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KUHN E A ESTRUTURA DAS REVOLUÇÕES CIENTÍFICAS SILVIO SENO CHIBENI Departamento de Filosofia IFCH Universidade Estadual de Campinas wwwunicampbrchibeni ÍNDICE 1Introdução 1 2 Paradigmas e ciência normal 2 3 Irracionalismo e incomensurabilidade 3 4 Esboço de críticas à incomensurabilidade 4 5 Referências 5 1 INTRODUÇÃO As presentes notas primeiramente recapitulam e reconstroem racionalmente de maneira breve os elementos centrais mais originais da visão de ciência proposta por Thomas Kuhn nas Seções 1 a 7 de The Structure of Scientific Revolutions As seções restantes nas quais a controversa tese da incomensurabilidade dos paradigmas é apresentada e defendida são então objeto de uma análise em nível introdutório Após o isolamento de algumas passagens nas quais a visão de Kuhn parece enquadrarse na concepção usual que não contempla a existência da incomensurabilidade procurase extrair do texto complexo as três razões principais que Kuhn apresenta a favor daquela tese Por fim esboçase um esquema das objeções que se poderiam levantar contra a argumentação de Kuhn O objetivo aqui é primordialmente pedagógico estas anotações poderiam servir para uma discussão em um curso de graduação que se seguiria a uma primeira leitura do livro de Kuhn Não se fará qualquer tentativa de acompanhar o problemático desenvolvimento do pensamento de Kuhn em seus escritos filosóficos posteriores incluindose aí o perturbador Posfácio de 1969 Também foge completamente ao escopo destas notas a avaliação geral da filosofia da ciência de Kuhn bem como o exame de seus antecessores e de seus numerosos críticos e seguidores1 2 PARADIGMAS E CIÊNCIA NORMAL No Prefácio de seu livro Kuhn aponta dois fatores decisivos na gênese de suas idéias acerca da ciência Primeiro seu contato profissional com a história da ciência reveloulhe a inadequação da visão corrente de ciência Depois seu estágio no Center for Advanced Studies in the Behavioral Sciences da Universidade de Stanford possibilitoulhe comparar os problemas métodos valores e atividades dos cientistas sociais com os dos cientistas naturais que lhe eram familiares Esse confronto forneceulhe a chave para a compreensão da natureza da ciência Uma disciplina ingressa na fase científica com a aquisição de um paradigma2 A noção de paradigma recebe ao longo do livro caracterizações múltiplas e nem sempre precisas conforme o próprio Kuhn irá conceder depois3 Aqui nos contentaremos em observar que o que Kuhn tem em mente é que uma disciplina científica não se caracteriza conforme usualmente se assumia apenas por uma dada teoria específica ao lado dela encontrase uma plêiade de teorias auxiliares técnicas matemáticas e experimentais realizações concretas que servem de modelo valores crenças variadas inclusive de ordem metafísica etc4 Às atividades desenvolvidas pelos cientistas sob a diretriz de um determinado paradigma Kuhn denomina ciência normal Em oposição os episódios nos quais um paradigma é substituído por outro constituem as revoluções científicas Indubitavelmente uma das mais importantes contribuições de Kuhn à filosofia da ciência foi haver descoberto nas palavras de Popper 1970 a existência da ciência normal ou seja ter notado que há períodos do desenvolvimento de uma dada especialidade científica em que os cientistas dedicamse a resolver os problemas deixados em aberto pelo paradigma5 A estes problemas Kuhn denomina quebracabeças puzzles Seção 4 Como a partilha de um paradigma tem o efeito de eliminar as discussões sobre os fundamentos e de fixar as regras padrões e objetivos de sua disciplina os cientistas normais podem centralizar seus esforços na articulação interna do paradigma na extensão do conhecimento dos fatos selecionados como importantes pelo paradigma e no incremento do ajuste desses fatos com as previsões teóricas do paradigma Kuhn defende que essa atividade do cientista normal não visa a confirmar ou refutar o paradigma sob o qual se desenvolve A postura nãocrítica do cientista normal diante do paradigma que adota é essencial segundo ele para que o estudo da Natureza possa ser aprofundado A descrição detalhada que Kuhn fornece da ciência normal contém elementos originais importantes Kuhn defende que grande parte do conhecimento do cientista normal é na expressão de Polanyi tácito ie adquirido pela inspeção e imitação de problemassoluções exemplares e não através de regras e proposições explicitáveis Seções 4 e 5 Isto leva Kuhn a investigar o processo de aprendizado de ciência Seção 11 Expende a tal respeito interessantes considerações sobre o papel dos livrostexto na educação científica ressaltando sua eficácia na formação do cientista normal6 Associada a esse assunto está a crítica de Kuhn à doutrina positivista do significado