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Direitos Humanos

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AÇÕES AFIRMATIVAS DA PERSPECTIVA DOS DIREITOS HUMANOS FLA FLA FLA FLA FLAVIA PIO VIA PIO VIA PIO VIA PIO VIA PIOVESAN VESAN VESAN VESAN VESAN Faculdade de Direito e Programa de PósGraduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo piovesandialdatacombr RESUMO Objetiva o artigo desenvolver uma análise a respeito das ações afirmativas sob a perspectiva dos direitos humanos Inicialmente trata da concepção contemporânea de direitos huma nos introduzida pela Declaração Universal de 1948 com ênfase na universalidade indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos Em um segundo momento são apreciadas as ações afirmativas da perspectiva dos direitos humanos com destaque dos valo res da igualdade e diversidade Por fim são avaliadas as perspectivas e desafios para a imple mentação da igualdade étnicoracial na ordem contemporânea AÇÃO AFIRMATIVA DIREITOS HUMANOS DISCRIMINAÇÃO RACIAL IGUALDADE DE OPORTUNIDADES ABSTRACT AFFIRMATIVE ACTION FROM A HUMAN RIGHTS PERSPECTIVE The article aims to develop an analysis on affirmative action from a human rights perspective Initially it deals with the contemporary conception of human rights introduced by the Universal Declaration of 1948 stressing their universality indivisibility and interdependence At a second stage affirmative action is analyzed from a human rights perspective stressing the values of egalitarianism and diversity Finally the perspectives and challenges to implement ethnicracial egalitarianism in the contemporary order are assessed AFFIRMATIVE ACTION HUMAN RIGHTS RACIAL DISCRIMINATION EQUAL OPPORTUNITIES Cadernos de Pesquisa v 35 n 124 p 4355 janabr 2005 43 Este texto embasou a intervenção Ações Afirmativas sob a Perspectiva dos Direitos Humanos apresentada na Conferência Internacional sobre Ação Afirmativa e Direitos Humanos no Rio de Janeiro em 16 e 17 de julho de 2004 44 Cadernos de Pesquisa v 35 n 124 janabr 2005 Flavia Piovesan Focalizarei este tema pelo prisma jurídico destacando três reflexões cen trais a concepção contemporânea de direitos humanos o modo de conceber as ações afirmativas da perspectiva dos direitos humanos e as perspectivas e desafios para a implementação da igualdade étnicoracial na ordem contem porânea A CONCEPÇÃO CONTEMPORÂNEA DE DIREITOS HUMANOS Como reivindicações morais os direitos humanos nascem quando de vem e podem nascer Como realça Norberto Bobbio 1988 os direitos hu manos não nascem todos de uma vez nem de uma vez por todas Para Hannah Arendt 1979 os direitos humanos não são um dado mas um construído uma invenção humana em constante processo de construção e reconstrução1 Com põem um construído axiológico fruto da nossa história de nosso passado de nosso presente fundamentado em um espaço simbólico de luta e ação social No dizer de Joaquin Herrera Flores os direitos humanos compõem a nossa racionalidade de resistência na medida em que traduzem processos que abrem e consolidam espaços de luta pela dignidade humana Realçam sobretudo a esperança de um horizonte moral pautado pela gramática da inclusão refle tindo a plataforma emancipatória de nosso tempo Ao adotar o prisma histórico cabe realçar que a Declaração de 1948 inovou extraordinariamente a gramática dos direitos humanos ao introduzir a chamada concepção contemporânea de direitos humanos marcada pela uni versalidade e indivisibilidade desses direitos Universalidade porque clama pela extensão universal dos direitos humanos com a crença de que a condição de pessoa é o requisito único para a titularidade de direitos considerando o ser humano como essencialmente moral dotado de unicidade existencial e digni dade Indivisibilidade porque ineditamente o catálogo dos direitos civis e po 1 A respeito ver também Celso Lafer 1988 No mesmo sentido afirma Ignacy Sachs Não se insistirá nunca o bastante sobre o fato de que a ascensão dos direitos é fruto de lutas que os direitos são conquistados às vezes com barricadas em um processo histórico cheio de vicissitudes por meio do qual as necessidades e as aspirações se articulam em reivindicações e em estandartes de luta antes de serem reconhecidos como direitos 1998 p156 Para Allan Rosas O conceito de direitos humanos é sempre progressivo O debate a respei to do que são os direitos humanos e como devem ser definidos é parte e parcela de nossa história de nosso passado e de nosso presente 1995 p 243 45 Cadernos de Pesquisa v 35 n 124 janabr 2005 Ações afirmativas da líticos é conjugado ao catálogo dos direitos econômicos sociais e culturais A Declaração de 1948 combina o discurso liberal e o discurso social da