primeiro disco do grupo Novos Baianos O disco como de hábito não é bom Mas em compensação é ótimo Foi assim com os discos tropicalistas dos velhos baianos O do Gil com Duprat e os Mutantes vá lá Mas o meu TROPICÁLIA As outras faixas desse disco que eu levava em frente com idéias entusiasmadas e resultados depressivos eram todas de composições novas Uma delas tinha me levado ao auge da excitação no momento em que a concebi Pensando num velho samba de Noel Rosa chamado Coisas nossas que enumerava cenas personagens típicos e características culturais da vida brasileira e os emoldurava com o refrão O samba a prontidão e outras bossas São nossas coisas São coisas nossas depois de abrir magnificamente com a linha Queria ser pandeiro pra sentir o dia inteiro a sua mão na minha pele a batucar imaginei uma canção que tivesse temática e estrutura semelhantes só que como no caso de Alegria alegria em relação a Clever boy samba não ficasse no tom simplesmente satírico e valesse por um retrato em movimento do Brasil de então Com a mente numa velocidade estonteante lembrei que Carmen Miranda rima com A banda e eu já vinha fazia muito tempo pensando em bradar o nome ou brandir a imagem de Carmen Miranda e imaginei colocar lado a lado imagens idéias e entidades reveladoras da tragicomédia Brasil da aventura a um tempo frustra e reluzente de ser brasileiro A palavra bossa que já estava no samba de Noel anos 30 se impunha naturalmente era claro para mim que ela estaria como em Coisas nossas no refrão da nova música e sua rima com palhoça punha mais do que a bossa nova a TV do Fino da Bossa de Elis em confronto com uma população que mal deixava de ser rural O Carnaval o próprio movimento tropicalista que então ainda não tinha esse ou qualquer outro nome a miséria e a opressão a Jovem Guarda de Roberto Carlos tudo teria lugar ali as palavras encontravam rimas as idéias contrastes e analogias as imagens espelhos lentes e ângulos insuspeitados Mas eu não queria que a nova canção fosse como Coisas nossas um mero inventário Era preciso que um daqueles elementos ou um outro em que não tinha ainda pensado impusesse uma estrutura ao texto a ser cantado de modo a manter um alto nível de tensão entre as abordagens que se sucederiam numa lista monstruosa A idéia de Brasília fez meu coração disparar por provarse imediatamente eficaz nesse sentido Brasília a capitalmonumento o sonho mágico transformado em experimento moderno e quase desde o princípio o centro do poder abominável dos ditadores militares Decidime Brasília sem ser nomeada seria o centro da cançãomonumento aberrante que eu ergueria à nossa dor à nossa delícia e ao nosso ridículo Bem pelo menos era assim que eu sentia as coisas no paroxismo da inspiração A canção real que consegui fazer me entusiasma muito menos do que a imagem difusa que eu fazia dela quando ela era apenas uma possibilidade Mas ela exerceu forte impacto no ambiente de música popular e em muitas cabeças interessantes do Brasil e rendeu estudos acadêmicos em que foi chamada repetidas vezes de alegórica E conheceu considerável sucesso popular O arranjo dessa canção ficou a cargo de Júlio Medaglia Eu tinha distribuído o repertório do disco entre os três maestros da música nova de São Paulo que se aproximaram de nós Medaglia Damiano Cozzela e Sandino Hohagen Rogério Duprat na verdade o mais interessante deles chegara um pouco depois e a partir de Domingo no parque tinha ficado mais ligado a Gil No dia da gravação da base orquestral dessa música que apesar de ser para mim a mais representativa era a única que não tinha título o baterista Dirceu que nada sabia sobre o que tratava a letra que só seria gravada depois ao ouvir a introdução em que sons percussivos cantos de pássaros e intervenções do naipe de metais se superpunham lembrouse da carta de Pero Vaz de Caminha descrevendo a paisagem brasileira no momento do descobrimento A gravação que foi aproveitada contém o discurso que Dirceu improvisou de pura gozação sem imaginar que já se estava gravando e muito menos quão adequada era sua falação ao tema tratado na letra Quando Pero Vaz de Caminha descobriu que as terras brasileiras eram férteis e verdejantes escreveu uma carta ao rei tudo o que nela se planta tudo cresce e floresce e numa referência ao técnico de som Rogério Caos que comandava a mesa de gravação o Gaos da época gravou ouvese Dirceu dizer antes que eu entre com os primeiros versos instauradores do panorama em que se desenrolará a construção da visão algo cubista Sobre a cabeça os aviões Sob os meus pés os caminhões Aponta contra os chapadões meu nariz Eu organizo o movimento Eu oriento o Carnaval Eu inauguro o monumento no planalto central do país A canção longa depois de passar pela imagem de uma criança sorridente feia e morta que estende a mão de sobre os joelhos do monumento por uma piscina com água azul de Amaralina e pelos cinco mil altofalantes que emitem acordes dissonantes sempre entrecortada por um refrão musicalmente fixo mas de letra variável dando vivas a pares de rima primária e contigüidade desconcertante como Viva a bossa sasa Viva a palhoçaçaçaçaça Viva Maria iá iá Viva a Bahia iáiáiáiá Viva Iracema mama Viva Ipanema ma mamama termina por arrematar o grito de Roberto Carlos que tudo o mais vã pro inferno com um Viva a Banda dada Carmen Miranda dada dada Claro que a frase mais famosa do Rei Roberto seguida da Banda de Chico e do nome de Carmen Miranda cuja última sílaba repetida evocava o movimento dadá e para mim misturava seu nome ao de Dadá a famosa companheira do cangaceiro Corisco estes dois últimos personagens reais e figuras centrais de Deus e o Diabo na Terra do Sol dava de forma elíptica mas imediatamente perceptível por qualquer brasileiro que ouvisse canções nunca foram poucos uma reestudada geral na tradição e no significado da música popular brasileira Mas cada refrão tinha sua constelação de sugestões ou referências Além da bossa noelina e nova e elisreginianamente televisiva colada à palhoça temos o nome do filme Viva Maria de Louis Malle Brigitte Bardot era uma presença feminina muito mais constante em minha mente do que a de Marilyn como já disse um filme sobre mulheres e revolucionários na América Latina seguido de iáiá que é o modo como os negros da Bahia que é a palavra que se segue no refrão sempre chamaram suas patroas ou donas assim como toda mulher que lhes fosse superior uma vez que iá é mãe em ioruba depois o par Iracema um anagrama de América nome da índia que é a personagem central e titulo do belo romance oitocentista de José de Alencar e Ipanema palavra tupi que quer dizer água ruim nome tornado mundialmente famoso por causa da Garota de Ipanema de Jobim e Vinicius de Moraes aproxima as duas praias uma do Rio e a outra do Ceará e as duas figuras femininas uma do século XIX outra do século XX uma índia outra branca uma dando nome a uma praia a praia de Iracema em Fortaleza foi assim batizada em homenagem à personagem de Alencar outra tomando de uma praia seu nome a garota de Jobim e Moraes é uma homenagem deles a Ipanema Viva a mata tata Viva a mulata tatatata é o mesmo polissêmico dos refrões mas a polissemia dos outros não é o que justifica sua existência e posicionamento no corpo da canção Observála é apenas um ato de curioso detalhismo a que me dou o direito por entender que pode ser agradável para quem me leia descobrir algumas das causas das emoções ou sensações que a canção porventura tenha desencadeado A mata e a mulata de qualquer modo são duas entidades múltiplas e posto que óbvias misteriosas Seria necessária muita paciência sobretudo do leitor para estender esse tipo de mirada às estrofes mais longas e não menos cheias de sugestões Basta que se diga por agora que essa canção sem nome justificou para mim a existência do disco do movimento e de minha considerável dedicação à profissão que ainda me parecia provisória era o mais perto que eu pudera chegar do que me foi sugerido por Terra em transe Num almoço na casa de não sei quem em São Paulo ao qual suponho que Mário Schemberg compareceu me pediram que cantasse algumas das músicas que eu estava gravando Luis Carlos Barreto um fotógrafo jornalístico que tinha se tornado produtor de cinema depois de magníficos trabalhos como diretor de fotografia devemse a ele as imagens da obraprima Vidas secas e do próprio Terra em transe impressionouse com essa canção o que é perfeitamente coerente e ao ser informado de que ela não tinha título sugeriu Tropicália por causa dizia ele das afinidades com o trabalho de mesmo nome apresentado por um artista plástico carioca uma instalação na época ainda não se usava o termo mas é o que era que consistia num labirinto ou mero caracol de paredes de madeira com areia no chão para ser pisada sem sapatos um caminho enroscado ladeado de plantas tropicais indo dar ao fim num aparelho de televisão ligado exibindo a programação normal O nome do artista era Hélio Oiticica e era a primeira vez que eu o ouvia Eu naturalmente disse que não que não poria o nome da obra de outra pessoa na minha música que essa pessoa poderia não gostar O que eu não disse é que esse nome de Tropicália não me agradara muito embora a descrição que ele dera da instalação me atraísse Tropicália parecia reduzir o que eu entendia de minha canção a uma reles localização geográfica A palavra era pregnante contudo e nós não a esquecemos Guilherme Araújo gostou Manuel Barembein a quem eu cai na asneira de contar a sugestão feita por Barreto agarrouse a esse nome e para todos os efeitos enquanto eu não encontrasse um nome melhor a canção se chamava Tropicália Nas caixas de fitas nas fichas de gravação nas conversas o nome Tropicália se impôs O único outro titulo que me tinha ocorrido Mistura fina era evidentemente insatisfatório Tratavase de uma conhecida marca de cigarro O que estava de acordo com o método de referências publicitárias e ainda não era uma expressão tão gasta quanto hoje mas a palavra mistura enfraquecia a canção Como eu não achasse nunca um outro melhor e o disco já estivesse pronto Tropicália ficou e oficializouse As outras canções do disco pareciam corolários dessa Superbacana com uma lista de nomes de produtos industriais em que o prefixo super aparecia e uma arenga a um tempo amarga e divertida por vivermos num pais periférico além de um final semelhante ao de Panamérica com a idéia de explodir colorido no sol nos cinco sentidos foi gravada com o RC7 como antes eu sonhara para Alegria alegria Eles uma profissão de fé adolescente marcando nossa diferença geracional em relação aos caretas foi gravada com os Mutantes Maria minha única parceria com Rogério Duarte uma canção misteriosa e algo sombria sobre um filho imaginário e Clara uma composição complexa no sistema dos acordes inteiros justapostos que Gil iniciara com Bom dia ficaram a cargo de Sandino Hohagen No dia que eu vimme embora uma das minhas raras parcerias com Gil com os Beat Boys Acho que Paisagem útil e Clarice também foram orquestradas por Júlio Medaglia O resultado geral me pareceu bem mais desigual do que Terra em transe Eu não teria coragem de mostrálo a um estrangeiro como exemplo do nível a que tinha chegado a produção de música popular no Brasil Para mim soava amadorístico ainda soa e confuso sujo Mas Glauber gostou Num encontro na casa do arquiteto e letrista Marcos Vasconcellos no Rio ouvimos todo o álbum num gravador de rolo o disco estava mixado mas ainda não tinha sido prensado e Glauber coerentemente exultou com Tropicália Ele claramente reconhecia as identificações com Terra em transe Fez perguntas sobre dinheiro e relações profissionais que eu não sabia responder As vezes me puxava para um canto e olhando para os lados como se temesse ser ouvido fazia essas perguntas em tom de segredo Ele se mostrava muito espontâneo e queria sempre falar clesabusadamente Seu jeito de falar tinha muito do de Rogério Era uma marca da geração deles em Salvador mas também era identificação pessoal e influência mútua entre os dois Como já contei eu o tinha visto algumas vezes e falado brevemente com ele E o tinha ouvido falar longamente no Clube de Cinema da Bahia Mas a oportunidade de uma verdadeira aproximação propiciada por esse meu novo trabalho revelou sua capacidade de seduzir o tom comicamente conspiratório com que ele demonstrava intimidade e seu sorriso de criança O sorriso de Glauber desarmava porque espremendo os olhos de ordinário esbugalhados e com o branco à mostra por sob a íris desfazia a atmosfera expressionista do seu olhar incisivo e triste trazendo um abandono contagiante um jato de pureza intacta a desintegrar inesperadamente a teia de esperteza e fúria que sua presença tecia o tempo todo Seu estilo pessoal podia ser descrito como um misto de Orson Welles e Marlon Brando que tivesse incorporado um jagunço visionário do sertão da Bahia Mas era frágil Desde essa primeira audição do meu disco tivemos diversos encontros e até o fim ele se mostrou interessado em minhas atividades Mas o diálogo entre nos nunca foi fácil Nem sequer chegouse a estabelecer um verdadeiro diálogo Eu o admirava havia muito tempo e ele impressionado com o que eu estava fazendo esperava de mim uma descontração que seu próprio tom paternalizante impedia Um fato notável nessa noite foi que Marcos Vasconcellos pediu a seu parceiro Pingarrilho um bom compositor e violonista que me mostrasse uma canção feita pelos dois afirmando que eu a adoraria e quereria gravar porque estava totalmente dentro da temática moderna e futurística do meu novo repertório Era um samba típico da segunda fase da bossa nova torto como se dizia um samba de músico quase jazzístico que Pingarrilho cantava com segurança e tocava com virtuosismo Chamavase O astronauta Possivelmente esse título tinha levado Marcos a crer no que me dizia Mas a canção embora deixasse evidentes os méritos musicais do seu parceiro era rica exatamente naquilo que no momento não me interessava E a letra pareceume de um lirismo atroz falando de uma mulher ela que tendo ido embora não se sabe para onde talvez estivesse em Marte dai o astronauta do titulo mas talvez tivesse virado um passarinho ou a estreladalva ou ainda uma pipa de papel de seda um balãozinho Elogiei a composição sem mencionar a letra e nada prometi quanto a gravála Glauber sentiu o constrangimento e riu Tudo se diluiu num restinho de noite de que nada lembro Pois bem anos depois ouvindo em Londres a fita de um disco que João Gilberto tinha feito no México deparome com O astronauta Não digo que João tivesse transformado a canção numa obraprima ele tinha revelado que ela o era O meu mestre supremo me dava assim nesse lance além de uma linda canção para ouvir e reouvir através dos anos uma lição sobre os limites do tropicalismo sobre história sobre música e sobre a forma sutil como a vida mostra sua riqueza Glauber e João díspares separados no tempo enfrentamse para mim nesse episódio dos dois lados de uma canção misteriosa Mas os dois quando se encontraram se comunicaram melhor do que eu conseguia me comunicar com Glauber Pelo menos foi o que este me disse também em Londres anos depois Todos os meus encontros com Glauber foram ilustrativos para mim e também divertidos Mas ele me dizia sentirse pouco a vontade em minha presença Sem dúvida havia por parte dele o desejo de orientar paternalmente e de respeitar Mas não ao ponto de confirmar a critica jesuítica que ele adivinhava em mim aos seus aspectos de mistificador e charlatão Eu por meu turno viao desde a Bahia onde ele era um mito para todos nós como uma força liberadora e estimulante mas não podia deixar de esfriar diante de certas falsidades as quais no entanto eu sabia serem necessárias a composição de sua personalidade deflagradora O reconhecimento por parte dele dessa espécie de perdão só fazia nosso diálogo mais tenso Uma dificuldade que entre mim e João não existe Embora minha reverência por ele seja muito maior do que a que nutria por Glauber Não posso dizer que João gostou de Tropicália ou de qualquer outra canção do meu disco Mas não tardei a saber que ele que então morava em Nova Iorque aprovava vivamente o que eu vinha fazendo e tinha do novo movimento uma visão profunda e isenta de preconceitos A idéia de que se tratava de um movimento ganhou corpo e a imprensa naturalmente necessitava de um rótulo O poder de pregnância da palavra tropicália colocoua nas manchetes e nas conversas O inevitável ismo se lhe ajuntou quase imediatamente Nelson Motta um letrista carioca da nossa geração amigo querido nosso e de toda a turma da segunda geração da bossa nova no Rio iniciandose então no jornalismo e na TV escreveu um texto em que batizava o movimento com esse nome de tropicalismo e extraindo da própria palavra um repertório de atitudes e um guardaroupa folclórico calcado no estereótipo do homem brasileiro de antigamente sempre de terno branco e chapéu de palhinha tomando xaropes de nomes esquisitos contra a tosse languescendo sob uma palmeira inaugurou ingênua e despretensiosamente o que viria a ser uma longa série de interpretações das características do movimento Era na verdade uma declaração de adesão por parte de Nelsinho a uma onda a que se opunham entre indignados e desconfiados todos os seus e nossos colegas do Rio Eu que me resignara a Tropicália por falta de opções que surgissem a tempo e que julgara que a canção afinal não seria tão afetada pelo título engolia mal esse xarope tropicalista As imagens passadistas e folclorizantes me desgostavam o astronauta do titulo de Marcos Vasconcellos estaria mais próximo da minha idéia de roupa ligada à nossa onda do que os ternos brancos embora esses fossem bonitos e pudessem mais tarde ser incluídos mas sobretudo eu achava que ao contrário de tropicália uma palavra nova tropicalismo me soava conhecida e gasta já a tinha ouvido significando algo diferente talvez ligado ao sociólogo pernambucano Gilberto Freyre o que mais tarde se comprovou de todo modo algo que parecia excluir alguns dos elementos que mais nos interessava ressaltar sobretudo aqueles internacionalizantes antinacionalistas de identificação necessária com toda a cultura urbana do Ocidente Era um consolo que os populares e os jornais mais vagabundos nos chamassem de hippies ou de pop ou de novos roqueiros e que alguns intelectuais mais refinados nos identificassem com a vanguarda de John Cage a Godard Mas quem fez o comentário definitivo sobre o rotulo de tropicalistas que acabávamos de ganhar foi dr José Gil Moreira pai de Gilberto Gil Tropicalista sou eu dizia ele rindo que exerço a profissão de especialista em doenças tropicais há décadas De fato o verbete Tropicalista do Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa registra 1 Tratadista de assuntos referentes às regiões tropicais 2 Médico especialista em doenças dessas regiões Alegria alegria era sucesso popular Por causa de minhas declarações a seu favor Roberto Carlos me convidou para cantar no jovem Guarda Fiz aparições espalhafatosas no programa do Chacrinha cantando Tropicália e Superbacana além de Alegria alegria mudeime definitivamente para São Paulo e me casei com Dedé O casamento foi no dia 29 de novembro de 1967 em Salvador e se tornou malgrado nosso um acontecimento público Íamos nos casar na Igreja de São Pedro Dedé de vestido curto corderosa com um capuz da mesma cor um arranjo de Ana mulher de Torquato e eu de terno e camisa de gola rulê laranja na linha inventada por Guilherme para evitar os smokings que todos usavam nas apresentações de TV Eu levava uma grande flor amarela na mão Mas a cerimônia era segredo A família de Dedé e a minha mantiveram tudo no mais absoluto sigilo No entanto na manhã do dia 29 saímos no carro do pai de Dedé e ao entrarmos na avenida Sete de Setembro empacamos num engarrafamento monstro Chegamos à igreja com grande atraso e descobrimos que o engarrafamento se devia à multidão de colegiais que fardadas da escola matavam aula para me ver casar Alguém Dedé sempre pensou que tivesse sido Guilherme Araújo mas ele sempre negou tinha dito a um radialista e este desde o inicio da manhã divulgava horário e endereço Foi dificílimo chegar no interior da igreja E mesmo depois de entrarmos as coisas não se mostraram mais fáceis Hordas de garotas de farda colegial lotavam o templo distribuídas por todos os assentos os corredores os púlpitos os altares Parecia um pesadelo Elas cantavam Alegria alegria e tentavam chegar junto de mim As que conseguiam agarravamse a cachos do meu cabelo e algumas agrediram Dedé Minha mãe sempre tão serena desmaiou Bethânia levou uma pancada na cabeça Eu queria irme embora Mas não dava para sair O padre pediu silêncio e respeito em vão Ele próprio quis desistir da cerimônia mas também não viu como nós poderíamos sair antes que ele pudesse acalmar a garotada Resolveu realizar o casamento assim mesmo Eu me senti muito angustiado Dedé e eu sempre nos dissemos que não íamos nos casar Mas ela acreditou quando sua mãe lhe disse que morreria se ela fosse morar comigo em São Paulo sem que nos casássemos Como eu não tinha nenhuma vontade de me separar de Dedé aceitei que o fizéssemos embora não considerasse como ela dizia considerar que tanto fazia casar como não No meio daquele caos tive medo Muitos homens dizem sentir uma ansiedade de prisão no momento do casamento Eu fiquei desesperado As adolescentes pareciam se multiplicar como anjos lascivos numa igreja barroca baiana não era o caso daquela de São Pedro um templo comparativamente sóbrio do século XIX e eu entrava na vida adulta com um compromisso cujo peso era representado por um sacramento Eu próprio aos 24 anos tinha o aspecto de um adolescente E de fato me sentia mais adolescente do que parecia Alguém já disse que os homens que fixam seu espírito nos temas enfrentados na infância produzem obras profundas enquanto os que repetem indefinidamente as questões e ilusões da adolescência estão fadados a girar nessa zona periférica em que se discute repressão definição sexual e satisfação dos anseios de liberdade Eu me situo no segundo grupo Toda a onda dos anos 60 foi uma escalação de personalidades adolescentes ou de personagens de estilo adolescente Mas profundamente influenciado por meu pai desenvolvi uma verdadeira obsessão da integridade Quando a conheci Dedé tinha dezesseis anos e eu 21 Uma das primeiras coisas que ela me perguntou foi se eu era a favor do amor livre Claro que eu era mas não foi o que lhe disse pelo menos não tão diretamente assim Comoveume a ingenuidade com que ela fez a pergunta Digo ingenuidade não no sentido de ausência de intenções sexuais dela em relação a mim que a atração entre nós era claramente mútua mas no sentido de desconhecimento da complexidade dos possíveis argumentos em contrário à idéia de amor livre E fiz o advogado do diabo Foi um bom começo de namoro Dez anos depois quando ainda estávamos juntos eu anotei que amor e liberdade continuam sendo nosso tema Éramos alegres na companhia um do outro Minha considerável feminilidade proporcionava um companheirismo permanente que fazia de nós um casal de namorados e uma dupla inseparável Eu que conhecera o tenebroso esplendor de uma grande paixão em Santo Amaro uma paixão que nunca me abandonou de todo mas cuja grandiosidade parecia nutrirse em grande parte de sua impossibilidade encontrava finalmente um amor real que se alimentava do que era vivido em nome dele e não do que lhe era recusado Era uma felicidade do corpo vivaz e serena e também uma alegria juvenil de adequação social ter uma namorada e amadurecimento psicológico Dedé era a pessoa certa para esse encontro Muito bonita mas de uma beleza não convencional embora sem ser exótica ela era extremamente original como personalidade Intrinsecamente moderna muito franca e lúcida era intelectualmente muito tímida apesar ou por isso mesmo de se sentir atraída para a convivência literária ou artística Ela própria estudava dança moderna na escola da universidade mas sua indisciplina foi maior que seu talento e ela abandonou os estudos Em 66 combinamos que ela viria para o Rio para estar perto de mim Mas o casamento não era parte dos planos Para aceitar o que ela dizia ser apenas um modo de convencer a mãe dela de a deixar mudarse para São Paulo no Rio ela estava na casa da avó precisei deixar claro que se eu aceitasse o ritual me sentiria com responsabilidades em relação a ele Qualquer outra coisa me pareceria cinismo Ela naturalmente procurou aligeirar meus escrúpulos as mulheres têm menos medo de casar do que os homens Agora eu estava naquela igreja abarrotada como quem tivesse entrado numa alameda errada do labirinto da vida Não sei como saímos dali Tínhamos combinado para depois uma festa só para a família e os amigos íntimos Era para ser tão secreta quanto a solenidade e eu já estava certo de que não seria possível imaginála se realizando O lugar escolhido era um restaurante à beira mar escondido da rua por situarse na parte de trás de um morro sem outras casas no meio da vegetação cercado de varandas e com uma escada que ia dar numa praia linda e sempre deserta Pensei que se as pessoas tinham conseguido descobrir o que se passaria na igreja com maior facilidade encontrariam o restaurante e a praia Mas Tom Zé que se encarregou do segredo desse almoço nos assegurou que tudo daria certo E deu Fomos para esse restaurante e descemos para a praia e não apareceu ninguém que não fosse muito intimo O dia estava lindíssimo tudo se acalmou e alegrou e eu achei Dedé linda e fiquei feliz de estar casado com ela Uma felicidade que durou enquanto o casamento durou Aparecer no programa de Roberto Carlos era uma transposição de fronteira muito significativa O antagonismo entre MPB e iêiêiê era tão evidenciado pela hostilidade daquela em relação a este que um grande compositorcantor como Jorge Ben por ter se apresentado uma vez no Jovem GUarda se vira posto no índex do Fino da Bossa Mas Jorge Ben que tinha estourado em 63 com uma variedade muito própria de bossa nova diferente dos fundadores e diferente da turma do Beco das Garrafas simplificada e africanizada já estava a essa altura fazendo uma fusão de samba com rhythmblues inaceitável na área da MPB Na verdade depois de ter sua música Mas que nada estourada mundialmente via Sérgio Mendes Brazil 66 Jorge Ben caíra numa espécie de ostracismo entre as figuras de prestígio e só Roberto Carlos lhe dava guarida Uma canção sua dessa época anuncia Eu sou da linha JovemSamba tentando uma paz e uma síntese entre a Jovem Guarda e a MPB que não extrapolou os limites dia própria canção Gil era um apaixonado por Jorge Ben desde a Bahia Uma noite cumprindo uma apresentação numa boate de Salvador ele declarou que tinha deixado de compor e não cantaria mais nenhuma das suas composições pois surgira um cara chamado Jorge Ben que fazia tudo o que ele achava que deveria fazer e fez um show todo de canções de Jorge Ben Eu que gostava de Jorge Ben por sua originalidade e energia não admitia que um talento musical como o de Gil silenciasse em reverência a ele Sobretudo me parecia quase chocante que Gil muito mais capaz de ouvir harmonias do que eu dissesse preferir abandonar tudo por causa de um músico infinitamente mais primário do que ele Embora eu achasse seu gesto radical tão apaixonadamente generoso não podia compartilhar de suas motivações Atribuío em parte e creio que não de todo erradamente a razões raciais Jorge Ben era não apenas o primeiro grande autor negro desde a bossa nova um papel que poderia ser de Gil mas era principalmente também o primeiro a fazer desse fato uma determinante estilística Só em 67 é que vim a perceber o quanto a intuição de Gil tinha sido mais profunda e abrangente do que isso E justamente por causa do engajamento no tropicalismo um roteiro de ação imaginado e encomendado pelo próprio Gil Uma gravação de Jorge Ben capsulava todas as nossas ambições Era Se manda um híbrido de baião e marchafunk cantado e tocado com uma violência saudável e uma natural modernidade pop que nos enchiam de entusiasmo e inveja Não é que Jorge Ben criasse fusões tampouco podese dizer que ele tenha passado da bossa nova para o rhythmblues Sua originalidade quando apareceu com sua versão do samba moderno Samba esquema novo nascia justamente de ele tocar o violão como quem tivesse se adestrado ouvindo guitarras de rock e música negra americana E em parte havia sido de fato assim Ele mais ou menos participara da turma de amantes do rock que reunia Erasmo Carlos Roberto Carlos e Tim Maia nos bairros cariocas da Tijuca e do Méier A imediata tematização da negritude que em Salvador impressionou Gil tão mais fortemente porque este sempre evitara fazelo em qualquer nível se traduzia na batida do violão e no fraseado meio afro meio blues miais do que em eventuais vocábulos africanos ou pseudoafricanos e referências explícitas à experiência negra nas letras O que ele fazia agora era um uso da guitarra elétrica que ao mesmo tempo o aproximava dos blues e do rock e revelava melhor a essência do samba tal como ela podia manifestarse nele O que estivera latente na fase inicial se explicitava e aprofundava nessa fase de degredo na Jovem Guarda Sendo carioca e dos mais arraigadamente característicos Jorge Ben exilarase em São Paulo por vários anos O noivado com a bela paulistana Domingas poderia explicar parte dessa decisão mas nitidamente havia a motivação do desprestígio em que caíra no Rio e portanto no Brasil em geral São Paulo era um campo vasto e neutro onde sucessos parciais e setorizados que não dependiam da adesão nacional eram possíveis Mas o que nos atraia eram menos as misturas estilísticas que ocorriam nele do que a atmosfera de alegria física genuína que sua presença no panorama da música brasileira instaurava Saúde era a palavra que mais nos vinha aos lábios quando falávamos nele Essa já se tornara e permaneceria uma palavrachave para nós em julgamentos e apreciações José Agrippino e Rogério já a tinham usado para falar até de literatura na verdade Rogério se referira a Panamérica como um livro demasiadamente saudável para ser boa literatura Você tem muita saúde dissera ele a Agrippino talvez a literatura precise de um pouquinho mais de neurose dandolhe uma conotação que eu captei e incorporei imediatamente Saúde era o que exalava da figura do timbre das idéias de Jorge Ben A própria atração pela cena pop norteamericana era já para nós a essa altura um sinal de saúde A cena pop norteamericana e o culto que lhe renderam ingleses criadores do neorock dos anos 60 era apenas um dos elementos que nessa viragem tropicalista tínhamos deixado de desprezar como vulgares para cultuarmos como saudáveis Se manda com sua agressividade alegre é uma letra de mandar embora a mulher que vacilou sumariamente e sem culpa e sua musicalidade deixando à mostra traços crus de samba de morro e blues numa composição de exterioridades nordestinas era a encarnação dos nossos sonhos Pareciame que minha Tropicália era mera teoria em comparação Uma tentativa de tratado sobre aquilo de que Se manda era um exemplo feliz Jorge Ben sem criar uma fusão artificiosa e homogeneizante apresentava um som de marca forte original pegando o corpo de questões que nos interessava atacar pelo outro extremo o do tratamento final enquanto nós chegávamos a soluções variadas e tateantemente incompletas nesse campo Gil e eu elegemos a faixa Se manda por ser nesse sentido extraordinariamente bem sucedida também porque as características nordestinas a aproximavam de nós baianos mas o que foi dito aqui sobre essa gravação se aplica a todo o LP O bidu em que ela se encontra e a todo o trabalho de Jorge Ben do final dos anos 60 Jorge se tornou um símbolo um mito e um mestre para nós Gil que o amara irrestritamente desde o início tomou seus procedimentos musicais de então como uma das fontes principais de inspiração para suas buscas no violão e nos arranjos e eu que desde aquela época repetidas vezes imitei alguma coisa do seu jeito de fazer poesia e de cantar tendo gravado um bom número de suas canções uma vez escrevi que se nós tropicalistas tínhamos em nosso afã de pôr as entranhas do Brasil para fora efetuado uma descida aos infernos o artista Jorge Benjor é o homem que habita o país utópico transhistórico que temos o dever de construir e que vive em nós 2002 Dedé e eu nos mudamos para um apartamento que Guilherme encontrara para alugar na esquina da Ipiranga com a São Luís no centro de São Paulo Guilherme que tinha morado em Roma em Paris e em alguma cidade da Alemanha tinha uma visão muito livre do que fosse morar bem Talvez já a essa altura a idéia de morar no centro da cidade tivesse começado a se tornar o que é hoje algo fora de moda e pouco seguro Mas Guilherme via as vantagens de conforto e preço e ignorava os preconceitos Não estou sequer seguro de que os houvesse em relação ao endereço escolhido tal a minha alienação dessas coisas práticas Dedé foi ver com Guilherme aprovou e eu fui como que levado O prédio no qual ele também achara um apartamento para si mesmo era um desses primeiros arranhacéus residenciais de São Paulo de paredes sólidas entrada com mármore nas paredes e no chão e elevadores com largos frisos dourados O aspecto era antes antiquado e digno do que ostentoso E os apartamentos eram muito claros e amplos Guilherme ocupou um no décimo oitavo andar e nós um no vigésimo Na esquina em frente viase o Edifício Itália um dos mais altos da cidade e era gostoso viver no coração de uma cidade grande entre grandes edifícios Sobretudo porque o nosso apartamento tinha uma varanda aberta com uma balaustrada robusta onde eu podia me sentar para ver o céu o tráfego lá embaixo sentir o vento e encher Dedé de medo de que eu caísse O primeiro mês se passou sem que nós nos decidíssemos por uma mobília para as salas de visita e de jantar Tínhamos comprado cama e móveis de quarto geladeira e fogão e naturalmente um som que ficava num quarto que ficou para sempre conhecido como o quarto do som O resto eram imensos espaços vazios onde era maravilhoso estar O chão refletia a luz das janelas e a gente se sentava nele para conversar cantar ler Eu já estava tão habituado a viver num apartamento sem móveis e achava que isso resolvia tão bem a questão de estilo para decoração que protestei intimamente quando alguém apareceu com umas sugestões e a arrumação das salas se iniciou Foi um cara chamado Piero Era um italiano que morava em São Paulo um moço inteligente creio que era artista plástico Ele começou dizendo que conhecia o dono de uma fábrica de acrílico e que poderia desenhar móveis originais para nós e têlos fabricados e montados nessa fábrica em breve tempo e por relativamente pouco dinheiro Eu e Dedé achamos a idéia de móveis de acrílico gozada mas só aos poucos nos deixamos convencer O resultado foi que Piero encheu nossas salas de móveis transparentes de cores variadas mas todas ácidas Ele comprou também duas imensas poltronas infláveis de plástico também transparentes e no amplo pórtico que separava a sala de visitas da de jantar colocou uma espécie de manequim de fibra de vidro uma figura de mulher nua e careca em tamanho natural Não satisfeito ele pendurou por sobre essa estátua uma porção de lâmpadas coloridas cujos fios de que pendiam em alturas diversas estavam ligados à vitrola lá no outro quarto de modo que os sons graves acendiam as lâmpadas azuis os médios as verdes e as amarelas e os agudos as vermelhas Na parte de cima do pórtico ele prendeu dois grandes ganchos de açougue A mesa em que comíamos e essa tinha sido a única idéia partida diretamente de mim e de Dedé era uma mesa de pinguepongue sempre com a rede armada Nós só pedimos timidamente que Piero parasse quando ele começou a pintar a vidraça da janela que ficava em frente a essa mesa transformandoa numa espécie de vitral hippie demasiadamente enjoativo Tudo isso descrito assim pode dar a impressão de que o apartamento estava se transformando numa monstruosidade cujo ridículo só é divertido hoje visto de longe Na verdade nós não impedíamos Piero de continuar porque estávamos gostando do que víamos E mesmo hoje na lembrança eu lhe entendo o encanto Antes de termos qualquer móvel em casa a única idéia de decoração que me havia ocorrido além da mesa de pinguepongue foi a de cobrir uma das paredes do apartamento com um vistoso anúncio de rua desses que aqui no Brasil chamamos outdoors representando uma moça bonita jogando tênis contra um imenso fundo de céu azul Era uma propaganda de açúcar o texto dizia simplesmente mas algo enigmaticamente Açúcar sacode e era uma visão da própria saúde de que tanto falávamos Por causa das conversas com Rogério e Agrippino dos textos de Morin e dos desenvolvimentos da sensibilidade que dispararam com a empreitada tropicalista eu vinha já havia algum tempo observando a beleza dos anúncios das revistas vulgares dos produtos de consumo e apesar de ser um eterno e arraigado anticonsumista detesto comprar passei a entrar em supermercados só para olhar as latas e as caixas empilhadas desbravar os corredores multicoloridos com seu clima de ficção científica e decoratividade mística A saúde da vida anônima e comum a saúde de ver a beleza total e única nas superfícies a saúde do mercado tudo isso eu via nas veredas dos supermercados e tudo isso estava encarnado na beleza sexual da moça que jogava tênis no cartaz O jogo de tênis por outro lado também lembrava Godard para mim um verdadeiro poeta dessas coisas todas como Agrippino em sua radicalidade antilírica não parecia poder ser por causa das imagens iniciais de Pierrot le Fou com as duas moças que jogam tênis e o texto sobre a luz em Velásquez Nunca pude trazer o outdoor para dentro de casa mas a mesa de pinguepongue e a aceitação das invenções de Piero já denotavam que eu queria que minha primeira moradia paga com meu próprio dinheiro fosse ela mesma uma profissão de fé tropicalista E não estava portanto preocupado em ser sóbrio ou discreto ao decorála Mas uma coisa é não temer ser gritante outra é ter que viver num lugar feio O que Piero estava fazendo embora não fosse a realização de um plano nosso nem a expressão acabada de nosso gosto era divertido diferente e delicado Misteriosamente tornavase nosso de um modo que escapava a nosso controle A luz que vinha das janelas incidia nas poltronas de acrílico cujas arestas se tornavam cintilantes As cores seriam estridentes se o material não fosse translúcido Tal como era faziaas resultarem calmantes para os olhos e o espírito Os ganchos de prender carne visíveis desde a porta de entrada davam uma nota agressiva hoje nos pareceria uma referência ao punk cortando a doçura que a transparência emprestava às cores ácidas A boneca de fibra de vidro que era de cor neutra ou incolor e era translúcida sem ser transparente ficava em boa proporção com as salas grandes dando a tudo um ar espaçoso como se se tratasse de uma exposição de esculturas planejada com humor mas sem desconforto visual E quanto às lâmpadas que meio a circundavam elas estavam conectadas com o sistema de som mas isso em nada se parecia com esses painéis ingênuos encontradiços em boates de dança a gogo a palavra portuguesa discoteca era usada no seu significado próprio de coleção de discos ou loja de discos a forma francesa discothèque que os americanos elegeriam na década seguinte para designar clubes noturnos de dança ainda não tinha entrado em voga Eram lâmpadas comuns do tamanho das que se punham no teto de uma sala penduradas em seus próprios fios a partir do pórtico pendendo em alturas diferentes como que ao acaso Como um cacho de frutas desfalcado de cores variadas elas se derramavam por sobre a cabeça e os ombros do manequim Quando apagadas e era como elas ficavam quase todo o tempo mesmo à noite pareciam um elemento a mais a compor a escultura de fibra tinham mesmo a aparência moderna e despojada de uma composição artística que exibisse propositadamente suas instalações elétricas E os usos que lhes descobrimos para a música estavam longe de ser os da primária pulsação rítmica de cores seguindo baixos e bumbos rotineiros nas boates O mais impressionante deles e o que mais elucida o gosto com que curtíamos esse artefato tendo sido o de observar o que produzia no cacho de lâmpadas a voz de Mahalia Jackson cantando Summertime ou Sometimes I feel like a motherless child a capela Às vezes a gente apagava todas as luzes da casa e ficava apenas com a voz de Mahalia cujo timbre fazia as luminosidades amarelas e vermelhas sustentaremse por algum tempo entremeadas de relâmpagos azuis para darem lugar a azuis e verdes que crescendo e caindo em intensidade bruxuleavam como fogosfátuos até sumirem junto com as últimas notas e palavras no silêncio do escuro total O ano de 1968 em muitos pontos do mundo lembrado como violentamente significativo teve para nosso grupo tudo o que caracterizou o folclore histórico criado a seu respeito Na verdade toda esta seção do livro só terminará quando ele terminar Mas um episódio algo frívolo revela muito da autoconsciência exibida pelas pessoas atuantes no período A Rhodia fabricante de tecidos nos convidou para participar de um show que diziam a companhia produzia anualmente com artistas importantes como atração na grande feira nacional da indústria têxtil em São Paulo a Fenit O show se chamaria Momento 68 Havia alguma promessa de participação da empresa no patrocínio de um possível programa tropicalista na TV Por outro lado eles nos acenavam com um texto escrito por Millôr Fernandes com um diretor de teatro respeitado e com dois grandes atores Ficamos sabendo que o show incluiria além de um balé dirigido por Lennie Dale um desfile de moda Quando se iniciaram os ensaios Gil e eu vimos que o negócio era estranho Não apenas os nossos números eram entreatos dos desfiles como os textos eram de uma assintonia atroz com nosso estilo e com tudo o que nos interessava Os figurinos que tínhamos que usar eram horrivelmente estilizados sem que faltassem os ternos brancos tropicalistas e as piadas ditas pelos dois atores eram caretas No entanto tínhamos assinado os contratos e embora achássemos tudo aquilo ridículo contávamos com a camaradagem dos bailarinos do coreógrafo dos atores e apesar das limitações impostas pelo produtor das modelos O diretor não tinha tempo para conversas mas era gentil e flexível Achávamos jeito de ir agüentando Mas eu me assombrava com o absurdo da situação os temas da contracultura eram abordados em tom de piada de clube social e nós dois estávamos ali sobre aquele palco Era a visão jornalística superficial das marcas do período um aspecto grotesco do que se poderia chamar de um narcisismo de época Não doía demais apenas parecia irreal Mas foi esse show que nos levou pela primeira vez para fora do Brasil Depois da feira em São Paulo o Momento 68 se apresentaria no Rio em Lisboa em Buenos Aires e em Montevidéu Havia um tempo entre Portugal e a Argentina e eu combinei com Dedé de nos encontrarmos em Paris E assim fizemos Dali fomos a Londres Gil foi de Lisboa para Madri com parte do corpo de baile Foi comovente conhecer Lisboa agradável conhecer Paris e intrigante conhecer Londres Na volta ao Brasil não lembro mais o que foi que o produtor do show disse ou fez que me deixou à vontade para sair do projeto xingandoo Gil me acompanhou na decisão Não fornos a Buenos Aires nem a Montevidéu Fiquei aliviado e rindo pelos cantos Eles não nos processaram por termos deixado o show a meio caminho acho que meu pretexto para sair tinha algo a ver com a não confirmação dos compromissos assumidos por eles de patrocinar nosso programa de TV Como esse show pretendia ser uma síntese do que vinha sendo o ano de 1968 e como ele tentava realizar essa pretensão de modo alheio e falso a lembrança desse evento é débil em minha mente mas parece um outro ano de 68 virtual e paralelo fantasmagórico uma realidade esquálida mas coerentemente fechada em si mesma A POESIA CONCRETA Enquanto a reação da estudantada de esquerda era francamente desfavorável e muitos colegas compositores torciam o nariz a imprensa embora criticamente dominada por posição semelhante tinha no espalhafato das apresentações e nas próprias discussões que elas geravam um prato cheio para sua produção diária de reflexão sensacionalismo e intrigas Nesse caso como em outros mais freqüentes do que se imagina era exatamente sua venalidade que a salvava Pelo menos do moralismo estreito e do tradicionalismo tacanho Nós aparecíamos nas revistas especializadas em televisão nas de amenidades no noticiário cotidiano dos jornais e nas crônicas e artigos de novos e velhos jornalistas além é claro de sermos citados freqüentemente nas perguntas feitas pelos repórteres a outros artistas Episódios grotescos não faltaram como o do produtor e apresentador de TV Flávio Cavalcanti uma figura folclórica do conservadorismo sensacionalista que comandava um programa em que um corpo de jurados julgava canções sobre as quais o próprio apresentador fazia inflamados discursos de reprovação moral ou louvação sentimental que forçando bastante encontrou nas iniciais das palavras sem lenço sem documento da letra de Alegria alegria uma referência ao ácido lisérgico S L SD e portanto uma instigação ao uso de drogas o que o levou a repetir o gesto que executava em ocasiões semelhantes e que lhe garantia a manutenção da fama algo cômica algo sinistra quebrou um exemplar do disco que continha tal infâmia Muitas manifestações de repúdio às novidades que trazíamos se seguiriam a essa Sempre felizmente em nível mais alto E tinham como alvo nosso suposto comercialismo e sobretudo nosso desrespeito aos princípios do projeto estético das esquerdas dito nacionalpopular Mas eu pude ver publicada na revista Manchete entre fotografias coloridas algumas de página inteira uma entrevista minha em que eu declarava que quando ouvi João Gilberto pela primeira vez tive vontade de fazer música Depois industrializouse mas não muito um samba classe A com aparatos jazzísticos e clichês políticos o qual à medida que ia perdendo terreno deixava de ser um bom produto para tornarse apenas uma idéia de defesa da pureza de nossas tradições contra todo esse lixo vendável boleros versões e por fim o chamado rock nacional Sentiame perdido jamais pensara em música como produto e não considerava o Fino da Bossa como a salvação de nossas tradições E Negome a folclorizar meu subdesenvolvimento para compensar as dificuldades técnicas O fato de essas mostras de lucidez poderem destacarse da banalidade predominante na revista de maior circulação no país só agravava minha sensação de frustração ante o resultado das gravações já prontas para compor o esperado disco Eu desejara criar um objeto conceitualmente forte e de artefinal irretocável e no fim das contas tinha de me animar a defender o que restara apesar de tudo de instigante num mondrongo esquálido As dificuldades técnicas exibiam um subdesenvolvimento não folclorizado é certo mas eu tinha imaginado um nível de feitura que resolvesse provisória mas satisfatoriamente esse feixe de problemas Tinha de contentarme com a ousadia das idéias como única mantenedora do nível aceitável da empreitada Não quero dizer com isso que desprezo o empenho ou a capacidade do produtor Manuel Barembein e muito menos dos arranjadores Medaglia sobretudo fez um trabalho notável Apenas consciente de que a unidade final dependia de minha liderança reconheço não ter possibilitado ou exigido o que num caso desses vem a dar exatamente no mesmo que esses colaboradores chegassem a um desempenho que transcendesse todo provincianismo mas como eu poderia se de todos eu era justamente o que mais tímido e desarmado me achava dentro do estúdio De qualquer modo o resultado por menos que me satisfizesse revelavase eficaz no ataque aos alvos cruciais mirados pela primeira inspiração tropicalista As reações iradas ou meramente assustadas que surgiam na imprensa nos auditórios e nas universidades eram prova disso Mas não eram somente as reações negativas que reafirmavam a pertinência de nossa posição O conjunto dos aspectos instigantes na música ela mesma e da considerável articulação dos esboços de idéias que se encontravam em minhas entrevistas chamou desde muito cedo a atenção do poeta Augusto de Campos Antes de o tropicalismo ganhar corpo e nome Augusto tendo ouvido Maria Odete cantar Boa palavra no festival da TV Excelsior e por outro lado tendo lido minha intervenção num debate sobre música popular na Revista Civilização Brasileira no qual eu insistia na ênfase sobre João Gilberto e preconizava a retomada da linha evolutiva que este representava escreveu um artigo chamado Boa palavra sobre a música popular saudando minha chegada no cenário da MPB como um fato auspicioso Alex Chacon cheio de entusiasmo me mostrara esse artigo no Rio Isso foi antes de que eu assistisse a Terra em transe antes mesmo de que Rogério me apresentasse a Zé Agrippino O que é mais importante antes dos comentários de Bethânia sobre Roberto Carlos e a Jovem Guarda Certamente por essa razão mas também por eu não conhecer o nome do articulista nem encontrar nenhuma outra reação ao artigo além da de Alex o texto me pareceu vindo de outro planeta Eu estava preparado para a crítica ali apresentada por Augusto ao estilo enfático então ressurgente em decorrência da entrada em cena dos temas políticosociais com o advento da canção de protesto e quanto à volta ao samba tradicional e ao folclore nordestino minha declaração citada por ele Só a retomada da linha evolutiva pode nos dar uma organicidade para selecionar e ter um julgamento de criação era eco de um longo artigo que eu escrevera em 65 para a revista Ângulos publicação universitária de Salvador em que ataco os nacionalistas passadistas que liderados teoricamente pelo sociólogo José Ramos Tinhorão tentavam desmerecer e mesmo anular as conquistas da bossa nova Mas a revisão critica que Augusto esboçava fazer de Roberto e Erasmo Carlos ainda me era inaceitável eu fechava o meu artigo da Ângulos opondo uma facção responsável da juventude brasileira a mesma que eu queria reconquistar das garras dos nacionalistas retrógrados para a linha evolutiva da bossa nova àquela outra facção que tem algumas mocinhas tão suburbanas quanto Emilinha Borba e rapazes a meio caminho entre beatles e Francisco Carlos como ídolos identificando assim a turma da Jovem Guarda com as figuras artisticamente menos prestigiadas entre os grandes sucessos de massa do rádio brasileiro dos anos 50 Mais de antemão eu defendia essa posição ideológica contra as possíveis recuperações críticas que tais fenômenos publicitários encontrassem em frases mais ou menos inteligentes ditas na Europa a respeito de juventude e ritmos alucinantes Além disso o artigo de Augusto me soou um tanto acadêmico justificando seu interesse por Roberto e Erasmo em observações tecnoestilísticas que eu não estava disponível para analisar O que me parece incrível hoje relendo esse artigo de Augusto é que na época do tropicalismo eu já tendo superado o preconceito contra a Jovem Guarda e afinal fazendo como ele fizera uma aproximação entre João Gilberto e Roberto Carlos não tenha me reportado nem mesmo íntima ou interiormente ao aspecto profético das considerações ali expostas A rigor se eu tivesse lido com propriedade as conseqüências que Augusto tirou de minha fala seu artigo teria sido o verdadeiro estopim de minha virada De fato nem Terra em transe nem Edgar Morin nem as insinuações de Guilherme nem mesmo as conversas com Rogério e Agrippino vieram a apresentar uma visão tão completa das questões que enfrentaríamos no tropicalismo Ninguém depois de Augusto até que o tropicalismo estivesse nas ruas tocou com tanta precisão os pontoschaves dos problemas específicos da música popular de então Seu artigo dizia por exemplo que os nacionalóides preconizavam um retorno ao sambão quadrado e ao hino discursivo folclóricosinfônico que eles queriam voltar àquela falsa concepção verdeamarela que Oswald de Andrade estigmatizou em literatura como triste xenofobia que acabou numa macumba para turistas Foi nesse estado de coisas que chegaram a Jovem Guarda e seus lideres Roberto e Erasmo Carlos para embora sem o saber evidenciar a realidade e o equivoco Para demonstrar que enquanto a música popular brasileira como que envergonhada do avanço que dera voltava a recorrer a superados padrões e inspirações folclorísticos a música estrangeira também popular mas de um outro folclore não artificial nem rebuscado o folclore urbano de todas as cidades trabalhado por todas as tecnologias modernas e não envergonhado delas conseguia atingir facilmente a popularidade que a música popular brasileira buscava com tanto esforço e tamanha afetação populística Cúmulo do paradoxo já há noticia de que surgiram no Recife romances de cordel narrando o encontro do rei do iêiêiê nacional com Satanás glosando o tema da música de Roberto Carlos Quero que vá tudo pro inferno A maior parte não entendeu que o iêiêiê sofreu uma transformação na sua tradução brasileira que não é nos seus melhores momentos mera cópia do estrangeiro Já tive oportunidade de observar que quanto ao estilo interpretativo os dois Carlos estavam mais próximos de João Gilberto do que muitos outros cantores atuais da música popular tipicamente brasileira e João Gilberto por sua vez tem muito mais a ver com os cantadores nordestinos do que muitos ulradores do protesto nacional A clareza com que Augusto via o panorama da MPB de então se mostra mais surpreendente quando penso que a impressão de distância que o tom do seu artigo me dava correspondia a uma condição real ele não apenas era um poeta de formação erudita como também em parte por causa da natureza e amplitude dessa erudição mas sobretudo pela radicalidade do experimento poético a que se dedicava desde os anos 50 estava à margem tanto das correntes dominantes da intelectualidade brasileira quanto do mundanismo dos ambientes artísticojornalísticos onde se discutia ou fazia música popular Ele parecia saber se colocar com firmeza diante das questões cruciais mas evidentemente lhe faltava a vivência da faixa em que a esquerda festiva se movia e em que circulavam as fofocas vivência que talvez lhe tivesse dado a malandragem de linguagem que me teria conquistado à primeira leitura Mas há uma razão mais convincente para eu ter esquecido o artigo É que justamente por ser tão bem amarrado quase esquemático ele chegou com um roteiro pronto um roteiro que eu não poderia enxergar se não o refizesse por minha própria conta Não que eu tenha esquecido o artigo no sentido de negalo inconscientemente como numa espécie rasteira de angústia da influência Na verdade eu não o absorvi propriamente e como não conseguia discordar de seus avanços mais ousados nem tinha noção da importância de seu autor nem encontrei um só entre meus conhecidos que o tivesse lido simplesmente o considerei inexistente Assim como o distanciamento munia Augusto daquele olhar seletivo que só via o que era relevante no quadro dado meu envolvimento dificultava uma mirada geral suficientemente objetiva e me impedia de compartilhar com ele o seu ponto de vista A defesa de Roberto Carlos não me chocou nem me excitou era um tema levemente incômodo que tinha sido tocado por um desconhecido um tanto sem humor e que não parecia pesar na balança das opiniões Tampouco me entusiasmava a simpatia ali exposta pelas minhas idéias que eram no essencial para o artigo identificadas com as de Edu Lobo que eu tanto admirava mas de quem discordava tanto quando se tratava de opiniões e teoria já que eu cria que ninguém ia ler aquilo Não guardei nem por um dia a página do jornal Quando algum tempo depois Capinan me mostrou o livro sobre Sousândrade e pronunciou o nome dos irmãos poetas que o haviam organizado Augusto de Campos e Haroldo de Campos eu não só não reconheci o nome como ainda dessa vez não o fixei Augusto e seu irmão Haroldo juntamente com Décio Pignatari formavam o núcleo do grupo de poetas que no meio dos anos 50 lançaram o movimento de poesia concreta uma retomada radical do espírito modernista dos anos 20 e das idéias de vanguarda do inicio do século contra os pudores antimodernistas e antivanguardistas que tomaram conta da poesia e da literatura brasileiras primeiro com os romancistas regionalistas dos anos 30 e depois com os poetas da chamada geração de 45 Os poetas concretos sentiamse em sintonia com músicos europeus como Boulez e Stockhausen que nos anos 50 retomavam a radicalidade da escola de Viena sobretudo Webern e com os pintores que seguiam os caminhos de Mondrian e Malévitch e levando às últimas conseqüências o fato de que poesia não é propriamente literatura valorizaram os aspectos físicos da palavra criando um tipo de poema que foi qualificado inicialmente como visual já que sobre o papel a ênfase caía na tipografia no uso da cor e dos espaços em branco mas que eles sempre quiseram na expressão de Joyce verbivocovisual Conhecedores apaixonados dos movimentos pioneiros da primeira década do século futurismo italiano suprematismo e cubofuturismo russos dadá internacional etc com uma certa antipatia pelo surrealismo eles tomaram posição bem definida em face dos modernismos dos anos 20 em face de uma história abrangente da poesia e finalmente em face dos roteiros que se deviam estabelecer para ela no futuro Nesse sentido criaram o que eles chamavam de seu paideuma uma seleção de autores obrigatórios na formação de uma sensibilidade nova e relevante Mallarmé o primeiro com seu Lance de dados a pensar o poema sobre a página como uma constelação e a usar o branco do papel como elemento estruturador Ezra Pound que foi quem lhes deu o conceito de paideuma além da aproximação com a escrita chinesa sua monumental série de Cantos vista como composta à maneira dos ideogramas Joyce com suas palavrasmontagens a implosão da forma romance em Ulisses e a invenção de uma translíngua em Finnegans Wake Maiakóvski não há arte revolucionária sem forma revolucionária João Cabral de Melo Neto o maior poeta brasileiro surgido depois do modernismo pertencente pela idade à geração de 45 mas em tudo oposto a ela um poeta das coisas vistas com olho lúcido e expressas em linguagem seca e rigorosissima e e cummings realizando gestos tipográficos isomórficos fazendo até os sinais de pontuação protagonizarem lances fundamentais do poema e Oswald de Andrade o mais radical dos modernistas paulistas surgidos na famosa Semana de 1922 a poesia barroca e os metafísicos ingleses a poesia provençal O surgimento dos concretistas tinha sido escandaloso a revista O Cruzeiro de grande circulação falou em rocknroll da poesia Embora contassem com a simpatia de uma figura gigantesca da poesia brasileira como foi Manuel Bandeira mais velho que os modernistas precursor destes e um mestre para sempre eles encontraram forte resistência entre poetas literatos e acadêmicos Mas o nível de argumentação que eles sustentavam em suas respostas e defesas críticas era tão alto sua cultura tão vasta e sua determinação tão inabalável que se tornaram um osso duro de roer na cena intelectual brasileira impondo respeito mesmo onde não havia receptividade O resultado disso foi que seus inimigos cercaramnos com uma cortina de silêncio que era rompida de vez em quando por uma ou outra agressão desproporcional e seus amigos tendiam a apoiálos de modo sectário Quando Augusto de Campos entrou em contato comigo acho que foi Júlio Medaglia quem já conhecendo seu interesse por meu trabalho lhe disse que poderia arranjar um encontro através de Guilherme Araújo ele me deu de presente alguns números da revista Invenção publicação dirigida por ele Haroldo e Décio o Grupo Noigandres como eles se autodenominavam noigandres é uma palavra encontrada num poema provençal cujo sentido ainda se discute e que aparece num dos Cantos de Pound como indecifrável por um conhecedor a quem o poeta vai recorrer para desvendarlhe a significação mencionou as afinidades que via entre o que eles faziam e o que nós estávamos fazendo e sobretudo falou de Lupicínio Rodrigues Lupicínio foi um grande compositor um negro do extremo Sul do Brasil isto é de uma área onde se pensa que a população é toda branca que ficara famoso por seus sambascanções sobre mulheres infiéis e ciúmes monstruosos no seu maior sucesso Vingança ele ameaça a traidora com uma praga que décadas depois faria a glória de Bob Dylan você há de rolar como as pedras que rolam na estrada sem ter nunca um cantinho de seu e cujas melodias tinham um caráter algo errático que lhes dava eficácia dramática e originalidade Antes do artigo em que Augusto se referia a mim ele escrevera um outro comparando favoravelmente a Jovem Guarda ao Fino da Bossa e antes deste um outro ainda sobre a poesia extremada de Lupicínio seu realismo às vezes demasiadamente cru o inusitado de suas composições melódicas e principalmente o extraordinário efeito que tudo isso alcançava quando apresentado pela voz surpreendentemente delicada do autor Se acaso no decorrer dessa nossa primeira conversa algum silêncio parecia querer durar um pouco demais Augusto recomeçava a falar em Lupicínio Eu compartilhava do entusiasmo dele por esse compositor de quem eu sabia de cor um bom número de canções Mas como eu tinha admirações ainda mais intensas por alguns outros nomes da velhaguarda e sabia um vastíssimo repertório de um Olimpo de autores em cujo trono central sentavase Dorival Caymmi essa insistência em Lupicínio me soou um pouco como uma monomania Ao voltar para casa comentei com Guilherme rindo Ele é mesmo louco por Lupicínio Rodrigues O mais curioso é que Augusto durante nossa conversa mencionou o artigo que eu esquecera e eu que logo recuperei dele uma obscura memória fiquei um pouco envergonhado de não poder comentar detalhes Mas creio que uma cópia dele veio junto com os artigos sobre Lupicínio e os números de Invenção que Augusto passou às minhas mãos Não se pode dizer que tenha havido uma verdadeira empatia entre nós Ele parecia mais distante do meu mundo do que o tom do artigo dele me tinha feito imaginar Quase todas as características daquilo que no meu ambiente nós chamaríamos de um careta se encontravam naquele homem metódico muito branco de bigode e com um sotaque paulista imaculado Por outro lado nenhum traço do brilhantismo que impressionava num Glauber num Rogério mesmo num Ferreira Gullar trazia um excedente de excitação à sua conversa medida e clarificadora Sua mulher Lygia uma pessoa muito doce e educada além de sintonizada intelectualmente com os interesses do marido sentavase ao seu lado demonstrando uma natural devoção a ele Tudo o que ele dizia e com que ela concordava invariavelmente me soava certeiro e justo e seu apoio ao movimento em que eu me achava engajado era nitidamente sincero e notavelmente fundamentado Mas tudo parecia vir de longe e estar destinado a permanecer despercebido num canto obscuro De fato repetiase no encontro pessoal o estranhamento já experimentado na leitura do artigo No entanto havia nos olhos muito míopes de Augusto e atravessando os círculos concêntricos das lentes esverdeadas dos óculos um raio permanentemente vindo de um ponto muito preciso de sua pessoa um raio de doçura intacta e de louca tenacidade na defesa dessa doçura Isso fazia com que ele parecesse ter um direito especial de mostrarse absorto como os loucos e também unia os pontos de outro modo dispersos de suas demonstrações de identificação com o que me interessava Aquilo em seus olhos fazia dele de repente o menos careta de todos nós Os outros artigos de Augusto mas sobretudo alguns poemas e textos introdutórios da revista Invenção contribuíram para que eu entendesse o sentido profundo dessa nossa aproximação Um desses textos especialmente um quasemanifesto escrito por Décio Pignatari pareceu expressar exatamente minhas preocupações E no mesmo tom Num tom que seria o meu se eu pudesse escrever aquilo Havia algo de simplista nos artigos de Augusto escritos para ser entendidos por leitores de jornal que assistiam a festivais de música popular na televisão mas esse texto escrito por Pignatari tendo sido escrito para a bela revista de poesia que eles faziam circular a intervalos irregulares era ao mesmo tempo complexo sugestivo e extraordinariamente convincente Era um texto para circular entre eruditos mas eu se pudesse o poria sem modificações na contra capa do meu disco Tratavase de mais uma defesa dos postulados concretistas contra as investidas sociologizantes dos nacionalistas Era uma crítica à folclorização mantenedora do subdesenvolvimento e uma tomada de responsabilidade pelo que se passa no nível da linguagem por parte daqueles que trabalham diretamente com ela Contrapunha à imagem do pescador de chapéu de palha e rede às costas que era o símbolo da Editora Civilização Brasileira o alerta para o fato de que em países desenvolvidos pescavase com sonar e barcos bem equipados E respondendo ao poeta Cassiano Ricardo um exmodernista que chegara a colaborar com eles mas agora dizia esperar que eles afrouxassem o arco Décio encerrava o artigo todo costurado pela conjunção e na sua forma latina de uso comercial insistindo em que eles os concretos manteriam o arco sempre teso pois na geléia geral brasileira alguém tem de fazer o papel de medula de osso A imagem do arco teso e a expressão geléia geral um trocadilho com geléia real que soa de fato engraçado ficaram em minha mente e delas falamos muito em nossas conversas no 2002 este era o número do nosso apartamento pouco tempo depois Décio Pignatari brincaria com isso sugerindo que o número se referia ao ano seguinte ao 2001 do filme de Kubrick A expressão geléia geral foi parar numa letra tropicalista de Torquato Neto para uma música de Gil e no título de uma coluna assinada por Torquato na imprensa carioca na década seguinte e a imagem do arco teso reapareceu explicitamente numa canção minha dos anos 70 e foi uma presença difusa por sob as palavras de muitas das minhas composições e declarações esses anos todos O 2002 com sua boneca de fibra de vidro e seus móveis de acrílico transparente tornavase mais e mais animado Gil estava sempre por lá Assim também os Mutantes e naturalmente Guilherme que morava dois andares abaixo Zé Agrippino e Maria Esther apareciam de vez em quando Waly e Duda vieram do Rio e estavam morando conosco Eu os ouvia muito Duda sobretudo continuava a ter enorme ascendência sobre mim Eu considerava que o que eu fazia era algo útil porém intelectualmente menor se comparado ao que eles muito mais cultos e muito mais adestrados mentalmente viriam a fazer Dedé brincava dizendo que eles eram nossos consultores Achávamos bom que o dinheiro que eu ganhava desse para manter um apartamento amplo que podia acolhêlos enquanto eles próprios não faziam os filmes e os livros que poderiam fazer de nós uma geração marcante na história da cultura brasileira Conversávamos até altas horas da madrugada bebendo cerveja e eu e Dedé nos orgulhávamos de que nossa casa fosse uma permanente promoção de saraus inesquecíveis As revistas os livros e os artigos que Augusto me dava circulavam entre os membros dessa comunidade E o perfil dos concretistas ia se tornando mais nítido para mim Eles próprios porque Augusto me apresentara a Haroldo e Décio passaram a freqüentar o 2002 com certa assiduidade Suas visitas no entanto eram de natureza diferente das feitas por Agrippino os Mutantes Gil ou mesmo Rogério e Hélio Oiticica a quem finalmente fui apresentado numa ida ao Rio pela espantosamente antenada jornalista Marisa Alvarez Lima os poetas concretos telefonavam antes marcavam hora enfim cumpriam as formalidades ditas burguesas enquanto os desbundados entravam e saiam de nossa casa sem aviso como se vivêssemos em regime comunitário Essa é uma das marcas distintivas entre os românticos irracionalistas e os descendentes hiper racionais dos simbolistas Aos poucos eu ia ligando os pontos das informações fortuitas que tivera a respeito dos concretos ao longo dos anos Dedé lembrava claramente das referências a eles feitas pelo professor Yulo Brandão em seu curso de estética quando ela estudava dança na Universidade dia Bahia Mas eu não lembrava sequer de ter ouvido a expressão poesia concreta Eu tinha guardado o nome de Décio Pignatari daquela conversa com Boal numa festa do elenco do Zumbi em 65 Mas os nomes dos irmãos Campos foram esquecidos imediatamente após serem ouvidos quando Capinan me mostrou o livro sobre Sousândrade Lembro de ver encantado um poema de e e cummings publicado em Salvador no suplemento cultural do Diário de Notícias suplemento que Glauber dirigia no início dos anos 60 A tradução para o português devia ser de Augusto que é só quem traduziu cummings no Brasil que eu saiba com a rigorosa supervisão do autor através de longa troca de cartas mas se seu nome estava impresso naquela página não o gravei Já nos anos 70 ouvi Glauber dizer que começara concretista numa referência a seu primeiro filme um curtametragem chamado O pátio cujo formalismo segundo ele o desinteressou quando se viu em meio a gente miserável na aldeia de pescadores onde pouco tempo depois desse curta foi filmar Barravento Mas nem nas páginas do suplemento que ele dirigia nem em nenhuma de suas declarações públicas da nossa fase soteropolitana ouvi ou li dele uma só vez que fosse a expressão poesia concreta ou os nomes de seus inventores Eu fora sem embargo influenciado indiretamente por eles pois aos vinte anos em Salvador eu fazia uma ligação entre João Gilberto o cool jazz os poemas de João Cabral a arquitetura de Niemeyer em Brasília e o uso de letras tipo futura sobre generosos espaços brancos nas páginas do suplemento cultural do Diário de Notícias E os espaços brancos e os tipos futura eram a marca registrada da obra dos concretistas Agora eu absorvia com grande presteza o sentido do trabalho deles Gostava de reconhecer nos poemas a complexidade que muitas vezes à primeira vista eles não pareciam ter Pequenos ovos de Colombo eles poderiam parecer ao mesmo tempo demasiado óbvios e demasiado artificiosos mas em muitos deles tinhase de fato a experiência defendida teoricamente pelo grupo segundo Mallarmé de subdivisão prismática de uma idéia E em todos a aventura de abandonar radicalmente a sintaxe discursiva Além disso o arsenal critico de que eles muniam o jovem leitor de suas publicações as traduções que Haroldo prefere chamar de transcrições de autores e obras que lhes parecessem essenciais alguns Cantos de Pound poemas de Mallarmé os meta físicos ingleses os trovadores provençais trechos escolhidos do Finnegans Wake cummings poesia japonesa etc e sobretudo uma alternativa crítica à visão da história da literatura brasileira que a tem como inevitavelmente periférica e desimportante tudo isso fazia dos números da revista Invenção dos livros que eles nos davam e das conversas com eles algo instigante e animador Haroldo e Décio não transmitiam a mesma impressão de distância que Augusto sempre me deu Décio sobretudo com seu sotaque paulistano italianado isso em São Paulo significa popular mesmo os negros e os judeus e até alguns nisseis de São Paulo têm sotaque italiano seu brilhantismo agressivo e sua vivência entre publicitários e estudantes de comunicação era alguém naturalmente próximo Magro e narigudo bigode e cabelos encrespados ele tinha um ar de sátiro E uma esperteza mundana no falar que me deixava totalmente à vontade O que eu disse sobre seu texto na revista Invenção serve para seu convívio pessoal Suspeito que as mesmas idéias defendidas por Augusto no artigo que Alex pôs em minhas mãos se expostas por Décio e no seu estilo teriam me conquistado imediatamente como Bethânia conquistou minha atenção para a Jovem Guarda com um simples comentário Haroldo gordo e de voz metálica sem italianismos que manchassem a pureza de seu sotaque paulistano animava a sala com seu exuberante misto de rigor e bonomia Ele não deixava a conversa cair e exibia seu domínio da língua e sua imensa erudição sem parecer pedante ou deixar os ouvintes por menos cultos que fossem de fora Augusto tendo ido mais longe do que qualquer outro sem sair do seu tom isento e comedido tinha me levado a pensar que o brilhantismo de Rogério de Glauber de Waly o meu próprio que eu tendia à eloqüência se o interlocutor não me intimidava talvez se devesse a um narcisismo que antes dificultava do que iluminava o acesso a idéias pertinentes e descobertas substanciais Eis que seus dois companheiros sofriam do mesmo mal Mas bem cedo vi que as coisas não são simples assim Augusto sem dúvida como Capinan como Cacá Diegues parecia desprovido desse prazer narcísico no conceber as idéias e no proferir as palavras A bem dizer era como se em nenhum momento de sua formação ele tivesse ouvido o canto de sereia contido na palavra romântica gênio ao contrário de Glauber ele não fazia pensar no verso horroroso de Castro Alves Eu sinto em mim o borbulhar do gênio E há inegável indulgência na fruição do próprio ego no elenco em que me incluí Mas a excelência dos resultados e mesmo a confiabilidade dos propósitos não pode ser aferida dessa tipologia porque não se dá na razão direta dessas diferenças Augusto simplesmente o que afinal é mais coerente com o programa concretista não tinha gosto pela retórica Não deixava de ser curioso contudo que desse grupo de poetas de vanguarda que nos procurou o mais próximo de mim fosse justamente o mais distante Passei a freqüentar também a casa de Augusto Ele a mulher Lygia e o filho Cid então ainda um menino Roland o filho mais velho do casal era arredio e nunca participava das conversas na sala hoje é astrofísico e realiza pesquisas na Universidade de Brasília quase sempre Haroldo acompanhado de sua mulher Carmen e mais raramente Décio nem sempre com sua mulher Lila mais Torquato ou Gil ou algum dos músicos de vanguarda Rogério Duprat era o mais assíduo além de mim e de Dedé formávamos um grupo conversador na sala visualmente limpa do apartamento nas Perdizes Alguns poemas visuais em grandes tipos futura enquadrados nas paredes uma boa reprodução da Grande Jatte de Seurat e um quadro de Volpi além de alguma coisa dos pintores concretos de São Paulo davam a sensação de uma sensibilidade a um tempo aberta e meticulosa O gosto pelas formas geométricas e pelo acabamento definido refletiam antes delicadeza de espírito do que contração neurótica sendo uma sala viva e aconchegante porosa e arejada era uma prova singela de que Mondrian e Bauhaus formalismo russo e tipografismo americano não desembocam necessariamente em escritórios de executivos e agências de publicidade Ali ouvíamos Charles Ives Lupicínio Webern e Cage e falávamos da situação da música brasileira e dos festivais Nós os jovens tropicalistas ouvíamos muitas histórias de personagens do movimento dadá do modernismo angloamericano da Semana de Arte Moderna brasileira e da fase heróica da poesia concreta Trocávamos opiniões com naturalidade sem que a grande diferença de volume de conhecimentos e de aptidão mental para lidar com eles fosse motivo para constrangimentos É uma experiência brasileira que representa motivo de orgulho pois a confusão da alta cultura com a cultura de massas tão característica dos anos 60 pôde nesse caso produzir frutos substanciais e no refluxo da onda quando todo o mundo sentiu necessidade de voltar às antigas classificações os sujeitos envolvidos conseguiram apesar de alguns episódios dolorosos manter o diálogo e as amizades essenciais foram poupadas Meu entendimento com Augusto de Campos sobretudo talvez por ser o potencialmente mais difícil tem mostrado uma resistência considerável O tom com que escrevo as palavras deste livro deve revelar ao leitor atento um misto de respeito quase reverência e semcerimônia em face dos assuntos sérios dos temas nobres e dos estilos superiores Essa mesma mescla em dosagens as vezes desequilibradas já era um traço meu quando adiando estudos e uma carreira de cineasta eu cumpria com prazer o papel de ídolo de TV em nome da paixão pela linha evolutiva da nossa música popular Minhas opiniões sobre autores célebres expressas de modo às vezes desabusado eram acolhidas com benevolência por esses professores eles estavam excitados por ver em nós a encarnação de tantos dos seus argumentos Mas eles nunca agiram de forma condescendente e os erros que eu mais que todos cometia por ignorância afoita eram sempre apontados com delicadeza mas com decisão De todo modo eu era sempre mais extrovertido e opinioso se Décio e Haroldo e toda a turma de baianos e tropicalistas estivessem presentes do que se me visse só com Augusto A espantosa concordância de nossas posições com as idéias deles e a natural união contra os ataques inimigos retardavam o confronto das diferenças e eventuais discordâncias Ou mesmo o esclarecimento de dúvidas Darei um exemplo que à época já se me apresentava como tal a semelhança apontada por Augusto em conversas e depois num artigo escrito em 69 entre o nosso trabalho e a poesia dos trovadores provençais A ênfase caía sobre a adequação das palavras à música Ora eu vinha sendo continuaria a ser e ainda sou um caymmiano na ótica de João Gilberto Achava que em Caymmi a palavra cantada recebia o tratamento mais alto que se pode conceber sempre espontânea revelava não obstante ter passado por um crivo severo As canções de Caymmi parecem existir por conta própria mas a perfeição de sua simplicidade alcançada pela precisão na escolha das palavras e das notas indica um autor rigoroso São o que as canções devem ser o que as boas canções sempre foram e sempre serão Um canto tuva um Lied de Schumann uma balada de Gershwin a Dying eagle de Ives têm que se confrontar com Sargaço mar Lá vem a baiana e Você já foi à Bahia são todas incursões no essencial da realidade da canção Foi assim que João Gilberto entendeu a Rosa morena de Caymmi por ele eleita como tema para a construção do estilo que veio a se chamar de bossa nova Foi assim que o grande esforço de modernização de João se apoiou na modernização sem esforço de Caymmi A um tempo impressionista e primitivo mas também o maior dos inventores do samba urbano moderno Caymmi tem pelo menos tanto peso na formação da bossa nova joãogilbertiana quanto Orlando Silva Ciro Monteiro a canção americana dos anos 30 e o cool jazz E mais do que peso equivalente Caymmi tem acima desses outros componentes o caráter normativo geral a hegemonia estética do estilo de João Tudo em João presta contas a ele do senso de estrutura à dicção Esse cultivo da palavra cantada que encontra excelência em Caymmi tal como ele foi ouvido por João é o filtro seletivo da bossa nova produziu a guinada na música de Tom e na poesia de Vinícius E era tudo o que de mais exigente eu podia conceber em termos da arte de combinar palavra som como explicava Augusto o motz el som provençal de Pound Era também o que Chico Buarque buscava e freqüentemente encontrava na perseguição da beleza que ele adivinhou nas letras de Vinicius diferentemente do que fazia Edu Lobo ou Marcos Valle e diferentemente do que fariam Milton Nascimento e os mineiros alguns anos depois Chico se agarrava à pureza dessa linha sem mostrar receptividade às exterioridades falsamente modernizantes vindas fosse do Beco das Garrafas fosse dos espetáculos do Arena Ele trabalhava exclusivamente com os elementos que eu tentara quase sempre em vão preservar intactos em nossa produção desde o LP de Bethânia Por trás da rivalidade entre mim e Chico devese procurar ver a grande identificação O tropicalismo veio para acabar com os resguardos mas se havia alguma coisa que eu próprio tinha querido resguardar era exatamente o que Chico continuaria cultivando e polindo Assim erame difícil aceitar sem perguntas a afirmação de que em nossas ruidosas letras tropicalistas e que se produziam equivalentes do trobar ric do miglior fabro Arnaut Daniel As primeiras leituras dos provençais traduzidos por Augusto embora revelassem uma beleza e uma engenhosidade impressionantes não esclareciam por que por um lado eles eram o ápice da história da palavra cantada nem por outro por que entre nós não era Caymmi ou Chico quem mais se aproximava deles e sim Gil e eu Ou por outra os exemplos dados por Augusto eram de todo convincentes do nosso parentesco com esses poetas mas não de que as nossas canções e as deles subissem mais alto que as de Caymmi no item motz el som Relendo a entrevista que Augusto fez comigo em 68 fiquei chocado com a observação feita por ele de que minha canção Clara cujo parentesco com os procedimentos dos provençais é nítido tinha uma limpeza uma enxutez que não há em Caymmi essas virtudes sempre me pareceram virtudes caymmianas por excelência A limpeza e a enxutez de João Gilberto foram aprendidas com Caymmi vêm dele Não posso negar que com o passar dos anos a releitura dos provençais mais as muitas outras leituras e audições de coisas muito outras me levou a perceber melhor o sentido das apreciações de Augusto Entendi cada vez mais claramente que ele dedicado a estar sempre avaliando um vasto mundo diversificado de experiências com palavras e sons desenvolvera um ouvido com exigências por vezes de natureza diferente da natureza daquelas que eu mesmo alimentava Mas minha opinião sobre Caymmi não mudou E considero significativo que tal como acontecera com Boal e embora no caso dos concretos não tenha havido discórdia Caymmi tenha sido o ponto em que as diferenças de visão não puderam mais deixar de se perceber Um dos meus escrúpulos mais resistentes tem sido desde esses tempos referidos como heróicos o de submeter todas as minhas pretensões à pergunta em que medida a oportunidade que se me ofereceu de brilhar como grande figura na história recente da MPB se deve à queda de nível de exigência promovida pela mesma onda de ostensiva massificação que eu contribuí para criar Augusto ao contrário dos meus colegas compositores que temiam uma regressão ao primarismo via no que fazíamos uma supersofisticação E apontava isso em duas frentes no aspecto paródicocarnavalesco e no aspecto inventivoconstrutivista Eu achava que mais do que atentado para os meus conseguimentos ele tinha lido meus sonhos E eu não tinha dúvida