dos termos teóricos segundo a qual tais termos adquirem significado através de sua conexão aos termos observacionais através de regras de correspondência7 Propõe que embora certas regras explícitas possam em determinadas ocasiões contribuir para a especificação dos significados dos termos uma parte importante desse significado é adquirida pela exposição a exemplares Ademais sustenta 8 que qualquer reconstrução racional do conhecimento científico que procure reduzir os significados dos termos a regras de correspondência distorcerá de modo grave a nossa compreensão da natureza daquele conhecimento As investigações da ciência normal acabam levando não intencionalmente à acumulação de quebra cabeças particularmente resistentes às tentativas de resolução Essas dificuldades de ajuste do paradigma à Natureza não são vistas como falseadoras do paradigma mas como meras anomalias Seções 6 e 7 Quando incidem sobre partes vitais do paradigma ou estão ligadas a algum fator externo premente ou acumulamse em grande número ou resistem por muito tempo essas anomalias levam a estados de crise Seções 7 e 8 Somente então iniciase a busca deliberada de alternativas para o paradigma vigente Fatores variados e não necessariamente racionais podem levar um indivíduo ou um pequeno grupo de indivíduos a se interessar por uma dessas alternativas por embrionárias que sejam e tomar para si a tarefa de desenvolvêla e posteriormente de convencer o restante da comunidade científica a que pertencem Apenas nessas condições a comunidade científica pode se dispor a abandonar o seu paradigma um paradigma nunca é rejeitado sem que concomitantemente um outro seja aceito Esta é outra tese importante de Kuhn Seção 8 que foi também defendida de forma independente por outros filósofos da ciência seus contemporâneos 3 IRRACIONALISMO E INCOMENSURABILIDADE Nada do que foi visto até aqui conflita com a visão realista e não irracionalista ordinária Ou pelo menos podese afirmar que é possível uma leitura realista não irracionalista das primeiras sete seções do livro de Kuhn Quando porém adentramos as seções nas quais Kuhn trata das revoluções científicas e expõe as razões que acredita determinarem a mudança de paradigma uma reconstrução realista não irracionalista começa a parecer implausível Em seus artigos posteriores Kuhn explicitamente admite e reitera a sua posição antirealista Enfatiza que a visão realista usual segundo a qual o objetivo da ciência é a busca da verdade entendida no sentido clássico é insustentável9 Nas presentes notas essa questão não será abordada de maneira explícita Já a acusação de irracionalismo é repudiada veementemente por Kuhn10 Paradoxalmente ao mesmo tempo reforça seus argumentos a favor da tese da incomensurabilidade dos paradigmas que dá margem àquela acusação Essa tensão já está presente no texto original de 1962 e é exclusivamente dele que nos ocuparemos a seguir Inicialmente isolemos algumas passagens compatíveis com uma visão não irracionalista do processo de substituição de paradigmas Há três tipos de saída para uma crise p 84 i A articulação ulterior do paradigma acaba resolvendo as anomalias que geraram a crise ii as anomalias resistem mas são postas de lado aguardando solução futura ou iii um novo paradigma é adotado à luz do qual as anomalias se resolvem ou deixam de ser consideradas importantes A decisão de se rejeitar um paradigma é sempre simultaneamente a decisão de se aceitar um outro e o julgamento que leva à decisão envolve a comparação de ambos os paradigmas com a Natureza e a comparação de um paradigma com o outro p 77 A transição de um paradigma em crise para um novo paradigma a partir do qual uma nova tradição de ciência normal possa emergir está longe de ser um processo cumulativo alcançado através de uma articulação ou extensão do paradigma anterior É ao invés uma reconstrução do campo a partir de fundamentos novos que muda algumas de suas mais elementares generalizações teóricas bem como muitos dos métodos e aplicações de seu paradigma Durante o período de transição haverá uma sobreposição overlap ampla porém nunca completa entre os problemas que podem ser resolvidos pelo velho e pelo novo paradigma pp 845 Kuhn defende aqui a tese antipositivista já defendida por Popper de que uma nova teoria ou mais amplamente um novo paradigma não pode ser interpretada como um caso particular da teoria anterior As revoluções científicas são aqui tomadas como sendo aqueles episódios nãocumulativos nos quais um paradigma mais velho é substituído total ou parcialmente por um paradigma incompatível 11 Sendo os paradigmas constelações tão amplas de teorias métodos técnicas e valores com contornos parcialmente difusos a competição entre paradigmas não é o tipo de batalha que possa ser resolvida por provas p 148 não