cidada nia conjugando o valor da liberdade ao valor da igualdade A partir da Declaração de 1948 começa a desenvolverse o Direito In ternacional dos Direitos Humanos mediante a adoção de inúmeros instrumen tos internacionais de proteção A Declaração de 1948 confere lastro axiológico e unidade valorativa a esse campo do Direito com ênfase na universalidade indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos O processo de universalização dos direitos humanos permitiu a forma ção de um sistema internacional de proteção desses direitos Esse sistema é integrado por tratados internacionais de proteção que refletem sobretudo a consciência ética contemporânea compartilhada pelos Estados na medida em que invocam o consenso internacional acerca de temas centrais dos direitos humanos fixando parâmetros protetivos mínimos Nesse sentido cabe des tacar que até 2003 o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos contava com 149 Estadospartes o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos So ciais e Culturais contava com 146 Estadospartes a Convenção contra a Tor tura contava com 132 Estadospartes a Convenção sobre a Eliminação de To das as Formas de Discriminação Racial contava com 167 Estadospartes a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher contava com 170 Estadospartes e a Convenção sobre os Direitos da Criança apresentava a mais ampla adesão com 191 Estadospartes2 O eleva do número de Estadospartes desses tratados simboliza o grau de consenso internacional a respeito de temas centrais voltados aos direitos humanos Ao lado do sistema normativo global surgem os sistemas regionais de proteção que buscam internacionalizar os direitos humanos nos planos regio nais particularmente na Europa América e África Consolidase assim a con vivência do sistema global da Organização das Nações Unidas ONU com instrumentos do sistema regional por sua vez integrado com o sistema ame ricano o europeu e o africano de proteção aos direitos humanos Os sistemas global e regional não são dicotômicos mas complementa res Inspirados pelos valores e princípios da Declaração Universal compõem o espectro instrumental de proteção dos direitos humanos no plano interna 2 A respeito consultar Human Development Report 2003 46 Cadernos de Pesquisa v 35 n 124 janabr 2005 Flavia Piovesan cional Nessa ótica os diversos sistemas de proteção de direitos humanos interagem em benefício dos indivíduos protegidos Ao adotar o valor da pri mazia da pessoa humana esses sistemas complementamse somandose ao sistema nacional de proteção a fim de proporcionar a maior efetividade possí vel na tutela e promoção de direitos fundamentais Estes são a lógica e o con junto de princípios próprios do Direito dos Direitos Humanos AS AÇÕES AFIRMATIVAS DA PERSPECTIVA DOS DIREITOS HUMANOS Como já mencionado a partir da Declaração Universal de 1948 começa a desenvolverse o Direito Internacional dos Direitos Humanos mediante a adoção de inúmeros tratados internacionais voltados à proteção de direitos fun damentais A primeira fase de proteção dos direitos humanos foi marcada pela tô nica da proteção geral que expressava o temor da diferença que no nazismo havia sido orientada para o extermínio com base na igualdade formal A título de exemplo basta avaliar quem é o destinatário da Declaração de 1948 bem como basta atentar para a Convenção para a Prevenção e Repressão ao Cri me de Genocídio também de 1948 que pune a lógica da intolerância pauta da na destruição do outro em razão de sua nacionalidade etnia raça ou re ligião Tornase contudo insuficiente tratar o indivíduo de forma genérica geral e abstrata Fazse necessária a especificação do sujeito de direito que passa a ser visto em sua peculiaridade e particularidade Nessa ótica determinados sujeitos de direito ou determinadas violações de direitos exigem uma resposta específica e diferenciada Vale dizer na esfera internacional se uma primeira vertente de instrumentos internacionais nasce com a vocação de proporcio nar uma proteção geral genérica e abstrata refletindo o próprio temor da di ferença percebese posteriormente a necessidade de conferir a determina dos grupos uma proteção especial e particularizada em face de sua própria vulnerabilidade Isso significa que a diferença não mais seria utilizada para a ani quilação de direitos mas ao revés para sua promoção Nesse cenário por exemplo a população afrodescendente as mulhe res as crianças e demais grupos devem ser vistos nas especificidades e pecu 47 Cadernos de Pesquisa v 35 n 124 janabr 2005 Ações afirmativas da liaridades de sua condição social Ao lado do direito à igualdade surge também como direito fundamental o direito à diferença Importa o respeito