de que os sonhos de Carnaval estavam mais reconhecíveis nas realizações do que os de sólida construção formal Havia um vazio entre o resgate por Augusto e a rejeição pelos colegas que não podia ser preenchido pelo sucesso popular nem pela notoriedade culturalmente escandalosa Augusto por vezes contava que Erik Satie sem poder competir com Debussy em invenção harmônica optara pelo avesso da música E concluía que do mesmo modo os tropicalistas tinham optado pelo avesso da bossa nova O elo perdido se apresentou como que miraculosamente Augusto tendo ido a Nova Iorque para algum evento ligado à sua produção poética falou pessoalmente com João Gilberto e este não só demonstrou total ausência de preconceito contra os tropicalistas como carinho e interesse pelo grupo e seus planos A narração desse encontro aliás resultou numa reportagem que é a única aventura de Augusto na prosa narrativa Uma verdadeira pequena obraprima de concisão em que João aparece retratado como nunca antes ou depois Esse belo texto veio a integrar o livro Balanço da bossa cuja capa uma montagem de fotografias em que João parece estar me olhando do alto enquanto estou sentado no chão do palco ecoa o recado que Augusto traria dele para mim Diga a Caetano que eu vou ficar olhando para ele Na defesa ostensiva dos tropicalistas Augusto deixava ver não apenas como se desenvolvera sua combatividade mas também como esta mesma combatividade criaralhe limitações Muitas dessas limitações eram assumidas como uma escolha lúcida Assim ele dizia com freqüência que não era não podia e não queria ser imparcial Ao contrário aprendera desde a fase heróica do concretismo que tinha de ser parcialíssimo A impermeabilidade a nuances que o ideário concretista exibia sua decisão de bater na mesma tecla de valorização das atitudes de vanguarda em detrimento de uma exibição mais auto complacente da abrangência e do refinamento da inteligência de seus lideres rendeulhes a censura de monológicos por parte de seus detratores Li de algum desses últimos a observação de que o pensamento dos concretos levava a conclusões esdrúxulas como por exemplo a de que Lewis Carroll é melhor do que Dostoievski Augusto Haroldo ou Décio nunca se deixaram impressionar por argumentos desse tipo sempre mantendo a ênfase no experimentalismo como um contrapeso do conformismo mediocrizante Havia no entanto alguma coisa nas argumentações de Augusto que eu cria apontarem para um problema para mim não resolvido talvez insolúvel em toda vanguarda Esse problema diz respeito ao progresso nas artes Não que os concretistas parecessem não atentar para ele Haroldo de Campos sempre procurou deixar bem claro em seus textos teóricos que a poesia concreta se lança a uma superação crítica relacionada a um vetor que tem tudo a ver com as exigências do tempo e nada a ver com juízo de valor Mas nem por isso estava para mim dada a questão por encerrada O que me parecia uma fraqueza nas observações tanto de Augusto quanto de seus amigos músicos de vanguarda era a inserção de João Gilberto na linhagem de Mário Reis cantor de sucesso nos anos 30 cuja voz pequena ficou de moda com o advento dos microfones modernos Mário cantava quase falando em staccato às vezes separando as sílabas das palavras numa relação regular com as barras rítmicas sem usar adornos de espécie alguma É claro que eu reconhecia a identificação exterior com João na desdramatização e no pouco volume Mas João é um cantor de grandes legati de fraseado flutuante e de incríveis jogos rítmicos Seu estilo vem de Orlando Silva o grande modernizador do canto brasileiro A voz potente mas sempre usada com natural suavidade e os ornamentos de Orlando levam muitos ouvintes a andar em erro julgando que João está afastado dele Sem dúvida João revaloriza também Mário Reis e há como me lembrou o cineasta Júlio Bressane nos dois casos a obsessiva fidelidade a um mesmo repertório sempre revisitado e que cresce a contagotas Há um minimalismo que os aproxima Mas num certo sentido João é o antiMário fazendo de sua voz um instrumento entre outros ele é como Orlando um supercantor enquanto Mário com sua recusa de entregarse às melodias tira seu charme de ser um subcantor ou anticantor Davame a impressão de que algo do modo como esses vanguardistas de São Paulo ouviam a bossa nova era superficial A seleção mesma que Augusto fazia dos exemplos no repertório da bossa nova indicava uma discrepância entre nossos gostos Sempre mais apaixonado pela religação feita por João Gilberto entre a ponta da modernidade e a melhor tradição brasileira que foi o que fez a grande diferença da bossa nova em comparação à americanização algo tola dos seus predecessores dos anos 40 e 50 e de alguns de seus supostos seguidores dos 60 em diante eu via em Chega de saudade a cançãomanifesto e a obra mestra do movimento a navemãe Um samba com algumas características de choro riquíssimo em motivos melódicos de aparência tão brasileira quanto uma gravação de Silvio Caldas dos anos 30 e com uma introdução de flauta inspirada numa gravação de Orlando Silva Chega de saudade era ao mesmo tempo uma canção moderna com ousadias harmônicas e rítmicas que atrairiam qualquer jazzista bop ou cool como de fato vieram a fazer Por outro lado o titulo e a letra sugeriam uma rejeiçãoreinvenção da saudade essa palavra que é um lugarcomum na lírica lusobrasileira e um emblema da língua portuguesa pois além de ser um acidente etimológico inexplicado cobre um campo semântico revelador de algo peculiar em nosso modo de ser Uma luxuriante composição cheia de lugarescomuns incomuns para usar uma expressão do próprio Augusto ou talvez seja de Décio extraída de outro contexto e de novidades que soavam como atavismos ou experimentações que pareciam lembranças essa canção era o exemplo generoso daquilo que Tom João Vinicius e Cia queriam oferecer e continha todos os elementos que estariam dispersos nas outras Ela era o regime geral da bossa nova o mapa o roteiro a constituição Pois Augusto ao comentála brevemente destaca apenas a paronomásia colado assim calado assim como sendo o que havia de interessante numa canção de outro modo convencional Na verdade esse momento em que a melodia de Jobim se lança mais a intervalos inusitados e a letra de Vinícius também se mostra formalmente inventiva conscientemente inventiva contém em si o Desafinado e o Samba de uma nota só Mas tanto para Augusto como para os músicos de vanguarda paulistas estas duas últimas é que eram as cançõesmanifestos do movimento as que mais abrangentemente o representavam É preciso notar no entanto que Augusto não se dedicou a escrever sobre a bossa nova O breve comentário de Chega de saudade está relatado num artigo de Brasil Rocha Brito como trecho de uma entrevista Ele escreveu sobre pós bossa nova Jovem Guarda Fino da Bossa tropicalismo E o fez de modo tão lúcido e oportuno que é de se crer que se ele tivesse parado para escrever sobre bossa nova nenhum dos seus aspectos essenciais lhe teriam escapado Mesmo porque até o engano em relação à questão Mário Reis ou Orlando Silva tinha sido superado por José Lino Grunewald o braço carioca da poesia concreta poeta tradutor dos Cantos completos de Pound e amante da música popular dos anos 30 Augusto certamente o ouviria e reouviria Orlando Mário Silvio Caldas e muitos mais antes de sentarse para escrever O velado de João Gilberto escreveu Grunewald vem de Orlando Silva não de Mário Reis Augusto formulou anos depois no prefácio a um livro de traduções de Ovídio a Rimbaud a idéia da poesia como uma família dispersa de náufragos bracejando no tempo e no espaço Apesar de nesse mesmo texto Augusto dizer que o antigo que foi novo é tão novo quanto o mais novo novo como que a indicar apenas que ele se filia a uma milenar linhagem de vanguardistas sempre senti que subjacente ao critério do avanço está a visão sincrônica Isto não é nenhuma descoberta em textos tão claros e tão entusiasmados quanto os que apontam para uma estética do novo os concretistas sobretudo Haroldo defenderam uma crítica de mirada sincrônica transhistórica O que eu quero dizer é que esse aspecto do aparato teórico deles me atraiu mais e me pareceu mais profundo neles mesmos do que a paixão da novidade É como se a campanha do novo não fosse senão uma estratégia de manutenção da altura do nível de exigência As rupturas modernistas podem ser explicadas de diversos ângulos mas é inegável o caráter de revitalização do acervo amado embutido em muitas atitudes aparentemente destrutivas Stravinski e Schönberg parecem empenhados em que ouçamos Bach com melhores ouvidos e não em que deixemos de ouvir Bach para passar a ouvilos apenas a eles Se arriscarmos olhar bem fundo talvez cheguemos à conclusão de que os modernismos representaram antes uma luta contra a iminente obsolescência de um passado belo em vias de banalizarse de que nunca como no modernismo a arte foi tão profundamente conservadora A luta era foi é sobretudo contra o academicismo O artista aristocrata supremo não poderia submeterse à vulgarização burguesa que queria distribuir fórmulas prontas usáveis por qualquer um para se consumir e produzir arte Era preciso mostrar que a arte é terrível e que é difícil você não pode passar incólume por Velásquez por Mozart ou por Dante Mas a tensão entre esse aristocratismo que no limite terminaria por negar o próprio trabalho do grande artista moderno e a necessidade de afirmarse o modernista como um produtor novo de objetos artísticos de primeira linha o que em última instância levaria à defesa do futuro burguês e popular e da disparada tecnológica é que produziu toda a gama de movimentos do final do século XIX ao início do século XX dos impressionistas aos expressionistas dos construtivistas aos surrealistas de Marinetti a dadá de Duchamp a Mondrian Como quer que seja eu um mero cantor de rádio mimado mas não muito que eles são realmente responsáveis e conseqüentes por esse bando de eruditos viame metido numa guerra que exigia definição quanto a essas questões tão abrangentes e isso me excitava Pareciame que eu estava realizando aquele programa de ser poeta por outras vias que não as do poema impresso Aliás não estava longe de confirmar essa ilusão Augusto ao dizer que o que havia de interessante em poesia brasileira a informação nova tinha migrado das páginas dos livros para as vozes da canção popular E mais provocadoramente ainda que VillaLobos era um diluidor em sua seara enquanto Gil e eu éramos inventores na nossa CHICO Augusto escreveu alguns artigos sobre nosso trabalho e os foi publicando em jornais de São Paulo no calor da hora Depois ele os reuniu no livro Balanço da bossa ao lado de ensaios dos seus amigos músicos eruditos sobre a bossa nova Eu me orgulhava da atenção que tínhamos despertado neles Mas se por um lado eu entendia e admirava a parcialidade de Augusto por outro as sutis diferenças que havia entre nós não me permitiam aderir sem reservas a todas as suas posições Ou melhor me resguardaram de tomar suas discriminações como dogmas Sua versão da oposição inevitável entre o que fazíamos e o que Chico vinha fazendo por exemplo embora me parecesse basicamente correta e fosse exposta sempre em termos conscienciosos e equilibrados nunca abalou meu amor especial pelo estilo pela pessoa ou pela importância histórica de Chico Buarque E Augusto sempre respeitou essa obstinação que muitas vezes chegou a ser explicitada em conversas De todos os tropicalistas Gil era o que mais firmemente mantinha a clareza exigida em relação a isso E muitas vezes conversávamos os dois a respeito Nós sabíamos que grande parte da MPB reagira mal ao que estávamos fazendo Edu Lobo Francis Hime Wanda Sá Dori Sérgio Ricardo e mais que todos Gerado Vandré mostravamse meio irritados meio decepcionados conosco Não esperávamos que Chico tivesse uma posição substancialmente diferente Mas ele era diferente para nós Por um lado as opiniões dos outros não tinham tanto peso para nos quanto as de Chico por outro eles não estavam sendo confrontados conosco sobretudo comigo como Chico estava Este portanto se encontrava mais perto de nós Minha primeira lição sobre as armadilhas da imprensa se deu exatamente por causa disso Uma moça simpática entrevistandome para a revista InTerValo o T e o V maiúsculos indicavam ser uma publicação especializada em televisão perguntoume como eu via a diferença entre mim e Chico Eu estimulado pela oportunidade e crendo que minha aula ia ser publicada expliqueilhe que o que eu fazia era expor o aspecto de mercadoria do cantor de TV Que tanto eu quanto Chico estávamos dizendo muitas coisas com nossas canções mas que do ponto de vista da televisão eu era um cara de cabelo grande e Chico um rapaz bonito de olhos verdes e que quanto mais desmascarado estivesse esse jogo mais nossas canções e nossas pessoas estariam livres Poucos dias depois saiu a reportagem com minha declaração sumaria de que Chico Buarque não passa de um belo rapaz de olhos verdes Tom Zé que nunca fora um bossanovista eu o convidara a vir de Salvador exatamente por perceber que seu talento satírico e seu adestramento teóricomusical lhe assegurariam um lugar no programa tropicalista não tinha esses cuidados com Chico Buarque Perguntado num programa de televisão sobre o confronto tropicalistas versus Chico respondeu que de sua parte respeitava muito Chico Buarque pois ele é nosso avô Lembro de ao ser informado dessa história pois eu não tinha TV em casa rir às gargalhadas com Guilherme comentando o fato de eu ser dois anos mais velho do que Chico e Tom Zé seis anos mais velho do que eu Eu não achava que devia procurar Chico para explicar a matéria da InTerValo antes do tropicalismo já não nos estávamos vendo quase nunca por outro lado não queria policiar as falas públicas dos meus colegas Tive algumas discussões com Torquato por causa disso ele estava se tornando um tropicalista sectário mas na verdade eu não me preocupava demasiadamente minha confiança em que nossa intervenção resultaria bem para todos era total mais cedo ou mais tarde Chico e todos os outros saberiam que não havia nem hostilidade contra eles nem ambições comercialescas no nosso projeto Eu estava mais certo disso então do que estou hoje Além do mais Chico fora como já contei convidado por Gil para reuniões esclarecedoras dos nossos novos propósitos e não lhe dera ouvidos Um episódio no entanto me pareceu inaceitável Já no final de 68 Gil estava com Sandra a irmã de Dedé com quem ele começava um namoro numa frisa do Teatro Paramount onde se realizava uma eliminatória do festival da Record daquele ano Um grupo de pessoas na platéia recebeu a entrada de Chico no palco aos gritos superado superado Gil comentou com Sandra que aquilo era inadmissível Levantouse e investiu contra os manifestantes Um jornalista quis ver e assim publicou depois no seu jornal que Gil havia liderado uma vaia ao Chico Não li essa notícia e creio que Gil tampouco a leu Ouvimos falar no assunto com um certo atraso Hoje todo o mundo que escreve sobre os acontecimentos de então se compraz em dizer que havia dois lados que se confrontavam nesses festivais um a nosso favor outro a favor de Chico As coisas não eram assim Nós éramos sistematicamente vaiados pelos apoiadores de Chico mas ele com exceção desse esboço de agressão verbal que Gil para seu infortúnio tentou conter nunca foi vaiado pelos nossos que não chegavam a ser um número perceptível numa platéia Chico fez publicar um protesto contra a possível atitude de Gil Desde o primeiro momento eu me indignei Gil achou tudo de um absurdo imenso mas não quis procurar Chico para desfazer o mal entendido Ele achava entre outras coisas impossível que Chico acreditasse na versão que chegou até ele E depois disso os acontecimentos se desencadearam de forma tão dramática em tão pouco tempo que não me foi possível convencer Gil de agir com firmeza nesse caso Nunca me conformei com isso e ainda hoje me indigno com os historiadores do período que contabilizam as vaias do Festival Internacional da Canção uma tentativa da TV Globo do Rio de seguir a Record de São Paulo de que nós nunca chegamos propriamente a participar e que de resto nos parecia absolutamente desinteressante vaias que atingiram Chico junto com Tom por razões de outra ordem para dar a impressão de que naquele tempo era assim mesmo que nós nos agredíamos mutuamente através de nossos imensos públicos antagônicos Até que fôssemos presos e exilados o público predominantemente estudantil desses programas esteve coeso contra nos Deixei de falar com o jornalista Zuenir Ventura por ele ter pedido meu depoimento sobre o período mormente sobre o episódio da suposta vaia de Gil a Chico e depois ter publicado um livro em que não só meu veemente desmentido não parece ter sido levado em conta como também esse quadro de duas forças rivais de mesmo peso se enfrentando se reitera Um quadro no qual os artigos de Augusto aparecem injustos e desproporcionais Exatamente o contrário do que eles foram Claro que havia uma agressividade necessária contra o culto unânime a Chico em nossas atitudes Quando gravei em 69 a Carolina num tom estranhável eu claramente queria entre outras coisas relativizar a obra de Chico embora não fosse essa ali a principal motivação Gil numa entrevista dada a Marisa Alvarez Lima pouco antes de irmos para Londres cujo conteúdo só vim a conhecer recentemente fez questão de frisar a intenção crítica da minha escolha Seria desnecessário fazêlo se se pensa na referência a A banda na letra de Tropicália no esboço de paródia dessa mesma canção embutido em Alegria alegria e na menção à própria Carolina na letra de Geléia geral A mera valorização que fazíamos do trabalho de Paulinho da Viola implicava um grito de independência em relação à hegemonia do estilo buarquiano tal como Chico Paulinho voltavase para o samba tradicional mas diferentemente dele faziao sem o filtro da bossa nova Com efeito embora menos profícuo e muito menos dotado como poeta do que Chico Paulinho era um caso milagroso em nossa geração ele não parecia sequer ter ouvido João Tom ou Lyra Como era jovem mostravase também disposto a partir para experimentações e inovações mas estas não nasceriam como tudo meu de Edu de Chico Gil ou Jorge Ben do universo estético pósbossa nova Isso dava um encanto especial a suas criações E nossa insistência em ressaltar sua importância eu o fazia desde o artigo da Ângulos de 65 punha também a questão da volta à tradição em perspectiva diferente da consensual que tinha Chico como a síntese final da dialética da composição de música popular no Brasil Não é portanto despropositada nem surpreendente a reação magoada que Chico externou numa entrevista ao Pasquim em sua volta da Itália depois de anos de autoexílio Entrevista que aliás ele quis excluir da seleção feita pelo Pasquim para publicação em livro É preciso ter em mente que a glória indiscutível de Chico nos anos 60 era um empecilho à afirmação do nosso projeto Porque em princípio todos os seus apoiadores que eram virtualmente todos os brasileiros deveriam nos rejeitar O máximo que podíamos fazer o que Gil tentou fazer naquele episódio desastrado era mostrar a quem ia se tornando partidário de nossa visão que não era preciso agredir Chico para afirmála Porque estávamos seguros de que a criação de Chico ela mesma ganharia com a relativização além de ser estimulada por novos desafios A imprensa naturalmente preferia acompanhar as manifestações mais infelizes que dessem uma impressão de disputa mesquinha no que não estava necessariamente errada pois o jornalista não deve mesmo estar disposto a crer na complexidade das boas intenções das celebridades que ele ajuda a criar Muito do absurdo que se lê nos jornais é a voz inconsciente dos agentes dos fatos relatados e não apenas a maquiavélica maquinação dos donos de jornal e a mediocridade de um ou outro miserável que precisa segurar seu emprego nas redações Mas isso não quer dizer que eu deva de minha parte me submeter às versões sinistras que resultam de sua atividade Apenas que é preciso saber ler os jornais de modo psicanalítico Ainda hoje parece aos jornalistas mais voluptuoso extrair uma farpa de uma fala minha contra Chico ou viceversa do que examinar o sentido de toda essa dificuldade ter resultado num crescimento da produtividade dele como da nossa além de um amadurecimento e aprofundamento da nossa amizade Não é de forma nenhuma o caso de termos estado brigando no passado e estarmos posando de sempre amiguinhos agora Chico foi em todas as oportunidades o mais elegante discreto e generoso de todos os nossos colegas Conheçoo bem e sempre soube que é isso que ele é além de um virtuoso das rimas e dos ritmos verbais um sujeito excepcionalmente elegante discreto e generoso À época mesma em que o enfrentamento de nossos projetos se deu eu não tinha dele outra imagem A imprensa e a opinião pública porém preferiam crer numa disputa caricatural A briga real com Vandré por exemplo tem sido no entanto perfeitamente ignorada pela imprensa agora como então Simplesmente não era excitante o suficiente e era real ou seja muito complexa para ser acompanhada Toda energia precisava precisa estar dedicada a empobrecer as relações entre os grandes Com isso forçase o esquecimento de uma conquista estética profissional e humana de que o Brasil não poderia abrir mão Esta a razão de meu tom revoltado quando abordo a questão VANGUARDA Nos anos 70 um amigo meu de Salvado Breno filho do meu antigo professor de história da filosofia Auto de Castro supondo que ia me ofender em minha possível ortodoxia concretista me disse que não dava valor a inovações ou invenções no campo da arte E me citou não sei quem que teria dito que Bartók era o menos inovador e o mais original dos grandes músicos modernos Breno era ainda um menino então E isso só reforçava a inteligência da citação que ele escolhera para destruir meus prováveis argumentos Eu como não pertencia a nenhuma ortodoxia em vez de contrapor o que quer que fosse ao que ele me disse fiquei comentando a beleza sagaz da tirada e tivemos assim uma conversa prazerosa A natureza quantitativa dos critérios de julgamento dos concretos a classificação poundiana de inventores mestres e diluidores a teoria da informação de Abraham Moles as análises jakobsonianas o pensamento de Max Bense etc deixa sempre a impressão de que se está negligenciando o que de fato interessa em arte ou seja impor qualidades de percepção do mundo Com efeito desde os primeiros textos teóricos do movimento eles ridicularizaram o inefável e o sublime No entanto ao ler muitos anos depois a afirmação de Augusto de Campos de que ao contrário do filósofo que aconselha calarse o que não pode ser dito Wittgenstein o poeta deve continuar dizendo o indizível encontrei antes coerência do que contradição entre esta eleição do indizível e aquela rejeição do inefável Pouco Importa que as duas palavras sejam tudo apurado sinônimas por trás dos close readings e da estatística de vogais e consoantes é o fenômeno sensível e qualitativo que tem a última palavra Como disse Décio Pignatari em Comunicação poética seu lindíssimo manual para jovens interessados em poesia aqui podese ensinar como se faz um poema mas não como se faz um poeta Se eles defendem uma objetividade que protege a apreciação poética contra os caprichos e a irracionalidade é porque sabem que aqueles e esta servem freqüentemente à manutenção de hábitos arraigados que resultam em servidão para o poeta Quando Augusto defendendo o alegado cerebralismo dos metafísicos ingleses diz que a verdadeira função ética do poeta implica uma recusa a se deixar transformar em objeto a permitir que façam dele uma jukebox de titilações sentimentais está dando uma pista para que qualquer bom entendedor possa discernir entre poesia e guerrilha estética no concretismo Assim na família dispersa de poetas bracejando no espaço tempo sincrônico os concretos salientam os nomes daqueles que representam essa defesa da lucidez da linguagem poetas do código antes que da mensagem aqueles que nas palavras de Augusto lutaram sob uma bandeira e um lema radicais a invenção e o rigor Aqui ressurge enriquecida a afirmação esquemática de que o antigo que foi novo é tão novo quanto o mais novo novo Hoje há muita gente se perguntando o que é que afinal significou o modernismo em que medida Webern pode obsoletar Brahms ou que sentido devemos dar ao fato de que John Cage jogando moedinhas do I Ching e lendo Finnegans Wake ao acaso seja considerado o mais criativo músico do fim do século Lembro de uma conversa que tive com Augusto em Amaralina no inicio dos anos 70 em que eu lhe expunha os para mim impressionantes arrazoados de LéviStrauss contra a música atonal concreta ou dodecafônica na ouverture de Le cru et le cuit Augusto embora acompanhando com admiração e interesse a inteligência dos argumentos respondeu impassível Todas essas coisas são muito bem pensadas mas quem decide o que é melhor para a música são os melhores músicos Há sempre algo que só é perceptível para quem está com a mão na massa Podese ver nas Demoiselles dAvignon um protesto contra a vulgarização da vicIa saudades do Ancien Régime uma premonição dos horrores das guerras modernas uma adaptação psicológica à disparada da tecnologia e à mudança dos valores morais novo sistema nervoso ou um gesto de libertar o olho do academicismo esterilizante a intuição de Picasso aquilo que só está por inteiro na própria obra necessariamente vai além dessas conjecturas sejam elas tomadas em separado ou todas em conjunto Augusto naquele dia em Amaralina estava me dando uma chave para lidar com os problemas deste nosso mundo pósutópico como Haroldo preferiu chamálo num artigo dos anos 80 Em 68 Augusto mostrouse impressionado com as declarações arrancadas por um repórter a Paul McCartney de entusiasmo por Stockhausen Ouvindo nos anos subseqüentes o pop doce e desossado que Paul produziu e a enxurrada de canções programadamente digestivas ou programadamente transgressivas que se seguiram ao espetacular crescimento do mercado de música pop depois dos Beatles podese imaginar o fastio e o dessabor de um homem como Augusto diante da canção popular E os tropicalistas não estiveram fora da roda Eles mesmos nós teriam cedo ou tarde que exibir de forma mais ou menos nobre em cada caso as marcas de origem da atividade que escolheram produção de canções banais para competir no mercado Sendo que no Brasil o crescimento desse mercado significa em si mesmo uma conquista nacional Augusto segue combatendo pela música impopular Boulez Stockhausen Berio Varèse e Cage mais Giacinto Scelsi Luigi Nono Ustvólskaia etc A resistente impopularidade da música culta mais inventiva é realmente uma esfinge Otto Maria Carpeaux escreveu que a música sempre esteve na retaguarda E o lampejo de euforia de Augusto em face do possível mas não ulteriormente desenvolvido interesse do jovem McCartney por Stockhausen em 68 era a fugaz esperança de decifração do enigma Produssumo como já disse foi a palavra inventada pelo outro concretista Décio Pignatari para definir uma era em que procedimentos de vanguarda se davam em tophits de pop rock Um dos problemas mais instigantes da vanguarda e o que faz muitos artistas instigantes fugirem dela como o diabo da cruz é sua dúbia disposição em face da ambição que lhe é intrínseca de tornar se a norma Recentemente ouvi de Arto Lindsay que os músicos e produtores dessas formas mais em voga de dance music techno são consumidores vorazes justamente desse repertório heroicamente defendido por Augusto Assim muito mais do que Paul pode ter ouvido Stockhausen esses garotos ouvem Varèse e Cage Boulez e Berio E me diz Arto só falam nisso O que pensar Nos anos 70 vozes conservadoras e muito úteis já se levantavam para protestar contra o modernismo nas ruas Mas onde e como se formará o ouvido coletivo naturalmente familiarizado com a música dos pósserialistas ou pósdodecafônicos E que mundo será esse em que uma música assim soe como música ao ouvido de todos Ao ver quadros de Monet meu filho de cinco anos comentou que eles eram muito malfeitos se vistos de perto embora parecessem bemfeitos se olhados à distância Eu próprio não sei dizer exatamente por que a música de Webern sobretudo a mais radical me pareceu indiscutivelmente bela desde a primeira audição Serão os garotos da technodance um embrião de minoria de massa O que acontecera ao ouvido tonal tal como o conhecemos se o fracasso de público da música mais impopular for superado Quando eu vi MTV pela primeira vez em Nova Iorque escrevi um artigo intitulado Vendo canções intencionalmente usando os dois sentidos da palavra vendo em que faço perguntas um pouco mais superficiais mas que apontam na mesma direção os procedimentos de filmes de vanguarda jogados no lixo pelo cinema sério e pelo comercial tinham finalmente se refugiado ali naqueles filmecos de rocknroll que eram a um tempo ilustrações erráticas das canções e anúncios dos discos correspondentes Hoje não agüento assistir a vídeos de rock por muito tempo o excesso de imagens esforçandose por parecerem bizarras me entediam sobretudo na velocidade em que são editadas Mas a questão permanece as referências ao Chien andalou ou a Metropolis e todo o permanente parentesco com Le sang dum poète de Cocteau estão num vídeo de rock exatamente e apenas como formas de Mondrian na minissaia de uma puta ou só agora o modernismo ou as vanguardas começam a perder direito a esses nomes de ruptura Diante do realismo desencantado na verdade ardendo de excitação retrógrada e préhumanista dos comentaristas aparentemente corajosos prefiro continuar amando o que foi conquistado pelos modernismos e todos os seus desdobramentos Diante da capitulação às leis narrativas de Hollywood continuo festejando Godard Diante dos jornalistas que atacam os filósofos franceses e alemães porque eles não escrevem de modo anglofilamente claro jornalístico louvo Heidegger escrevendo sobre Nietzsche e Deleuze sobre Proust Saúdo a chegada de Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown e Chico Science contra a crítica que se submete explicitamente ao número de cópias vendidas de um CD ou à intensidade e duração dos aplausos em salas de espetáculo E essa força que para mim significa vida eu a levo em grande parte aos poetas concretos Sem falar no fato de que eles em seu resgate do barroco e sua redescoberta de figuras mais ambiciosas e inventivas do que muitas das que ocupam tradicionalmente a corrente central da história da literatura brasileira enfatizaram como disse o historiador norteamericano Richard M Morse uma nova leitura da cultura americana não mais calcada em termos de uma imagística genealógica de troncos galhos e rebentos que apontam para uma formação gradual de identidades transatlânticas E a força da visão sincrônica E a superação da oposição centroperiferia ANTROPOFAGIA Essa visão é a grande herança deixada pelo modernista Oswald de Andrade Oswald foi juntamente com Mário de Andrade a liderança intelectual do movimento modernista brasileiro lançado escandalosamente em São Paulo em 22 com uma semana de recitais e exposições que suscitaram admiração susto e horror e lançaram as bases de uma cultura nacional As pintoras Tarsila do Amaral e Anita Malfatti o músico VillaLobos e outros poetas e escritores como Menotti del Picchia Plínio Salgado e Cassiano Ricardo também foram figuras centrais do movimento Enquanto Mário de Andrade cujo nome eu ouvia constantemente pronunciado pelos meus colegas nacionalistas tinha sido a figura responsável normativa e organizadora do modernismo Oswald cujo nome eu só ouvira ser pronunciado duas vezes por meu colega de classe Wanderlino Nogueira Neto no curso secundário e naquela conversa entre Rogério e Agrippino sobre Panamérica representara a fragmentação radical a força intuitiva e violentamente iconoclástica Meu encontro efetivo com esse autor se deu através da montagem de uma peça sua inédita desde os anos 30 pelo grupo de teatro Oficina Eu vira um espetáculo do Oficina Os pequenos burgueses de Górki em 65 na época em que Bethânia estava com o Opinião em São Paulo A montagem me encantara O estilo do diretor José Celso Martinez Corrêa era ao mesmo tempo mais tradicional e mais sutil do que o de Boal Lembro que ao sair do teatro pensei em como era problemático que eu gostasse talvez mais daquilo do que do meu querido Arena conta Zumbi O Zumbi era um passo uma conquista não havia dúvida mas em Os pequenos burgueses do Oficina havia uma sensibilidade que me reportava aos espetáculos da Escola de Teatro da Bahia de Eros Martim Gonçalves e do Teatro dos Novos de João Augusto Azevedo Uma sensibilidade que o Zumbi muito mais esquemático não mostrava E foi a visão de Os pequenos burgueses de Zé Celso muito cheio de nuances muito europeu que me deu a percepção de que o Zumbi de Boal era americano broadwayesco Fui ver O rei da vela a peça de Oswald de Andrade que o Oficina tirava de um ostracismo de trinta anos cheio de grande expectativa Mas não imaginava que iria encontrar algo que era ao mesmo tempo um desenvolvimento dessa sensibilidade e uma sua total negação Zé Celso se tornou aos meus olhos um artista grande como Glauber Se a própria função de diretor de teatro indica um status menos autoral do que a de cineasta e de fato aquela noite significou para mim mais um encontro com Oswald do que com Zé Celso era inegável que possuidor como Glauber de uma intensa chama própria Zé Celso tinha uma firmeza de mão no acabamento com que Glauber nem poderia sonhar Seu desembaraço artesanal lhe permitia fazer o espectador sentir o espaço de acordo com a intenção poética profunda que lhe inspirara esta ou aquela disposição cênica esta ou aquela movimentação de corpos vozes e luz O canhestro em Glauber muitas vezes intensifica a mensagem estética Zé Celso produzia tais intensificações em acordo íntimo com seu gosto e sua capacidade de controle dos meios A peça continha os elementos de deboche e a mirada antropológica de Terra em transe O primeiro ato recebera um tratamento de gosto expressionista com o antiherói central Abelardo I atendendo em seu escritório um a um os devedores de seus empréstimos que eram mantidos numa jaula e tratados às chicotadas pelo seu assistente Abelardo II as roupas eram escuras as maquiagens marrons à exceção dos dois Abelardos que tinham os rostos pintados de branco como palhaços O segundo ato era uma chanchada um painel berrantemente colorido representava em traços meio cubistas meio infantis a baía de Guanabarano Rio onde Abelardo confraternizava com a família de sua mulher Heloisa de Lesbos a gorda mãe que ouve galanteios do genro o irmão integralista nazifascista a irmãzinha menor com suas luvas de boxe o irmão veado que deplora a família e grita a toda hora que seu destino é pescar nos penhascos a avó a quem Abelardo dedica versos de Lamartine Babo o compositor de sensacionais marchinhas carnavalescas dos mesmos anos 30 em que a peça foi escrita o visitante americano numa primeira e mais eficaz versão do personagem caricato do agente imperialista que seria uma constante das peças do CPC da UNE nos anos 60 todos num palco giratório em que as boutades e as indicações das transações econômicas pessoais familiares de classes nacionais e internacionais se sucediam numa agilidade e numa vivacidade de entontecer O terceiro ato era em tom de ópera Heloisa de Lesbos que no primeiro ato aparecera de terno branco e fumando por uma longa piteira e no segundo num maiô futurista prateado que fazia a atriz Itala Nandi parecer um robô do filme Metrópolis uma Barbarella uma Modesty Blase agora estava no centro do palco com um longo vestido negro cuja cauda ocupava o grande círculo que fora giratório no ato anterior chorando a miséria em que caiu Abelardo um arrivista com quem ela aristocrata do café se casara por conveniência econômica vitima da sagacidade de seu assistente homônimo e do imperialista americano Muito da força visual do espetáculo se devia a Hélio Eichbauer que por isso mesmo é uma figura de grande importância na história do tropicalismo o jovem cenógrafo carioca que estudara na Tcheco Eslováquia com Swoboda A unidade cênica de cada um desses atos só se tornou possível pela segurança técnica e imaginação inventiva desse grande artista brasileiro cujos trabalhos enriquecem nosso teatro até hoje e com quem tenho colaborado na criação de meus shows de música tendo inclusive usado como ilustração de capa do meu disco Estrangeiro sua maquete para o cenário do segundo ato de O rei da vela Mas havia uma tensão inevitável e muito salutar para esse espetáculo inaugural da nova fase do Oficina entre o temperamento apolíneo de Eichbauer e as ambições de Zé Celso de tornarse mais e mais dionisíaco Menos de um ano depois já em 68 o diretor aceitaria a empreitada de montar Roda viva peça juvenil de Chico Buarque sobre a engrenagem que cerca a criação de uma estrela de música popular e faria disso uma experiência radical no sentido de um teatro de explosão do irracional Muito do que se viu então foi de grande impacto e importância estética mas a não ser pela extraordinária montagem de Hamlet em 94 o nível de O rei da vela não foi atingido por nenhum outro espetáculo do Oficina que eu tenha visto ele montou Na selva das cidades de Brecht e As três irmãs de Tchekhov durante meu exílio londrino ou do teatro brasileiro em geral Eu tinha escrito Tropicália havia pouco tempo quando O rei da vela estreou Assistir a essa peça representou para mim a revelação de que havia de fato um movimento acontecendo no Brasil Um movimento que transcendia o âmbito da música popular No texto de apresentação que fez imprimir no programa Zé Celso dedicava o novo espetáculo a Glauber e à capacidade de responder à realidade da época que o Cinema Novo exibia e de que o teatro estava carente E se referia a Chacrinha como teatralmente criativo e inspirador Isso confirmava minha percepção de que o que eu vira tinha tudo a ver com o que eu estava tentando fazer em música Depois de ver a peça conversei com Zé Celso a quem fui apresentado já não lembro por quem Estávamos num restaurante freqüentado por gente de teatro e de música e por artistas em geral Conteilhe sobre minha canção Tropicália e de como eu a achava semelhante ao que ele estava fazendo Acho que ele pediu que eu cantasse um trecho ou recitasse a letra da canção pois é nítida a memória de seu comentário em tom de pergunta uma sua marca O que você acha parecido é esse modo cubista de fragmentar as imagens Comentei a concordância no interesse por Terra em transe e Chacrinha E nossa conversa animou se com facilidade Disselhe da profunda impressão que me causou o texto escolhido e ele falou horas sobre Oswald de Andrade ressaltando o fato de que aquela peça mais moderna do que tudo o que se escreveu no teatro brasileiro depois dela com sua visão erotizada da política sua linguagem não linear seu enfoque bruto de signos que falam por si na revelação de conteúdostabus da realidade brasileira parecia ter ficado reprimida pelas forças opressivas da sociedade brasileira e de sua intelligentsia à espera de nossa geração Nos anos 70 li porque o autor tinha sido meu colega na Faculdade de Filosofia um livro do ensaísta baiano Carlos Nelson Coutinho intitulado O estruturalismo e a miséria da razão em que seguindo o pensamento de Georg Lukács ele aponta uma ameaça à linhagem racional da filosofia ocidental e à própria racionalidade da burguesia revolucionária ascendente ameaça essa vinda simultaneamente do irracionalismo e do superracionalismo ambos representativos de uma fase decadente da mesma burguesia Carlos Nelson é um pensador marxista respeitado e a despeito de nos vermos com grande raridade e sempre com brevidade meu amigo Ou de qualquer modo alguém de quem gosto Seu livro me interessou primeiro porque eu queria ver como funcionava a cabeça de um intelectual conhecido se posta a trabalhar profissionalmente Logo no entanto e à medida mesma que eu ia achando o livro mais e mais esquemático impressionoume o quanto me servia a carapuça De fato se eu fora rejeitado pelos sociólogos nacionalistas da esquerda e pelos burgueses moralistas da direita ou seja pelo caminho mediano da razão tivera p apoio de atrairá ou fora atraído por irracionalistas como Zé Agrippino Zé Celso Jorge Mautner e superracionalistas como os poetas concretos e os músicos seguidores dos dodecafônicos Uma figura contudo eu estava agora descobrindo em São Paulo entre 67 e 68 era visível por trás desses dois grupos que nem sempre se aceitaram mutuamente Oswald de Andrade Uma prova de que Oswald os nos unia aquém ou além da razão é que o racionalista Boal a quem encontrei à saída do Oficina na noite da estréia de O rei da vela tendo me perguntado se eu havia gostado e tendo me ouvido dizer que sim fez o seguinte comentário Não adianta Oswald de Andrade está morto e enterrado Prefiro Vianninha referindose a Oduvaldo Vianna Filho o mais importante autor teatral saído do CPC da UNE Boal queria dizer com isso que aquelas figuras caricatas o burguês decadente o agente do imperialismo etc pelo menos faziam sentido nas peças panfletárias do CPC onde ainda que de forma simplista elas eram postas numa perspectiva política enquanto em Oswald elas serviam a uma visão anárquica de que só se depreendiam no máximo julgamentos morais o burguês corno o jovem aristocrata homossexual o arrivista filisteu etc Ora para mim Oswald estava apenas nascendo e suas figuras pareciam disparatadas justamente porque em vez de servir como ilustração para idéias supostamente indiscutíveis instigavam a imaginação a uma crítica da nacionalidade da história e da linguagem Em breve eu descobriria que o teatro de Oswald de Andrade era a parte mais fraca de sua obra e O rei da vela talvez a parte mais fraca do seu teatro Tudo o que eu vira ali estava melhor posto em sua poesia seus romances e seus manifestos Antes de Zé Celso os poetas concretos vinham se encarregando de ressuscitar Oswald Uma antologia de poemas introduzida por longo ensaio de Haroldo de Campos e um artigo de Décio Pignatari Marco Zero de Andrade forçavam a reintrodução entre os protagonistas da literatura brasileira da figura de Oswald até então envolta em silêncio ou lembrada apenas como a de um piadista inconseqüente e um vanguardista datado Quando eu disse a Augusto o efeito que o contato com Oswald tinha produzido em mim ele logo animouse a me passar os textos de Décio e Haroldo e considerou o meu entusiasmo uma confirmação a mais das afinidades entre eles concretos e nós tropicalistas Através de Augusto e seus companheiros tomei conhecimento da poesia a um tempo solta e densa extraordinariamente concentrada de Oswald Também pouco depois da sua revolucionária prosa de ficção Sobretudo recebi o tratamento de choque dos manifestos oswaldianos Manifesto da poesia pau brasil de 24 e principalmente Manifesto antropófago de 28 Esses dois textos de extraordinária beleza são ao mesmo tempo um aggiornamento e uma libertação das vanguardas européias Filhos como os manifestos europeus do futurismo de Marinetti sendo o primeiro deles anterior aos surrealistas eles eram também uma redescoberta e uma nova fundação do Brasil Mais violentamente ainda do que Antonio Candido décadas depois Oswald se referia à literatura brasileira como a literatura mais atrasada do mundo Não era por deixar de observar isso que ele se sentia livre para dizer no primeiro dos manifestos Apenas brasileiros de nossa época O necessário de química De mecânica de economia e de balística Tudo digerido Sem meeting cultural Práticos Experimentais Poetas O segundo manifesto o Antropófago desenvolve e explicita a metáfora da devoração Nós brasileiros não deveríamos imitar e sim devorar a informação nova viesse de onde viesse ou nas palavras de Haroldo de Campos assimilar sob espécie brasileira a experiência estrangeira e reinventála em termos nossos com qualidades locais iniludíveis que dariam ao produto resultante um caráter autônomo e lhe confeririam em principio a possibilidade de passar a funcionar por sua vez num confronto internacional como produto de exportação Oswald subvertia a ordem de importação perene de formas e fórmulas gastas que afinal se manifestava mais como má seleção das referências do passado e das orientações para o futuro do que como medida da força criativa dos autores e lançava o mito da antropofagia trazendo para as relações culturais internacionais o ritual canibal A cena da deglutição do padre d Pero Fernandes Sardinha pelos índios passa a ser a cena inaugural da cultura brasileira o próprio fundamento da nacionalidade A idéia do canibalismo cultural servianos aos tropicalistas como uma luva Estávamos comendo os Beatles e Jimi Hendrix Nossas argumentações contra a atitude defensiva dos nacionalistas encontravam aqui uma formulação sucinta e exaustiva Claro que passamos a aplicála com largueza e intensidade mas não sem cuidado e eu procurei a cada passo repensar os termos em que a adotamos Procurei também e procuro agora relêla nos textos originais tendo em mente as obras que ela foi concebida para defender no contexto em que tal poesia e tal poética surgiram Nunca perdemos de vista nem eu nem Gil as diferenças entre a experiência modernista dos anos 20 e nossos embates televisivos e fonomecânicos dos anos 60 E se Gil com o passar dos anos se retraiu na constatação de que as implicações maiores do movimento e com isso Gil quer dizer suas correlações com o que se deu em teatro cinema literatura e artes plásticas foram talvez fruto de uma superintelectualização eu próprio desconfiei sempre do simplismo com que a idéia de antropofagia por nós popularizada tendeu a ser invocada O psicanalista italiano Contardo Calligaris escreveu no início dos anos 90 um livro sobre o Brasil em que coloca a idéia de antropofagia cultural que ele encontrou disseminada nos meios psicanalíticos brasileiros como um mito que além de nocivo é sintoma da nossa doença congênita de nãofiliação de ausência de um nome do pai de falta de um significante nacional brasileiro Mas sua argumentação só me parece aceitável se considerarmos que ele está ali agredindo um uso que se fez de tal mito e que lhe pareceu contribuir para a manutenção de um estado de coisas lastimável não a intuição mesma de Oswald em sua perspectiva própria Trazer de volta como ele fez ao meramente orgânico o ato antropofágico ritual que Oswald emprestava dos índios comer partes do corpo do inimigo admirado para adquirirlhe a bravura a destreza e as virtudes morais como receita de um comportamento criativo em tudo diferente do que freqüentemente se faz no Brasil os congressos psicanalíticos ou fora deles era forçar a mão para numa sanha diagnosticadora meter num mesmo saco a mediocridade dos misturadores de informações mal assimiladas e o gesto audaz de um grande poeta Era também agir como se a antropofagia fosse um programa prescrito por Oswald nos anos 20 e posto em prática até nossos dias com resultados desastrosos Na verdade são poucos os momentos na nossa história cultural que estão à altura da visão oswaldiana Tal como eu a vejo ela é antes uma decisão de rigor do que uma panacéia para resolver o problema de identidade do Brasil A poesia límpida e cortante de Oswald é ela mesma o oposto de um complacente escolher o próprio coquetel de referências A antropofagia vista em seus termos precisos é um modo de radicalizar a exigência de identidade e de excelência na fatura não um drible na questão Nós tínhamos certeza de que João Gilberto que ao contrário das fusões tipo maionese para usar a palavra escolhida por Calligaris criou um estilo novo definido fresco inaugural por seus próprios méritos era um exemplo claro de atitude antropofágica E queríamos agir à altura Detenhome no comentário desse livrinho despretensioso porque nele se formulou a mais decidida rejeição à moda antropofágica de que como já disse nós tropicalistas fomos os mais eficazes divulgadores Calligaris diz que seu livro nasceu de uma paixão pelo Brasil e por uma mulher brasileira país ausente de suas cogitações até que um convite profissional o trouxe aqui E psicanalista observa que a melhor maneira de ajudar esse país amado a superar sua falência como projeto é jogarlhe na cara sua desesperança fatal Brazil is hopeless escrevia sem demonstrar o mesmo desejo de ajudar de Calligaris embora ela também estivesse aqui porque se apaixonara por uma mulher brasileira a poetisa americana Elizabeth Bishop No livro de Calligaris de resto há um tom agradável e observações úteis revelando uma inteligência responsável e generosa A própria tese central do livro se ele é considerado na condição provisória de um livro de viagem como pede o autor ilumina o pensamento dos que têm tomado o Brasil como questão O colonizador que deixou a terramãe para exercer a potência do pai sem interdito na nova terra e o colono o imigrante que veio esperando do colonizador uma interdição paterna que fundasse uma nova nacionalidade e só encontra um uso escravo do seu corpo confundido pelo colonizador como o corpo dos negros com a terra que deve ser exaurida sem limites são duas instâncias da mente brasileira que produzem a frase ouvida por Calligaris num período em que ela parecia uma aberração aos próprios brasileiros pois era então uma novidade o que não quer dizer que não se possa tomála como ele o fez por um sintoma Este país não presta O nome mesmo do país Brasil lhe parece destituído de valor que eu saiba o único que não designa nem uma longínqua origem étnica nem lugar mas um produto de exploração o primeiro e completamente esgotado Assim tudo no Brasil do rapaz que passa a mão na sua bunda no Carnaval da Bahia sem que fique claro se ele está em busca de sexo ou de dinheiro à divida externa das crianças que são tratadas como majestades ou assassinadas nas ruas aos blocos afros que buscam no Egito absurdo de suas canções uma origem que lhes dê sentido à existência se explica pela falta do nome do pai de um significante nacional O antropofagismo como Calligaris prefere teria surgido como solução para esse problema E é por ele criticado duramente por substituir pelo tubo digestivo que todos sabem onde vai dar o UM que o Brasil nunca conseguiu se fazer E essa substituição afinal seria uma sugestão do colonizador ao colono no sentido de tomar como UM nacional o corpo escravo que se oferece o Brasil seria assim exótico não só para os turistas como também para os brasileiros Ora tudo isso tem a ver com o tropicalismo Mas se a psicanálise brasileira tivesse um João Gilberto a conversa seria outra O livro de Calligaris presta como provocação E acima de tudo revela uma vontade corajosa de conhecer o corpo e a alma desse país encontrado no caminho A interpretação que ele dá do cinismo com que os livros didáticos brasileiros tratam as figuras históricas sobretudo o episódio da vinda de d João VI que foi forçado a deixar Portugal quando Napoleão bloqueou a Inglaterra a qual ele apoiava com corajosa fidelidade e é resumido nos livros escolares a um mero d João tinha dívidas com a Inglaterra e interesses comerciais passando a ser conhecido no Brasil como o rei fujão como resultante da visão brasileira de que o único motor da ação humana pudesse ser o apetite de um gozo direto da coisa é excelente Tanto o tom provocativo quanto a coragem de ir assim fundo no desvendamento do Brasil são aspectos que aproximam o livro de Calligaris do tropicalismo que ele não cita e da antropofagia que ele desanca Seria o caso no entanto de perguntar como Calligaris interpretaria o fato de essa mesma antropofagia que ele conheceu triunfante ter sido de todas as contribuições dadas pelos modernistas a que encontrou maior resistência na verdade uma rejeição total ficando reprimida desde os anos 20 até o final dos anos 60 E mais já que esses valores dos 60 estão desacreditados o livro de Calligaris contribui muito para isso com sua mensagem antiParadiseNow antiprincípiodo prazer seu realismo psicanalítico conservador ele deve talvez reconsiderar o diagnóstico Se a antropofagia era tão mau sintoma aparentemente o Brasil tem anticorpos poderosos contra ela uma vez que foi o maior fracasso do movimento de 22 e o bom senso já a penaliza mal ela ensaia uma volta no concretismo no tropicalismo etc Mas eu também sei ser realista Oswald também sabia e considero bemvindo o refluxo conservador Por isso aceito a provocação e valorizo esse livro tão amigo quanto discordante Entendo que sendo seu autor psicanalista e tendo sua chegada ao Brasil coincidido com o final da voga neoantropofágica desencadeada pelo tropicalismo pelo visto ele encontrou os últimos estertores dessa onda nos meios psi ele naturalmente reagiu ao que ouviu aquilo pode ter ficado calado no inconsciente brasileiro desde sempre mas foi dito e o analista chegou a tempo de ouvir pelo menos o seu eco No entanto há pertinência em notar na Tropicália na esteira da Antropofagia uma tendência a tornar o Brasil exótico tanto para turistas quanto para brasileiros Sem dúvida eu próprio até hoje rechaço o que me parecem tentativas ridículas de neutralizar as características esquisitas desse monstro católico tropical feitas em nome da busca de migalhas de respeitabilidade internacional mediana Claro que reconheço que reflexos de um turbante de bananas não seriam particularmente úteis à cabeça de um pesquisador de física nuclear ou de letras clássicas que tivesse nascido no Brasil Apenas sei que este fato Brasil só pode liberar energias criativas que façam proliferar pesquisadores de tais disciplinas ou inventores de disciplinas novas se não se intimidar diante de si mesmo E se puser seu gozo narcíseco acima da depressão de submeterse o mais sensatamente possível à ordem internacional Quando Orfeu do Carnaval estreou eu tinha dezoito anos Assisti a ele no Cine Tupi na Baixa dos Sapateiros na Bahia Eu e toda a platéia ríamos e nos envergonhávamos das descaradas inautenticidades que aquele cineasta francês se permitiu para criar um produto de exotismo fascinante A critica que os brasileiros fazíamos a esse filme pode ser resumida assim Como é possível que os melhores e mais genuínos músicos do Brasil tenham aceitado criar obrasprimas para ornar e dignificar uma tal enganação É notório que Vinicius de Moraes autor da peça em que o filme se baseou saiu irado da sala de projeção durante uma sessão promovida pelos produtores antes da estréia O fascínio sem embargo funcionou com os estrangeiros não só o filme pareceu a pessoas dos mais diferentes níveis culturais uma comovedora versão moderna e popular do mito grego como também uma revelação do país paradisíaco em que ela era encenada Quando o tropicalismo chegou o filme já estava esquecido no Brasil Mas quando chegamos a Londres em 69 os executivos de gravadoras os hippies e os intelectuais que conhecemos todos sem exceção se referiam entusiasticamente a Orfeu do Carnaval tão logo eram informados de que éramos brasileiros Sentíamos ainda um pouco de vergonha mas atender ao pedido de cantar Manhã de Carnaval muitas vezes compensava Ainda hoje não param de se repetir as narrativas de descobertas do Brasil por estrangeiros cantores de rock romancistas de primeira linha sociólogos franceses atrizes debutantes todas marcadas pelo inesquecível filme de Marcel Camus Elizabeth Bishop em suas cartas do Rio num primeiro momento possivelmente por ser poeta e por morar por muito tempo no Brasil esforçouse para convencer seus amigos americanos Robert Lowell incluído de que o filme era ao contrário do que lhes parecia mau embora a música fosse excelente mas em breve ela se distanciava dos brasileiros no seu julgamento ao desmerecer as canções do filme a principio louvadas por não serem a autêntica música das favelas cariocas John Updike em parte por causa desse Orfeu escreveu um livro chamado Brazil com o qual não se saiu muito melhor do que o cineasta Camus Só JeanLuc Godard escreveu à época mesma do lançamento do filme um artigo critico em tudo justo com o cinema a poesia o mito de Orfeu e a cidade do Rio de janeiro Um artigo que os tropicalistas gostariam de assinar Mas só vim a tomar conhecimento desse artigo já nos anos 70 de volta à Bahia Nesse meio tempo a revisão crítica tropicalista que o filme sofreu dizia respeito sobretudo a um aprofundamento do estudo do olhar do estrangeiro sobre nós e das sutilezas de amor e guerra com o exotismo Surpreendime escrevendo para a introdução deste livro que o Brasil é para mim como para os brasileiros tal como os vejo e sinto antes de tudo um nome Isso foi o que me fez lembrar do livro do psicanalista italiano Todos os brasileiros temos a impressão de que o país simplesmente não tem senso prático É como um pai de coração bom e nome honrado a quem respeitamos mas que não consegue dinheiro ou um trabalho estável perde grandes oportunidades se embriaga e se mete em complicações O nome do Brasil não apenas me parece por todos os motivos belo como tenho dele desde sempre uma representação interna una e satisfatória O analista italiano diz que é característico do brasileiro ser nomeado irresponsavelmente sem vinculo simbólico com por exemplo o santo correspondente ao dia do seu nascimento Meu nome é Caetano porque nasci no dia de são Caetano em louvor do qual minha mãe manda celebrar missa todos os anos mesmo na minha ausência Nunca me senti uma exceção por causa disso Santo Amaro não tinha ricos nem pobres e era bem urbanizada e tinha estilo próprio todos se orgulhavam com naturalidade de ser brasileiros Achávamos a língua portuguesa bela e clara Dizíamos de bom grado que O francês que aprendíamos no ginásio era talvez uma língua ainda mais bela e que o italiano que ouvíamos freqüentemente nos filmes seguramente o era o espanhol dos filmes mexicanos nos parecia bastante ridículo Julgávamos o inglês fácil como matéria de estudo por possuir verbos pouco flexionados mas implicávamos com as discrepâncias entre escrita e pronúncia e lhe achávamos a sonoridade antes canina do que humana embora os filmes e as canções nos atraíssem mais e mais para ele Quase todo o mundo era visivelmente mestiço Que o país fosse pobre não era uma vergonha embora eu passasse depois a torcer para que ele enriquecesse Supúnhamos que éramos pacíficos afetivos e limpos Era inimaginável que alguém nascido aqui quisesse viver em outro país O tropicalismo começou em mim dolorosamente O desenvolvimento de uma consciência social depois política e econômica combinada com exigências existenciais estéticas e morais que tendiam a pôr tudo em questão me levou a pensar sobre as canções que ouvia e fazia Tudo o que veio a se chamar de tropicalismo se nutriu de violentações de um gosto amadurecido com firmeza e defendido com lucidez Chico Buarque conta que em sua adolescência de menino paulista de alta classe média ele se sentiu atraído por Elvis e pelo folclore urbano da juventude transviada Sua rebeldia de episódico ladrão de automóvel revela essa identificação A bossa nova trouxeo para uma maturidade que fez dessa fase uma sua préhistória artística e pessoal Eu me sentia num país homogêneo cujos aspectos de inautenticidade e as versões de rock sem dúvida representavam um deles resultavam da injustiça social que distribuía a ignorância e de sua macromanifestação o imperialismo que impunha estilos e produtos Eu ouvia e aprendia tudo no rádio mas à medida que ainda na infância ia formando um critério ia deixando de fora uma tralha cuja existência eu mais perdoava do que admitia Chegou uma altura em que em meu íntimo eu não gostava nem de saxofone achavalhe o timbre vulgar sem a nobreza do trombone ou da trompa sem sequer a respeitabilidade do trompete e sem por outro lado a doçura pastoral da flauta e das madeiras ou a suavidade celestial das cordas Tínhamos um piano em casa e aprendíamos rudimentos de música com uma velha professora que sabia ensinar a ler as notas mas não os ritmos Veio a moda nacional do acordeão Em casa todos de meu pai a Bethânia mas eu mais que todos achávamos esse instrumento de extremo mau gosto exceto em sua utilização por Luiz Gonzaga na estilização da música regional nordestina A bateria sempre me pareceu uma aberração um apanhado grotesco de instrumentos de percussão marcial ligados por porcas e parafusos para que um homem pudesse tocálos sozinho como uma atração de circo Sendo que tudo isso dentro da limitação timbrística da percussão marcial européia dura e brilhante sem as sutilezas e a organicidade dos sons da tumbadora ou do bongô cubanos da cuíca e do atabaque brasileiros quando tomei conhecimento da percussão indiana da balinesa da japonesa e das muitas africanas esse julgamento recrudesceu Quando a bossa nova chegou senti minhas exigências satisfeitas e intensificadas Uma das coisas que mais me atraíram na bossa nova de João Gilberto foi justamente o desmembramento da bateria a rigor não há bateria em seus discos há percussão tocada na caixa ou no seu aro depois vassourinha sobre catálogo telefônico A ausência de solos de sax também contribuiu muito A volta da bateria como instrumento que ocorreu já nos anos 60 no Beco das Garrafas e no Fino da Bossa com suas viradas usando pratos e tudo me soou de uma vulgaridade extraordinária Eu não era um extraterrestre por ter tais gostos Apenas radicalizava dentro de mim como João Gilberto finalmente radicalizou para todos uma tendência de definição de estilo brasileiro nuclear predominante Eu sei que o próprio João adora bateria e bons bateristas e que os brasileiros em geral não os desprezam mas não é a forma idiossincrática com que essa visão se manifestou em mim que revela seu significado apenas a intuição de um estilo nacional novo e definido em música popular passou por esses extremos em minha fantasia Imaginese com que força eu não tive que pensar contra mim mesmo para chegar a ouvir Roberto e Beatles e Rolling Stones e mesmo Elis com amor Zé Celso gostava de dizer que havia um forte componente masoquista no tropicalismo De fato havia como que uma volúpia pelo antes considerado desprezível Mas eu que como já contei terminei passeando entre pilhas de latas de supermercado por prazer estético não me entreguei a essa volúpia sem dedicarlhe à interpretação todas as minhas horas de crescente insônia E se por um lado eu não tinha tido contato direto com a arte pop americana curiosamente Rogério nunca mencionara ou mostrara trabalhos de Warhol ou Lichtenstein por outro eu não contava com a fórmula antropofágica de Oswald As aventuras da sensibilidade se deram num grande vazio Pois enquanto Gil parecia ter uma identificação natural com o material vulgar da publicidade identificação de que eu não participava bastando dizer que ele fazia jingles desde 63 em Salvador e eu até hoje não apareci em um anuncio sequer nem mesmo permiti que qualquer canção minha fosse usada para fins publicitários as idéias de Rogério e de Agrippino à medida que iam passando a servir de orientação para ações reais minhas tiveram que se submeter a um crivo interno terrível não sendo raras as vezes em que na solidão eu me permitia desconfiar da autenticidade de suas reações freqüentemente prometendo a mim mesmo que nunca aceitaria neles ou em mim a exibição de heresias e heterodoxias apenas como escândalo sem que isso estivesse organicamente vinculado à regeneração do ambiente de música popular no Brasil O encontro com as idéias de Oswald se deu quando todo esse processo já estava maduro e o essencial da produção já estava pronto Seus poemas curtos e espantosamente abrangentes a começar pelos readymades extraídos da carta de Caminha e de Outros pioneiros portugueses na América convidavam a repensar tudo o que eu sabia sobre literatura brasileira sobre poesia brasileira sobre arte brasileira sobre o Brasil em geral sobre arte poesia e literatura em geral Oswald de Andrade sendo um grande escritor construtivista foi também um profeta da nova esquerda e da arte pop ele não poderia deixar de interessar aos criadores que eram jovens nos anos 60 Esse antropófago indigesto que a cultura brasileira rejeitou por décadas e que criou a utopia brasileira de superação do messianismo patriarcal por um matriarcado primal e moderno tornouse para nós o grande pai Glauber parece ter sido o único a não partilhar do culto oswaldiano talvez tivesse medo de ser assimilado a uma figura com tantos pontos em comum com ele próprio De resto ele já tinha feito sua escolha entre os modernistas VillaLobos com seu nacionalismo retumbante e a conquista de renome internacional com seu talento exuberante com seu temperamento e seus caprichos parecialhe uma identificação mais adequada A Bachiana nº 5 ficara de tal modo vinculada ao travelling circular do beijo entre Corisco e Rosa em Deus e o Diabo na Terra do Sol que era natural que Glauber defendesse Villa Lobos como a si mesmo Antonio Candido define o barroco como a atitude estética em que a palavra é considerada algo maior que a natureza capaz de sobreporlhe as suas formas próprias no romantismo ela é considerada menor que a natureza incapaz de exprimila abordandoa por tentativas fragmentárias enquanto o classicismo a considera equivalente à natureza capaz de criar um mundo de formas ideais que exprimam objetivamente o mundo das formas naturais A luz dessa classificação que me parece clara e bela Glauber cuja fama de barroco fingi endossar ou melhor endossei de fato por estar ali tomando o termo barroco em sua acepção menos rigorosa de extravagante ou sobrecarregado ou ainda irregular linhas acima seria antes um romântico De fato ele não apenas sonhava em filmar a vida de Castro Alves ele se identificava com a figura desse poeta romântico baiano que um dia entrou no teatro da ópera de Salvador a cavalo Seu sonho de filmar O Guarani romance indianista de José de Alencar partindo da ópera verdiana de Carlos Gomes o outro nome da música brasileira tornado internacional assim como o fato de ele dizer preferir Alencar ao indiscutível Machado de Assis indica sua verdadeira linhagem Seus filmes irregulares e fora de controle sugerem uma intuição da realidade demasiado genial para ser reordenada numa peça coerente A genialidade dessa intuição é confirmada e complementada pelos gestos exteriores ao filme pela visão messiânica pelo sofrer na carne a aventura da afirmação de um cinema nacional e através dele de uma afirmação da nação no mundo Não se trata de uma hipotética poesia de exportação mas de uma encarnação da vontade de exportar Há um gosto de destino em tudo isso O que o leva a eleger como patrono a figura de Villa Lobos não a de Oswald de Andrade com cuja agressividade antiprovinciana Glauber tinha talvez demasiados como já afirmei pontos de identificação A mim se me fosse dado o talento necessário eu ambicionaria superar essa tensão O problema já foi equacionado por João Gilberto depois dele na minha profissão não se pode aceitar nada menos do que fazer a massa mundial comer o biscoito fino que se fabrica no Brasil O Cinema Novo nasceu de uma ambição bífida No inicio dos anos 60 jovens intelectualizados e politicamente engajados quiseram apresentar uma visão do Brasil que valesse por uma intervenção transformadora da nossa realidade social Quiseram por outro lado implantar uma indústria cinematográfica entre nós Não se podem conceber desejos mais conflitantes Seria o caso de hoje nos admirarmos e mesmo maravilharmos do fato de os frutos da empreitada daí saída não serem nem parcos nem modestos Ao contrário é moda na imprensa brasileira atacar o Cinema Novo como paradigma da nossa falência como nação e povo Pior a julgar pelo que se lê nos jornais o moderno cinema brasileiro é a única razão para nos envergonharmos do nosso atraso cultural Escarnecese dos filmes inaugurais da fase heróica por não terem comunicabilidade popular e dos muitos que já nos anos 70 conseguiram essa comunicabilidade por serem medíocres tendo ambos os grupos de filmes sido dirigidos pelo mesmo time pioneiro de diretores No entanto o cinema brasileiro teve presença marcante no panorama internacional nos anos 60 tendo Glauber influenciado diretores importantes e tão dispares quanto Pasolini e Sergio Leone Herzog e Coppola e o mercado interno chegou a parecer sólido e estável nos anos 70 com uma série de sucessos de bilheteria Toda nudez será castigada Xica da Silva A dama do lotação Eu te amo Chuvas de verão Os sete gatinhos Pixote etc etc sendo que Elia Kazan elogiou Os herdeiros e Susan Sontag e muito mais gente louva ainda hoje Bye bye Brasil ambos de Carlos Diegues série essa coroada com o fato de Dona Flor e seus dois maridos ter suplantado na bilheteria o próprio Tubarão de Spielberg no ano de seu lançamento A criação da Embrafilme empresa estatal de financiamento produção e distribuição cinematográfica numa manobra dos cineastas do Cinema Novo com o poder do regime militar é criticada hoje não por uma esquerda revanchista que considere a aproximação desses diretores com a ditadura demasiadamente promíscua mas por neoconservadores em nome do horror a estatais nacionalistas e reservas de mercado em nome em suma do amor à chamada liberdade econômica Eu que reconheço no tropicalismo uma reverência à livre competitividade e uma desconfiança dos Estados centralizados prefiro contabilizar as conquistas do Cinema Novo e louvar a capacidade de seus criadores de ir tão longe tanto no impor linguagens novas quanto na formação de platéias Só uma personalidade especial como a de Glauber poderia ter liderado a marcha de ambições tão dificultosas em direção a tais conquistas Só seu temperamento de articulador astuto aliado à identificação romântica com a figura do gênio poderia ser o núcleo gerador da Embrafilme do prestígio do Cinema Novo na Europa e do surgimento do cinema marginal E só uma eleição do modelo Villa Lobos estimularia esse tipo de feito não se pode imaginar Oswald de Andrade participando da fundação da Embrafilme e Mário de Andrade que talvez o fizesse era uma figura sensata demais até hoje ninguém parece se sentir à vontade para dizer que ele era veado e os veados militantes preferem Oswald apesar de este ter dado mostras do que hoje se chama horrivelmente de homofobia e essa preferência só é abonadora para a nossa comunidade gay Mas o Glauber dessacralizador e demolidor que se fez ouvir na Bahia quando se tinha que defender a vanguarda e a experimentação contra o acanhamento provinciano esse Glauber era Oswald e foi esse mesmo GlauberOswald que escarneceu da Embrafilme ao fazer pouco antes de morrer A Idade da Terra espetacular gesto marginal e perdulário em todos os sentidos que desconcertou o coro dos contentes e o dos descontentes O que só aumenta nossa honra em vêlo cantando no filme de Godard Vento leste em resposta à pergunta Para onde vai o cinema do terceiro mundo o refrão de Divino maravilhoso canção feita em 68 por Gil e por mim Nós outros os tropicalistas propriamente ditos que tínhamos no Glauber de Terra em transe um inspirador comum não precisávamos como ele conter esconder ou evitar o deslumbramento com a descoberta de Oswald Para mim pessoalmente era um modo de redimensionar minhas admirações literárias O culto a João Cabral de Melo Neto não se abalou Antes terá acontecido o que Augusto conta que se passou com os próprios concretistas o rigor construtivo de Cabral encontrou para eles como para mim complementaridade na abertura oswaldiana para a contribuição milionária de todos os erros A deslumbrante prosa barroca de Guimarães Rosa tampouco se ressentiu do trauma O mesmo não se pode dizer da minha admiração por Sartre ou por Clarice Lispector Não que os textos filosóficos ou ensaísticos de Sartre tenham perdido o brilho aos meus olhos Mas lembro de ouvir uma repreensão de Rogério por eu ter lhe declarado no Solar da Fossa em 66 que considerava As palavras o melhor dos livros já escritos Anos depois li idêntica opinião externada por Simone de Beauvoir mas ela naturalmente tinha razões muito pessoais para isso Rogério não apenas me disse que para ele não era assim ele também detectou nesse julgamento uma distorção de perspectiva que denotava ignorância Deilhe razão sem poder alcançarlhe a visão O encontro com Oswald como que me deu a dimensão dessa crítica Quanto a Clarice eu a idolatrava desde 59 quando em Santo Amaro li na revista Senhor o conto A imitação da rosa Nos primeiros anos 60 segui lendo tudo o que ela escreveu e escrevia meu irmão Rodrigo sempre me comprando seus livros Ao chegar ao Rio para morar em 66 como tinha conseguido com o ator José Wilker seu número de telefone decidi ligar para ela Passei a fazêlo com alguma regularidade Desde a primeira vez ela sempre parecia estar junto ao telefone esperando a ligação pois atendia mal soava o primeiro toque Sua emissão de voz dava a impressão de imediatez de pensamento e sentimento e suas palavras indicavam igual imediatez de percepção Nunca nos víamos mas mantivemos uma amizade telefônica que se desfez com um desinteresse que evidentemente surgiu nela e que coincidiu com minha mudança para São Paulo Hoje amo sua literatura como quando eu tinha dezessete anos mas no meio da Tropicália sob o impacto de Oswald ela me pareceu demasiadamente psicologizante subjetiva e num certo mau sentido feminina Esta é a primeira vez que digo isso e talvez só o faça porque já não penso ou sinto mais assim não preciso pensar e sentir assim Na altura nem para Augusto que talvez aprovasse a crítica confessei essa mudança já em 68 por causa do assassinato do estudante Edson Luis por policiais houve uma reunião ampla de artistas e intelectuais para exigir do governador da Guanabara uma atitude condizente Eu viera de São Paulo só para isso e me encontrava em meio a uma pequena multidão de notáveis na antesala do palácio do governo quando senti um toque em meu ombro e voltandome ouvi a voz inconfundível com seus erres guturais mesmo quando intervocálicos Rapaz eu sou Clarice Lispector Fiquei sem palavras encontrávamonos justamente quando meu crescimento intelectual tinha me afastado de sua literatura Ela que agora podia me reconhecer por causa da TV e das fotografias quando nos falávamos ao telefone eu tinha uma ou duas canções lançadas por outros cantores mas era pessoalmente um desconhecido percebeu logo a natureza do desencontro e voltouse naturalmente deixandome sem jeito e um tanto triste Muitas vezes penso ainda hoje em como é significativo que o tropicalismo tenha me custado entre outras coisas o diálogo com Clarice PANIS ET CIRCENSIS Além de Mahalia Jackson e de Jorge Ben nós continuávamos ouvindo os Beatles e passamos a ouvir Mothers of Invention um favorito de Agrippino e James Brown e John Lee Hooker e Pink Floyd e The Doors e O que fosse Mas não tínhamos deixado de ouvir e reouvir João Gilberto e naturalmente ouvíamos tudo o que saía dos nossos colegas brasileiros os mais próximos e os menos próximos Muitos dos que eram íntimos tinham se afastado por causa da revolta que lhes inspirava o tropicalismo Mas como a maioria morava no Rio de Janeiro quase não dava para perceber Ouvíamos histórias mas não nos preocupávamos demasiadamente Tínhamos certeza de que ninguém sairia diminuído desse episódio E que com o tempo todos perceberiam vantagens gerais advindas do nosso gesto Tínhamos comprado também uma vitrola antiga de dar corda e uma espetacular coleção de discos em 78 rotações com um repertório predominantemente brasileiro Talvez mais do que o estéreo do quarto do som esse gramofone era usado com volúpia de curiosidade e prazer estético Foi assim que entrei em contato com as gravações de Orlando Silva dos anos 30 que tinham sido a base da formação de João Gilberto e constituíam sua mais entusiasmada admiração musical Bethânia e eu desde Salvador gostávamos imensamente do LP Carinhoso que Orlando lançara nos anos 50 com regravações de seus antigos sucessos Mas pouco conhecíamos das famosas gravações da primeira fase em comparação às quais para nossa inicial incredulidade uma unanimidade de opiniões considerava sem valor nenhum o disco que conhecíamos Nunca aceitei a desvalorização excessiva do LP dos anos 50 mas realmente foi um acontecimento em minha vida ouvir com cuidado a celestial suavidade do jovem Orlando seu fraseado inventivo e sua milagrosa naturalidade musical A ligação subterrânea com o estilo de João Gilberto se fez mais perceptível Orlando Silva a quem João Gilberto chama de o maior cantor do mundo conhecera um tipo de popularidade no Brasil dos anos 30 sem paralelo em nenhum outro país Sem se tornar um emblema nacional como acontecera com Gardel na Argentina sem sequer carregar nas costas um estilo característico como era o tango o samba que tinha se tornado o ritmo brasileiro por excelência já tinha seus expoentes e de todo modo nunca chegou a monopolizar a brasilidade tanto quanto o tango monopolizava a argentinidade Orlando teve o tipo de sucesso propriamente pop que Frank Sinatra veio a ter algum tempo depois com as moças desmaiando à sua aparição ou tentando tirar lhe um pedaço do paletó em apresentações de auditórios de rádio e por vezes ao ar livre onde chegavam a se concentrar 60 mil pessoas para vêlo Um mulato claro desses que no Brasil nem são chamados de mulatos muito magro Orlando não era um galã Tinha no máximo um ar misterioso nos olhos puxados e uma intensa virilidade natural no núcleo de sua delicadeza de maneiras O que fazia dele um personagem irresistível era o seu canto De origem muito humilde carioca da Zona Norte tinha sido até trocador de bonde fora descoberto para o sucesso casualmente por causa do seu talento evidentíssimo Dono de uma voz bela e poderosa ele não impunha exibicionisticamente sua potência vocal antes amaciando a emissão nos agudos o que combinado com seu senso do fraseado suas divisões rítmicas inventivas e a clareza da dicção fazia dele um músico da canção A suavidade das notas alongadas nunca chegava ao meiofalsete demasiado doce dos tenores populares americanos aflautados dos anos 30 ele era másculo e sóbrio o bastante para evitar esses derramamentos sua sensibilidade era já naturalmente muito moderna e ele criou de fato um estilo original único Era um excelente cantor de sambas suas jogadas rítmicas e variações cheias de balanço faziam a melodia flutuar e ele nunca repetia a mesma divisão quando voltava à primeira parte mas era nas canções lentas nos sambas canções e nas valsas de seresta que a fluência de sua música se manifestava mais encantadoramente O fato de João Gilberto ter partido dele e não de Bing Crosby ou Sinatra como fizeram Lúcio Alves e Dick Farney para criar uma maneira de cantar e tocar samba e de o ter feito algo à maneira dos instrumentistas e cantores do cool jazz mas ao contrário de seu predecessor Johnny Alf e de seus sucessores do Beco das Garrafas sem fazer jazz e de ter sempre creditado a ele a inspiração profunda da invenção da bossa nova João nesses quarenta anos deu raríssimas e breves entrevistas mas em quase todas se referiu a Orlando Silva aliado à circunstância de Orlando ter sido ao mesmo tempo um fenômeno de massas e um artista do maior refinamento fazia dele um ponto central de reflexão para quem queria enfrentar a questão da arte de massas e manterse à altura da bossa nova Não que Orlando tivesse sido o maior sucesso popular pelo período mais longo na história da música brasileira este posto foi de Francisco Alves o Rei da Voz seu contemporâneo e um dos seus descobridores homem de vozeirão talento e carisma mas de fraseado quadrado e sentimento forçado se comparado a Orlando esse posto hoje pertence como em 68 já pertencia a Roberto Carlos um cantor de iê iêiê a quem também chamamos de Rei mas cujo estilo está mais próximo de JoãoOrlando do que de Francisco Alves tampouco fixou se um prestigio de Orlando Silva como artista intelectualmente superior Silvio Caldas também seu contemporâneo vivo e ativo ainda hoje maio de 95 com sua pele mulata seu repertório perfeito sua voz forte exalando inteligência e sobretudo seu despojamento de quem sabe que faz boa música e faz história e portanto não precisa ser ou parecer uma estrela manteve por várias décadas uma respeitabilidade e foi olhado com uma reverência que Orlando pareceu deixar de merecer desde que nos anos 40 sucumbiu ao uso de drogas pesadas como não aconteceu com nenhum outro cantor brasileiro antes dos anos 70 Mas não apenas João Gilberto rendelhe uma perpétua homenagem a qualidade do seu canto mostra de novo sua força agora quando de todos os discos dos selos independentes Revivendo e Collectors que vêm lançando em CD coletâneas de grandes nomes do passado em versões remasterizadas os seus são recorde de vendas Eu próprio sugeriria a qualquer amante da música popular brasileira em qualquer parte do mundo que procurasse ouvir esses CDS com as gravações de Orlando Silva nos anos 30 para entender melhor e tirar maior prazer d o mistério do som de nevoeiro da língua portuguesa sobre a paisagem rítmica afroameríndia Assim como é preciso para os brasileiros ouvir as raríssimas gravações de João feitas para um 78 rotações em 52 em que ele canta de maneira assombrosamente bonita ainda imerso no estilo de Orlando mas já reconhecivelmente João Gilberto pois é o Orlando Silva de João Gilberto o Orlando Silva que a bossa nova nos manda ouvir no velho Orlando no sentido que Jorge Luis Borges dá à idéia de inventar uma tradição e influenciar seus precursores o Orlando que se ouve nessa primeira voz de João Sem dúvida a modernidade de Orlando está submetida às conquistas estilísticas de Bing Crosby Não que haja verdadeiras semelhanças individuais e Orlando se descrevia a si mesmo como um mediador entre a grande voz de Francisco Alves e a interpretação de Sílvio Caldas Ele criara um estilo moderno brasileiro de canto com todas as firulas do choro a ginga dos capoeiras e o sentimento latino mas a própria renovação tecnológica o microfone elétrico que propiciara o surgimento de Crosby e de Charles Trenet se deu primeiro nos Estados Unidos E Orlando homem de pouquíssimas letras tendo pegado a possibilidade no ar desenvolveu uma técnica que nada devia à do cantor americano Nos anos 40 Dick Farney e Lúcio Alves homens