pode ser forçada pela lógica e pela experiência neutra p 150 No entanto faz muito sentido perguntarse qual dentre duas teorias atuais em competição se ajusta melhor aos fatos p 147 Ademais dizer que a resistência à mudança de paradigma é inevitável e legítima que a mudança de paradigma não pode ser justificada por provas não é dizer que nenhum argumento é relevante ou que os cientistas não possam ser persuadidos a mudar de opinião A questão da natureza dos argumentos científicos nas fases revolucionárias não possui uma resposta única e uniforme Provavelmente a mais determinante alegação isolada da parte dos proponentes de um novo paradigma é que eles podem resolver as dificuldades que levaram à crise Alegações desse tipo são particularmente propensas a alcançar êxito se o novo paradigma exibe uma precisão quantitativa flagrantemente melhor do que o seu competidor mais velho Argumentos particularmente persuasivos podem ser desenvolvidos se o novo paradigma permite a predição de fenômenos de que de nenhum modo se suspeitava enquanto o velho paradigma prevalecia pp 1524 Todos os argumentos a favor de um novo paradigma discutidos até aqui baseiamse na capacidade comparada dos competidores resolverem problemas Para os cientistas esses argumentos são os mais significativos e persuasivos Os exemplos precedentes não deixam dúvida sobre a fonte de seu imenso apelo p 155 Embora os paradigmas novos raramente ou nunca possuam todas as capacidades de seus predecessores eles usualmente preservam muito das partes mais concretas das realizações achievements passadas e sempre permitem problemassoluções concretos adicionais p 169 Passemos agora a algumas das afirmações de Kuhn que deram lugar às críticas de irracionalismo Muitas passagens do livro indicam que Kuhn concebe o processo de substituição de paradigmas como não sendo passível de efetuarse com base em critérios objetivos12 Central nesta questão é a afirmação de que diferentes paradigmas são incomensuráveis Como a noção de paradigma a noção de incomensurabilidade é de caracterização problemática nos escritos de Kuhn Grosso modo ligase a uma alegada dificuldade de comunicação entre os profitentes de paradigmas diferentes 13 Para efeito de análise é conveniente separar em três as razões de Kuhn para essa tese mudança do referencial mudança dos dados e mudança dos significados i A primeira razão a mudança do referencial é exposta pela primeira vez de modo mais ou menos extenso no início da Seção 9 Kuhn traça um paralelo entre as revoluções científicas e as revoluções políticas Vejamos estes trechos As revoluções políticas objetivam a mudar as instituições políticas de maneiras que essas próprias instituições proíbem O seu sucesso requer pois o parcial abandono de um conjunto de instituições em favor de outro e no ínterim a sociedade não é completamente governada por nenhuma instituição Então à medida que a crise se aprofunda muitos desses indivíduos se comprometem com alguma proposta concreta de reconstrução da sociedade segundo um novo referencial institucional E uma vez ocorrida a polarização recursos políticos falham Por diferirem sobre a matriz institucional dentro da qual a mudança política deve ser alcançada e avaliada e por não reconhecerem nenhum referencial suprainstitucional para a arbitragem das diferenças revolucionárias as partes de um conflito revolucionário têm em última instância de apelar para técnicas de persuasão de massa e freqüentemente ao uso da força Embora as revoluções tenham tido um papel vital na evolução das instituições políticas esse papel depende de serem eventos parcialmente extrapolíticos ou extra institucionais O restante deste ensaio objetiva a demonstrar que o estudo histórico das mudanças de paradigma revela na evolução da ciência características muito semelhantes às que vimos de descrever Como a escolha entre instituições políticas em competição a escolha entre paradigmas em competição mostrase ser uma escolha entre modos de vida comunitária incompatíveis Quando paradigmas comparecem como têm de comparecer no debate sobre a escolha de paradigmas seu papel é necessariamente circular Cada grupo usa o seu próprio paradigma para argumentar na defesa desse mesmo paradigma pp 934 A argumentação não pode ser tornada lógica ou mesmo probabilisticamente determinante para aqueles que se recusam a entrar no círculo As premissas e valores partilhados pelas duas partes de um debate sobre paradigmas não são suficientemente extensas para tal Como nas revoluções políticas também na escolha entre paradigmas não existe padrão superior ao assentimento da comunidade relevante p 94 Essa opinião de Kuhn recebe plausibilidade por sua referência não a teorias mas a paradigmas que são muito mais abrangentes conforme fica explícito nesta passagem Paradigmas