à diferen ça e à diversidade o que lhes assegura um tratamento especial Destacamse assim três vertentes no que tange à concepção da igual dade a igualdade formal reduzida à fórmula todos são iguais perante a lei que no seu tempo foi crucial para a abolição de privilégios b igualdade ma terial correspondente ao ideal de justiça social e distributiva igualdade orien tada pelo critério socioeconômico e c igualdade material correspondente ao ideal de justiça como reconhecimento de identidades igualdade orientada pelos critérios gênero orientação sexual idade raça etnia e demais critérios Para Nancy Fraser a justiça exige simultaneamente redistribuição e re conhecimento de identidades Como atesta a autora O reconhecimento não pode reduzirse à distribuição porque o status na so ciedade não decorre simplesmente em razão da classe Tomemos o exemplo de um banqueiro afroamericano de Wall Street que não pode conseguir um táxi Neste caso a injustiça da falta de reconhecimento tem pouco a ver com a má distribuição Reciprocamente a distribuição não pode reduzirse ao reconhecimento porque o acesso aos recursos não decorre simplesmente em razão de status Tomemos como exemplo um trabalhador industrial especi alizado que fica desempregado em virtude do fechamento da fábrica em que trabalha em vista de uma fusão corporativa especulativa Nesse caso a injusti ça da má distribuição tem pouco a ver com a falta de reconhecimento Proponho desenvolver o que chamo concepção bidimensional da justiça Essa concepção trata da redistribuição e do reconhecimento como perspectivas e dimensões distintas da justiça Sem reduzir uma a outra abarca ambas em algo mais amplo 2001 p5556 Há assim o caráter bidimensional da justiça redistribuição somada ao reconhecimento No mesmo sentido Boaventura de Souza Santos 2003 afir ma que apenas a exigência do reconhecimento e da redistribuição permite a realização da igualdade3 Ainda acrescenta 3 A respeito ver ainda na mesma obra Por uma concepção multicultural de direitos huma nos p 429461 48 Cadernos de Pesquisa v 35 n 124 janabr 2005 Flavia Piovesan temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza alimente ou reproduza as desigualdades p56 É nesse cenário que as Nações Unidas aprovam em 1965 a Conven ção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial ratificada hoje por 167 Estados dentre eles o Brasil desde 1968 Desde seu preâmbulo essa Convenção assinala que qualquer doutrina de superioridade baseada em diferenças raciais é cientificamente falsa moral mente condenável socialmente injusta e perigosa inexistindo justificativa para a discriminação racial em teoria ou prática em lugar algum Adiciona a urgência de adotarse todas as medidas necessárias para eliminar a discriminação racial em todas as suas formas e manifestações e para prevenir e combater doutri nas e práticas racistas O artigo 1º da Convenção define a discriminação racial como qualquer distinção exclusão restrição ou preferência baseada em raça cor descendência ou origem nacional ou étnica que tenha o propósito ou o efeito de anular ou prejudicar o reconhecimento gozo ou exercício em pé de igual dade dos direitos humanos e liberdades fundamentais Vale dizer a discriminação significa toda distinção exclusão restrição ou preferência que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o exercí cio em igualdade de condições dos direitos humanos e liberdades fundamen tais nos campos político econômico social cultural e civil ou em qualquer outro campo Logo a discriminação significa sempre desigualdade Esta mesma lógi ca inspirou a definição de discriminação contra a mulher quando da adoção da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher pela ONU em 1979 A discriminação ocorre quando somos tratados como iguais em situações diferentes e como diferentes em situações iguais Como enfrentar a problemática da discriminação No âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos destacam se duas estratégias a repressiva punitiva que tem por objetivo punir proibir e eliminar a discriminação b promocional que tem por objetivo promover fomentar e avançar a igualdade 49 Cadernos de Pesquisa v 35 n 124 janabr 2005 Ações afirmativas da Na vertente repressiva punitiva há a urgência de erradicarse todas as formas de discriminação O combate à discriminação é medida fundamental para que se garanta o pleno exercício dos direitos civis e políticos como tam bém dos direitos sociais econômicos e culturais Se o combate à discriminação é medida emergencial à implementação do direito à igualdade por si só é todavia medida insuficiente Vale dizer é funda mental conjugar a vertente repressiva punitiva com a vertente promocional Fazse necessário