muito mais ricos e mais cultos do que Orlando adaptaram conscientemente procedimentos de Bing Crosby e a essa altura de Sinatra à canção brasileira Mas há mais Bing Crosby em Orlando Silva que possivelmente ouviu o cantor americano mas na certa muito pouco e sem poder tomar intimidade com seu trabalho do que nesses importadores ostensivos Ou seja há mais saber cantar moderno mais naturalidade mais sutileza mais balanço mais urbanidade mais entendimento do microfone e do mundo que o produziu Mas ele não é em nenhuma medida um epígono de Bing Crosby e sua compreensão da modernidade instaura uma liberdade inventiva que transcende todas as questões de dependência cultural Foi essa chama viva que o gênio de João retomou e é no sentido profundo desse gesto que se deve entender o acontecimento da bossa nova e suas relações com a antropofagia Depois que Orlando Silva desabou sob a morfina e o álcool ficou muitos anos sem ser visto e sem cantar Sua volta nos anos 50 embora ele tivesse ocupado o horário nobre do meiodia na Rádio Nacional em substituição a Francisco Alves que morrera num acidente de automóvel na estrada RioSão Paulo aparentemente só serviu para alimentar o mito de que ele tinha perdido a voz Na verdade poucos envelheceram com a capacidade de cantar bem tão bem preservada quanto a dele mas a lembrança da sonoridade milagrosa de sua voz jovem fazia com que qualquer coisa aquém da perfeição soasse como um desastre Sua voz tornarase muito mais grave os agudos suavíssimos se foram mas é significativo que embora ele cantasse melhor do que todos os seus contemporâneos ainda na ativa em nenhum destes últimos se deplorava nenhuma decadência Em 68 quando o ouvíamos no gramofone do apartamento de São Paulo ele ainda estava vivo e num daqueles festivais da TV Record nós o vimos dividir por alguns segundos o palco com Roberto Carlos tendo um deles se seguido imediatamente ao outro na apresentação das canções A presença de ambos era especial na ocasião pois nem um nem outro pertencia ao ambiente da moderna música popular brasileira àquilo que se estava começando a chamar de MPB Orlando da velhaguarda Roberto da Jovem Guarda Era uma visão muito emocionante para um tropicalista Quem mais competia em constância com Orlando Silva no prato dessa vitrolinha era Carmen Miranda Ela própria um emblema tropicalista um signo sobrecarregado de afetos contraditórios que eu brandira na letra de Tropicália a cançãomanifesto Carmen Miranda surgia nesses discos como uma reinventora do samba Cheia de frescor e impressionantemente destra ela sem ser sempre cuidadosa ou capaz na definição das notas era um espanto de clareza de intenções A dicção rápida e a comicidade alegre no trato com o ritmo faziam dela uma mestra para além da própria significação histórica O fato de ela ter se tornado com o sucesso em Hollywood uma figura caricata de que a gente crescera sentindo um pouco de vergonha fazia da mera menção de seu nome uma bomba de que os guerrilheiros tropicalistas fatalmente lançariam mão Mas o lançarse tal bomba significava igualmente a decretação da morte dessa vergonha pela aceitação desafiadora tanto da cultura de massas americana portanto da Hollywood onde Carmen brilhara quanto da imagem estereotipada de um Brasil sexualmente exposto hipercolorido e frutal que era a versão que Carmen levava ao extremo aceitação que se dava por termos descoberto que tanto a mass culture quanto esse estereótipo eram ou podiam ser reveladores de verdades mais abrangentes sobre cultura e sobre Brasil do que aquelas a que estivéramos até então limitados A fotografia de Carmen de sexo literalmente à mostra sorrindo nos braços de César Romero que vim a ver publicada nos anos 70 na revista Interview parecia a subversiva confirmação do aspecto profundo tanto da caricatura que ela se tornara quanto da cultura que a divulgou Claro que a essa altura depois de ter sido uma das mulheres melhor pagas do mundo do show business americano e passados mais de dez anos de seu enterro apoteótico no Rio Carmen era mais uma ausência do que uma referência nas conversas sobre música popular no Brasil pósbossa nova Embora não se possa dizer que ela estivesse esquecida pois seus filmes eram às vezes revistos e ela exercia sobre alguns brasileiros o mesmo fascínio que vinha exercendo sobre tantos estrangeiros de Wittgenstein a Ken Russell com sua imagem camp não era como um estilo musical vivo que sua obra ou sua persona vinham à lembrança O aspecto travesti da sua imagem sem dúvida também importava muito para o tropicalismo uma vez que tanto o submundo urbano noturno quanto as trocas clandestinas de sexo por um lado e por outro tanto a homossexualidade enquanto dimensão existencial quanto a bissexualidade na forma de mito do andrógino eram temas tropicalistas não fosse este um movimento típico da segunda metade dos anos 60 Mas a Carmen Miranda que surgia desses 78 rotações excitava nossa imaginação e suscitava nossa admiração num nível que se situa além dessas temáticas todas e as atravessa o da formação da música popular brasileira como uma tradição rica e esteticamente potente Sua gravação de Adeus batucada uma obraprima da história do samba e do disco no Brasil tornouse o tema do 2002 Uma gravação que já não sei se ouvíamos no gramofone ou no estéreo pois havia alguns LPS de antiguidades brasileiras e não brasileiras no quarto do som mas que rivalizava com as melhores de Carmen era Camisa amarela de Ary Barroso com Aracy de Almeida Aracy uma lenda então bem viva era uma mulher explosiva e de jeito malandro de quem se dizia ter sido a intérprete favorita de Noel Rosa o genial compositor de sambas carioca dos anos 30 que morrera aos 26 anos deixando uma obra vasta e extraordinariamente complexa De todo modo Aracy tinha sido o veículo para o renascimento de seu prestigio nos anos 50 quando Noel passou a ser considerado o maior compositor popular brasileiro de todos os tempos Mas muitas interpretações do maravilhoso Sílvio Caldas de Francisco Alves de Carlos Galhardo de Augusto Calheiros e tantos outros coabitaram conosco na esquina da Ipiranga com a São Luís durante todo o ano que passamos vivendo ali Entre as novidades do pop angloamericano que nos eram apresentadas lembro do pintor Antônio Peticov então um garoto me mostrando uma seleção do que ele supunha interessante nessa área dois nomes dois estilos mais do que marcaram o que viemos a produzir depois ficaram para sempre vinculados na lembrança à atmosfera do 2002 Jimi Hendrix e Janis Joplin Gil sobretudo estava apaixonado por Hendrix Na verdade ele só tinha se mostrado apaixonado assim antes por Jorge Ben e pelos Beatles e depois por mais ninguém Eu me impressionava com a modernidade de Hendrix e disse isso a Augusto na entrevista para o Balanço da bossa seu canto falado sempre meio escondido atrás dos sons dos instrumentos sua guitarra meio blues meio Stockhausen sua figura marginal tudo fazia dele um emblema da época tudo levava a pensar que nele os temas fundamentais se radicalizavam Mas havia para meu gosto muita confusão em seu som muito prato de bateria muito jazz Por um lado eu não conseguia gostar mais daquilo do que gostava dos Beatles e por outro sentiame atraído por James Brown e seus gritos limpidamente rasgados sobre o suingue enxuto de sua banda Jimi Hendrix comparado com ele parecia algo importante e sério embora ingênuo Mas a música de puro entretenimento de Brown além de me ser mais facilmente agradável era representativa de uma tradição americana de precisão que me interessa grandemente Os estilos criados por negros nesse ambiente de culto da nitidez são absolutamente maravilhosos havia em James Brown um encanto que reencontro em Stevie Wonder Prince e Michael Jackson Janis Joplin era a branca negra a garota da nossa geração que sintetizava os Estados Unidos da liberdade da aventura e da rebeldia Os Estados Unidos da América fatalmente mestiça fatalmente comprometida em todas as suas prospecções com os nãobrancos que a colonização dizimou ou escravizou Ela era também um exemplo entusiasmante de como uma sociedade abundante como a norte americana com seu altíssimo grau de competitividade pode produzir artistas em que a aspereza do inculto é atingida com cultivadíssima precisão Passamos a assistir ao espetáculo das lâmpadas coloridas em volta da boneca de fibra de vidro segundo os sons da gravação de Summertime na voz de Janis A inconsistência musical do Big Brother and the Holding Company mais realçava do que atrapalhava a beleza do canto dessa menina que surgia como uma figura nuclear no novo mundo dos universitários californianos dos radicalismos dos panteras negras da oposição à guerra do Vietnã e do show business recém transtornado pelo neorocknroll Bob Dylan não era um fenômeno comercial como os Beatles mas de certa forma era mais conhecido do que os Rolling Stones no Brasil quando essas novidades nos foram apresentadas Os Stones podiam ter tido Satisfaction nas paradas mas Dylan já tinha admiradores seletos havia muito mais tempo Lembro mesmo de ouvir um lado inteiro de um LP seu com Toquinho em sua casa na época em que saíamos ele Chico e eu por São Paulo antes de eu me mudar para lá Toquinho queria minha opinião pois lhe parecia demasiadamente enfadonho um disco segundo lembro de ouvilo frisar com todas as músicas cantadas e tocadas no mesmo tom Achei curiosa a voz fanha e o jeito sujo de tocar violão e gaita Não entendia nada das letras e terminei por me aborrecer também Agora o tropicalismo estabelecido eu ouvia e reouvia maravilhado Bringing it all back borne que Peticov me recomendara Até hoje esse é o disco de Dylan que mais me emociona Eu continuava a não entender quase nada das letras mas a atmosfera a emissão vocal o bem captado desleixo o timbre geral de seu trabalho me enriqueciam com sugestões inqualificáveis O que mais me ficava era a impressão de riqueza de textura de sofisticação alcançada sem o esforço de elaboração dos Beatles Lembro de muitas vezes ter entendido erradamente o texto das canções e sabendo que ele não estava dizendo o que eu supunha ouvir ter chegado a frases e idéias que me soavam maravilhosas algumas das quais eu talvez tenha usado como sugestão para letras de minhas próprias canções Mas não se pode dizer que eu preferisse Dylan aos Beatles Eu sabia de sua respeitabilidade e seu som sugeria uma mente mais culta do que a dos melhores roqueiros ingleses mas comparados à verbosidade de suas canções caudalosas e à retórica que se adivinhava do que era inteligível nas letras meu inglês era meramente ginasial os Beatles pareciam muito mais construtivos e enxutos Por outro lado o experimentalismo ostensivo de Sargent Peppers Lonely Hearts Club Band estava mais próximo não só do que fazíamos como dos grandes artistas que eu admirava fossem eles Godard Oswald Augusto de Campos João Cabral Joyce Lewis Carroll ou e e cummings Embora os Beatles fossem obviamente mais ingênuos Dylan parecia atrelado a uma concepção romântica do poeta sem as incursões explícitas pela metalinguagem pelo atonalismo e pelo concretismo que os Beatles apresentavam Além disso nunca me senti atraído pelo ambiente country americano do qual ele tanto se aproximou Até hoje no entanto a densidade de Dylan me interessa e sua personalidade artística me apaixona Observo que o ouço hoje mais do que ouço os Beatles e para maior proveito Recentemente vi por acaso um número do seu Acústico MIV era With God on our side e fiquei fundamente comovido Ele é uma figura a um tempo central e à parte no panorama dos anos 60 e um traço forte do século Um dos mais impressionantes exemplos da pujança criativa da cultura popular americana da cultura americana tout court No momento em que os ingleses dominavam o jogo com sua versão do rocknroll do lado de lá do Atlântico do lado de cá Dylan já apresentava o espessamento desse caldo em que Beatles e Rolling Stones beberam mostrando onde está a nascente e de onde jorra a energia E a gente sabe que Hendrix deve a ele tudo o que não deve aos grupos ingleses embora deva tudo ao público inglês Em linhas gerais essas eram as relações que mantínhamos no meio do período tropicalista com as produções daquilo que era nosso pão e nosso circo a música popular Suponho que fui eu a decidir que devíamos fazer um discomanifesto um disco coletivo que explicitasse o caráter de movimento do nosso trabalho De todo modo uma vez lançada a idéia assumi logo a liderança Conversei com Gil com Torquato com Gal com Bethânia com Duprat Gil vinha de sua experiência com Duprat e os Mutantes na feitura de seu primeiro LP tropicalista Era um disco com muito mais unidade do que o meu e como era de se esperar com maior domínio musical por parte do intérprete e autor das canções Mas o meu tinha sido mais marcante conceitualmente Talvez apenas porque tivesse saído antes Talvez porque para compensar minhas carências propriamente musicais eu tenha mesmo tido sempre que ser mais conceitual Eu amava o disco de Gil por sua concentração e seu pulso Ele chegara a uma riqueza de sonoridades altamente sugestiva pela combinação madura de elementos tradicionalmente brasileiros com a música eletrificada Eu adorava Luzia Luluza uma canção com uma letra remotamente beatlesesca por ter como tema o cotidiano de uma pessoa comum uma bilheteira de cinema mas construída como uma trilha sonora de filme americano terminando no Carnaval Gil aparecia na capa do disco projetada como a do meu por Rogério Duarte aqui com a colaboração do pintor Antônio Dias trajando um fardão da Academia Brasileira de Letras o que frisava a irreverência da atitude Eu acreditava e não creio que estivesse errado que a feitura do disco coletivo seria uma excelente oportunidade de somar as forças dos componentes do grupo para atingir resultados mais precisos Sobretudo eu esperava poder assim fazer da perícia musical de Gil de Duprat e dos Mutantes um veículo para minhas idéias Queria pegar carona tirar uma lasquinha eu invejava o nível de resolução do disco de Gil Embora não o considerasse satisfatório se comparado ao dos discos de por um lado Jorge Ben e por outro ao dos de Roberto Carlos reconheciao muito superior ao do meu Bethânia tinha me encomendado uma canção para a qual ela já tinha o título e grande parte da idéia da letra Baby ela queria que a canção se chamasse E fazia questão de que nela fosse feita referência a uma Tshirt em que se podia ler em inglês a frase I love you Ela dizia mesmo que a canção tinha que terminar dizendo Leia na minha camisa baby I love you Era um modo de comentar com amor e humor a presença de expressões inglesas nas canções ouvidas e nas roupas usadas pelas pessoas comuns Tratandose de Bethânia tenho certeza de que havia também uma razão factual e muito pessoal para tão precisas especificações Fiz a música procurando recriar a cultura de cançonetas e camisetas e ao mesmo tempo o clima pessoal de Bethânia Julguei o resultado perfeitamente representativo da estética e dada a contribuição de Bethânia da história tropicalista e combinei com ela que a canção entraria no disco coletivo em sua voz Por sua vez Nara Leão cujas conversas conosco revelavam sua total independência em relação aos preconceitos antiTropicália exibidos por seus excompanheiros de bossaprotesto e pela platéia de Pra Ver a Banda Passar o programa que ela comandava ao lado de Chico Buarque na TV Record encomendounos a mim e a Gil uma música que tivesse como tema ou inspiração um quadro do pintor Rubens Gerchman chamado Lindonéia o qual representava em traços distorcidos com dolorosa pureza o que parecia ser a ampliação de um retrato trêsporquatro de uma moça pobre que dizia o textotítulo fora dada por perdida emoldurada à maneira kitsch dos retratos de sala de visitas suburbanas por vidro espelhado com decoração floral Gil fez a música um bolero entrecortado de iêiêiê e eu fiz a letra da canção que manteve o nome Lindonéia e a história da suburbana desaparecida O quadro de Gerchman por ser uma espécie de crônica melancólica da solidão anônima feita em tom pop e metalingüístico tinha parentesco direto com o tropicalismo musical e a canção nós supúnhamos realimentaria sua carga poética O quadro não fora o resultado de uma influência do tropicalismo sobre o pintor este havia chegado ali resolvendo seus próprios problemas dialogando com a arte pop Nós tampouco conhecíamos o quadro antes de Nara nos chamar a atenção para ele Na verdade o fato de eu ter pintado na infância e na adolescência terminou por afastarme das artes plásticas com um misto de desencanto e timidez a Tropicália é que me estava libertando para o convívio tateante com essa área da atividade artística o interesse tendo ressuscitado entusiasticamente com a Bienal de São Paulo de 67 onde tomei contato com os artistas pop americanos e com Edward Hopper que deram um sentido mais preciso às minhas caminhadas por supermercados e às conversas de Rogério e de Zé Agrippino Claro que Tropicália o nome tinha vindo de Hélio Oiticica com quem a essa altura já tínhamos contato pessoal e conhecíamos Antônio Dias que já fizera a capa de Panamérica de Agrippino e colaborara com Rogério na feitura da capa do disco de Gil Rogério com quem eu sempre estava era profissional de artes gráficas e ensinava na Escola de Desenho Industrial tema sobre o qual escrevera um artigo importante na Revista Civilização Brasileira tendo portanto contato permanente com toda a gente da área de artes visuais Mas se as conversas sobre literatura ou filosofia cinema ou política genérica me soavam vivas as referências a obras específicas ou aspectos técnicos das artes plásticas eram praticamente ignoradas por minha mente que quanto a isso não se incomodava em ser ignorante No auge do tropicalismo nossas relações com os pintores foram fragmentárias e dispersas Nosso intenso diálogo com Hélio Oiticica teve a principio as características generalistas das conversas de Rogério pouco ou nada significando uma verdadeira assimilação por nossa parte das questões específicas da arte que ele elegera e o que é mais significativo só nos anos 70 é que Hélio veio a fazer uma capa de disco para um de nós Gal Costa Assim a sugestão de Nara forçou uma espécie de parceria interdisciplinar curiosa sem precedente no tropicalismo A idéia de incluir Nara no disco coletivo me pareceu certa não só porque ela havia feito essa ponte entre nós e a pintura de Gerchman mas também por significar uma espécie de realização do sonho inicial de Gil de que o movimento fosse de toda a geração de músicos Nara representava a bossa nova em sua origem e liderara a virada para a música participante era portanto a música brasileira moderna em pessoa Numa de minhas idas à Bahia eu não passava mais de dois meses sem ir a Salvador convidei Tom Zé para ir para São Paulo comigo Tom Zé tinha sido nosso companheiro dos shows do Teatro Vila Velha Quando comecei a freqüentar os meios artísticos e boêmios de Salvador ele já era uma figura conhecida dos estudantes universitários Assim como Capinan com quem de resto ele tinha colaborado em alguma peça do braço baiano do CPC da UNE Tom Zé tinha prestígio entre os artistas que eu conhecia as pintoras Sônia Castro e Lena Coelho a dançarina Laís Salgado os professores Paulo e Rena Faria todos me falavam dele Quando afinal nos conhecemos ele me cativou pelo seu ar de sertanejo por suas observações pseudomal humoradas expressas num sotaque rural que mais realçava do que escondia a elegância clássica de seu português culto e correto Seu físico de duende mameluco de personagem de lenda cabocla confirmava sua condição de pessoa especial Tom Zé tem uns olhos muito vivos como que a provar que uma intensíssima concentração de energia é a razão de ele ser tão miúdo Essas indicações de excepcionalidade eram em parte confirmadas por suas canções satíricas feitas em tom deliberadamente folclórico Consistindo em longas crônicas da vida urbana de Salvador e em retratos de personagens típicos ou de exceção essas composições de sua primeira fase mostravamse a um tempo atraentes e insatisfatórias aparentemente pela mesma razão de não estarem em sintonia com os interesses estéticos da bossa nova Sua inteligência e originalidade pessoal asseguravam que sua produção não fosse simplesmente antiquada E ele diferentemente de mim e de Gil estava estudando nos Seminários Livres de Música que é como o reitor Edgar Santos e o professor e maestro Koellreutter decidiram chamar a escola de música da Universidade da Bahia Essa escola como todas as escolas de arte fundadas por aquele reitor trouxera para Salvador as informações da vanguarda internacional o que como já contei nos modelou a todos os membros da geração Tom Zé como Djalma Correia e Alcivando Luz decidira ter contato direto com o currículo enquanto Bethânia e eu éramos apenas habitués dos concertos semanais no salão nobre da reitoria e Gil e Gal nem isso Com a virada tropicalista achei que a sofisticação antibossanovística de Tom Zé a ligação direta que ele insinuava entre o rural e o experimental encontraria lugar no mundo que descortinávamos Um músico superdotado harmonicamente como Alcivando Luz também um admirável companheiro do Vila Velha não saberia se mover nesse novo ambiente Diversas vezes pensei nesses últimos anos que se me fosse dado o talento e o temperamento para fazer algo como o que fizeram nos anos 70 Milton Nascimento e seus companheiros do Clube da Esquina e não o escândalo tropicalista eu teria convidado Alcivando em vez de Tom Zé para ir para São Paulo Na Tropicália Tom Zé mostrouse de fato em casa Inicialmente no entanto ele resistiu muito ao convite Lembro de uma conversa nossa perto do Cine Guarany atual Glauber Rocha na praça Castro Alves em que ele me dizia que a idéia era uma loucura Eu e seu desejo profundo de assumir seu destino de músico o convencemos A simples viagem de avião com Tom Zé de Salvador para São Paulo já deu o tom do que seria sua atuação O Caravelle da Cruzeiro do Sul aeronave cuja modernidade de linhas me encantava como um samba de Jobim ou um prédio de Niemeyer voando em céu azul parecia que ia explodir com a vibração da presença de Tom Zé E isso chegou a exteriorizarse até o conhecimento da aeromoça e quem sabe de outros passageiros Não que ele se mostrasse nervoso por estar voando embora sua ostentação de estranheza em relação a tudo o que se passava no avião indicasse talvez enganosamente que ele nunca tinha voado mas seu sotaque e suas expressões arcaicas pareciam agredir a realidade tecnológica da aviação e o conforto burguês dos serviços de consumo ele estava me dizendo e dizendo a si mesmo e ao mundo que ia sim para São Paulo mas que permaneceria irredutível quanto a certos princípios e certos traços de caráter Ele lidava de modo inventivo e bizarramente elegante com o medo da mudança de situação Referiase ao avião em que estávamos como essa caravela indicando intimidade e estranheza ao mesmo tempo e por trás dessa ironia comentando o sentido de partida para outro continente que essa viagem tinha para ele Quando a aeromoça se aproximou para perguntar o que queríamos beber ele respondeu cortantemente Cachaça Havia humor na obviedade de seu conhecimento de que não deviam servir cachaça a bordo Mas a sinceridade de seu ar desafiador embora não impolido levava a pensar em como era ridícula a pretensão de refinamento da freguesia desses serviços não havia por exemplo uma só aeromoça preta em qualquer companhia de aviação brasileira tornados amorfamente internacionais e em como Tom Zé estava disposto a não contemporizar com isso A esperada resposta da aeromoça Desculpe não temos ele começou a desapertar o cinto de segurança e fazendo menção de levantarse disse dirigindose a mim não a ela Então eu voume embora Mande parar essa caravela A verdade com que essas palavras foram ditas assustounos a mim e à moça pois embora soubéssemos impossível obedecer a tão absurda ordem sentíamos na determinação com que esta fora dada que ela se imporia de alguma maneira Claro que Tom Zé não criou um caso dentro do avião mas tampouco desconcertouse ou deixou seu movimento se retrair ele que parecera por um instante que ia sair dali custasse o que custasse agora desistia educadamente irritado como quem achasse inútil o gesto mantendo total independência até o fim Tudo isso sem que se perdesse o humor distanciado de quem diz ao mesmo tempo que tudo é uma brincadeira e de quem sabe que tem charme O disco coletivo era o veículo natural para as canções que Tom Zé tivesse trazido da Bahia ou viesse a compor em São Paulo Eu tinha feito e dado para Gil musicar uma letra a que pus o nome de Panis et circensis Pensei em usar isso como subtítulo do disco que se chamaria assumindo o titulo usurpado pela canção à obra de Oiticica como nome geral do movimento mas naturalmente rejeitando o ismo Tropicália Não fui verificar àquela altura nem saberia onde se a expressão panis et circensis estava na forma latina correta Eu tinha uma vaga lembrança de uma conversa com Wanderlino Nogueira Neto que foi quem no curso clássico me ensinou a famosa expressão em que julguei ter aprendido que se tratava de dois substantivos no genitivo com função partitiva como no francês du pain et du cirque Tenho uma memória vívida desse solilóquio silencioso no 2002 e muitas vezes me envergonhei mais com essa lembrança do que com a constatação do erro em si Na verdade a forma em que a expressão se fez famosa é panis et circenses esta última palavra sendo um adjetivo que no plural substantivase no significado de coisas de circo Afinal em meio à iconoclastia tropicalista a reverência às letras clássicas era a última das exigências a ocorrer a alguém Mas o reconhecimento íntimo de que a intenção seria a de sobrepor à colagem pop de uma letra de música banal e agora de um disco de canções pop uma citação latina ademais muitíssimo conhecida cuja correção deveria contribuir para o efeito de contraste empresta uma dimensão de atroz ridículo ao momento de reflexão devotado à questão Havia no entanto orgulho nesse desleixo Sempre cri numa espécie de organicidade da assimilação de informações e faço questão de tratar com naturalidade a acumulação de cultura retendo dos livros das aulas das canções somente o que me for congenial e transmitindo somente o que já estiver por mim incorporado Uma vez disse a Maria Esther Stockler a propósito das referências presentes no filme que dirigi já nos anos 80 O cinema falado Só tem ali o que sai na urina Lembro de Duda em 65 em Salvador me contando uma entrevista de Godard em que este dizia que ao terminar de ler um livro jogavao pela janela Eu me identificava com essa exibição de desprendimento intelectual Quando menino ouvi louvarem muito os maus alunos inteligentes e ridicularizarem os cusdeferro Hoje embora eu mesmo não possa mais mudar substancialmente quanto a isso valorizo os adolescentes estudiosos e os espíritos metódicos e tento na feitura deste livro por exemplo assegurar um mínimo de precisão para além da atingida espontaneamente Tropicália ou Panis et circensis o mau latim que Décio Pignatari nos anos 70 já chamava de delicioso provincianismo de vanguarda agora soa cheio de charme histórico nosso discomanifesto saiu em 68 contando com a participação de Nara e Tom Zé além é claro do gruponúcleo formado por Gil Gal Mutantes Duprat e eu mas sem a presença de Bethânia que por rejeitar intimamente a confusão de sua pessoa com grupos ou movimentos deixou a canção Baby que ela própria encomendara para ser gravada por Gal o que resultou no primeiro grande sucesso desta Um sucesso aliás merecidíssimo pois a faixa revelouse por causa da voz de Gal e do arranjo de Duprat uma obraprima do tropicalismo se não há uma contradição absoluta entre esses termos e uma verdadeira realização dos sonhos de Guilherme e dos meus planos com Rogério em relação a Gal Minha alegria ao ouvir no estúdio a adequação do estilo de Gal à canção sendo a um tempo bossa nova e rocknroll mas sendo algo diferente disso e sobretudo a graça e a inteligência do arranjo de Duprat levou a um incidente profundamente desagradável Nós saímos do estúdio para o Patachou o restaurante com nome de cantora que freqüentávamos na rua Augusta para jantar em clima comemorativo Geraldo Vandré que estava em outra mesa veio até a nossa e ao perceber nosso entusiasmo pela gravação pediu que Gal lhe cantasse a canção recémgravada Quando tinha ouvido o suficiente para ter uma idéia do que era ele a interrompeu bruscamente batendo na mesa e dizendo Isso é uma merda Gal calouse assustada e eu indignado disse a ele que saísse dali Ele ainda quis argumentar dizendo que nós estávamos traindo a cultura nacional mas não permiti que ele concluísse o discurso e gritando exigi que nos deixasse ressaltando que ele ao menos deveria ter sido cortês com Gal cujo canto suave ele interrompera de forma tão grosseira Isso inaugurou uma inimizade pessoal que traduzia nossa divergência ideológica mas não houve nenhuma outra discussão agressiva nem a desavença ganhou publicidade Nós sabíamos da rejeição que nossas idéias e ações encontravam por parte da esquerda nacionalista Vandré estava apenas externando francamente o que muitos sentiam a nosso respeito Mas isso foi possível no seu caso não apenas por uma natural combatividade apaixonada que o enobrece Um aspecto tristemente mesquinho de sua personalidade contribuía igualmente para tais explosões Tendo assumido o papel do cantor de protesto por excelência depois de fazer conhecidas algumas belas canções de amor em parceria com o grande Carlos Lyra sobretudo agora que sua brilhantemente escrita sobre música de Théo de Barros Disparada tornarase um marco na história dos festivais Vandré desejava tornarse a bola da vez com uma contrafação da música participante de língua espanhola principalmente a chilena O que nos parecia um atraso se se levasse em conta a originalidade da canção de protesto brasileira tal como a iniciara antes da onda internacional e com características totalmente diferentes o próprio Vinicius de Moraes e como a desenvolveram Nara e Lyra Nós de nossa parte queríamos entre outras coisas acabar com o hábito de se ter uma bola a cada vez apostando numa pluralidade de estilos concorrendo nas mentes e nas caixas registradoras Uma das marcas da Tropicália e talvez seu único sucesso histórico indubitável foi justamente a ampliação do mercado pela prática da convivência na diversidade alcançada com o desmantelamento da ordem dos nichos e com o desrespeito às demarcações de faixas de classe e de graus de educação Essa saudável destruição de hierarquias está na origem do que alguns críticos chatos chamam de complacência cínica pós60 Ela explica também a generosidade exagerada que nos anos 70 Augusto de Campos de um lado e Glauber de outro achavam tão difícil aceitar em mim um e outro enfatizando aspectos diferentes exerciam alguma pressão para que eu fosse menos receptivo e mais discriminatório Glauber chegava a ser demasiado cruel em seus comentários sobre colegas meus coisa que Augusto nunca foi Mas não só esses dois vários outros amigos demonstravam impaciência semelhante O próprio João Gilberto quando passamos a nos falar estranhava minha tolerância No entanto foi o grande esforço de superação da visão estreita de mercado que dominava a produção e o consumo de música no Brasil que me levou não a ser tolerante mas a me tornar sensível a virtudes de naturezas as mais diversas Mais tarde me vi desaprovando Gil por achar que ele tinha deixado isso leválo a considerar de múltiplos pontos de vista qualquer questão que fosse a ponto de anular a possibilidade de definir uma posição Embora paradoxalmente Gil tenha sido sempre mais seletivo em relação ao que ouvir ao que aprender e do que gostar No nascedouro desses problemas Vandré tentava estancar a correnteza que era afinal uma exigência da força da MPB propondo a Guilherme nosso empresário que nos dissuadisse de entrar no páreo alegava que o Brasil necessitava daquilo que ele Vandré estava fazendo ou seja canções conscientizadoras das massas e que como o mercado não comportava mais de um nome forte de cada vez nós todos deveríamos para o bem do país e do povo jogar todas as cartas nele Essa estranha proposta de renúncia foi feita de fato a Guilherme por Vandré e muitas vezes eu me perguntei se não seria isso um esboço dos prestígios oficiais de que gozam em nome da história figurões insossos de países comunistas Livres do perigo vermelho desde que nossos inimigos militares tomaram o poder nós não víamos a mais remota probabilidade de realizarse esse desejo de Vandré E assim achávamos apenas maluco seu raciocínio e continuávamos admirando tudo o que nele era admirável Eu principalmente apesar de ver Chico Buarque muitíssimo acima de Vandré musical poética e eticamente tinha preferido de longe e o manifestava Disparada a A banda Gil se mostrou menos entusiasmado do que eu com os resultados das gravações do Tropicália ou Pan is et circensis Suponho que ele saindo de um disco em que experimentara tantas combinações sonoras com Duprat e os Mutantes desejasse seguir em frente em suas buscas e o disco coletivo o segurava em terreno já explorado Por outro lado como eu estivesse na liderança e ao contrário dele deslumbrado com o mero fato de trabalhar com essa turma eu não fazia as exigências de pureza técnica nas execuções e gravações que ele não tinha ânimo ou tinha pudor de cobrar de mim Assim quando o disco ficou pronto eu exultava de orgulho e Gil só fazia se queixar dos metais desafinados logo na música de abertura É preciso para entender essas minhas suposições que se saiba melhor quem é para mim Gilberto Gil Eu teria que me deter mais cedo ou mais tarde na apreciação dessa figura tão central nesta história e tão unida à minha que de certa forma constituímos juntos uma espécie de entidade e eis que descubro que é aqui o lugar de fazêlo Por volta de 62 63 vi na TV Itapoan a televisão só chegara a Salvador em 60 um rapaz preto que cantava e tocava violão como os melhores bossanovistas Sua musicalidade exuberante sua afinação seu ritmo e sua fluência me entusiasmaram Era excitante que pudesse haver por perto alguém tão especial A TV dava a ilusão de distância mas eu pensava com o coração batendo que dado o tamanho da cidade e sobretudo do grupo de pessoas da classe artística ou mesmo da classe média era provável que eu encontrasse em Salvador esse genial músico de sorriso alegre e sobrancelhas bem desenhadas Minha mãe que sempre gostou de música e sempre gostou que eu gostasse de música me ouviu elogiálo e toda vez que ele aparecia na televisão me chamava para vêlo Lembro com muito gosto o modo como ela se referia a ele pelo menos ela o fez uma vez e isso ficou marcado muito fundo dizendo Caetano venha ver o preto que você gosta Isso de dizer o preto sorrindo ternamente como ela o fazia ou fez tinha teve tem um sabor esquisito que intensificava o encanto da arte e da personalidade do moço no vídeo Era como se se somasse àquilo que eu via e ouvia uma outra graça ou como se a confirmação da realidade daquela pessoa dandose assim na forma de uma bênção intensificasse sua beleza Eu sentia alegria por Gil existir por ele ser preto por ele ser ele e por minha mãe saudar tudo isso de forma tão direta e tão transcendente Era evidentemente um grande acontecimento a aparição dessa pessoa eu via que se tratava de um músico de primeira linha desde já um grande entre os grandes e minha mãe festejava comigo a descoberta Falei sobre ele com todas as pessoas com quem eu encontrava na noite Quase ninguém assistia televisão eu próprio tivera a sorte de ver Gil porque a TV ficava ligada na sala de jantar durante as refeições Seguramente a turma da crítica de cinema Orlando Senna Geraldo Portela Carlos Alberto Silva nunca tinha ouvido falar de Beto O nome Gilberto Gil não é menos real do que Gal Costa Sua eufonia algo pop um tanto à Diana Dors Marilyn Monroe ou Brigitte Bardot sugeria um pseudônimo inventado numa agência de publicidade para um pretendente a substituto de João Gilberto na crista da onda da bossa nova Mas sendo a escolha inevitável a partir dos quatro nomes constantes de seus documentos Gilberto Passos Gil Moreira também revelavase delicadamente belo em outro plano mais nobre em que a sílaba gil um nome português com ecos arcaicamente literários por causa de Gil Vicente o grande autor teatral do medievo lusitano se repetia exata e limpidamente como que a prefigurar para mim o verso misterioso escrito no século XIX por Sousândrade e que eu só leria depois de 68 Gil engendra em Gil rouxinol Acho que Laís Salgado e a turma da Escola de Dança já o tinham visto uma ou outra vez Roberto Santana é que com certeza o conhecia pessoalmente Santana de uma família tradicionalmente de esquerda originária da cidade sertaneja de Irará era um sarará da minha idade machão e muito ativo amigo de todo o mundo em Salvador Ele prometeu que me apresentaria a Gil Você não conhece Beto Ele é muito bom nessa época não havia as gírias legal ou gente fina ou gente boa e se dizia que alguém era bom num tom de leve desvio semântico tanto para significar que esse alguém tinha boa posição política como para sugerir talento ou firmeza moral ele é bacana você vai adorar ele Fiquei intimidado com a possibilidade real do encontro que graça poderia ter eu para Beto E dadas minhas limitações musicais e meu desinteresse por futebol ou outros temas masculinos que assuntos em comum eu poderia ter com ele para sustentar uma conversa Temi um encontro combinado resultando em minutos de silêncio constrangedor Roberto Santana me apresentou a Gil num encontro casual na rua Chile eu ia sozinho no sentido praça Castro Alves praça da Sé e eles dois vinham ao meu encontro e nós todos nos sentimos inteiramente à vontade cada um querendo falar mais do que o outro Gil parecia tão feliz de me conhecer quanto eu a ele Dirseia que ele também vinha me vendo em algum vídeo transcendental e esperava por esse encontro tanto quanto eu Meus elogios à sua técnica e musicalidade logo nos levaram à apreciação dos mestres da bossa nova principalmente João Jobim e Carlos Lyra tema de nossa paixão comum e a conversa sem violões dispensou um teste de minhas capacidades musicais para estimular o interesse de Gil ele se entusiasmava com observações de ordem geral que esclarecessem o significado da música o que não é muito comum em músicos de forma que o que eu dizia já valia por uma boa seqüência de acordes Algumas vezes ao longo dos anos ouvi comovido Gil dizer que ao me encontrar se sentiu saindo de uma espécie de solidão ao me ver e ouvir teve certeza de que achara verdadeira companhia Tenho a impressão de que por valorizar em mim uma visão de mundo que englobava a música para a qual ele era tão dotado eu próprio a essa altura não imaginava que me profissionalizaria no setor uma visão que lhe parecia uma ampliação da sua mesma ele criou a imagem de mim como mestre e como fazem os grandes quando julgam ver grandeza em quem admiram relevou minhas deficiências ou melhor interpretou as sempre de forma a lhes dar um sentido superior Viu por isso qualidades na minha música que possivelmente nenhum outro músico de talento igual ao seu veria então e assim não apenas me estimulou e encorajou como também me ensinou tudo o que me era possível aprender tornandose ele sim meu verdadeiro mestre Não que Gil me desse aulas de harmonia ou de técnica violonística Mas vêlo tocar violão e cantar me desinibiu para a música como nada o poderia ter feito O que me possibilitou arriscarme a ampliar o repertório de acordes e de batidas no violão barato que minha mãe tinha me comprado e para cujo domínio eu não alimentava esperanças Gil trazia o mistério celestial da beleza da bossa nova para o alcance dos meus dedos eu me permitia apenas querer roçálo de leve acreditava poder tirar uma lasquinha sem profanálo Gil não se negava ao contrário a explicar as relações entre os acordes a descrever o modo como se posicionavam os dedos ou ensinarme harmonias de canções inteiras mas fazia tudo isso casualmente em meio às conversas despreocupadas Hoje me assusta a rapidez com que progredi do básico tônicadominantetônica para acordes alterados e para a noção de vozes internas que caminham Eu não tinha idéia do quanto estava me tornando mais musical julgava que apenas aprendia mal na medida do meu talento imutável um ou outro aspecto do saber musical a que Gil tinha acesso por direito congênito Até hoje acho que a forma desequilibrada como trato a música como autor e como ouvinte exibindo complexidade quando já não se espera senão primarismo e ingenuidade quando a expectativa seria de sofisticação se deve ao fato de eu ter me negado a me impor um método por não ter em minha capacidade musical a fé que Gil tinha Na verdade nunca mais fiz progressos comparáveis àquela arrancada Mas nada eu poderia hoje em música se Gil não reafirmasse essa sua fé a cada instante apesar de mim mesmo Gil tirou de mim muito mais música do que jamais sonhei poder engendrar Algumas vezes apesar da felicidade de poder estar mais próximo de João Gilberto por causa dos ensinamentos de Gil eu entrava em crise por não me achar no direito de fazer música Uma das coisas mais deprimentes de um país desorientado em sua história de um país incompetente como disse Hannah Arendt dos países subdesenvolvidos é a incapacidade de se adequarem os talentos e os temperamentos dos indivíduos às funções que irão exercer Há uma sensação de desperdício e frustração de que sempre tive consciência e contra a qual sempre quis me insurgir Este é um ponto central de meus cuidados foi do tropicalismo e permanece para mim irresolvido Suponho que se eu vivesse em São Paulo ou no Rio teria concluído o curso de filosofia e talvez esse tivesse sido um caminho mais condizente Ou tivesse eu conseguido reunir forças para começar por fazer filmes antes de a música me agarrar quem sabe minha mente generalista aliada a minha vocação visual de expintor e o pouco de música que haveria sempre fariam de mim um cineasta mais eficaz do que posso ser músico De todo modo eu temia e esse temor não morreu de todo que minha entrada na história de nossa música antes a empobrecesse do que contribuísse para seu engrandecimento No seu livro sobre a bossa nova o jornalista Ruy Castro coloca o tropicalismo como tendo vindo para jogar a pá de cal na cova daquele movimento de requinte e refinamento O primeiro pensamento que essa observação provocou em mim foi o de repetir meu velho exame de consciência e para os mesmos resultados inconclusivos Antes de Gil sair da Bahia para São Paulo em 65 um desses exames de consciência me fez dizerlhe de coração que tinha decidido não mais fazer música Gil foi enfático Se você não fizer música eu também não faço E disse que não aceitava a hipótese que não veria sentido em seguir sem mim Isso era para mim a própria música falando E recuei Gil é um mulato escuro o suficiente para mesmo na Bahia ser chamado de preto Eu sou um mulato claro o suficiente para mesmo em São Paulo ser chamado de branco Meus olhos são sem embargo muito mais escuros do que os dele Por outro lado embora fôssemos ambos da classe média Gil filho de médico e com apenas uma irmã conheceu alguns privilégios da burguesia com os quais eu filho de funcionário público e com sete irmãos nem podia sonhar Seu pai tinha carro e ele estudara em escola privada As escolas públicas eram freqüentemente melhores do que as escolas privadas naqueles tempos em que o privatismo ainda não era uma mania Mas se estudar em escola particular não era certificado de melhor educação era sinal de status social Gil tinha saído dos padres maristas para a Escola de Administração da Universidade da Bahia o que denotava um projeto de reafirmação da posição social conquistada por seu pai Ele se sentia perfeitamente à vontade entre seus colegas na maioria brancos saídos da burguesia propriamente dita sem que isso entrasse em contradição com o ideário de esquerda que ele compartilhava com um bom número deles A Escola de Administração é claro não era um reduto de comunistas Mas Gil era muito mais parecido com um militante do que eu que estudava na Faculdade de Filosofia com seus departamentos de Sociologia Letras e História onde a esquerda imperava Nossas visões das questões políticas no entanto não diferiam muito no essencial Nós nos encontráramos na música e não nos sentíamos distantes um do outro em nada mais saudávamos o surgimento do CPC da UNE embora o que fazíamos fosse radicalmente diferente do que se propunha ali e amávamos a entrada dos temas sociais nas letras de música sobretudo o que fazia Vinicius de Moraes com Carlos Lyra Gil nunca parecia consciente do fato de que era preto Isso não o humilhava ou enaltecia ele simplesmente se portava como um cidadão desembaraçado Sua desenvoltura natural fazia com que a negritude nele correspondesse ao tom em que minha mãe se referira a ela No final da década sobretudo sob o impacto de Jimi Hendrix Gil vestiu a máscara do negro com consciência racial e essa nova persona em vez de meramente ocultar o homem resolvido além dos conflitos revelou conteúdos de mágoa e orgulho havia muito latentes sob o antigo véu Era como se ele se tivesse longamente submetido à crença de que não era preciso bater no peito e gritar sou negro ou protestar contra discriminações considerando bastante ter uma vida digna e afirmarse social e intelectualmente como fizera seu pai Agora com o aspecto black is beautiful da cultura pop que ele abraçava como conseqüência de seu refinamento pessoal ele encontrava africanidades em suas reminiscências domésticas e revolta contra os aspectos raciais da injustiça da sociedade brasileira É revelador de profunda verdade sobre essa questão no Brasil o fato de Gil ter sido um exemplo perfeito de filho de preto doutor baiano e à medida que os negros pobres foram dominando a paisagem humana da Cidade do Salvador com sua afirmação cultural popular pós60 e ao mesmo tempo perdendo chances de se tornarem profissionais liberais por causa da intensificação das desigualdades sociais e da ruína da educação pública ter se tornado um líder mítico dessas novas massas negras Assim o pequeno burguês bossanova de 63 é cantado pelos blocos afro dos anos 80 e 90 como aquele que ficou no lugar de Bob Marley na defesa de seu povo A mudança de Gil em relação à questão do negro trouxe novo sentido à sua velha paixão por Jorge Ben E os interesses musicais deste no momento de deflagração da Tropicália convergiam com os nossos Nos anos 70 de volta do exílio londrino aproximandose ainda mais de Ben Gil que ao contrário de mim jamais gostara de Carnaval fez uma música suplicando aos orixás que fizessem renascer o afoxé Filhos de Gandhi seu único amor de infância do Carnaval de Salvador um curiosissimamente lindo grupo carnavalesco surgido nos anos 40 formado de homens na maioria negros vestidos à indiana usando turbantes brancos com um deles caracterizado como o líder hindu óculos bengala e tudo a puxar um elefante de papelão sobre o qual uma criança negra também vestida a caráter desfila pelas ruas da cidade tudo ao som de atabaques e agogôs saídos diretamente dos terreiros de candomblé Gil compôs a música ao ver que só restavam uns dez ou doze teimosos filhos de Gandhi sem forças para fazer frente aos potentes trios elétricos que a essa altura já apresentavam o frevo com pitadas de progressive rock glitter e heavy metal cuja vitalidade eu mesmo louvara numa marchafrevo de 68 o que lhes aumentara o poder Dirseia que os orixás atenderam os pedidos de Gil pois o bloco já no ano seguinte saía com mais de mil componentes e até hoje só tem feito crescer em tamanho e garbo Isso estimulou o surgimento de novos afoxés que por sua vez já incluindo temas de afirmação racial em caráter político deram lugar ao nascimento de blocos afro como o Ilê Aiyê e o Olodum hoje conhecidos nacional e internacionalmente pela vigorosa originalidade de suas baterias O mito astrológico que diz serem os signos de Câncer e de Leão opostos e complementares um o Sol o outro a Lua um condenado à explicitude o outro ao mistério foi usado com proveito tanto por mim quanto por Gil para explicar nossa união e nossa diferença Walter Smetak o músico erudito suíçobaiano inventor de instrumentos e amante de esoterismos dizia que nós éramos juntos a encarnação do arquétipo dos gêmeos Nascemos os dois no mesmo ano de 42 com diferença menor do que um mês Meu pai se chamava José e o pai dele se chamava José Minha mãe se chama Claudionor e a mãe dele se chama Claudina Mas os misticismos que entraram em moda a partir do final dos anos 60 não tomaram de todo conta das nossas cabeças e da minha ainda menos do que da dele e essas interpretações e coincidências só servem para enfeitar com toques curiosos nosso companheirismo renitente Quando Rogério dizia que Gil é o profeta Caetano é apenas seu apóstolo isso me parecia verdadeiro sobretudo porque praticamente não houve nada de relevante que não fosse primeiro arriscado misteriosamente por ele para depois de um tempo de elaboração ser transformado por mim em algo mais perceptivelmente coerente Foi assim com Jorge Ben foi assim com o tropicalismo como um todo foi assim com o reconhecimento da importância de São Paulo como cidade a tomar outra posição no imaginário brasileiro foi assim com os procedimentos composicionais resultantes do que julgávamos ouvir nos Beatles foi assim com Hendrix foi assim com a descoberta do gênio de Milton Nascimento foi assim com a nova cultura pop da Cidade do Salvador Mas isso não quer dizer que eu ou ele sempre tivesse consciência de que trabalhávamos assim Muito menos que nossas divergências de opinião e temperamento não nos levassem a expor ou o que tem sido sempre mais freqüente calar discórdias Assim se muitas vezes me senti recebendo os louros que lhe eram devidos e negados não faltaram nem têm faltado momentos em que preciso desembaraçar minha inteligência e meu poder de discernimento das oscilações de sua intuição e da obscuridade de seu espírito a um tempo teimoso e ultrareceptivo E ele também deve se cansar de me idealizar Talvez sua reação a Tropicália ou Pan is et circensis nascesse de uma defesa de seu ego contra o meu hoje ouço as desafinações dos metais na primeira faixa com muito mais clareza do que então Seja como for nenhum de nós dois é egomaníaco o suficiente para deixar que problemas desse tipo se tornem maiores que a amizade ou a parceria Quando o disco ficou pronto eu exultava com o êxito conceitual mas o que me parecia um relativo avanço técnico soava como um retrocesso aos ouvidos de Gil De todo modo para Zé Agrippino apenas a faixa dos Mutantes o tratamento que eles deram à minha parceria com Gil Panis et circensis saia do limbo do subdesenvolvimento De fato os Mutantes por sua extrema juventude começando a vida ao mesmo tempo que o neorocknroll inglês por sua condição de paulistas vivendo na região mais rica e menos característica do Brasil por sua familiaridade com equipamentos eletrônicos o irmão mais velho dos dois rapazes é um inventivo engenheiro mas sobretudo pelo talento dos irmãos Batista e da namorada de um deles tinham um domínio da linguagem pop sonora e visual os teipes da época e alguns dos filmecos feitos com eles parecem produções atuais da MTV que os distanciava tanto da MPB convencional quanto do iêiêiê e do próprio tropicalismo Eu achava contudo que em Baby por Gal e Duprat ou em Enquanto seu Lobo não vem por mim Gil e Duprat havia alguma coisa de outra natureza e que me interessava mais Algo mais fértil e para ser julgado por outros critérios que não o mero cotejo com a produção angloamericana O tropicalismo ganhou corpo na história da MPB como um conjunto de atos dos quais a colaboração com os eficientes e inspirados Mutantes foi um dos mais auspiciosos mas o núcleo estava em outra parte Depois que voltei de Londres nos anos 70 Rita Lee se tornou com um trabalho de excelente qualidade e grande sucesso a roqueiramor do Brasil E os Mutantes sem ela se inclinaram para o progressive rock com competência para soar como o Yes ou o Emerson Lake and Palmer Serginho sempre foi um virtuose e Arnaldo bom instrumentista um músico de forte marca pessoal nesse período juntaramse a Liminha um contrabaixista excepcional que como eles tinha trabalhado com Ronnie Von e depois comigo e hoje é um produtor de primeira linha em termos mundiais e formaram um trio que se nunca se tornou comercial como Rita elevou o nível técnico e de ambição do rock brasileiro e mesmo latinoamericano O rock chamado progressivo não nos atraía Amávamos e admirávamos os novos Mutantes sem compartilhar com eles do entusiasmo pelo tipo de música que eles elegeram Mas a própria Rita trabalhando solo com sua poesia sua musicalidade seu wit e sua elegância trazia de volta a divisão entre MPB e rock que o tropicalismo tentara superar A palavrachave para se entender o tropicalismo é sincretismo Não há quem não saiba que esta é uma palavra perigosa E na verdade os remanescentes da Tropicália nos orgulhamos mais de ter instaurado um olhar um ponto de vista do qual se pode incentivar o desenvolvimento de talentos tão antagônicos quanto o de Rita Lee e o de Zeca Pagodinho o de Arnaldo Antunes e o de João Bosco do que nos orgulharíamos se tivéssemos inventado uma fusão homogênea e medianamente aceitável Somos baianos Eric Hobsbawm em suas apreciações do nosso breve século XX escreveu que desde o entreguerras no campo da cultura popular e dando curiosamente o esporte como única exceção em que se destaca o futebol brasileiro como arte o mundo era americano ou provinciano Isso era um dado que os tropicalistas não queríamos negar Tampouco queríamos encarar com rancor ou melancolia Reconhecíamos a alegria necessária que há em alguém acharse participando de uma comunidade cultural urbana individualista universalizante e internacional Os pruridos nacionalistas nos pareciam tristes anacronismos Ao mesmo tempo sabíamos que queríamos participar da linguagem mundial para nos fortalecermos como povo e afirmarmos nossa originalidade O mero aggiornamento era pouco para nós Sobretudo porque víamos ou imaginávamos que a oposição americanos ou provincianos estava ou estaria se agíssemos acertadamente em vias de se modificar Desse modo embora ainda hoje Rita nos dê lições de profissionalismo e atualidade o fato é que a Tropicália sugere um horizonte de problemas que é enriquecido por trabalhos como o dela mas isto não quer dizer que ela os resolve Na concepção do disco Tropicália ou Pan is et circensis havia um plano este sim totalmente tropicalista de gravar uma velha canção brasileira em tudo e por tudo desprestigiada Era a supersentimental Coração materno um dos maiores sucessos de Vicente Celestino o melodramático compositor e cantor de voz operística cuja brilhante carreira remontava aos anos 30 e incluía além de inúmeros discos de sucesso operetas e filmes como o recordista de bilheteria O ébrio de 46 Coração materno conta a história de um jovem camponês que se vê obrigado a entregar à sua amada como prova de amor o coração da própria mãe O matricídio se dá enquanto a velhinha está ajoelhada diante de um oratório O jovem depois de rasgarlhe o peito e extirpar lhe o coração corre para a amada levandoo nas mãos Na estrada tropeça e cai quebrando uma perna Do coração da mãe que tinha sido atirado longe sai uma voz que pergunta Magoouse pobre filho meu e num último e extremo golpe comovedor exorta Vem buscar me que ainda sou teu Em 67 Vicente Celestino estava praticamente esquecido e seu estilo o extremo oposto do que viera dar na bossa nova era indefensável A melodia do Coração materno como todas as outras de Celestino era para nossos ouvidos um mero pastiche de ária de ópera italiana A idéia de gravar essa canção me ocorrera por ela ser um exemplo radical do clima estético acima do qual nós nos julgávamos alçados altamente Mas essa era uma história que em vários planos era mais arcaica do que podia parecer A minha primeira lembrança de patrulhamento do gosto ou de educação estética por meio da humilhação ou de esnobismo cultural remonta à infância remota entre os quatro e os seis anos quando meus irmãos riram de mim por eu externar admiração por Vicente Celestino suas melodias sua grande voz Já então nos anos 40 pelo menos dentro de minha família os dramalhões cantados com voz empostada eram considerados ridiculamente vulgares Lembro que a vergonha que senti foi funda e sem dúvida a marca indelével que deixou disciplinou minha sensibilidade Cresci para desgostar de ópera italiana e suas imitações e ainda hoje quando se trata de canto lírico tenho prazer total com sopranos e contraltos e quase nenhum com tenores e barítonos Curiosamente tanto Gil quanto Milton Nascimento têm nesse particular gosto igual ao meu O amaciamento da emissão e a flexibilização do fraseado que Orlando Silva legou a João Gilberto foram e são meu critério preferencial de julgamento do canto Mas nunca esqueci de todo as canções de Vicente Celestino que eu já sabia cantar quase antes de falar Para gravar o Coração materno não precisei propriamente reaprender a canção tive apenas que conferir a gravação original para evitar eventuais erros tópicos E lembrava melhor dela que era indiscutivelmente a que melhor servia aos propósitos tropicalistas do que de qualquer outra de Celestino Por outro lado ao ler o romance Spartacus quando ainda no curso clássico em Salvador depararame com o drama do campônio matricida narrado por um personagem de dois mil anos atrás como sendo para ele uma velha história Impressionoume à época que esse conto popular pudesse ter se mantido igual em todos os detalhes por tantos séculos Nunca verifiquei se de fato essa já era uma história corrente na Roma antiga ou se ela fora inserida no romance artificialmente pelo seu autor que talvez a conhecesse de outras fontes O fato é que esse conto usado por Vicente Celestino para comover multidões como exemplo do desprendimento materno e que reencontrei em Terrible honesty de Ann Douglas recontado pelo psiquiatra Frederic Wertham para explicar o impulso matricida como decorrente da necessidade que tem o filho macho de se libertar de um amor materno demasiadamente sufocante mostrouse representativo não apenas da sensibilidade das massas brasileiras mas da própria natureza de toda cultura popular O arranjo que Rogério Duprat fez para essa canção é uma das maiores vitórias do tropicalismo Excelente orquestrador Duprat criou uma atmosfera de ópera séria sem no entanto deixar de lembrar trilhas de filmes de Hollywood restituindo dignidade e conferindo solenidade à canção execrável o que fazia ressaltar minha interpretação assustadoramente sincera e sóbria No que diz respeito a meu canto ali eu reconheço profundas influências algumas inconfessadas que marcam meu estilo e lhe fazem a fama até hoje notadamente Silvio Caldas o antiCelestino em sua emissão cheia de verdade intensa e despretensiosa e o radiador Roberto Faissal aos meus ouvidos ele tinha aquelas mesmas características de Caldas ainda mais acentuadas e lembro de declamar sozinho aos treze anos letras inteiras de músicas de que eu gostava inclusive o Hino Nacional imprimindolhes o tom de Faissal sua convincente certeza o que às vezes me levava às lágrimas essas declamações serviam de treinamento para depois cantar as canções com mais precisão e segurança O resultado da combinação do arranjo de Duprat que inicialmente se funde aos tiros de canhão da faixa anterior e minha leitura Caldas Faissal etc me autorizariam o uso da palavra sem as aspas da letra de Celestino é uma peça que comove porque faz o ouvinte passar consciente ou inconscientemente por todas as referências que pude explicitar aqui e por tantas outras que não pude Estou escrevendo estas notas sem o disco à mão Na verdade faz muito tempo que não o ouço Assim como não reouvi nenhum dos discos tropicalistas fosse o meu o de Gil o de Gal ou o dos Mutantes para fazer os comentários Tampouco procurei Zé Celso ou algum arquivista em busca de fotografias da montagem de O rei da vela na verdade há um filme feito pelo próprio Zé Talvez o vestido de Heloisa de Lesbos no terceiro ato fosse todo branco e não todo preto Tropicália ou Pan is et circensis abre com uma composição de Gil e Capinan chamada Miserere nobis em cuja letra reconheço o embrião da poética mineira dos anos 70 as referências católicas as imagens nobres envolvendo um compromisso político mais pressuposto do que explicitado a dicção solene Num nível sempre extraordinariamente mais alto do que seus seguidores Capinan prefigurou toda a lírica participante póstropicalista Mas foi Torquato quem escreveu também sobre uma música de Gil a letra que para muitos se tornou mais do que a própria Tropicália da qual ela tirava a sugestão a letra manifesto do movimento Geléia geral Começando com uma referência direta à figura do poeta o poeta desfolha a bandeira inventariando signos do trópico bananas ao vento calor girassol e da vida brasileira o Jornal do Brasil Miss Brasil a Carolina de Chico Buarque citando Oswald de Andrade literalmente a alegria é a prova dos nove popularizando a expressão geléia geral cunhada como já contei por Décio Pignatari no texto que tanto me impressionara num número da revista Invenção pondo lado a lado o folclore tradicional brasileiro e o folclore urbano internacional ê bumba iêiê boi ê bomba iêiêiê Geléia geral apresentava a versão de Torquato do tropicalismo Ela pode ter servido para alguns como uma espécie de Tropicália facilitada mas sublinhada pela melodia vivaz de Gil trazia a leveza do lirismo de Torquato a fluência de seus versos e de suas imagens a melancolia fingidamente escondida além é claro da para mim muito importante afirmação da dimensão poética do movimento aqui inscrita na atitude que precede a decisão de escrever os versos singelos e não como no caso de Capinan no esforço de adensamento da poeticidade dos próprios versos É PROIBIDO PROIBIR Acho que foi ainda em maio de 68 que Guilherme me mostrou a reportagem da revista Manchete sobre os estudantes em Paris na qual ele tinha encontrado a fotografia em que se lia pichada numa parede a frase É proibido proibir que Buñuel em suas memórias diz ter sido tomada pelos estudantes aos surrealistas a seu ver excelente para ser transformada em música Diante de minha reação fria à sugestão ele sorriu com o ar teimoso de quem sabia que ia terminar me convencendo Eu achava o paradoxo engraçado mas não tinha intenção de retomálo Primeiro porque reconhecia ali a natureza de choque efêmero desses ditos se repisados eles revelam uma ingenuidade que trabalha contra os próprios impulsos que os inspiraram Depois porque eu não queria que se confundisse o nosso movimento com o movimento dos parisienses nem no Brasil nem no exterior se fosse o caso de algum dia o que fazíamos vir a ser conhecido fora o que eu já esperava e mesmo desejava menos do que antes de ter meu primeiro disco pronto Mas Guilherme não desistiu Ele me pedia todos os dias que fizesse uma canção usando a frase Finalmente me convenceu a fazêla só para ele Partindo da experiência de bossa nova em três por quatro ou será seis por oito enfim em compasso ternário de Baby e de uma outra canção esta Saudosismo uma prestação de contas tropicalista para com a bossa nova algo muito mais interessante do que É proibido proibir e uma composição mais rica do que a própria Baby fiz rapidamente uma breve marchinha ternária com uma série de imagens de sabor anarquista era o que me parecia à primeira vista o movimento francês ou pelo menos era o seu aspecto que mais o identificava ao nosso e usei a frase singelamente paradoxal como refrão Mostreia a Guilherme que disse achar tudo divino maravilhoso e me desobriguei em relação à canção Agora perto do final do ano de 68 Guilherme trazia o recado da TV Globo do Rio então infinitamente menos importante do que a TV Record de São Paulo convidandonos para que participássemos Gil e eu do seu festival uma cópia sem graça dos festivais paulistas tornado ainda mais confuso pelo fato de ser internacional ou seja de pôr trabalhos dos melhores compositores brasileiros para serem julgados pelo júri e por um público imenso uma vez que as finais eram no ginásio de esportes do Maracanãzinho segundo critérios que levassem em conta algum tipo de qualidade respeitável e a facilidade de agradar à primeira audição lado a lado com produtos que não poderiam ser representativos do pop inglês ou americano e com algum europeu continental ou latinoamericano acidentalmente interessante que sobrasse da produção e do consumo internos de um ou outro país dessas regiões Sem interesse pelo evento e sem nenhuma canção para apresentar ali disse a Guilherme que levasse a eles meu não como resposta Mas o próprio Guilherme não se mostrou disposto a aceitar esse não Talvez ele tivesse prometido aos promotores do festival que nos convenceria a participar talvez ele achasse que o Festival Internacional da Canção o FIC estava se tornando uma boa oportunidade de divulgação talvez ele simplesmente não achasse certo que ficássemos de fora de algo de que ele próprio não gostava muito mas que estava se tornando como tudo o que se passa no Rio um acontecimento jornalístico indefinido porém de grande repercussão nacional talvez a palavra internacional um bordão seu desde que ouviu Bethânia pela primeira vez tangesse uma corda especial em sua imaginação o fato é que Guilherme insistiu em que puséssemos qualquer coisa no festival da Globo Minha recusa foi resistente Até que relacionando essa insistência de Guilherme com a que ele mostrou para me convencer a escrever o É proibido proibir pensei primeiro em tom de brincadeira depois já antevendo o que poderia fazer em inscrever exatamente essa canção no tal festival Eu dizia a ele quase em tom de ameaça que poria a música no certame como mero pretexto para fazer da minha apresentação ali um happening Gil seguiu minha decisão E trocamos de bandas eu iria com os Mutantes um sonho meu e ele com os Beat Boys agora rebatizados de Os Bichos Nós apresentaríamos as músicas numa fase eliminatória em São Paulo concorrendo com outros artistas residentes ali O que Gil decidiu fazer foi exibir seu conhecimento da música de Hendrix ainda totalmente desconhecida do público brasileiro reproduzindo em português o canto falado do grande guitarrista sobre uma base rítmico harmônica de colorido brasileiro embora mantendo o blues predominante do seu modelo tudo a serviço da provocação anarquista de usar o chavão das reuniões políticas de esquerda Questão de ordem que era o próprio título da canção e subvertêlo questão de desordem infelizmente abrandandoo e açucarandoo com um refrão beatlesesco em nome do amor Era de qualquer modo uma canção bem superior à minha e no fundo um número mais radicalmente inovador Mas É proibido proibir se transformou com a ajuda dos Mutantes e de Rogério Duprat que sem escrever um arranjo para orquestra orientou a introdução atonal com sabor de música concreta e eletrônica executada pelo grupo numa peça de grande poder de escândalo Meu cabelo estava muito grande e entregue à sua própria crespidão rebelde mais parecia uma mistura do de Hendrix com os de seus acompanhantes ingleses do Experience Eu estava vestido com uma roupa de plástico verde e preta o peito coberto de colares feitos de fios elétricos com tomadas nas pontas correntes grossas e dentes de animais grandes Essa roupa concebida por Regina Boni com os palpites de Dedé tinha tanto quanto os ganchos de açougue na sala do nosso apartamento um toque protopunk que fazia parecerem bem comportadas nossas então já usuais mas ainda escandalosas camisolas africanas de estamparias vivas e até mesmo os trajes de ficção científica que os Mutantes usavam ali mesmo ao meu lado no palco para não falar do terninho xadrez de Guilherme com gola rulê laranjavivo do lançamento tornado remoto em meses de Alegria alegria Depois da longa introdução que já arrancava vaias por seu atonalismo e sua total indefinição rítmica eu começava a cantar os tolos versos A mãe da virgem diz que não E o anúncio da televisão E estava escrito no portão acompanhandoos de uma dança que consistia quase exclusivamente em mover os quadris para a frente e para trás porém não tanto à maneira brusca e algo mecânica de Elvis antes ao modo relaxadamente sexual das baianas das sambistas de morro dos homens e mulheres cubanos Como se não bastasse a uma certa altura o canto e a dança eram interrompidos mas não os efeitos dos Mutantes para dar lugar à declamação do poema de Fernando Pessoa sobre d Sebastião o rei português que morreu ainda adolescente na última e irrealista cruzada nas areias de Alcácer Quibir e cuja volta é conjurada até hoje em rituais populares brasileiros em geral ligados ao culto do Espírito Santo constituindo um mito que alguns intelectuais dos dois lados do Atlântico Sul muitas vezes retomam para significar o anúncio de uma nova era o Quinto Império para o mundo baseada nas grandezas perdidas de Portugal É um poema de Mensagem o livro de Pessoa que me impressionara na época da faculdade por ser capaz ao parecer constituir a fundação mesma da língua portuguesa ou sua justificação última de dar vida digna a esse mito tão freqüentemente ridicularizado o termo sebastianismo virou sinônimo de impotência autoiludida um quase consensual depreciativo da crítica da cultura entre nós Uma versão corajosamente livre e surpreendentemente nada reacionária desse mito tinha se apresentado a nossa geração de baianos através da figura do professor português Agostinho da Silva que nos anos de ouro da Universidade da Bahia sob o reitor Edgar Santos fundara em Salvador o Centro de Estudos AfroOrientais sempre mirando um horizonte de superação do estágio em que se encontrava o mundo liderado pelo Ocidente protestante a filosofia alemã Marx Freud os Estados Unidos etc nunca deixando parecer que se tratava de uma mera nostalgia do catolicismo medieval português Ao contrário sendo ele tradutor de Hölderlin e dos gregos seu amor aos sincretismos afro lusitanos ou lusoasiáticos e mesmo afroasiáticos não se queria uma negação ou uma desistência das conquistas da era norteeuropéia e seu ecumenismo retomava paganismos vários prevendo uma necessária superação do cristianismo a era do Filho dará lugar à era do Espírito Santo com Marx e tecnologia Algo ou muito disso está por trás de toda a obra de Glauber e em que pesem as ironias e desconfianças de todo o tropicalismo O poema de Pessoa é em si mesmo uma jóia do modernismo português e uma obraprima da poesia moderna em qualquer língua Declamálo ali num programa de televisão entre guitarras elétricas e slogans surrealistas emprestados aos estudantes franceses era um desafio formal e também significava forçar uma visão implausível no ambiente Para acentuar o contraste eu invertendo a expressão popular o diabo está solto gritava Deus está solto como que anunciando a entrada no palco surpreendente até mesmo para os organizadores do festival que disso não tinham sido avisados de um rapaz americano John Danduran um gringo evidente alto muito branco envolto num poncho hippie sem um fio de cabelo em todo o corpo ele tinha tido não sei que doença dando urros e grunhidos inarticulados A platéia no auditório do TUCA o Teatro da Universidade Católica tinha sido a escolha dos organizadores do FIC predominantemente estudantil e comprometida com um nacionalismo de esquerda quer dizer antiimperialista reagiu com violenta indignação Várias caras conhecidas se mostravam ostensivamente hostis a mim e não poucos entremeavam as vaias convencionais uuuuuuuu com xingamentos e palavrões Não posso dizer que tudo isso fosse propriamente surpresa para mim Eu sabia que estava fazendo uma provocação Mas o tropicalismo já estava aí por quase um ano e era perfeitamente previsível um episódio de vaias entremeadas de admiração pela ousadia e pelo bom acabamento musical e cênico da apresentação O ódio não há outra palavra que se via estampado nos rostos dos espectadores ia muito além do que eu pudesse ter imaginado O júri no entanto formado por pessoas mais velhas e mais cultas do que a média da platéia levou em consideração aqueles aspectos positivos e classificou a canção para a semifinal Mas a experiência hendrixiana de Gil que desagradara igualmente à platéia embora não tenha oferecido os motivos de escândalo de É proibido proibir não encontrou nos membros do júri referências quaisquer que os fizessem reconhecer ali sequer umacanção E Gil foi desclassificado Eu impressionado com a intensidade da raiva que o público mostrara contra mim e desinteressado de continuar naquele festival decidi voltar a apresentar a música na semifinal ainda no TUCA apenas para aproveitar a oportunidade de levar o happening até as últimas conseqüências diria àquela platéia tudo o que pensava sobre sua reação e mostrando aos membros do júri que a música de Gil tinha sido desclassificada porque eles estavam atrasados em relação ao que vinha acontecendo no pop mundial eles aprovavam de bom grado imitações toscas de procedimentos americanos ou internacionais já conhecidos mas um produto bemfeito criado num universo estilístico que eles ainda não sabiam que tinha sido aprovado lá fora não eu retiraria a minha própria canção O discurso que improvisei eu estava tão excitado nos dias que precederam essa segunda apresentação que nem era capaz de preparar mentalmente uma fala ordenada as idéias de coisas para dizer se sucediam numa velocidade estonteante foi moldado pelo sentimento que me inspiravam as caras que eu via na platéia sua raiva e sua tolice Na verdade essas caras tinham desaparecido quase todas pois logo que os Mutantes iniciaram a introdução a maioria esmagadora dos assistentes voltouse de costas para o palco numa demonstração um tanto assustadora em retrospecto admirável em seu ineditismo no que foram prontamente imitados pelos Mutantes que passaram a tocar de costas para a platéia Quando em substituição à declamação do poema de Pessoa comecei a falar a urrar seria mais adequado dizer de improviso alguns espectadores depois praticamente todos viraramse de frente para ver o que estava se passando A medida que os rostos curiosos mas nem por isso livres do ódio que os fizera desaparecer ressurgiam minha ira e meu confuso entusiasmo cresciam e numa voz a um tempo descontroladamente insegura e confiantemente profética eu disse Essa é a juventude que diz que quer tomar o poder Se vocês forem em política como são em estética estamos fritos Gil atendendo ao meu chamado subiu ao palco e entre as coisas que nos atiravam da platéia em geral pedaços de papel embolados copos de plástico ou de papelão etc um pedaço de madeira serrada do tamanho e da espessura de um maço de cigarros mais ou menos acertou sua canela tirando sangue Saímos do TOCA amedrontados Na calçada em frente ainda havia pessoas gritando coisas Fiquei angustiado De certa forma entendi num relance os conteúdos das crises eventuais de angústia relacionadas ao movimento que assolavam Gil Eu mesmo no meu discurso dera um tom de grandeza ao que fazíamos e agora temia que tudo fosse demasiado grande Deus está solto ecoava em minha cabeça e o medo de ter ido longe demais em mexer com forças sobrenaturais era um modo simbólico de eu me dizer que talvez tivéssemos tocado estruturas profundas da vida brasileira com enorme risco para nós Eu me sentia orgulhoso sem embargo E ao chegar em casa recebi as mais calorosas manifestações de solidariedade de amigos cujo tom às vezes surpreendente de espanto e admiração a um tempo me envaidecia e intimidava Os contrastantes Augusto de Campos e José Agrippino de Paula me telefonaram com brevíssimo intervalo entre os dois para dizer frases definitivas de aprovação José Celso Martinez Corrêa veio até minha casa que estava cheia de nós todos do gruponúcleo trazer mais do que solidariedade uma sugestão de conversa analítica e interpretativa da situação conversa que não fui capaz em meu cansaço excitado de enriquecer quase nem mesmo de acompanhar No dia seguinte Dedé e eu partíamos com Gil para São Vicente no litoral de São Paulo aceitando o convite de um conhecido de Gil e de Lennie Dale para ficarmos refugiados na casa de praia que ele possuía ali e que deixaria conosco por uma semana Precisávamos descansar e pôr a cabeça em ordem Guilherme em breve surgiria com o plano de apresentarmos as duas canções num show numa boate do Rio paralelamente às finais cariocas e internacionais do festival Era com muito orgulho que eu nos via num sofisticado show à margem da chatice do FIC Suponho que foi o então iniciante empresário Ricardo Amaral um paulista que se tornou a partir dessa época o dono da noite carioca quem propôs a Guilherme um espetáculo tropicalista com os Mutantes Gil e eu em sua Boate Sucata à beira da lagoa Rodrigo de Freitas já era uma discothèque sem esse nome mas com todas as características e não era a pioneira na cidade o Le Bateau já estava aí havia algum tempo O show foi possivelmente a mais bemsucedida peça do tropicalismo Pelo menos a que melhor expunha nossos interesses estéticos e nossa capacidade de realização além de não apresentar a defasagem habitual entre nosso estágio crítico e nossos produtos até aqui inseridos na voragem da realidade fosse da gravadora fosse da emissora de televisão Infelizmente não há muitos bons registros fotográficos nenhum em movimento do que fizemos ali Embora uma gravação de quatro números meus com os Mutantes que saíram num compacto duplo possam dar uma idéia do que estávamos fazendo Eu usava o mesmo traje plástico verde e negro das apresentações do TUCA creio que Gil e os Mutantes também mantinham o figurino e levava às últimas conseqüências o comportamento de palco esboçado desde Alegria alegria estirando me deitado no chão plantando bananeira e enriquecendo o rebolado cubanobaiano do É proibido proibir Mas o mais forte do espetáculo era o que Gil e os Mutantes faziam musicalmente com o material escolhido O interesse de Gil por Hendrix teve resultados importantíssimos para a música brasileira O lançamento de Questão de ordem nesse festival de que tínhamos saído não significara meramente uma atualização do pop brasileiro com a inclusão da informação Hendrix apresentada em forma de cópia cover mais ou menos fiel Não O estilo violonístico de Gil nascido da bossa nova e retrabalhado pela atenção a Jorge Ben e pelo projeto de reinvenção do baião e da toada nordestinos encontrava nos blues de vanguarda hendrixianos uma nova chave para constituirse para além e para fora dos virtuosismos superbossanova surgidos na primeira metade dos anos 60 e também da guitarra de rock primária ou progressiva num marco da história do violão entre nós levandome a considerar como já escrevi em outro lugar que esta pode ser caracterizada pelos estilos cronologicamente encadeados de Dorival Caymmi João Gilberto Jorge Ben e finalmente Gil Claro que era uma seleção radical que deixava de fora não inconscientemente tanto Dilermando Reis quanto Baden Powell ou Menescal ou Geraldo Vespar ou Toquinho ou Paulinho Nogueira ou mais recentemente Raphael Rabelo ou Marco Pereira Mas apesar de ter por Baden e Dilermando admiração das maiores a esses todos eu preferia Dori Caymmi filho de Dorival que tampouco estava incluído na lista De todo modo pareceme que minha escolha indica que o mais importante do violão brasileiro se passou nas revoluções aparentemente despretensiosas de autorescantores que usavam o instrumento apenas para se acompanhar do que no concertismo mais ou menos brilhante dos solistas Quando lembro nomes possivelmente injustiçados nessa relação Paulinho da Viola é o único que tenho sincera vontade de incluir O Gil que se pode ouvir tocando violão no disco Expresso 2222 é uma mostra modesta se comparada ao exuberante turbilhão de inventividade que se ouvia em casa do amadurecimento de seu estilo O que ele e os Mutantes apresentavam nesse show tinha a soltura e a independência daquilo que se impõe como fato novo valendo por si sem a ansiedade nem a letargia provincianas Por isso também o show representou uma nossa entrada violenta no Rio Artistas estrangeiros vindos para o FIC apareciam na Boate Sucata para nos ver Lembro de Antoine o cantor francês mostrandose impressionadíssimo com o que vira e me dizendo que aquilo era mais importante do que Hair e assustandose diante de minha total ignorância do que se tratava rindo por ter de explicarme o musical que estourara na Broadway Lembro com mais emoção de uma bela jovem morena peruana que ao ouvirme dizerlhe que a canção que ela trazia de seu país me parecera a mais interessante de todo o festival faloume de sua autora Isabel Granda conhecida também como Chabuca de quem ela cantou ao piano uma música que ela dizia achar melhor do que a apresentada no FIC La flor de la canela Nunca mais esqueci nem a canção nem a compositora e poucos anos depois fiquei abaladíssimo quando alguém me disse será verdade que a bela jovem morena tinha morrido O pessoal de música brasileira vinha ver para discutir depois Wanda Sá chorou com pena de ver nossos talentos desperdiçados em comercialismos Francis Hime achou que tinha descoberto o que seria a nossa tática ou estratégia de fingir aderir ao sistema para ganhar espaço e eventualmente contrabandear coisas de qualidade alguns poucos se mostraram simplesmente hostis muitos foram ausências significativas O pessoal do Cinema Novo é que melhor reagia às nossas experimentações tendo por um lado que lidar com o fato industrial e por outro mantendo uma convivência internacional cosmopolita além é claro de conhecer de perto o desenvolvimento do embrião tropicalista em Glauber eles estavam preparados para dialogar com o que fazíamos Assim também uma facção da juventude carioca que sem ser conservadora não se identificava com o modelo do estudante nacionalista de esquerda Os artistas plásticos talvez até mais do que os cineastas estavam próximos de nós Gerchman inspirara Lindonéia Antônio Dias fizera a capa do livro de Zé Agrippino e Hélio Oiticica que involuntariamente