sucessivos nos dizem coisas diferentes sobre a população do Universo e sobre o comportamento dessa população Mas paradigmas diferem mais do que nisto pois se dirigem não apenas à Natureza mas também reflexivamente sobre a ciência que os produziu São a fonte dos métodos campo de problemas e padrões de solução aceitos por toda comunidade científica madura em qualquer tempo Como conseqüência a aceitação de um novo paradigma freqüentemente requer uma redefinição da ciência correspondente Alguns dos velhos problemas podem ser relegados a uma outra ciência ou declarados completamente nãocientíficos Outros que previamente eram não existentes ou triviais podem com um novo paradigma tornarse os arquétipos mesmos da realização científica importante E com a mudança dos problemas freqüentemente também mudam os padrões que distinguem soluções científicas reais de meras especulações metafísicas jogos de palavras ou brincadeiras matemáticas A tradição de ciência normal que emerge de uma revolução científica não é apenas incompatível mas freqüentemente incomensurável com a tradição anterior p 103 E um pouco mais adiante Kuhn comenta Ao aprender um paradigma o cientista adquire teoria métodos e padrões conjuntamente usualmente em uma mistura inextricável Portanto quando os paradigmas mudam usualmente há deslocamentos significantes nos critérios que determinam a legitimidade tanto dos problemas como das soluções propostas Essa observação fornece nossa primeira indicação explícita de porque a escolha entre paradigmas em competição via de regra suscita questões que não podem ser resolvidas pelos critérios da ciência normal Na medida em que duas escolas científicas discordam sobre o que é um problema e sobre o que é uma solução elas irão inevitavelmente engajarse em um diálogo de surdos talk through each other quando debaterem os méritos relativos de seus respectivos paradigmas Nos argumentos parcialmente circulares que via de regra resultam de tal situação mostrarseá que cada paradigma satisfaz mais ou menos os critérios que ele dita para si mesmo e não satisfaz alguns daqueles ditados por seu oponente Há ainda outras razões para a incompletude do contato lógico que caracteriza os debates de paradigmas Por exemplo visto que nenhum paradigma jamais resolve todos os problemas que ele define e visto que nenhum par de paradigmas deixam sem solução exatamente os mesmos problemas os debates de paradigma sempre envolvem a questão Quais problemas é mais importante ter resolvido Como a questão dos padrões em competição essa questão de valores pode ser respondida apenas em termos de critérios que ficam completamente fora da ciência normal e é tal recurso a critérios externos que de modo mais óbvio torna o debate de paradigmas revolucionário pp 10910 ii Uma segunda razão para a incomensurabilidade surge porém com a argumentação filosófica direta que Kuhn apresenta contra a existência de uma base empírica mínima comum que poderia servir de referência nas disputas entre paradigmas rivais Tratase do que acima denominamos tese da mudança dos dados Kuhn defende que os próprios dados empíricos dependem de modo tão estreito do paradigma adotado que quando este muda aqueles também mudam Kuhn rejeita a opinião ordinária segundo a qual os dados são de algum modo neutros podendo ser interpretados desta ou daquela maneira dependendo do paradigma que se adote Kuhn inicia a defesa dessa tese na Seção 8 onde aproveita e radicaliza a idéia de Hanson de que a mudança de paradigma pode ser comparada a uma mudança de gestalt Comenta então que Esse paralelo pode ser enganoso Os cientistas não vêem algo como alguma outra coisa eles simplesmente o vêem p 85 O assunto é retomado explicitamente na Seção 10 na qual Kuhn expõe mais extensamente os motivos pelos quais a comparação com as gestalt switches são por um lado adequadas e por outro não As razões da inadequação são basicamente duas no caso das mudanças de gestalt que acompanham as mudanças de paradigma não dispomos de um padrão externo com relação ao qual a comutação de visão possa ser demonstrada p 114 e a mudança é em geral irreversível Tais pontos ficarão evidenciados nas citações abaixo que também exibem o caráter radical da posição de Kuhn Guiados por um novo paradigma os cientistas adotam novos instrumentos e olham para novos lugares Mais importante ainda durante as revoluções os cientistas vêem coisas novas e diferentes quando olham com instrumentos familiares para os lugares que haviam olhado anteriormente Na medida em que o seu único acesso ao mundo é através do que vêem e fazem podemos desejar dizer que após a revolução os cientistas estão respondendo a um mundo diferente p 111 O que eram patos no mundo do cientista antes da revolução são coelhos após ela Transformações como essas embora mais