combinar a proibição da discriminação com políticas compensatórias que acelerem a igualdade enquanto como processo Isto é para assegurar a igualdade não basta apenas proibir a discriminação mediante le gislação repressiva São essenciais as estratégias promocionais capazes de es timular a inserção e inclusão de grupos socialmente vulneráveis nos espaços sociais Com efeito a igualdade e a discriminação pairam sob o binômio inclu sãoexclusão Enquanto a igualdade pressupõe formas de inclusão social a dis criminação implica violenta exclusão e intolerância à diferença e à diversidade O que se percebe é que a proibição da exclusão em si mesma não resulta automaticamente na inclusão Logo não é suficiente proibir a exclusão quan do o que se pretende é garantir a igualdade de fato com a efetiva inclusão social de grupos que sofreram e sofrem um consistente padrão de violência e discri minação Nesse sentido como poderoso instrumento de inclusão social situam se as ações afirmativas Elas constituem medidas especiais e temporárias que buscando remediar um passado discriminatório objetivam acelerar o proces so com o alcance da igualdade substantiva por parte de grupos vulneráveis como as minorias étnicas e raciais e as mulheres entre outros grupos As ações afirmativas como políticas compensatórias adotadas para alivi ar e remediar as condições resultantes de um passado de discriminação cum prem uma finalidade pública decisiva para o projeto democrático assegurar a diversidade e a pluralidade social Constituem medidas concretas que viabilizam o direito à igualdade com a crença de que a igualdade deve moldarse no res peito à diferença e à diversidade Por meio delas transitase da igualdade for mal para a igualdade material e substantiva Por essas razões a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial prevê no artigo 1º parágrafo 4º a possibilidade de discriminação positiva a chamada ação afirmativa mediante a adoção de medidas especiais de proteção ou incentivo a grupos ou indivíduos visando a 50 Cadernos de Pesquisa v 35 n 124 janabr 2005 Flavia Piovesan promover sua ascensão na sociedade até um nível de equiparação com os de mais As ações afirmativas constituem medidas especiais e temporárias que bus cando remediar um passado discriminatório objetivam acelerar o processo com o alcance da igualdade substantiva por parte dos grupos socialmente vulnerá veis como as minorias étnicas e raciais entre outros grupos A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher também contempla a possibilidade jurídica de uso das ações afirmativas pela qual os Estados podem adotam medidas especiais temporá rias visando a acelerar o processo de igualização de status entre homens e mu lheres Tais medidas cessarão quando alcançado o seu objetivo São portan to medidas compensatórias para remediar as desvantagens históricas aliviando o passado discriminatório sofrido pelo grupo social em questão Quanto ao prisma racial importa destacar que o documento oficial brasilei ro apresentado à Conferência das Nações Unidas contra o Racismo em Durban na África do Sul 31 de agosto a 7 de setembro de 2001 defendeu do mesmo modo a adoção de medidas afirmativas para a população afrodescendente nas áreas de educação e trabalho O documento propôs a adoção de ações afirmativas para garantir o maior acesso de afrodescendentes às universida des públicas bem como a utilização em licitações públicas de um critério de desempate que considere a presença de afrodescendentes homossexuais e mulheres no quadro funcional das empresas concorrentes A Conferência de Durban em suas recomendações pontualmente nos parágrafos 107 e 108 endossa a importância de os Estados adotarem ações afirmativas para aqueles que foram vítimas de discriminação racial xenofobia e outras formas de into lerância correlatas No Direito brasileiro a Constituição Federal de 1988 estabelece impor tantes dispositivos que demarcam a busca da igualdade material que transcende a igualdade formal A título de registro destacase o artigo 7º inciso XX que trata da proteção do mercado de trabalho da mulher mediante incentivos es pecíficos bem como o artigo 37 inciso VII que determina que a lei reservará percentual de cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de defi ciência Acrescentese ainda a chamada Lei das Cotas4 de 1995 Lei n 9100 4 Notese que esta lei foi posteriormente alterada pela Lei n 950497 a qual dispõe que cada partido ou coligação partidária deverá reservar o mínimo de 30 e o máximo de 70 para candidaturas de cada sexo 51 Cadernos de Pesquisa v 35 n 124 janabr 2005 Ações afirmativas da 95 que obriga sejam reservados às mulheres ao menos 20 dos cargos para as candidaturas