dera nome ao nosso movimento estava presente naquele próprio evento com uma obra exposta perto do palco complementando a mensagem de nossa atitude frente ao FIC a MPB a cultura brasileira e a realidade em geral sua homenagem ao bandido favelado Cara de Cavalo morto a tiros pela policia na forma de um estandarte em que se lia sob a reprodução da fotografia do corpo do personagem estendido no chão a inscrição SEJA MARGINAL SEJA HERÓI Muitos desses pintores estavam às voltas com variações da pop art ou com as questões surgidas depois dela e Hélio Oiticica vindo do grupo neoconcreto orientava suas pesquisas então para a criação de ambientes e peças para vestir mas no pólo oposto fosse da moda ou da decoração Moças grãfinas também apareciam com seus noivos e maridos amantes e namorados e as platéias eram em geral simpáticas Uma noite um juiz de direito que não sei por que cargasdágua foi à Sucataver o nosso show indignouse com o estandarte de Hélio Sob uma ditadura militar uma reação moralista contra uma obra que glorificava um marginal tinha tudo para crescer Mesmo desproporcional como essa o estandarte devia ter um metro quadrado e não ficava no palco nem era destacado pela iluminação Só um fanático se ateria a esse detalhe com tanta tenacidade Sem embargo o juiz conseguiu não apenas suspender o show como fechar a boate Ricardo Amaral ficou tentando negociar a reabertura enquanto nós esperávamos sem muito otimismo reestrear O episódio foi muito falado e teve a médio prazo terríveis conseqüências DIVINO MARAVILHOSO Um jovem jornalista carioca chamado Carlos Marques nome que soa exatamente como o de Marx quando pronunciado por um lusófono de modo que como era comum aportuguesarse o prenome do filósofo nós fazíamos toda sorte de brincadeiras com essa coincidência trouxe para Gil de volta de uma viagem ao Amazonas aonde ele tinha ido fazer uma reportagem uma garrafa do que ele dizia ser uma beberagem indígena sagrada que produzia visões deslumbrantes e estados de alma elevadíssimos Gil tomou uma dose no dia mesmo em que devia embarcar num avião para trazer Nara sua filhinha de dois anos do Rio para São Paulo Ele conta que ao chegar ao Aeroporto Santos Dumont deparouse com um grupo de militares que ali estavam inaugurando não sei que exposição ligada à força aérea As mudanças de percepção causadas pela droga tinham justamente começado a se manifestar Ele chegou a São Paulo contando que captara conteúdos indescritíveis na presença dos militares Dizia que era como se tivesse entendido o sentido último do momento de nosso destino como povo sob a opressão autoritária e ao mesmo tempo podido situarse como indivíduo sozinho consciente do dever de trazer sua filhinha com cuidado mas também podendo amar acima do temor e de suas convicções ou inclinações políticas o mundo em suas manifestações todas inclusive os militares opressores O golpe de Estado de 64 que os militares dizem ter dado a 31 de março mas que o Brasil recebeu em 1º de abril o dia dos tolos tinha me surpreendido exatamente no momento em que eu cria poder engajarme numa ação politicamente responsável e socialmente útil O professor Paulo Freire um educador católico de esquerda tinha criado um método de alfabetização de adultos tido como muito eficaz o qual se baseava numa concomitante conscientização social e política dos educandos É preciso esclarecer que naquela época ninguém julgaria tratarse de propaganda política camuflada de educação Em primeiro lugar afora as forças reacionárias que tramavam o golpe que viria era consensual que o Brasil necessitava de reformas de base visão partilhada pelo próprio governo federal que também por isso veio a ser deposto As aulas ministradas pelas turmas formadas no método Paulo Freire eram antes vistas como educativas no sentido mais amplo de preparar a população para grandes transformações sociais E depois no método de Freire as implicações sociais e políticas envolvidas nos cursos entravam como subsidiárias da meta final que era alfabetizar e não o contrário Claro que a mera educação de grandes contingentes da massa brasileira teria significado uma revolução em si mesma independentemente da inclusão ou não de noções socializantes no projeto E a rigor não se pode falar em noções socialistas nos planos de aulas só porque eles partiam do reconhecimento dos materiais de trabalho e das dificuldades diárias de cada grupo a ser educado Seja como for a direita e as reações inconscientes que a estrutura social brasileira ceva desde a época colonial responderam com o golpe militar a essa combinação de ameaça de alfabetização acelerada e conscientização política das tradicionalmente marginalizadas classes pobres brasileiras A União Nacional dos Estudantes adotou a causa e os Centros Populares de Cultura incluíram em seu programa formar educadores para a aplicação do método Paulo Freire Apesar da simpatia com que eu via as atividades dos CPCS nunca me identifiquei com a poesia panfletária e o teatro didático que eles produziam Essa campanha de alfabetização com sua clareza de propósitos me atraiu imediatamente Eu tinha ido a uma reunião para formação de instrutores voluntários quando a notícia de que um golpe de Estado se daria naquela mesma noite nos fez interromper os trabalhos Alguns participantes quiseram continuar argumentando que sem dúvida tratavase de um boato infundado Mas os mais experientes baseados no peso das fontes das quais surgira o alerta desfizeram imediatamente a sessão recomendandonos que fôssemos para casa enquanto eles averiguariam se havia algum esquema de resistência em que se engajar Saí perplexo do prédio da Escola de Economia pois era numa sala dessa escola que a reunião se dava e fui andando até o Relógio de São Pedro um pequeno largo triangular em meio à avenida Sete de Setembro em cujo vértice erguese um grande relógio de ferro trabalhado que juntando a si o nome do santo de uma igreja próxima passou a nomear o largo e suas adjacências Acho que nessa noite mesma encontrei ali à porta de um bar ainda não se dizia lanchonete de nome Biklour Gil Roberto Santana e outros conhecidos falando justamente sobre episódios de enfrentamento da repressão policial quando de manifestações estudantis mais estridentes Eles riam muito e eu sentia medo Não lembro se eles já estavam cientes do golpe iminente na verdade consumado mas estou certo de que não fui eu a darlhes a notícia No dia seguinte na Faculdade de Filosofia não houve aula Circulavam notícias de professores presos ou chamados para prestar depoimento e boatos sobre o paradeiro de colegas desaparecidos E o que era mais assustador tanques nas ruas Tenho muito vívida em minha memória a sensação que experimentei ao andar do fim de linha do bairro de Nazaré onde morava até o antigo prédio da faculdade no meio da rua Joana Angélica Vendo os tanques eu me perguntava se teria coragem de me meter numa revolução se estaria disposto a dar a vida pelas causas sociais que supunha apoiar Naturalmente senti que não daria minha vida por nada Mas não estava certo do que significava naquele momento e a partir daquele momento minha vida As ruas silenciosas os tanques tudo me dava a impressão de um pesadelo Eu sentia medo e ódio daquela presença do exército nas ruas com suas cores encardidas e seu ar anônimo Infantilmente apenas desejei que aquilo passasse depressa Quando na faculdade me disseram que alguns pensadores prognosticavam pelo menos dez anos de governo militar eu me senti gelado por dentro Mas as piadas que começavam a correr algumas verdadeiras como a do nosso professor de história da filosofia Auto de Castro respondendo que não era marxista e sim neokantiano o que era verdade e os militares tendo que chamar o padre Pinheiro nosso professor de metafísica e filosofia geral que nos anos 70 deixou a batina e se tornou censor cultural a serviço do regime para traduzir lhes o que Auto dizia me fizeram sentir que a vida continuava Nesse mesmo 1º de abril de 1964 fui à noite ao bairro da Graça ver Dedé e Gracinha Gau Gal Eu estava indo freqüentemente ali para ouvir Gal cantar e para aproximarme de Dedé com quem eu queria namorar mas que tinha um namorado carioca Nessa noite ela me disse que já não namorava com esse tal Quando todo o mundo disse que ia dormir eu e Dedé sem precisar combinar ficamos sós por mais algum tempo e nos beijamos Saí deixando em aberto se nos veríamos no dia seguinte ou não o que chocou um pouco Dedé uma vez que o beijo para ela iniciava um compromisso Para mim também é claro mas eu quis dar um tom de soltura aos nossos encontros subseqüentes deixando a decisão sobre se estávamos ou não comprometidos um com o outro para um momento mais maduro da relação e mantendo o sabor de liberdade De fato a partir desse momento não nos desgrudamos mais Eu não estava apaixonado pelo menos não como estivera por uma menina de Santo Amaro durante anos como já contei mas estava muito feliz e o momento do beijo me comoveu profundamente Cheguei ao Biklour esfuziante de alegria sobretudo porque no caminho vim pensando nas delícias de poder contar com uma menina bonita que aceitaria minhas carícias as quais poderiam ser cada vez mais íntimas e ousadas Gil ao me ver disse imediatamente Você começou a namorar com aquela menina da Graça Eu conhecera Dedé como já disse por causa de Gal e Gal por causa de Dedé Mas depois do primeiro encontro ficamos algum tempo sem nos ver Uma noite fui à reitoria da universidade para participar de uma manifestação na verdade apenas para assistir a ela contra o fato de terem escolhido para ministrar a aula inaugural o banqueiro Clemente Mariani um milionário baiano de nome conhecido que por amizade e laços de parentesco hospedava em sua mansão de Salvador o governador da Guanabara Carlos Lacerda Lacerda era o maior inimigo do governo Goulart e do ideário reformista Tendo iniciado a vida como comunista ele terminara por ver melhor adaptada sua ambição de tornarse presidente ao projeto do capitalismo internacional americano e fizera oposição ferrenha ao trabalhismo e ao nacionalismo de Vargas chegando mesmo a ser o principal responsável pela queda deste Ele foi o mais brilhante político da direita brasileira e sua passagem pelo Rio como governador não pode ser considerada menos do que marcante do ponto de vista administrativo Era um orador vibrante e culto e aparentemente era querido pelas solteironas viúvas e senhoras de meiaidade conhecidas como malamadas Sem dúvida ele tinha um projeto para o Brasil pela via capitalista e de colaboração com os Estados Unidos na guerra fria Os próprios filhos dessas senhoras que eram suas cultoras o abominavam ele era o inimigo número um das esquerdas e portanto dos estudantes A aula que seu amigo Clemente Mariani proferiria aquela noite não aconteceu pois uma horda juvenil invadiu o salão nobre da reitoria e deu a palavra a um jovem líder de que gostávamos muito um negro retinto chamado Betinho hoje membro do PDT de Brizola e conhecido como Caó que falou do meio da platéia Encontrei Dedé ali para minha alegria e me parecia delicioso que ela fosse tão mais participante do que eu Ela gritava as palavras de ordem com entusiasmo e parecia conhecer todo o mundo enquanto eu apenas assistia mais impressionado com ela do que com a manifestação Dali saímos em passeata até a praça municipal onde o prefeito da cidade o santamarense Virgildásio Senna subiu ao palanque improvisado para reiterar seu apoio aos estudantes e ao presidente Goulart e seu conseqüente repúdio à presença de Lacerda entre nós Poucas semanas depois viria o golpe que Lacerda encomendava sugeria e afinal colaborou para arquitetar E logo em seguida Dedé e eu estávamos levando clandestinamente não sei que papéis para entregar a Ernest Widmer diretor dos Seminários Livres de Música da Universidade o qual agiu segundo Laís Salgado que nos tinha incumbido da tarefa com muita coragem e com surpreendente lealdade aos estudantes brasileiros de esquerda embora ele fosse um músico suíço de vanguarda cuja posição política era desconhecida O primeiro governo militar ficou nas mãos do hoje tido como sensato e mesmo valoroso marechal Castelo Branco um expracinha que desejava ver o Brasil seguindo as pegadas dos Estados Unidos O homem que ele escolheu para ser seu ministro do Planejamento ironicamente um hayekiano por princípio inimigo da própria noção de planejamento da economia por parte do Estado Roberto Campos um economista saído da diplomacia tem sido até hoje a grande cabeça da direita brasileira O ministro da Fazenda era Gouveia de Bulhões mas o nome de Roberto Campos passou a ser sempre mais repetido Sabe se hoje muito sobre a participação da CIA na armação dos governos militares latinoamericanos dos anos 60 e 70 Mas tudo indica que as esquerdas tendiam a superestimála Não parece ter havido um envolvimento dos americanos no 64 brasileiro como veio a haver depois no Chile para a derrubada de Allende As suposições de que vasos da força naval americana estariam a postos ao largo das nossas águas territoriais para o caso de se fazerem necessários parecem ter origem apenas em descrições de fictícias estratégias rotineiras Ou pelo menos é o que o jornalista Paulo Francis muito lúcido e muito desabusado mas também muito suspeito por ter tirado abusivas vantagens da moda de apregoaremse opiniões reacionárias em todos os níveis nos faz crer com a análise do golpe que apresenta em seu livro Trinta anos esta noite Nos dois ou três dias subseqüentes ao 1º de abril de 1964 falouse em resistência liderada por Brizola o valente exgovernador do Rio Grande do Sul cunhado do presidente deposto Isso trazia ansiedade mas também servia de antídoto para a depressão Até hoje ninguém sabe exatamente por que João Goulart não reagiu ao golpe absolutamente Ele apenas retirouse para sua fazenda na fronteira com o Uruguai Os militares entraram assegurando que seu governo seria provisório e breve apenas o tempo necessário para livrarnos do comunismo estabilizar a economia e acabar com a corrupção Castelo Branco não só tentou se ater a esse programa como de fato inaugurou a ciranda de presidentes militares eleitos indiretamente para cumprir um período limitado Mas ao prorrogar seu mandato para além das eleições que deveriam vir em 65 ele assegurou a permanência do poder em mãos militares e destruiu as lideranças civis de direita e centrodireita mormente Carlos Lacerda que tinham engendrado o golpe junto com eles Em 64 nós não teríamos parâmetros para julgar a situação em que estávamos Castelo que em retrospecto parece sensato e produtivo era então a encarnação do mal ainda não conhecíamos Garrastazu Médici Nem ao menos achávamos que podíamos acreditar nas palavras de Castelo quando este dizia que não se demoraria na presidência Uma ditadura militar tinha se implantado e uma semana depois já a víamos estável Na verdade a grande imprensa toda saudara a derrubada de Goulart As passeatas das senhoras católicas marchas da Família com Deus pela Liberdade se sucediam em todas as grandes cidades brasileiras Claro que muitas pessoas comuns comentavam essas demonstrações em tom sarcástico E piadas antimilitares muito cedo circulavam em todos os ambientes Não tínhamos a impressão de que um verdadeiro Brasil anticomunista se revelara em oposição ao Brasil imaginário em que tínhamos vivido até então Parecianos mais que á parte os interessados diretos na manutenção dos privilégios as marchadeiras e seus estimuladores o grosso da população desprezava os militares e submetiase apenas por medo e modéstia Claro que em larga medida estávamos enganados Mas também é claro que as manchetes dos jornais não traduziam o sentimento das pessoas de classe média que eu conhecia por mais estranho que lhes fosse o ideário comunista Entre 64 e 68 o movimento cultural brasileiro não apenas intensificouse ele tomou uma feição ainda mais marcadamente esquerdista por unir autores atores cantores diretores peças filmes e público numa espécie de resistência do espírito contra a ditadura Nós por exemplo estreamos no Teatro Vila Velha ainda no segundo semestre de 64 Como já contei Bethânia foi lançada em nível nacional no musical Opinião um show de bolso de esquerda populista nacionalista O Cinema Novo cresceu justamente a partir de Deus e o Diabo na Terra do Sol concluído em 64 Política nunca foi o meu forte Mas vime em meio a uma perene exigência de caracterização política das criações artísticas e dos atos individuais Quando eu tinha uns sete anos de idade comentei à mesa que a professora tinha ensinado que os comunistas eram maus Meu pai enchendome de orgulho por falar comigo de igual para igual me disse que não ouvisse esse tipo de conversa pois os comunistas eram em geral homens inteligentes que lutavam pela justiça entre os homens A cara dele parecia enraivada mas era evidente que ele não estava zangado comigo e sim com a professora que quisera me assustar Aprendi para sempre com esse episódio a desconfiar dos anticomunistas Havia no tom de meu pai uma cumplicidade na grandeza uma profissão de fé pela grandeza e um reconhecimento dela em mim que me encheu de orgulho Cresci vendo no anticomunismo uma reação da mediocridade contra tudo o que pudesse haver em mim de grandioso Meu pai orgulhavase de no fim da guerra o Carnaval da vitória ter feito meu irmão Roberto então pequenino enganchado sobre seus ombros levar a única bandeira da União Soviética do desfile em Santo Amaro Ele o fizera acintosamente para mostrar insubmissão ao anticomunismo católico reinante tomando posição independente no nascedouro da guerra fria Por outro lado na parede da sala de jantar de nossa casa viase uma fotografia de Franklin Delano Roosevelt Meu pai dizia que essa homenagem que durou talvez uns poucos anos se devia ao fato de esse presidente dos Estados Unidos ter sido um grande defensor da democracia Assim o antiamericanismo encontradiço entre os simpatizantes comunistas tampouco era alimentado por meu pai Encontrei mais tarde muitos militantes de esquerda que o eram contra o anticomunismo paterno assim como os que ao contrário apenas continuavam uma tradição de família Mas me chamaram muito a atenção aqueles que pressionados por uma voga esquerdizante tinham violentado preconceitos domésticos e uma vez relativizados esses valores exibiam um alivio um tanto ridículo por poderem voltar a concordar com os pais burgueses e as tias beatas Hoje que o comunismo parece ter se provado um fracasso histórico casos desse tipo se multiplicam e têm expressão pública No final dos anos 60 período do tropicalismo as idéias da nova esquerda referentes a liberdade sexual mudanças comportamentais etc aliadas à revalorização de Hollywood e do rocknroll davam espaço a que se exibisse desprezo pelos comunistas ortodoxos O Partidão era careta Além de sempre atrelado ao que parecesse útil a Moscou na política interna convencional praticada em cada pais A Revolução Cubana que nos aparecia como uma promessa de socialismo mulato nos trópicos sem as sombras cinzentas da Europa do Leste não contara em Cuba com o apoio do PC Acreditávamos parafraseando o dito leninista de que o esquerdismo é a doença infantil do comunismo que os estudantes franceses brasileiros e americanos em sua identificação com Fidel contra o PC e com Guevara contra Fidel curassem as esquerdas da doença senil do comunismo ortodoxo Em 67 e 68 quando o presidente militar era Artur da Costa e Silva exministro do Exército e competidor de Castelo Branco as declarações coletivas de repúdio à ditadura saíram das salas de teatro para as ruas As demonstrações cresciam e as lideranças estudantis surgiam nas reportagens da grande imprensa Claro que o maio de 68 na França tinha sido um show jornalístico e o movimento brasileiro se beneficiou disso Mas nunca entendi bem como Costa e Silva que era considerado duro em comparação a Castelo revelouse tão receptivo às manifestações contrárias ao regime Na verdade ele ganhou rapidamente uma fama de pouco inteligente algo desleixado e amante do jogo Sua mulher d Yolanda era uma personagem simpática em suas manifestações de gritante mau gosto Nós os tropicalistas dizíamos às vezes entre nós que ela era a musa do movimento Eu guardava uma fotografia dela colorida de página inteira cumprimentando Indira Gandhi quando da visita desta ao Brasil O contraste entre a dignidade milenar do estilo da asiática e a vulgaridade da primeiradama brasileira num vestido rabodepeixe longo multicor e executando um gesto de munheca típico de vedetes era tão vivo que quase começávamos a pensar que em tais extremos devia haver algo do que nos orgulharmos Ela era camp Ou achar graça nela o era Um estudante chamado Edson Luis foi morto por policiais no Rio numa manifestação no restaurante universitário e isso desencadeou uma onda de indignação que levou lideranças estudantis religiosas operárias e artísticas a organizar uma passeata de protesto pondo mais de 100 mil pessoas nas ruas Gil e eu viajamos de São Paulo para participar Havia dúvidas sobre se a demonstração seria reprimida e se o seria com violência Mas a única presença perceptível do aparelho de repressão era um helicóptero do exército que seguia do alto a passeata Alguns dos participantes repetiam com orgulho que a repressão tinha se retraído em face do enorme número de manifestantes e de nomes de primeira linha da cultura brasileira entre eles Depois dessa passeata muitas outras menores se seguiram Em São Paulo sentiase uma grande indiferença e até hostilidade por parte da população enquanto no Rio tinhase a impressão de que a cidade apoiava as paradas Papel picado caia dos prédios do centro da cidade e o clima era de total simpatia Mas a Policia Militar crescentemente reagia a essas manifestações Um episódio me parece muito significativo Numa das noitadas de conversa e cerveja do 2002 Waly Luis Tenório um amigo de Dedé desde Salvador que mais tarde se tornaria um renomado psicanalista e eu ficamos acordados até o dia nascer e continuamos falando sem parar até quando o sol já ia bem alto De repente percebemos um alarido vindo da rua Olhando do nosso vigésimo andar vimos tratarse de uma passeata de protesto estudantil contra a ditadura Decidi descer para ver de perto Waly e Tenório me acompanharam O cortejo seguia pela avenida Ipiranga e ao alcançar a praça da República foi interceptado por destacamentos policiais em imensos carros blindados os chamados brucutus e dispersouse numa correria Muitos estudantes eram alcançados por policiais que os espancavam Meus dois amigos seguiam a meu lado calados e tensos Eu estava usando um casaco militar europeu antigo um casaco de general sobre o torso nu jeans sandálias e um colar índio feito de dentes grandes de animal Meu cabelo estava enorme e emaranhado indo alto acima da cabeça e quase chegando aos ombros Minha figura era surpreendente para a hora e o local os homens de cabelos muito longos ainda eram raros e se mostrava mesmo assustadora para a maioria das pessoas de quem me aproximava Eu interpelava os passantes protestando contra sua indiferença medrosa e quem sabe seu apoio íntimo em face da brutalidade policial Homens e mulheres apressados tinham medo dos manifestantes dos soldados e de mim Eu estava seguro de que naquela situação ninguém me tocaria um dedo Sentiame possuído por uma ira santa Na verdade as pessoas não saberiam como situar essa estranha aparição em meio à instabilidade produzida pelo confronto entre estudantes e militares Ninguém me enfrentaria absolutamente naquela circunstância todos me ouviam com o ar assustado de quem está disposto a engolir qualquer desaforo para safarse E desaforos era o que ouviam Por outro lado os soldados dificilmente focariam sua atenção em mim eu andava em sentido contrário aos estudantes fugitivos na verdade tangenciando o olho do furacão e minha aparência não seria computada como sendo a de um dos manifestantes Eu falava alto e exaltadamente mas nenhum soldado se aproximaria de mim o suficiente para me ouvir Voltei para casa ainda ralhando com os passantes enquanto os grupos em confronto se dispersavam não sem que o brucutu levasse alguns presos Eu estava consciente de estar encenando um happening Era uma performance extravagante e séria que se dava à luz do sol Sempre que leio comentários a respeito do narcisismo dos manifestantes do Maio francês do caráter mais teatral do que político daquelas manifestações penso em como tinha sido afinal de contas coerente que eu tivesse aceito a sugestão de Guilherme de fazer de É proibido proibir uma canção Mas nessa estranha descida à rua eu me sabia um artista realizando uma peça improvisada de teatro político De com licença da palavra poesia Eu era o tropicalista aquele que está livre de amarras políticas tradicionais e por isso pode reagir contra a opressão e a estreiteza com gestos límpidos e criadores Narciso Eu me achava nesse momento necessariamente acima de Chico Buarque ou Edu Lobo de qualquer um dos meus colegas tidos como grandes e profundos Nesse clima de ânimos exaltados e ruas conflagradas é que o auasca assim é que se chamava a bebida que Carlos Marques trouxera da Amazônia fez sua aparição Gil depois dessa experiência solitária no vôo RioSão Paulo propôs que fizéssemos todos uma viagem em conjunto Ele veio para o meu apartamento com a garrafa e serviu a cada um a quantidade que Marques Marx tinha recomendado pouco mais de meio copo Minha primeira experiência com uma droga que não fosse álcool ou tabaco tinha sido uma catástrofe Aos catorze anos no primeiro Carnaval que passei em Santo Amaro depois de voltar do meu ano no Rio Luis César um companheiro do ginásio que já fora meu colega no curso primário propôs que tomássemos um porre de lançaperfume juntos O lançaperfume era um sinônimo de felicidade para mim Vendido em garrafinhas de metal dourado ou de vidro com um dispositivo para fazer com uma pressão do polegar esguichar um jato fino de perfume que gelava a pele que tocasse esvanecendose em segundos ele era um elemento que ampliava a magia do Carnaval porque trazia antevivências de paixões amorosas em princípio ele existia para ser apontado por nós para meninas que se sentiriam fugazmente geladas perfumadas e lisonjeadas ou assim esperávamos e uma sugestão olfativa de sonho Meu pai comprava uma garrafinha para cada um de nós que respeito ele tinha pelo Carnaval mas diversas vezes o ouvi recriminar o uso que se fazia do seu conteúdo como entorpecente e frisar que podia causar uma parada cardíaca Sem embargo eu ouvia de alguns conhecidos mais velhos inclusive meus irmãos elogios à maravilhosa sensação do porre Assim quando Luis César me propôs a experiência embora eu resistisse por muito tempo chegou um ponto em que a curiosidade foi maior que o medo Aspirei o lenço embebido no líquido e em um segundo era a pessoa mais infeliz sobre a face da terra Toda a praça iluminada mergulhou numa escuridão que se originava em mim e um zumbido em meus ouvidos de intensidade regularmente oscilante mas também regularmente crescente me levava a sentirme perdendo o mundo e perdendome para o mundo O mais feroz pavor infantil de aniquilamento tomou conta de mim nesses segundos que pareceram durar uma eternidade pois à medida que eu afundava mais e mais na escuridão e na zoeira eu era como que gradualmente desfeito de tudo menos da lucidez para observar dilacerado o horror que estava me acontecendo Luís César foi e voltou de seu mergulho sem demonstrar grande gozo ou grande sofrimento Suas primeiras palavras denotavam um mero aumento da curiosidade a respeito do que se podia extrair de interessante do lançaperfume como droga A imensurável alegria que ia se apossando de mim à medida que eu percebia que estava voltando à vida não foi bastante para impedir que imediatamente depois de refeito eu entrasse numa espécie de depressão que estragou meu Carnaval de 57 e em certa medida todos os meus dias dali em diante Eu visitara um inferno onde o absurdo insuportável de uma alma sem corpo e de uma consciência sem objeto se me apresentara como uma evidência terrível odiei para sempre a idéia de que possamos seguir sendo nós mesmos depois da morte Ainda hoje cada vez que ouço alguém falar de espíritos de parentes ou conhecidos mortos que tentam se comunicar com os vivos me angustio só de imaginar a situação Sinto pena dos mortos e raiva dos vivos que aventam com leviandade uma possibilidade tão horrorosa Gil Dedé Sandra Péricles Cavalcanti Rosa Maria Dias então mulher de Péricles Waly Duda e eu cada um tinha sua dose de auasca Todos tomaram Menos eu que anos depois dessa experiência com o lançaperfume e pouco mais de um ano antes dessa noite tivera um sofrimento igualmente infernal por causa de maconha Tinha sido uma negra americana que vivia em Salvador ou ali tinha um apartamento alugado aonde vinha de Nova York para passar semanas uma mulher muito interessante cujas atividades na cidade nunca conseguimos precisar quem nos iniciara a mim e a um grupo de amigos baianos na marijuana Ela tinha grandes quantidades de erva de primeiríssima qualidade cabeça de negro e deu um cigarro a cada um Sem saber que isso era muito fumei o cigarro inteiro puxando com força e segurando a fumaça no pulmão como ela ensinava Como eu nada sentisse procurei seguir suas instruções à risca Depois de findo o cigarro ainda dizendo que não sentia nada levanteime para ir até a janela De vez a luz caiu era dia meu coração disparou minha boca secou e meu corpo ficou dormente sobretudo as pernas O susto foi muito grande e cheguei à janela esperando que aquilo passasse logo Vi as pedras do calçamento como que coladas ao parapeito do terceiro ou quarto andar em que estávamos Percebi que aquilo estava apenas começando Nenhum dos meus amigos igualmente iniciantes teve reação parecida Imediatamente demonstrei meu desespero e eles a partir daí passaram a se concentrar em cuidar de mim Eu me sentia longe e tinha uma saudade enorme das mesmíssimas pessoas que estavam ali comigo Sentia uma saudade desesperada da Bahia de mim mesmo de Dedé da vida Me deram doce leite laranjada Nada me fazia melhorar Por umas cinco horas sofri como louco Quando comecei a perceber que voltava um amor não há outra palavra muito intenso tomou conta de mim tendo como objeto as pessoas que estavam ali todas e cada uma as paredes os móveis o chão da casa depois o bairro da Barra o mundo Não era apenas a felicidade de recuperar em mim essas coisas eu sabia que o sentimento também era sublinhado pelo tipo de embriaguez produzido pela droga Mas as horas intermináveis de angústia e a modificada sensação do tempo fez com que elas parecessem milênios me deixaram traumatizado e eu me prometi que nunca mais fumaria aquilo outra vez Essa sessão de maconha me trouxera à memória com vivacidade o horror vivido com o lançaperfume Agora eu estava ali diante do único copo de auasca que não fora esvaziado Tinha ouvido a argumentação de Gil para me convencer diferentemente da maconha o auasca não produzia queda de percepção da luz dormências embriaguez ou taquicardia A gente ficava lúcido e aos poucos começava a perceber as coisas com mais intensidade as cores as texturas as relações entre as formas e às vezes víamos coisas que sabíamos não serem reais embora as víssemos com nitidez Por um desejo de libertarme do medo por curiosidade por necessidade de compartilhar peguei o copo e engoli todo o conteúdo que me era destinado A beberagem espessa e amarelada tinha gosto de vômito mas não me causou náuseas Fiquei tranqüilo esperando De fato nada aconteceu de comparável ao tapa da maconha Apenas comecei a achar cômica a música do Pink Floyd que Gil pusera no tocadiscos Ela me soava superficial e gaiata e eu ria entendendo muito bem por que ela me soava assim Logo o carpete de náilon do quarto do som apresentou seu modo peculiar de ser cada tom de cor neutra palha areia gelo cinza e mil subbrancos dizia de si muitas coisas fosse sobre a velocidade das vibrações que produziam sua aparência fosse sobre a tolice dos homens que buscavam fingir beleza fosse sobre a unicidade do momento em que estávamos nos encarando Eu me demorava observando os objetos e me maravilhava de quão fundo os podia entender Sabia tudo sobre aquele pedaço de madeira que aparecia sob o tapete Captava o sentido das variações de densidade entendia a história de cada pedaço de matéria Comoviame com o drama de cada ser inanimado que se me apresentava não era como se eles tivessem consciência antes era como se eu fosse uma consciência que tudo atravessa sendo inclusive consciência profunda dos entes sem consciência As vezes me parecia possível perceber como é que as moléculas se juntavam para resultar nessa ou naquela manifestação perceptível pano plástico papel Eu acompanhava o trabalho dos átomos do acaso e das convenções na criação dos seres reconhecíveis E não me sentia mal Pelo contrário Consciente de que já estava sob a ação da droga eu simplesmente observava com uma curiosidade quase alegre as mudanças que minha gradativa mudança impunha ao mundo As outras pessoas começaram a se mover de modo a me chamar a atenção Por algum motivo eu me isolara inicialmente e não tivera vontade de nada dizer nem perguntar a ninguém Sandra entrava e saia do quarto do som com os olhos duros e o rosto sério Ela estava assustada Eu a achava parecida com um índio Gil estava com lágrimas nos olhos e falava alguma coisa sobre morrer ter morrido não sei Dedé circulava pela sala dizendo que se via a si mesma em outro lugar Eu fiquei muito feliz de observar que as pessoas eram tão nitidamente elas mesmas Fechei os olhos Uns pontos de luz coloridos surgiram no espaço ilimitado da escuridão Eles se organizavam em formas agradáveis Eu disse a Gil É tão bonitinho É tudo simétrico E eu mesmo achava graça nas palavras escolhidas E mais ainda entendia que esse é tudo se referia àquilo que de fato é Eu não estava dizendo o que eu vejo é bonitinho e é simétrico mas o que é é bonitinho e simétrico Eu tinha toda a calma do mundo para interpretar nesses termos o que eu mesmo dizia Voltava então a fechar os olhos Os pontos estavam mais e mais ricamente organizados Eram luzes concentradas de cores gostosamente definidas O modo como eles se organizavam parecia ao mesmo tempo inevitável e livremente decidido por mim Eu queria o que acontecia eu desejava tal ou qual movimento e isso era imediatamente fatal Formas circulares eram compostas por lindos pontos luminosos dançantes Aos poucos eu sabia quem era cada um desses pontos E em breve eles de fato se mostravam como seres humanos Eram muitos de ambos os sexos todos estavam nus e tinham aspecto de indianos Essas pessoas dançavam em círculos de desenhos complicados mas eu não só podia entender todas as sutilezas dessa complicação como tinha tranqüila capacidade de concentração para saber sobre cada uma das pessoas tanto quanto eu sei de mim mesmo ou de meus próximos mais amados Dizer que essas figuras dançavam em círculos é tentar traduzir para uma linguagem ordinária a sensação de completude absoluta que as formas por elas descritas produziam Eu alternava com abrir e fechar os olhos observação do mundo exterior e vivência desse mundo de imagens que se tornava cada vez mais denso De fato aos poucos eu reconhecia que os seres vistos com os olhos fechados eram indubitavelmente mais reais do que meus amigos presentes no quarto do som ou as paredes desse quarto e os tapetes A própria concepção de espaço o quarto no apartamento na cidade no mundo as distâncias entre as pessoas a dimensão dos móveis se mantinha ao preço de um reconhecimento irônico de sua precária convencionalidade O tempo era igualmente criticado por essa instância mais alta em minha consciência lúcida com benevolência e sem nenhuma angústia eu sabia que o fato de estar ali vivendo aquele momento era irrelevante diante da evidência de que eu já tinha ou teria nascido vivido e morrido e também jamais existido embora a percepção do meu eu naquela situação fosse uma ilusão inevitável Dedé me chamou para ir até a varandinha atapetada e envidraçada que ficava junto à sala de visitas Ela queria me mostrar uma coisa impressionante São Paulo à noite vista da janela do nosso vigésimo andar enquanto estávamos sob o efeito do auasca Não sei o que ela via Era óbvio que sem nos explicarmos muito externávamos reações muito semelhantes A mim impressionoume sobretudo a sensação de que a cidade estava era morta Não que fosse triste e muito menos feia Era algo imenso metálico brilhante apesar de escuro tudo parecia negro mas diferentemente de Dedé dos amigos do apartamento e até do tapete de náilon sobretudo dos anjos hindus que eu via por trás de minhas pálpebras não parecia ter vida Voltei ao quarto do som e retomei a experiência celestial dos olhos fechados Quando alguns anos depois li As portas da percepção e Céu e inferno de Aldous Huxley recebi com rápida naturalidade suas observações sobre o papel da cor na aferição pela mente da realidade do percebido O pretoebranco ou qualquer monocromatismo é a marca mesma da representação da abstração da irrealidade A cor antes de nos aparecer como um mero atributo como alguns amigos meus argumentaram contra Huxley tem o gosto do real quando captado pela visão Sem dúvida usamos automaticamente a cor como prova de realidade Há vários outros indicadores constância correspondência interestésica etc que asseguram o real e o opõem às alucinações às ilusões e aos sonhos Chegamos a uma intuição de evidência da realidade No caso dessas visões obtidas com o auasca sobretudo por causa da cor e a despeito de não haver nenhuma manifestação sonora tátil ou olfativa erame evidente que o que eu via de olhos fechados era mais real do que o que eu via de olhos abertos Mas o que quer dizer mais real Eu podia me ver vendo o que via e embora sabendo que tudo eram instâncias ilusórias era capaz de julgar o que se aproximava mais do real absoluto Não havia nenhuma desvalorização do real cotidiano eu sabia de mim dos meus e do mundo e minha capacidade de amor por tudo isso estava muito aumentada Apenas eu entrara em contato com um nível de realidade mais funda e mais intensa E o fato de eu poder amar com mais força o que aí se apresentava contribuía para a intensificação do meu amor pelo mundano comum Eu me sentia feliz Mas essa felicidade embora sentida com arrebatamento também era vista de longe como um mero aspecto desse mundo menos real do que aquele dos anjos hindus Estes eram também reconhecidos como meus ancestrais eram todas as pessoas que existiram para que eu chegasse a ser Eram também todas as pessoas que realmente existiam Diferentemente de nós elas existiam desde sempre e para sempre o círculo sem fim de sua dança porque era um círculo embora não se vissem seus limites e ainda que ele não fosse bidimensional não era uma esfera era um movimento de aproximação do absoluto Nós éramos contingentes elas eram necessárias De fato logo elas descreviam em sua dança a formação de um centro de tudo algo que sem deixar de ser uma multidão de dançarinos nus era ao mesmo tempo um rosto e uma fonte Eu sabia que me aproximava do sentido último de todas as coisas Daquele rosto emanava perenemente tudo Aquela fonte olhava e sabia Os anjos não simplesmente emprestavam seus corpos nus para que o desenho se realizasse seus semblantes amáveis a qualidade da cor de sua pele o estilo de seus movimentos comunicavam a idéia de face e de fonte Eles traziam em seus olhares e seus gestos é preciso relembrar que eu sentia conhecêlos cada um individualmente a mensagem de poder sabedoria inevitabilidade e grandeza da cara da pessoafonte Não sei se tive diante dessa representação da idéia de Deus o súbito retraimento de quem aprendeu que a face do Criador não pode ser contemplada O fato é que num dado momento considerei que talvez me tivesse deixado ir longe demais Uma outra possibilidade de interpretação que minha lembrança autoriza é a de que naquele momento o efeito do auasca começou a dar mostras de extinguirse Porque eu não quis deixar de ver o ser central que se revelava o que eu quis repentinamente foi deixar de ter visto tudo o que vira sentido tudo o que sentira Um enorme cansaço combinado com uma enorme excitação me deixou em estado de desespero Decidi abrir os olhos e sair do quarto do som onde estivera quase todo o tempo e ir para a sala de jantar Mas a idéia da infinidade de processos mentais complexos que isso implicava me paralisou Então tive medo de não ser mentalmente capaz de decidir e realizar a decisão de dar dez passos Compreendi com a mesma lucidez com que pude compreender tudo o que vira sob o efeito do alucinógeno que estava louco Em suma já não era capaz de voltar a sentirme integro como enquanto via anjos e átomos sem perder o mundo nem de voltar a integrarme nesse mundo cuja realidade fora posta em questão De todo modo minha mente estava exausta das operações estéticas lógicas e afetivas a que se dedicara com tanta espontaneidade Eu sentia a mesma saudade das pessoas e das coisas que tinha experimentado com o lançaperfume e com a maconha só que em vez de sentirme como um fantasma numa zona penumbrosa na periferia da vida sentiame vivo demasiado vivo cheio de nervos ativos e em incontrolável desordem Arranqueime da imobilidade com violência mas percebi com grande decepção que isso não me trouxe de volta a inteireza do eu O modo brusco como me movi e os gritos com que tentei me comunicar explicando o que sentia logo preocuparam meus amigos que a partir desse momento pois todos já estavam também voltando da viagem passaram a cuidar de mim procurando acalmarme por meio de carícias ou repreensões Lembro de Duda falando muito sério como a dar à minha possível capacidade de autocontrole uma característica de responsabilidade moral E Dedé falando pouco omitindose arriscando investidas esporádicas esperando captar um momento bom para ser útil de fato Como em retrospecto vejo esses dois sendo tão caracteristicamente eles mesmos Eu sabia que já não sabia quem o que era eu Pedi então que Dedé me levasse ao espelho do banheiro Vendome pensei reconquistome Mas o que vi no espelho embora na lembrança eu reconheça como tendo sido exatamente meu rosto nem mais nem menos me pareceu uma imagem indecifrável O fato de mesmo então eu saber que essa imagem indecifrável era não uma deformação decorrente de alucinação mas meu rosto de sempre me dava a certeza de que estava louco Esse eu que tinha tal certeza era como que indestrutível ele não fica louco não dorme não morre não se distrai Eu sofria com a percepção intelectual e sensorial da existência como se sofre ao ouvir um giz que range sobre o quadronegro ou uma unha sobre o vidro Por algumas horas andei de um lado para outro do apartamento vivendo no inferno O mal com efeito era vivido como eterno A intensidade da dor se multiplicava com a perspectiva de sua perpetuação e o reconhecimento de sua duração já longuíssima Curiosamente de todos os amigos presentes apenas um me volta sempre à memória como estando de algum modo ligado seja como indutor ou mero espectador aos primeiros momentos de esperança de melhora Waly Salomão com sua cara larga sua modéstia autêntica escondida sob um egocentrismo espetaculoso sua doçura acuada pelo brilhantismo e pelas reações às vezes injustas parece que estava qualificado para darme as boasvindas de volta à vida Waly me fora anunciado como João Gilberto um colega do clássico Wanderlino me disse que eu que gostava de coisas loucas precisava conhecer um sujeito maravilhoso um conterrâneo seu da cidade de Jequié no interior da Bahia que tinha muito a ver comigo Ficou de trazêlo até o Severino Vieira Waly estudava no Central para fazer as apresentações Depois de uns dois alarmes falsos finalmente nos encontramos Wanderlino falaralhe também de mim Waly não me decepcionou mas me parece que embora não o tenha desagradado eu não o entusiasmei Wanderlino sabia mais do que nós em pouco tempo Waly e eu tínhamos nos tornado amigos e o somos até hoje Sua capacidade de surpreender com associações de idéias insuspeitadas e reveladoras seu humor genuinamente anárquico e de uma inteligência que mete medo enfim toda a sua imensa energia tão destrutiva quanto enriquecedora me apaixona Nesse dia da viagem de auasca percebi com clareza o que já vislumbrava desde sempre essa fúria e festa permanente também me comove Não foi uma volta segura Sentado com Waly na varandinha atapetada com o sol já entrando pelas vidraças eu tateava em direção à resignação a uma aliança provisória e precária com o real Acho que todos os outros inclusive Dedé tinham ido dormir tranqüilizados com minhas mostras de retorno à normalidade A cara de Waly seu clima de doce seriedade o exato oposto de sua persona habitual ficou relacionada para mim aos momentos em que a frágil felicidade se apresentava como possível Como no caso do lança perfume mas de modo muito mais complexo a suave alegria de voltar à vida era estragada pela certeza de que a experiência recém finda representaria uma ameaça para sempre De fato por mais de um mês eu me senti vivendo como que um palmo acima de tudo o que existe E por mais de um ano certos resquícios específicos se mantiveram Na verdade algo de essencial mudou em mim a partir daquela noite Dos quatro baianos a única que ainda não tinha atingido o estrelato apesar do prestigio entre músicos e amantes da bossa nova era Gal Uma tarde acompanhandoa a um ensaio para um programa importante da TV Record oportunidade que vinha se mostrando difícil para ela deparamonos com um sumário cancelamento de sua escalação Indigneime com o desrespeito com que a trataram e submeti minha própria apresentação à dela Os produtores presentes não me deram ouvidos e então mandei dizer a Paulinho Machado de Carvalho que ele metesse a televisão dele no cu Saí e nunca mais cantei na Record a não ser já nos anos 90 numa edição saudosista do talk show de Ronnie Von o antigo Pequeno Príncipe dos anos 60 quando a emissora já não tinha nem importância nem audiência embora a conversa com Ronnie Von tenha tido importância afetiva para mim Eu realmente odiei o cinismo do star system exibido no episódio e apostei tudo na qualidade do canto de Gal que tal cinismo ameaçava Mas havia uma situação mal resolvida entre nós e a direção da emissora que servia de pano de fundo para a cena Todos os grandes acontecimentos surgidos nos festivais se transformavam automaticamente num programa semanal em horário nobre Fora assim com Elis com Nara e Chico com VanDré com o próprio Gil pré tropicalista Os tropicalistas no entanto pareciam deixar os chefes sem saber o que fazer embora todos nos corredores da Record falassem num programa a ser liderado por mim Em algumas conversas com o próprio Paulinho Machado de Carvalho eu notara a insegurança diante das idéias esboçadas Eu e Gil queríamos levar o que insinuamos com Alegria alegria e Domingo no parque às últimas conseqüências Um programa semanal de uma hora era muito poder demais para ir parar nas mãos de quem tinha planos assim tão audaciosos Tanto Paulinho quanto os principais produtores da emissora nos tratavam com carinho e pareciam sinceramente nos querer bem Isso não significava que quisessem pôrse em risco por nossa causa Com a minha súbita saída da Record que Guilherme pegado de surpresa acolheu com uma corajosa receptividade inimaginável em qualquer outro empresário Gil também decidiu desligarse e logo tínhamos um convite da TV Tupi para realizarmos ali o nosso programa Guilherme tinha como fórmula máxima de elogio a expressão divino maravilhoso não raro complementada com um internacional se o entusiasmo o exigisse Essa marca de frivolidade era tomada meramente como tal por todos no nosso meio Resolvi usála também a título de homenagem aos aspectos grandiosos da personalidade de Guilherme como mote para a canção que Gil e eu estávamos preparando para Gal cantar no próximo festival da Record os participantes do festival não precisavam ser contratados da emissora Gal cantaria nossa composição e mesmo que fizesse sucesso não assinaria com a Record e viria conosco para a Tupi A canção trazia sugestões do clima de rebeldia estudantil contra a ditadura e quase prefigurava em suas imagens violentas a luta armada A melodia era deliberadamente o pop mais doce e pegadiço Mas as palavras chamavam uma menina quantos anos você tem para participar de algo não dito mas que requeria a atenção para as janelas no alto Atenção ao pisar o asfalto o mangue Atenção para o sangue sobre o chão tudo convergindo para o refrão que se anunciava explicitamente Atenção tudo é perigoso Tudo é divino maravilhoso Atenção para o refrão É preciso estar atento e forte Não temos tempo de temer a morte Gal deulhe uma interpretação vibrante que marcou a virada de seu estilo incluindo um repertório de sons vocais inédito entre nós do qual não estavam ausentes nem os grunhidos de Janis Joplin nem os guinchos de James Brown Divino maravilhoso também foi o nome que escolhemos para o programa que estrearíamos na TV Tupi Essa emissora a mais antiga do Brasil não era tão vista quanto a Record e sobretudo não tinha tradição de trabalhar com música Os programas eram idealizados por mim e dirigidos por Fernando Faro um pioneiro da TV de vanguarda entre nós mais Antônio Abujamra e Cassiano Gabus Mendes ambos grandes nomes do teatro e da televisão brasileiros Teríamos como participantes fixos do programa Os Mutantes Gal e Tom Zé além de Gil e eu Tivemos como convidados Jorge Bem Juca Chaves um cançonetista satírico que surgiu durante a bossa nova e embora inicialmente confundido com ela era o antibossanovista por excelência e Paulinho da Viola que tampouco se identificava com a bossa nova Eu participava das reuniões de criação na TV Tupi e dos ensaios e dos próprios programas com o coração gelado estava consciente do valor de cada idéia de cada decisão mas não as vivenciava eu mesmo afetivamente o auasca tinha me feito passar a viver numa espécie de universo paralelo em que eu mantinha os meus velhos interesses tinha as mesmas reações de antes a mesma inspiração o mesmo tesão a mesma insônia mas estava fora disso tudo Viame viver mas intimamente não cria Sabia que a vida não é real e que não existe nada para se pôr em seu lugar Paradoxalmente sentiame bastante triste com isso Uma tristeza serena e estável que não servia para aquecer a existência Por vezes revoltavame mas mantendo a mesma frieza contra o auasca e suas visões mirações como as chamam os que hoje o tomam ritual e regularmente Arrependiame de ter bebido a droga Às vezes meditava sem entusiasmo sobre o sentido religioso da experiência Lembravame das piadas teológicas de Rogério Eu não creio em Deus mas eu vi ou É óbvio que Deus não existe mas a inexistência de Deus é apenas um dos aspectos de sua existência Sobretudo considerava a ironia de eu mesmo ter inventado o brado Deus está solto para acompanhar junto com o poema místicosebastianista de Pessoa a apresentação de É proibido proibir Todas essas observações surgiam indiferentemente em minha cabeça Mas com o passar do tempo comecei a indagar com mais empenho sobre o que se passara A medida que eu me tornava de novo capaz de integrarme mais verdadeiramente à vida opunha o valor místico do que experimentara e o valor do misticismo em geral ao apego genuíno à realidade tal como se apresenta sob a forma de fé na constância das leis da matéria O curioso é que esse apego à materialidade e à vida é que revalorizava tanto o transe místico quanto sua negação quanto mais longe eu me sentia do mundo mais longe eu me sentia do céu Inversamente quanto mais cremos na realidade da vida mais nos convencemos de que há algo que podemos pôrlhe no lugar Assim enquanto as mirações eram vividas como deslumbrantes e benfazejas o mundo cotidiano embora relegado a um plano inferior de realidade era amado e protegido com naturalidade Ao passo que ao desfazer se a capacidade de querer e de entender perdiamse os dois mundos Isso só confirma meu apego à realidade material Eu tinha tomado um alucinógeno que me dera visões tramadas pelo meu próprio cérebro de modo a se imporem como mais reais do que o mundo Esse mesmo alucinógeno quase me fizera perder para sempre a razão Um acidente que me tivesse lesado o sistema nervoso central poderia ter produzido ambas as coisas Como já disse a principio eu relembrava as visões e as sensações provocadas pelo auasca com asco e horror Só à medida que fui me readaptando ao senso comum é que pude readquirir algum interesse e carinho pelo mundo maravilhoso que se engendrara em mim No entanto não me sentia tranqüilamente reinstalado na vida As ilustrações indianas que me eram até então quase desconhecidas a capa do LP Axis bold as love de Hendrix era o que eu vira de mais parecido a minhas visões até têlas começaram a ficar de moda com a difusão do movimento Hare Krishna As descrições e reproduções de mandalas rosáceas de catedrais cenas de filmes de Esther Williams dirigidas por Busby Berkeley encontradas num livro de Jung e as constantes referências a elas nas conversas de Roberto Pinho me eram familiares mas passaram a produzir um efeito de repulsa íntima Até mais de um ano depois já no exílio londrino eu não podia olhar por muito tempo uma dessas gravuras de Krishna sem me sentir como que hipnotizado e à beira de reengendrar as alucinações O fato de minha mãe parecerse com uma indiana era e é levado em consideração Rodrigo meu irmão mais velho costumava dizer quando éramos crianças que o ator Sabu era a cara de minha mãe Na verdade verifiquei em Londres que muitos homens indianos mais velhos se pareciam com meu pai que era obviamente um mulato Eu próprio fui muitas vezes confundido com um paquistanês o que me fazia temer os skinheads Mas ouvi pelo menos um relato de experiência com auasca em que o sujeito um brasileiro branco ou pelo menos muito mais passível de ser qualificado como tal do que eu viu multiplicaremse durante horas diante de si chineses homens e mulheres chineses que formavam com seus chapéus tipicamente chineses as mais variadas composições decorativas Não me pareceu que ele tivesse atribuído a essas visões o valor afetivo e religioso que atribui às minhas Mas a semelhança entre as duas experiências e a inexistência de fatos que o desmintam me leva a crer que uma exacerbação da capacidade lúdica de criar padrões decorativos pode ser desencadeada por uma droga como aquela E que a produção dessas imagens pode ou não estar acompanhada de uma exaltação do dom de amar entender e julgar Além disso ninguém sabe o repertório de formas estruturas temas e operações que portamos no cérebro Eu tinha lido nas memórias de Simone de Beauvoir que Sartre passara um ano assombrado por lagostas e caranguejos gigantes que lhe tinham ficado como resíduo de sua viagem com mescalina Esses crustáceos não tinham tido para ele o menor valor simbólico não eram uma visão do Mal No entanto eles o enchiam de angústia Sobretudo porque representavam para ele a perda da razão Mick Jagger é citado como tendo dito que só tem bad trip quem não gosta de si mesmo Quando pouco tempo depois de eu tomar auasca ficou de moda as pessoas tomarem ácido lisérgico havia de tudo pessoas que tinham dezenas de viagens boas e de repente uma ruim pessoas que só as tinham más mas ainda assim não desistiam de seguir tomando pessoas que nada sentiam pessoas que sempre tendo viagens ótimas um belo dia enlouqueciam sob o efeito da droga sem a principio parecerem sofrer todas estas últimas sofreram muito depois a maioria fez um grande esforço em geral consideravelmente bem sucedido de recuperação Ter gritado na TV Deus está solto ao cantar E proibido proibir foi um gesto inspirado pela constatação de que a religiosidade estava sendo tão reprimida quanto o sexo Eu próprio tive educação católica em casa Freqüentei sempre escolas públicas as escolas religiosas eram todas pagas mas o diretor do Ginásio Teodoro Sampaio era o padre Antenor O fiscal do mesmo estabelecimento era o padre Fenelon E o diretor do Departamento de Filosofia da Universidade da Bahia era o padre Pinheiro Além de termos todos a obrigação de ir à missa todos os domingos exigiase que rezássemos antes de dormir e que nos benzêssemos antes de entrar no mar num trem num avião Quando fiz a primeira comunhão fui muito cheio de medo receber a hóstia Tinham me dito que Deus entraria em meu corpo que uma grande paz me inundaria a alma que eu seria envolvido numa luz puríssima Eu me perguntava como seriam essas sensações Apesar de essas coisas me serem ditas em tom calmo e amável eu sentia um medo que só não era pânico porque eu vagamente adivinhava pela observação das pessoas que comungavam e de todos os meus irmãos mais velhos que já tinham feito a primeira comunhão a falácia dessas promessas ou ameaças Não me considerei cem por cento sincero na confissão Tremi antes de comungar e sentime decepcionado e aliviado ao perceber que nada me acontecera Por que eu tinha tanto medo de Deus Não sei Não é tão freqüente que não se o tenha O fato é que rompi intelectualmente com a religião cedo demais e sem superar esse medo A missa dos domingos embora por vezes sua obrigatoriedade me impacientasse não era nem desinteressante nem desagradável A liturgia católica é bela e exuberante erao ainda mais quando não se usava microfone o padre ficava de costas para nós e falava em latim Guardei do quarto do santo e das missas na Igreja da Purificação um gosto pelo ritual Por outro lado o candomblé estava sempre presente Não apenas ouvíamos falar coisas como meu santo não vai com o dele ou eu tenho santo forte ou sabíamos os nomes de Iemanjá e Xangô Oxum e Oxóssi das canções de Caymmi mas também das conversas de amigos e parentes como também íamos às festas anuais de Sultão das Matas em casa de Edite irmã biológica de Nicinha minha irmã de criação Lembro a primeira vez que vi Edite possuída Eu ainda pequeno não tinha autorização de permanecer na festa até o fim Alguma coisa acontecia depois do sambaderoda que não me era permitido ver Não sei à displicência de quem se deve o fato de numa dessas festas eu ao sair pelo corredor para voltar para casa deparar me com Edite vestida de índio de olhos fechados sendo quase arrastada por duas outras mulheres de olhos abertos Era ela sem dúvida mas seu rosto tinha uma expressão que eu nunca lhe tinha visto antes o lábio inferior avançado o vinco entre as sobrancelhas fundíssimo as narinas enormes Parecia um homem zangado O que eu mais me perguntava era O que será que Edite está sentindo se a pessoa é ela e não é ela se está acordada e não está acordada então o que sente Tive medo Tive medo por estar diante do inexplicável e tive medo por imaginarme na situação Esse medo nunca me deixou de todo Ele desempenhou parte relevante na ansiedade préprimeira comunhão E durante o porre de lança perfume o barato da maconha e a viagem de auasca O culto a Sultão das Matas em casa de Edite era ainda é um exemplo do chamado candomblé de caboclo a forma de culto em que o Olimpo ioruba surge matizado de figuras indígenas A figura do índio aparece ali não tanto como uma contribuição direta das culturas originais do Brasil embora haja palavras tupis envolvidas e algum resquício do imaginário local o caboclo desses terreiros de candomblé está mais próximo da figura idealizada primeiro pelos árcades e depois pelos românticos a figura do índio genérico e heróico que passou a simbolizar a pátria nas lutas pela independência e nas fantasias de afirmação nacional Quando Edite me apareceu em transe no corredor de sua casa ela estava vestida como a imagem de barro da cabocla que é carregada em procissão todos os anos no dia 2 de julho nas comemorações da Independência na Bahia Esse é o tipo de candomblé que predomina nas cidades menores do recôncavo baiano enquanto em Salvador a liturgia africana conservada praticamente intacta marca os grandes terreiros Eu tinha medo do transe e amor pelo ritual Quando me mudei para Salvador hesitava em acompanhar os poucos amigos que quase sempre por interesse cultural iam às vezes ao terreiro de dona Olga do Alakêtu ao Opó Afonjá ou ao Gantois Também aqui o medo da possessão me impedia de admirar o ritual que me encantava em geral eu saia correndo do lugar alguns minutos depois de ter chegado supondome tonto e perscrutando todos os meus nervos para assegurarme de que permanecia lúcido e desperto Não sei se escolhi o titulo Divino maravilhoso antes ou depois do auasca Suponho que foi antes Mas não tenho tanta certeza quanto no caso do É proibido proibir Como quer que tenha sido considero pelo menos igualmente significativo Ter me decidido por um ateísmo intelectual mas não só antes de tentar enfrentar o medo de Deus e estar empenhado num projeto público que incluía a coragem de reassumir a religiosidade era o arranjo ideal para fazer da experiência psicodélica uma fonte de angústia e um acontecimento pessoal de grande peso Quando cerca de um ano mais tarde saímos do Brasil rumo ao exílio londrino passamos antes em Portugal Meu amigo Roberto Pinho me pediu que o acompanhasse até Sesimbra onde ele tinha um encontro com um senhor português que tomava conta do castelo medieval da colina e era tido como alquimista Lembro de umas ovelhas de chifre revirado que se punham perto do velho como se fossem animais de estimação E do mar muito azul rodeando de longe as muralhas de pedra A uma certa altura Roberto pediu que eu cantasse Tropicália para o alquimista ouvir Não lembro se cantei ou se apenas recitei as palavras da letra Mas estou seguro de que comuniquei a integra do texto ao português Ao final este olhoume com uma expressão exultante e com uma piscadela cúmplice a Roberto apresentou a mais insólita interpretação de Tropicália de que eu já tivera notícia Tudo na letra era tomado à letra e valorado positivamente Eu organizo o movimento por exemplo significava que não necessariamente eu mas alguma força que podia dizer eu através de mim organizava um importante movimento e inauguro o monumento no planalto central do país era clara e meramente uma referência a Brasília como realização da profecia de são João Bosco E pronto Nenhum traço de ironia era notado nenhum desejo de denúncia do horror que vivíamos então Não lembro se sublinhei o trecho uma criança sorridente feia e morta estende a mão quando tentei explicarlhe que minhas motivações para compor a canção tinham sido o oposto de um ufanismo mas é certo que tentei discutir o assunto Ele que a princípio me parecera não imaginar outra razão possível para que eu escrevesse tal canção a não ser a certeza feliz de um destino grandioso para o Brasil não se mostrou surpreso diante dos meus protestos e rindo para Roberto e repetindo eu sei eu sei arrematou O que sabem as mães sobre os seus filhos Entendi que ele estava certo de conhecer melhor as intenções da minha composição do que eu Isso não era novidade eu já sabia então que as canções têm vida própria e que outros podem revelarlhes sentidos que seu autor não teria suspeitado Tampouco erame de todo desconhecido o aspecto positivo que aquela canção dava à representação do Brasil E mais que isso eu não era inocente do fato de que toda paródia de patriotismo é uma forma de patriotismo assim mesmo não eu o tropicalista aquele que antes ama o que satiriza e não satiriza facilmente o que odeia Mas que aquele homem não quisesse levar em consideração o fato de na minha canção eu estar descrevendo um monstro e era um monstro que confirmara sua monstruosidade agredindome a mim era algo que à medida que ia acontecendo ia seme tornando mais fascinante do que irritante Mas também eu não era de todo estranho aos interesses que uniam meu amigo Roberto e aquele suposto alquimista O ponto de ligação entre eles era o professor Agostinho da Silva o intelectual português que participou da formação da Universidade da Paraíba da Universidade de Brasília e que como já contei durante o período dos grandes projetos culturais da Universidade da Bahia no final dos anos 50 e início dos 60 organizou e dirigiu o Centro de Estudos AfroOrientais em Salvador Esse pensador heterodoxo disseminou uma forma de sebastianismo erudito de inspiração pessoana e com isso atraiu algumas pessoas que me pareciam atraentes Não foi sem pensar nelas que incluí a declamação do poema de Fernando Pessoa no happening da apresentação do É proibido proibir Mas eu não tinha embarcado na viagem desses sebastianistas nem como estudioso nem como digamos militante Apenas me pareceu excitante que houvesse gente falando no Reino do Espírito Santo e numa futura civilização do Atlântico Sul numa época em que todo o mundo tentava falar em maisvalia e em teses científicas de transformar o mundo por meio da classe operária Eu conhecia o Fernando Pessoa do Poema em linha reta e da Ode marítima Também o do poema do outro Menino Jesus e naturalmente o do poeminha do fingidor O poeta é um fingidor Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente eram os poemas que as meninas citavam que muita gente lia em voz alta para mim cujos trechos eram repetidos de cor e que uma ou outra vez eu mesmo lia no exemplar de algum colega de faculdade Sabia dos heterônimos e de algum folclore sobre sua vida e juntava aqueles poemas ao repertório de poesia brasileira moderna Vinicius Drummond Bandeira e Cecília depois também Cabral e isso era com os negros de Castro Alves e os índios de Gonçalves Dias mais os ciganos de Lorca toda a poesia que eu conhecia Com Mensagem era o Pessoa do poeminha do fingidor que se adensava Cada peça curta era um Labirinto de formas e sentidos e mais importante que tudo não me parecia possível que se demonstrasse mais fundo conhecimento do ser da língua portuguesa do que nesses poemas Meu poeta favorito e o que mais extensamente li era João Cabral de Melo Neto E diante dele tudo parecia derramado e desnecessário Assim também os poemas de Álvaro de Campos que eram os mais queridos das meninas Mas com Mensagem eu me sentia em presença de algo mais profundo quanto a tratar com as palavras por causa de cada sílaba cada som cada sugestão de idéia parecer estar ali como uma necessidade da existência mesma da língua portuguesa como se aqueles poemas fossem fundadores da língua ou sua justificação final Todo começo é involuntário Deus é o agente O herói a si assiste vário E inconsciente À espada em tuas mãos achada Teu olhar desce Que farei eu com esta espada Erguestea e fezse O fato de esse livro o único que Pessoa publicou em vida na nossa língua ter como tema a volta de d Sebastião e da grandiosidade de um adiado destino português enobrecia a meus olhos os interesses daquele grupo de pessoas que cultivavam tais mitos De modo que em Sesimbra passei gradativamente do espanto de ver minha canção Tropicália resgatada por uma visão que anulava sua contundência crítica à relativa adesão à perspectiva dessa visão comecei a ver Tropicália e a pensar o tropicalismo também à luz da minha versão do sebastianismo De fato muito de Deus e o Diabo na Terra do Sole e de Terra em transe ganhava sentido nesse contexto Glauber depois me confirmaria essa observação confessandome que o sebastianismo é o segredo do Cinema Novo Deus está solto Divino maravilhoso o auasca tudo isso tem que ser entendido também levandose em conta esse namoro com o misticismo Minha irreligiosidade é sinceramente feroz ela foi vivida desde a infância como uma alegria corajosa de arrancar a vida das sombras em que se teima em mantêla Reagir contra ela só se justificava como ato preventivo contra o risco de que a irreligiosidade ela própria se tornasse uma nova sombra O problema é que o medo e as angustiosas dúvidas cresciam nesse processo Além disso há também a vaidade de se viver o inexplicável Pretendemos testemunhar cadeiras semoventes copos falantes discos voadores assim como premonições e telepatias na melhor das hipóteses para experimentar a ventura de como me disse Antônio Cícero vernos livres da cadeia da causalidade na pior das hipóteses por vaidade infantil É a alegria do corpo com o sexo no centro que se opõe às outras vidas a Deus e aos deuses portanto ao destino Foi com os sentimentos mais ambíguos que assimilei o aspecto claramente premonitório do episódio da fazenda quando senti que Bethânia precisaria de mim e que isso definiria seu nosso futuro profissional Quando criança sonhei que passeava levado por minha irmã Clara pela praça da Purificação Nós andávamos com muita dificuldade e medo pois o chão era feito de longas tábuas suspensas sobre o infinito vazio Sentada num banco no outro extremo da praça estava Norma uma moça com quem Clara estava de mal Estranhei que minha irmã fosse lhe falar Os bancos as árvores as casas a igreja tudo estava precariamente elevado sobre o vazio Ao chegarmos junto de Norma ouvi muito bem o diálogo que se deu entre elas embora eu bem pequeno ainda fosse tratado como quem nada vai entender Norma o que é que você quer falar comigo pergunta Clara E Norma responde Eu quero lhe dizer que eu vou me matar Fui acordado por ruídos em casa no meio da noite Levantei e perguntei o que estava acontecendo por que as pessoas estavam todas acordadas Ninguém quis de imediato falar comigo claramente Mas em pouco tempo fiquei sabendo que Norma filha de seu Quinzinho aparecera morta no corredor de entrada da casa dela ao lado do namorado que jurava que ela havia se matado com um revólver em sua presença Todos suspeitavam do namorado Não tive forças para dizer que sabia que não tinha sido ele Tive medo mas senti também a excitação de ter vivido algo sobrenatural Não fui muito veemente quando afinal contei tinha vergonha de exibir minha excitação e tinha dúvidas sobre se aquilo pareceria crível Passei anos analisando esse caso Terminei por acalmarme com a constatação de que é muito freqüente que ouçamos conversas enquanto dormimos e num truque para não acordar criamos sonhos com fragmentos do que ouvimos De fato toda a gente em minha casa estava falando talvez pensando que eu pequenino não ouviria e se ouvisse não entenderia como aliás acontecia no próprio sonho no possível suicídio de Norma Não encerrei o caso mas fiquei observando por anos nada de semelhante me aconteceu mais ao passo que sonhos sugeridos por estímulos exteriores se multiplicaram Não longe do final de 68 Roberto Pinho veio a São Paulo justamente para contarnos que um nosso amigo tinha entrado numa espécie de transe e nesse estado tinha profetizado que a situação política endureceria no Brasil até o final do ano e que Gil e eu estávamos fadados a sofrer violentamente em conseqüência Eu dava um grande peso às palavras de Roberto não apenas a mitologia dos sebastianistas tinha ganho status dentro de mim mas o próprio Roberto tem uma personalidade muito impositiva Além disso cremos nas predições más se não por culpa ao menos por instinto de autodefesa Mas o amigo que entrara em transe era desses em quem aquela vaidade infantil do sobrenatural fica por vezes à mostra De todo modo Roberto dizia que não havia como evitar Gil e eu tínhamos de passar por isso Fiquei angustiado Em poucos dias porém essa angústia era apenas uma lembrança O programa Divino Maravilhoso estreara com um sucesso de estima muito grande mas não sei qual foi a audiência em números Fizemos um atrás de grades e dentro de gaiolas o proscênio era tomado por uma grade de madeira imitando ferro outras jaulas menores dentro da grande jaula que era o palco guardavam os Mutantes Gal Tom Zé etc Jorge Ben cantava dentro de uma jaula que pendia do teto no final eu vinha do fundo do palco berrando o sucesso de Roberto Carlos Um leão está solto nas ruas e quebrava as grades convidando todo o elenco de participantes a colaborar comigo nessa destruição A platéia de jovens identificados com nossa onda respondia com entusiasmo Num outro programa nos distribuímos um pouco à maneira de Cristo e os apóstolos na Santa Ceia lembrando o Buñuel de Viridiana mas sobre a mesa havia apenas bananas Cantávamos e comíamos bananas Os Mutantes fizeram o enterro do tropicalismo As senhoras católicas protestavam contra essas ousadias em cartas vindas da cidade de São Paulo mas também do interior o que talvez significasse que o programa estava sendo mais visto do que imaginávamos Mas que certamente queria dizer que o que fazíamos era tomado como ofensivo por algumas pessoas Não nos intimidávamos Apesar do susto da conversa de Roberto nós eu sobretudo estávamos orgulhosos e confiantes demais para nos entregarmos ao medo No dia 13 de dezembro de 1968 um golpe interno no governo militar lançou o Ato Institucional nº 5 suspendendo o habeascorpus dando poderes à policia de invadir domicílios enfim instaurando um regime policial truculento que fez em retrospecto os primeiros quatro anos que passáramos sob os militares parecerem razoáveis e amenos Eu estivera em Salvador por uns dias e viajei para São Paulo exatamente no dia 13 Ao chegar em casa fiquei sabendo do que ocorrera Não medi a extensão e a profundidade das mudanças anunciadas pelos noticiários da TV Claro que a linha dura tomara o poder Mas nós justamente éramos vistos com hostilidade pelas esquerdas mais barulhentas Nossa simpatia íntima e mesmo secreta por Marighella e os iniciadores da luta armada embora nossa admiração por Guevara tivesse sido sugerida na canção Soy loco por ti América não era do conhecimento nem dos radicais nem dos conservadores O humorista Jô Soares nos disse ter ouvido que corria entre os militares uma lista de nomes de artistas da Record onde Jô trabalhava e onde nós trabalháramos até havia pouco da qual constavam o nome de Gil e o meu entre os possíveis intimados para interrogatórios Imaginei que no máximo eles poderiam nos perguntar por que participáramos da passeata dos 100 mil Para o que tínhamos a resposta de que praticamente todos os artistas brasileiros também o fizeram Tínhamos um programa já escrito para ser exibido na semana do Natal Eu próprio numa homenagem ao grande compositor suicida Assis Valente e numa desmistificação das róseas sentimentalidades natalinas cantaria a linda e triste canção Boas festas daquele autor eu pensei que todo mundo fosse filho de Papai Noel apontando um revólver para minha própria têmpora E assim fiz A canção originalmente uma marchinha e que no Brasil está tão identificada com o Natal quanto Jingle bell embora a letra proteste contra o fato de que alguns recebem presentes de Natal e outros não fora despojada de seu ritmo e era apresentada como um adágio com as sílabas da letra escandidas O resultado que ainda vi no vídeo era assustador Fiquei orgulhoso porque considerei que ali havia densidade poética mas intimamente arrependido por crer ter talvez mais uma vez ido longe demais No dia 27 de dezembro Gil e eu fomos presos Guilherme Araújo tinha embarcado para a Europa onde preparava a iminente apresentação de Gil no Midem um congresso festival anual promovido na cidade de Cannes na França pelos homens de negócios das gravadoras Guilherme excitado com o que seria a estréia internacional de um de seus contratados recebeu com revolta a notícia da nossa prisão e propôs aos organizadores do evento que se fizesse um protesto e uma denúncia Eles se recusaram terminantemente a se envolver se Guilherme tinha uma queixa política a fazer que a fizesse em seu próprio nome Este então atendeu à de escrever próprio punho um manifesto assinado e distribuílo pessoal mente à entrada da sala de espetáculos Esse gesto corajoso de repúdio público à opressão da ditadura brasileira custou a Guilherme um autoexílio forçado que o aproximou ainda mais de nós nos anos subseqüentes O Divino Maravilhoso ainda teria mais duas ou três edições comandadas por Tom Zé esperavam que voltassem para retomar o programa Mas não voltaríamos PARTE II NARCISO EM FÉRIAS O dia já estava nascendo e eu ainda não tinha conseguido dormir quando os agentes da Polícia Federal chegaram para me prender O som da campainha em hora tão inesperada provocou maior irritação do que surpresa Eu estava sob as cobertas e justamente ingressava num estado em que a entrega ao repouso parecia começar a se tornar possível em que projetos entusiasmantes medos inexplicáveis alegrias inoportunas e a costumeira inveja de Dedé que como sempre adormecera tão facilmente ao meu lado começavam a se dissolver na doce aceitação do esquecimento de tudo disfarçada em atenção concentrada numa imagem ilusoriamente nítida numa lembrança enganosamente verídica ou numa idéia simuladamente precisa em suma experimentava a sensação de estar prestes a adormecer quando a campainha soou Ou melhor o som da campainha me pôs de repente consciente de que esse processo usual estava em curso Como não era a primeira vez que isso se dava naquela noite eu já tinha me aproximado do sono algumas vezes mas campainhas internas tinham disparado na forma de regozijo por pensar que afinal estava adormecendo ou na forma do mero medo de adormecer ou ainda na forma da inadequação como indutor do sono de algum aspecto da imagem idéia ou lembrança convidada pensei depois e freqüentemente penso ainda hoje que se a polícia não tivesse ido me buscar eu talvez tivesse adormecido exatamente naquele momento o que deixa em mim uma impressão de ter experimentado o gosto secreto do destino Hilda a empregada paraibana de quem tanto gostávamos veio até a porta do nosso quarto para dizer confusa e embaraçada que havia uns homens querendo falar comigo O sentimento que me dominou ao chegar à sala e encontrar os policiais foi de impaciência vime diante de um incômodo que prometia durar um bom par de horas Havia algo estranho no modo nervoso como aqueles homens sorriam e a amabilidade exagerada não deixava de trair uma promessa de agressão Pouco depois entendi que eles estavam na dependência da minha reação para decidir sobre sua conduta qualquer tentativa de fuga ou resistência encontraria resposta imediata numa destreza e numa violência que estavam apenas cobertas por um tênue verniz de polidez Eles diziam que as autoridades militares queriam me fazer algumas perguntas e eu muito mais ingênuo do que eles podiam imaginar acreditei Parecialhes pouco provável no entanto que alguém levasse tal eufemismo ao pé da letra e enquanto eu tentava conseguir detalhes sobre o que ia se passar eles iam abandonando relutantemente a expectativa de que talvez eu reagisse a uma prisão que nem sequer sabia que estava se efetuando Um deles então fez uma sugestão que primeiro me pareceu estapafúrdia mas logo me encheu de medo É melhor você levar sua escova de dentes Ainda tentei pedir explicações para esse conselho mas eles deram mostras de que já não queriam perder tempo Uma repetida referência ao encargo de ao saírem dali irem buscar Gilberto Gil em casa dele me trouxe à lembrança o fato de Gil estar possivelmente dormindo em algum outro cômodo do meu próprio apartamento Ele começava um namoro com Sandra a irmã mais velha de Dedé que tinha vindo da Bahia passar umas semanas conosco e nós tínhamos ido deitar deixando os dois a sós na sala Talvez a caminho do banheiro em busca da escova decidi com Dedé que seria bom ela avisar Gil Tenho certeza de que pedi a ela que o aconselhasse a voltar para sua casa e esperar os policiais lá Gil morava numa extremidade da praça da República que pode ser considerada uma continuação da avenida São Luís onde fica o prédio em que Dedé e eu vivíamos Para ir a pé do meu prédio ao dele era preciso somente atravessar a avenida Ipiranga e andar meio quarteirão Por alguma razão pareceume que os policiais considerariam suspeito o fato de um dos elementos que eles tinham saído para buscar estar na casa do outro Mas não estou seguro dos motivos que me dei para em vez de sugerir ao Gil que sumisse aconselhálo a ir para seu apartamento esperar a prisão De todo modo foi com um recado nesse sentido que Dedé foi ao seu encontro onde quer que ele estivesse dentro do meu apartamento e ele saiu sem que os policiais sequer notassem o nosso esforço de comunicação É claro que nem Gil nem eu imaginávamos que seríamos presos Não havia expectativa de que nada de grave pudesse acontecer conosco Exceto o comentário privado feito pelo humorista Jô Soares e aquela profecia saída da boca de um conhecido supostamente em transe e que nos tinha sido relatada meses antes por Roberto Pinho profecia esta que afinal se revelou assustadoramente precisa quanto às datas e às circunstâncias nós não tínhamos muito por que pensar que os militares quereriam nos prender Estávamos tão habituados a hostilizações por parte da esquerda éramos tantas vezes acusados de alienados e americanizados que quando me vi diante daqueles policiais imaginei que me estavam levando para uma conversa com algum oficial de São Paulo o qual nos trataria como rapazes interessados apenas em divertir o público e no máximo exigiria explicações sobre nossa participação na famosa passeata dos 100 mil Essa passeata contara com a quasetotalidade da classe artística brasileira de modo que não nos seria difícil explicar nossa adesão como resultado de uma natural pressão de grupo Mas quando decidi mandar dizer a Gil que fosse para casa esperar a Polícia Federal a sugestão de levar a escova de dentes já me tinha sido feita E eu já estava com medo Não era de modo nenhum um medo que correspondesse ao tamanho do que de fato estava começando a acontecer Mas era suficientemente grande para me fizer ver à frente longos momentos de desconforto dos quais estava em minhas mãos poupar Gil Em nenhum momento até que nós estivéssemos presos e em péssimas condições me ocorreu de fato fazer isso Foi tinha a firme certeza de que era perfeitamente natural que Gil vivesse tudo aquilo junto comigo Essa certeza pareceume menos firme diante da situação tão pouco natural que se estabeleceu à porta do prédio de Gil com os policiais preparandose para a eventualidade de este não estar em casa ou de diferentemente de mim reagir à prisão De dentro da caminhonete em que eles me trouxeram até ali eu procurava não deixar escapar nada nem um gesto nem um olhar que revelasse meu conhecimento do fato de que ele estava em casa e que viria em boa paz A sensação de que eu liderava a cena falsa da chegada de Gil à caminhonete quando ambos