graduais e quase sempre irreversíveis são concomitantes comuns do treinamento científico Olhando para uma câmara de bolhas o estudante vê linhas entrecortadas e confusas enquanto que o físico vê um registro de eventos subnucleares sic familiares O mundo no qual o estudante então adentra não é porém fixado de uma vez por todas pela natureza do meio environment de um lado e da ciência de outro É ao invés determinado conjuntamente pelo meio e pela tradição de ciência normal particular que o estudante foi treinado para seguir Portanto nos momentos de uma revolução quando a tradição de ciência normal muda a percepção que o cientista tem de seu meio tem de ser reeducada em algumas situações familiares ele tem de aprender a ver uma nova gestalt Uma vez que o faça o mundo de sua pesquisa parecerá aqui e ali incomensurável com o que habitava antes Esta é outra razão pela qual escolas guiadas por diferentes paradigmas estão sempre ligeiramente at crosspurposes pp 1112 Considerando então os experimentos psicológicos dos óculos inversores e das cartas de baralho anômalas Kuhn acrescenta A revisão da rica literatura experimental da qual esses exemplos foram tirados nos faz suspeitar que algo parecido com um paradigma é prérequisito para a própria percepção O que um homem vê depende tanto daquilo para que olha como daquilo que sua experiência visualperceptual prévia o ensinou a ver p 113 Ainda comentando os tais experimentos psicológicos Kuhn continua O sujeito de um experimento de cartas anômalas sabe que sua percepção há de ter mudado porque uma autoridade externa o experimentador asseguralhe que independentemente do que ele viu estava o tempo todo olhando para um cinco de copas preto A menos que haja um padrão externo com respeito ao qual uma comutação de visão possa ser demonstrada nenhuma conclusão sobre possibilidades perceptuais alternativas poderia ser extraída Com a observação científica porém a situação é exatamente oposta O cientista não pode ter outro recurso além ou acima do que ele vê com seus olhos e instrumentos Nas ciências portanto se comutações perceptuais acompanham as mudanças de paradigma não podemos esperar que os cientistas atestem tais comutações diretamente pp 1145 Kuhn passa então a fornecer vários exemplos de mudança perceptual que teriam ocorrido na astronomia olhando para a Lua antes viase um planeta depois um satélite olhandose para um certo ponto luminoso nos céus antes viase uma estrela depois um cometa e por fim o planeta Urano etc Como já mencionamos Kuhn rejeita explicitamente a explicação interpretativa destes casos segundo a qual se diz por exemplo que viase a Lua como um planeta e depois como um satélite Nisso consiste pois a tese da mudança dos dados sobre a qual Kuhn continuará insistindo até o final do livro Um pouco mais adiante nesta mesma Seção 10 por exemplo Kuhn considerará extensamente o famoso caso do pêndulo Até que aquele paradigma escolástico a teoria do impetus fosse inventado não havia pêndulos para os cientistas verem mas apenas pedras balançantes p 120 Feita essa extensão do conceito de percepção para englobar boa parte do conceito de interpretação Kuhn parece defender ainda nessa mesma seção uma radical extensão do conceito de percepção numa segunda direção este conceito se aplicaria não somente aos objetos macroscópicos ordinários mas também às entidades usualmente tidas como inobserváveis postuladas pelas diferentes teorias científicas como elétrons campos magnéticos vírus etc Nesse sentido ampliado Kuhn fala então por exemplo que Lavoisier viu oxigênio onde Pristley tinha visto ar desflogistizado e onde outros não tinham visto absolutamente nada p 118 que onde Bertholet via um composto químico Proust via apenas uma mistura física p 132 e até mesmo que ao contemplar uma pedra que cai Aristóteles via uma mudança de estado ao invés de um processo p 124 iii A terceira razão para a incomensurabilidade dos paradigmas é introduzida por Kuhn quando ele discute a tese da inclusão lógica das teorias ver nota 11 acima Tratase da mudança dos significados dos termos em que uma teoria se expressa Isso impede que a teoria antiga seja deduzida como um caso especial da nova teoria Conforme já observamos Kuhn rejeita a doutrina positivista do significado dos termos teóricos Sua proposta apresentada brevemente acima importa em uma concepção holista do significado segundo a qual os significados dos termos teóricos de uma teoria dependem da totalidade de suas conexões com os demais termos Assim se em um novo paradigma um determinado conceito comparece em leis e relações diferentes o seu significado será ipso facto alterado Vejamos estas assertivas típicas de Kuhn a páginas 149 e 150 Algo mais do que a incomensurabilidade de padrões é no entanto envolvido nas mudanças de paradigma