às eleições municipais Adicionese também o Programa Na cional de Direitos Humanos que faz expressa alusão às políticas compensató rias prevendo como meta o desenvolvimento de ações afirmativas em favor de grupos socialmente vulneráveis Somese ademais o Programa de Ações Afirmativas na Administração Pública Federal e a adoção de cotas para afro descendentes em universidades como é o caso da Universidade Estadual do Rio de Janeiro UERJ da Universidade do Estado da Bahia Uneb da Uni versidade de Brasília UnB da Universidade Federal do Paraná UFPR entre outras Ora se a raça e etnia no país sempre foram critérios utilizados para ex cluir os afrodescendentes que sejam hoje utilizados para ao revés incluílos Na esfera universitária por exemplo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada Ipea revelam que menos de 2 dos estudantes afro descendentes estão em universidades públicas ou privadas Isso faz com que as universidades sejam territórios brancos Notese que a universidade é um espaço de poder já que o diploma pode ser um passaporte para ascensão social É necessário democratizar o poder e para isso há que se democratizar o acesso ao poder vale dizer o acesso ao passaporte universitário Em um país em que os afrodescendentes são 64 dos pobres e 69 dos indigentes5 fazse necessária a adoção de ações afirmativas em benefício da população afrodescendente em especial nas áreas da educação e do tra balho Quanto ao traballho o Mapa da População Negra no Mercado de Tra balho documento elaborado pelo Instituto Sindical Interamericano pela Igual dade Racial Inspir em convênio com o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos SócioEconômicos Dieese em 1999 demonstra que oa trabalhadora afrodescendente convive mais intensamente com o desem prego ocupa os postos de trabalho mais precários ou vulneráveis em relação aos não afrodescendentes tem mais instabilidade no emprego está mais pre sente no chão da fábrica ou na base da produção apresenta níveis de instru ção inferiores aos dos trabalhadores não afrodescendentes e possui uma jorna da de trabalho maior do que a do trabalhador não afrodescendente 5 Segundo dados do Ipea no Índice de Desenvolvimento Humano geral IDH 2000 o Brasil ocupa o 74o lugar mas no recorte étnicoracial o IDH relativo à população afrodescendente ocupa a 108a posição ao passo que o IDH relativo à população branca indica a 43a posição 52 Cadernos de Pesquisa v 35 n 124 janabr 2005 Flavia Piovesan É necessário ainda reconhecer que a complexa realidade brasileira tra duz um alarmante quadro de exclusão social e discriminação como termos in terligados a compor um ciclo vicioso em que a exclusão implica discriminação e a discriminação implica exclusão Nesse cenário as ações afirmativas surgem como medida urgente e necessária Tais ações encontram amplo respaldo jurídico seja na Constitui ção ao assegurar a igualdade material prevendo ações afirmativas para os grupos socialmente vulneráveis seja nos tratados internacionais ratificados pelo Brasil A experiência no Direito Comparado em particular a do Direito norte americano comprova que as ações afirmativas proporcionam maior igualda de na medida em que asseguram maior possibilidade de participação de gru pos sociais vulneráveis nas instituições públicas e privadas A respeito a Plataforma de Ação de Beijing de 1995 afirma em seu parágrafo 187 que em alguns países a adoção da ação afirmativa tem garantido a representação de 333 ou mais de mulheres em cargos da administração nacional ou local Isso significa que essas ações constituem relevantes medidas para a im plementação do direito à igualdade Fazse assim emergencial a adoção de ações afirmativas que promovam medidas compensatórias voltadas à concre tização da igualdade racial PERSPECTIVAS E DESAFIOS PARA A IMPLEMENTAÇÃO DA IGUALDADE ÉTNICORACIAL NA ORDEM CONTEMPORÂNEA A implementação do direito à igualdade é tarefa fundamental à qualquer projeto democrático já que em última análise a democracia significa a igualda de no exercício dos direitos civis políticos econômicos sociais e culturais A busca democrática requer fundamentalmente o exercício em igualdade de condições dos direitos humanos elementares Se a democracia confundese com a igualdade a implementação do di reito à igualdade por sua vez impõe tanto o desafio de eliminar toda e qual quer forma de discriminação como o desafio de promover a igualdade Para a implementação do direito à igualdade é decisivo que se intensifi quem e aprimorem ações em prol do alcance dessas duas metas que por se rem indissociáveis hão de ser desenvolvidas de forma conjugada Há assim que se combinar estratégias repressivas e promocionais que propiciem a im 53 Cadernos