fingimos que não nos tínhamos sequer visto na noite anterior foi o auge do meu malestar mas isso não chegou a me fazer ver que eu tinha tido o poder de poupálo e portanto o dever de pelo menos tentar fazêlo No entanto como nossa combinação tinha se dado através de Dedé e portanto eu ainda não tinha visto Gil desde que tudo começara vêlo surgir à porta do edifício me fez sentir como se eu é que estivesse trazendo os policiais para prendêlo A estranheza que causava a visão do centro de São Paulo àquela hora da manhã intensificava a vertigem e tudo em mim se perguntava o que estávamos fazendo naquela cidade naquela profissão naquela vida Gil andando pela calçada vazia em direção à caminhonete os homens que tinham ficado em minha guarda comentando entre aliviados e decepcionados que ele também não tinha resistido à prisão Pronto vamos eu próprio olhando através do vidro tudo parecia estar sendo visto de fora e de longe por uma consciência minha muito límpida e muito limitada Eu como que via tudo com uma clareza exagerada e no entanto não era capaz de ir longe em nenhum tipo de encadeamento de idéias não me ocorreu que talvez fosse melhor para Gil que ele fugisse e no fundo como eu agia por medo fantasiava vagamente que eu o impedia de ter ele próprio essa idéia De todo modo ainda hoje sinto que estava naquele momento mais cônscio do que Gil de que nós estávamos correndo um risco maior com os militares da direita do que as agressões dos estudantes da esquerda nos teriam permitido imaginar Tempos depois quando ouvi contar como nosso colega Geraldo Vandré contra quem o ódio dos militares era ilimitado por causa de uma sua canção que aparentemente os desrespeitava conseguiu fugir esconderse e finalmente sair do país sem que a repressão lhe tocasse um dedo pensei que na verdade eu tinha prendido Gil Estávamos numa caminhonete robusta na companhia daqueles homens a quem nunca tínhamos visto e cujas maneiras e aparência eu nunca imaginara que viesse um dia a ver de perto Nenhum deles usava farda ou qualquer outro signo exterior que revelasse sua função Tampouco a caminhonete era uma viatura de polícia que pudesse ser reconhecida como tal Isso emprestava aos seus modos decididos mas vulgares um ar sinistro Depois de rodarmos por muito tempo por ruas de São Paulo vimonos pegando uma grande estrada Quando pedimos explicação para esse fato eles nos disseram com rudeza que não tínhamos o direito de fazer perguntas Mas conversavam entre si sem procurar esconder o fato de que rumávamos para o Rio Naturalmente eles tinham me mostrado carteiras de policiais ao falar comigo em meu apartamento Mas eu apenas fingi que olhei não tinha me ocorrido pôr em dúvida a legitimidade daquela visita eu tinha mais que tudo pressa de que o episódio terminasse e de todo modo não saberia reconhecer a autenticidade de um documento de identificação de policial Assim nós nos sentíamos como vítimas de um seqüestro comum embora de certo modo soubéssemos que estávamos exatamente inaugurando um período em que no Brasil cada vez mais pessoas sentiriam medo das autoridades e não dos delinqüentes culminando com o refrão de Chico Buarque nos anos 70 Chame o ladrão Mal entramos na estrada adormeci sem que precisasse me distrair ou enganar para isso Quem leu os primeiros períodos deste capitulo pode ter se perguntado com um riso de mofa em face das longas digressões sobre o sono que juro ter me esforçado para reduzir ao mínimo se afinal era Marcel Proust quem aqui relatava sua prisão Anos antes dessa manhã em que fui preso Rogério Duarte me disse com aquele seu poder de me impressionar que não sei quem tinha dito que a primeira regra para escrever bem era não imitar Proust Eu não tinha lido Proust então e nem mesmo pensava em fazêlo Foi um deslumbramento quando o fiz e esse deslumbramento dura até hoje Não teria a coragem de sequer pensar que ousaria tentar imitalo Mas acontece que gosto dos períodos longos e na verdade acho que não sei me expressar mesmo em conversas de outra maneira E o tema do sono da dificuldade de dormir das sutilezas do adormecer se é relevante para a apreciação de todos os aspectos da minha vida é fundamental para a narrativa deste episódio da prisão Adormeci ao lado de Gil no banco de trás da caminhonete da Polícia Federal de um modo irresistível e incontrolavelmente agradável o que apesar de eu gastar muitas horas todas as noites na cama tentando conciliar o sono não me era desconhecido absolutamente Muitas vezes no fim da tarde ou já manhã avançada depois de ter desistido de tentar dormir eu via coincidirem em mim a certeza e o desejo de adormecer Aproximar a idéia de dormir da idéia de morrer é um lugarcomum Mas é incomum que alguém confunda essas coisas a ponto de tornarse incapaz de encontrar prazer em saber que cansado e sonolento tem o tempo o espaço e o conforto necessários para um longo sono que lhe reafirmará a vida Fui um bebê que não queria dormir minha mãe conta e na verdade eu bem me lembro que permanecia excitado e atento a tudo o que se passasse e mais que isso a tudo o que pudesse vir a se passar Sempre achei difícil acreditar que eu o mesmo que estava ali lúcido falando ouvindo agindo e pensando estaria dali a alguns minutos inconsciente sendo visto sem ver ouvido sem ouvir presente para os outros e ausente de mim Por muitos anos atribuí isso a um apego à vida desperta à vigília e à consciência É muita perda de tempo dormir dizia E embora muitas vezes fosse tomado na cama por uma angústia surda que me deixava gelado e mais freqüentemente ainda por pensamentos carregados de uma ansiedade que não se manifestava à luz do dia eu não atribuía conscientemente ao sono um caráter mórbido Dormir me parecia antes chato do que terrível Mas era como algo terrível que eu vivia a aproximação da hora de ir deitar Vicieime desde menino a iniciar tão logo estivesse na cama uma longa sessão de pensamentos fantasias dirigidas planos meros jogos lógicos apreciação retardada de atos e palavras meus e dos outros etc De modo que nunca me deitava para dormir e sim para entregarme a uma demasiadamente ativa vida interior Lembro que Rodrigo meu irmão mais velho às vezes adormecia na mesa do jantar sem terminar de tomar o café E Nicinha às dez horas da noite em plena praça da Purificação durante as festas da padroeira comentava com delícia que estava caindo de sono e que de tanto desejo de dormir via sua cama passar diante dos olhos Eu a um tempo invejava e desprezava essas pessoas capazes de antegozar algo que me parecia um estorvo Mas não desconhecia de todo o prazer do sono em horas impróprias ou melhor quando não havia o compromisso de adormecer sempre foi possível saborear a aceitação do repouso inclusive com a consciente indagação sobre por que não acontecia assim nas horas convencionais Foi assim que aconteceu na caminhonete da polícia e eu dormi todas as cerca de cinco horas de viagem de São Paulo até d Rio Com uma única interrupção para o almoço num restaurante de estrada de que embora tenha tido tudo para ser uma cena de grande relevância pois Dedé que seguira a caminhonete conseguiu dos policiais que nos deixassem almoçar juntos numa mesa separada da deles guardo uma lembrança mortiça como se todos os meus atos ali fossem os atos de um sonâmbulo Isso ganhou maior significado por eu não ter tido nenhum tipo de insônia ao contrário durante todo o período da prisão como contarei depois Acordei ao chegarmos ao pátio de estacionamento da Polícia Federal no Rio Não lembro com clareza quase nada desse dia Só sei que ficamos ali até depois de o sol se pôr E que começamos a ficar impacientes para saber quem nos interrogaria e quando Os homens que nos tinham vindo buscar simplesmente desapareceram E só víamos caras novas que com risos ou grosserias desencorajavam qualquer pergunta da nossa parte Tenho a vaga lembrança de ter visto uma moça que eu conhecia da casa de Macalé de quem ela era vizinha de prédio em Ipanema e da surpresa desagradável por sabêla da Polícia Federal Possivelmente ela exercia um cargo meramente burocrático ali mas a presença entre os meus algozes de uma moça que eu vinculava a outro tipo de ambiente dava um ar ainda mais sombrio aos acontecimentos Na verdade não sei se foi nesse dia da chegada ou se foi quando passamos pelo mesmo estabelecimento no caminho de volta dois meses depois que vi essa vizinha de Macalé Mas lembro que pensei com desagrado sobre alguma coisa pouco clara que se dizia dela envolvendo sangramentos por todo o corpo durante as menstruações Isso me volta à memória com assiduidade ainda hoje compondo a confusa lembrança da central carioca da Polícia Federal onde Gil e eu passamos o dia sentados lado a lado em cadeiras primeiro numa sala grande cheia de agentes atarefados depois nalguma sala menor cuja porta era guardada por dois policiais Mas era mesmo uma sala talvez com carteira e armários não era uma cela Só à noite fomos conduzidos a uma outra viatura que nos levaria não nos diziam aonde As primeiras fardas que vi mudaram o tom das coisas em minha cabeça Sentime a um tempo mais seguro e mais amedrontado por um lado via que os policiais à paisana não mentiram sobre estarem obedecendo a ordens militares o que tirava a impressão de seqüestro e sobretudo fazia renascer a esperança de que afinal íamos ser interrogados por outro lado a visão de soldados fardados portando armas grandes e negras o próprio tom escuro dos uniformes e mais que tudo os semblantes impenetráveis os olhares e os gestos dos federais pareciam amigáveis em comparação tudo instaurava uma atmosfera lúgubre e pela primeira vez tive a impressão de estar num pesadelo Era realmente terrível que fosse noite Os civis sumiram Fomos entregues a soldados cujos gestos ríspidos combinados com as caras fechadas deixavam claro que não havia diálogo possível A própria homogeneidade da roupa dá aos militares uma aparência e não só aparência de entidade extrahumana Estávamos no prédio do antigo Ministério da Guerra sede do I Exército bem no centro do Rio ao lado da estação de trens da Central do Brasil na avenida Presidente Vargas Passamos por algumas situações intermediárias das quais nada lembro antes de sermos colocados na sala de um general que deveria ocupar um alto posto no Exército talvez um homem de grande poder dentro do novo período em que entrava a Revolução Lembro de um elevador em que fomos levados por soldados armados até o andar onde ficava essa sala Puseramnos ali sem nos dizer uma palavra Apenas indicaram cadeiras encostadas à parede onde sentamos lado a lado A sala era grande atapetada mobiliada com o que exigiria uma descrição nos termos algo paradoxais de austera pompa Estávamos exatamente de frente para uma grande mesa de jacarandá à qual sentavase o general A visão era frontal mas afastada pois a mesa ficava no outro extremo da sala De modo que o espetáculo do general calado e sério atrás de sua mesa ganhava do nosso ponto de vista um ar teatral Esperamos que aquilo fosse afinal ser o interrogatório embora já tivéssemos começado a perder a cabeça com as esperas inexplicadas e já pressentíssemos que estávamos sendo roubados às nossas vidas O general de fato passou muito tempo olhando fixamente para nós sem dizer uma só palavra ou esboçar o menor gesto Na verdade se se tratasse do interrogatório seria preciso um considerável esforço vocal de todos para que a comunicação entre ele e nós se desse dada a distância que nos separava Mesmo na lembrança o tempo que ficamos nos olhando em silêncio parece uma eternidade Seu primeiro movimento quase imperceptível depois desse longo confronto mudo que tenho certeza não durou poucos minutos foi o de apertar um botão que fez soar uma campainha nalgum lugar de onde veio um soldado a quem ele falou sem que ouvíssemos Passaramse mais muitos intermináveis minutos antes que chegassem dois soldados trazendo bandejas com o jantar do general Era galinha Ele fez calmamente sua refeição na nossa frente como se estivesse num palco Ou melhor a disposição da cena e a distância entre os espectadores e o ator sugeriam isso mas na verdade o general portavase com grande sobriedade e concentração como se estivesse sozinho sem no entanto deixar de por vezes olharnos de relance mas com tranqüila firmeza Dirseia que ele desempenhava meticulosamente o papel da solidão despreocupada entremeandoo de acenos discretos aos assistentes como se dissesse Eu sei que vocês estão ai e me é indiferente a sua presença quanto a sentirme à vontade para comer mas é significativo que vocês me vejam fazer isso e que nada possam dizer a respeito isto aqui diz tudo sobre nossas relações e muito sobre a condição em que vocês se encontram de agora em diante Nós sentimos apenas cansaço Não achamos ridículo nem nojento nem cômico nem odioso achamos chato Tampouco tivemos fome ou inveja do general Estávamos cansados de tantos incômodos incompreensíveis Queríamos uma trégua do absurdo que alguém falasse conosco ou nos levasse a algum lugar para que pudéssemos dormir Já não nos arriscávamos a pôr em jogo a esperança de voltar logo para casa essa era uma ansiedade que nossas mentes não podiam agüentar O general acabou de jantar tocou de novo a campainha os soldados vieram e levaram as bandejas Ele nos olhou mais alguns minutos apertou outra vez o botão outros soldados entraram possivelmente os mesmos que nos haviam trazido e nos levaram embora Tinha se passado mais de uma hora desde que chegáramos àquela sala Nunca consegui reproduzir na minha mente a cara desse general É curioso como a memória pode guardar tantos atributos psicológicos e tantos sutis detalhes de comportamento observados numa pessoa cuja imagem física desapareceu É como se ficassem os adjetivos e o substantivo se evaporasse Não sei se Gil tem uma lembrança mais nítida da figura desse homem que teve um contato tão estranho conosco Tampouco sei que utilidade teria esse contato para os militares Estivemos naquela sala apenas para esperar O general queria nos conhecer Era uma encenação para nos desestruturar e assustar Nada disso pôde ser comentado por mim e por Gil enquanto éramos levados numa viatura do exército do antigo Ministério da Guerra para o quartel da Polícia do Exército na rua Barão de Mesquita na Tijuca Fui jogado numa solitária mínima onde só havia um cobertor velho no chão uma latrina e um chuveiro que lhe ficava quase exatamente por cima Tenho uma lembrança imprecisa da porta ou grade que separava a cela do pequeno corredor Às vezes pareceme que era uma porta toda maciça com apenas uma portinhola gradeada no alto e uma outra portinhola esta compacta perto do chão por onde os carcereiros punham a comida intragável sem se deixarem ver Outras vezes pareceme que a parte com grades começava à altura do meu peito e ia até o teto O fato é que lembro de uma porta maciça de metal pintado de tinta a óleo creme encardida e da portinhola baixa pela qual se botava o prato de alumínio com a comida ou a caneca de café E lembro também de poder ver o soldado de guarda no corredor Mas não com facilidade Algum tipo de esforço era necessário para que eu visse um pouco do que havia fora da cela Esse esforço podia ser o de pedir permissão ou seja o carcereiro é que abria a portinhola com grades a um pedido meu que o justificasse como também podia ser de natureza meramente física sendo muito alta a parte gradeada só de pé e esticando o pescoço eu podia olhar para fora A sensação geral era de estar num espaço mínimo e todo fechado exceto pelo único respiradouro de que me lembro sem dúvida uma janela quadrada com grades no fundo da cela bem no alto da parede oposta à porta Talvez minha confusão se explique pelo fato de eu ficar a maior parte do tempo deitado no chão de onde via quase unicamente a parte maciça da porta Pois são bem nítidas minhas lembranças dos raros diálogos que tive com soldados eralhes proibido falar conosco através das grades e sobretudo a amizade que cresceu entre mim e um velho comunista cuja cara só vim a ver logo antes de mudar para outra prisão amizade que se baseava principalmente no fato de ele ter descoberto que eu sabia cantar Súplica a estranha valsa em versos brancos que fora sucesso na voz de Orlando Silva antes de eu nascer Essa comunicação sonora se dava através do corredor Elas também eram proibidas mas isso dependia da boa vontade do soldado de plantão Gil ficava na outra cela contígua à do velho Com esta entre a minha e a dele e com nosso medo e cuidado quase não nos dissemos nada durante toda a semana que permanecemos na rua Barão de Mesquita Logo na primeira noite depois da sala do general e do camburão dormi imediatamente Fui acordado bem cedo de manhã pela voz dura de um sargento que me ordenou que ficasse de pé Alguém enfiou uma caneca de café preto pela portinhola perto do chão Acho que eles faziam uma espécie de chamada ou passavam os presos em revista todas as manhãs Estou certo de que o faziam todas as noites Um resquício de esperança de que estivessem me chamando para o interrogatório emergiu comigo do sono sem sonhos em que descobria que estivera mergulhado a noite toda Mas o sargento ou quem quer que fosse que me acordou seria um homem só apenas me olhou rapidamente e seguiu seu ritual de inspeção deixandome sozinho com aquela caneca metálica com café até a metade e um pedaço de pão um tanto duro e sem manteiga Sempre me pareceu ilógico ter esquecido ou confundido detalhes de uma realidade tão drasticamente limitada Passei uma semana numa cela mínima onde se repetiam todos os dias atos iguais e regulares e no entanto não consigo lembrar com clareza como era a porta dessa cela ou o que exatamente faziam os carcereiros à hora da revista Mas acredito que a própria pobreza de acontecimentos e sua regularidade que terminam por eliminar a percepção ordinária da passagem do tempo levem a mente de quem sofra tal experiência a precisar defenderse disso quando lhe é dado voltar ao espaço aberto e ao tempo rico em diversidade de eventos menos previsíveis Tenho ouvido de pessoas que foram ou estão presas a observação de que em algum momento dentro da cela duvidase da realidade da vida livre que a memória diz ter existido lá fora Recentemente li na entrevista de um criminoso brutal a afirmação Às vezes eu acho que nasci aqui que sempre vivi aqui que o mundo lá fora tudo o que eu vivi só existe na minha cabeça Essa leitura me fez estremecer porque eu próprio tinha pensado exatamente a mesma coisa e nos mesmos termos enquanto estava na solitária da rua Barão de Mesquita O apartamento de São Paulo meu casamento com Dedé a Bahia os estúdios de gravação os palcos dos auditórios tudo parecia remoto e desprovido de realidade A perspectiva em que todas essas imagens se fariam reconhecíveis tinha se rompido bruscamente e minha mente se esforçava para não sucumbir de todo à impossibilidade de compatibilizar as lembranças com a situação que era vivida então Mas da mesma maneira que enquanto estamos presos não cremos na vida livre que não podemos esquecer uma vez soltos esquecemos a coerência interna da vida na prisão de cuja realidade no entanto não duvidamos Hoje sei que sai venho saindo da prisão como quem sai de um sonho ao passo que enquanto preso eu julgava que Santo Amaro o Solar da Fossa e a TV Record é que tinham sido um sonho do qual não era possível sair Os dias daquela semana na solitária da Polícia do Exército às vezes são lembrados por mim como um só dia que pareceu durar uma eternidade Depois de muito tempo mas o que era muito tempo comecei a procurar por mim mesmo na pessoa que dormia e acordava no chão daquele lugar odioso cuja imutabilidade impunhase como prova de que não havia nunca houvera outros lugares Se nunca ver ninguém era um fato que contribuía decisivamente para criar essa impressão uma outra limitação que se perpetuou por todo o período da prisão a intensificava não ter acesso a espelhos Com efeito por dois meses não vi meu próprio rosto Não sei depois de quantos dias teve inicio meu diálogo com o velho comunista ou o estranho tráfico de livros que relatarei ou os passeios ao sol destes sei com certeza que foram no máximo dois ou a esparsa comunicação com os soldados Só sei que todos esses pequenos estímulos iam pouco a pouco me encorajando a acreditar que o mundo de fora e de antes da prisão existia de fato e o que é mais importante que eu a pessoa que pensava eu era parte desse mundo O primeiro esforço no sentido de me reconhecer em mim mesmo se deu na forma de uma tentativa de chorar se eu estava em tão má situação se me tinham afastado bruscamente da mulher com quem me casara havia apenas um ano se não podia ver o apartamento que mal começáramos a arrumar se me jogaram sobre um cobertor áspero e jornais velhos se ninguém ouvia minhas perguntas certamente seria suficiente que me concentrasse em tais constatações para que lágrimas começassem a correr soluços e espasmos me sacudissem Mas não Essa intimidade do espírito com o corpo que o pranto propicia erame negada Vista em retrospecto é absolutamente inacreditável quão completa era então minha incapacidade para o sentimentalismo O velho comunista com a força de seu sotaque nordestino me pedia para cantar Súplica e logo minha voz ia levar a esquisita valsa até ele pelo mesmo corredor que trouxera sua mensagem Aço frio de um punhal foi seu adeus pra mim Não crendo na verdade implorei pedi As súplicas morreram sem eco em vão Batendo nas paredes frias do apartamento E essa palavra apartamento aqui sublinhada e supervalorizada pela surpreendente ausência de rima ressaltava desencadeando toda uma associação de idéias o apartamento de São Paulo o primeiro de minha vida onde eu ouvira e cantara exatamente essa valsa nas noites imediatamente anteriores à prisão mas esses pensamentos não me levavam à emoção correspondente Eu continuava frio e remoto O próprio fato de aquele velho me pedir que cantasse não me enternecia Nem o modo aplicado e doce como eu lhe apresentava a canção Muitas vezes de volta à liberdade me comovi e ainda hoje me comovo com a lembrança dessa cena Na cela apenas sabia com frieza que ela era uma cena comovente É que Narciso estava morto Sentia algo bom pelo velho O desejo sincero e imediato de atender o melhor e o mais prontamente seu singelo desejo Mas não conseguia empatia comigo mesmo não via graça em ser capaz de trazer um pouco de beleza aos dias daquele velho comunista talvez calejado em prisões Sentia uma seca amizade por ele mas não gostava de mim Minha voz ecoava no pequeno corredor Torpor tomoume todo e eu fiquei sem ver mais nada Adormecido tenha talvez quem sabe Pela janela aberta a fria madrugada Amortalhoume a dor com o manto da garoa A garoa é um dos símbolos de São Paulo a mera menção dessa palavra traz à mente de qualquer brasileiro a imagem da nossa maior cidade Assim garoa e apartamento na mesma valsa cantada a pedidos de um homem que não imaginava que eu a soubesse e muito menos que a estivera cantando recentemente com freqüência faziam de Súplica a primeira das cançõestemas desse período da minha vida Mas se eu era capaz de constatar isso com clareza não me sentia tocado por tal constatação Era antes levado a iniciar uma teia de superstições poderosas que me acompanharam até o exílio e mesmo depois A valsa seguia Esperança morreste muito cedo Saudade cedo demais chegaste Uma quando parte a outra sempre chega Chorar se lágrimas não tenho Coração por que é que tu não paras A taça do meu sofrer findaste Inútil resistir se forças já não tenho Tu sabes bem que ela é a minha vida Meu doce e grande amor E eu via nessas palavras o anúncio de que já não havia possibilidade de ter esperanças e de que eu nunca mais veria meu apartamento de São Paulo de fato nunca mais entrei lá e se entrasse já nada encontraria do que foi sua decoração tão peculiar Acreditava mesmo que ter cantado essa canção nas vésperas da chegada dos policiais devia ser agora interpretado como uma espécie de presságio ou mesmo conjuração Afinal essas alusões a torpor sono e frieza não eram uma prova de que a letra da canção se referia a mim Mas tentava em vão emocionarme com a canção em si ou com a idéia da dádiva ao velho Nem uma lágrima sequer começava a se preparar em minha alma para que eu esperasse sentila escorrer generosamente sobre meu rosto invisível Tentei a masturbação Habituado a ela desde menino e não a tendo abandonado nem com o início tardio de minhas relações com mulheres nem mesmo depois de um casamento sexualmente mais do que entusiasmante para mim considerei que com alguns dias de cadeia seria apenas necessário tomar a atitude deliberada de induzir me rapidamente a um orgasmo Bastaria pensei começar a pensar e a agir Mas não consegui sequer uma ereção Lembro que assustado com a neutralidade tátil com que reagiam meus órgãos genitais ao manuseio neutralidade que logo se transformava em dissabor e que correspondia a uma indisposição do espírito para o prazer ou o desejo adiei por uma ou duas vezes a tentativa Os dias que se seguiam não traziam nenhuma esperança de que meu corpo e minha mente pudessem se aproximar do milagre rotineiro do sexo não mais do que daquele do pranto No entanto que bênção que seria não apenas poder ser arrebatado pela tristeza ou pelo prazer mas também e talvez principalmente ter a experiência física das lágrimas ou de uma ejaculação Pareciame que eu seria salvo do horror a que fora submetido se sentisse jorrar de mim esses líquidos que parecem materializarse a partir de uma intensificação momentânea mas demasiada da vida do espírito De fato o pranto e a ejaculação são por assim dizer vivenciados como um transbordamento da alma quando esta a um tempo se adensa e se expande paradoxo interdito à matéria Muitas vezes depois de posto em liberdade pensei nessa analogia entre o esperma e as lágrimas que me ocorrera por causa da situação vivida na cela da PE É uma analogia que vai muito além da mera constatação de que se trata de duas secreções corporais excetuada esta última condição tudo o que aqui foi dito sobre o choro e o gozo não pode ser aplicado por exemplo ao suor ou à urina Sem a graça do sexo ou do pranto sentiame como que seco de mim mesmo e apartado do meu corpo A sensação de distanciamento que minha mente aprendera com a experiência do auasca sem dúvida contribuía para isso Muitas vezes através dos anos tenho parado para considerar como foi arriscada e infeliz a circunstância de ter essa viagem alucinógena sido seguida tão de perto pela prisão E medito sobre como isso é representativo mesmo emblemático da coincidência no Brasil da fase dura da ditadura militar com o auge da maré da contracultura Esse é com efeito o pano de fundo do tropicalismo foi em parte por antecipação o tema da nossa poesia Depois que saímos da cadeia começamos a nos habituar com as notícias de amigos que eram levados de prisões para sanatórios ou viceversa Acompanhamos diversos processos de enlouquecimento e como já contei afasteime definitivamente das drogas escapara da loucura por um triz fora salvo por meu pai como contarei não tinha condições de correr o risco Na cela da PE a consciência fria e estreita da qual eu tivera uma amostra na porta do prédio de Gil no momento da detenção tinha se tornado para mim o único modo de ser eu mesmo Dormia muito cedo à noite era sempre acordado por soldados pela manhã passava a manhã inteira sentado no cobertor com as costas contra a parede e no meio do dia depois de empurrar goela abaixo algum pedaço de carne com inhaca e um feijão com gosto de poeira adormecia outra vez por não sei quanto tempo mas é certo que despertava com o sol ainda meio alto O meu sono de presidiário era um sono triste e infalível do qual eu emergia sem nenhum resíduo de sonho Lembro que o velho comunista da cela ao lado tinha planejado um brinde na passagem do AnoNovo ele tinha descoberto quem iria ficar de plantão na noite de 31 de dezembro e assegurava que com a ajuda desse carcereiro de boa vontade tomaríamos pelo menos um gole de vinho Dei enorme importância a isso uma vez que sempre me pareceu convincente a superstição familiar que nos manda permanecer acordados na entrada do AnoNovo caso contrário projetase como que uma sombra má sobre o período que se inicia Sem propriamente me envolver com o aspecto sentimental da celebração prometi a mim mesmo que ficaria desperto para salvar a minha vida ou pelo menos não deixar assegurada para o futuro a desgraça em que me encontrava O mero fato de começar o ano na cadeia era o pior dos augúrios entregarme a isso no sono sem esboçar nenhuma resistência seria darme a mim mesmo por morto ao menos para a vida que eu queria poder reconquistar Mas por mais que eu me assegurasse de que não adormeceria quando a planejada celebração se deu pois ela se deu exatamente como o velho previra eu estava num sono tão profundo que não atendi aos chamados de Gil do velho ou do carcereiro Eram poucos os momentos em que podíamos falar uns com os outros mas o velho sabia utilizálos muito bem no primeiro dia do ano de 69 eles me contaram tudo sobre a festa de réveillon que eu perdera Não era pouca coisa desde a infância nunca passei a meianoite de 31 de dezembro para 1º de janeiro dormindo regra à qual voltei a ser fiel desde que fui posto em liberdade Aquela foi a única vez em toda a minha vida consciente em que isso se deu O que me tornou ainda mais tristemente indiferente não ter sido capaz de desferir um golpe por mínimo que fosse no que já se tornava uma quase perfeita desesperança só fazia aumentar o desprezo não há outra palavra que sentia por mim mesmo O curioso é que depois que saí dali criei uma memória do momento do brinde como se tivesse participado dele tenho ainda hoje na lembrança imagens nítidas do copo com vinho tinto sendo trazido até mim pelo bom soldado cujo rosto não distingo por detrás das grades O fato é que agora quando quero me consolar da minha reconquistada dificuldade de dormir penso em como dormir quando não queria foi muito pior do que estar desperto quando quero dormir Quanto à minha quaseincapacidade de tolerar a comida servida no quartel ao menos uma vez ela foi interpretada por algum oficial como uma tentativa de greve de fome depois de ouvilo grunhir através da grade alguma coisa nesse sentido esforçavame para não deixar a carne e o feijão intactos Greve de fome qualquer forma de resistência ou heroísmo era coisa que estava a distância infinita de minha mente reduzida ao imediato Entre o chão duro e o puído cobertor verdeoliva escuro que me servia de cama viamse alguns pedaços de jornal velho rasgados e meio amarelados No relativo entorpecimento a que me entreguei para não desesperar com a ausência de espaço a solitária era exígua creio que com as costas contra uma parede eu podia tocar com os pés a parede em frente ou com a nenhuma perspectiva de futuro ninguém ali sequer sabia que no ato da prisão nos tinham anunciado um interrogatório e alguns sargentos ou tenentes que metiam a cara entre as barras da grade alta nos diziam sem que nós lhes disséssemos nada que todo preso alega inocência eu lia repetidas vezes sem guardar na memória trechos de frases desinteressantes anúncios manchetes vazias de sentido fragmentos de noticias ou de artigos Nada era sequer remotamente notável Eu relia tudo num automatismo acrítico sem nem mesmo me permitir pensar que aquilo pudesse ser entediante ou ridículo Não sei descrever o malestar que me causou a leitura feita ali mesmo dentro daquela cela alguns dias depois da consolidação desse hábito da narração de ação semelhante no livro O estrangeiro de Albert Camus Uma tarde vi a cara de um homem que me falava lá do alto da porta da parte gradeada Agora lembro com alguma segurança que a porta era inteiriça do chão até mais ou menos a altura da minha cabeça de modo que era necessário que eu me pusesse na ponta dos pés e esticasse o pescoço para poder ver algo do corredor por entre as barras Ele falava com um desassombro surpreendente para quem se mostrava tão simpático comigo Mas se ele não tinha medo tampouco parecia ter muito tempo Era um coronel do exército que estava preso por suspeita de subversão ou mera simpatia pelos comunistas Ele me disse um tanto ofegante que por ser militar graduado tinha algumas regalias podendo entre outras coisas circular pelo quartel No entanto não lhe seria permitido falar comigo ou com Gil presos incomunicáveis Tudo dependia de o oficial de dia ser seu amigo ou simplesmente tolerante Queria me ajudar Estava em contato constante com Ênio Silveira o dono da Civilização Brasileira a editora da esquerda intelectual Enio também estava preso na PE da Barão de Mesquita mas se bem me lembro do que me disse o coronel num andar acima do nosso e em muito melhores condições Ele tinha consigo muitos livros e embora nos fosse proibido a mim e a Gil e seguramente também ao velho ter livros na cela ele o coronel me traria ou faria chegar a minhas mãos clandestinamente livros conseguidos por Ênio Silveira Eu deveria lêlos fora das horas de refeição ou revista quando eles deviam ser escondidos sob o cobertor Esse coronel voltou pelo menos uma vez trazendo nas mãos O estrangeiro que ele me passou sem dúvida com o auxílio do guarda pela portinhola pela qual chegava a comida O segundo livro foi depositado pelo mesmo processo mas desta vez por um soldado que furtivamente me comunicou ter sido mandado pelo tal coronel e por Ênio Silveira Era O bebê de Rosemary É impossível imaginarse um par de livros menos apropriados para distrair um preso incomunicável do que esse O tom frio de O estrangeiro suas frases curtas e isentas que reproduzem uma visão a um tempo direta e distanciada enfim suas virtudes formais e estilísticas conseguiram extrair um verdadeiro entusiasmo de mim o chamado prazer estético É impressionante como isso tem vida própria e independente Eu podia alimentar minhas mais sombrias fantasias supersticiosas ao acompanhar o destino daquele homem dos afetos neutralizados que mata por nada lê repetidas vezes um pedaço de jornal numa cela de prisão e tornase estranho à sua própria morte podia me assustar com a precisão com que algo do que eu mesmo estava vivendo era ali descrito podia mesmo ver naquilo uma profecia de perpetuação inexorável da minha situação mas a capacidade de admirar o texto como tal parecia ter força para perdurar em mim ainda que só me restasse um fio de razão O bebê de Rosemary talvez tenha me feito mais mal Com sua narrativa vivaz e convencional talvez mais hollywoodiana do que o filme que veio a ser feito depois baseado nele esse livro instigante resulta mais do que numa metáfora para a paranóia num incentivo dos seus mecanismos Nunca mais reli nem um nem outro livro desde que sai da prisão Mas sei que O bebê de Rosemary com seus apartamentos suas competitividades de carreiras artísticas seu glamour e suas descrições da adoração do mal em si me fez mais supersticioso do que eu já era e do que eu já estava inclusive influindo retrospectivamente na interpretação que eu dava a O estrangeiro Essas leituras no entanto me divertiram e ainda que fosse só pela intensificação do medo fizeram o tempo passar Os banhos de sol a que me diziam todos os presos têm direito e que portanto todos os presídios têm obrigação de propiciar chegaram com certo atraso Acompanhado por um soldado portando uma metralhadora sempre apontada para mim deixei pela primeira vez a cela que já se me afigurava eterna O maior trabalho que minha mente teve foi o de negociar com a excitação inevitável que esse fato produzia aceitando pouco a pouco a evidência de que apesar do alívio físico resultante da exposição a maiores e mais variados espaços eu estava testemunhando antes uma reafirmação do confinamento a prisão tinha aderido à minha pessoa seguiria comigo por toda parte do que uma verdadeira experiência de liberdade mesmo relativa me tiraram da cela por alguns minutos apenas para que me sentisse mais preso do que nunca O soldadinho que caminhava a um passo de mim com sua metralhadora em permanente ameaça eu sentia um medo estável durante todo o tempo em que o cano da arma apontava para mim me pedia que não falasse não parasse de caminhar não me afastasse dele nem tentasse andar mais rápido caso contrário seria obrigado a atirar em mim ele também demonstrava medo no modo falsamente agressivo com que falava e no subtom de súplica perceptível na frase Não me obrigue a fazer isso Era reconfortador apesar de tudo ver outras pessoas movendose sob o sol entrando e saindo de portas embora o fato de serem todos homens e fardados funcionasse como uma reafirmação a mais da prisão como tendo tomado conta de tudo e do caráter de pesadelo que o mundo adquirira desde aquela madrugada em São Paulo Um outro homem sem farda passeava pelo pátio Era evidentemente um preso seu guarda armado o seguia de perto como o meu a mim Forçando uma aproximação a que o soldado que o acompanhava se opôs com firmeza duvidosa ele veio até mim e me dirigiu a voz para grande nervosismo do meu guarda que agora implorava que eu não falasse com o estranho Você não pode eu tenho ordens de atirar Só não entrei em pânico por causa da expressão segura e desdenhosa dessas ameaças que se estampava na cara do meu teimoso interlocutor Ele me chamava pelo nome com desenvoltura e seus olhos pareciam dizer Ninguém vai nos matar eu já conheço esses soldadinhos assustados conversemos Era Ênio Silveira Seu desassombro me transmitiu não apenas a impressão de que ele era familiarizado com prisões e carcereiros sua alta estatura seus modos desembaraçados e elegantes sua segurança pareciam imporse por alguma força de classe àqueles adolescentes fardados Era como um adulto falando a crianças mas sobretudo como o doutor falando a dois pobresdiabos Perguntoume se os livros tinham chegado a minhas mãos Eu disse que sim e agradeci com o que creio quase não creio que tenha sido um sorriso Ele sim sorria sem tensão visível Foi a única vez que o vi Ele se afastou acompanhado do seu guarda deixando a impressão de que o tinha feito por deliberação própria e não por obediência ou medo Na verdade dirigiu um gesto sutil aos soldados que parecia querer dizer Muito bem eu conheço as regras do jogo é claro que não vou exagerar o meu senso de medida me autoriza essas pequenas contravenções já comuniquei ao meu companheiro as trivialidades que desejava comunicar agora podemos seguir O soldado que era responsável por mim mostrouse muito mais nervoso do que o outro Tanto quanto eu próprio me mostrava mais assustado do que o famoso editor Alguns minutos depois eu estava de volta à cela Não sei se houve um outro banho de sol Lembro do pátio grande mas não muito grande da luz intensa e do calor E essas lembranças às vezes surgem independentes do encontro com Ênio como se uma das sessões de caminhada tivesse sido dominada por esse incidente e a outra tivesse transcorrido toda em silêncio e observação Talvez tudo tenha se dado numa única saída ao pátio interno Se houve dois banhos de sol não sei em qual dos dois eu e o velho da cela ao lado decidimos aproveitar a oportunidade para nos conhecermos visualmente Agradame pensar que fui eu que ganhei coragem e antes de ser levado para fora do corredor ou quem sabe antes de ser reintroduzido na cela pedi aos carcereiros que me deixassem ver o velho e falarlhe de frente Mas é mais provável que a sugestão tenha partido dele Seja como for os soldados atenderam ao nosso pedido e eu vi a cabeça achatada e quase toda careca de um homem de olhos de índio que sorria discretamente para mim com esse ar cruamente sincero que faz com que nos nordestinos a bondade ou a ternura nunca pareçam piegas Dava para ver que se tratava de um homem troncudo É possível que tenha havido também uma oportunidade de depois disso eu vêlo passar no corredor para seu turno de exposição ao sol Talvez ele tivesse sido levado outras vezes para isso antes da minha primeira vez e eu não tenha me dado conta deitado no chão sem saber da existência das caminhadas eu não imaginaria que algo assim se passasse e embora às vezes ouvisse diálogos entre guardas e presos quase nunca me dispunha a esticar me para olhar Nessa vez em que sem dúvida nos vimos não lembro o que nos dissemos Mas creio que ele mencionou minha carreira de cantor com agradecimentos pelas muitas vezes que cantei Súplica e de alguma forma deixou claro que esperava que eu não demorasse muito na cadeia embora soubesse que ele próprio ainda tinha muito tempo de reclusão pela frente Julguei ver cumprirse a boa previsão do velho quanto ao tempo que eu permaneceria na prisão quando um soldado chegou com minhas roupas e sapatos e um oficial ordenou que eu tomasse banho e me vestisse para ir embora Não pensei que estivesse sendo libertado imediatamente apenas considerei com muito otimismo que afinal eles me conduziriam para o interrogatório Na verdade essa idéia do interrogatório tinha se tornado uma obsessão pois representava a única ligação com os últimos momentos de vida real que eu experimentara antes de entrar no pesadelo De minha cela podia ouvir que eles se comunicavam com Gil provavelmente dando instruções semelhantes às que me tinham dado Tomei banho vesti a roupa e em pouco tempo me encontrava ao lado de Gil em algum lugar sob pilotis de pé costas contra a parede esperando não sabíamos o quê Nos disseram com veemência que para o nosso próprio bem não trocássemos uma só palavra Escoltados por soldados e oficiais Gil e eu tentávamos nos comunicar silenciosamente Enviávamos interrogações e mensagens de apoio mútuo no sentido de manter a integridade mental e a paciência Por fim jogaramnos nos fundos de um camburão e bateram a porta com brutalidade deixandonos na total escuridão O carro arrancou e como eles tivessem disparado a sirene aproveitei para tentar falar com Gil certo de que não nos ouviriam Ainda assim cochichávamos Na verdade apenas repetimos as perguntas que já nos tínhamos feito sem palavras aonde nos levarão haverá afinal um interrogatório o que será que está de fato acontecendo e depois de rodarmos aos solavancos por muito tempo onde será que estamos agora O som da sirene era inacreditavelmente intenso e parecia sair de dentro de nós Como era um ruído habitual da cidade o qual sempre ouvíramos de longe como indicador de que se transportava um ferido um bandido ou um enfermo ser chacoalhado dentro do ventre do monstro que produz tal gemido e ainda por cima na mais completa escuridão fazianos sentir como se estivéssemos no coração do mal e pela primeira vez pensei em como seria doloroso para os membros de uma boa família ter seu filho ou irmão preso por algum crime Pensei em meu pai e minha mãe Em como eles embora com certeza não se envergonhassem de mim sofreriam se soubessem que eu estava rodando as ruas da cidade do Rio de Janeiro dentro de um carro de polícia com a sirene em estardalhaço penoso e constante Quantos pais de família estariam andando pelas calçadas à beira das ruas por onde o camburão passava E quão longe tantos deles sentiriam que suas vidas estavam daquele som estridente e queixoso em cujo núcleo inescrutável eu agora me encontrava instalado Meus olhos se esbugalhavam na escuridão à medida que a viatura avançava entre freios bruscos e arranques ruidosos Gil e eu desistimos de falar A inexplicável demora da barulhenta viagem nos fazia imaginar que os policiais estavam rodando sem rumo apenas para nos meter medo Não lembro de ter comentado isso com Gil nesses termos nem de têlo feito depois da volta à liberdade mas tenho certeza de que Gil pensava exatamente a mesma coisa que eu Sentíamos medo O carro em que estávamos não era do exército nem da Polícia Federal Talvez pertencesse à Polícia Militar É mais provável que fosse da Polícia Civil pois lembro de dois ou três homens à paisana tomando os assentos da frente Isso dava a impressão de que qualquer coisa podia acontecer conosco sem que ninguém se desse conta Um aparelho repressor tão confuso sem mandado de prisão sem interrogatório e com tantas polícias envolvidas produzia a sensação de que tínhamos sido atirados num inferno de que os solavancos no escuro e as curvas fechadas ao som do grito dolorido mas impiedoso da sirene eram apenas um indício Em breve com efeito se multiplicariam no Brasil os casos de desaparecidos e cada vez um número maior de pais de família teriam seus filhos em situação semelhante à nossa ou bem pior Fomos despejados num outro quartel da PE na vila militar que se encontra no distante subúrbio de Deodoro o que talvez explicasse a viagem demorada embora não fosse suficiente para justificar o tortuoso do caminho percorrido De todo modo não lembro com clareza a chegada à vila Não fomos entregues pelos paisanos aos nossos novos hospedeiros militares à porta de um edifício mas em algum descampado do terreno pertencente a um quartel Foi a única vez que nos trataram com alguma violência física algemados com as mãos para trás levamos alguns empurrões e trancos enquanto nos apressavam o passo As algemas foram retiradas não sei por quê antes que entrássemos no quartel Era um complexo de edificações modernas de um só andar cujo prédio principal onde se encontravam as celas me lembrava o Ginásio Teodoro Sampaio onde eu estudara em Santo Amaro Como tinha acontecido na PE da Barão de Mesquita disseram que tirássemos as roupas conservando apenas as cuecas tipo sunga que usávamos e nos conduziram para as celas Só que dessa vez eram xadrezes grandes onde vários outros já se encontravam presos Os soldados me puseram no primeiro xadrez do corredor e seguiram com Gil para um imediatamente ao lado Experimentei uma emoção de que não me sabia mais capaz ao ver outras pessoas em situação bastante próxima da minha para que pudéssemos falar em pé de igualdade E essas pessoas não tinham o ar desesperado ou sonâmbulo que já devia ser o meu Creio que não chorei mas era como se tivesse chorado Abracei nervosamente muitos deles como se estivesse reencontrando amigos embora fossem pessoas que eu nunca tinha visto antes Eles reagiram com compreensão e naturalidade correspondendo aos abraços e dizendo o que lhes fosse possível para me acalmar Eram todos aparentemente mais moços do que eu Um deles demonstrando espírito de liderança propôs que rezássemos um terço em conjunto e para isso nos dispôs em círculo no meio do xadrez É o único companheiro de prisão de quem fiquei amigo mas de cujo nome não esqueceria mesmo se isso não acontecesse e ele não tivesse se tornado um grande ator e ainda maior agitador cultural do Rio de janeiro dos anos 70 em diante é que ele tinha sido batizado e registrado com o inesquecível nome de Perfeito Fortuna Em sua maioria os garotos com quem eu dividiria de agora em diante aquela cela eram de uma associação católica de bairro ligada a algum padre de esquerda Me senti muito reconfortado com a idéia da oração coletiva era um modo ritual de eles dizerem que estávamos juntos e que assim podíamos fazer alguma coisa Mas a oração mal começou Um sargento ou tenente que ouvira o som das vozes rezando veio enfurecido ordenou ao soldado que abrisse a porta gradeada entrou no xadrez e aos palavrões arrebatou o terço da mão do nosso líder Isso me fez retroceder de maneira dolorosa ao estado de abulia do qual acreditava estar começando a poder sair Aquele bando de jovens usando apenas cuecas mínimas e sem saber ao certo o que estava se passando com eles jogados numa cela quente como um forno tinham readquirido momentaneamente por meio do ritual do rosário uma dignidade humana uma compostura que a brutalidade do militar destruíra em poucos segundos Os rapazes no entanto resmungaram indignados segredando uma fúria contra o tirano que se não chegava até ele reforçava o moral do grupo ofendido Alguns deles percebendo que eu tinha sido atingido especialmente pela agressão tentaram me consolar e encorajar dizendo que não me assustasse que aqueles babacas eram assim mesmo mas nós sempre acharíamos meios de manter nossa integridade Ficamos pelo menos mais uma semana nesse segundo quartel da PE Como na primeira semana não vi Gil nem uma vez E diferentemente do que acontecia ou foi dito que aconteceria no quartel da Barão de Mesquita não havia banhos de sol Era janeiro no Rio pior na baixada da Zona Norte da cidade o que significa um calor de ficção científica A água do único chuveiro que usávamos parecia aquecida artificialmente mas nós sabíamos que isso se devia somente à ação do sol sobre o tanque O banheiro aqui era um pequeno cômodo independente com um chuveiro uma pia e um vaso sanitário anexo ao xadrez propriamente dito do qual se separava por uma porta que naturalmente não se podia trancar Soube pelos meus companheiros que no xadrez ao lado Gil estava na companhia de vários escritores e jornalistas famosos Entre estes Ferreira Gullar era particularmente querido por sua capacidade de encorajar seu senso de solidariedade e seu talento para encontrar soluções inventivas mesmo naquela situação tão pobre de possibilidades Um garoto que tinha sido transferido do xadrez deles para o nosso um magrelinho de óculos cujos olhos de japonês e audácia quase suicida no trato com os militares lhe valeram o apelido de Sumidinha numa referência a um expreso este um nisei de verdade ou seria isso um trocadilho cujo humor não alcancei de nome Sumida de quem se dizia ter sido assassinado pelos militares falava de Gullar com os olhos cintilando de admiração Ele me informou sobre um mecanismo idealizado e construído por Gullar que tornava possível a comunicação escrita entre os dois xadrezes através de um sistema de cordões que passava bilhetes de um lado para o outro por cima do tanque de água que servia aos dois banheiros A caneta conseguida com uma astúcia cujos detalhes eu não conheci e os papéis subtraídos à ração de papel pardo que substituía o papel higiênico ficavam escondidos em cima de um muro rente ao tanque junto aos cordões e toda vez que se fazia necessária uma comunicação um preso entrava no banheiro enquanto os outros guardavam a grade para avisar no caso de algum oficial ou soldado se aproximar Havia um sinal de batidas na parede para anunciar o envio de um bilhete e havia um outro sinal para alertar sobre a chegada de um militar Gil nunca me mandou nenhum recado nem eu a ele Um dia chegou para mim um bilhete do jornalista Paulo Francis perguntando se eu tinha notícias de Ênio Silveira Respondi prontamente informando de maneira sucinta sobre seu bom estado de saúde e sua solicitude em enviarme livros Sumidinha também nos contou que havia um homem com problemas de locomoção que tinha sido literalmente despejado de uma cadeira de rodas dentro do xadrez por ser um homônimo do escritor Antônio Callado contra quem havia uma ordem de prisão Apesar da insistência dos outros presos em dizer que aquele homem não era o escritor Callado que eles todos conheciam bem os militares o mantiveram ali por alguns dias supondo que os colegas negavamlhe a identidade por pena O verdadeiro Antônio Callado chegou ao quartel da PE da Vila Militar enquanto ainda estávamos ali e assim seu desafortunado xará foi libertado Tão marcante quando rememoro o momento da detenção a escova de dentes que deve ter me acompanhado durante todo o período parece ter sumido da minha lembrança dos dias em que estive preso Por mais que me esforce não consigo lembrar de mim mesmo escovando os dentes em nenhuma das três celas em que vivi por dois meses Tampouco tenho lembrança de ver meus companheiros da Vila Militar o fazendo Não tenho dúvida de que escovava os dentes diariamente desde o primeiro dia na Barão de Mesquita Mas não sei sequer como foi tratada a questão da escova nos momentos em que ao chegar a cada um dos três quartéis por onde passamos nos despojavam de todos os nossos pertences e roupas Eles nos mandavam tirar os relógios as carteiras com o que houvesse de dinheiro e documentos e por fim as roupas com exceção apenas das cuecas mínimas tipo sunga então ainda uma novidade e no entanto todos os rapazes do meu xadrez usavamnas igualmente sem nenhum caso de preferência pelo que a essa altura se começou a chamar de cueca sambacanção embora esta devesse ser encontradiça no xadrez de Gil cheio de homens mais velhos Quanto às escovas certamente as trouxéramos de casa nos bolsos mas não lembro de receber a minha de volta quando lhes entregava a camisa ou de por exemplo caminhar para dentro da cela quase nu com uma escova na mão Tampouco sei o que fazia com a escova cada vez que deixava um quartel nem mesmo o que fiz com ela ao ser solto O modo como nossa memória seleciona é curioso Claro que não lembramos tudo Mas no caso de um cotidiano tão empobrecido por que esquecemos tão totalmente mesmo a experiência de algo que com absoluta certeza sabemos que se deu Sem dúvida minha mente criou mecanismos para se defender e essas amnésias específicas devem ter desempenhado um papel nesse processo Talvez os gestos meramente automáticos de todo dia tenham sido esquecidos à medida mesma que se realizavam Estou certo de que escovei os dentes todos os dias em que estive preso mas o fiz num tal grau de entorpecimento que nada ficou em mim que pudesse trazer de volta uma imagem ou uma sensação que o confirme Do mesmo modo nunca consegui lembrar com segurança se havia ou não toalha de banho fosse na solitária fosse no xadrez Estou quase certo de que na Vila Militar onde éramos tantos não tínhamos toalhas para nos enxugar depois do banho De resto isso não era necessário uma vez que o calor era tão intenso que mal saíamos do chuveiro já nos sentíamos secos Lembro de sentir a cueca que vestia sobre o corpo molhado secando em contato com a pele Mas não sei se se pode confiar nessas lembranças eu não estava suficientemente desperto ou lúcido no momento mesmo em que realizava esses atos para guardar deles uma idéia precisa Desse modo apesar de me sentir consideravelmente mais animado do que na solitária meu sono continuava irresistível Não que se possa dizer que eu estivesse menos infeliz A presença de outros rapazes com quem podia conversar representava um alívio depois de uma semana sozinho É verdade que de vez em quando nos diziam que não nos era permitido conversar Mas todos presos e carcereiros sabíamos que uma tal proibição era praticamente impossível As vezes quando estávamos falando alto um sargento gritava para que nos calássemos Perfeito Fortuna que reagia com humor a qualquer tipo de agressão não se intimidava com tais gritos e encenava números musicais e monólogos teatrais improvisando figurinos com os lençóis Pois havia lençóis e colchões espalhados pelo chão e pelo menos uma cama sobre a qual revezávamos Ora ele era um galã ora uma vedete Muitas vezes cheguei a rir No entanto aquela subvida se arrastava sem esboçar uma solução ninguém falava em interrogatório Além disso nos dias de visita todos podiam sair da cela para falar com seus familiares na varanda ou na sala grande da entrada menos eu e Gil continuávamos incomunicáveis Os meninos ao deixarem o xadrez para as visitas tentavam me consolar com palavras carinhosas Eu ficava sozinho na cela enorme Nem isso me fazia chorar Um detalhe terrível me levou às lágrimas inúmeras vezes quando lembrado depois que fui solto as discussões de Dedé com os oficiais nas tentativas que ela fez de falar comigo nesses dias de visita e que eu ouvia estarrecido de dentro da cela sem que ela soubesse que eu podia ouvir Ela insistia em me ver respondendo com ira e coragem às ameaças dos militares que nem sequer lhe confirmavam minha presença ali Eles não sabiam nem eu é claro como ela havia descoberto meu paradeiro Ela alegava que não sei que autoridade lhe assegurara o direito de me visitar Aparentemente alguém lhe prometera isso mas ninguém dera uma ordem nesse sentido aos meus hospedeiros Ao menos uma vez percebi que ela estava chorando enquanto falava com os oficiais Ouvir a voz de Dedé aquele timbre cheio de confusão e verdade aquela emissão em carne viva e ouvir lhe a voz sem poder verlhe o rosto tocarlhe a pele ou lhe dar resposta era para mim nas circunstâncias em que me encontrava uma experiência dilacerante sem ser capaz de tirarme totalmente do estado de loucura a que fora levado aquela voz vinda do passado remoto e inconvincente que eu guardava na memória tinha ainda o poder de me enternecer E esse enternecimento desequilibrava a letargia que era minha proteção Eu sentia o ímpeto de abraçar e beijar cheio de gratidão aquela mulherzinha que era minha e que existia e que era a fonte de todo o bem possível e que estava a poucos passos de mim sem me saber tão próximo apenas uma parede nos separando A primeira vez que sozinho na cela reconheci sua voz assusteime e descri Agora que a repetição teimosa confirmavalhe a realidade eu embora me mantivesse imóvel não sabia o que fazer para conter o impulso de sair dali de libertarme das paredes e das restrições de espernear contra minha desgraça Dedé chorando em voz alta dizia aos militares que voltaria no próximo dia de visita com a certeza de que então haveria uma ordem de permissão para nosso encontro E a ponta dessa esperança me mantinha inerte me dava forças para adiar o descontrole iminente Alguns minutos depois meus companheiros de xadrez voltavam com doces caseiros que me ofereciam e me davam noticias de Dedé Eles a viam mas não podiam lhe dizer nada nem mesmo que eu estava de fato ali Ela própria tomou a iniciativa de mandar recados e pedir noticias através de familiares dos outros presos mas esse expediente foi pouco usado pois em poucos dias seríamos transferidos uma outra vez Meu sono continuava irresistível mas não igualmente freqüente Mesmo antes dessas tardes em que eu ouvia a voz de Dedé o estímulo que eu encontrara no mero fato de ter companhia era suficiente para fazer uma diferença quanto a isso É possível que eu dormisse tão cedo quanto na solitária mas creio que a sesta já não era infalível No entanto como já disse vários fatores de depressão contribuíam para a perpetuação do torpor o primeiro deles sendo é claro a ausência de qualquer sinal de que nossa situação pudesse se resolver Na solitária eu já tinha desistido até mesmo de pensar em me masturbar as tentativas me deixaram amedrontado Aqui no xadrez da Vila além de tudo eu não estava sozinho não havia desejo nem oportunidade para a masturbação Um dia um dos rapazes do xadrez afirmou numa conversa de que todos participávamos que os militares punham uma substância broxante em nossa comida Hoje penso que isso devia ser um mito consolador Pelo menos o foi para mim tomeio como uma explicação satisfatória da total inapetência sexual a que me via reduzido Com efeito depois de quinze dias sem sexo eu não tinha tido nem mesmo uma polução noturna Mas tenho razões para crer que já não dormia tão profundamente durante a noite Uma terceira cela era reservada para os presos comuns Todos nós presos políticos sabíamo nos sob a proteção de uma ordem de nãoagressão física a que por vezes alguns oficiais se referiam com desdém e impaciência A irritação com essa ordem não raro se manifestava em sessões de humor negro com algum oficial apontando o cano do revólver para dentro do xadrez num protesto contra a benevolência de seus superiores a dizer Se fosse por mim eu metia logo bala em vocês Sumidinha no seu jeito temerário desafiava o tenente ou capitão a fazer o que ameaçava Os presos comuns não se beneficiavam dessa benevolência Podiase também verificar uma alta rotatividade no terceiro xadrez presos chegavam durante a noite outros entravam e saiam no mesmo dia vários passavam de saída pelo corredor sob as ameaças dos carcereiros que os aconselhavam a não mais se arriscar a aparecer diante deles na rua Diziase tratarse de ladrões e contraventores das redondezas da Vila pequenos criminosos da Zona Norte As vezes eu era acordado no meio da noite por gritos horrendos vindos do corredor Eram surras intermináveis e mais de uma vez ouvi as vozes dos verdugos pedirem com urgência a padiola Essas vozes por vezes pareciam surpresas com o resultado dos maustratos De uma feita pelo menos tive a quasecerteza de que a vitima tinha morrido Alguns dos meus companheiros de cela insinuavam que tudo aquilo podia ser encenação para nos amedrontar Mas tal insinuação não era convincente Outros alimentavam o ódio aos algozes considerando que aquela gente pobre podia ser espancada e mesmo assassinada ali sem que ninguém tomasse conhecimento De fato desde essa experiência na PE da Vila Militar passei a ter uma idéia diferente da sociedade brasileira a ter uma medida da exclusão dos pobres e dos descendentes de escravos que a mera estatística nunca me daria Mas seriam sempre realmente de presos comuns os gemidos infernais que ouvíamos nas noites da Vila Militar A longa duração de algumas dessas sessões de tortura de que éramos testemunhas auditivas me leva a supor que talvez durante a noite fossem trazidos alguns militantes de quem se queria arrancar confissões importantíssimas Talvez no entanto essas demoras se devessem ao sadismo puro e simples dos militares daquele quartel Sem dúvida eles se vangloriavam disso lembro do misto de orgulho e inveja com que se referiam aos mais temidos entre eles os catarinas como são conhecidos os soldados altos e louros descendentes de alemães provenientes dos estados do Sul do país sobretudo de Santa Catarina de onde lhes advinha o apelido famosos por sua intransigência e pelo seu fanatismo Fosse como fosse os gritos me acordavam Penso que os mesmos sons se ouvidos na solitária não teriam invadido meu sono de chumbo alguns rapazes no xadrez não despertavam durante essas macabras sessões noturnas Hoje no entanto impressioname mais o fato de que eu voltasse a adormecer com facilidade uma vez silenciados os urros Sem dúvida aqui na Vila Militar eu estava menos letárgico do que na Barão de Mesquita mas se os chamados para o réveillon não me tinham despertado ali como os gritos de dor o faziam agora talvez isso se devesse mais à natureza dos sons do que à sua intensidade os gritos dos torturados produziam medo Os que acordávamos primeiro calávamonos assustados e em seguida trocávamos cochichos indignados para depois voltarmos a dormir sem uma gota de doçura na alma Havia de todo modo um pouco de vida durante a noite Um sinal intermitente de vida horrenda que me fazia despertar no dia seguinte como quem estivesse voltando de um pesadelo para dentro de outro pesadelo Um dia pensei que ia morrer Um soldadinho tinha vindo até a grade do xadrez e ficado olhando para mim com uma expressão de medo e pena Parecia nitidamente saber de algo horrível que estava prestes a me acontecer sobre o que ele não me podia dizer nada Em pouco tempo ele próprio obedecia a uma ordem de abrir a porta gradeada para que eu seguisse um oficial e um sargento que me levaram para o largo alpendre por onde eu entrara no dia da chegada ao quartel O oficial mandou que eu andasse na frente e não olhasse para trás O grupo formado pelo oficial e pelo sargento mais um soldado que apontava sua metralhadora para mim me conduziu para fora do edifício e tendo recebido ordem de virar à esquerda logo me vi ao ar livre andando ao longo de uma estrada ladeada por algumas edificações menores à minha direita também pertencentes ao quartel Pareciam casinhas brancas quase todas de portas fechadas Eles falaram muito pouco e não lembro de nada do que disseram Mas ainda posso experimentar a sensação que me causava o tom solene que todos eles davam ao que quer que fosse acontecer Era evidente que não me levavam para um interrogatório Era mesmo indubitavelmente perceptível que iam fazer alguma coisa física comigo Eu podia ler no ritmo dos atos e das falas de todos no próprio desenrolar do caminho à minha frente que eles iam fazer algo drástico com meu corpo Eu sabia que não se tratava de sexo nem tortura nem mesmo uma surra era evidentemente uma coisa simples e limpa um gesto só a que eles davam um ar pomposo mas não denso o bastante para que eu pensasse que iam me matar No entanto foi exatamente isso que pensei quando no trecho final da alameda onde já não havia senão uma porta aberta numa última casinha o oficial ordenou que eu parasse e não olhasse para trás O azul do céu estava embaçado por aquela névoa parda que faz com que no verão do Rio o ar não pareça bom nem para respirar nem para ver mas que por isso mesmo amamos pois assim reconhecemos o verão do Rio Parei em obediência à ordem e senti como que um soco gelado dentro de minha barriga no centro do meu corpo e de repente minhas pernas não existiam Não caí contudo Esperei um tiro Mantinhame de pé com uma firmeza digna que não correspondia ao desfalecimento que só eu sabia estar sentindo O oficial mandou que eu virasse à direita e entrasse na casinha cuja porta estava aberta Era a barbearia do quartel O barbeiro já estava com a tesoura e a máquina nas mãos para derrubar minha famosa cabeleira A indiferença que demonstrei e que decepcionou os meus algozes se devia ao fato de a imensa alegria que senti quando vi que não ia morrer ter sido empanada pela constatação do ridículo deprimente de tudo aquilo Os oficiais perderam o tom solene e não encontraram o tom cômico ou ríspido que erraticamente procuravam O medo que senti e a felicidade momentânea a que ele deu lugar tinham sido igualmente controlados por dispositivos de emergência que sem que eu tivesse poder consciente sobre eles eram acionados em mim Além disso por significativa que minha cabeleira fosse nós os tropicalistas fomos pioneiros do cabelo selvagemente grande no Brasil um passo adiante do modelo Beatles da jovem Guarda de Roberto Carlos e estávamos em janeiro de 69 e eu não cortava o cabelo desde 67 na prisão eu nem me lembrava que tinha cabelo comprido nem mesmo estava certo de ter uma carreira de cantor popular Assim a expectativa dos militares que os tinha levado a assumir a atitude pomposa da caminhada se devia a algo que para mim não estava em cogitação o corte do cabelo era para eles mas não para mim um assassinato simbólico Se eu tivesse pensado em cabelo teria imediatamente adivinhado o que ia se passar e não teria tido medo de que me matassem Num nível muito alto e sutil tinha se dado um diálogo totalmente equivoco entre mim e aqueles militares imbecis O barbeiro em minha memória ele não estava fardado percebeu logo que não havia espaço para o humor mas demonstrou muito maior firmeza e independência do que os oficiais Senti uma ponta de carinho por ele afinal ele significava a vida para mim naquele momento e lembro que trocamos algumas palavras com bastante calma Não sei se tive coragem de pedirlhe que guardasse meus cachos que caíam pelo chão mas o fato é que Dedé até hoje afirma que no primeiro dia de visita depois desse episódio Perfeito conseguiu fazer chegar a suas mãos um embrulho com meus cabelos Ela e eu sabíamos que na tradição religiosa afrobaiana somos aconselhados a reunir todo o cabelo que cortam de nós para jogar no mar Dedé tem disso tudo uma lembrança muito vivida pois quando impedida de me ver recebeu o embrulho com os meus cachos foi sua vez de julgar que tivessem me matado Também é inesquecível para ela o momento em que longe de mim jogava meu cabelo no mar Mas eu mesmo não tenho noção de como essa transação se deu Só lembro vagamente de que se falou nisso na barbearia ou na cela não sei em que grau de clareza e estou certo de que enquanto estava na Vila Militar não tive conhecimento dos resultados O que nunca esqueci foi o rosto do soldadinho aquele que certamente sabia o que ia acontecer chorando silenciosamente ao me ver voltar ostentando um corte de recruta A única outra vez que saí daquela cela antes de deixar para sempre a PE da Vila Militar ali nem se falava em banho de sol pensei que finalmente se tratava do interrogatório Na verdade embora aquilo não fosse ser o interrogatório foi de todo modo um interrogatório Creio que o oficial de dia tinha saído e o sargento que o substituía resolveu vir me chamar Eu nem mesmo sabia qual a sua patente quando o vi aproximarse da grade e ordenar que a abrissem para eu sair julguei que ele fosse um oficial Ele me fez atravessar o pequeno pátio sob pilotis e me introduziu numa sala mobiliada como um escritório com uma mesa de trabalho cheia de papéis uma cadeira de chefe encosta da à parede por trás da mesa ede frente para a outrauma cadeira comum em que ele me ordenou que sentasse Depois de sentarse ele próprio na cadeira de chefe começou a encararme com ar de ira e desprezo e por fim começou a falar Era um homem atarracado e corpulento vermelho alourado e vi imediatamente que se tratava de um completo boçal Ele fez algumas perguntas sobre nossa participação em passeatas de estudantes num tom de repreensão que logo deixou claro que aquilo não era para valer Essas primeiras perguntas não esperavam respostas o sargento estava simplesmente ralhando comigo Pelos modos de diretor escolar que ele assumiu viase que seu principal interesse ali era brincar de autoridade Ele próprio revelou que era um sargento e que tomara a iniciativa de me interrogar porque não admitia certas coisas Por exemplo eu era amigo daquela corja que montou a peça Roda viva Respondi que conhecia mais ou menos muitos dos envolvidos Ele queria saber se eu achava aquilo certo Como assim certo Você acha que a gente pode admitir aquela putaria com a Virgem Maria Fui tomado de certa indignação mas consegui escondêla completamente É que suas palavras me fizeram lembrar do dia em que cheguei e vi um terço ser arrebatado aos palavrões das mãos de garotos que queriam rezar e considerei igualmente desrespeitoso que aquele idiota trouxesse a palavra puta ria para perto do nome da Virgem pareceume que ele não acreditava e em seu intimo nem mesmo respeitava as representações religiosas e no entanto não se pejava de agredir os que amando muito mais a simbologia e os princípios do cristianismo não se submetiam à hipocrisia que ele guardava como um cão Ele próprio se encarregou de responder em meu lugar confirmando minhas suspeitas Botar Nossa Senhora de bobs na cabeça Eu não acredito em porra nenhuma de religião mas um negócio desse não pode Vocês acham que as famílias vão ao teatro pra ver isso Algo de minha indignação precisou aparecer Respondi lhe que eu acreditava em Nossa Senhora mas não tinha achado aquela cena ofensiva Dizer que eu acreditava não era de todo mentira como já disse vivia um enfrentamento de minha religiosidade a qual teve raízes marianas De qualquer modo me sentia ali representando os garotos católicos que estavam presos no mesmo xadrez que eu e que justamente por crer no cristo e na Virgem não aceitariam a intolerância do militar para com o espetáculo teatral Roda viva a primeira peça que meu colega compositor Chico Buarque escreveu tratava da ascensão de um astro da música popular e da inautenticidade e ridículo que isso envolve Era o que antigamente se chamaria uma obra de juventude no sentido de que era um tanto ingênua Mas não deixava de ser interessante que tivesse sido escrita por um excelente compositor que nada tinha de inautêntico na gênese ou no desenvolvimento de sua carreira ainda iniciante O que a transformara nem acontecimento de grande impacto porém fora a direção que José Celso Martinez Corrêa lhe imprimira Sendo seu primeiro trabalho depois da virada que representou sua montagem de O rei da vela de Oswald de Andrade Roda viva levava às ultimas conseqüências o estilo violento e anárquico inaugurado por Zé Celso Mais identificado com o artista pop que o texto criticava do que com a crítica que o texto lhe fazia mas ao mesmo tempo levando essa crítica aos seus extremos ele fazia da peça de Chico Buarque ela própria um ritual pop e uma oportunidade de revelar os conteúdos inconscientes do imaginário brasileiro e do Zeitgeist Essas revelações não poupavam nada nem ninguém fossem os personagens da peça ou os espectadores reais que assistissem a ela O jovem ídolo de massas retratado na peça tinha uma mulher mais honesta do que seus fãs e seu empresário e essa mulher em meio à enxurrada de imagens cambiantes que se sucediam no palco e que de nenhum modo obedeciam às indicações do texto transfiguravase brevemente numa espécie de madona sem contudo tirar os rolinhos de cabelo de dona de casa Essa era a cena que o sargento tinha elegido para justificar o ódio que os militares nutriam por Roda viva e que os tinha levado em São Paulo a invadir uma apresentação e agredir fisicamente os atores e parte do público tirando assim a peça de cartaz Isso não tinha sido uma ação oficial Na verdade o exército nunca admitiu e eu próprio que atribuíra o atentado ao grupo terrorista de direita Comando de Caça aos Comunistas não imaginava que militares estivessem envolvidos nesse episódio Mas o sargento tinha me chamado ali atendendo a um desejo que pareceu realizarse melhor quando ele resolveu me confidenciar Eu estava lá Eu fui um dos que desceram a porrada naquele bando de filhos da puta Minha indignação teve que submergir Roda viva não explicitava considerações políticas Seu escândalo nascia da selvageria de sua linguagem cênica Numa cena que se dava em meio à platéia um coro de atores representava a turba fanática que queria tocar no seu ídolo Zé Celso levava a ação dos fãs até o canibalismo e como que de dentro do corpo do cantor que tinha desaparecido sob a multidão surgia um fígado de boi que um dos admiradores erguia na mão crispada não raro respingando de sangue verdadeiro os espectadores que estivessem sentados nas poltronas do meio junto ao corredor Estilizações de imagens reconhecíveis da publicidade ou do cotidiano da TV ou da religião se seguiam de cargas de presença física que eram sentidas como a ameaça de uma nudez corporal que não quer ser planejadamente erótica nem decorativa mas real palpável simplesmente carnal Em suma era tudo com que nosso trabalho meu e de Gil dos tropicalistas se identificava Aquele sargento estava me dizendo que nossa prisão se devia exatamente às mesmas razões ou desrazões que o levaram a espancar o elenco de Roda viva e que ele queria que eu soubesse que ele sabia disso Depois eu me orgulharia de que o tropicalismo tivesse encontrado essas provas de seu poder subversivo Afinal a conversa do sargento revelava que como eu tantas vezes tinha tentado convencer nossos opositores nós os tropicalistas éramos os mais profundos inimigos do regime Mas ali na salinha da PE não tive forças para me orgulhar senti medo Medo e um enorme cansaço Eu descobrira o sentido da nossa prisão ao mesmo tempo que ficara sabendo num diálogo tão exaustivo quanto um interrogatório que dificilmente haveria interrogatório pois estávamos presos sem que ninguém soubesse ainda por quê nem para quê Teria que voltar para a cela sem nenhum esboço de definição do meu futuro Os dias que se seguiram foram desoladores O xadrez que estivera tão cheio que por vezes não podíamos estar todos deitados ao mesmo tempo com o mínimo de conforto foi se esvaziando pouco a pouco Os garotos foram sendo libertados e eu terminei ficando sozinho ao menos por um dia e uma noite mas creio que mais e de novo achando que o tempo não existia O translado do quartel da PE para o quartel dos PáraQuedistas do Exército foi breve e sem incidentes A área do PQD abreviatura com que o batalhão de páraquedistas é conhecido entre os soldados também na Vila Militar se encontra a não muitos quilômetros da área da PE e fomos transportados num jipe ou caminhonete do exército podendo ver o caminho e sentir o vento quente pela janela A única novidade surpreendente foi que ao chegar no quartel que me abrigaria fui separado de Gil que seguiu na viatura Depois fiquei sabendo que ele tinha sido levado para um outro quartel do PQD mas quando nos separaram senti medo de não vêlo nunca mais Lembro do portão dando para uma subida com edificações brancas de diversos tamanhos a maior delas no topo dia ladeira A cela que me estava reservada ficava embaixo na entrada junto à guarita Eu iria ficar sozinho nela mas não se pode chamála de solitária pois diferentemente daquela da Barão de Mesquita essa aqui tinha uma cama com lençóis e travesseiro enfronhado e o banheiro era um cômodo independente com vaso e chuveiro a uma razoável distância um do outro além de uma pia limpa Acho também que havia sabonete Uma porta de grades de ferro separava essa esquálida suíte quente como uma fornalha duma antesala que dava para a entrada do quartel e estava sempre guardada por um soldado No que dizia respeito à minha guarda esse soldado obedecia a um sargento que sempre estava por perto esse sargento obedecia ao oficial de dia em geral um tenente que por sua vez obedecia ao major comandante do quartel Não deixou de representar um alívio considerável sair da Polícia do Exército e cair no PQD Esta tropa tal como a outra era considerada de elite mas por razões diferentes E não se pode imaginar uma rivalidade maior do que a que havia entre as duas Embora ouvíssemos os gritos do que se dizia serem pequenos infratores civis nas noites do quartel da PE esta oficialmente existia apenas para reprimir militares Os páraquedistas estavam portanto sujeitos a prisões e punições efetuadas por aquela superpolícia Eles por sua vez eram elite pela especialidade a que se dedicavam orgulhosos dos seus exaustivos treinamentos e dos seus aventurosos saltos livres feitos a alguns milhares de metros de altura de aviões da força aérea esses oficiais e soldados do exército se gabavam até mesmo de sua beleza física muitos me diziam veladamente que esse requisito era extra oficialmente considerado quando se fazia a seleção dos recrutas e abominavam que estivessem sujeitos à brutalidade dos soldados da PE Temiam e odiavam sobretudo os catarinas Os primeiros PQD que falaram comigo fizeram questão de me assegurar que entre eles eu não seria tratado como entre os PEs Eles me faziam perguntas que revelavam o desejo de que eu falasse mal dos meus antigos hospedeiros E queriam ressaltar o contraste Isso me deu esperança de ver resolvida minha situação Mas justamente a esperança pode nos levar a uma situação mental mais perigosa esse jogo do péssimo para o menos ruim sem a perspectiva de solução revelase doloroso De fato embora eu passasse a ter uma vida fisicamente mais digna muitos dias se passaram sem que ninguém viesse me falar de interrogatório muito menos de libertação O major Hilton comandante do quartel veio à noite até a cela para me ver e falar comigo Sua visita tinha sido anunciada repetidas vezes pelos soldados sargentos e oficiais que se aproximaram das grades durante o dia e eu esperava muito dela Mas o major limitou sua fala à exposição das regras do quartel com ênfase na desaprovação à imagem amolecida que porventura tivessem me dado dos páraquedistas Em suma ele queria dizer que apesar de educados eles eram durões e que eu não tentasse nenhuma gracinha E saiu sem me fazer uma só pergunta Eu sentia que só estava sendo relativamente bem tratado para poder agüentar a prisão que sem dúvida duraria para sempre Isso me fez presa das superstições que desde a adolescência vinham sendo vividas como um vicio mental quase inocente e que tinham se desenvolvido de forma assombrosa nas duas primeiras semanas na PE Aqui com um pouco menos de sono com várias antenas ligadas no futuro próximo em busca do anúncio da liberdade os rituais internos se multiplicaram e aprofundaram levandome a adivinhar com inexplicável precisão eventos futuros e a crer que podia atuar antecipadamente para provocálos evitalos ou modificálos Eu tinha desenvolvido um cada vez mais complicado sistema de sinais e de gestos mágicos E uma monstruosa sensibilidade para interpretar os sinais aliada a uma não menos monstruosa imaginação para criar os gestos Como naquele dia em que na PE me levaram para cortar o cabelo e eu a partir de detalhes mínimos pude me aproximar da definição do que ia acontecer chegando a antecipar a adjetivação do ato iminente sem alcançarlhe o substantivo eu agora percebia que um esquema de números imagens e perguntas era capaz de me dar acesso ao conhecimento do que estava por vir se lido com perícia Uma bem maior excitação mental conseqüência da melhoria das condições materiais contribuía para que o sistema se sofisticasse E enquanto na Barão de Mesquita eu apenas temia que Súplica e baratas fossem de mau agouro aqui no PQD comecei a distribuir significados a todas as canções que eu cantasse ou que ouvisse E a efetuar contas matemáticas com o número de vezes que via baratas ou que uma canção era ouvida ou cantada Primeiro isso se deu com um repertório parco eu cantava ou assoviava alguma canção um soldado o fazia às vezes um sargento parava ali perto com um rádio Quando eu próprio consegui um radinho de pilha que um sargento me emprestou e que eu escondia sob o travesseiro toda vez que me avisavam da aproximação do oficial de dia várias canções cujo valor divinatório eu ia testando à medida que elas se repetiam entraram no jogo e cheguei no fim a adivinhar com absoluta exatidão o dia a hora e o Local onde me encontraria para receber a notícia da liberação Os banhos de sol eram religiosamente observados pelos pára quedistas Lembro de um soldadinho que seguindome com o cano de sua metralhadora a poucos centímetros da minha cintura repetia pedidos de desculpa dizendo numa voz sincera e comovida que não era ele que estava ali que por ele jamais nada daquilo aconteceria comigo Um dia um oficial aproximouse e mandando o soldado parar começou uma conversa amena Ele gostava de música popular Lembrou vários sucessos de Francisco Alves o grande ídolo brasileiro dos anos 30 aos 50 Entre esses sucessos um sambacanção o tocava especialmente Fracasso e ele me perguntava se eu o sabia cantar Eu sabia e não sem certo prazer atendi ao seu pedido para que o fizesse O samba com sua melodia triste em tom menor me agradava e à medida que o ia cantando tal como ocorreu com Súplica na Barão de Mesquita eu ia interpretando as palavras da letra como referentes à minha situação Hoje vejo com um misto de humor e nojo aquela cena no grande espaço aberto do quartel do PQD Sob um sol brutal com um cano de metralhadora às costas eu cantava suavemente para o oficial de dia Porque só me ficou da história