Como os novos paradigmas nascem dos velhos eles ordinariamente incorporam muito do vocabulário e aparelhos conceptuais e manipulativos que o paradigma tradicional havia anteriormente empregado Mas eles raramente empregam da maneira tradicional esses elementos emprestados Dentro do novo paradigma os velhos termos conceitos e experimentos caem sob novas relações uns com os outros O resultado inevitável é aquilo que temos de denominar embora o termo não seja muito correto um desentendimento misunderstanding entre as duas escolas em competição Os leigos que mofaram da teoria da relatividade geral de Einstein porque o espaço não podia ser curvo não estavam simplesmente errados como também não estavam os matemáticos físicos e filósofos que tentaram desenvolver uma versão euclidiana da teoria de Einstein O que anteriormente se havia significado por espaço era necessariamente plano homogêneo isotrópico e não afetado pela presença da matéria Para efetuar a transição para o universo de Einstein a rede conceitual completa whole conceptual web cujos fios são espaço tempo matéria força etc teve que ser deslocada e ajustada de novo ao todo da Natureza Somente os homens que juntos fizeram ou deixaram de fazer essa transformação estariam aptos a descobrir precisamente aquilo sobre o que concordavam ou discordavam Considere como um outro exemplo os homens que chamavam Copérnico de louco porque ele afirmava que a Terra se movia Parte do que eles significavam por Terra era posição fixa A sua Terra pelo menos não podia ser movida Correspondentemente a inovação de Copérnico não foi simplesmente mover a Terra Ao invés foi toda uma maneira nova de considerar os problemas da física e da astronomia que necessariamente mudou o significado de ambos Terra e movimento Sem tais mudanças o conceito de uma Terra móvel era loucura Este último exemplo traz à luz um aspecto importante De forma consentânea com sua rejeição da distinção positivista entre termos teóricos e observacionais ver pp 126 et seqs Kuhn estende a doutrina holista do significado aos próprios termos tidos como observacionais como Terra movimento etc Assim para ele os significados de todos os termos podem se alterar com a mudança de paradigma Evidentemente isto implica a incomensurabilidade radical dos paradigmas 4 ESBOÇO DE CRÍTICAS À INCOMENSURABILIDADE Indicaremos agora de modo esquemático alguns pontos sobre os quais críticas às teses de Kuhn acerca da incomensurabilidade podem ser desenvolvidas Iniciaremos pela última razão apontada ou seja pela tese da mudança radical dos significados Parece razoável seguir Kuhn e Quine na rejeição da teoria positivista do significado dos termos teóricos dada a carga de argumentos que já se produziu contra ela Também temos que reconhecer que a própria proposta positivista de dividir de maneira objetiva e definitiva os termos nãológicos da linguagem da ciência em termos teóricos e termos observacionais puros encontrou objeções aparentemente insuperáveis No entanto não está claro que tais concessões nos empurrem para as posições extremas defendidas por Kuhn Primeiramente Kuhn não forneceu nenhum argumento para mostrar que a mudança de uma teoria altamente teórica sobre a estrutura do núcleo ou sobre o mecanismo molecular das mutações genéticas por exemplo acarreta alterações substanciais nos significados de termos que designam itens empíricos como chapa fotográfica ponteiro clicks por minuto círculo verde ervilha etc Essa é uma omissão grave de Kuhn pois o holismo radical do significado que invoca contra a comensurabilidade dos paradigmas contraria o bom senso filosófico como o exemplo que acabamos de dar evidencia e portanto não poderia ter sido proposto sem maiores justificações como o foi Ademais mesmo com relação à interdependência de significados entre termos relativamente próximos entre si e distantes do nível empírico na malha teórica de um paradigma há pelo menos uma teoria filosófica relativamente bem articulada a teoria dos lawcluster concepts desenvolvida por Hilary Putnam cuja exploração poderia ser usada para atenuar a tese da variação do significado adotada por Kuhn14 Passando agora à idéias de Kuhn acerca da percepção notamos inicialmente que o próprio Kuhn reconhece que está afrontando um tradicional paradigma filosófico que serviu bem tanto à ciência como à filosofia e para o qual ainda não se forneceu uma alternativa viável p 121 Na ausência de uma alternativa desenvolvida diz Kuhn acho impossível abandonar inteiramente esse ponto de vista p 126 Estou agudamente consciente confessa das dificuldades criadas ao se dizer por exemplo que quando Aristóteles e Galileo olhavam para pedras balançantes o primeiro via uma queda dificultada e o segundo um pêndulo Estou convencido apesar disso que temos de aprender a fazer sentido