de Pesquisa v 35 n 124 janabr 2005 Ações afirmativas da plementação do direito à igualdade Reiterese que a Convenção sobre a Eli minação de Todas as Formas de Discriminação Racial ratificada hoje por mais de 167 Estados dentre eles o Brasil aponta para a dupla vertente a repres siva punitiva e a promocional Vale dizer os Estadospartes assumem não ape nas o dever de adotar medidas que proíbam a discriminação racial mas também o dever de promover a igualdade mediante a implementação de medidas espe ciais e temporárias que acelerem o processo de construção da igualdade racial Considerando as especificidades do Brasil que é o segundo país do mundo com o maior contingente populacional afrodescendente 45 da população brasileira perdendo apenas para a Nigéria tendo sido contudo o último país do mundo ocidental a abolir a escravidão fazse emergencial a adoção de medidas eficazes para romper com o legado de exclusão étnico racial que compromete não só a plena vigência dos direitos humanos mas também a própria democracia no país sob pena de termos democracia sem cidadania Se no início deste texto acentuavase que os direitos humanos não são um dado mas um construído enfatizase agora que a violação desses direitos também o é Ou seja as violações as exclusões as discriminações as intole râncias os racismos as injustiças raciais são um construído histórico a ser ur gentemente desconstruído sendo emergencial a adoção de medidas eficazes para romper com o legado de exclusão étnicoracial Há que se enfrentar es sas amarras mutiladoras do protagonismo da cidadania e da dignidade da população afrodescendente Destacamse nesse sentido as palavras de Abdias do Nascimento ao apontar a necessidade da inclusão do povo afrobrasileiro um povo que luta duramente há cinco sécu los no país desde os seus primórdios em favor dos direitos humanos É o povo cujos direitos humanos foram mais brutalmente agredidos ao longo da história do país o povo que durante séculos não mereceu nem o reconheci mento de sua própria condição humana A implementação do direito à igualdade racial há de ser um imperativo éticopolíticosocial capaz de enfrentar o legado discriminatório que tem ne gado à metade da população brasileira o pleno exercício de seus direitos e de liberdades fundamentais 54 Cadernos de Pesquisa v 35 n 124 janabr 2005 Flavia Piovesan REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARENDT H As Origens do totalitarismo Rio de Janeiro Documentário 1979 BOBBIO N Era dos direitos Rio de Janeiro Campus 1988 Trad Carlos Nelson Coutinho BRASIL Constituição 1988 Constituição da República Federativa do Brasil Brasília Sena do 1988 BRASIL Decreto n 1904 de 1351996 Institui o Programa Nacional de Direitos Huma nos que ineditamente atribui aos direitos humanos o status de política pública governamen tal contendo propostas de ações governamentais para a proteção e promoção dos direitos civis e políticos no Brasil Lei n 910095 Estabelece normas para as eleições dispondo que cada partido ou coligação partidária deverá reservar o mínimo de vinte por cento para candidatu ras de mulheres Lei n 950497 Estabelece normas para as eleições dispondo que cada partido ou coligação partidária deverá reservar o mínimo de trinta por cento e o máximo de setenta por cento para candidaturas de cada sexo FLORES J H Direitos humanos interculturalidade e racionalidade de resistência mimeo FRASER N Redistribución reconocimiento y participación hacia un concepto integrado de la justicia In ORGANIZACIÓN DE LAS NACIONES UNIDAS PARA LA EDUCACIÓN LA CIENCIA Y LA CULTURA Informe mundial sobre la cultura 20002001 HUMAN DEVELOPMENT REPORT New York UNDP Oxford Oxford University Press 2003 LAFER C A Reconstrução dos direitos humanos um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt São Paulo Cia das Letras 1988 ROSAS A So called rights of the third generation In EIDE A KRAUSE C ROSAS A Economic social and cultural rights Boston Martinus Nijhoff Publishers Londres Dordrecht 1995 SACHS I Desenvolvimento direitos humanos e cidadania In PINHEIRO P S GUIMA RÃES S P orgs Direitos humanos no século XXI Brasília Ipri Fundação Alexandre de Gusmão 1998 SANTOS B de S Reconhecer para libertar os caminhos do cosmopolitanismo multicultural Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2003 Introdução para ampliar o cânone do reconhe cimento da diferença e da igualdade p56 55 Cadernos de Pesquisa v 35 n 124 janabr 2005 Ações afirmativas da Reconhecer para libertar os caminhos do cosmopolitanismo multicultural Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2003 Por uma concepção multicultural de direitos hu manos p429461 Recebido em outubro 2004 Aprovado para publicação em outubro 2004