triste desse amor A história dolorosa de um fracasso A palavra fracasso é ouvida sete vezes ao longo da letra culminando com a repetição insistente nas notas mais altas no final da canção Fracasso fracasso fracasso fracasso afinal Por te querer tanto bem E me fazer tanto mal Tal palavra repetida por mim em tais condições e ainda por cima vulnerabilizado como eu ficava pela beleza da música e a carga de emoções que ela despertava por seu valor histórico tornavase uma conjuração maligna em minha imaginação E às vezes sozinho na cela fazia esforço para afastar essa canção de minha cabeça na qual ela sempre recomeçava a se cantar por si mesma Passou a exercer papel importante no sistema que eu desenvolvia Juntamente com Súplica Onde o céu azul é mais azul também um antigo sucesso de Francisco Alves um sambaexaltação gênero nascido no Estado Novo louvando as virtudes do nosso país que tal como Súplica eu estivera cantando na noite anterior à detenção e Assum preto o lúgubre baião de Luiz Gonzaga que fala do caráter contraditório da liberdade desse pássaro que tendo sido cegado para cantar melhor embora fora da gaiola está mais preso do que os que vivem em cativeiro Fracasso representava uma senha para o inferno Contudo estou certo de depois disso ter tido que cantála pelo menos mais uma vez para aquele tenente A comida era apenas um pouco melhor do que a da PE O que não é dizer muito tão intolerável esta era Mas ter a cama o banheiro e nenhum mau trato adicional fazia com que eu começasse a sentir de novo o gosto de ter ser um corpo e logo nas primeiras noites tive esboços de sonhos eróticos Estava demasiadamente assustado para não acordar em sobressalto antes de me permitir uma ejaculação À hora do banho na água que caía muito quente por causa do calor eu me surpreendia com assombrosas ereções espontâneas sentindome à beira de um orgasmo Depois de eu já estar resignado a ter libido zero para sempre esse prodígio me dava uma alegria maior do que eu estava preparado para suportar Mas antes que eu me decidisse a ir até o fim a masturbação tornouse o tabu por excelência no meu sistema interno de controle do devir De fato nada pode tão facilmente exercer tal função num sistema desses além da masturbação Ato solitário acusado primeiro de profanar o templo do corpo depois de dissipar suas energias por fim de retardar a maturidade sexual a masturbação logo é identificada com um afrouxamento da concentração necessária para o eu enfrentar as forças que se lhe opõem É um contato direto com a realidade do sexo da vida que estando literalmente em nossas mãos fazer ou deixar de fazer mostra se como uma indulgência empobrecedora das possibilidades uma antecipação da frustração Não é tanto que num momento desesperado como aquele meu na prisão sucumbamos à idéia aprendida na infância da masturbação como pecado Eu diria antes que nesses momentos entendemos melhor por que uma idéia tão especial de pecado está vinculada à masturbação Assim no meu esquema o pior sinal era ver uma barata o pior gesto que não fiz até sair dali masturbarme Por outro lado matar uma barata ato em princípio quase impossível significava que eu avançaria na direção da liberdade com sofrimento enquanto a audição de certas canções assegurava surpreendentes boas novas As coisas realmente melhoravam Creio que já na segunda semana foi permitido que Dedé me visitasse Eles abriam a porta de grade deixavamna entrar Tudo se transformou Não ficávamos a sós o soldado tinha ordem de ficar vigiando e de todo modo a porta sendo gradeada nós não podíamos ter intimidade Mas ela se sentava ao meu lado na cama contavame sobre o mundo lá fora e sobre suas andanças para tentar me libertar Ouvia meu confuso relato dos dias que fiquei sem vêla e me consolava Traziame livros e revistas finalmente aqui eles eram permitidos e recados de amigos além de uma lata de Baygon e hoje ela me assegura Valium O fato de eu ter usado esse tranqüilizante que conheci depois da experiência com auasca poderia me levar a pensar que minha dificuldade de dormir tinha voltado com o relativo bemestar Mas Dedé me diz que amigos nossos ouvindo o que ela contava sobre mim aconselharamna a me trazer os comprimidos de Valium que eu tinha de esconder por temerem pelo meu estado mental Ela própria parecia estar mais assombrada com meu estado físico Me achou terrivelmente magro e sem me avisar foi à casa do major Hilton que ficava em Marechal Hermes subúrbio da Zona Norte colado à Vila Militar e exigiu que eu tivesse acesso a uma comida melhor Suponho que Gil tivesse no quartel onde estava detido direito a comer a mesma comida que os oficiais e era isso que Dedé pleiteava para mim Mas tal como a permissão de ter um violão dentro da cela que tantas vezes sem êxito pedi ao major essa regalia era assegurada a Gil por ele ter concluído seu curso na faculdade e portanto ter o nível universitário que eu não tinha Dedé no entanto se informou de que nesse caso a alimentação de melhor qualidade só me seria servida se eu tivesse uma razão de saúde para isso Naturalmente ela achava que eu tinha todas as razões para receber tratamento especial mas tinha de convencer o major com algo concreto Um dia o que foi devidamente prenunciado pela aparição de uma barata que matei com um jato de Baygon o major mandou me chamar à sua presença e me ameaçou aos berros de severos castigos caso não se confirmasse o que ele sabia ser uma mentira da minha mulher que insolentemente tinha ido incomodálo em sua casa para pedir que me dessem comida de oficial porque eu tinha tido tuberculose na adolescência Ela havia lhe assegurado que meu pulmão guardava uma cicatriz e ele tinha dado ordens para que me fizessem uma radiografia ai de mim se essa tal cicatriz não aparecesse Fiquei muito assustado pois Dedé nada me avisara a respeito Fui conduzido a um laboratório radiológico onde tiraram chapas do meu tórax que afinal comprovaram a existência da cicatriz No dia seguinte o major que não era um homem brilhante me dizia com gravidade Parabéns sua mulher não mentiu As revistas traziam freqüentemente fotografias de mulheres seminuas atrizes bonitas modelos vedetes A proximidade de Dedé era marcada por séries de ereções que dada a sensação de satisfação que estar perto dela produzia mais pareciam os espasmos do prazer do que a ansiedade do desejo Mas muitas vezes estando sozinho tendo à mão as fotografias das mulheres tive que fazer grande esforço para não me masturbar Eu sonhava todas as noites com mulheres desconhecidas e sempre acordava a um nada do orgasmo com o coração disparado Nunca amei tão intensa e exclusivamente as mulheres quanto quando estava no quartel dos páraquedistas Elas me pareciam a encarnação da felicidade Nunca os homens me foram mais asquerosos e repelentes Minha sexualidade tinha morrido na solitária da Barão de Mesquita e ressuscitara agora totalmente voltada para as mulheres Um mês entre militares me fez rejeitar com asco o homem como possível objeto sexual Um dia Dedé me trouxe uma revista Manchete com as primeiras fotografias da Terra tiradas de fora da atmosfera Eram as primeiras fotos em que se via o globo inteiro o que provocava forte emoção pois confirmava o que só tínhamos chegado a saber por dedução e só víamos em representações abstratas e eu considerava a ironia de minha situação preso numa cela mínima admirava as imagens do planeta inteiro visto do amplo espaço Anos depois já de volta à Bahia compus uma canção de que ainda hoje gosto muito Terra e cuja letra começa por referirse a esse momento Dirigindome à Terra nos primeiros versos da canção comento as tais fotografias onde apareces inteira porém lá não estavas nua e sim coberta de nuvens Esse acercamento sensual que se insinua na consideração de que a Terra não estava nua nas páginas da revista embora no instante de fazer a canção eu não me desse conta me veio à mente sem dúvida por causa das outras fotografias que mais me impressionavam na cela do PQD as de mulheres seminuas que me enchiam de desejo e com que sonhava todas as noites Um sargento já não muito jovem ofereceuse com um tato que me comoveu para proporcionarme momentos de total intimidade com Dedé Era um baiano preto de origem humilde que me disse que nunca passaria de sargento por não ter tido instrução nem ter mais idade para entrar no curso de oficiais Sempre sinto um certo orgulho de ser baiano quando identifico no gesto desse sargento que revelava uma espécie de deslumbramento respeitoso pelo sexo um traço característico da gente da Bahia Ele se propôs a nos certificar nos dias que estivesse de serviço de que ninguém chegaria até a porta da cela durante as visitas de Dedé E assim foi Ele exercendo sua autoridade sobre os soldados que nesse caso pareciam obedecer de bom grado retirava o responsável pela guarda da grade e impedia a aproximação dos outros ficando ele mesmo de sentinela perto da porta de entrada a uma distância considerável de nós só se aproximando com bastante ruído no caso de algum oficial despontar no alto da colina Como a estrada que descia dos escritórios dos oficiais e de seu restaurante que eles chamavam de cassino era uma ladeira bastante longa o sargento tinha tempo suficiente para nos avisar e para reorganizar seus soldados E eu podia ter Dedé de novo comigo e para mim como pensara que nunca mais seria possível Esses encontros sexuais sumários eram ternos e intensos e me salvaram reequilibrando minha pessoa quase destruída pelas diversas tensões A mulher a minha mulher vinha até mim como uma fada boa e me curava as feridas ao mesmo tempo que me libertava da tentação da masturbação que segundo eu cria desencadearia energias funestas Mas o sargento foi delatado ou flagrado e recebeu voz de prisão fato que me foi comunicado pelo major Hilton em pessoa quando este veio aos berros me dizer que daquele dia em diante Dedé não entraria mais na minha cela As visitas passaram a ser supervigiadas e eu agora só podia falar com Dedé através das grades O sargento baiano foi preso e nunca mais o vi Entre os livros que li na cela do PQD dois deixaram lembrança indelével e não só por serem ambos muito bons um de poemas de Jorge de Lima enviado pelo cineasta Walter Lima Júnior e Ao Deus desconhecido de John Steinbeck Este último completou de certa forma o trabalho de O estrangeiro e O bebê de Rosemary no sentido de me tornar mais supersticioso Os poemas de Jorge de Lima eram em geral igualmente místicos e eu me sentia mais preso à prisão A figura de minha irmã Irene aparecia com freqüência em minha mente como um antídoto contra essas sombras Irene tinha catorze anos então e estava se tornando tão bonita que eu por vezes mencionava Ava Gardner para comentar sua beleza Mais adorável ainda do que sua beleza era sua alegria sempre muito carnal e terrena a toda hora explodindo em gargalhadas sinceras e espontâneas Mesmo sem violão inventei uma cantiga evocandoa que passei a repetir como uma regra Eu quero ir minha gente Eu não sou daqui Eu não tenho nada Quero ver Irene rirQuero ver Irene dar sua risada Irene ri Irene ri Irene Foi a única canção que compus na cadeia Eu não pensava em tornála pública pensava tratarse de algo inconsistente e incomunicável Para minha surpresa Gil achoua linda e uma vez gravada não só ela fez sucesso de público como Augusto de Campos publicou uma versão visualmente tratada de modo a enfatizar o para mim surpreendente caráter palindrômico do refrão com efeito a frase Irene ri pode ser lida nos dois sentidos Um dia confirmando uma premonição minha construída milimetricamente o major Hilton mandou me chamar e ao entrar em sua sala percebi que se tratava do interrogatório ele estava sentado à sua mesa em atitude solene tendo ao lado um escrivão Creio que além do soldado que me seguira até ali com sua metralhadora havia dois outros que fuzil às costas ladeavam como um par de estátuas a mesa do major Obedeci à ordem de sentarme na cadeira que ficava de frente para este E ouvi seu sermão introdutório que em resumo me dizia ser ele um inquisidor implacável e que tudo se esclareceria para o meu bem ou para o meu mal Ele queria mostrarse convencido de que seria para o meu mal Passou então às primeiras perguntas Julguei natural que ele começasse por nome idade nacionalidade filiação etc Mas nunca imaginei que fosse me perguntar a data de nascimento a ocupação e o estado civil de todos os meus irmãos de todos os meus cunhados e de todos os meus sobrinhos A maioria desses últimos estava na tenra infância e eu me sentia numa comédia sinistra quando o major exigia precisão nos dados a seu respeito Cheguei a fantasiar que eles talvez quisessem usar as crianças como possíveis armas de intimidação caso uma tortura psicológica mais complicada se fizesse necessária pois o major queria que eu revelasse o grau de intensidade dos meus vínculos afetivos com elas Muitas horas se passaram no detalhamento de coisas como a vida de Layrton Barreto marido de minha irmã Clara e de Antônio Mesquita marido de minha irmã Mabel Desnecessário dizer que o mesmo se perguntava sobre meus pais e sobre Dedé e sua família O fato é que o primeiro dia de interrogatório se esgotou sem que se saísse desse esquadrinhamento das atividades de parentes e contraparentes A partir de então subi diariamente aquela ladeira seguido de meu guarda com metralhadora para responder ao meticulosíssimo questionário do major Sempre conferindo a precisão de minhas premonições entrevi esperanças de que as coisas se desenredassem quando depois de passar sumariamente pelo tema da passeata dos 100 mil com mais disposição para me repreender do que para exigir explicações o major entrou no que deveria ser a justificativa formal para eu estar preso o episódio na Boate Sucata envolvendo a obra de Hélio Oiticica que homenageava o bandido Cara de Cavalo com a inscrição SEJA MARGINAL SEJA HERÓI O tal juiz de direito terminou conseguindo suspender o show e interditar a boate Para nós esse episódio parecera despropositado uma vez que a presença da bandeira de Hélio que não lembro como entrou no show funcionava como um elemento a mais quase imperceptível para os espectadores entre os muitos e disparatados procedimentos chocantes de nossa apresentação A mera existência desse espetáculo tinha um caráter de choque dado que ele era encenado à margem do Festival Internacional da Canção de que nossas composições tinham sido desclassificadas com escândalo A história da interdição da Sucata por causa da bandeira de Hélio correu de boca em boca e possivelmente agarrado a essa palavra bandeira um apresentador de rádio e televisão de São Paulo Randal Juliano resolveu criar uma versão fantasiosa em que nós aparecíamos enrolados na bandeira nacional e cantávamos O Hino Nacional enxertado de palavrões Esse sujeito era um demagogo de estilo fascista que cortejava a ditadura agredindo os artistas Atitudes como essa eram usuais em seu programa e como nós não tínhamos assistido a sua peroração contra nós não demos muita importância quando nos contaram Agora o major Hilton me informava que esse locutor tinha se dirigido explicitamente aos militares pedindo punição para nós e que essa arenga havia surtido efeito sobretudo na Academia das Agulhas Negras a prestigiosa escola de formação de oficiais do exército De lá teria saído a exigência de que nos prendessem Naturalmente respondi ao major que me surpreendia que os oficiais não tivessem tentado verificar a veracidade dessas acusações as quais se ele me desse a oportunidade eu provaria serem falsas O major mostrou uma grande fúria antecipando o resultado contra mim que qualquer investigação apresentaria pois ele não admitia que essa história que me levara à prisão onde eu já estava fazia mais de um mês não fosse verdadeira E assegurou Se você provar inocência eu solto você imediatamente E me perguntou se eu teria testemunhas que confirmassem minha versão dos fatos Respondi com firmeza e presteza que sim e dei os nomes Ricardo Amaral o dono da boate e Pelé o discotecário ambos tinham estado presentes ao show todas as noites O major disse que tomaria todas as providências para intimar as testemunhas e só voltaria a me chamar quando a audiência com estas estivesse marcada E assim fez Uns dois ou três dias depois eu subia a colina para ouvir Ricardo Amaral o famoso empresário paulista da noite carioca e Pelé o negro elegante e esperto que como tantos negros no Brasil de então ganhara o apelido do grande jogador de futebol e de quem me tornei grande amigo Era curioso saber que esses dois homens da noite da Zona Sul viriam a uma audiência às sete ou oito horas da manhã no extremo norte da cidade Eles estavam sentados um de costas para o outro e ambos de costas para a cadeira que me esperava de modo a não ser possível nenhuma comunicação por meio de gestos ou sinais entre nós Achei muito estranho ouvirlhes as vozes sem poder verlhes os rostos mas fiquei muito contente com a força que suas palavras algo nervosas porém muito simples e claras tiveram sobre o major as versões de ambos confirmavam a minha em todos os detalhes sem deixar sombra de dúvida de que eu estivera dizendo a verdade o tempo todo Ao final da audiência depois que finalmente pude ao me despedir de Pelé e Ricardo ver em seus rostos uma expressão de insegurança que eu nunca imaginaria em nenhum dos dois o major me olhou no fundo dos olhos e com aquele ar solene e pouco inteligente repetiu em parte o que tinha dito ao ver o resultado das radiografias Parabéns Você disse a verdade Mas o mais importante foi o que ele acrescentou Vou pedir a sua soltura hoje mesmo dentro de dois ou três dias você estará em liberdade Atribuí à interpretação de sinais baratas canções etc o fato de eu ter certeza de que apesar do que me dissera o major eu não seria solto em dois ou três dias Mas o fato é que só fiz perguntas ao meu errático oráculo porque já sabia que um interrogatório tão límpido e justo não condizia com o modo absurdo como me fizeram esperar por ele A irracionalidade do que vinha me acontecendo e que me levara a criar o sistema de sinais era prova de que seria tolice crer que um movimento da razão pudesse mudar as coisas Percebi não sem um certo carinho pelo sotaque mineiro do major que ele é que estava sendo tolo Como é possível observar no caso dos búzios e do I Ching interpretamos as mensagens oraculares quando previamente munidos mais ou menos inconscientemente do conhecimento de seu conteúdo Nunca mais abriram a cela para Dedé entrar A única pessoa que entrava ali além dos soldados que vinham me buscar para as audiências era um jovem tenente chamado Paulo muito bonito que tendo crescido em Marechal Hermes sonhava com a vida glamourosa da Zona Sul onde moravam todos os artistas Ele evidentemente sabia que era muito bonito e me pedia para apresentálo a diretores de cinema e publicitários depois que eu saísse dali Diziame que queria ser ator ou algo assim Estava visivelmente fascinado por mim pela minha fama pelo mundo colorido da minha profissão Ele entrava na cela porque sendo tenente formado na academia tinha além da autoridade sobre o sargento e os soldados regalias especiais Mas não informou seus superiores sobre essas visitas Eu pensava que era estranho que eu não o achasse atraente em nenhuma medida embora ele me fosse simpático e suas conversas ingênuas me divertissem De todo modo suas visitas foram proibidas e o major me informou disso com uma voz cheia de desaprovação amarga como se eu também tivesse responsabilidade por elas Senti um certo alívio por me livrar do tenente bonitão e deslumbrado Uma outra presença me pareceu muito mais carregada de ameaça sexual um oficial acho que capitão de quem me disseram que fizera curso de antiguerrilha nos Estados Unidos e por isso portava um distintivo vermelho não sei se no peito ou no quepe postavase todos os dias diante da grade e me olhava fixamente por longos minutos sem dizer uma palavra Ele andava com uma varetinha fina na mão e acho que muitas vezes estava de óculos escuros Mas não sempre pois lembro de seu olhar frio e perscrutador Como nos dois outros quartéis onde estivera e onde não tinha nenhuma outra roupa comigo eu ficava o dia inteiro só de cueca quase nu No PQD onde acho que tinha alguma roupa na cela não lembro de me trazerem roupas para eu vestir quando me chamavam para os banhos de sol como acontecia na PE eu ficava seminu também por causa do calor Esse capitão me olhava de um modo que eu me sentia inteiramente nu e desprotegido tinha vontade de me vestir Sentia uma enorme repugnância pelos seus modos friamente másculos e diante de sua expressão enigmática resultava igualmente desconfortável encarálo ou olhar em outra direção Um dia o major Hilton me chamou e um tanto embaraçado por terem se passado muitos dias e nada de minha liberação sair me disse que iria pedir a presença de Randal Juliano para que fosse feita uma acareação Passaramse mais alguns dias nos quais o capitão indecifrável não faltou uma só vez e o major voltou a me chamar para dizer sinceramente decepcionado e triste que tinham lhe respondido que Randal Juliano não viria e não lhe deram mais explicação Então me confessou perplexo Eu não sei o que está acontecendo Você já deveria estar solto Isso é uma vergonha Fui levado de volta à cela e ninguém mais me disse nada Aí disparei meu sistema de sinais e minha energia ia toda nisso Torneime um adivinho consideravelmente impressionante Anos depois quando comentando o caso de Thomas Green Morton um paranormal que entortava talheres materializava moedas fazia comunicações telepáticas e previa acontecimentos meu psicanalista Rubens Molina me disse que esses todos lhe pareciam sintomas terríveis o que será que levava esse rapaz a precisar realizar tais prodígios eu em vez de enfatizar o aspecto viciado da psicanálise que quer reduzir tudo ao seu próprio esquema considerei que Molina tinha ido ao fundo da questão eu sabia até onde o desespero pode levar Nos últimos dez dias que passei no PQD eu só confiava no que me diziam os sinais que eu mesmo elegera e elegia para ter notícias sobre meu futuro Um dia vieram me buscar e como tinha sido adivinhado e a expressão dos soldados confirmava não se tratava do major Logo me disseram que era o capitão que queria falar comigo Subi a colina tremendo Os sinais não prenunciavam nenhuma catástrofe mas o fato é que embora nos escravizemos a ela nunca acreditamos de todo na magia e vivendo a realidade sentimos sua permanente e brutal frescura sua falta de sentido Ao chegar à porta do escritório do capitão ele ocupava uma posição especial por causa de sua formação nos Estados Unidos e tinha uma sala só para si pensei que ia desmaiar Ele mandou que eu entrasse ordenou aos soldados que nos deixassem a sós e trancou a porta por dentro Depois de me olhar por muito tempo exatamente como fazia da grade da cela formulou numa voz calma compreensiva humaníssima doce mesmo a seguinte pergunta Você está se sentindo injustiçado Respondi prontamente e com uma firmeza que não correspondia ao meu estado mental Sim senhor Me sinto E experimentei um grande alivio como fora previsto nenhuma agressão física me seria infligida Ele andou um pouco de um lado para o outro com um ar grave mas não hostil e disse com tristeza sincera Eu entendo Seus olhos que tinham se desviado de mim voltaram a me fitar com a antiga frieza Mas você é ingênuo ou acha que pode nos fazer de bobos continuou e mostrando uma discreta vaidade intelectual ao citar os nomes e as idéias de Freud e Marcuse os nomes de Marx ou Lênin eram pronunciados banalmente sem a mesma excitação expôs toda a sofisticada interpretação que fazia do tropicalismo Referiuse a algumas declarações minhas à imprensa em que a palavra desestruturar aparecia e usandoa como palavrachave ele denunciava o insidioso poder subversivo do nosso trabalho Dizia entender claramente que o que Gil e eu fazíamos era muito mais perigoso do que o que faziam os artistas de protesto explícito e engajamento ostensivo Em suma ele demonstrava estar muito mais inteirado das motivações reais para que Gil e eu estivéssemos presos do que o major Hilton deixando implícito que sabia serem falsas as histórias de bandeira e hino e portanto irrelevante que eu tivesse provado inocência nisso Não deixava de haver uma estranha atmosfera de cumplicidade entre mim e ele poderíamos rir do major e seus ingênuos princípios e seu sotaque mineiro Poderíamos aprofundar uma discussão sobre o conceito marcusiano de maisrepressão Mas sem adiantar nenhuma informação sobre o que os militares mais cultos planejavam fazer comigo sem sequer pedir que eu me pronunciasse a respeito do que ele dissera o capitão me dispensou com ar amável destrancou a porta e chamou os guardas para me conduzirem de volta à cela De novo sozinho pensei que essa conversa do capitão era uma versão refinada da conversa do sargento da PE Ambos me chamaram por sentirem necessidade de me exibir conhecimento e esperteza Ambos confirmaram uma tese que eu teria usado para valorizar politicamente meu trabalho perante meus opositores da esquerda Ambos me deixaram sem esperanças De fato se o que motivava minha prisão não era nenhum ato particular mas uma captação difusa por parte dos militares de algo em mim que lhes era essencialmente hostil nada podia ser feito para eu ser solto Só me restava contar as baratas cantar as canções benfazejas esperar o que vinha primeiro na programação da rádio e fazer meus cálculos Tudo começava a dizer que a liberação se aproximava Um dia ouvi uma movimentação do lado de fora da cela Um soldado me informou tratarse de uma prontidão pois havia suspeita de que os subversivos armavam um levante mais precisamente um atentado àquele quartel Entrei em pânico o que aconteceria se as coisas engrossassem lá fora justamente agora que eu acreditava estar prestes a sair dali Talvez nunca mais me devolvessem a liberdade talvez me matassem Mas a prontidão parece que não viu confirmada sua motivação e os soldados alarmistas mostraramse decepcionados Havia um tenente de nome Oliveira que nunca perdia oportunidade de me humilhar ou agredir Quando ele era o oficial de serviço nenhum dos abrandamentos de minha pena evidentemente encorajados pelo major eram permitidos E ele passou a exigir que eu fizesse faxinas intermináveis e desnecessárias na minha cela e no banheiro Mas qualquer dos outros oficiais agora me permitia sair à tarde até a porta do complexo que incluía a antesala o banheiro e a cela sentarme numa cadeira ao lado do portão e ficar olhando a estrada em frente ao quartel Era uma visão desolada mas eu sugava o espaço exterior com os olhos crendo atrair assim o grande mundo de novo para mim O gesto silencioso de aspirar a paisagem da liberdade tão miseravelmente representada aqui por um trecho de estrada na névoa quente e pardacenta de Deodoro foi adotado como obrigação ritual e as canções que eu ouvia então eram computadas com valor redobrado Hey Jude dos Beatles era de tudo o que se ouvia diariamente nas paradas de sucesso F comme Femme canções de Roberto Carlos um partido alto de Martinho da Vila o mais forte indício de aproximação da soltura Se a frase melódica que se repete em tom triunfal ao fim dessa canção soasse de repente por ter o rádio sido ligado ou seu dono mudado subitamente de emissora no exato momento de uma aspiração profunda com os olhos grudados na curva da estrada de terra vermelha tremeluzente de calor isso era antecipação de minha saída luminosa e feliz Um evento desses não poderia deixar margem para dúvidas sendo passível apenas de uma relativização que dependia da freqüência dos sinais negativos que se lhe opusessem Desse modo foi que na semana em que se preparava outra prontidão desta vez sem sustos pois se tratava de procedimento de rotina para o Carnaval cheguei à minúcia de prever que receberia a ordem de liberação no alto da colina depois do meiodia mas antes de a tarde cair e no ato de ingerir um alimento Esses dados foram deduzidos não apenas da leitura mecânica dos sinais já convencionados mas do seu permanente enriquecimento conseguido com injeções de sentido feitas de última hora e sobretudo no modo como eu formulava as perguntas em cada caso Eu me dizia Se eu lançar o jato de Baygon nessa barata e ela conseguir fugir sem morrer haverá um atraso de três dias na ordem de liberação e também Se Hey Jude for assoviada por um soldado do lado de fora da cela isso dará um empurrão muito mais fraco em direção à liberdade do que se a mesma canção for cantada pelo soldado se porém ela for executada no rádio antes do pôrdosol o atraso se reduzirá em doze horas etc Eu não devia assoviar nenhuma das canções benfazejas isso as enfraqueceria Era bom que as cantasse como uma oração mas como augúrio elas tinham muito mais valor se ouvidas casualmente Interpretei as informações que obtive a respeito de hora e local do recebimento da notícia de soltura como um anúncio de que esta me encontraria em pleno almoço no cassino dos oficiais onde passara a fazer as refeições desde que Dedé conseguira provar que eu tinha uma cicatriz no pulmão às tantas horas eu era exato da tarde da quartafeira seguinte que eu mal lembrava que era a QuartaFeira de Cinzas recusandome a me lamentar por não estar na Bahia para o Carnaval Aquele o de 69 foi o Carnaval de Atrás do trio elétrico minha marchafrevo que divulgou esses conjuntos musicais dos Carnavais baianos e desencadeou seu desenvolvimento com conseqüências perceptíveis hoje entre outras coisas no sucesso da indústria de música para o Carnaval na Bahia o fenômeno que veio a ser apelidado de axé music Mas naquelas tardes de mormaço do quartel eu não pensava que as ruas de Salvador estavam cheias e que minha marchinha dominava apenas fazia minhas contas Por vezes já depois de muito tempo em liberdade me surpreendi não sem um certo horror me entregando à lânguida nostalgia de um lugar e um tempo remotos que em poucos segundos reconheci tratar se dos dias no PQD Não sentia nesses momentos saudade do sofrimento em si nem das excitações da premonição que abomino com irritação mas de um abandono morno e gostoso alguma coisa escondida na percepção íntima do corpo Atribuí esse sentimento ao fato de no PQD eu estar a partir de um determinado momento apenas aguardando a liberação Hoje considero um fator pelo menos igualmente determinante eu ter àquela altura depois de vários dias almoçando e jantando entre os oficiais começado a engordar O calor a limitação do espaço e a dependência de ordens superiores faziam com que os dias no PQD se confundissem em minha memória com Santo Amaro e a infância Mas a estranha felicidade que eu extraia dessas saudades às vezes desencadeadas pela audição de uma música ouvida ali com freqüência mas esquecida me leva a pensar em como ela aponta para a evidência de que gostamos de viver acho que naqueles momentos rememorados eu sentia que estava ganhando peso lentamente salvando minha vida como na infância Entendi por que tantas vezes somos nostálgicos de fases de nossa meninice que foram vividas na infelicidade o som fanhoso de uma música sem interesse ouvida entre pessoas desprezíveis num crepúsculo sem cor pode na lembrança nos remeter a sensações corporais indizivelmente prazerosas Com efeito vivi a nostalgia de momentos na prisão dos páraquedistas como as mulheres vivem a nostalgia da gravidez Houve momentos no quartel dos páraquedistas em que sem ainda a alegria da iminência da libertação e já não mais com o pavor de ver iniciarse um pesadelo atingi um ponto zero em que eu simplesmente era Esses lapsos de nostalgia daqueles momentos que não significavam um desejo de voltar a eles surgiam como portas abertas para o sentimento perene dentro de mim da doçura de existir Durante o almoço no cassino dos oficiais na QuartaFeira de Cinzas eu esperava com uma certeza inquietantemente tranqüila a chegada dos emissários do major com a ordem de soltura Eu não me dava autorização para crer A premonição era tão ousadamente precisa que eu considerava ridícula a perspectiva de que se realizasse Por outro lado em regiões íntimas de minha mente eu temia essa realização pois previa uma indesejável prisão ao sistema supersticioso Mas eu ansiava tanto pela liberação e tinha me dedicado tanto aos meus rituais no sentido de conseguila que não era agora porque me sentia quase solto e portanto corajoso que ia sucumbir à tentação de me livrar dos poderes mágicos Mesmo porque talvez uma eventual frustração da expectativa viesse a ser em seguida tributada a esse desrespeito de última hora às leis do sistema Assim eu torcia pelo cumprimento da predição E foi com um sentimento de frio assombro que a vi cumprirse Ainda estava mastigando uma das últimas garfadas do que ainda restava no prato quando dois oficiais vindos de fora do cassino se aproximaram da mesa que eu dividia com tenentes e capitães e me ordenaram que levantasse e fosse arrumar minhas coisas para ir embora Você vai ser liberado Os sinais tinham me afirmado que eu receberia tal ordem enquanto estivesse comendo e mesmo que eu nem chegaria a terminar a refeição Como nos filmes de aventura o desenlace chegou no último momento quando eu já temia que o almoço se encerrasse e ninguém viesse me chamar Eu olhava para a porta pensando Não há mais tempo é agora ou não é quando vi entrarem aqueles oficiais Tive vontade de rir Na verdade ri por dentro Com uma ponta de malestar pela experiência radical de solidão que uma tal situação propicia Mas a alegria de me saber livre a perspectiva de poder estar sozinho com Dedé de rever meus pais e meus irmãos e Gil eram maiores do que as angústias da alma encurralada num sistema Afinal ser solto era meu objetivo prioritário e eu quase tinha dito a mim mesmo que para atingilo pagaria qualquer preço Eu estava solto era o que importava se tinha assumido um compromisso sobrenatural depois eu veria os desdobramentos Mas eu estava solto Deixei o resto de comida no prato e segui os oficiais Peguei minhas coisas na cela ouvi cumprimentos de sargentos e soldados e do major e em breve estava de novo ao lado de Gil numa caminhonete que nos levou de Deodoro até a delegacia central da Polícia Federal no centro da cidade Ali permanecemos mais tempo do que no dia em que eles efetuaram nossa prisão Pernoitamos lá sem que nos dessem maiores informações sobre o que nos aconteceria Uma alta autoridade suponho que a autoridade máxima daquela organização no então estado da Guanabara veio falar conosco no dia seguinte Ele nos disse que recebera ordem de nos levar pessoalmente até Salvador e que para tanto nos conduziria ao Aeroporto Santos Dumont onde embarcaríamos num jatinho da força aérea O fato de continuar preso tinha desvalorizado consideravelmente meu sistema O que se por um lado significava um alivio por outro trazia de volta uma insegurança que naturalmente incluiria o medo de avião Contudo uma intolerável impaciência me tomava e esta era maior do que qualquer medo Mas o jatinho apresentou problemas técnicos que impossibilitaram a decolagem e nós tivemos que voltar para a Polícia Federal Horas depois fomos outra vez chamados e de novo o chefe nos conduziu ao aeroporto onde embarcamos num avião da FAB em quase tudo igual a um avião de vôo comercial cheio de passageiros à paisana inclusive senhoras e crianças Além do chefe da Polícia Federal outro policial embarcou ou dois outros conosco Como sempre Gil separado de mim cada um de nós sentado ao lado de um deles Em minha lembrança estive algemado ao federal que me guardava todo o tempo cio vôo do Rio a Salvador Essa indefinição de nossa situação estávamos soltos ou não estávamos a indecisão quanto à viagem esperamos um dia embarcamos num jatinho que não partiu agora voávamos entre familiares de militares e a ignorância do que nos esperava em Salvador embora nos dissessem que estávamos a caminho da liberação me deixaram extenuado e eu me sentia no avião que varava nuvens acinzentadas num limbo entre o medo e a dor sem crer que pudesse estar realizando nenhum movimento preso àquele homem ao meu lado vendo aquela eterna cor fria pela janela arredondada nos cantos eu tinha medo de morrer acreditava já estar morto sonhava com a esperança de alegria que conhecera havia um dia apenas Percebi que essa alegria não era uma ilusão e que ela podia voltar quando o avião começou a prepararse para a aterrissagem e vi Salvador surgir dentre as nuvens Quando o avião pousou tive medo de não ter forças para vivêla Minhas pernas tremiam o zumbido no ouvido que me acompanha desde a adolescência parecia imporse sobre todos os sons do aeroporto Oficiais da força aérea que estavam à espera do avião falavam com o chefe da Polícia Federal que nos trouxera e percebi que discutiam Os militares da aeronáutica nos levaram pelo braço sob protestos do policial Fomos atirados numa cela do quartel da força aérea de Salvador onde o comportamento dos sargentos e tenentes estava muito mais perto da brutalidade arrogante da PE do que da relativa cortesia dos páraquedistas Desta vez no entanto nos puseram juntos Gil e eu Tentamos conversar e como nos achávamos estranhos mas os gritos dos militares nos faziam calar Esse golpe me pegara no fim das minhas forças O dedo mínimo da minha mão direita ficou totalmente dormente essa sensação de anestesia perduraria por meses e só se desfaria aos poucos Passamos algumas horas ali A aeronáutica em Salvador tinha recebido a ordem de nos prender em dezembro para o caso de nós termos fugido de São Paulo e nunca tinha vindo uma contraordem assim eles estavam recomeçando tudo da estaca zero Nem sequer sabiam que estivéramos todo esse tempo presos Essa tinha sido a causa da discussão entre o policial e os aviadores que não pareciam dispostos a perder essa oportunidade de nos ter com eles Quando ficou esclarecido que iríamos embora muitos deles exibindo sadismo disseram lamentar que não ficássemos pois tinham ótimos planos para nós O chefe da Polícia Federal carioca nos levou para a delegacia central da organização em Salvador e nos entregou à responsabilidade de um coronel Luís Artur chefe da PF na Bahia Este depois que o seu colega saiu nos fez algumas perguntas sobre a passeata dos 100 mil mostrandonos fotografias de jornais em que aparecíamos entre os manifestantes e nos confessou seu desconforto com o fato de nos ter recebido diretamente das mãos da maior autoridade da PF do Rio que viera pessoalmente pois eles não queriam um só papel oficializando nossa situação Perguntounos se tínhamos para onde ir em Salvador Dissemos que sim e ele nos disse que tomássemos um táxi e fôssemos embora Antes que saíssemos pediu que assinássemos num livro grande informando nos que estávamos terminantemente proibidos de deixar a Cidade do Salvador e que tínhamos de nos apresentar a ele diariamente caso contrário voltaríamos para o xadrez Confinamento era a palavra que ele usava para diferençar o regime de prisão a que passávamos a nos submeter daquele ao qual estivéramos submetidos até então Era noite Ao sair dali com Gil me senti perdido Não sabia se não tinha forças para andar se não estava sendo capaz de reconhecer a cidade se devia me considerar solto ou não se ainda saberia viver Gil quis ir comigo até minha casa Suponho que tivesse percebido meu estado e quisesse continuar cuidando de mim Mas também é provável que tenha tido necessidade de adiar sua própria chegada à casa da tia que o criou e mesmo de estar em contato com minha família a que ele sempre atribuiu uma espécie de valor espiritual Ao chegarmos em casa de meus pais na rua Prado Valadares no fim de linha de Nazaré encontramos apenas Nicinha minha irmã mais velha que tinha ficado tomando conta da casa enquanto todos os outros tinham ido ao aeroporto nos esperar pois tinham sido notificados por autoridades do Rio sobre nossa chegada Gil sentouse numa cadeira e ficou muito quieto Lembro que ele me parecia um menino de uns nove anos com um meio sorriso parado nos lábios Eu me sentia absolutamente estranho a mim mesmo Sabia que Nicinha era Nicinha mas não a reconhecia propriamente Tampouco reconhecia a casa As fotografias nas paredes de meus irmãos minhas de meus pais me pareciam não apenas de pessoas desconhecidas mas de coisas desconhecidas Ainda assim eu sabia que Bethânia era Bethânia e Rodrigo Rodrigo Todos os modernos elogios da esquizofrenia que li depois sobretudo O antiÉdipo de Guattari e Deleuze me enojaram por causa do horror dessas horas de loucura Aqui eu tinha a mesma desesperada saudade de mim do meu mundo da vida que experimentara na viagem de auasca só que não podia sequer me dizer tratarse do efeito de uma droga e que iria passar Eu corria de um lado para o outro da casa sem que Nicinha pudesse me conter Na verdade eu fugia de um canto onde tudo estava na iminência de se mostrar terrível e sempre deparavame com outro em iguais circunstâncias Lembro de ver uma lágrima no rosto infantil de Gil mas eu não podia sequer parar para tentar retêlo em meu coração Em suma a liberdade chegara mas eu já não estava ali tinha esperado demais Por um momento tive certeza de que tudo tinha acabado que eu não voltaria nunca do inferno onde tinha caído Foi então que ouvi as vozes e os passos na escada e vi surgirem em minha frente meu pai e minha mãe Ele me olhou como se entendesse exatamente o que eu estava sentindo como ninguém mais poderia olhar e me disse usando um palavrão como nunca o fizera na vista de minha mãe e numa voz firme que me trouxe de volta à casa ao amor aos problemas à vida Não me diga que você deixou esses filhos da puta lhe deixarem nervoso PARTE III BARRA 69 Quando penso no número de pessoas que morreram em prisões brasileiras a partir de 68 e que foi pequeno se comparado ao número de vítimas argentinas ou chilenas da década seguinte quando penso nos que sofreram tortura física ou nos que foram expulsos do país em 64 e só puderam voltar na anistia em 79 concluo que minha prisão de dois meses foi um episódio que nem sequer mereceria referência Muitos dos que sofreram maiores maustratos ou que foram presos mais vezes e por mais tempo passam rápido pelo assunto muitas vezes em tom de descaso O próprio Gil não tem dos dias de cela e xadrez uma lembrança tão amarga ou tão recorrente quanto a minha Tendo percebido cedo que algo assim poderia acontecer e em tudo mais adulto do que eu em vez de simplesmente se sentir aniquilado pôde ao menos tentar transformar a experiência em algo produtivo para sua formação Na cadeia ele achou oportunidade para exercitar uma espécie de ascetismo deixou de comer carne adivinhou sabedorias orientais que o levaram a estudos posteriores e à alimentação macrobiótica Esta última literalmente mudou sua vida seu corpo sua pele seu temperamento mudaram para melhor e para sempre Enquanto eu apenas descobria que o sofrimento não serve para absolutamente nada As muitas páginas que aqui dediquei ao episódio da prisão se explicam por ser este um livro sobre a experiência tropicalista vista de um ângulo muito pessoal meu E se justificam por revelar o quanto eu eravpsicológica e sobretudo politicamente imaturo Depois de passar quatro meses confinados em Salvador Gil e eu fomos convidados a deixar o país Essa decisão terrível foi resultado das conversas de Gil com o coronel Luís Artur chefe da Polícia Federal na Bahia a quem tínhamos tido deveras de nos apresentar diariamente durante o período de confinamento e cuja simpatia Gil conquistara por causa da aparente afinidade entre seus novos interesses religiosos e o espiritismo do coronel os militares brasileiros tradicionalmente de formação positivista tornaramse em grande número kardecistas não poucos combinando Allan Kardec com Auguste Comte Sem direito a aparições públicas não ganhávamos dinheiro suficiente para sustentar as famílias No fim do segundo mês Gil começou a pedir ao coronel que intercedesse em nosso favor junto a seus superiores no Rio e em Brasília O coronel que desde nossa chegada externara desaprovação ao fato de lhe termos sido entregues sem nenhum papel que documentasse nosso processo ou mesmo nossa prisão empenhouse em nos ajudar Seus reiterados pedidos de que nos deixassem trabalhar encontrou como resposta a sugestão de nossa saída do país Tendo prendido dois emergentes astros da música popular a quem rasparam os cabelos famosos temendo que eles se tornassem depois da prisão injustificada inimigos mais ferozes do que os tinham suposto e inimigos com poderes sobre a opinião pública os militares ficaram sem saber o que fazer com eles O exílio imposto com a mesma grosseira informalidade da prisão foi a solução que lhes pareceu inteligente Não tínhamos dinheiro para comprar as passagens e financiar as estadias dos primeiros meses O coronel convenceu as autoridades mais altas de que precisávamos fazer uma apresentação em Salvador para conseguir esse dinheiro assegurando que não faríamos dela uma incitação à subversão Gil e eu estávamos morando com Dedé e Sandra numa casinha alugada no desenxavido bairro praieiro da Pituba Apareceu por lá um menino de lábios grossos que tocava guitarra muito bem Todos o achavam parecido com Mick Jagger Era Pepeu Gomes Devia ter dezesseis anos e era um prodígio Seus irmãos também eram bons músicos Carlinhos o mais velho tocava contrabaixo Jorginho então uma criança de quinze anos de idade já era um baterista que soava como um profissional Juntamente com alguns amigos esses membros de uma família humilde e numerosa do bairro do Garcia formavam um grupo de rock chamado Leifs o que quer que isso queira dizer Com ele ensaiamos os números que faríamos no Teatro Castro Alves antes de deixar o Brasil Era uma época em que se alimentavam alucinações fantasias de outras dimensões misticismos vários Gil estava interessado em religiões orientais e ouvia com interesse histórias sobre discos voadores Além das drogas e da política os assuntos ocultos e esotéricos atraíam quase todos os nossos conhecidos Por toda parte se mesclava um medo das sombras com a alegria de livrarse da cadeia da causalidade Eu tinha verdadeiro ódio a essa perene fome de assombros e milagres Como eu era muito vulnerável à tendência infantil a cair prisioneiro das minhas próprias fantasias reagia com agressividade a essa moda Vocês adoram o que não existe pois bem eu só gosto do que existe eu gritava em meio às conversas sobre astrologia teosofia macrobiótica e tarô O sebastianismo pessoano de Roberto Pinho que de maneira fascinante incluía atenção propriamente religiosa ao candomblé se nutria também desse clima e eu tendia a rejeitálo com temor Na verdade eu achava que minha vida já tinha me levado longe demais da minha dimensão cotidiana A viagem de auasca seguida da prisão a própria pletora de significados atribuíveis à minha elevação à condição de celebridade tudo me fazia temer a perda da razão Nos anos 80 quando foi escolhido por Collor para o Ministério da Cultura o diplomata e ensaísta Sérgio Paulo Rouanet veio à minha casa no Rio para inteirarme de suas intenções e pedirme apoio Eu tinha justo lido seu livro Razão cativa e no fim da nossa conversa disselhe Sou um irracionalista apaixonado pela razão E ele me disse que com ele era o simétrico inverso Em 69 no i nascedouro do enjoativo clima newage eu esperneava contra o irracional Dedé estava totalmente comigo nisso Ela era a rigor muito mais genuinamente avessa a misticismos do que eu Diferentemente de Gil nós dois saíamos à noite Íamos com amigos a um barzinho improvisado no pátio do Clube Cruz Vermelha no Campo Grande um boteco muito pobre chamado Brasa sem qualquer conforto ou vantagem nem mesmo higiene nos banheiros Vale observar como achávamos natural que ambientes assim nos atraíssem O fato é que nossos critérios eram realmente diferentes dos critérios burgueses Esse bar podendo servir a cerveja que queríamos beber oferecia uma atmosfera semelhante à das barracas de rua no Carnaval e por isso nos parecia muito mais inspirador do que as boates de corrimões dourados e os restaurantes de espaldares altos em que Salvador de resto não era pródiga e que nós não estávamos em condições financeiras de freqüentar De fato nossas conversas nesse boteco se animavam e encontrávamos alguma felicidade irresponsável em meio à opressão Muita gente interessante se aproximava desse tipo de ambiente e fugia dos do outro tipo No Brasa conhecemos Moraes e Galvão uma dupla de compositores que depois veio a ser o núcleo do grupo Novos Baianos Dedé adorava ouvir as músicas deles na voz de Moraes que era quem fazia as melodias tocava violão e cantava Mais tarde uma outra futura integrante dos Novos Baianos apareceria por ali e em nossa casa da Pituba Era uma menina muito branca e muito bonita de cabelos longos e com os seios cobertos apenas por uma estreitíssima faixa de brim cortada da bainha da calça jeans Ela se chamava Bernardete mas Alvinho Guimarães sempre ele inventara o nome Baby Consuelo para a personagem de um filme que nunca foi feito e o nome colouse para sempre a essa menina que tinha sido escolhida para interpretála Eu ia também ao estádio da Fonte Nova para ver futebol Junto com Fred Hermano Penna Pedro Bira e outros amigos de Dedé encontrava grande alegria nas tardes ensolaradas e festivas das grandes partidas Foi o único período de minha vida em que o futebol teve presença considerável A imprensa sob censura cerrada não podia sequer sugerir que Gil e eu estávamos nessa situação excepcional O público mal notava nossa ausência nos palcos e na tv Vagos rumores de que tínhamos sido presos não chegavam a se confirmar A jornalista Marisa Alvarez Lima que tinha me apresentado a Hélio Oiticica veio a Salvador e fez uma reportagem em que eu aparecia fotografado por teleobjetiva e em cujo texto apenas se dizia misteriosamente que eu estava em Salvador e parecia triste Gil e eu fizemos cada um de nós um disco nesse meio tempo Como não podíamos ir ao Rio ou a São Paulo fizemos as gravações num estúdio pequeno de Salvador acho que se chamava Estúdio J S apenas com o violão As fitas foram enviadas para São Paulo ou Rio para que Rogério Duprat adicionasse baixo bateria e orquestra Gil tocou violão em todas as faixas do meu disco Não havia proibição de radiodifusão de nossas músicas A atitude do poder repressivo brasileiro era algo errática mas não o suficiente para tornálo ineficaz Lembro apenas da decisão tomada pela própria gravadora de não lançar um compacto com uma gravação minha feita logo antes de sermos presos Era um lindo sambaRB de Jorge Ben chamado Charles Anjo 45 uma saudação romântica a um herói marginal Robin Hood dos morros rei da malandragem de quem era dito que fora tirar sem querer férias numa colônia penal A canção louvava um tipo hoje fora de moda o bandido de coração bom cuja generosidade é apenas complemento de sua caracterização como protesto vivo contra as injustiças sociais Embora estas últimas não fossem uma preocupação de Jorge Ben o seu Charles sendo antes um modelo benigno daquilo que hoje se descreveria como o traficante que se torna chefete de favela e toma para si as responsabilidades que deveriam estar nas mãos do poder público ao preço de impedir que a lei chegue a seus territórios É inegável que essa caracterização do personagem faziao mais atraente aos meus olhos do que os heróis ou vítimas puros e justos das canções de protesto Ao final da canção anunciavase uma grande festa com batucada feijoada uísque com cerveja muitas queimas de fogos e saraivadas de balas pro ar Antes de acabar as férias o nosso Charles vai voltar E o morro inteiro feliz assim vai cantar Todos acharam com razão que a coincidência com a minha própria prisão soaria como uma provocação Mas os militares não estavam muito preocupados com nossas canções o assombro diante da anarquia comportamental e a desconfiança de ligações com ativistas radicais apesar da hostilidade ostensiva da esquerda convencional é que os motivaram De todo modo quase não se vive de direitos autorais no Brasil Ao contrário dos países ricos aqui se gravam discos para possibilitar shows que em longas temporadas nas grandes capitais e excursões pelo resto do país garantirão as finanças das estrelas O show do Castro Alves em 69 foi um momento inesquecível para muitos Eu no entanto não tenho dele uma lembrança muito precisa Rogério como já contei tinha me feito a observação de que quando a gente é preso é preso para sempre e eu me sentia sob uma pesada sombra Roberto Santana o mesmo que tinha nos produzido no Vila Velha ficou encarregado de pôr o novo show no palco Lembro apenas de Dedé fazendo um colete com espelhinhos e de que alguém trouxe de São Paulo e ofereceu graciosamente uma máquina de projetar aquelas bolhas coloridas que são a marca do final dos anos 60 e do início dos 70 O momento em que cantei Cinema Olímpia minha única canção inédita nesse show está gravado em minha lembrança como tendo sido consideravelmente emocionante com muitas caras cheias de vida na platéia lotada Penso hoje em como teve pouco significado para mim o fato de esse show coincidir exatamente com a chegada dos primeiros homens na Lua De fato tanto nós quanto o público que lotava o Teatro Castro Alves estávamos perdendo a transmissão pela televisão do grande acontecimento Isso nunca pesou na decisão quanto à data do show Mas Gil pelo menos quis cantar Lunik 9 uma sua canção já então velha de três anos em que ele fala da iminente morte do romantismo por causa da profanação da Lua pelas viagens espaciais Ele na verdade estava exultante com a conquista da Lua e cantava as palavras ingênuas e nostálgicas com doce ironia Muito mais vivo em minha memória está o momento em que Gil me mostrou Aquele abraço canção que ele cantaria pela primeira vez em público naquele show Estávamos na sala da casinha da Pituba e o samba me fez chorar O brilho e a fluência das frases a evidência de que se tratava de uma canção popular de sucesso inevitável o sentimento de amor e perdão impondose sobre a mágoa e sobretudo o dirigirse diretamente ao Rio de Janeiro cidade que sinto tão intimamente minha por causa da estada de um ano entre os treze e os catorze e tão minha em outro nível também por ser como diz João Gilberto a cidade dos brasileiros tudo isso me abalava fortemente e eu soluçava de modo convulsivo No show a platéia também foi tomada pela música e cantoua com Gil como se já a conhecesse de muito tempo O lugar onde a ironia se punha nessa canção que parecia ser um canto de despedida do Brasil representado pelo Rio como é tradição sem sombra de rancor fazia a gente se sentir à altura das dificuldades que enfrentava Aquele abraço era nesse sentido o oposto do meu estado de espírito e eu entendia comovido do fundo do poço da depressão que aquele era o único modo de assumir um tom de bola pra frente sem forçar nenhuma barra Nunca esta canção deixará de ter para mim uma importância afetiva semelhante à de Chega de saudade à de La strada à de Les mots A Polícia Federal se incumbiu de pôr em ordem nossos papéis o mais rápido possível para que viajássemos Gil fez uma viagem preliminar ao Rio para acertar detalhes Não seríamos exilados sem passaporte como muitos brasileiros o foram naqueles anos Nossa vinda de Salvador para o Rio foi marcada de acordo com determinações da Polícia Federal Dois agentes estavam à nossa espera no aeroporto e estiveram conosco nos três dias subseqüentes Eles nos tratavam como se a qualquer momento pudéssemos mudar de idéia e fugir Ficou marcado em minha memória o comentário feito por Gil numa das salas da pf em que estivemos sobre o valor que ele dava à aparição de Martinho da Vila como prenhe de futuro vital para o samba e a MPB em geral Na conversa voltou o nome de Milton Nascimento que Gil considerava já havia um bom tempo o maior talento surgido desde que nós começáramos Gil dizia que Martinho era a segunda coisa mais importante depois de Milton num outro nível e por razões muito diferentes Em breve os policiais nos estavam conduzindo até o interior do avião que nos levaria para a Europa e um deles me disse Não volte nunca mais Se pensar em voltar venha se entregar logo que chegue para nos poupar trabalho Saltamos em Lisboa na manhã seguinte sem que eu tivesse dormido um só segundo Guilherme Araújo que tinha ficado na Europa sem poder voltar ao Brasil desde o episódio do Midem estava nos esperando no aeroporto em companhia de Roberto Pinho Conversamos muito sobre que rumo tomar Guilherme já tinha se decidido por Londres já que nem cogitaríamos de ir para os Estados Unidos mas queria que víssemos com nossos próprios olhos Ficamos cerca de uma semana em Portugal Tivemos tempo de passar um dia em Évora de ir a Sesimbra onde o suposto alquimista fez a interpretação sebastianista de Tropicália e de ouvir fado em várias casas de Lisboa Tudo nos era enternecedor mas deprimente Portugal ainda estava sob Marcelo Caetano que era o herdeiro político de Salazar e a impressão que se tinha era a de um povo triste jogado fora da História em um belo lugar Dali fomos para Paris onde nos sentimos bastante intranqüilos Estávamos em 69 e a cidade vivia a ressaca dos acontecimentos de maio do ano anterior O proverbial mau humor dos parisienses estava à flor da pele e os policiais nos abordavam a cada esquina para pedir documentos Guilherme nos apresentou a Violeta Gervaiseau irmã de Miguel Arraes que estava exilada na França desde 64 Ela nos acolheu com um misto de carinho e firmeza que só se encontra nos verdadeiros nordestinos os baianos não são nordestinos Mas as adoráveis noitadas em sua casa uma casa de gente franca elegante e inteligente Violeta sendoo mais exuberantemente do que todos antes ressaltando do que obscurecendo essas mesmas qualidades na discrição de seu marido Pierre eram uma continuação intensificada pela distância dos embates ideológicos vividos no Rio de Janeiro Assim Lisboa era anacrônica e Paris tensa Londres apresentava o oposto desses dois cenários Estável tranqüila e na última moda a capital inglesa com toda a sua estranheza nórdica e não latina e com seu clima intragável mostrouse a solução mais racional Seja como for eu mais aceitei a decisão do que influí nela embora fingisse discutir os pontos que apareciam nas conversas LONDON LONDON Os anos que vivemos ali foram como um sonho obscuro para mim Primeiro ficamos num hotelzinho em Queens Gate South Kensington Logo Guilherme achou uma casa confortável de três andares em Chelsea e sugeriu que a alugássemos os três isto é os dois casais e ele E assim fizemos Era o número 16 de Redesdale Street esquina com Shawfield Street uma afluente de Kings Road Um ano depois mudamos mais para estarmos separados do que para fugir daquela zona Guilherme foi para um apartamento bem perto Mas eu e Gil quisemos ir para Notting Hill Gate onde a presença de um grande número de jamaicanos fazia tudo parecer mais alegre Eu morei em Elgin Crescent e Gil em Kensington Park Mews Víamonos com freqüência mas era diferente de viver na mesma casa Depois me mudei para West Kensington Basset Road para Hampstead e finalmente para Golders Green Curiosamente todas as minhas lembranças da cidade de Londres das ruas de eu estar em Londres são enormemente mais vivas e melhores se referentes ao período após a saída de Chelsea mas as memórias da casa de Chelsea de dentro da casa são muito mais resistentes do que as das otitras moradas Quando volto a Londres vou olhar a casa da rua Redesdale e me enterneço ao passo que nem mesmo sei onde exatamente ficam as demais casas onde morei Uma explicação é que no primeiro ano incapaz de interessarme pela cidade e pelo que se passava nela concentravame em casa e nas pessoas que nela viviam ou que a freqüentavam Uma outra razão é o fato de a casa de Chelsea ser ela mesma melhor do que as outras casas londrinas em que vivemos Ali também aprendi a gostar de televisão Eu nunca tinha visto televisão colorida e quis alugar uma Os documentários da bbc me maravilhavam Assim também os grandes filmes americanos do passado Vi o surgimento do Monty Pythons Flying Circus Falei dele com alguns amigos ingleses e eles disseram que o desconheciam Pensei que havia um programa espetacular a que ninguém dava atenção Na verdade o Monty Python apenas estreara e por isso é que ainda tão poucos o tinham visto Nessa casa onde alguns amigos brasileiros autoexilados vieram morar recebemos a visita de Haroldo de Campos que a apelidou de Capela Sixteena e que acabou se machucando num acidente de automóvel resultado da imprudência de Péricles Cavalcanti Péricles é uma das melhores pessoas que conheço sua delicadeza seu desprendimento sua generosidade quase sigilosa fazem dele um anjo e isso se traduz tanto na pureza com que ele àquela época acolheu o temário da contracultura abandonando um futuro acadêmico que se apresentava como brilhante quanto nas gravações que recentemente vem realizando de canções sempre especialíssimas que compõe sem pressa e sem pretensão Mas Péricles é um daqueles anjos eventualmente desastrados que derramam líquidos à mesa e ao volante embora tenham a intenção de respeitar os sinais podem virar se para fazer um comentário interessante justamente no momento em que as luzes trocam de cor Assim ao levarmos Haroldo para o seu hotel Péricles acelerou ao invés de frear num cruzamento cujo sinal já se mostrava amarelo a uma boa distância e um carro que vinha na outra rua chocouse conosco tendo o impacto se dado justamente no lado em que Haroldo estava sentado Esse acidente forçou Haroldo a demorarse em Londres e nós o tivemos em casa por alguns dias o doce Péricles cuidando dele com muito carinho Nós ouvíamos Haroldo com deleite E ele próprio se divertiu um pouco Seu amigo Cabrera Infante acompanhado da mulher Mirian vinha visitálo e nós falávamos de música cubana e música brasileira de cinema americano e com parcimônia de literatura Eu tinha lido Três tristes tigres em meio a um pacote da então nova literatura latinoamericana o boom que me fora indicado por uns amigos de Glauber em Barcelona e tinha gostado muito Na verdade tinha gostado mais dele do que do hit Cem anos de solidão embora menos do que de tudo de Borges Infante é tão engraçado e tão sério quanto Buster Keaton mas num estilo totalmente diferente Sua amargura em relação à Cuba de seu ex amigo Fidel é perceptível o tempo todo mas nunca foi mencionada Ainda hoje sempre que coincide de estarmos na mesma cidade nos procuramos e nos falamos Uma visita comovente foi a que nos fez o Rei Roberto Carlos Ele nos era como já disse grato pela revalorização que fizemos de seu trabalho De passagem por Londres quis nos ver Ao atender seu telefonema para marcar a visita Rosa Maria Dias então ainda mulher de Péricles também morando conosco não acreditou que fosse verdade e ao renderse à evidência chorou Roberto veio com Nice sua primeira mulher e nós sentíamos nele a presença simbólica do Brasil Como um rei de fato ele claramente falava e agia em nome do Brasil com mais autoridade e propriedade do que os milicos que nos tinham expulsado do que a embaixada brasileira em Londres que não tinha contato conosco e segundo nos contou um amigo que procurou por mim através dela usava a meu respeito a expressão persona non grata e muito mais do que os intelectuais artistas e jornalistas de esquerda que a princípio não nos entenderam e nos queriam agora mitificar ele era o Brasil profundo Conversando sobre a gravação de seu novo disco Roberto pegou meu violão e cantou dizendo sem nenhuma insegurança que iria nos agradar As curvas da estrada de Santos Essa canção extraordinária cantada daquele jeito por Roberto sozinho ao violão na situação em que todos nos encontrávamos foi algo avassalador para mim Eu chorava tanto e tão sem vergonha que não tendo um lenço nem disposição de me afastar dali para buscar um assoei o nariz e enxuguei os olhos na barra do vestido preto de Nice enquanto Roberto repetia com ternura Bobo bobo Londres representou para mim um período de fraqueza total Freqüentei umas aulas de inglês para estrangeiros numa daquelas escolas de várias salas com turmas grandes Mas falava português quase o tempo todo morando numa casa habitada por brasileiros e freqüentemente visitada por brasileiros Eu me sentia incapaz de aproveitar o que deveria ser visto como oportunidade Gil ao contrário tentava tirar vantagens da situação Saía mais estudava com mais afinco encontrava músicos ia a muitos concertos Assombrame pensar que em dois anos e meio não fui uma só vez ver uma peça de teatro inglesa não assisti a um só concerto de música clássica não entrei numa livraria ou numa biblioteca e só fui aos museus o British Museum e a Tate Gallery na semana de voltar para o Brasil levado por Arthur e Maria Helena Guimarães e pelo pintor e cenógrafo português Jasmim Era a contracultura e todos os caminhos levavam aos shows de rocknroll e ao Electric Cinema mas o que fora feito da curiosidade do menino que em Salvador ia ver tudo o que podia no mamb no salão nobre da reitoria e na Escola de Teatro Eu me deixava levar Na verdade estava mais e mais enfronhado na música popular Minhas veleidades de deixar o que já fazia profissionalmente para estudar dirigir filmes ou escrever recolheramse sob o impacto da prisão e do exílio Eu simplesmente não tinha forças para esboçar um gesto livre A campainha que soou antes que eu adormecesse na manhã em que os policiais me levaram me marcou tão fundamente que eu tremia ao som da campainha da casa de Chelsea Desse jeito erame impossível ousar o que quer que fosse E à medida que alguma receptividade ao que eu fazia se esboçava no meio profissional inglês meu mero senso de sobrevivência me atava a uma atividade em que eu já estava instalado Ficava em casa ouvindo Gil tocar tocando eu mesmo às vezes vendo televisão lendo e sobretudo conversando com as pessoas que apareciam Nessas conversas eu me mostrava descuidadamente falante mas minhas alegrias não duravam até eu pôr a cabeça no travesseiro Sempre havia do que me envergonhar E eu não sabia como fazer esforço para progredir Hélio Oiticica estava vivendo em Londres desde antes de nós deixarmos o Brasil Tinha havido uma exposição dele muito falada e concorrida e a turma do grupo cultural Exploding Galaxy liderada por Paul Keeler e David Medalla o rodeava e cultuava O então crítico de arte do Times Guy Brett que escrevera com muito entusiasmo sobre ele e sobre Lygia Clark vinha muitas vezes à Capela Sixteena encontrálo e conversávamos Hélio era um desses artistas radicais e inacreditavelmente inteligentes que permanentemente transformam a singularidade quase inalcançável de sua visão em argumentos luminosos Tendo participado do movimento carioca chamado neoconcretismo como seqüência e oposição ao movimento concretista dos pintores de São Paulo Hélio trazia para esse mundo pósmondrianiano não apenas o orgânico e o sensível que supostamente faltava aos frios paulistanos mas os extremos do romantismo do pop sem fazer arte pop a tematização ostensiva de sua mitologia pessoal Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira os bandidos das favelas com quem mantinha amizade pessoal o rocknroll o sexo as drogas pesadas um comprometimento de ser ele mesmo uma obra conceitual Saindo do quadro e do objeto contemplável para as instalações como a Tropicália e as vestes transcendentais que eram os Parangolés arranjos pouco legíveis como vestimentas e impossíveis de serem expostos como objetos autônomos esses mantos capas echarpes ou gibões feitos de materiais variados plástico e brocado e filo lançados por ele na situação em que o foram sugerem a quem os examina um turbilhão de pensamentos e sentimentos sobre o corpo a roupa a beleza plástica a invenção a miséria e a liberdade Hélio tornouse uma espécie de happening ambulante Isso era bem o espírito da época lembremos Agrippino e Rogério querendo e conseguindo em larga medida ser personagens e não meros autores de uma obra genial lembremos que o neorocknroll inglês dos anos 60 e o próprio tropicalismo tinham muito dessa ambição e que a própria política narcisista de ideologizar a intimidade e sexualizar os julgamentos dos atos públicos era algo da mesma natureza Mas Hélio levou isso a conseqüências extremas E sendo um artista basicamente construtivista o fez com requinte e graça inigualáveis Nele não se viam as trevas medievais que se adivinhavam por trás do romantismo radical de outros Hélio esteve até o fim comprometido com a idéia de vanguarda de criação de um design novo para a vida independentemente dos desígnios da miséria da opressão e da própria condição humana Acompanhávamos de longe o que se passava no Brasil Sem que eu estivesse certo do que poderia resultar de uma revolução armada o heroísmo dos guerrilheiros como única resposta radical à perpetuação da ditadura merecia meu respeito assombrado No fundo nós sentíamos com eles uma identificação à distância de caráter romântico que nunca tínhamos sentido com a esquerda tradicional e o Partido Comunista Nós os víamos e um pouco nos sentíamos à esquerda da esquerda Quando mataram Marighella o líder da guerrilha urbana um baiano que pertencera ao Partido Comunista e que tinha a fama de ter respondido quando estudante às questões de uma prova de química em versos decassílabos rimados coincidiu de publicarem as primeiras fotos que fizeram de nós no exílio na mesma capa de revista em que expunham a de Marighella morto Isso me pareceu doloroso Eu enviava então a pedido de Luís Carlos Maciel artigos para o jornal O Pasquim e considerando o peso simbólico da coincidência das duas imagens naquela capa de revista a de maior tiragem do Brasil de então escrevi um longo e amargurado texto que terminava com a afirmação Nós estamos mortos ele está mais vivo do que nós Nem uma só pessoa no Brasil percebeu do que eu estava falando Recebi muitas cartas tentando reconfortarme pelo sofrimento de estar exilado e conversei com várias pessoas que passavam por Londres e por Paris mesmo os que mencionavam a execução de Marighella e o meu artigo não relacionavam nem remotamente uma coisa a outra Fiquei espantado e isso me deu uma espécie de medida da distância psicológica que nos separava dos que estavam vivendo no Brasil As notícias de ações terroristas causavam um misto de entusiasmo e apreensão Afinal doces tocadores de violão saídos de lares da classe média não se sentem muito à vontade diante da perspectiva de violência Mas as trocas de embaixadores de países ricos por grupos de prisioneiros com as agradáveis confirmações por parte dos seqüestrados de que foram tratados com humanidade apareciam como gloriosas vitórias daqueles que lutavam a boa luta da resistência Quando Rogério Sganzerla e Julinho Bressane chegaram a Londres podiase ver através dos vidros das janelas da frente da casa de Chelsea uma bandeira brasileira que alguém em nossa casa tinha posto para ilustrar as reuniões em frente à tv para assistir aos jogos da Copa do Mundo Os próprios ingleses deslumbrados com o futebol de Pele Tostão e Jairzinho tinham passado a torcer pelo Brasil uma vez que a Inglaterra fora desclassificada Sufocados pela utilização que a ditadura brasileira fazia do futebol para sua propaganda e que de longe não podíamos sentir na mesma intensidade os dois jovens cineastas demonstraram malestar diante da bandeira Eu tinha deixado o Brasil pouco depois do lançamento de O Bandido da Luz Vermelha o primeiro longametragem de Sganzerla e tinha visto nesse filme tanto talento e tanta liberdade que estava disposto a comprar todas as críticas que seu diretor fazia ao Cinema Novo O próprio filme valia por um comentário exigente das fraquezas do movimento Rogério e Júlio tinham chegado a Londres acompanhados de Helena Ignez a bela atriz que Bethânia e eu já idolatrávamos na Escola de Teatro da Bahia e que tendo sido a primeira mulher de Glauber agora estava casada com Sganzerla e os três com suas roupas seus cabelos e seus modos eram um exemplo perfeito de desbunde elegante sem uma gota de provincianismo Um filme de Bressane embora aparentemente mais modesto na feitura me impressionara mais do que o próprio Bandido de Sganzerla Matou a família e foi ao cinema Ainda hoje considero esse um dos filmes mais poéticos feitos no mundo naquele período e no Brasil em qualquer tempo Curiosamente Caca Diegues que sempre representou o aspecto sensato do Cinema Novo tendo se tornado uma espécie de personificação do movimento é que me fizera numa ida minha a Paris ver o filme que ele também adorava Sganzerla considerou incoerente que eu louvasse o filme de Júlio e desse o crédito a Diegues por mo ter apresentado Por outro lado Glauber me escrevia cartas violentíssimas naquele seu estilo sem autocensura praticamente proibindo minha amizade com os dois rebeldes Isso tudo me custou muito malestar e embora depois as coisas se resolvessem até consideravelmente bem deplorei a incapacidade dos dois lados de se energizarem mutuamente Não que isso não estivesse acontecendo em alguma medida mas sem dúvida houve muito desperdício de oportunidade e muita inspiração jogada fora No fundo eles amavam Glauber e Glauber também os amava As agressões que a dupla lançava contra o mestre tinham algo de assassinato do pai mesclado a lucidez crítica Era como se Gil e eu fôssemos pichar tom Jobim e a bossa nova e para isso argumentássemos por exemplo contra o fato de ele ter gravado um disco nos Estados Unidos com temas semelhantes à música erudita brasileira chamada nacionalista com empostação sinfônica Que tal atitude ocorresse a Gil e a mim era simplesmente impensável É que no Brasil a música popular simplifica a vida dos seus produtores como o cinema não pode fazêlo A facilidade da feitura o vigor do mercado interno que as multinacionais logo perceberam a textura da tradição tudo dá ao músico popular o que ao cineasta é negado Apesar de tudo isso eu sabia então como sei hoje que o Cinema Novo é criticamente mais vulnerável do que a bossa nova No entanto ou talvez por isso mesmo usamos sempre iniciais maiúsculas para o primeiro enquanto a última não parece merecêlas ou delas precisar O brilhantismo de Sganzerla como diretor fazia prever uma carreira profícua e instauradora de uma nova norma uma nova corrente central para o cinema brasileiro e com adesão do público e atenção internacional ele prefigurou muito do melhor Almodóvar e do melhor Tarantino mas as dificuldades de tal coisa se dar num país como o Brasil desabaram sobre ele de forma pesada e embora ele continue filmando e não tenha perdido o brilho do gênio ele o faz a intervalos longuíssimos e sem produzir aquelas conseqüências Bressane é que já a partir de Londres iniciou uma obra numerosa e personalissimamente culta num afastamento deliberado das pretensões mercadológicas cuja beleza solitária cresce com o tempo e que busca enfrentar as questões mais sutis da natureza do cinema como arte de autor Minha amizade foi sempre mais estreita com ele do que com Sganzerla A inimizade que fatalmente resultaria da minha posição entre eles e os velhos do Cinema Novo também o foi além de mais duradoura Hoje somos de novo amigos e minha admiração por seus filmes se alimenta muitas vezes do fascínio que sua personalidade exerce sobre mim Julinho gosta de contar que tom Jobim respondendo a uma moça que queria saber se ele fazia distinção entre música erudita e música popular disse Eu não faço distinção mas ela existe Isso sempre me leva a pensar em como não se fala de um possível cinema erudito em oposição ao cinema popular atração de feira curiosidade tecnológica o cinema seria popular por uma fatalidade de origem ao mesmo tempo a divisão nítida dos músicos em eruditos e populares retira destes últimos o direito e a obrigação de responder por questões culturais sérias enquanto se espera isso de cineastas dos mais variados níveis de instrução Julinho tem vocação para grande erudito e seus filmes especialíssimos sugerem o recolhimento de um estudioso solitário Uma piada corria no Rio no meio dos anos 60 sobre os filmes brasileiros serem uma merda mas seus diretores geniais Isso dizia respeito ao fato de os cineastas do Cinema Novo e Glauber mais que todos alimentarem discussões elevadíssimas sobre filmes que o público mais ou menos ignorava Já nos anos 70 esses mesmos cineastas um pouco mais treinados fizeram filmes em que a ambição intelectual autoral dava algum lugar ao trabalho de equipe e à tentativa de conquista de mercado Assim como algo de relevante se conquistou nas primeiras precárias e heróicas produções alguma coisa notável se conseguiu também nessa segunda investida O público compareceu grandemente e a meu ver nos bons momentos os filmes de uma fase iluminavam os da outra Sganzerla e Bressane surgiram exatamente no momento dessa transição O primeiro mostrouse nitidamente capaz de realizar filmes de cinema que o público reconheceria como filmes e que teriam muito a dizer sobre a linguagem desse meio Já Julinho radicalizou desde o início a postura do cineasta como poeta como autor soberano realizador de experimentos em estado puro sem compromissos seja com a coletividade criativa seja com a coletividade espectadora A obstinação com que ele tem se mantido nessa posição fez dele o mais fundo dialogador com o legado de Glauber Além da alegria de reconquistar sua amizade tive nessas últimas décadas a honra de atuar em alguns dos seus filmespoemas O mais fascinante é que ele tem por vezes voltado seu olho de monge alfarrabista para a tradição da música popular carioca recontando assim sua autobiografia secreta de carnavalesco convertido em eremita Minha vinculação profunda com o Cinema Novo e minha opção fatal por agir no mainstream me mantém ligado à produção amadurecida dos cineastas originais do movimento ainda na ativa mas a aventura de Júlio Bressane me diz algo que eles não podem dizer e certamente diz a eles muito mais do que aparece na consciência No começo do exílio londrino amando as pessoas e as obras de todos os envolvidos na desavença não me sentia nem mesmo no direito de julgar seus atos Mas nem por isso deixei de invejálos por eles fazerem filmes Gil e eu não sabíamos o que fazer em Londres A gravadora com que tínhamos contrato no Brasil a Philips tinha enviado uma carta a executivos do braço inglês da companhia recomendandonos e explicando nossa situação Mas eu não esperava nem sequer desejava que eles dessem atenção a esses pedidos Temia que alguém me chamasse para gravar alguma coisa e eu passasse vergonha No Brasil os produtores não me permitiam sequer tocar violão em meus próprios discos e eu lhes dava razão Eu sinceramente esperava que Gil se enturmasse logo com músicos e começasse a mostrar a exuberância do seu talento Com boa vontade imaginava ser capaz de logo que ele tivesse trabalho pegar uma carona como parceiro e orientador Uma noite veio à nossa casa no 16 da rua Redesdale um homem que queria nos ouvir Ele havia combinado com Guilherme pelo telefone e nós pensávamos que ele fosse da Philips Na verdade ele tinha sido da Philips Antes de sair da companhia ouvira falar em nós Ficara curioso A Philips propriamente não tinha interesse Mas ele guardara o nosso endereço e agora que estava trabalhando em outra gravadora na qual tinha mais autonomia vinha verificar Seu nome era Ralph Mace Conversou um pouco conosco e pediu que cantássemos qualquer coisa Surpreendeume que ele ficasse tão agradavelmente surpreso com tudo o que ouviu E mais ainda que tivesse demonstrado tanto entusiasmo pelo meu material quanto pelo de Gil Nos encontros seguintes Mace já falava em fazer discos conosco Ele imaginava um disco de cada um Propôs que eu compusesse algumas canções em inglês Mudei muito de ânimo quanto a fazer música por causa desse homem Ele gostava sinceramente de nós e nos tratava com um cuidado muito atento A novidade de ele ser tão otimista quanto a mim me fez perder grande parte da vergonha Passei a achar maravilhado que era possível que alguém naquele lugar se interessasse por minha música aproveitando dela aspectos que no Brasil nem eram levados em conta Isso era mais importante do que o fato esperável de eles não captarem muitos outros aspectos que no Brasil seriam óbvios A confirmação veio quando entramos no estúdio para gravar Lou Reisner o produtor americano estava vivendo em Londres e não sei por que caminhos chegou até nós Não foi Mace quem nos aproximou Ao contrário os dois se encontraram porque Reisner quis produzir o meu disco Lembro de ter ido ao apartamento de Reisner em Knightsbridge e de ter cantado várias músicas Sua reação muito positiva era para mim um assombro continuado Nunca esqueço de que foi ele quem me corrigiu o inglês na frasechave e título da canção In the hot sun of a Christmas day Tudo nessa canção era já como pode ser ouvida no primeiro disco que fiz em Londres Menos o refrão Eu cantava In the hot sun of the Christmas day O mais ridículo é que ele me dizia em tom de sugestão que eu mudasse para of a em vez de of the e eu não entendia que palavra era essa of a Quanto mais ele repetia of a of a mais eu me confundia Eu ouvia over pronunciado à inglesa Lou era americano e achava absurdo Não que eu cresse que ele estava dizendo over eu sabia que não mas não me ocorria outra palavra e minha mente não conseguia estar livre dessa Mesmo quando ele pronunciou ov ei separando bem as duas palavras e exagerando o ditongo ei ainda me senti perdido por uns poucos segundos Um outro americano chamado David Linger que nacia tinha a ver com produção de discos mas que veio até a casa da Redesdale e se fez nosso amigo foi quem mais me ajudou na aproximação com a língua inglesa os americanos descobri em Londres são naturalmente mais identificados conosco do que quaisquer europeus e David era um garoto de inteligência excepcional Seu talento para línguas no entanto terminou mais trazendoo para o português que ele ainda fala sem sotaque e escreve com correção embora tenha depois de uma longa temporada brasileira voltado a viver nos eua do que me levando para o inglês LÍNGUA A partir do momento em que Ralph Mace propôs fazermos os discos compus várias canções em inglês Não era a primeira vez que o fazia Em São Paulo muito antes de imaginar que um dia iria morar em Londres compus uma marcha bossanova com