de proposições que pelo menos se pareçam com essas p 121 Como no caso da tese da mudança radical dos significados estamos aqui diante de uma posição filosófica extrema a favor da qual o próprio autor reconhece não dispor de argumentos cuja força seja proporcional à sua radicalidade Kuhn não mostrou que experiências perceptuais como a visão de um pêndulo não podem ser analisadas em partes mais elementares Aliás o próprio Kuhn não consegue manter consistentemente sua posição ao longo do livro como é óbvio de sua constante menção à pedra balançante para a qual tanto os aristotélicos como os cientistas modernos olhariam Sua afirmação citada acima de que a situação na ciência é exatamente oposta p 114 à do experimento de cartas anômalas e das figuras de gestalt porque em um caso haveria padrões externos e no outro não é claramente arbitrária E o realismo metafísico que subjaz à afirmação de que no caso das figuras de gestalt a pessoa sabe que nada mudou no mundo porque ela segura o mesmo pedaço de papel nas mãos p 114 é em diversas passagens estendido ao mundo que o cientista investiga15 A posição kuhniana sobre as percepções atinge a implausibilidade máxima quando Kuhn a aplica à visão do oxigênio do condensador dos compostos químicos e mesmo dos átomos e elétrons No final de suas críticas à tentativa do estabelecimento de uma linguagem observacional pura Kuhn acrescenta Sob tais circunstâncias podemos ao menos suspeitar que os cientistas estão certos tanto em princípio como na prática quando tratam oxigênio e pêndulos e talvez átomos e elétrons também como os ingredientes fundamentais de sua experiência imediata Isto é sugerir que o cientista que olha para uma pedra balançante não pode ter nenhuma experiência que seja em princípio mais elementar do que a visão de um pêndulo pp 1278 Deixando para o nosso leitor a avaliação final de semelhantes afirmações16 passemos para concluir à primeira razão para a incomensurabilidade apontada por Kuhn ou seja a que acima denominamos de tese da mudança do referencial A inexistência de um corpo mínimo de premissas comuns sobre as quais argumentos a favor e contra os paradigmas em debate poderiam se apoiar está em oposição aparente com várias afirmações do próprio Kuhn que já citamos anteriormente na Seção 3 os cientistas partilham como valores o objetivo de explicar a Natureza e resolver problemas a abrangência coerência interna e precisão quantitativa das teorias sua capacidade de antecipar fatos além disso há um sobreposição ampla entre os problemas que podem ser resolvidos pelos paradigmas sucessivos os paradigmas preservam muito das partes mais concretas das realizações passadas Essas últimas asserções fazem pouco sentido se não se assumir que há fatos empíricos comuns a diferentes paradigmas Dado que estas afirmações de Kuhn são claramente mais conformes ao senso comum à tradição filosófica e à observação do desenvolvimento histórico da ciência do que as afirmações anteriores a favor da incomensurabilidade parece legítimo e natural aceitálas e então usálas para criticar aquelas Notemos por fim que ainda que rejeitemos a tese da incomensurabilidade forte a análise da ciência empreendida por Kuhn contém elementos originais e importantes que podem ser mantidos independentemente Esses elementos mencionados brevemente na Seção 2 destas notas indubitavelmente devem ser levados em consideração em qualquer esforço ulterior de compreensão da natureza da ciência17 5 REFERÊNCIAS BIRD Alexander Thomas Kuhn The Stanford Encyclopedia of Philosophy Winter 2018 Edition Edward N Zalta ed httpsplatostanfordeduarchiveswin2018entriesthomaskuhn FEYERABEND P K 1970 Consolations for the specialist In Lakatos Musgrave 1970 pp 197230 KUHN T S 1970a The Structure of Scientific Revolutions 2nd ed Chicago University of Chicago Press 1970b Logic of discovery or psychology of research In Lakatos Musgrave 1970 pp 123 1970c Reflections on my critics In Lakatos Musgrave 1970 pp 23178 1977 Second thoughts on paradigms In Suppe 1977 pp 45982 2000 The Road Since Structure Chicago University of Chicago Press LAKATOS I Falsification and the methodology of scientific research programmes In Lakatos Musgrave 1970 pp 91195 LAKATOS I MUSGRAVE A 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Musgrave 1970 pp 3947 WATKINS J W N 1970 Against normal science In Lakatos Musgrave 1970 pp 2537 S S Chibeni 1 Para um texto recente e acessível sobre Thomas Kuhn ver por exemplo Bird 2018 2 Kuhn 1970a Seção 2 especialmente pp 13 19 e 22 Daqui em diante salvo indicação em contrário todas as referências de páginas se referirão a essa obra ou seja à segunda edição de The Structure of Scientific Theories exceto pelo acréscimo do Posfácio o texto corresponde ao da primeira edição com alterações mínimas Mais tarde Kuhn