letra em inglês embora quase não falasse essa língua Eu o tinha feito porque o inglês tornava se mais e mais internacional e eu achava que sendo bombardeados pela língua inglesa todo o tempo nós tínhamos o direito de usála como nos fosse possível Se o rádio brasileiro tocava mais músicas em inglês do que em português se os produtos os anúncios as casas comerciais usavam inglês em suas embalagens slogans e fachadas nós podíamos devolver ao mundo esse inglês mal aprendido fazendoo veículo de um protesto contra a própria opressão que o impunha a nós Ao mesmo tempo queria dialogar com pessoas no mundo exterior Era um esboço ingênuo de comunicação internacional um modo de tentar abrir um respiradouro nesse universo fechado que é o Brasil Eu não ambicionava sucesso mundial nunca sonhei morar fora e muito menos num país de língua inglesa Na contracapa do meu primeiro lp solo escrevi Quando a gente não tem vontade de ir para os States não tem jeito Isso não era um desejo tentando ocultarse numa negação Era o reconhecimento consciente de uma espécie de dever que eu tinha preguiça de cumprir sendo capaz de aprender inglês com facilidade podendo planejar uma investida nesse sentido eu me sentia totalmente inapetente enfastiado com a perspectiva Achavame tímido e desestimulado Mas sabia que o Brasil precisava precisa abrir diálogos mundiais francos livrarse de tudo o que o tem mantido fechado em si mesmo como um escravo desconfiado Assim a canção que escrevi então era um grito de socorro às avessas eu me dirigia a alguns interlocutores imaginários no mundo lá fora e descrevendo minha pobreza e minha solidão de brasileiro pedia que não me ajudassem apenas me dissessem seus nomes e me deixassem dizer quem era eu A canção chamavase Lost in the Paradise olha o doutra vez My little grasshopper airplane cannot fly very high Ifi nei yon so far from my sight Im lost in my old green light Dont help me my love My brother my girl Just tell me your name Just let me say who am I A big white plastic finger Sutrounds my dark green hair But its not your unknown caress Its not from your unknown right hand Dont help me my love My brother my girl Just tell me your name Just let me say who am I I am the sun the darkness My name is green wave Death salt South America is my name World is my name my size And under my name here am I My little grasshopper ah plane cannot fly very high Agora me lembro Cinema Olímpia não foi a única canção inédita que cantei no show de despedida no Teatro Castro Alves Também cantei Empty boaf que gravara pouco antes no disco feito em Salvador Essa foi a outra canção que escrevi em inglês antes de ir e de saber que iria para Londres É uma canção muito sincera Mais sincera do que a outra Não que seja boa Mas eu ali estava dizendo ao mundo que eu estava vazio E era exatamente o que sentia E o que é mais importante a melodia e o som das palavras reproduzem exatamente como eu o sentia recriam o clima em que me encontrava então From the stern to the bow O my boat is empty O my mind is empty From the who to the bow Esses aleijões nascidos do pensamento de responder ao bombardeio da língua inglesa me envergonhariam algum tempo depois Hoje sãome indiferentes As canções que compus em Londres são melhores Há pelo menos uma Nine out of ten cuja letra ainda hoje me agrada Mas essas já nasceram encomendadas por um produtor inglês o que as fazia ser a um tempo mais modestas e mais ambiciosas pois tinham chance real de ser ouvidas por pessoas de língua inglesa Não se deve crer que eu no período de São Paulo não pensava tais coisas a respeito de escrever canções em inglês que a idéia de abuso legitimado pela dominação angloamericana só me ocorreu depois como um modo de justificar a posteriori o que seria meramente ridículo Não Eu pensava tudo isso com absoluta lucidez O que se deve ter em mente é que eu o pensava dentro de uma perspectiva realista e me levava em conta a desimportância da música popular as pretensões maiores estariam de fato estavam fadadas a desaparecer juntamente com as próprias canções caso elas não chegassem a se destacar como tais Ou seja não eram esses propósitos ambiciosos que se cobravam de uma canção nem mesmo no Brasil nem mesmo naqueles tempos de contracultura De qualquer forma as pretensões maiores revelamse hoje apenas ingenuamente risíveis valendo relembrálas somente porque representam um momento curioso da história de minhas nossas relações com a cultura internacional liderada pela língua inglesa O inglês é tão estranho a uma mente desenvolvida no âmbito do português quanto é possível a uma língua sêlo a um ser humano Sua presença perene não raro intensifica esse estranhamento ao invés de mitigálo De tanto ouvir canções com cujos sons nos familiarizamos sem decifrarlhes o sentido de tanto ver filmes legendados nos habituamos a considerar o inglês um grougrougrou que faz parte da vida sem exigir esforço de nossa parte para lhe conferir inteligibilidade Quando mais tarde aprendemos muitas palavras e alguma tecnologia da língua inglesa énos ainda sempre fácil desligar e fazêlas voltar à sua original essencial condição de grunhido Falando sobre minha infância no início deste livro contei como o inglês nos soava canino Pois bem mesmo depois de me apaixonar pelas letras de Cole Porter pelo estilo de Scott Fitzgerald e pela pronúncia de Sinatra mesmo depois de ler os mais belos elogios inclusive um poema de Jorge Luis Borges à beleza sonora da língua inglesa mesmo depois de ler Shakespeare e Joyce e Stein e cummings eu ainda encontrava na ignorância infantil diante do idioma a base para a caricatura que nos anos londrinos eu fazia dos sotaques americano e britânico demonstrando que se tratava de dois tipos de voz de cachorro os americanos sempre emitindo rosnados por um lado da boca e os ingleses alternando uivos entrecortados e latidos surdos A condição de consoante fricativa faz com que o erre diferentemente do pê por exemplo possa se prolongar indefinidamente no tempo Mas seja na sua versão propriamente fricativa em que a fricção se dá entre a língua e os dentes como no italiano seja na sua versão gutural em que ele é antes uma aspiração forte como no francês ou não tão forte como no português do Brasil do Rio para o Norte de São Paulo para o Sul o erre brasileiro é semelhante ao italiano esse prolongamento é o prolongamento de um som em que a voz não entra Quando algo de voz participa do som distintivo do erre isso soa para nós brasileiros como algo ridículo Há uma piada que leva seu narrador a imitar um coral de uma dessas cidades paulistas do interior onde vige o aleijão do erre sonoro só numa área delimitada do Sudoeste brasileiro isso se dá o qual seguindo um maestro que fecha o compasso final de uma canção que termina com a palavra amor demorase na nota não apoiado na vogal o mas no horrível som engrolado do erre líquido e vibrante Não obstante Frank Sinatra numa gravação dos anos 70 ou 80 é bem verdade repete involuntariamente esse efeito cômico com um more ou before final Mas é que isso é da natureza mesma da língua inglesa Estamos antes inclinados a achar os erres escoceses algo inadequados Se bem que admiremos moderadamente os ingleses refinados que pronunciam os erres muito secos quando intervocálicos e quase aspirados quando finais em oposição aos americanos mais rudes que comprazemse em mascar longos erres cavernosos e supersalivados seja qual for a situação em que eles se encontrem na palavra Os poetas concretos divulgavam a paixão de Fenollosa e de Pound pelo chinês A partir daí induziam a uma valorização do inglês como língua mais próxima do sistema isolante do que as outras línguas ocidentais A posição da palavra na frase sendo mais importante do que a flexão indicativa de função sintática Assim no extremo oposto do hiper hierarquizado latim estava o chinês O inglês com suas anteposições de nomes que se adjetivam e os milagres que faz com as preposições estava próximo de ser como o chinês poesia o tempo todo Era gostoso para nós habituados a considerar as doces línguas meridionais como intrinsecamente mais poéticas do que as ríspidas línguas do Norte frio passar a pensar que o inglês sempre tão prático e pouco metafísico é que era a mais poética das línguas ocidentais E isso não nos vinha do inglês de Shakespeare a rigor ele antes atrapalharia do que ajudaria esse arrazoado mas justamente do inglês prático do mero inglês coloquial Hoje sinto prazer em reencontrar o potencial barroco das flexões latinas amolecidas no italiano no espanhol e mais ainda no português Agora excitame mais pensar que o inglês jornalístico de Hemingway e dos autores de romances policiais revelouse quando transformado numa ortodoxia rasteira que atingiu toda a literatura ocidental uma verdadeira deformação estilística Muitos me perguntam em que medida a música inglesa me influenciou nesses anos londrinos O fato é que a mais funda influência do pop inglês se dera antes de eu sonhar em ir a Londres os Beatles no prétropicalismo Os muitos shows de rock e pop que vi na Inglaterra mais serviram para por um lado desmistificar as produções do primeiro mundo e por outro para habituarme com suas reais conquistas técnicas Assim pude me surpreender com o relativo amadorismo de algumas apresentações prestigiosas mas quando voltei ao Brasil dois anos e meio depois eu sentia falta de certas condições básicas de som e luz e de uma combinação de precisão e despojamento na performance valores que fora assimilando sem registrar conscientemente enquanto assistia aos shows ingleses A maior contribuição da Inglaterra para a minha formação musical no entanto foi a aceitação por parte de produtores e ouvintes do meu modo de tocar violão Mostrei London London a Lou Reisner dizendolhe que para o disco pediríamos a Gil ou a algum guitarrista inglês que me acompanhasse Ele reagiu com veemência argumentando que um bom músico de estúdio tiraria toda a graça especial da canção Ele pode tocar bem mas não tocará como você E quem lhe disse que você toca mal Quando eu tocava bossa nova o despreparo do ouvido inglês e americano para julgar trabalhava a meu favor O resultado é que me desembaracei e embora saiba que não toco bem posso hoje orientar grandes músicos a partir do que esboço no violão coisa que jamais sonharia em fazer antes de Londres E faço shows pelo Brasil e pelo mundo tocando meu violão Não gosto de ouvir minhas gravações sobretudo aquelas em que toco Bom mesmo é João Bosco Dori Caymmi Djavan Sem falar em Gil Eu apenas consigo reproduzir rudimentos da grande arte de João Gilberto de forma canhestra Mas com isso sublinho as intenções de composição e canto que me ocorrem e termino soando convincente para muitas pessoas Embora é claro não satisfatório para muitos músicos Mas houve uma descoberta importante no show business inglês para mim naquela estada os Rolling Stones Esse grupo em que eu não prestava muita atenção enquanto estava no Brasil e que só conhecia de gravações ao ser visto ao vivo me arrebatou A bem dizer minha opinião sobre os Stones antes de eu deixar o Brasil era semelhante à de Ned Rorem igualmente comparativa e desfavorável em relação aos Beatles Em Londres vi de Led Zeppelin a Tiranosaurus Rex de Incredible String Band a Pink Floyd de John Yoko a Hendrix de Dylan a The Who Mas os shows dos Stones eram o teatro dionisíaco Eles entravam no palco e logo se estabelecia uma atmosfera que era a mais viva demonstração de entendimento do espírito da época e o mais forte estímulo para ampliar suas conquistas Mick Jagger parecia uma labareda de significados cambiantes Ele era uma mulher um macaco um bailarino um atleta um moleque um poeta romântico um tirano um doce camarada Sua presença de estrela superava a das estrelas convencionais que tinham refletores estratégicos posição planejada distância em relação à platéia Levando mais longe do que ninguém a aventura de sugerir parceria com a multidão de compartilhar com todos as ousadias estéticas e comportamentais Supondo uma geração inteira de criadores ele lograva ser mais diva do que qualquer Sinatra do que qualquer Barbra Streisand Ele se confundia com as pessoas com as coisas O grupo funcionava como um organismo A inteligência saía pelos poros Keíth e Mick nunca fizeram canções como as dos Beatles nunca escreveram como Dylan nunca cantaram como Winwood ou Paul mas no palco eles representavam o que havia de melhor e de mais forte em todos esses Seu repertório que antes me parecia apenas confuso se iluminou para mim Claro que Satisfaction tinha sido um hit no Brasil e era evidentemente uma grande canção mas as tentativas de Their Satanic Majesties Request não combinavam com a bagunça do resto nem atingiam um nível razoável de acabamento e isso esfriava meu interesse A própria voz de Jagger me soava sem musicalidade e sem verdadeira selvageria Eu julgava encontrar esses dois elementos muito melhor desenvolvidos no canto de Paul do que no dele No entanto vendoo no palco seu timbre e sua dicção se revelaram originalmente ricos de algo que faltava em todos os outros algo único que passei a reconhecer nas gravações Por essa altura eles estavam entre Beggars banquete Let it bleed Os shows de rock não eram gigantescos como hoje É irônico notar que entre 69 na verdade o auge dos Stones seus shows se dessem em salas para 2 3 mil pessoas o Liceum a Round House ao passo que hoje quando se esperava que eles fossem apenas história eles tocam para platéias de 60 70 100 mil AFINIDADES ELETIVAS Muitas das observações que naquela época me ocorriam a respeito dos shows dos Stones ganharam nomes precisos e caracterizações definidas quando travei conhecimento com Jorge Mautner Na verdade duas pessoas entraram em minha vida pela porta do 16 da rua Redesdale que se revelaram decisivas para minha formação ideológica duas personalidades antagônicas em muitos aspectos embora nunca se hostilizassem e que se faziam complementares na função de estimularme a inteligência demonstrando como podia ser entendido o que eu queria dizer e como se devia entender o mundo quando se assumia um ponto de vista como o meu Jorge Mautner e Antônio Cícero Um irracionalista radical chutador assistemático exemplo vivo do que Décio Pignatari chamara de nova barbárie o outro metódico dissecador dos movimentos inteligíveis da sensibilidade Os dois tiveram ao longo dos anos funda influência em minha visão da política Jorge surgira ruidosamente como escritor no início dos anos 60 com um caudaloso romance chamado Deus da Chuva e da Morte Eu tinha lido uma entrevista sua na revista Senhor em que ele muito bonito na fotografia dizia coisas inusitadas Anecir me falou dele frisando que Glauber tinha lhe dito quão interessante seu livro era Mais tarde Glauber diria ao próprio Jorge que o título de Deus e o Diabo na Terra do Sol ecoava propositadamente o título desse seu primeiro romance Em Londres Mautner chegou a nossa casa de Chelsea trazido por Arthur e Maria Helena Guimarães A esse casal que me deu tantos ensinamentos de urbanidade devo também o contato direto com a chama mautneriana Jorge era um nietzschiano desde a adolescência Surgiu na Capela Sixteena com um guardachuva sentouse na sala com um ar suspeitamente modesto de velho chinês falando muito baixinho e em tom de interrogação Em pouco tempo encorajado com a receptividade estava bradando como um profeta de Israel Ele misturava a Jovem Guarda de Roberto Carlos com a guarda vermelha de Mao descrevia a revolução por que estávamos passando como se fosse um cataclismo universal voltava a seu velho sonho de casar Marx com Nietzsche e depois de passar por um deprimido cenário em que o ressentimento do terceiro mundo e a arrogância do primeiro terminariam por produzir uma opressão maior do que a vivida no segundo chegava a profecias mais precisas e aqui ele realmente mudava de tom como se tudo o mais que estivera dizendo tivesse sido mera retórica de choque afirmando que as lutas políticas do futuro se definiriam a partir dos Estados Unidos como lutas de minorias sexuais inspiradas na idéia de direitos civis Ele de fato descrevia com muita exatidão o que vemos hoje E era tão entusiástico em relação a uma cena assim quanto se podia ser então e tão irônico em relação à mesma quanto se pode ser hoje Ao mesmo tempo que dizia O futuro é nosso a velha política de esquerda e direita de luta de classes de guerra fria vai acabar Marcuse não é nada comparado com o que vem ria diabólico Vai ser chatíssimo as lésbicas negras sadomasoquistas vão disputar direitos com os pais gays brancos protestantes etc etc O pai de Mautner era um judeu austríaco intelectual foi professor de matemática e humanista em Viena que chegou a ser preso num campo de concentração nazista de onde escapou com a ajuda da esposa a mãe de Jorge uma gói de ascendência eslava lorge contava que ela uma mulher muito vital e instintiva nunca deixou de admirar Hitler Aparentemente seu marido judeu entendia com irônico amor essa admiração que de resto não turbava o ódio que ela nutrira pelos algozes de seu marido os comandados do para ela fascinante Führer Com a mesma intensidade ela se sentia grata ao país que os acolhera em sua fuga a figura de Getúlio Vargas se impôs sobre sua imaginação como representante dessa hospitalidade Evidentemente ela era sensível às lideranças carismáticas Seu marido ao contrário era refinadamente sábio e irônico como só um judeu pode ser Jorge jogava com os elementos contraditórios dessa formação de um modo que comovia e assustava Mas sobretudo estimulava e interessava As ligações da filosofia de Nietzsche e sobretudo da biografia de Heidegger com o nazismo não eram minimizadas por Mautner Ele antes as enfatizava Mas se isso era em parte usado como truque para chocar era também um meio de ele se mostrar mais autorizado a reivindicar esses dois pensadores para a esquerda O que tinha o efeito ambíguo de enriquecer seu ideário e pôr em dúvida suas premissas básicas Já tendo militado entre os comunistas e sido uma alarmista ovelha negra entre eles Mautner não tinha escrúpulos em propor que se somasse a indagação sobre o Ser dos seres à luta de classes Isso tudo envolto em rituais de comportamento que iam da ginástica ao repúdio às gírias e às drogas Era curioso ver um louco desses entre drogados esquálidos que só falavam em jargão marginal dedicarse ao bodybuilding à abstinência e ao português escorreito Ainda mais que tendo tido o alemão como primeira língua em casa ele falava um português cheio de estranhezas sutis de quaseerros risíveis e encantadores Nada disso era recebido por mim ou por Gil ou por Péricles ou por Dedé sem uma dose de distanciamento crítico freqüentemente temperado com gargalhadas Arthur Guimarães que o apresentara a nós era seu amigo de infância e ao mesmo tempo que fazialhe a propaganda vacinavanos contra seus desvarios Mas era o próprio Mautner quem se incumbia de conferir eficácia a essa vacina com autoironia judaica e com a onipresente idéia de que artistas devem dar todo o poder à sua imaginação mas nunca devem ter eles mesmos poder político real ele vivia com intensidade e clareza sua própria lenda e sua própria desmistificação Gostava de repetir Mais alto o coqueiro maior é o tombo para frisar o paralelo entre a queda de Marx até o stalinismo e a de Nietzsche até o nazismo A democracia liberal então aparecia como a manifestação do bom senso a única vacina contra o horror Mas aí ele próprio Mautner era um exemplo de indivíduo rebelde que ao invés de adequarse às convenções e ao mercado seria sempre seu crítico apaixonado pelos pensadores e artistas perigosos a cujas idéias não se devia dar demasiado poder formal Mautner percorria esse círculo sem cessar sempre enriquecendo nossa visão e temperando tudo com os batuques afrobrasileiros que dizia teremno enfeitiçado através de sua muito amada babá negra que também o aproximara de Getúlio Vargas Não se incomodava de parecer ridículo e nunca propiciou a si mesmo um tipo de respeitabilidade que ele via como me sendo dada de bandeja a despeito de meu aparecimento público escandaloso Quando voltamos para o Brasil Mautner se dedicou mais à música popular tornandose uma figura cult mas sem nunca conhecer diretamente o grande sucesso de massas Pelo menos uma de suas canções o Maracanã atômico uma obraprima composta em parceria com Nelson Jacobina tornouse um clássico isto é um hit eterno a partir de uma gravação de Gil E O vampiro uma balada que ele tinha composto sozinho no fim dos anos 50 também se tornou muito conhecida numa gravação minha de meados dos 70 e ainda hoje me pedem que a cante Muitas outras canções suas são notáveis e todas têm no mínimo um charme especial Ele é reconhecidamente e apesar de muitos chatos não o engolirem e alguns grandes não se comoverem uma grande figura da vida cultural brasileira De todo modo continua sendo uma referência crucial para mim seus julgamentos suas observações suas profecias me trazem sempre uma luz que não poderia vir de nenhum outro lugar Em Londres as conversas com Mautner confirmaram e fundamentaram a discrepância que se mostrara entre nós tropicalistas e a esquerda convencional dominante no ambiente de mpb antes de nossa chegada Nós já tínhamos nos desatrelado do engajamento automático e tínhamos recebido as demonstrações de hostilidade por causa disso Havia muito que oscilávamos mais ou menos conscientemente entre nos caracterizar como ultraesquerda a verdadeira esquerda uma esquerda à esquerda da esquerda ou como defensores da liberdade econômica da saúde do mercado No nosso próprio campo fazíamos as duas coisas empurrávamos o horizonte do comportamento para cada vez mais longe experimentando formas e difundindo invenções ao mesmo tempo que ambicionávamos a elevação do nosso nível de competitividade profissional e mercadológica aos padrões dos americanos e dos ingleses Uma política unívoca palatável e simples não era o que podia sair daí E Mautner exacerbava nossas contradições É curioso que o livro de Heidegger sobre Nietzsche me tenha sido dado a ler faz pouco tempo por Antônio Cícero Ao contrário de Mautner Cícero em Londres parecia não querer interferir nos nossos pensamentos No máximo ele mais funcionava como um copy desk de nossas conversas Com total despretensão estava sempre disposto a rearranjar uma frase que um de nós tentasse construir de modo a fazêla mais adequada à veiculação da idéia que queríamos expressar Ele sempre a fazia mais sucinta Cícero chegou ao 16 de Redesdale Street como um mensageiro sem qualificações especiais a não ser o fato de ser parente distante de Dedé e Sandra Alguém da família tinha mandado não sei o que para elas através dele e nós logo o achamos simpático Viera acompanhado de Ronaldo Bastos o letrista das canções de Milton Nascimento que eu já conhecia por causa de sua amizade com Torquato Ronaldo contou que Cícero estava em Londres estudando filosofia Aos poucos fui sabendo que ele era marxista da linha althusseriana mas estava estudando lógica com os ingleses o que não deixa de ser uma combinação curiosa Mas Cícero não falava dessas coisas assim diretamente em conversas Lembro de um dia em que Brian Darling um professor universitário inglês a quem Violeta Arraes Gervaiseau nos recomendara e que foi boníssimo conosco discutia a crítica althusseriana ao historicismo e Cícero se viu instado a argumentar Fiquei impressionado com sua clareza Ele falava inglês com acento britânico universitário e defendia sua posição com tanta segurança que Darling teve que desistir dos aspectos teóricos O que importa é que o marxista esteja fazendo alguma coisa pela causa o resto é complicação desnecessária Cícero falava sobre nossa aventura tropicalista com entusiasmo contido Mas sempre situava nossos atos e idéias de modo a pôlos em proporção Seu realismo era sereno Ele simplesmente dava grande importância ao clima que se fizera possível no Brasil por causa da entrada em cena dos baianos Sem fazer confusão entre os estudos filosóficos e poéticos que sempre tinham sido o seu principal interesse e os fenômenos de massa e sem adotar o tom apocalíptico então em voga Cícero considerava o peso do que ocorria na seara da música popular sobretudo sentiase estimulado pelo que nós tínhamos feito acontecer no Brasil Era importante que tivéssemos destronado o nacionalismo populista era importante que considerássemos a modernidade como um valor universal e que tornássemos desafiadoramente o seu partido era importante que assim ocorresse na órbita em que nos movíamos isto é a música popular e o show business Ao contrário de Mautner Cícero quase nada nos revelava de suas pesquisas filosóficas em andamento Não por falta de generosidade mas por modéstia e medo de importunar Foi somente a partir do instante em que comecei a lhe fazer perguntas muito específicas que se animou a me expor suas posições certezas e dúvidas Também ele veio a trabalhar com música popular depois da volta ao Brasil embora isso nunca tivesse feito parte de seus planos Ele sempre escrevera ao lado de suas reflexões filosóficas alguma poesia Também ao contrário de Mautner poesia classicamente erudita sem nenhum traço de cultura pop Marina sua irmã mais nova uma bonita menina de cabelos crespos e personalidade forte revelou no fim da adolescência que coincidiu com nosso retorno ao Brasil talento para cantar e compor canções Ao se profissionalizar ela pegou um dos poemas de Cícero e para sua surpresa transformouo em canção Marina com uma voz personalíssima e um jeito determinado veio a se tornar uma estrela pop nacional Por alguns anos manteve a tradição de gravar parcerias suas com o irmão que assim ganhava algum dinheiro Depois de algum tempo ele se afastou da canção para poder dedicarse àquilo de que mais gosta filosofia e poesia Várias das canções que compôs com Marina se tornaram grandes sucessos populares e todas são bem escritas Recentemente Cícero publicou um livro de filosofia O mundo desde o fim o seu primeiro que é embora a academia finja ignorar um dos maiores acontecimentos intelectuais do final do milênio no Brasil Tratase de uma petulante retomada do cogito cartesiano em termos radicais o que vale por um escândalo no ambiente acadêmico brasileiro dividido entre comentadores do marxismo frankfurtiano e comentadores do pósestruturalismo francês Se eu lera em 68 em Tristes Trópicos de LéviStrauss que o eu não é simplesmente abjeto ele é também impossível e reconheço no esforço para superar o cogito sobretudo no esforço para fingirse que se o superou a motivação básica das pretensões intelectuais e filosóficas do nosso século não posso deixar de considerar o tamanho da ousadia de Cícero E o próprio tom do livro escrito num português excepcionalmente belo e sereno revela que ele chegou a esse lugar depois de percorrer com sinceridade e inteligência os problemas essenciais que tal posição implica O livro é uma afirmação radical da modernidade nascida com Descartes contra todas as investidas antiiluministas que inspiraram grande parte do pensamento contemporâneo e põe o Brasil na responsabilidade extrema de ser não o grande exotismo ilegível que se opõe à razão européia mas o espaço aberto para a transição para parafraseando Fernando Pessoa sobre Mário de Sá Carneiro um Ocidente ao ocidente do Ocidente O que não é de modo nenhum a mesma coisa que inibir o Brasil como querem fazer muitos acadêmicos que se crêem antifolclorizantes reduzindoo a um bom comportamento dentro de parâmetros ocidentais cristalizados Com isso Cícero destrói a falsa opção para o Brasil entre bizarria estridente e imitação modesta Ter ele chegado a esse ponto para mim representa uma confirmação da identidade profunda que senti com sua percepção das coisas desde Londres E o faz situarse em minha imaginação não distante do Mautner do transliberalismo delirante e com batuque Mautner é três anos mais velho do que Gil e eu e foi sob vários pontos de vista um precursor do tropicalismo nós o chamávamos com ternura e ironia de mestre enquanto Cícero uns quatro anos mais novo do que nós dois uns sete mais novo do que Mautner foi ele próprio levado a dar guinadas em seu pensamento por causa do que julgava ver no que fazíamos sendo assim em alguma medida uma espécie de seguidor do tropicalismo embora é claro não tivesse motivos para nos chamar mesmo brincando de mestres Mas eu os apresento aqui juntos nesse paralelo por atribuir a ambos Mautner sendo mais influente do que Cícero na fase londrina e este o sendo mais do que aquele depois da volta ao Brasil papel decisivo na não por culpa deles precária organização do meu pensamento Um encontro que também se revelou desde logo influente no desenvolvimento do meu modo de pensar a política e as coisas a ela relacionadas foi o que se deu entre mim e José Almino filho de Miguel Arraes Tínhamos estado juntos por poucas horas na minha primeira ida a Paris em 68 na época do show da Rhodia antes da prisão e já então sua fluência a um tempo divertida e angustiada ao comentar os recentíssimos acontecimentos de maio me impressionou De Londres a partir de 6970 íamos muito sobretudo Dedé Guilherme e eu a Paris As conversas na casa de Violeta sua tia eram apaixonantes Lembro do aparecimento de Guel Arraes aos quinze anos lindo como um anjo índio cuja atmosfera pessoal pura me comoveu até às lágrimas Guel adolescentevparecia ao mesmo tempo uma estátua clássica e uma fruta nordestina Mas eram as conversas com Zé Almino que certamente por eu as saber capazes de produzir conseqüências dominavam a cena para mim Na minha primeira ida de Londres a Paris ele tinha em mãos um artigo de Roberto Schwarz sobre o tropicalismo Era uma cópia datilografada que o autor seu amigo tinha dado a ele o artigo era interessante e estimulante Mas desde já sabiase que seria uma versão complexa e aprofundada da reação desconfiada que a esquerda exibia contra nós Schwarz não demonstrava no entanto nem hostilidade nem desprezo pelo nosso movimento Ao contrário davalhe grande destaque dentro do esquema que apresentava das relações entre a cultura e a política no Brasil pós64 Estávamos longe da rejeição total que tivemos de um Boal por exemplo De todo modo seria uma honra para mim que o tropicalismo recebesse tanta e tão terna atenção de um pensador naturalmente tão pouco identificado com nossa sensibilidade Era visível por exemplo que ele tinha mais intimidade com o que se fazia em cinema e teatro do que com o que se passava na música popular Impressionavame que opusesse o método de alfabetização Paulo Freire ao que os tropicalistas faziam isso era exatamente uma repetição em sua teoria do que tinha acontecido em minha vida Mas sua redução da alegoria tropicalista ao choque entre o arcaico e o moderno embora revelasse aspectos até então impensados resultava finalmente empobrecedora Zé Almino melhor entendedor das razões de Schwarz do que eu se mostrava lindamente capaz de acompanhar e mesmo adivinhar minhas observações Aí falávamos de LéviStrauss eu estava lendo na esteira dos Tristes trópicos O pensamento selvagem de Oswald de Andrade lembro de ouvilo dizer que chegara a considerar Oswald o maior brasileiro de todos os tempos mas que já estava relativizando esse julgamento de Cinema Novo de poesia concreta do conceito de terceiro mundo de tentarmos ser mais antropológicos isto é receptivos com os europeus Ele comentava rindo que a fofoca brasileira tivera origem na moda existencialista Mas o que me marcou mais fundo foi ouvilo dizer numa conversa animada sobre o brilho das entrevistas de Borges e de Nelson Rodrigues que era preciso ler os autores de direita e que o dever da razão era alcançar e acolher o irracional e não banilo Almino tinha aos dezoito anos colaborado estreitamente com o pai quando este era governador de Pernambuco Essa colaboração com um governo sintonizado como nenhum outro com os anseios populares o tinha posto cara a cara com a miséria e a grandeza das possibilidades do povo brasileiro E presenciar a prisão e expulsão de seu pai o que o levou junto com toda a família ao exílio na França e na Argélia lhe deu a dimensão trágica de todos os conflitos políticos humanos imagináveis Os pensadores de direita os grandes falavam de dentro desse desencanto Zé Almino nunca mais alimentaria suas esperanças de justiça social com nenhum pensamento que se mostrasse ingênuo quanto a essa dimensão Isso lhe trouxe lucidez e a médio prazo melancolia Mas a lição me foi crucial E minha amizade por ele se tornou inabalável AMEO OU DEIXEO Um dia fui ao Picasso um café de Kings Road comprar cigarro e olhar as moças e o garçom do balcão me perguntou num inglês com sotaque italiano o nome do presidente do Brasil Eu respondi tristemente Costa e Silva Ele replicou Não O presidente do Brasil não se chama Costa e Silva Eu ri e disse que ele não podia querer saber melhor do que eu que era brasileiro Ele então insistiu acrescentando que o nome do presidente brasileiro era Garrastazu Eu disse que ele estava louco Ele riu mais do que eu e repetiu Garrastazu Mediei Fiquei assustado Eu via que aquele homem não estava louco mas tudo o que ele dizia aquele nome estapafúrdio me obrigava a pensar que sim Foi assim que fiquei sabendo algo sobre o nosso novo presidente Em casa mais tarde constatei que o cara do Picasso de fato não era maluco e que o nome do homem era mesmo algo como aquilo que ele tentara pronunciar Não adivinhei que sob esse nome sofreríamos a repressão mais terrível que no entanto viria acompanhada do que pôde ser chamado de milagre econômico como que numa confirmação do destino sombrio da América de colonização católica Quando meus pais iam fazer quarenta anos de casados Bethânia conseguiu das autoridades militares brasileiras uma permissão especial para eu entrar no país Ao desembarcar no Rio fui separado de Dedé por três homens que saíram de um fusca estacionado junto à escada do avião Eram militares à paisana Eles me levaram para um apartamento na avenida Presidente Vargas e ali me interrogaram e ameaçaram por seis horas Tive muito medo muita angústia Diante de um gravador de rolo ligado onde terão ido parar essas fitas os homens que me levaram mais os que estavam à minha espera todos se identificaram como oficiais mas usavam roupas civis exigiram que eu compusesse uma canção de propaganda da Transamazônica a estrada que o governo militar começava a construir e que era um dos símbolos do Brasil Grande declinaram a lista dos artistas meus colegas que estavam colaborando com eles inclusive segundo eles como denunciantes de subversivos pediram esclarecimentos sobre minhas relações com Violeta Gervaiseau e os Arraes no exílio e quando eu já tinha conseguido me desobrigar de compor sobre a Transamazônica impuseram as condições de minha estada de um mês eu teria que seguir logo para Salvador onde devia permanecer e de onde não podia sair até a volta para Londres estava proibido de cortar o cabelo ou fazer a barba enquanto estivesse em território nacional temiam que parecesse obra deles não podia recusar entrevistas com a imprensa mas teria que dálas por escrito e submetêlas a leitura prévia por parte de agentes federais que me vigiariam durante toda a estadia finalmente era obrigado a fazer duas apresentações na tv uma no programa do Chacrinha e outra no Som Livre Exportação o novo musical da tv Globo para que tudo parecesse normal Enquanto eu sofria esse interrogatório em que me diziam repetidas vezes que eu talvez não fosse liberado Dedé me esperava em casa de Bethânia juntamente com Glauber e Luís Carlos Maciel Bethânia morava num apartamento da rua Nascimento Silva em Ipanema e a caminhonete da Polícia Federal que me levava agora já não era o fusca cheio de militares disfarçados mas uma viatura policial cheia de policiais indisfarçáveis fez uma volta pelo Jardim de Alá ou terá sido pelo canal do Leblon e ali eu vi pela janela os componentes do conjunto MPB4 que passaram bem perto de mim sem me ver Senti uma emoção muito forte uma emoção que se repete toda vez que falo ou penso nisso Eram as primeiras pessoas conhecidas que eu via nessa chegada ao Brasil e o fato de vêlos sem ser visto depois de tantas horas de reiteração da hostilidade com que a repressão me despachara do país dava à visão um caráter de sonho que amplificava seu poder simbólico Eram músicos músicos da minha geração e tão brasileiros e tinham institucionalizado a sigla mpb em seu nome de grupo eu me sentia diante de uma essência de uma realidade profunda e um grande amor não há outra palavra pela história pelo destino se acendeu em mim Eu os amava como a gente imagina que alguém que já morreu pode amar os que ainda vivem do ponto de vista da eternidade Meus olhos se encheram de lágrimas Não sei se chegaria à casa de Bethânia psicologicamente inteiro se não houvesse havido esse encontro secreto Quando cheguei Glauber me olhou com uns olhos muito penetrantes que logo se tornaram desconcertados por causa da resposta incisiva dos meus eu quis transmitirlhe nessa resposta todo o conteúdo dos encontros com os milicos e com o MPB4 seus olhos me disseram que isso não era possível Maciel estava sereno e carinhoso Bethânia mostrando o máximo de alegria por ter conseguido reunir todos os irmãos para as bodas de nossos pais só eu faltaria não fosse por ela Todos estavam tentando minimizar ou destruir o peso das horas angustiosas de espera agora estávamos juntos era o que contava Dedé é que modestamente fazia com que isso fosse de fato possível O programa Som Livre Exportação filho do tropicalismo a expressão som livre para não falar na idéia oswaldiana de exportação foi lançada por mim no programa Divino Maravilhoso e dos festivais neto do Fino da Bossa e da bossa nova era comandado pelos talentosíssimos e então recémlançados Ivan Lins e Gonzaguinha Na verdade essas minhas aparições televisivas foram combinadas não sei exatamente em que termos entre Benil Santos e alguns oficiais Benil era então empresário de Bethânia e do humorista Chico Anysio que logo em seguida à nossa saída do Brasil tinha oferecido por carta uma ponte de negociação com as autoridades militares para minha volta negociação que eu recusara Tudo fazia com que eu me sentisse bastante mal mas fiz as apresentações com o coração aberto uma delas ao lado de Bethânia que lindíssima cantou Janelas abertas na 2ª e A tua presença morena as duas músicas novas que eu tinha feito para ela gravar A platéia do Som Livre era constituída de jovens cariocas que nada sabiam a respeito de minha prisão e tinham uma idéia poprock da contribuição que eu dera à modernização da mpb Era bem uma platéia sintonizada com essa sigla tal como ela se afirmara naquele momento Tinha se passado pouco mais de um ano da minha saída e eu me via frente a frente com o póstropicalismo Os garotos nus da cintura para cima e as garotas de cabelos longos e lisos ovacionaram meu nome Eles mostraram esperar de mim uma versão mais madura e mais sofisticada daquilo que estavam aprendendo a cultuar uma fusão do pop inglês com o sambajazz carioca Entrei apenas com meu violão e cantei Adeus batucada o genial samba de Sinval Silva que fora a mais bela gravação de Carmen Miranda Nada podia ser mais fiel à história tropicalista um contraste gritante com o sambajazz e com a fusion uma referência a Carmen Miranda e justamente com um samba em que a grande exilada da música popular brasileira dizia que ia embora chorando mas com o coração sorrindo pois ia deixar todo mundo valorizando a batucada a garotada ficou perplexa e decepcionada Passou despercebido o fato de que era a primeira vez que eu me apresentava na tv brasileira tocando meu violão Nunca esqueço o momento em que na Bahia tendo aceitado uma carona do noivo de Cláudia a irmã mais nova de Dedé percebi ao sair do carro o adesivo no vidro traseiro com os dizeres brasil ameo ou deixoo Cheguei a sentir uma dor física no coração Era o slogan triunfante da ditadura Suponho que copiado de uma campanha americana o conselho se dirigia aos opositores do regime confundindo de uma vez por todas este com o país Eu que amava o Brasil a ponto de quase não ser capaz de viver longe dele e que me via obrigado a isso pelo regime que ditara aquele slogan considerei a amarga ironia de ter circulado pelas ruas de Salvador num carro que grosseiramente o exibia aos passantes Não briguei com meu concunhado por causa disso Ainda hoje nos damos bem e ele que então era pouco mais que uma criança tem uma visão diferente da política Mas foi uma horrível tristeza constatar que meus problemas de amor com o Brasil eram mais profundamente complicados do que eu era capaz de admitir Com efeito muitos dos meus amigos mais queridos e admirados estavam entrando ou saindo de manicômios e prisões numa espécie de introjeção da violência sagrada dos que partiram para a luta armada e da violência maldita dos que detinham o terrorismo oficial Rogério esteve internado um longo tempo e não estou seguro de que não lhe tenham dado eletrochoque Voltei para Londres apavorado Julguei que talvez muitos anos se passassem antes de me ser possível voltar para o Brasil de vez Não me parecia mesmo provável que tão cedo eu pudesse sequer visitar outra vez o país Ralph Mace estava animado com nosso trabalho e completamos o primeiro disco A princípio Lou Reisner era o produtor e fez faixas fundamentais como London London e In the hot sun of a Christmas day mas ele e Mace se desentenderam e este último tomou as rédeas Até hoje esse disco me desagrada por lembrarme demais minha depressão e minhas limitações pessoais Mas foi um sucesso de estima brasileiro e a faixa AsaBranca uma versão pessoal e harmonicamente pobre do clássico de Luiz Gonzaga justificava para mim a existência do disco A vinda ao Brasil no entanto tinha me reanimado de algum modo Apesar do pesadelo do dia da chegada o mero fato de ter revisto coisas pessoas e lugares do Brasil conferia ao país uma realidade que a perspectiva do exílio sem retorno já estava diluindo Gal tinha ficado no Brasil como uma espécie de representante do grupo baiano tropicalista Seu show FaTal Gal a todo vapor concebido e dirigido por Waly era o dínamo das energias criativas brasileiras e todos os artistas cineastas jornalistas e jovens em geral reconheciam isso Bethânia iniciava sua parceria com Fauzi Arap o show Rosa dos Ventos é um marco na história dos espetáculos de música no Brasil sendo o mais bemsucedido desse gênero exclusivamente brasileiro que é o show de longa temporada com um artista solo feito de canções e textos com belas imagens teatrais a que se assiste como a um grande filme de arte Em suma o Brasil apesar de tudo existia e parecia exibir recursos de recuperação Toda a minha torcida passou a ser nesse sentido Isso me animava Macalé tinha lançado uma canção em parceria com Capinan no festival da Globo no Rio o tal Festival Internacional da Canção chamada Gotham City em que ele revivia o clima das apresentações tropicalistas e recebeu as vaias e o acompanhamento jornalístico correspondentes Escrevi convidandoo para tocar comigo em Londres Ele aceitou Minha idéia era fazer um grupo que tocasse a partir do meu próprio modo de tocar violão Tuti Moreno já estava morando em Londres e Áureo de Sousa tinha chegado para passar algum tempo Juntamente com Tuti ele se encarregaria da bateria e da percussão Escrevi para a Bahia chamando Moacir Albuquerque o belo e talentoso irmão de Perinho para trazer um contrabaixo baiano para a minha banda Ele também aceitou Daí é que nasceu Transa um dos meus discos preferidos Não que eu o ponha hoje para ouvir não faço isso com nenhum dos que fiz a não ser que haja um motivo especial para isso o que faço como trabalho pouco prazeroso mas a simples lembrança de que ali se deu minha primeira tentativa de criar um som a partir de minhas próprias idéias me enche de alegria Entreguei a direção musical a Macalé que era um violonista de verdade mas o que nós criamos juntos em nossos ensaios no Arfs Lab só poderia ser criado para um trabalho meu Gravamos o disco como se fosse um show em duas ou três sessões Mace ficou entusiasmado até hoje se orgulha de têlo produzido mas um telefonema de João Gilberto mudou o rumo da minha vida Violeta Arraes Gervaiseau me punha na medida do possível a par da situação no Brasil As esperanças de voltar de vez oscilavam Eu nem precisava me prometer que era o que faria tão logo soubesse que isso era possível uma vez que tinha essa certeza bem tranqüila no fundo do meu coração Mas os trabalhos de Transa e as lembranças recentes do Brasil me deixaram mais receptivo para o que há de bom em Londres e passei a amar o verde dos parques a calma das ruas em forma de crescente das vielas os musgos e as flores enfim a sabedoria de vida que há ali de uma forma genuína e intensa como nunca sonhara antes que poderia Eu respeitava os jardins públicos e privados com verdadeira reverência mas cada dia roubava uma rosa em algum deles para trazer para Dedé Raspei a barba e deixei de me sentir sempre triste Fizemos uma apresentação de Transa no Queen Elizabeth Hall organizada por Mace e pela gravadora O teatro se encheu de brasileiros residentes e de amigos ingleses e o show foi muito bonito Leslie Gould o chefe de Mace na Famous Records me chamou para conversarmos e para minha surpresa começou a referirse ao que ele dizia ser minha beleza física Me olhava de frente depois de perfil e sem nada que indicasse interesse sexual parecia feliz por confirmar uma opinião Ele estava apenas agindo como um executivo de empresa interessado num projeto para o qual me supunha útil Era o filme que Zeffirelli iria começar a rodar sobre são Francisco de Assis Irmão Sol irmã Lua Gould julgava que eu tinha a cara ideal para o papel e isso servia aos propósitos da gravadora em relação a mim Queria que eu fizesse as canções para o filme na verdade Donovan já tinha feito várias mas eles queriam mudar isso cantasseas e fizesse o papel do santo Eu mal podia crer que tudo isso fosse a sério Mas pouco tempo depois estávamos embarcando para Roma Dedé Guilherme e eu ao lado de Gould Depois de uma primeira noite assombrosa deslumbrados com Roma que não conhecíamos Dedé e eu fomos com Guilherme à fonte de Trevi e ali certamente por causa do meu cabelo grande policiais nos prenderam pois o Hotel Excelsior da via Veneto tinha retido nossos passaportes por algumas horas como é de praxe na Itália só fomos soltos ao nascer do dia fomos à casa de Zeffirelli na via Ápia Era uma mansão impressionante cheia de esculturas e peças bonitas obras de arte e mobílias fantásticas mas tudo parecia um tanto artificioso O dono da casa nos recebeu animadamente e foi logo pegando no meu rosto e examinandoo para concluir que eu era parecidíssimo com Florinda Bolkan a brasileira que estava fazendo uma carreira de atriz na Itália Mas já estava lá um garoto inglês de olhos claros que faria o papel de são Francisco Restou a conversa sobre a música Zeffirelli pediu que eu cantasse qualquer coisa ao violão Cantei o samba Escurinho de Geraldo Pereira Ele comentou alguma coisa sobre uma canção de Erasmo e Roberto Carlos que tinha ganho uma versão italiana e que ele achava parecida com La paloma Não era Ou o era tanto quanto eu sou parecido com Florinda Bolkan De algum modo ficou decidido que eu cantaria as canções de Donovan e comporia as restantes Eu ria por dentro ao pensar que o cara da Paramount Gould é que estava propondo um mulatinho brasileiro magricelo para o papel de são Francisco enquanto o diretor do filme queria um inglês convencionalmente bonito e de olhos azuis Voltamos para Londres com as canções de Donovan numa fita Cheguei a fazer uma primeira gravação de Brother Sun and sister Moon mas vim ao Brasil nesse meio tempo João Gilberto ligou tarde da noite Estávamos em nosso apartamento de Notting Hill Gate A princípio não acreditamos que fosse ele realmente mas logo percebemos que era verdade Ele me chamava para juntarme a ele e a Gal num especial de tv que já estava sendo rodado em São Paulo Descrevi para ele todos os tormentos que tinha sofrido quando de minha vinda para o aniversário de meus pais Ele assegurava que nada disso iria acontecer mais É Deus quem está me pedindo para eu lhe chamar Ouça bem você vai saltar do avião no Rio todas as pessoas vão sorrir para você Você vai ver como o Brasil te ama Tinham se passado apenas alguns meses desde minha vinda angustiosa e eu não podia acreditar mas não me dava o direito de descrer da palavra de João Sobretudo não poderia desobedecer a ele Amedrontado me vi decidido a embarcar com Dedé no dia seguinte Ao desembarcar no Rio tudo se deu como João Gilberto tinha profetizado As pessoas da alfândega e da imigração nos trataram como se nunca tivesse havido problema comigo no país Dedé me olhava estupefata Nós nos sentimos reaconchegados no mundo e chegamos a São Paulo com outra perspectiva do futuro João e Gal nos esperavam no estúdio de televisão Eu olhava para João com um assombro multiplicado Ele sempre fora meu herói brasileiro meu artista preferido na música popular moderna mas essa ligação mágica com minha volta ao Brasil dava a ele um caráter quase sobrenatural É indescritível o impacto que teve sobre mim a riqueza de sua arte quando vivida na intimidade ele cantando e tocando Retrato em branco e preto e Estrada branca de tom Jobim e Quem há de dizer de Lupicínio Rodrigues nessa noite e tantas outras canções nas noites subseqüentes são momentos inesquecíveis para mim Eu não conseguia falar Ele não calava um segundo Sua inteligência e inspiração para conversar eram tão grandes quanto para cantar e tocar A idéia que eu sempre fizera dele como um artista de visão abrangente e reveladora não apenas se confirmou cresceu imensuravelmente pois ele o era com maior intensidade do que eu poderia ter suposto e muitas vezes isso se mostrava de modos totalmente surpreendentes para mim Todas as palavras heideggerianas de Rogério sobre o Ser sobre estarse aberto para o Ser e ser Seu guardião pareciam tomar corpo naquele homem mais louco que os loucos e mais lúcido que os sãos aquele sedutor que encantava avassaladoramente sem possuir uma gota de glamour aquele artista que se provava ainda mais artista quando não estava exercendo sua arte pois ficava patente que esta é que o levava a chegar a si mesmo aquele santo demoníaco a um tempo dominador e desprotegido compassivo e sarcástico A bossa nova fora ele era ele e para isso fora preciso que ele fosse muito mais do que ela Tal como tantos outros músicos João se refugiava em alguma espécie de misticismo ioga não sei mas a impressão que me ficava era a de que ele sabia tanto quanto eu que o que ele produzia era algo maior do que quaisquer misticismos De todo modo eu não podia deixar de atribuir algum valor mágico às suas profecias referentes àquela minha vinda ao Brasil Voltamos para a Inglaterra com novo ânimo A partir daí minha vida em Londres ficou luminosa e à medida que as gravações e os shows com a banda de Transa iam cada vez melhor eu e Dedé só cogitávamos de preparar a volta definitiva para o Brasil Mace tentou persuadirme a ficar por que deixar Londres justamente quando seus nossos esforços pareciam começar a dar frutos Mas eu apenas procurei reconfirmar com Violeta e outros brasileiros em Paris e no Brasil a possibilidade de aceitação tranqüila de minha presença no país Entregamos a casa alugada em Golders Green no Norte de Londres e deixamos a Inglaterra de uma vez Não senti nem o mais ínfimo e remoto esboço de tristeza arrependimento ou saudade de lá Eu era todo vontade de voltar para o Brasil Afinal esse era o momento de libertação da prisão momento pelo qual eu tanto esperara e que a rigor nunca tinha se dado Chegamos no Rio em janeiro de 72 Eu decidira que apresentaríamos o show de Transa imediatamente Tínhamos o Teatro João Caetano agendado para o dia seguinte ao da nossa chegada Fizemos ali o show por duas ou três noites seguidas Depois o repetimos em São Paulo Recife e finalmente Salvador O show era mais ou menos o mesmo que havíamos feito no Queen Elizabeth Hall Até o equipamento de som que eu comprara por sugestão e sob a orientação de Ralph Mace tinha vindo comigo de Londres juntamente com o técnico Maurice um inglês que não falava uma palavra de português e que nunca mais saiu do Brasil O show era muito mais longo do que o do Queen Elizabeth Hall porque eu queria dizer muitas coisas e estava com muita saudade de cantar em casa As platéias em geral ficaram bem impressionadas Mas apesar de as pessoas também estarem com saudades de mim houve casos de espectadores saírem antes de o show terminar mas creio que só em São Paulo quando ao cantar Quero que vá tudo pro inferno de Roberto Carlos numa versão ralentada eu repetia o refrão e que tudo mais vá pro inferno por cerca de cinco minutos Mas Áureo e Tuti tocando duas baterias em uníssono sincrônico as sutilezas do violão de Macalé em contraponto com o meu e o baixo sexy de Moacir nos enchiam a todos executantes e espectadores de prazer Tal como já fizera em Londres e em Paris ao cantar O que é que a baiana tem de Caymmi eu imitava os trejeitos de Carmen Miranda torcendo as mãos e revirando os olhos Era uma imitação distanciada brechtiana dirseia no Brasil de então com paradas bruscas e desarme do tipo num comentário da situação do exílio e das relações do Brasil com o mundo exterior Mas ainda assim era uma imitação e isso contava como ousadia antimachista reforçando a minha ambigüidade sexual já comentada antes de nossa saída do Brasil Em Salvador a platéia do Teatro Castro Alves cantou comigo Eu e a brisa dejohnny Alf cuja harmonia me tinha sido ensinada por Moacir Albuquerque de modo tão bonito que até hoje lembro disso como sendo um dos momentos mais altos de minha vida na música BACK IN BAHIA Estar livre em Salvador no verão era muitíssimo agradável Mas era mais do que isso Eu tinha composto em 68 uma marchafrevo que era uma afirmação dos trios elétricos uma modalidade de conjunto musical carnavalesco inventado em Salvador no final dos anos 40 por Dodô e Osmar Este último era um virtuose do bandolim e o outro além de também músico embora não um virtuose mexia com eletrônica As marchinhas de Carnaval cariocas sempre tiveram mais força no Carnaval de rua da Bahia do que os sambas O frevo pernambucano é uma espécie de marcha carnavalesca acelerada com um fraseado típico muito mais rico do que o das marchinhas do Rio É música concebida para acompanhar uma dança acrobática e elegantíssima que os pernambucanos cultivam com técnica apurada Suponho que vizinhos dos nordestinos os baianos sempre usaram as marchinhas cariocas como quasefrevos Apesar de nos considerarmos os inventores do samba e de cultivarmos a tradição do sambaderoda intacta até hoje nós baianos sempre preferimos para o Carnaval brincar pulando ao som de marchas rápidas Quando nas ruas ou em meio a um baile de Carnaval a orquestra executava uma série de sambas era a hora de descansar Com a vinda a Salvador em 48 ou 49 do grande bloco pernambucano de frevos Vassourinhas cuja cançãotema ou hino oficial era um frevo de mesmo nome que se tornou sucesso nacional Dodô e Osmar acharam que se pudessem se fazer ouvir tocando frevo em seus instrumentos pelas ruas da cidade arrastariam multidões Dodô então imaginou um modo de amplificar o violão e o bandolim fazendo modelos em madeira maciça eletrificados Ele conhecia o violão elétrico mas não sabia que a guitarra maciça já era uma idéia desenvolvida por outros em outras partes do mundo As multidões de Salvador se apaixonaram E Osmar passou a compor frevos especiais para o trio havia também um percussionista que circulava em cima de um caminhão Depois o grupo cresceu e apareceram muitos outros semelhantes mas o nome de trio permaneceu Quando eu era menino em Santo Amaro um ou outro vinha de Salvador e embora destoassem dos ternos tradicionais compostos de instrumentos de sopro e percussão os Amantes da Moda e Amantes da Folia que com suas roupas de cetim colorido e lantejoulas executavam marchas cariocas e das batucadas blocos de samba exclusivamente de percussão que eram mais admirados do que seguidos os trios elétricos nos encantavam Pelo fim dos anos 60 as marchas e mesmo os sambas de Carnaval cariocas estavam desaparecendo os bons compositores que surgiram com a e depois da bossa nova não encontrando o jeito de se adequar ao Carnaval Houve várias tentativas de ressuscitar o gênero todas abortadas Há uma foto tirada em 66 em que Chico Buarque Paulinho da Viola Edu Lobo Torquato Neto Gil Capinan eu próprio e tantos outros de minha geração aparecemos ao lado de tom Jobim Braguinha o grande compositor João de Barro então setuagenário e velhos cantores da Rádio Nacional num encontro promovido por não sei quem para reerguer a canção carnavalesca Mas dali não saiu nenhum samba ou marcha memorável O meu Atrás do trio elétrico quebrou o tabu Composto em 68 esse quasefrevo foi um sucesso nas ruas de Salvador no Carnaval de 69 e ficou conhecido no Brasil inteiro Eu no entanto não tive a alegria de presenciar esse milagre estava na cadeia E nos dois outros Carnavais subseqüentes no exílio de onde mandei frevos novos que também tiveram êxito Agora de volta à Bahia eu ia pela rua Joana Angélica a caminho do centro ao lado de meu pai À medida que íamos nos aproximando do Relógio de São Pedro a atmosfera do Carnaval se fazia evidente no número de pessoas na rua e em seu aspecto e eu chorei emocionado de repente eu percebia que até aquele momento não acreditara que iria ver aquilo tudo de novo Curiosamente lembro de ter apenas meu pai a meu lado nessa hora o que não é muito provável Pode ser que ele e eu nos tenhamos distanciado de minha mãe de Dedé e dos outros sem perceber pode ser que tenhamos saído separados por motivos de discrição e cuidado não sei o fato é que dei muita importância à alegria orgulhosa de meu pai chegando à cidade comigo e até imagino fantasiosamente suponho que ele quis que estivéssemos somente os dois Descemos a ladeira de São Bento e chegamos à praça Castro Alves o núcleo do Carnaval de Salvador Dali se vê o mar teimosamente mantendo a linha do horizonte contra a confusão de perspectivas provocada pelas ladeiras A praça ela própria enladeirada e triangular e as ladeiras que lhe dão acesso estavam repletas de gente fantasiada e mascarada Caminhões de trios elétricos tocando blocos de cordão espremendo a gente contra as paredes Ao pé da estátua de Castro Alves o poeta romântico baiano um abolicionista retórico estavam como todos os anos nossos amigos e familiares Ficamos ali bebendo cerveja e brincando até anoitecer Impressionoume muito a combinação de hippies com foliões tradicionais e a quantidade de gays ostensivos Os hippies e os gays se misturavam naturalmente com a massa de foliões os hippies estavam em casa num mundo habitado por fantasiados e os gays se confundiam com o travestismo que no Carnaval é tradição Muitos eram da terra e estavam na verdade no duplo papel de folião e hippie ou de travesti tradicional e gay moderno Outros eram turistas do Rio de São Paulo de Minas do Rio Grande do Sul ou mesmo do exterior E é claro que havia muita indefinição entre hippies gays e foliões tradicionais e isso tudo dava uma sensação de liberdade muito grande uma impressão de pansexualismo triunfante Eu tinha gravado em Londres um frevodetrioelétrico chamado Chuva suor e cerveja que estava tendo me diziam mais sucesso do que Atrás do trio elétrico e do que Um frevo novo que eu fizera um ano antes Depois que o sol se pôs atrás da ilha de Itaparica algo começou a surgir no topo da ladeira da Montanha Eu aparentemente o primeiro a ver perguntei aos amigos próximos o que seria aquela forma cônica branca que aparecia por trás do vértice da balaustrada no ponto mais baixo da praça que é onde ela se encontra com o ponto mais alto da ladeira da Montanha Não imaginávamos que pudesse ser um trio elétrico eles não entram na praça por ali e não o fazem em silêncio Houve uma movimentação para identificar o objeto Parecia um avião pondo o bico no ângulo da ladeira Era o caminhão do trio elétrico Tapajós que se apresentava em forma de foguete espacial Tão logo se mostrou inteiro aos foliões na praça acendendo suas luzes os músicos começaram a tocar Chuva suor e cerveja Imediatamente caiu uma chuva forte que durou toda a noite A multidão começou a cantar e dançar sob a chuva e eu chorando e rindo vi inscrita no flanco anterior do foguete a palavra inventada pelo pessoal do trio cujo caminhão agora passava bem perto de nós subindo para a rua Chile caetanave O gosto tão tropicalista pelos trocadilhos por causa da poesia concreta Joyce e dos filmes de Godard retomado assim pela graça ingênua de pessoas do povo da Bahia me tocou Além disso a imagem da espaçonave que trazia a mitologia das viagens siderais tão típica daquela época o renascimento da grande canção de Carnaval se dando por meu intermédio o milagre da chuva tudo compunha uma festa completa de recepção para mim por parte do Brasil que me falava direto ao fundo do imaginário Quando horas depois o trio Tapajós voltava da praça da Sé eu me aproximei e subi para agradecer Roberto Pinho o meu amigo ligado aos misticismos sebastianistas pessoanos subiu comigo Acho que Dedé sempre mais farrista do que eu preferiu ficar no chão para não se ver presa à exígua área da carroceria do caminhão cheia de músicos e ainda diminuída pelas paredes da nave Dali eu via os pingos da chuva que brilhavam à luz da decoração das ruas se olhássemos para cima tínhamos a perfeita impressão de estar mergulhando aceleradamente por entre as estrelas no espaço sideral Embaixo na rua eu via pela primeira vez a multidão do Carnaval de uma distância que revelava sua força e seu mistério Depois de tocar Atrás do trio elétrico o Tapajós voltou a tocar Chuva suor e cerveja Senti alguma coisa bater em meu rosto que não era uma gota de chuva Aproximei a mão para descobrir o que era A coisa voou para meu peito e só aí é que Roberto e eu percebemos que se tratava de uma esperança Apesar da chuva grossa essa esperança verde voou na direção das luzes do caminhão e veio pousar em mim Eu então disse para Roberto Quer dizer que há esperança Ele respondeu com a alegria tranqüila de quem não esperaria por nada menos Claro Seguimos em cima do caminhão até os limites do Carnaval de então hoje a festa se espraia até Ondina naquela época o limite para esse lado da cidade era o Campo Grande Depois dali o trio parou de tocar e a Caetanave seguiu até o Rio Vermelho onde tínhamos alugado uma casa para me deixar Gil que não gostava de Carnaval mas acreditava em disco voador estava dormindo quando o caminhão chegou à nossa porta O som do gerador o fez acordar pensando em alguma cena de ficção científica em alguma nave extraterrestre Ele correu para a varanda da frente e viu suas expectativas confirmadas no meio da noite aquela gigantesca ogiva branca piscando luzes tomava conta da rua parada em frente de casa Ele demorou a se recompor para tentar entender o que é que estava se passando Quando me viu descer do objeto estranho do qual o som trepidante provinha entendeu antes de tudo que a magia e o ordinário se reafirmavam mutuamente que o simbólico e o empírico não precisavam ser distinguidos um do outro que naquele momento forte o mito vinha fecundar a realidade A rejeição que o exílio significara não apenas se dissipava dava lugar a uma carinhosa compensação Nós os tropicalistas diferentemente de muitos amigos nossos da esquerda mais ingênua que pareciam crer que os militares tinham vindo de Marte sempre estivemos dispostos a encarar a ditadura como uma expressão do Brasil Isso aumentava nosso sofrimento mas hoje sustenta o que parece ser meu otimismo É que penso e ajo como se soubesse na carne quais as potencialidades verdadeiras do Brasil por ter entrado num diálogo com suas motivações profundas e simplesmente não concluo que somos um mero fracasso fatal Aprendi então a reconhecer os indícios de formação de forças regeneradoras e embora saiba que aposto com alto risco sempre sou levado a dobrar minhas fichas A vontade de ter um filho que surgira nos últimos meses em Londres não só cresceu em mim como se insinuou também em Dedé Essa vontade era em si mesma uma revolução pois Dedé e eu sempre estivéramos certos de que nunca teríamos filhos Pouco depois do Carnaval ficamos sabendo que ela estava grávida Nos mudamos para uma casinha no largo do Budião bem em frente ao mar e ao seu nível no bairro de Amaralina Um lajedo carcomido pelas ondas e forrado pelo verde luminoso do limo se estendia para além da areia exposto ao vento na maré baixa e recoberto pela água na preamar Minha volta para o Brasil Gil ficou ainda alguns meses em Londres provocou um certo malestar naquilo que hoje se chama algo horrivelmente de a mídia A opinião pública tinha uma vaga idéia a respeito da coincidência entre o AI5 e a evasão de artistas intelectuais e cantores populares mas como a imprensa censurada nada podia relatar ninguém fazia a menor idéia do que tinha acontecido a Gil e a mim Uma simpatia espontânea contudo cercava nossa presença no país e a imprensa num primeiro movimento compensatório nos saudava já que nada pudera denunciar Desse modo ela apenas reafirmava uma rotina de endeusamento dos tropicalistas que durou enquanto o exílio durou Mas no momento mesmo da chegada já alguma publicação de pose mais exigente assumia o tom desmistificador Isso era em princípio saudável pois cada órgão de imprensa e mesmo cada jornalista tem que se defender das ondas de unanimidade que o acaso produz à imagem e semelhança do que se pensa ser e em grande parte é o sonho das celebridades O que não justifica que eles freqüentemente apresentem à guisa de resistência uma mera alternância de louvação inautêntica e depreciação artificiosa O jornal O Pasquim com o qual como já contei eu vinha colaborando desde Londres lançou um número especial para a minha chegada em que todos os seus articulistas eram convidados a escrever uma frase carinhosa a meu respeito Lembro bem de Glauber dizendo que eu era um gênio e nós não podemos fazer nada e Paulo Francis confessando que não acreditava em iconoclastas que não sabem construir estátuas mas que eu era um que sabia e rememorando nossa troca de bilhetes na cadeia mostrouse antipático ao uso que eu no bilhete fizera da ênclise Esse mesmo Pasquim estaria em pouco tempo mostrando hostilidade a nós ao tropicalismo e ao fato de sermos baianos sem deixar de usar uma hipócrita sugestão de decepção política conosco numa exibição de um preconceito longamente reprimido Sendo que Millôr Fernandes aprofundou essa visão nos anos subseqüentes e Paulo Francis esperou décadas para dar dela uma versão sofisticada e contundente O Brasil que encontramos ao chegar já estava na ressaca da luta armada e vivia os últimos momentos antes de o milagre brasileiro do presidente Mediel e do ministro Antônio Delfim Netto desmoronar sob o golpe desferido na economia mundial pelos países árabes produtores de petróleo O desbunde porém chegara ao auge Esse nome que a contracultura ganhou entre nós a bunda tornada ação com o prefixo des a indicar antes soltura e desgoverno do que ausência deixava o hip quadril dos hippies na condição de metáfora leve demais Desbundar significava deixarse levar pela bunda tomandose aqui como sinédoque para corpo a palavra afrobrasileira que designa essa parte avizinhada das funções excrementícias e do sexo mas que não se confunde totalmente com aquelas nem com este sendo uma porção exuberante de carne que não obstante guarda apolínea limpeza formal Salvador com seu Carnaval elétrico e libertário com suas praias desertas e suas praias citadinas com sua arquitetura colonial e seus cultos afrobrasileiros tornouse a cidade preferida dos desbundados Mas o Rio tinha feiras hippies e São Paulo bairros de roqueiros Todo o mundo fumava maconha e tomava ácido Luís Carlos Maciel escrevia sobre essa cena no Pasquim e depois na edição brasileira da Rolling Stone interpretandoa de um ponto de vista que migrava do existencialismo sartriano para as religiões orientais As ruas sobretudo as do Rio e de Salvador estavam cheias de rapazes cabeludos e moças metidas em velhas camisolas rendadas Os apresentadores dos telejornais mais respeitáveis e muitos jornalistas que hoje exibem desprezo pelo período ostentavam cabeleiras muito mais longas do que jamais tinham tido e que jamais voltaram a ter em toda a sua vida O grupo Novos Baianos que a essa altura produzia não uma fusão mas uma sugestiva e abrasiva justaposição de chorinho e rock vivia em uma comunidade primeiro num amplo apartamento que eles encheram de tendas e cabanas no bairro de Botafogo depois num sítio na área semirural de Jacarepaguá Torquato em sua coluna de jornal polemizava com o Cinema Novo numa campanha pelo cinema marginal inspirado na agressividade inicial de Rogério Sganzerla e Júlio Bressane Mas os próprios cineastas do Cinema Novo tinham deixado seus cabelos crescerem queimavam fumo e tomavam ácido Gal era a musa desse universo Um trecho da praia de Ipanema que ela freqüentava justamente onde tinha se amontoado areia dragacia do fundo do mar para a obra de construção de um emissário submarino de esgoto ganhou o apelido de dunas da Gal Em Salvador os desbundados se encontravam na praia do Porto da Barra uma enseadinha perfeita entre dois fortes coloniais e disposta de frente para o pôrdosol como um anfiteatro Era a tradicional praia popular da cidade Eu agora voltava a freqüentála Ali como nas dunas da Gal os rapazes não usavam sungas de praia mas as cuecas mínimas e um tanto transparentes que já traziam por baixo das calças E alguns casais homossexuais sobretudo femininos não se esforçavam muito em esconder suas carícias Mas os hippies propriamente ditos os antitecnológicos e antiurbanos radicais se refugiavam na distante praia de Arembepe Lembro que Glauber irritado com nossa identificação com essas turmas disse numa entrevista ecoando mas com independência os esboços de hostilidade do Pasquim que odiava essa alienação baiana em que todos iam atrás do trio elétrico a Arembepe babar dendê O fato é que só vim a conhecer Arembepe perto dos anos 80 e aí já era uma outra cena embora os remanescentes dos hippies continuassem a viver numa aldeia próxima entre lagoas cujas águas aparecem douradas nas fotografias mas eu nunca fui a essa aldeia Zé Agrippino e Maria Esther tinham voltado da África transfigurados em ultrahippies e viventes de uma nova era que por causa do modo como eles se punham nela combinando envolvimento profundo e distanciamento crítico nada tinha do to enjoativo que a expressão conota conotava já para mim Eu que era visto como precursor de tudo isso afinal deixara meu cabelo crescer bem antes da maioria tinha tomado auasca muito cedo tinha adotado o neorocknroll inglês quando toda essa gente ainda o repudiava tinha sido preso e exilado e voltava decepcionando quem esperava rocknroll e política mas reiterando a ambigüidade sexual notada em minha figura cênica desde antes da partida sentia me tão deslocado ainda que também encantado quanto me sentira nos festivais da ilha de Wight de Glastonbury ou de Bath sentiame instalado no tempo mas olhava à frente em busca do caminho da música popular brasileira do caminho do Brasil do meu caminho nisso Eu não era um desbundado não tomava drogas mantinha algum conforto burguês para minha família com os proventos do meu trabalho na música amava o essencial da cultura do Ocidente Rogério tinha inventado um apelido para mim que me agradava Caretano Os músicos que eu conhecera ao chegar ao Rio em 64 usavam drogas como um exercício de alheamento do mundo prosaico dos homens sensatos e de aproximação do numinoso do transcendente oti da iluminação e naturalmente da musicalidade Ser ou estar louco era considerado um privilégio As pessoas que nunca se enlouqueciam eram merecedoras de desprezo É curiosa a dubiedade do termo que esses músicos tomaram emprestado dos bandidos para designar os que não se drogavam caretas Aparentemente essa palavra que tradicionalmente significa máscara ou mascarado surgiu entre os malandros como uma maneira jocosa de dizer cara careta é um diminutivo de cara de alguém que não tomou nada para mudar a mente dizse que está de cara limpa Muitas vezes ouvi músicos dizerem que tiveram que enfrentar essa ou aquela situação totalmente de cara Algumas vezes ouvi quem dissesse Eu estava de cara limpa de cara de careta mesmo caretinha Assim careta na gíria bandida dos músicos queria dizer em princípio o contrário de mascarado Mas seu uso como um depreciativo dos nãousuários de drogas terminou por trazer de volta algo do antigo valor semântico já que drogarse significava com sua conotação de abrirse para Deus e para a música desmascararse Os caretas são os burgueses sempre de cara limpa e sempre de máscara Em 72 quase tudo era anatemizado como careta O trocadilho armado por Rogério com esse termo e o meu nome Caretano me parecia trazer uma saudável distensão como se aí se iniciasse um processo de superação dos fanatismos revolucionários e do luto por suas derrotas habilitandonos assim a poder reconhecer suas vitórias parciais Não tínhamos atingido o socialismo não tínhamos sequer encontrado uma face humana no socialismo existente tampouco tínhamos entrado na era de Aquarius ou no Reino do Espírito Santo não tínhamos superado o Ocidente não tínhamos extirpado o racismo e não tínhamos abolido a hipocrisia sexual Mas as coisas nunca voltariam a ser como antes Seria preciso aqui falar de sexo Mas justamente o que se pode dizer é que não há nada mais difícil do que falar de sexo JeanPaul Sartre declarou numa entrevista comemorativa dos seus setenta anos que sempre creu deverem todos os homens se dizerem tudo no reino da liberdade os homens não necessitarão esconder dos seus semelhantes o que quer que seja Mostravase ele ali muito feliz com sua franqueza e dizia lamentar apenas ter omitido suas experiências eróticas Sabedor dos males que os subterfúgios a respeito do sexo podem causar às pessoas que estão ingressando na vida julguei estar em perfeito acordo com essas idéias No entanto nada pode me desagradar mais do que o tipo de exposição de intimidades sexuais que se tornou rotineiro tanto na vida quanto na ficção a partir dos anos 60 e como um desdobramento nefasto da chamada revolução sexual Há cenas de sexo em filmes anúncios livros e canções e há entrevistas reveladoras de preferências e minúcias sexuais em revistas as mais variadas e mesmo em jornais que me enchem de uma revolta muito específica e não obstante também de tédio evitoas na medida do possível para minha própria economia afetiva O que temos hoje é a predominância nesses filmes e livros e reportagens de um estilo em que nada do que era mesquinho e vulgar na maneira de encarar o erotismo mudou apenas as grosserias que eram partilhadas por grupos de cafajestes em botequins passaram a ser exibidas no horário nobre Além disso tive provas do que já suspeitava as pessoas famosas que resolvem dizer tudo aos entrevistadores mais invasivos mentem mais do que as senhoras de engenho e os cavalheiros vitorianos Há uma flagrante máfé no uso das liberdades os talk shows da tv americana que já começam a ganhar imitadores brasileiros em que desfilam viciados em sexo vítimas de estupro e adúlteros incestuosos alimentam um exibicionismo um voyeurismo e um escândalo em tudo dependentes dos tabus que aparentemente foram derrubados para que entrevistas assim pudessem ir ao ar Nesses momentos a impressão que fica é de que com a revolução sexual nada se perdeu exceto os bons modos Mas quando leio lamentações como a de Vargas Llosa pelo que ele chama de trivialização do ato sexual a que contrapõe uma nostalgia do bordel como templo de celebração do sexo como mistério central da vida ele deplora que o amor físico tenha se tornado um entretenimento passageiro algo muito diferente desse aproximarse das portas do céu e do inferno que o sexo ainda foi para a minha geração tendo antes a reforçar meus laços com os libertários Llosa atribui aos tabus proibições e preconceitos que cercavam o sexo o fato de para ele uma mulher nua sobre uma cama ser uma experiência inquietante e perturbadora enquanto para o comum dos mortais o sexo se tornou a coisa mais natural do mundo Eu que considero o sexo a coisa mais natural e também a mais misteriosa e transcendente de todas as coisas deste mundo não aceito com facilidade esses argumentos que submetem a intensidade da experiência sexual às proibições vigentes no tempo de formação pessoal de quem os formula Sempre ri com desprezo da famosa tirada de Nelson Rodrigues sobre o assunto esse personalíssimo dramaturgo brasileiro um grande escritor escandaloso e moralista dizia que em sua mocidade um homem tremia à visão de um tornozelo de mulher ao passo que hoje e aqui é que entra a marca do estilo rodriguiano nem o vendedor de chicabon na praia se vira para olhar a moça de biquíni Quer me parecer que por essa lógica todos os ginecologistas seriam impotentes Não Nada me autoriza a endossar a tese de que para os filhos da revolução sexual o sexo seja um entretenimento passageiro Ele não o é mais do que o foi para Llosa e seus amigos nas escapadas prostibulárias Se o sexo é e eu não tenho dúvidas de que ele de fato é o mistério central da vida não deveria ser necessário que precisássemos fingir isso para nós mesmos A descoberta do orgasmo através da masturbação intuída diretamente no corpo deduzida de pedaços de conversas alheias de gestos sugestivos foi o acontecimentochave da minha vida Simone de Beauvoir cujos Memórias de uma moça bemcomportada e O segundo sexo prefiguraram a revolução sexual dos anos 60 e me foram cruciais na adolescência no livro que escreveu sobre a velhice diz que a sexualidade representou para Lou AndreasSalomé que no entanto só a tinha descoberto aos 35 anos uma realização magnífica e exaltante do indivíduo É pouco Eu aos dez onze anos sentime e o disse entusiasmado a mim mesmo não apenas justificado em minha existência mas também no direito de justificar plenamente a existência do mundo O caráter de iluminação da experiência sexual proibia a intromissão da noção de pecado na seara da minha intimidade Era uma evidência muito grande do bem e do belo como verdadeiro para que pudesse representar um aspecto censurável da vida Na verdade não era um aspecto um fato entre outros mas algo que se abria como um absoluto Eu me segredei o nome de Deus e me perguntei maravilhado como era possível que em nosso próprio corpo em meu próprio corpo estivesse inscrita essa graça A causa da superação da hipocrisia sexual não podia deixar de ocupar posição privilegiada para mim entre os temas da onda libertária dos anos 60 E a instância da homossexualidade não pode deixar de desempenhar aí um papel central Oferecendo o modelo ideal do conflito entre autenticidade e dissimulação sem poder ser enquadrada entre as perversões que implicam crime ou negação da liberdade alheia desenhando com clareza a interrogação fundamental sobre a sexualidade humana a homossexualidade provou ser o ponto crucial da questão referente à liberdade do indivíduo Não por acaso ela está na mira de fogo dos Estados totalitários mesmo dos esboços de futuros Estados totalitários e das nostalgias de um passado de controle social absoluto Mas não é por eu ter chegado à consciência disso que o tema da homossexualidade esteve está e estará sempre comigo Eu diria antes que é por ele ter estado sempre comigo que me foi tão luminosa a captação dessa consciência A dubiedade que já intrigava os garotos no ginásio e que eu próprio tematizei em minha figura pública a partir dos anos 60 expressa conteúdos profundos relativos tanto à natureza dos meus desejos quanto à escolha de papéis Em Praticamente normal Andrew Sullivan narra como aos dez anos ao ouvir de uma menina a pergunta Você tem certeza de que não é uma garota ele se deu conta do significado de sua diferença Assim como ele muitos amigos que fiz desde a infância sentiamse arrebatados pela presença de pessoas do seu sexo De modo tão definido que neles a polaridade machofêmea mais se reafirma do que se esvanece Não assim comigo Por um lado apesar de ter tido desde a préadolescência paixões intensamente sexualizadas por meninas e a princípio exclusivamente por meninas sei que nem a mulher nem o homem são em princípio antieróticos para mim por outro estou seguro de que não me teria negado a entregarme de corpo e alma a uma história de amor com um rapaz por quem também me apaixonei aos dezenove anos caso ele estivesse igualmente aberto afetivamente para mim e não tenho sombra de dúvida de que tal decisão se tomada com limpidez teria recebido apoio carinhoso de meus pais velhos interioranos católicos de vida conjugai sem mácula que impuseram fundo senso de integridade mas nenhum papel obrigatório de qualquer ordem profissional social sexual a seus filhos Sei que o impulso amoroso pode revelarse orientado tanto para homens quanto para mulheres mas não indiferentemente Porque essas inclinações são a rigor excludentes E não há como pôr na balança esses dois pesos Às vezes os homossexuais são acusados de não admitir a veracidade do desejo heterossexual Mas no fundo todos sabem que há uma diferença abissal entre alguém sentir o que todos esperam que sinta e alguém não poder deixar de sentir o que lhe é em princípio vedado Freud único esboço de filósofo do sexo usou a expressão de Stendhal para cunhar a frasechave sobre o assunto A perversão é aos olhos dos outros uma promessa de felicidade Nessa ótica todos os homens que se gabam de desejar as mulheres que passam são suspeitos enquanto aqueles que têm de sucumbir à força de um desejo que eles mesmos não aprovariam só podem causar fascinação e inveja Antônio Cícero chamou minha atenção para o fato de que quando no filme VictorVictoria Julie Andrews e Robert Palmer ela fazendo um falso travesti e ele um homossexual autêntico cantam os versos Were the kind of people other people would like to be eles por meio da canção singela de Henry Mancini tocam esse ponto com graça Uma mulher que para mim é uma deusa do amor disse surpreendendome mais uma vez com seu estilo ligaçãodireta Sexo oposto é o que está na minha frente não querendo dizer com isso que ela traçava o que aparecesse diante de si mas que quem quer que chegasse a estar com ela num frenteafrente sexual genuíno quem quer que tivesse chegado a ser objeto do seu desejo e motor do seu prazer era um exemplar do sexo oposto ao seu Não se pode imaginar um modo mais vivido de se confirmar a frase de choque lacaniana que reza que relação homossexual não existe A idéia de bissexualidade é muito freqüentemente usada para mascarar tanto homossexuais pouco corajosos quanto homófobos envergonhados Tendo a rejeitar o conceito Muitos conservadores censuram a idéia de opção sexual como se os que têm de discutir o assunto os normais não precisam julgassem tratarse de um problema simples de liberdade de escolha Não conheço nenhum homossexual que diga que escolheu ser assim Até aqui todos tiveram que passar por uma profunda rejeição de sua própria inclinação Quer se a explique pelo Édipo ou pelo hipotálamo pela genética ou pela reencarnação a homossexualidade se apresenta como um dado Os chamados bissexuais no entanto parecem estar diante de uma situação que permite escolha livre Na verdade não o estão mais do que ninguém O que eles estão na posição de poder ver é que a heterossexualidade precisaria justificarse tanto quanto o homoerotismo Quando eu tinha 23 anos me aplicaram o teste Rorschach e o resultado quanto a isso foi homossexualismo latente identificação feminina idealização da figura da mulher O teste foi feito amadoristicamente por uma amiga estudante de psicologia Ela própria era homossexual não sem conflito mas me disse que meu teste havia sido interpretado por uma sua professora que desconhecia a identidade do testando Acreditei De todo modo achei que o diagnóstico fazia sentido Angustioume um pouco e por pouco tempo pensar que talvez isso significasse que minha vida amorosa se sustentava numa espécie de autoengano Esse pensamento não resistiu à força espontânea do meu laço sexual com Dedé Mas o que realmente me surpreendeu no resultado desse teste foi a ênfase dada ao talento para a música Se eu não desconfiava da isenção de minha amiga psicóloga por causa do diagnóstico quanto à sexualidade considerava francamente suspeito que o teste privilegiasse meu pendor musical Desde pequeno tive certeza de que meus talentos plástico e verbal eram superiores à minha musicalidade desanimeime da pintura mas sempre cri que daria um grande cineasta Sem estar tão seguro quanto à minha inclinação sexual penso igualmente que eu daria um grande veado Convivo com pessoas que são fenômenos de musicalidade e que no entanto não conseguem extrair da música um quinto do que eu consigo por outro lado inúmeros heterossexuais indubitáveis têm muito menor rendimento com as mulheres do que eu O teste Rorschach coincidiu com o destino no caso da música embora os dois desmentissem minha intuição no caso da sexualidade o teste disse o oposto do destino e minha intuição nunca chegou a decidir com qual concorda Nos dois casos considerome mais bemsucedido do que mereço Assim aproximeime como figura pública do que Andrew Sullivan chamou de clima ubíquo vagamente homoerótico dos grupos pop masculinos comuns naquele tempo e hoje pondero que as sugestões de androginia polimorfismo indefinição que coloriam a atmosfera da música popular pósBeatles pósElvis seguem sendo uma ameaça à estabilidade das convenções que sustentam muitos atos opressivos A nova compartimentalização que se seguiu a essa orgia dos sinais era inevitável Todos os que eram vagamente homoeróticos e não se declararam homossexuais foram sendo assimilados como heterossexuais de uma nova era Inclinome a rejeitar tal simplificação Tendo tido uma freqüência muitíssimo mais alta de práticas heterossexuais do que homossexuais inclusive dois casamentos vividos com sincera tendência monogâmica poderia dizer a esta altura da vida que me defini como heterossexual Mas que nada De todo modo não há por que obstinarse na busca de uma nitidez na orientação sexual se ela não se apresenta como evidência espontânea O que importa é ter os caminhos para o sexo rico e intenso abertos dentro de si No final dos anos 60 era considerado mais progressista dificultar a definição do que dizerse homossexual Mick Jagger sobre o palco negava a pertinência daquilo que hoje se chama outing pois sugeria a liberação do potencial homoerótico latente em todos e em cada um Natural que à medida que esse tipo de comportamento foi passando a ser interpretado socialmente como tranqüilizador sinal de heterossexualidade os que queriam dizerse abertamente homossexuais adotassem sinais exteriores cada vez mais distantes dessa receita não raro apelando para os modelos tradicionais de masculinidade É claro que muitos conteúdos essenciais a certos grupos e indivíduos sadomasoquismo culto narcisico do Macho pelo lado dos homo assimilação da afirmação social das mulheres distensão dos limites do modelo viril nostalgia do macho bárbaro europeu por parte dos hetero entraram em jogo como fatores relevantes De todo modo tornouse possível e apesar de David Bowie com sua estilização calculada da androginia e sua confissão de bissexualismo logo negada ter se tornado uma figura dominante por bom período ouvir se com naturalidade que alguém como Axl Rose com esse nome aqueles cabelos e aquela saia escocesa tenha dito não sei que palavras agressivas contra os homossexuais o que é simétrico à hostilidade aos negros exibida por garotos brancos que no fim das contas refazem indefinidamente o rhythmblues Em Retrato do Brasil 1928 Paulo Prado atribui a tristeza do nosso povo que ele vê confundida com nossa incapacidade de organização social e progresso econômico à luxúria que dominou a vontade dos primeiros europeus aqui chegados os poucos portugueses deixados sem mulheres brancas numa terra radiosa sucumbiram à complacência das nativas e geraram a prole brasileira inaugural sob o signo da mestiçagem e da permissividade Das insinuações eróticas legíveis por trás das estilizações de Carmen Miranda às promessas orgiásticas do Carnaval carioca tudo o que caracteriza aos olhos do mundo uma alegada alegria brasileira não passa de sintoma da causa de nossa tristeza Ao conhecer São Paulo a cidade de Paulo Prado aos 22 anos surpreendime com a ausência de casais beijandose na boca ou trocando carícias inflamadas em público na Santo Amaro dos anos 50 como no Rio ou em Salvador essas cenas eram tão costumeiras quanto em Paris Podese pensar que a distensão dos hábitos sexuais cresce na razão direta do desenvolvimento urbano e que numa cidade pequena do interior da Bahia haveria mais moralismo público do que numa grande metrópole como São Paulo Mas o fato é que nesta última cidade chegamos Dedé e eu a ser repreendidos mais de uma vez por nos beijarmos em público é que se Paris era mais urbana Santo Amaro era mais brasileira do que São Paulo ali os imigrantes europeus tinham formado uma coletividade operosa e atada a claros princípios morais Quando eu era menino a tradicional escolha da palavra veado para designar um homossexual masculino era popularmente interpretada na Bahia como explicandose pela condição de caça do animal Assim à menor desconfiança quanto à virilidade de alguém gritavase Tibi essa era a onomatopéia baiana para os tiros de revólver e em geral acrescentavase Pode matar que é bicho Essa interpretação popular não deve ser de todo impertinente pois agora usase a palavra paca nome de outro típico animal de caça para o mesmo fim Mas nunca havia casos de tiros reais dados em homens por causa de sua conduta anômala Esses tiros simbólicos eram humilhantes para as vítimas e hilariantes para os agressores Na verdade estes os endereçavam exclusivamente aos passivos efeminados os ativos merecendolhes até o aplauso tácito E tais agressões estavam entre as demonstrações de falta de educação e grosseria as mães de família e os homens de respeito deveriam repreender seus filhos que agissem com tamanha vulgaridade Os garotos que hoje matam homens com quem vão para a cama a pretexto de conseguir dinheiro para comprar cocaína são o exemplo do desequilíbrio entre a violência urbana moderna e essa nossa antiga tolerância mal escondida para com as práticas homossexuais podese dizer que eles são a imagem deformada mas também num certo sentido invertida dos caçadores simbólicos da minha infância Pelo meio dos anos 70 havia um bar gay em Santo Amaro no largo do mercado Não um antro clandestino mas um modesto arremedo do que se supunha haver nas grandes cidades do mundo Era visto pela população com humor mas sem escândalo Durou relativamente pouco Foi um momento em que se harmonizou nossa versão para Paulo Prado tristemente mestiça e permissiva de tradições mediterrâneas com as notícias sobre direitos de minorias vindas da América branca e anglófona Um amigo meu americano me disse que nos Estados Unidos um pai de família liberal lutará pelo direito de o homossexual viver com plenitude mas será sempre incapaz de imaginar com alguma identificação um ato homossexual enquanto no Brasil até um agressor verbal de veados é capaz de admitir a realidade dessas cenas em sua imaginação Não se pode medir a liberdade dos homossexuais no Brasil pelo número de participantes em passeatas gay Andrew Sullivan anota em outra passagem que tendo trazido a consciência da homossexualidade a todo ato entre macho e macho o movimento gay fez mais pela queda da incidência das relações entre homem e homem nos Estados Unidos do que qualquer outra instituição Quando voltei de Londres em 72 a sutil imitação de Carmen Miranda que eu inseria na apresentação de O que é que a baiana tem valia por um duplo comentário sobre o sentido da arte popular brasileira no exílio e sobre a originalidade da possível contribuição brasileira à causa da liberação sexual Não abandonarei nunca o tema embora já não tenha a inocência daqueles anos Outro dia vendo uma moça reproduzindo em si mesma com perfeita espontaneidade os modos mais arraigadamente sentidos como masculinos entendi o ceticismo hostil que algumas bichas amigas minhas devotam a qualquer sugestão de um mundo pansexual polimorfo o sentido da vida para elas como para o sapatão a que me referi depende de uma nitidez muito grande nos sinais indicativos dos gêneros Eles se opõem ao mundo que Christopher Larsh descreveu como narcisista o mundo para ele autoanulador da indiferenciação Não tenho argumentos contra as bichas e os sapatões conservadores nem contra Larsh Andrew Sullivan reafirma a centralidade do modelo heterossexual propondo que consideremos a homossexualidade como uma variante que ressalta ao invés de negar sua beleza como os ruivos os albinos e os gênios os homossexuais seriam uma exceção que não apenas confirma mas honra a regra heterossexual Achei bonito mas muito perto da analogia com por exemplo o canhoto Edmund White prefere identificar a figura do homossexual com a figura do rebelde Todos temos a consciência de que os direitos civis de um indivíduo não podem ser ignorados pelo fato de ele ser um homossexual Mas sei também que muitas vezes o ódio o medo e a repulsa que a homossexualidade inspira dizem mais sobre sua grandeza do que uma sua aceitação em termos meramente liberais Essa tensão esteve sempre presente no clima em que abordo o tema em meu trabalho No momento da minha volta ao Brasil minha vida de casado entrava num período glorioso e o tema do homoerotismo atingia seu ápice de clareza no mundo da música pop antes de decair para desdobrarse nos movimentos a um tempo salutares e redutores da década que começava Tenho lembranças muito doces desse período E o nascimento de Moreno foi o maior às vezes considero o único acontecimento da minha vida adulta Através de Nando Barros meu excolega do colegial em cuja casa de Itapuã Dedé e eu começáramos em 64 a namorar para valer entramos em contato com um grupo de garotos muito interessantes da Bahia póstropicalista Antônio Risério Paulo César de Souza os irmãos Mônica e Pedro Costa e Ana Amélia Anamelinha de Carvalho eram as figuras principais desse grupo de adolescentes Risério era um intelecto ativíssimo conquistado para a poesia concreta pelo tropicalismo Paulo César uma grande inteligência sensível admirava os tropicalistas tanto quanto Risério mas defendia com golpes de ironia sua liberdade das novas ortodoxias eleitas por este último Paulo era também mais tocado pelo charme das idéias contraculturais de Luís Carlos Maciel e pelas idéias já então um tanto anticontraculturais de Paulo Francis do que Risério Mônica e Anamelinha faziam um par deslumbrante pelo contraste de cores as duas muito bonitas a primeira era loura e de pele clara a outra de pele marrom e cabelos muito pretos Incluo Anamelinha entre as mulheres mais lindas que já conheci em toda a minha vida A amizade com esses novos baianos mostrouse tão firme quanto a que tínhamos cultivado com Waly Duda Alvinho Roberto Pinho ou Rogério em linhas gerais dura até hoje Tenho mais proximidade com Risério e Paulo do que com os outros mas revejo Mônica toda vez que vou a São Paulo onde ela mora e via Anamelinha com freqüência até que ela morreu de um derrame ainda jovem e bonita deixando duas filhas tinha se casado com Tony Costa um guitarrista carioca que tocou comigo nos anos 80 Augusto de Campos veio à Bahia concluir as pesquisas para o livro que escrevia sobre Pedro Kilkerry o poeta simbolista baiano cuja força e originalidade nunca tinha sido reconhecida pelas histórias da literatura brasileira Risério ficou muito feliz de poder conhecêlo pessoalmente Ainda hoje os dois são amigos e Risério é um grande conhecedor da obra poética e ensaística de Augusto e dos seus companheiros concretistas além de ter se tornado ele mesmo um poeta visivelmente influenciado por eles e um ensaísta vigoroso que herdou além da disposição para o estudo constante e responsável o tom agressivo dos momentos polêmicos do início do movimento Paulo César além de realizar estudos acadêmicos em historiografia tornouse um excelente tradutor de Nietzsche fez traduções geniais de Além do Bem e do Mal Ecce homo e A genealogia da moral Freud e outros grandes autores de língua alemã Mônica que casouse com Risério e depois com o poeta paulista Regis Bonvicino também escreve poesia e tem já alguns livros publicados Vinte e quatro anos atrás esses futuros intelectuais eram adolescentes visivelmente talentosos comflue a Bahia me surpreendia em meu retorno e que enfeitavam nossa casa com sua beleza e sua vivacidade Leon Hirzman terminara de rodar a adaptação para o cinema do romance São Bernardo de Graciliano Ramos e me pediu que fizesse a trilha sonora Na nossa primeira conversa mencionei o fato de Graciliano como João Cabral não gostar de música e relembrei entusiasmado o quanto era maravilhosa a solução encontrada por Nelson Pereira dos Santos em Vidas secas apenas o ranger da roda de madeira do carro de boi servia de música para o filme E Leon logo concordou acrescentando que fora justamente com isso em mente que me procurara pois via semelhanças entre o carro de boi de Nelson e meus grunhidos na gravação de AsaBranca em meu primeiro disco de Londres Foi uma iluminação Ele queria de fato que eu compusesse algo para o filme usando apenas minha voz da maneira mais próxima possível do que eu fizera em AsaBranca e imediatamente imaginei formas sonoras organizadas a partir dessa matériaprima Ele queria mais que eu improvisasse à medida que ia vendo as imagens projetadas na tela E assim fizemos Fiquei maravilhado com o resultado e mais ainda com o método Tínhamos apenas quatro canais para superpor as vozes e os recursos para mixar eram mínimos mas experimentar compor a partir de gemedeiras e gemedeiras improvisadas era uma aventura grandiosa Achei o filme de Leon muito bonito como são todos os filmes que fez e acima de tudo encontrei na colaboração com ele um novo começo para meu próprio trabalho Não é nada desprezível o fato de mais uma vez a indicação de caminhos me ter vindo do cinema e do Cinema Novo brasileiro essa experiência tão congenial ao próprio Brasil por ser sempre uma aventura ao mesmo tempo frustra e grandiosa ARAÇÁ AZUL As gravações para São Bernardo foram feitas no Rio em dois ou três dias Voltei para Salvador com a ânsia de entrar num estúdio e começar a trabalhar em método semelhante Cria que num estúdio de gravação de discos com muito mais recursos eu geraria prodígios Araçã azul foi gravado em São Paulo em apenas uma semana sem que nem uma composição estivesse pronta ou mesmo esboçada antes de se iniciarem as sessões Hospedeime num hotel colado ao estúdio Eldorado o único do Brasil que então tinha oito canais e comecei a improvisar peças muito livremente concebidas André Midani o presidente da PolyGram Brasil sempre inacreditavelmente inteligente e chique para um homem na sua função concordara em deixarme sozinho com o técnico e seu assistente sem nem sequer receber visitas de quem quer que fosse da gravadora A primeira faixa que gravamos e que abre o disco é uma peça vocal sem letra e sem melodia Nascida da experiência com São Bernardo ela consiste em gemidos e grunhidos superpostos sons de vozes brasileiras em conversa o título De conversa vem do fato de João Gilberto sempre ele ter pouco antes gravado o samba de Lúcio Alves De conversa em conversa em que se mantêm os sotaques mas se abstraem as palavras A isso se somava percussão tocada por mim mesmo sobre meu corpo O que surge como revelação melódica e semântica no final da peça é a canção Cravo e canela de Milton Nascimento numa saudação a esse grande colega que realizara um trabalho tão notável e tão diferente do nosso mesmo oposto ao nosso sob certos aspectos e a quem não festejáramos de público na nossa volta com a ênfase que ele parece ter esperado e não o fizemos por senso das diferenças e horror à demagogia sendo que a frase final eu quero ver você alegre dita a princípio por uma voz que logo se une a outras num acorde simples também se dirige a Milton aqui tanto no plano pessoal quanto no artístico numa espécie de oração para que ele superasse aquela tristeza imensa que o prostrava oração que hoje vejo com orgulho mostrouse eficaz Não se veja nisto uma fantasia de onipotência o que quis dizer com a frase final de De conversa é que havia no culto ao estilo de Milton na própria admiração pelo seu trabalho uma valorização mórbida dessa tristeza e que existia em mim mas é claro que não só em mim em muitos mas antes de todos no próprio Milton o desejo de salvaguardar sua capacidade de vida e alegria sem o que não haveria suas canções mesmo as de beleza mais triste As outras faixas de Araçã azul seguiam nesse grau de inconvencionalidade Até mesmo o bolero Tu me acostumbraste ganhava uma interpretação em duas oitavas com a segunda rodada cantada em falsete como Ray Charles em People só que com uma precária distorção eletrônica adicionada e naturalmente sem a voz e a musicalidade do Gênio Chamei Perinho Albuquerque o irmão mais novo de Moacir um garoto de grande capacidade musical um autodidata caprichoso para fazer alguns arranjos Depois de quase tudo gravado ele foi para São Paulo e escreveu as partes orquestrais de uma peça longa chamada Sugar cane fields forever Essa peça consistia numa série de sambasderoda do recôncavo alinhavada por intervenções minhas e da orquestra Embora escritas com a ingenuidade de um autodidata talentosíssimo mas ainda pouco culto as partes orquestrais pretendiam soar como música moderna O resultado lembrava a trilha sonora de um curtametragem amador pretensamente artístico Além de tudo isso mandei estampar na parte interior da capa dupla a frase um disco para entendidos jogando com a dubiedade do termo entendido que também designava o que hoje se chama de gay A reação do público foi veemente o disco bateu recordes de devolução Transa tinha tido boa acolhida sobretudo por causa da regravação do velho samba de Monsueto Menezes Mora na filosofia e o fato de eu estar de volta ao Brasil ainda era notícia Além disso eu fizera um show ao lado de Chico Buarque no Teatro Castro Alves em Salvador com imenso sucesso e esse show uma comoção resultante do esforço amadorístico de um conhecido comum a nós dois ampliada pela suposta rivalidade foi transformado num disco ao vivo que vendeu muito Tudo isso levava as pessoas a procurarem meu disco novo nas lojas Ao chegar em casa a maioria nem sequer agüentava ouvir a primeira faixa até o fim voltava correndo ao vendedor para tentar devolver o disco Eu me orgulhava desse tipo de fracasso Mas o fato é que não estava satisfeito com o disco em si Tanto Augusto de Campos quanto Rogério Duprat que atendeu docemente meu convite para orquestrar uma faixa o que fez com o grande brilho habitual se mostraram entusiasmados com o que ouviram Nunca tive nem antes nem depois de nenhum desses dois artistas elogios tão apaixonados E dei dou uma imensa importância a isso O que fez com que eu me recolhesse em relação ao Araçá azul foi a constatação de que apesar de minha entrega eu não conseguira nada comparável por um lado ao disco novo de Jorge Ben chamado Ben e um dos momentos altos da música popular no Brasil Marcus Vinícius o técnico do Eldorado que fez o disco comigo era um bom profissional e uma excelente pessoa mas minha atuação como produtor só serviu para confundilo O disco de Ben saiu praticamente ao mesmo tempo que o meu Creio que o Amazonas de Naná Vasconcelos foi lançado por essa época e me pareceu infinitamente superior do ponto de vista sonoro ao que eu tinha feito Também o lp de estréia de Walter Franco me soava e ainda soa mais radical e muitíssimo mais bemacabado do que o Araçá azul Finalmente houve a reação muito realista de Zé Agrippino que voltava com Maria Esther da África onde tinham vivido por mais de um ano depois de uma passagem pela Europa e pelos Estados Unidos ele se mostrou frio ao ouvir o disco e observou justamente os defeitos que mais me incomodavam a falta de profundidade e o emplastramento do som É que por outro lado ele desprezava o cerebralismo fácil da decisão de soar experimental Para ele o Araçã azul era um disco subdesenvolvido técnica e artisticamente que no entanto poderia angariar estima justamente por tampouco aterse à graça simples das canções e por ser por isso mesmo rejeitado pelo público comum A princípio Agrippino apenas disse Gosto das canções destacando JúliaMoreno que eu fizera para o futuro neném cujo sexo desconhecíamos Dedé estava grávida quando gravei o disco e ainda não existia pelo menos na Bahia o exame de ultrasom e exibindo indiferença pelas faixas mais vanguardistas Finalmente opinou com lucidez técnica sobre estas últimas completando com uma observação geral sobre a situação da música pop e do cinema no Brasil que encontrava em seu retorno sem deixar de mencionar Jorge Ben e Naná Sua pontaria certeira indo direto aos mesmíssimos pontos que já me haviam ocorrido fortaleceu minha atitude algo pessimista em face do Araçá azul Não que a reação otimista de Augusto e Duprat tivesse menos peso para mim Apenas a de Agrippino era mais útil Afinal eu tinha feito o Araçá azul como um movimento brusco de autolibertação dentro da profissão precisava me desembaraçar no estúdio testar meus limites e forçar meus horizontes Necessariamente sairia modificado dali e necessariamente faria coisas diferentes em seguida Não podia simplesmente pensar em perpetuar uma atitude experimentalista nascida do que me parecia ser um abuso de oportunidades então eu regressava glorificado do exílio e cheio de regalias criava uma reputação de artista refinado com um produto tecnicamente abaixo do nível atingido no mercado do próprio país subdesenvolvido a que voltava Augusto e Duprat certamente viam as coisas de outro lugar Para eles as questões sociais e as sutis diferenças entre os produtos de diversão popular não contavam muito quando estava em jogo a criação livre de formas artísticas relevantes A crítica especializada tendeu mais para a posição deles do que para a de Agrippino Para mim era a descoberta de que chegara a uma posição de menino mimado e de que devia ter a coragem de sair dela Minhas tarefas agora seriam readquirir humildade dentro do estúdio atentar para aspectos específicos da feitura de música popular contribuir para as conquistas técnicas e mercadológicas da minha classe Raramente consegui algo de tudo isso nos anos subseqüentes mas o pouco que atingi me é valiosíssimo Naturalmente eu queria cumprir essas tarefas sem deixar de lado as motivações que me tinham levado ao tropicalismo e ao experimentalismo desabrido do Araçá azul A rigor eram essas mesmas motivações que me levavam a não deitar na sopa do Araçá Alguns anos depois comentando com Augusto a desaprovação desse disco por parte dos músicos eruditos da Universidade da Bahia ouvi dele a declaração de que meu disco era música lírica de grande beleza Sempre vi na firmeza da aprovação ao Araçá azul por parte de Augusto a decisão de marcar uma posição diametralmente oposta àquelas que por mais que venham envoltas em elucubrações complicadas desembocam sempre no convencionalismo comercial Vi isso com clareza pois afinal o Araçá azul era de certa forma a realização tardia do projeto de disco que estava em embrião quando fui preso e que teria sido um disco muito mais próximo dos concretistas Muitas vezes penso em quanto o primeiro disco de Walter Franco assim como o trabalho de Arnaldo Antunes nos anos 90 se parece com o que eu tinha em mente então De volta ao lar em 72 eu tentava retomar o arrojo inventivo de 68 Mas fatalmente acabaria chegando a algo muito diferente Basta lembrar que o disco que não fiz em 689 tinha sido imaginado como uma intervenção radical que possibilitaria minha iminente saída do mundo da música pop É importante saber que na altura do Araçá azul minha decisão mesmo que fantasiosa de abandonar a profissão tinha sido desconstruída pela prisão e pelo exílio Assim o Araçá azul surge como o disco experimental que na realidade me foi possível fazer E isso era uma versão irreconhecível do disco concretistapaulista que eu não fizera Não totalmente irreconhecível porém uma vez que Augusto sentiu com ele maior identificação do que com qualquer outro disco que eu tenha feito antes ou principalmente depois De todo modo há uma faixa do Araçá azul que se inspirou num comentário de Augusto sobre o nome Amaralina do bairro em que eu morava na Bahia Explorando as possibilidades formais da palavra ele revelou o anil espelhado nas sílabas finais fazendoas circular em anilina A partir disso inventei uma palavra longa que era legível nos dois sentidos palindrômica e que para surpresa do próprio Augusto se fazia igualmente reversível na gravação amaranilanilinalinarama amar anil anilina li na rama Eu a pronunciei de modo que ela soasse como um trecho de oração hindu E justapus à gravação normal uma sua cópia com a fita rodando ao contrário que soava quase indistinguível da outra num espelhamento perfeito É uma das coisas de que mais gosto no disco Hoje penso que Augusto de Campos como Rogério Duprat destaca o Araçá azul entre os meus discos porque defende por princípio as atitudes de vanguarda mas que ele o destaca acima dos demais trabalhos pioneiros feitos na mesma época na minha área justamente porque percebe nesse meu disco um impulso que afinal é o mesmo que me levou para longe dele Se digo que a opinião de Agrippino me foi mais útil no momento de saída do Araçá azul repito que ela não era superior aos meus olhos à de Augusto e Duprat Afinal numa mirada mais abrangente vêse logo que minha identificação com as posições e com a sensibilidade de Augusto quanto a essas questões é mais resistente do que a que eu pudesse ter com Agrippino Basta dizer que tal como Augusto eu me aproximara do rock e do pop depois e por causa de uma inicial adesão a João Gilberto que Agrippino desconhecera Embora o concretismo tivesse sido chamado de o rocknroll da poesia pela imprensa nos anos 50 Augusto e seus companheiros formalistas um grupo de mesma faixa etária dos antiformalistas beat americanos logo elegeram a bossa nova enquanto na esteira de Mautner que identificado com os beats hostilizara a limpeza cool da bossa nova em seu primeiro livro louvando o rock e os sambascanções derramados Agrippino nunca fora um bossanovista A máscara antibossanovista que nós os tropicalistas usamos incluía uma aproximação com Agrippino Mautner o rock e o bolerão mas como os concretistas eu tinha sido e seria sempre antes de tudo um amante da arte de João Gilberto e de João Cabral de Melo Neto Nós matamos o tropicalismo várias vezes e desde o início Várias vezes falamos em movimento para acabar com todos os movimentos O especial de tv concebido por Zé Celso e que nunca foi ao ar era uma espécie de suicídio cultural do tropicalismo E finalmente no Divino Maravilhoso encenamos um enterro do tropicalismo Nossa prisão e nosso exílio representaram um corte real na continuidade do nosso trabalho Mas a aventura que se iniciou para mim com o tropicalismo não acabou nunca Não me causa demasiada estranheza no entanto quando ouço dizer que o Araçá azul marcou o final de uma etapa VEREDA A maioria das canções por que sou reconhecido hoje em dia foi composta e gravada depois do Araçá azul Com exceção do fenômeno de Alegria alegria que no Brasil mas só no Brasil ainda ê mais conhecida do que quaisquer outras hoje sou sobretudo o autor de algumas canções escritas de meados dos anos 70 em diante Evidente portanto que há muita história para contar referente a esses tempos E de fato a colaboração com Perinho Albuquerque em Jóia Qualquer coisa e Bicho marca um período memorável E com A Outra Banda da Terra que tinha como núcleo Arnaldo Brandão Vinícius Cantuária Bolão Zé Luís e Tomaz Improta atravessei o que não temeria considerar a fase de maior felicidade de minha vida musical Retomando uma conquista deTransa eu só agora engrenava uma carreira propriamente profissional com apuro e liberdade no canto Depois dos loucos 60 os anos 70 se me afiguravam desenxavidos eu não gostava de David Bowie nem de rock progressivo nem de Woody Allen nem dos novos filmes alemães nem do Weather Report nem do Earth Wind Fire Só Bob Marley Stevie Wonder e algo do punk eram novidades animadoras vindas do mundo anglófono Achava a moda roupas cabelos estilos de dançar feia e careta em suas esquematizações das ousadias dos anos 60 Mas me sentia feliz e o Brasil me estimulava Daqueles anos para cá interesseime pelo fenômeno de modernização das telenovelas brasileiras e em geral pelo papel da tv Globo na educação das grandes massas pelo trabalho do grupo teatral Asdrúbal Trouxe o Trombone que sem ambicionar a grandiosidade de Zé Celso ou Boal trouxe uma vitalidade espontânea e uma poesia para o teatro que o aproximava da força da música popular pelas novas ondas de samba carioca no mercado pagode pelo surgimento dos blocos afro nas ruas de Salvador a canção de Gil Filhos de Gandhi fez mais por isso do que o meu Atrás do trio elétrico tinha feito pelos trios elétricos pelo estouro comercial do pop carnavalesco baiano pela explosão das bandas brasileiras de rock nos anos 80 pelo repentino interesse do mercado litorâneo pela música sertaneja por alguns filmes coloridos feitos por diretores do Cinema Novo com um aspecto de bom entretenimento que os filmes da fase heróica desconheciam aproximeime do candomblé a partir de conversas bonitas com a ialorixá Mãe Menininha do Gantois e me mudei para o Rio para fazer psicanálise Na metade da década de 80 meu casamento com Dedé teve que chegar ao fim e meu encontro com Paula Lavigne uma menina de treze anos que atuava num grupo de teatro de adolescentes terminou tendo conseqüências de grande porte estamos vivendo juntos há dez anos e temos dois filhos Zeca nascido em 92 e tom em 97 Por causa da atenção a coisas como a tv Globo a axé music o rockBrasil e mesmo o Asdrúbal Trouxe o Trombone ouvi de amigos mais ou menos íntimos o comentário de que eu embarcava em muitas canoas furadas Mas eu acreditava que podia andar sobre as águas Eu amava os discos experimentais de tom Zé ou de Walter Franco os filmes de Júlio Bressane e de Rogério Sganzerla mas sabia que meu lugar era lá no meio da corrente central da cultura de massas brasileira muitas vezes nadando contra a maré ou apenas atrapalhandolhe o fluxo outras tentando desimpedirlhe o caminho Haveria muito o que discutir sobre tudo isso mas a história por trás das reflexões expostas neste livro acaba aqui Trinta anos transcorreram entre a deflagração do movimento tropicalista e os dias em que escrevo estas últimas páginas Naturalmente muitos pensamentos que aqui aparecem desenvolvidos e conclusos eram ainda informes em mim durante a ação narrada Mas também é verdade que muitos outros estiveram mais vividamente claros em minha mente no calor da hora do que puderam ser agora reconstruídos E outros tantos se mantiveram imutáveis em seu ritmo e forma por todos esses anos Outros ainda são simplesmente novos em mim O que vale mesmo ressaltar é que o que me levou ao tropicalismo aqui me traz Em O choque de civilizações Samuel P Huntington descreve o retorno das antigas forças civilizacionais que estiveram recalcadas pela guerra fria a volta de um mundo mais velho e muito mais resistente do que a aventura ocidental que culminara com os Estados Unidos Dogmas culturais particularistas e fundamentalismos religiosos comandam a cena Ele então propõe que os Estados Unidos liderem o Ocidente num programa de reafirmarse como cultura particular com uma religião própria A Cristandade ressurge como sinônimo para Civilização Ocidental O critério de classificação das civilizações que ele apresenta é duvidosíssimo Há uma civilização islâmica uma ortodoxa uma sínica uma africana uma ocidental e uma latino americana Sobretudo não me parece convincente a interpretação dos EUA como guardiães da civilização européia Vejo a América como um estágio radicalmente novo da história da cultura ocidental Traumaticamente lavada em sangue negro e sangue índio toda ela é uma antítese agressiva da Europa Sob certos aspectos os eua o são mais do que o conjunto dos países latinos do Novo Mundo A violência de sua cultura de massas a saúde com que a partir dos anos 20 eles exportaram uma cultura viralata Ann Douglas definem uma realidade que mais aponta para uma superação do estágio europeu da História do que para uma sua cristalização Mas Huntington termina caracterizando como Ocidente apenas os países brancos ricos sob a tutela dos Estados Unidos estes deveriam organizarse contra o resto O Brasil aparece como o possível paísnúcleo da alegada civilização latinoamericana Seria simplesmente desprezível para nós essa confusão deliberada de blocos geopolíticos com civilizações se ela não tocasse uma corda sensível da intuição que têm os brasileiros do que seja o Brasil De fato nosso país se nos mostra como uma eterna indefinição entre ser o aliado natural dos Estados Unidos em sua estratégia internacional e ser o esboço de uma nova civilização Suas características de país gigantesco e lingüisticamente solitário contribuem igualmente para as duas tendências O caráter único de sua música popular tanto em sua beleza quanto em sua precariedade vem disso O tropicalismo pôde tentar extrair energia original dessa tensão Livros como o de Huntington ou o Trustde Fukuyama que aparentemente se lhe opõe me fazem sentir e pensar o tropicalismo posicionado mais nitidamente à esquerda do que me seria possível em 67 Foi no Ocidente que se desencadeou um processo de secularização do conhecimento que resultou na ciência de eficácia universal tal como a conhecemos e na moral individualista ateia em que se baseiam os direitos humanos Como recentemente observou Décio Pignatari os ateus são a verdadeira minoria do nosso tempo A revanche de Dieu é pois um fato estatístico o que não deixa de ser irônico Mas se uma mente norteamericana vigorosa receita uma amedrontada submissão a essa revanche a mente musical brasileira não pode aceitar esse tipo de restauração Thomas Mann dizia Não há nada pior do que o sonho de restauração Uma época medrosa de si mesma procura restaurar fundamentos Em vão não há volta Kapucinski conclui seu livro sobre a derrocada do Império Soviético com a constatação de que os países territorialmente grandes sempre encontram meios de se reerguer e cita o Brasil junto com a China e a índia como exemplos a Rússia também diz ele se reerguerá dos escombros do póssocialismo Vejo nessa observação um mero reconhecimento da autoimagem ambiciosa que tais países fatalmente têm Sendo assim que a ambição brasileira seja a de levar o ateísmo filho do Ocidente às suas últimas conseqüências O fato de ser provável que a religiosidade seja reencontrada em outro estágio ao fim do processo não autoriza a regressão aos moldes précientíficos pré filosóficos e préjurídicos de religião É isso que me fascina em O mundo desde o fim o livro de filosofia de Antônio Cícero com sua retomada do cogito como apócrise E quando falo a esse respeito de um Ocidente ao ocidente do Ocidente penso não num fundamentalismo dessa cultura particular mas no compromisso com alguns conseguimentos historicamente ocidentais irreversíveis Takeshi Umehara citado por Huntington escreveu que o completo fracasso do marxismo e o espetacular esfacelamento da União Soviética são apenas os precursores do colapso do liberalismo ocidental a principal corrente da modernidade Longe de ser a alternativa do marxismo e a ideologia dominante no final da História o liberalismo será a próxima pedra de dominó a cair Essa observação leva Huntington a sugerir a união estratégica dos Estados Unidos com os países europeus cristãos A mesma afirmação do filósofo japonês me levaria a perguntas mais fundas sobre o que significa o que aconteceu no Ocidente Huntington cita também Arthur Schlesinger Jr A Europa é a fonte a fonte singular das idéias de liberdade individual democracia política império da lei direitos humanos e liberdade cultural Essas idéias são idéias européias não são asiáticas nem africanas nem do Oriente Médio a não ser por adoção Mas como disse Ernest Gellner que tais idéias tenham surgido no Ocidente assim como a ciência moderna não significa que os povos brancos europeus sejam seus donos ou mesmo que estejam mais capacitados para pôlas em prática ou desenvolvêlas É óbvio que o liberalismo será a próxima pedra de dominó a cair se os autointitulados amantes de tais conquistas ocidentais os conservadores dos países ricos do Ocidente fatalmente o desvalorizam quando festejam a falência do socialismo acenando com uma volta explícita à submissão à fé e uma volta implícita a valores raciais que o pensamento liberal não toleraria E quando desistindo momentaneamente do economicismo desbragado dos anos 80 voltam a um culturalismo de disfarçado tom romântico em que se desconfia de que as idéias racionais possam produzir algo real na vida das sociedades O choque de civilizações lembra aquele texto de Wagner que tanto impressionou Nietzsche em que cinicamente se propõe que as massas sejam conduzidas por homens irreligiosos na ilusão da religião O que por sua vez me recorda o sargento que quando eu estava preso me confessava orgulhoso ter espancado atores de uma peça em que supostamente se desrespeitava a figura da Virgem Maria apesar de afirmar grosseiramente não acreditar ele próprio nessas merdas Aqui também eu me sinto mais religioso do que os conservadores americanos que receitam o protestantismo como cura para o atraso da América Latina Huntington atribui a onda libertária dos anos 60 ao crescimento percentual de jovens no Ocidente depois da Segunda Guerra baby boom Eríc Hobsbawm ao crescimento econômico mundial naquela década e na anterior Perguntar sobre o tropicalismo é perguntar sobre o sentido da interseção da singularidade brasileira com a força dessa onda O século XX foi chamado de o século americano Hobsbawm que o caracterizou como breve afirmou que em matéria de cultura popular pudemos ser no denso espaço dessa brevidade ou americanos ou provincianos Na periferia da economia mundial o Brasil apresentou com o tropicalismo um modelo de enfrentamento dessa questão que só agora se torna mundialmente inteligível Algo desse modelo mais ou menos reproduzse não por influência direta na maioria dos casos no desabuso do melhor poprock mexicano e argentino dos anos 80 para cá Em rápidas palavras eu próprio poderia dizer que não vivencio o que me interessa em minha criação a partir da perspectiva do século americano e sim de uma sua possível superação Mas isso sobretudo porque no século americano ainda sobra espaço para que se teime em fazer dos Estados Unidos da América o mastim de um grupo racial e religioso O livro de Huntington tem algo de profundamente antiocidental ele expõe o esforço dos conservadores em transformar a cultura de Camões Lutero Washington e Picasso numa cultura fechada Simplesmente não dá A grande movimentação que levou a chama civilizatória das áreas quentes para o frio Norte do hemisfério norte parece estar depois de atingir o Japão e tigres asiáticos neocapitalistas e China neocomunista madura para fazer um desvio de rota Ter como horizonte um mito do Brasil gigante mestiço lusófono americano do hemisfério sul como desempenhando um papel sutil mas crucial nessa passagem é simplesmente uma fantasia inevitável Antônio Cícero no citado O mundo desde o fim relembra a revolta de Nietzsche contra a tendência dos pensadores moralistas a depreciarem o homem tropical em favor de quê pergunta o filósofo alemão das zonas temperadas Em benefício dos homens temperados Daquilo que é moral Do medíocre Com efeito o economista brasileiro Eduardo Giannetti em livro publicado mais ou menos à mesma época relaciona as opiniões de alguns desses grandes moralistas justamente para contrapôlas ao protesto nietzschiano A citação de Kant nos basta A excelência das criaturas pensantes sua rapidez de apreensão a clareza e vivacidade dos seus conceitos e em suma toda a extensão de sua perfeição tornase mais alta e mais completa na proporção direta da distância do seu lugar de moradia em relação ao sol O nome de tropicalismo que rejeitei a princípio por considerar restritivo hoje me parece adequado como nenhum outro o seria Justamente por eu ter preferido enfatizar em primeiro lugar nossa aceitação do repertório do pop internacional como oposição de choque ao nacionalismo o apelido hoje me soa como uma revelação involuntária da essência do movimento Sua própria construção por jornalistas ingênuos a partir de uma sugestão de Luís Carlos Barreto por causa da obra de Oiticica tem a marca do acaso significativo do acercamento inconsciente a uma verdade Uma responsabilidade pelo destino do homem tropical um dínamo escondido que desencadeasse uma resposta histórica para uma pergunta semelhante à de Nietzsche eis a motivação íntima do que se chamou de tropicalismo em música popular brasileira Não se trata aqui de atribuir intenções grandiosas a gestos banais um grupo de garotos fazendo música de divertimento decide por fim reivindicar um sentido maior para o desenrolar de suas carreiras Creio antes que tal sentido se impõe a despeito do que há de pequeno nessas carreiras E termina até por se alimentar de seus aspectos mais mesquinhos Sem necessariamente enaltecêlos Menos do que uma visão mística da História eu gostaria que estas palavras fossem tomadas como um esforço de lucidez diante do que se apresenta como a matéria mesma da nossa história sendo vivida Isso tem como lastro o som real produzido por João Gilberto João assume a instância música popular como determinante de nossa verdade dada e criável Creio mesmo que eu teria agido mais responsavelmente se tivesse escrito em vez destas memórias reflexivas o livro que por tanto tempo sonhei escrever sobre ele Nunca desisti de todo de fazêlo Mas acontece que tal projeto apresenta o duplo risco de diferentemente deste aqui substituirse à minha música e de afinal não agradar ao próprio João Que minha música canhestra e errática seja por enquanto o livro que posso escrever sobre ele é assim que ele a ouve e que este livro aqui seja uma extensão de seu caráter algo disforme pois ela sem encantálo se bem que sua gravação de Menino do Rio me leve a duvidar tampouco o aborrece com análises e interpretações de seu mistério tão genialmente protegido até ou talvez sobretudo dos que querem mistificálo Fique apenas claro aqui que a vereda que leva à verdade tropical passa por minha audição de João Gilberto como redentor da língua portuguesa como violador da imobilidade social brasileira da sua desumana e deselegante estratificação como desenhador das formas refinadas e escarnecedor das elitizações tolas que apequenam essas formas Por meu intermédio o tropicalismo tomou a realidade da música popular no Brasil pela sua vocação mais ambiciosa materializada no som de João Nos anos 50 uma marchinha de Carnaval carioca ridicularizava as fãs de cantores de rádio nos seguintes termos Ela é fã da Emilinha Não sai do César de Alencar Grita o nome do Cauby E depois de desmaiar Pega a Revista do Rádio e começa a se abanar Uma foto aqui uma foto ali O dia inteirinho ela não faz nada Enquanto isso em minha casa Eu não arranjo uma empregada A canção foi um grande sucesso Eu que aos treze anos freqüentava os auditórios da Rádio Nacional do Rio de Janeiro onde Emilinha e Cauby se apresentavam no Programa César de Alencar ria da sátira sem me sentir ofendido supunhame acima dos outros freqüentadores mas mesmo assim não achava que eles tivessem muito do que se envergonhar Eram pessoas ingênuas e um tanto inautênticas em seus arroubos mas amavam o que a mim mesmo parecia amável Essa platéia se compunha principalmente de mulheres de classe baixa e o autor da marchinha sugeria que seu lugar era na cozinha O ator e diretor de rádioteatro Floriano Faissal tinha cunhado um apelido para essas entusiastas macacas de auditório A expressão pegou com uma rapidez fulminante Como havia um grande número de negras e mulatas entre as fãs onde quer que se reúna gente pobre no Brasil o percentual de pretos e escuros sobe e é conhecida a aproximação que se tenta fazer entre o negro e o macaco a piada trazia implícita uma conotação racista No entanto já em 67 ouvi muitas senhoras e garotas distintas da burguesia paulistana branca confessarem com orgulho que eram minhas macacas A palavra macaca tinha substituído a palavra fã como veio a ser substituída nos anos 70 pela palavra tietede origem obscura aparentemente nasceu de uma brincadeira do grupo vocal feminino As Frenéticas a partir da palavra tia A bossa nova situase cronologicamente entre o período em que a expressão macacas de auditório foi lançada e também aquela marchinha e o surgimento do tropicalismo Opondose à vulgaridade comercial de grande parte do olimpo da Rádio Nacional havia todo um esforço de criar e consumir uma música respeitável A bossa nova foi a culminância desse esforço mas foi também a superação da ansiedade que o exigia ela realizava uma estilização mais exigente e ao mesmo tempo valorizava o passado conscientizandonos da grandeza da nossa tradição O tropicalismo procurava ouvir a bossa nova com os ouvidos de quem tinha freqüentado os programas de auditório entre as macacas Ou melhor com a capacidade de reconhecer em João Gilberto um ouvido que dava conta da realidade delas As sutilezas da questão social e racial brasileira tão bem ilustrada pela história das fãs iletradas que foram chamadas de macacas e viram o apelido que ganharam ser assumido com carinho pelas elites da década seguinte essas sutilezas foram entendidas pelo gênio de João Gilberto E é isso que reconheço quando no lindo texto de Tomjobim para a contracapa do primeiro lp de João se lê Ele não subestima a sensibilidade popular Não se trata aqui do populismo substituidor da aventura estética pela adulação dos desvalidos e barateador das linguagens mas da coragem de enfrentar a complexidade da dança das formas na história da sociedade Este livro por exemplo eu creio que o escrevi por causa de Nova Iorque É uma cidade curiosa Muitos residentes dizem que ela não tem nada a ver com os Estados Unidos que é uma cidade do mundo mais distante das cidades americanas típicas do que de outra grande cidade de qualquer lugar Mas o fato é que todos sabem que só os Estados Unidos produziriam uma cidade como ela No inicio dos anos 80 fui pela primeira vez a Nova Iorque Sentime surpreendentemente à vontade como nunca tinha me sentido na Inglaterra ou mesmo na Europa continental ainda que itálica ou ibérica Logo entendi por quê estava como no Rio ou em São Paulo em Salvador ou em Santo Amaro em território americano É complexamente estimulante para quem se sabe enquanto ocidental profundamente suleuropeu católico sentirse à vontade na capital saxã do Império Mundial Uma palavra indígena nomeia a ilha em que se erguem os desfiladeiros de arranhacéus os quais não transcendem a vulgaridade apenas por se apresentar como notou LéviStrauss antes como acidentes geográficos do que como arquitetura mas também por elevarse à condição de obras humanas atemporais ao vêlos vivenciamos ao mesmo tempo a força de sua lenda como se eles já tivessem sido destruídos há muitos séculos A palavra Manhattan que encontrei no espantoso Inferno de Wall Street do poeta romântico brasileiro Sousa Andrade tomada por força da métrica e da rima pelo que ela soaria se a lêssemos à portuguesa Manhatã volta com essa aparência de palavra tupi à minha mente sempre que ando por esses desfiladeiros pontilhados de portais dourados Manhatã Manhatã cantarolo com carinho e sorrio em face do entendimento imediato que posso ter da aventura norteamericana de sua realidade fatalmente mestiça Não não menos do que no Brasil ao contrário desses brasilianistas que querem nos mostrar que o Brasil cultiva um racismo hipócrita e portanto mais nocivo do que o racismo aberto e um dia institucionalizado que os Estados Unidos experimentaram eu além de preferir que um racista seja no mínimo constrangido a fingir que não o é penso que a confusão racial brasileira revela uma miscigenação profunda que ocorre inevitavelmente também entre os norte americanos a despeito de eles fingirem com suas leis racistas e com suas leis de compensação antiracista que ela ali não se dá A cidade de Nova Iorque sendo a capital do mundo e ao mesmo tempo sendo me assim tão necessariamente íntima convenceume da existência do mundo exterior até a minha geração os brasileiros moradores de um litoral afastado das fronteiras de um país gigante não pensavam nos estrangeiros como uma realidade concreta e me desinibiu para trocar algumas palavras com os habitantes desse mundo Ela me dá também uma espécie de intimidade com a História a monumentalidade aliada à semcerimônia produzem naturalidade em face do tempo e da minha capacidade de fazer marcas no tempo Nova Iorque é o esplendor do Império Americano e também a seta com que ele aponta para um futuro que só o reafirmará superandoo Quando pouco depois da primeira visita fui ali a trabalho encontrei à minha espera no aeroporto jfk um americano óbvio a quem tentei dirigirme falando inglês mas logo ele me respondeu em português perfeitamente pernambucano era Arto Lindsay guitarrista atonal e figura histórica na cena musical do Sul da ilha de Manhattan Ele tinha passado parte da infância e da adolescência no Nordeste brasileiro e a música dos tropicalistas tinha sido muito importante em sua formação Declarouse star struck em minha presença e eu considerei isso um modo de ele embora sinceramente emocionado por travar conhecimento com alguém que o impressionara na adolescência demonstrar não sem uma ponta de humor carinho independente por um artista do mundo subdesenvolvido Nasceu uma amizade O show no Public Theater foi um desastre para mim Eu vinha de volta de uma turnê européia que se estendera até Israel e imaginava que em Nova Iorque para onde Guilherme me levava obedecendo a um seu antigo desejo trabalharíamos em condições técnicas tão boas quanto as daqueles lugares ou pelo menos quanto as brasileiras Os americanos são muito afáveis Mas descobri que pelo menos em Nova Iorque se você não é uma estrela em nível norteamericano você não tem muitas chances de contar sequer com equipamentos razoáveis de luz e som Nada comparável ao que lhe oferecem em Paris Bruxelas ou Buenos Aires Carinho não faltava soube depois que Peter Schere o parceiro de Arto no grupo Ambitious Lovers é que operara o som As negociações de Guilherme se deram através de Fabiano Canosa amigo brasileiro então programador do cineclube do Public E Nancy Weiss responsável pelo evento foi dulcíssima Mas o show que fora programado para as dez horas só começou depois da meianoite porque havia uma apresentação de Orgasmo Adulto escapes from the Zoo que se prolongou indefinidamente Lembro revoltado que Tomjobim que estava na cidade e quis ir me ver esperou duas horas pelo início do espetáculo Logo ele que costumava dizer que cobraria 1 milhão de dólares para fazer um show e 2 milhões para assistir a um Tínhamos lançado o disco Uns e viajávamos com o show correspondente Eu sempre excursionava com o mesmíssimo show que fazia no Brasil Entramos no palco do Public Theater para apresentar nosso subpop através de amplificadores pífios sob poucas lâmpadas O Uns que mostramos ali era para nós um centésimo daquilo que sabíamos que ele era e nunca achamos embora o amássemos que ele fosse muito grande coisa Mas parece que se está acostumado a isso em Nova Iorque pois embora o público tivesse me parecido frio durante a apresentação e eu tivesse chorado de vergonha nos dias que se seguiram lemos elogios nos jornais e eu fui procurado por Bob Hurvitz do selo Nonesuch que se dizia encantado com o que vira e ouvira Hurvitz foi quem mais tarde me fez gravar um disco em duas tardes um disco que saiu bonito e depois ainda animounos a mim e aos Ambitious Lovers Arto e Peter a fazer o álbum Estrangeiro Isso me pôs em contato com instrumentistas escritores gente do mundo das artes de Nova Iorque Creio que foi em 86 que lancei numa tumultuada sessão no festival de cinema do Rio o filme O cinema faladoo primeiro e até agora único longametragem que dirigi Para esse mesmo festival David Byrne trouxera seu True stories Assim foi por causa do cinema que se deu esse encontro tão cheio de conseqüências sutilmente decisivas para mim e para nossa música David tinha chegado ao Brasil com certa antecedência acompanhado de sua mulher Bonnie e os dois tinham ido por conta própria à Bahia antes de desembarcar no Rio de Janeiro Eles chegaram de lá entusiasmados com o que ouviam no rádio Pelas descrições que me davam não me era possível decidir se eles tinham ouvido forró ou a nova música de Carnaval de Salvador que os jornalistas apelidaram algo maldosamente mas com involuntária graça de axé music Possivelmente eles tinham ouvido ambos os gêneros e algo mais O que me fascinava era o crescente interesse de David num tipo de produção musical que jamais atraíra ou atrairia os músicos do jazzfusion ou do rock sofisticado que nos visitavam O resultado que eu já adivinhava foi que em breve ele estaria às voltas com a produção dos tropicalistas A primeira coletânea que ele lançou de pop brasileiro enfatizava a liberdade e a inventividade dos sons de nossas gravações dos anos 70 e isso era como uma notícia diferente sobre o Brasil E embora ele me tenha mostrado uma fita com suas escolhas e me pedido opinião eu me neguei a dar palpite pois acreditava que a pureza de sua primeira impressão é que daria caráter ao disco A única observação que não pude reprimir foi a de que a ausência de Paulinho da Viola me parecia inexplicável e inaceitável Mas David não mexeu nisso Algo mais importante no entanto estava por acontecer É que David tendo comprado uma quantidade de discos de e sobre samba levou no bolo um álbum de tom Zé Estudando o samba que o surpreendeu e apaixonou A apresentação que ele fez de tom Zé primeiro numa coletânea lindamente editada depois numa produção com inéditos foi a confirmação e o aprofundamento da originalidade e pertinência de sua visão de nossa música moderna tom Zé estava esquecido no Brasil E os discos de caráter experimental dos anos 70 eram em geral considerados datados e fora de moda A atenção de Byrne mexeu com a imprensa brasileira com a vida de tom Zé conosco E abriu uma nova faixa de diálogo internacional para a nossa música A mpb pósbossa nova tinha chegado com presteza e intensidade ao mundo exterior na pessoa de Milton Nascimento Jorge Ben via Sérgio Mendes e Gil também já tinham deixado sua marca Edu Elis Dori Caymmi além dos casos de emigração musical de Airto e Flora Purim se tornaram figuras respeitadas Egberto Gísmonti e Hermeto Paschoal são mestres reconhecidos em toda parte E Naná Vasconcelos leva gente de todas as nacionalidades a se sentir diante de um gênio Depois disso figuras como Djavan e Ivan Lins chamaram a atenção de colegas do primeiro time em escala mundial Mas o que se instaurou a partir do momento em que David Byrne abriu uma coletânea com Bethânia e Gal cantando Sonho meu de d Ivone Lara e culminou com os discos de tom Zé é algo que diz mais de perto respeito às questões levantadas neste livro Sempre que vou a Nova Iorque o que acontece pouco procuro o e embora nos vejamos sempre com brevidade pois nunca me demoro na cidade nossas conversas me dão estímulo e prazer Um dia chegou à casa noturna novaiorquina Ballroom onde eu fazia uma série de apresentações um fax para mim remetido pelo New York Times Queriam um artigo sobre Carmen Miranda A idéia era ter um texto escrito por algum brasileiro ligado à música popular Alguém na redação confirmou que o possível autor sugerido por um editor brasileiro e por um agente de escritores americano consultados pelo ArtsLeisure eu que tinha sido segundo soube depois lembrado quando se constatou a inviabilidade da primeira escolha Chico Buarque valeria de fato uma tentativa Além do show no Ballroom eu estava gravando o que faltava e iniciando a mixagem do álbum Circulado de modo que não via como encontrar tempo e energia para escrever o tal ensaio Mas terminei fazendoo Entre uma sessão e outra nas próprias esperas de estúdio sempre prolongadas nas horas roubadas ao sono difícil escrevi um texto sincero sobre Carmen Nele eu punha a figura da pequenina cantora que é a parte mais conhecida do Brasil no mundo na perspectiva do movimento tropicalista e este na perspectiva da mpb Havia muitos nomes de colegas muitos deles obscuros para um leitor norteamericano e meu fraseado era demasiado barroco de modo que tive muitas e longas conversas com a editora negociando palavras referências ordem de parágrafos O que me deu mais trabalho do que escrever propriamente mas a mulher com quem eu falava sempre pelo telefone era tão interessante soava tanto como o que gosto em senhoras refinadas de Nova Iorque que isso foi também mais prazeroso do que a escrita E o texto final saiu mais fiel ao meu primeiro impulso do que eu e essa editora teríamos acreditado ser possível Por causa do que se sugeria no artigo a respeito do tropicalismo e por causa do tom com que isso era feito um editor de Nova Iorque achou que ali se insinuava um livro Escreveume nesse sentido Fiquei surpreso e grato mas respondilhe que não tinha intenção de escrever livros e que já tinha recusado insistentes ofertas para fazer isso no Brasil Mas topei encontrálo e terminei capitulando A bem dizer tomei a coisa como uma responsabilidade que eu não tinha o direito de evitar Meu tradicional respeito pelo acaso que desenha o destino me fez aceitar a tarefa Afinal do nada saíra o convite para escrever para o NYT e isso levara um editor novaiorquino a me encomendar um livro Talvez fosse uma oportunidade de valorizar e situar a experiência da música popular brasileira em termos mundiais Quando me dei conta de que aceitara a tarefa vi logo que para mim intimamente se tratava também de um pretexto para escrever e até para ler mais Era um convite para eu realizar o sonho de me aproximar dos livros diante dos quais sempre me senti intimidado Comecei então com um entusiasmo que agora já me foge a compor este aqui de cuja feitura não pensei nem uma vez em desistir desde que tomei a decisão de fazêlo mas que nunca entendi a quem poderia interessar nem mesmo se sua publicação poderia de fato se tornar útil para mim e para as coisas que me são caras Sem decidir sobre nenhum desses itens eu o completei e como diria Gertrude Stein na pele de Alice B Toklas aqui está ÍNDICE ONOMÁSTICO Abujamra Antônio 331 Alakêtu Olga do 336 Albuquerque Moacir 457 4612 486 Albuquerque Perinho 457 486 495 Alencar César de 503 Alencar José de 187 2578 Alfjohnny 367 265462 Allen Woody 495 Allende Salvador 313 Almeida Aracy de 269 Almodóvar Pedro 429 Althusser Louis 446 Álvares Cabral Pedro 13 17 Alvarez Lima Marisa 217 233 4167 Alves Ataulfo 62 174 Alves Francisco 2659 38990 Alves Lúcio 367 2656 485 Amaral Ricardo 304 307 3978 Amaral Tarsila do 241 Ambitious Lovers 5067 Ana mulher de Torquato Neto 137 193 Andrade Leny 36 124 Andrade Mário de 155 241 259 Andrade Oswald de 155 210 213 2412 2449 251 25661 272 296 384 450 454 AndreasSalomé Lou 474 Andrews Julie 476 Ângela Maria 38 Antenor padre 334 Antoine cantor francês 305 Antônio Cândido 247 257 Antônio Cícero 340 442 4469 476 498 501 Antônio Maria 38 79 137 Antonioni Michelangelo 64 Antunes Arnaldo 240 292 489 Arap Fauzi 456 Araújo Emanuel 56 Araújo Guilherme 1189 12633 139 145 157 168 173 180 188 193 200 209 2134 216 231 280 282 2979 304 319 330 3434 420 422 432 449 458 506 Arendt Hannah 286 Arnaut Daniel 223 Arnou Françoise 31 Arraes Guel 449 Arraes José Almino 44951 Arraes Miguel 64 131 420 449 451453 Arraes Gervaiseau Violeta 420 446 449 453 457 461 Assis Valente 36 343 Azevedo João Augusto 68 90 242 Babo Lamartine 83 243 Baby Consuelo 416 Bach 70 228 Baker Chet 47 65 689 Balzac Honoré de 33 Banda de Pífanos de Caruaru 73 131 Bandeira Antônio 91 Bandeira Manuel 213 339 Bardot Brigitte 32 171 187 284 Barembein Manuel 180 182 188 207 Barreto Layrton 396 Barreto Luís Carlos 17 188 501 Barros Fernando 90 482 Barros Théo de 281 Barroso Ary 36 38 83 269 Bartók Bela 236 Bastos Othon 68 Bastos Ronaldo 446 Batista Wilson 36 BeatBoys 168 1701 173 189 299 Beatles The 45 131 1323 141 16871174180 209 238 247 256 263 2702 290 299 381 402 438 440 478 Beauvoir Simone de 260 333 474 Beethoven 60 Belina exmulher de Gilberto Gil 179 Bello de Carvalho Hermínio 164 Belmondo JeanPaul 32 Ben Jorge Benjor Jorge Benjor Jorge 45 47 1969 233 263 270 273 28990 305 331 342 417 4878 508 Bennett Tony 46 Bense Max 236 Bergier Jacques 93 Bergman Ingmar 102 Bergman Ingrid 33 Berio Luciano 2389 Berkeley Busby 333 Bernardete Baby Consuelo Berry Chuck 41 47 Beta Maria Bethânia Beto Gil Gilberto Bichos Os exBeat Boys 299 Big Brother and the Holding Company 270 Bill Haley e seus Cometas 41 47 Bira Pedro 416 Bishop Elizabeth 156 249 252 Blanco Billy 174 Bo Bardi Lina 59 Boal Augusto 756 812 845 879156 217 224 2412 2456 450 495 Bob Nelson 30 Bolão A Outra Banda da Terra 495 Bolkan Florinda 4589 Boni Regina 299 Bonnie mulher de David Byrne 507 Bonvicino Regis 483 Borba Emilinha 209 503 Borges Jorge Luis 266 424 437 450 Boscojoão 292439 Bôscoli Ronaldo 36 15960 Boulez Pierre 212 2389 Bowie David 479 495 Braga Rubem 137 Braguinha João de Barro 464 Brahms 60 237 Brandão Arnaldo 495 Brandão Yulo 217 Brando Marlon 150 190 Brecht Bertolt 5960 82 101 244 462 Bressane Júlio 226 42831 470 496 Brett Guy 426 Brizola Leonel 63 313 Brown Carlinhos 50 240 Brown James 168 263 270 331 Bmbeck David 69 Buarque Chico 79 83 1323 13841 1589 161 1736 1789 186 223 2305 244 254 271 274 282 296 319 329 351 384 464 487 509 Bubu 41 68 Bunuel Luis 101 104 297 342 Byrne David 5 5078 Cabral de Melo Neto João 7 135 14 í 212 218 260 272 339 484 491 Cabrera Infante Guillermo 4234 Caetano Marcelo 420 Cage John 60 192 221 2379 Caldas Sílvio 38 2278 2656 269 295 Calheiros Augusto 26970 Callado Antônio 374 Calligaris Contardo 24851 Camões Luís de 165 500 Campeio Cely 45 Campeio Tony 45 Campos Álvaro de 339 Campos Augusto de 135 176 20830 233 2369 246 2601 272 281 303 395 483 48790 Campos Haroldo de 135 2113 21721 225 228 238 2467 423 Campos Roberto 313 Camus Albert 59 365 Camus Mareei 2523 Canosa Fabiano 506 Cantuária Vinícius 495 Caó deputado do pdt 312 Capiba 54 Capinan José Carlos 1312 1346 140 1423 145 147 182 211 218 220 275 2956 457 464 Cara de Cavalo 306 396 Cardinale Claudia 32 171 Cardoso Elisete 80 158 Cardoso Ivan 143 Cariocas Os 36 Carlinhos irmão de Pepeu Gomes 414 Carmen mulher de Haroldo de Campos 220 Carol Martine 31 Carré Silvina 5 Carroll Lewis 225 272 Cartola 39 Carvalho Ana Amélia de Anamelinha 4823 Cassiano Ricardo 216 241 Castelo Branco Humberto de Alencar 128177 3134 316 Castro Alves Antônio de 220 257 339 465 Castro Auto de 236 311 Castro Breno de 236 Castro Fidel 316 424 Castro Ruy 287 Castro Sônia 6l 91 276 Cavalcanti Alberto 99 Cavalcanti Flávio 206 Cavalcanti Péricles 321 4234 444 Caymmi Dori 125 132 156 1812 230 305 439 508 Caymmi Dorival 36 38 62 83 856 123 125 174 179 1812 214 2224 305 335 462 Caymmi Nana 162 179 Celestino Vicente 2935 Cesário Alvim Tereza 137 Chacon Alex 945 102 208 219 Chacrinha Abelardo Barbosa 114 130 141 1667 193 244 453 Charisse Cyd 30 Charles Ray 54 6870 89 486 Chaves Jucá 331 Chico Anysio 454 Cid filho de Augusto de Campos 220 Cipó maestro 156 Clara irmã de Caetano Veloso 55 340 396 Clark Lygia 51 70 91 426 Claudel Paut 58 Cláudia irmã de Dedé 455 Claudina mãe de Gilberto Gil 290 Cocteau Jean 239 Coelho Lena 61 276 Collor de Melo Fernando 415 Colombo Cristóvão 13 Comte Auguste 414 Coppola Francis Ford 259 Coquejo Carlos 68 Corisco 186 Correia Djalma 47 145 276 Cortes Araci 87 Costa Armando 75 Costa Carmen 38 Costa e Silva Artur da 128 316 452 Costa e Silva Yolanda 317 Costa Gal 47 68 74 78 85 12531 133 1456 148 156 272 275 27980 284 291 295 311 32931 342 456 459 470 508 Costa Mônica 4823 Costa Pedro 482 Costa Tony 483 Coutinho Carlos Nelson 245 Cozzela Damiano 185 Crosby Bing 2657 cummings e e 213 2189 272 437 Cunha Euclides da 101 Curtis Tony 150 Dada 186 Dale Lennie 124 1624 204 304 Danduran John 301 Dante Alighieri 229 Dario Franklin 121 170 174 Darling Brian 4467 Dasinho 31 41 68 Dávila Roberto 34 Davis Bette 30 Davis Miles 47 68 De Sica Vittorio 60 Dean James 47 Debussy Claude 224 Dedé exmulher de Caetano Veloso 8990 945 102 1134 119 1267 129 140 146 1936 2001 205 217 220 232 299 303 3113 317 321 3235 3278 34750 353 35960 3768 382 3914 396 398 405 4146 418 444 446 449 452545894614656468 477 480 482 488 496 Degas Edgar 59 90 Deleuze Gilles 69 240 409 Delfim Netto Antônio 469 Delon Alain 32 Descartes René 448 Di Maggio 154 Dias Antônio 273 275 306 Dias Baptista Arnaldo 1712 291 Dias Baptista Sérgio 1712 291 Dias Rosa Maria 321 424 Dibell Julian 40146 Diegues Caca 220 259 4289 Dirceu baterista 1856 Djavan 92 439 508 Dodô e Osmar 4634 Domingas então noiva de Jorge Ben 198 Donato João 36 Donovan 4589 Doors The 171 263 Dors Diana 284 Dostoiévski Fiodor 225 Douglas Ann 294 497 Drummond de Andrade Carlos 113 1367 339 Duarte Anselmo 100 Duarte Rogério 10614 1178 120 1267 12931 1371457 150 1535 157 186 189198 202 2089 215 217 219 241 256 260 2735 331 352 418 426 456 460 4712 483 Duchamp Mareei 229 Duprat Rogério 171 180 183 185 220 2723 27980 282 2901 2945 299 417 4878 490 Duran Dolores 67 103 Dylan Bob 3470 214 2712440 Farth Wind Fire 495 Edite irmã de Nicinha 3356 Edson Luís 317 Eichbauer Hélio 243 Eisenstein Sergei 70 101 Eliade Mircea 93 Elis Regina 74 85 1224 15863 174 179 1834 187 256 329 508 Emerson Lake and Palmer 291 Erasmo Carlos 458 129 197 20910 459 Experience 299 Faissal Floriano 503 Faissal Roberto 295 Faria Paulo 276 Faria Rena 276 Famey Dick 367 2656 Faro Fernando 331 Felix Maria 31 Fellini Federico 312 64 104 Fenelon padre 334 Fenollosa 438 Fernandes Millôr 204 469 Ferreira Gullar José Ribamar 75 181 215 3734 Figueiredo Abelardo 168 Filhos de Gandhi 289 Fitzgerald Ella 47 68 124 Fitzgerald Francis Scott 437 Fonseca Rubem 7 F ortuna Perfeito 372 376 382 Francis Paulo 137 147 313 374 469 482 Francisco Carlos 209 Franco Walter 487 489 496 Fred 4l6 Freire Paulo 63 3089 450 Freitas Érico de 60 Frenéticas As 503 Freud Sigmund 93 300 401 476 483 Freyre Gilberto 17 192 Fróes Perna 145 Fukuyama 498 Furtado Celso 50 Gabus Mendes Cassiano 331 Gal Francis 128 Galhardo Carlos 269 Galvão 416 Gandhi Indira 317 Garcia Lorca Federico 70 85 113 339 Gardel Carlos 264 Gardner Ava 33 395 Garland Judy 689 Gellner Ernest 499 Gerchman Rubens 2745 306 Gershwin George 60 222 Gervaiseau Pierre 420 Giannetti Eduardo 501 Gil Gilberto 478 68 80 85 92 94 122 124 126 12933 137 141 14550 155 1589 1613 16571 174 17981 183 185 189 193 1967 199 2045 2167 220 223 22930 2324 248 256 260 269 2726 2789 28191 294 6 2989 3025 308 3101 317 319 3213 32931 341 343 34852 354 358 3634 366 3701 3736 3856 395 401 4059 4139 422 425 429 4312 439 4445 449 464 4678 496 508 Gil Moreira José pai de Gilberto Gil 193 2878 290 Ginsberg Allan 108 Gismonti Egberto 508 Giuffre Jimmy 47 69 Gobineau Joseph Arthur 111 Godard JeanLuc 64 70 1123 192 202 240 253 260 272 279 466 Gomes Carlos 258 Gomes Pepeu 414 Gonçalves Dias Antônio 339 Gonçalves Nelson 38 54 Gonzaga Carlos 45 Gonzaga Luiz 29 255 390 456 Gonzaguinha 454 Gorki Máximo 241 Goulart João 64 312 314 Gould Leslie 4589 Gouveia de Bulhões 313 Granda Isabel Chabuca 306 Green Morton Thomas 400 Grünewald José Lino 228 Guarnieri Gianfrancesco 83 182 Guattari Félix 409 Guerra Ruy 100 Guevara Ernesto Che1 1501 316 343 Guimarães Álvaro Alvinho 6l5 93 94 111 145 416 483 Guimarães Arthur 425 442 444 Guimarães Maria Helena 425 442 Guimarães Rosa João 7 70 144 151 155 260 Hayek Friedrich A von 313 Hayworth Rita 30 Heidegger Martin 108 113 240 444 446 460 Helena Ignez 60 428 Hemingway Ernest 438 Hendrix Jimi 247 26970 272 288 290 299 302 3045 332 440 Hercília 57 Hernández Miguel 135 Herzog Werner 259 Hilda empregada 347 Hilton major 388 392 3945 397401 406 Hime Francis 125 132 156 230 306 Hirszman Leon 4834 Hitchcock Alfred 70 Hitler Adolf 16 443 Hobsbawm Eric 292 500 Hohagen Sandino 185 189 Hõlderlin 108 301 Holiday Billie 47 65 689 Homero 1523 Hopper Edward 274 Houaiss Antônio 120 Huntington Samuel P 497500 Hurvitz Bob 507 Huxley Aldous 325 Ilê Aiyê 50 289 Improta Tomaz A Outra Banda da Terra 495 Incredible String Band 440 Irene irmã de Caetano Veloso 55394 Ives Charles 2212 Jackson do Pandeiro 29 Jackson Mahalia 204 263 Jackson Michael 270 Jacobina Nelson 445 Jagger Mick 345 70 334 414 440 479 Jairzinho 428 Jakobson August 236 Jasmin pintor e cenógrafo português 425 Jesus Clementina de 39 87 164 João Gilberto 18 28 357 3941 467 57 62 6770 78 86 89 91 95 1234 1434 156 1745 181 183 191 20710 218 2224 2268 233 249 50 255 258 2637 281 2845 294 305 328 419 439 457 459 460 485 4901 502 504 João vi dom 250 Jobim torn 36 39 60 78 117 183 187 222 227 2323 277 285 42930 460 464 504 506 Joplin Janis 26970 331 Jorginho irmão de Pepeu Gomes 414 Joyce James 70108 212 272437 466 Jung Carl Gustav 93 333 Jurado Katy 47 Kafka Franz 108 Kant Emmanuel 311 501 Kapucinski Ryszard 498 Kardec Allan 414 Kazan Elia 259 Keaton Buster 424 Keeler Paul 426 Kelly Gene 30 Kerouac Jack 108 Khoury Walter Hugo 100 142 Kilkerry Pedro 483 King Cole Nat 29 69 Koellreutter Hansjoachim 60175 276 Kubrick Stanley 2l6 Lacan Jacques 477 Lacerda Carlos 3124 Lancaster Burt 153 Lara Ivone 508 Lara Resende Otto 137 Larsh Christopher 4812 Lavigne Cristiana 7 Lavigne Paula 496 Leão Nara 36 70 729 86 121 123 147 158 1601 179 2745 279 281 329 Led Zeppelin 440 Lee Hooker John 263 Leejones Rita 1712 2912 Lênin Vladimir Ilitch Ulianov dito 401 LennonJohn 34 70 170 440 Leone Sérgio 259 LéviStrauss Claude 237 448 450 504 Lichtenstein Roy 256 Lila mulher de Décio Pignatari 220 Lima Jorge de 394 Lima Marina 4478 Limajr Walter 132394 Liminha 291 Lindsay Arto 239 5067 Linger David 433 Lins Ivan 454 508 Lispector Clarice 7 28 66 151 2602 Little Richard 41 47 Lobo Edu 80 83 92 951191223 125 130 1323 138 141 174 211 223 230 233 319 464 508 Lobo Fernando 38 123 Loüobrigida Gina 32 Lona Fernando 145 Loren Sophia 32 Lowell Robert 253 Luís Artur coronel 408 413 Luís César companheiro de Caetano Veloso no ginásio 31920 Lukács Georg 245 Lutero Martinho 500 Luz Alcivando 47 80 145 2767 Lygia mulher de Augusto de Campos 215 220 Lyra Carlos 36 68 123 132 158 174 233 281 285 288 Mabe Manabu 901 Mabel irmã de Caetano Veloso 55 712 396 Macalé Jards 354 457 461 Mace Ralph 432 434 4568 461 Macedo Soares Lota 113 118 Machado de Assis Joaquim Maria 258 Machado de Carvalho Paulo 122 15860 180 32930 Machado Duda 635 94 1102 117 1367 1456 149 1512 2167 279 321 327 483 Machado Edson 119 124 Maciel Luís Carlos 427 4534 469 482 Madi Tito 103 Mãe Menininha do Gantois 496 Mãe Mina tia de Caetano Veloso 27 Magalhães Juracy 52 Maia Tim 45 47 197 Maiakóvski Vladimir 212 Malévitch Kazimir 212 Malfatti Anita 241 Mallarmé Stéphane 212 2189 Malle Louis 187 Mancini Henry 476 Mangano Silvana 32 Mann Heinrich 84 Mann Thomas 84 498 Mao Tsétung 443 Marcelo Beat Boys 169 Marcondes Geni 175 Marcus Vinícius 487 Marcuse Herbert 401 443 Maria Bethânia 41 47 5481 856889094 106 11821 123 126 12830 133 13840 1458 156 1613 181 193 208 219 223 241 255 263 2724 276 279 298 315 340 409 428 4524 456 508 Maria Carpeaux Otto 16 238 Maria Odete 157 208 Mariani Clemente 312 Marighella Carlos 342 427 Marinetti Filippo Tommaso 229 247 Marley Bob 289 495 Marques Carlos 308 319 Martim Gonçalves Eros 59 242 Martinez Corrêa José Celso 83 113 2416 256 295 303 3845 491 495 Martins Herivelto 38 Marx Harpo 166 Marx Karl 113 3001 308 311 401 4434 Masina Giulietta 31 Mathis Johnny 69 Matisse Henri 90 Maurice técnico de som 46l Maurício Beat Boys 169 Mautner Jorge 245 4427 449 4901 Maysa 3940 103 McCartney Paul 170 2389 440 McCullers Carson 66 Medaglia Júlio 171185189 207 213 Medalha Marília 87 Medalla David 426 Mediei Emílio Garrastazu 314 452 469 Meireles Cecília 339 Melville Herman 108 Mendes Sérgio 36 508 Mendonça Newton 36 Menescal Roberto 36 156 305 Menezes Monsueto 486 Mesquita Antônio 396 Midani André 485 Milhito Osmar 119 Mille Cecil B de 150 Miller Sidney 132 Minha Daia tia de Caetano Veloso 24 301 146 Minha Ju tia de Caetano Veloso 278 Miranda Carmen 184 186 2679 455 462 479 481 509 Mirian mulher de Cabrera Infante 423 modern Jazz Quartet 47 Mojica Marins José Zé do Caixão 1423 Moles Abraham 236 Molina Rubens 400 Mondrian Piet 70 91 212 220 229 240 426 Monet Claude 239 Monroe Marilyn 23 30 323 52 150 154 187 284 Monteiro Ciro 36 158 222 Monteiro Dóris 38 Monteiro Lobato José Bento 170 519 Montenegro Fernanda 823 Moraes Moreira 416 Moraes Vinícius de 72 78 122 143 174 187 2223 227 252 281 288 339 Moreau Jeanne 64 Moreira Airto 158 508 Moreno Tuti 457 461 Morin Edgar 1124 1523 167 202 209 Morse Richard 240 Mothers of Invention 263 Motown 168 Motta Chico 31 41 68 Motta Nelson 192 Mozart Wolfgang Amadeus 60 113 229 MPB4 4534 Muniz Maria 66 Musil 108 Mutantes Os 113 171 180 183 189 2167 2723 279 282 2912 295 299300 302 3045 331 342 Nandi ítala 243 Napoleão 250 Nara filha de Gilberto Gil 308 Nascimento Milton 92 223 277 290 294 419 446 4856 508 Nelson Cavaquinho 39 Ney Nora 38 Nice exmulher de Roberto Carlos 424 Nicinha irmã de Caetano Veloso 32 55 58 335 353 4089 Niemeyer Oscar 218 277 Nietzsche Friedrich 108 142 240 4424 446 483 5001 Nogueira Neto Wanderlino 241 278 328 Nogueira Paulo 305 Nono Luigi 238 Norma amiga da irmã de Caetano Veloso 3401 Novis Pedro 701 Novis Renato 71 Novos Baianos 183 4l6 470 Ogerman Klaus 40 Oiticica Hélio 17 188 217 275 278 3067 396 4174257 501 Oliveira tenente 402 Oliveira Lima Luís Tenório de 7 3178 Olodum 50 289 Ono Yoko 440 Outra Banda da Terra A 495 Ovídio 228 Palmer Robert 476 Pampanini Silvana 32 Paschoal Hermeto 508 Pasolini Pier Paolo 101 259 Paula José Agrippino de 1081 1134 118 120 130 137 145 1489 151 5 157 172 181 198 202 2089 2167 241 245 256 263 2745 291 303 306 426 471 48791 Paulinho da Viola 87 117 118 175 233 305 331 464 508 Paulo tenente 398 Pedro Raimundo 29 Peixoto Cauby 38 503 Pele 428 Pele discotecário 3978 Penna Hermano 416 Pereira Geraldo 36 174 459 Pereira Marco 305 Pereira dos Santos Nelson 100 484 Pernambuco compositor 38 Pessoa Fernando 113 3002 332 3389 415 448 466 Peticov Antônio 269 271 Piaf Edith 689 Picasso Pablo 90 238 500 Picchia Menotti dei 241 Piero decorador 2012 Pignatari Décio 43 88 112 2113 2157 21921 225 227 236 238 246 279 296 442 498 Pingarrilho 190 Pinheiro padre 311 334 Pinho Roberto 924 145 333 3378 341 349 415 420 4667483 Pink Floyd 263 322 440 Pitanga Antônio 60 Piti 85 145 Pixinguinha 38 Podestà Rossana 32 Pontes Paulo 75 Portela Geraldo 63 284 Porter Cole 437 Pound Ezra 122 2123 218 223 228 236 438 Powell Baden 36 78 305 Powels Louis 93 Prado Paulo 479 481 Presley Elvis 23 30 33 35 40 467 512 254 300 478 Prince 270 Proust Mareei 6970 113 240 352 Purim Flora 508 Quinzinho pai de Norma amiga da irmã de Caetano Veloso 341 Rabelo Raphael 305 Ramos Graciliano 134 151 4834 Ramos Tinhorão José 114 209 Randal Juliano 396 399 Rangel Flávio 122 137 Rato Grosso Agnelo 31 Raulzito e Os Panteras 48 168 189 Reis Dilermando 305 Reis Équio 90 Reis Mário 38 226 228 Reisner Lou 4323 439 456 Renoir Auguste 59 Rey Geraldo dei 60 Ribeiro Solano 92 122 Richard Keith 440 Rimbaud Arthur 228 Risério Antônio 16 4823 Roberto Carlos 456 70 89 12021293013231411581623 1678 1834 186 193 1967 20811 256 265267 273 342 381 402 424 443 459 461 Rocha Adamastor 165 Rocha Anecir 106 442 Rocha Glauber 59 62 99101 1034 106 110 142 144 1512 154 165 18991215 21820 242 244 25760 281 301 306 340 423 42831 442 4534 46970 Rocha Hélio 134 Rocha Brito Brasil 227 Rodrigues Amália 689 Rodrigues Jair 158 161 179 Rodrigues Lupicínio 2134 221 460 Rodrigues Nelson 62 137 450 474 Roland filho de Augusto de Campos 220 Rolling Stones 45 171 256 2712 439 441 Romero César 268 Ronnie Von 291 329 Roosevelt Franklin Delano 315 Rorem Ned 440 Rosa Noel 38 67 74 76 79 83 174 184 187 269 Rose Axl 479 Rossellini Roberto 60 101 Rouanet Sérgio Paulo 415 Russell Jane 33 Russell Ken 268 Sá Carneiro Mário de 448 Sá Wanda 230 306 Sabu ator 333 Salazar Antônio de O 420 Salgado Laís 276 284 313 Salgado Plínio 241 Salomão Waly 1456 216 219 3178 321 3289 456 483 Sandra irmã de Dedé e exmulher de Gilberto Gil 119 232 321 323 348 414 446 Santana Roberto 77 284 310 418 Santos Benil 454 Santos Cléber 120 Santos Edgar 58 276 300 Sargentelli 120 Sartre JeanPaul 113 167 260 333 472 Satie Erik 224 Scelsi Giacinto 238 Schemberg Mário 1523 188 Schere Peter 5067 Schlesinger Jr Arthur 499 Schònberg 228 Schumann 222 Schwarz Roberto 82 450 Science Chico 240 Sebastião dom 300 339 415 420 466 Seixas Raul 45 479 51 Senna Orlando 67 284 Senna Virgildásio 312 Sérgio Mendes Brazil 66 196 Sérgio Ricardo 361323 159 230 Seurat Georges 220 Severo Marieta 138 141 Sganzerla Rogério 42830 470 496 Shakespeare William 4378 Silva Abel 117 Silva Agostinho da 93 300 338 Silva Alberto 63 Silva Carlos Alberto 63 284 Silva Orlando 36 38 222 2268 2637 294 358 Silva Sinval 455 Silva Walter PicaPau 124 Silveira Ênio 366 3689 374 Silveira Walter da 59 645 Simonal Wilson 80 124 1589 161 163 166 Sinatra Frank 29 2646 437 440 Smetak Walter 289 Smith Patti 178 Soares Jô 343 349 Sontag Susan 259 Sousa Áureo de 457 461 Sousândrade 136 211 218 284 505 Souza Paulo César de 4823 Spencer Nilda 72 Spielberg Steven 259 Stálin Iosif 444 Stein Gertrude 437 510 Steinbeck John 394 Stendhal Henri Beyle dito 70 476 Stockhausen 212 2389 270 Stockler Maria Esther 110 113 216279471487 Stravinski 228 Streisand Barbra 440 Sullivan Andrew 475 478 4812 Sumida preso político 374 Sumidinha 374 378 Swift Jonathan 108 1523 Swoboda 243 Tapajós trio elétrico 466 Tarantino Quentin 429 Taylor Elizabeth 33 Tchekhov Anton 244 Telles Sylvia 95 121 123 Thelonious Monk 47 65 Timbalada 50 Tiranosaurus Rex 440 Toklas Alice B 510 tom Zé 47 51 85 145 196 231 2759 331 342 344 496 508 Tony Beat Boys 169 Toquinho 13841 271 305 Torquato Neto 132 134 1367 1417 149 162 163 216 220 231 272 2956 464 470 Tostão 428 ToulouseLautrec Henri de 90 Toyo Beat Boys 169 Travesso Nilton 139 Trenet Charles 266 Trueba Fernando 101 Truffaut François 108 Tudor David 60 Umehara Takeshi 499 Unamuno Miguel de 7 Updike John 253 Ustvólskaia 238 Vale João do 39 72 Valentino Rodolfo 163 Valle Marcos 223 Van Gogh Vincent 59 90 Vandré Geraldo 1589 1614 230 235 2802 329 351 Varèse Edgar 2389 Vargas Getúlio 312 443 445 Vargas Llosa Mario 4734 Vasconcellos Marcos 18990 192 Vasconcelos Naná 4878 508 Vaughan Sarah 47 Vaz de Caminha Pero 15 1856 256 Velásquez Diego Rodríguez de Silva y 70 202 229 Velloso Claudionor V Dona Cano mãe de Caetano Veloso 28 55 61 81 193 283 288 290 333 396 405 409 465 476 Velloso José T pai de Caetano Veloso 258 545 61 72 81 119 194 255 290 315 320 363 396 405 409 4645 476 Velloso Roberto 27 558 61 315 Velloso Rodrigo 7 55 58 63 26l 333 353 409 Veloso Moreno filho de Caetano Veloso 482 Veloso tom filho de Caetano Veloso 496 Veloso Zeca filho de Caetano Veloso 496 Ventura Zuenir 233 Verdi 2578 Vespar Geraldo 305 Vianna Filho Oduvaldo 75 246 Vicente Gil 284 Vila Martinho da 402 419 VillaLobos 113 229 241 2579 Volpi Alfredo 220 Wagner Heinrich 499 Wanderléa 127 Warhol Andy 33 70 256 Washington George 500 Weather Report 495 Webern Anton von 70 212 221 237 239 Weiss Nancy 506 Weissman Sidney 121 Welles Orson 190 Wertham Frederic 294 White Edmund 482 Who The 440 Widmer Ernest 313 Wilde Oscar 33 Wilker José 261 Williams Esther 333 Willie Beat Boys 169 Winwood 440 Wisnik José Miguel 5 Wittgenstein Ludwig 236 268 Wonder Stevie 270 495 Yamamoto alm Isoroku 14 Yes 291 Zampari Franco 99 Zeca Pagodinho 292 Zé Kéti 39 72 77 79 Zé Luís A Outra Banda da Terra 495 Zeffirelli Franco 4589 ESTA OBRA FOI COMPOSTA PELO ESTÚDIO OLM EM GARAMOND TEVE SEUS FILMES GERADOS PELO BUREAU 34 E FOI IMPRESSA PELA HAMBURG GRÁFICA EDITORA EM OFFSET SOBRE PAPEL PÓIJÍN SOFT DA COMPANHIA SUZANO PARA A EDITORA SCHWARCZ EM OUTUBRO DE 1997