dirá que a transição para a fase científica só se dá com a aquisição de um tipo especial de paradigma ver Kuhn 1970a Posfácio pp 1789 Sobre o critério de demarcação kuhniano e sua comparação ao de Popper ver Kuhn 1970b Seção 1 3 Ver Kuhn 1970a Posfácio pp 1812 Kuhn 1977 passim Masterman 1970 4 Em textos posteriores Kuhn 1970a Posfácio pp 1745 1977 Seção II Kuhn irá distinguir o sentido amplo do termo paradigma tal qual acabamos de descrever e ao qual denomina matriz disciplinar de um sentido mais restrito e segundo ele filosoficamente mais profundo as soluções de quebracabeças concretas que empregadas como modelos ou exemplos podem substituir regras explícitas como uma base para a solução dos quebracabeças restantes da ciência normal 1970a p 175 a estes Kuhn denomina exemplares Abaixo continuaremos usando o termo geral paradigma a não ser quando uma maior precisão se fizer necessária 5 Alguns críticos eg Pearce Williams 1970 e Toulmin 1970 negam ou põem em dúvida a existência da ciência normal descrita por Kuhn Outros eg Popper 1970 Watkins 1970 e Feyerabend 1970 admitemna mas por motivos variados consideram a ciência normal nociva à ciência 6 Kuhn nota porém que esse tipo de obra introduz graves distorções na visão do desenvolvimento histórico da ciência tornando invisíveis as revoluções científicas 7 Além disso a própria distinção entre termos teóricos e observacionais é rejeitada por Kuhn 8 Isto é tornado explícito apenas em Kuhn 1977 Seções 4 5 e 6 9 Ver eg 1970a Posfácio Subseção 6 p 206 1970c Seção 5 pp 2645 10 Ver eg 1970c Seção 5 1970a Posfácio Subseção 5 11 P 92 Mais abaixo consideraremos com alguma extensão a razão filosófica principal pela qual Kuhn rejeita a tese da inclusão lógica das teorias sucessivas Fornece também razões históricas e metodológicas Embora admita que a tese é logicamente possível observa que não corresponde ao que de fato ocorreu no desenvolvimento da ciência E diz que há motivos para isto Primeiro o único motivo para a introdução de novas teorias é o desejo de dar conta de anomalias de uma teoria anterior e neste caso é evidente que deve existir um conflito entre a velha e a nova teoria Depois se a tese da inclusão lógica das teorias for defendida pela usual restrição das teorias a um certo domínio de fenômenos aqueles para os quais a teoria fornece previsões corretas tornase qualquer teoria já aplicada com sucesso a algum grupo de fenômenos imune a ataques ademais o cientista estaria neste caso impedido de falar cientificamente de fenômenos ainda não observados o que representaria o fim do avanço da ciência 12 Na penúltima seção do livro por exemplo encontramos esta afirmação forte Ordinariamente é apenas muito mais tarde após o novo paradigma haver sido desenvolvido aceito e explorado que argumentos aparentemente decisivos são desenvolvidos P 156 o grifo é nosso 13 Já vimos várias razões pelas quais os proponentes de paradigmas em competição hão de fracassar no estabelecimento de um contato completo com o ponto de vista uns dos outros Coletivamente essas razões foram descritas como a incomensurabilidade das tradições de ciência normal pré e pósparadigmáticas p 148 Uma análise acessível do conceito de incomensurabilidade pode ser encontrada em Oberheim HoyningenHuene 2018 14 O texto mais antigo de Putnam que trata desse assunto The analytic and the synthetic foi publicado no mesmo ano que o livro de Kuhn no volume III dos Minnesota Studies in the Philosophy of Science Reimpresso em Putnam 1975 pp 3369 É interessante notar que Putnam diz que a idéia dos law cluster concepts lhe foi sugerida pelas Philosophical Investigations de Wittgenstein e que Kuhn também declara que esta obra também teve uma influência no desenvolvimento de suas concepções acerca do significado Para uma defesa interessante da idéia de evadir à incomensurabilidade através da rejeição da doutrina do significado adotada por Kuhn ver NewtonSmith 1981 15 Na página 122 por exemplo Kuhn afirma a respeito do cientista que mudou de paradigma Confrontando a mesma constelação de objetos como antes e sabendo que o faz Na página 150 Kuhn diz sobre os cientistas de diferentes paradigmas Ambos estão olhando para o mundo e aquilo para que olham não mudou 16 Na Subseção 4 do Posfácio Kuhn recua parcialmente explicando que essas afirmações devem nos casos extremos ser entendidas metaforicamente De modo algum vemos correntes elétricas mas apenas a agulha de um amperímetro ou galvanômetro Porém nas páginas que precedem particularmente na Seção 10 repetidamente agi como se de fato percebêssemos entidades teóricas como correntes elétrons e campos como se aprendêssemos a fazêlo a partir do exame de exemplares e como se também nesses casos fosse errado substituir a fala de visão pela fala de critérios e interpretações A metáfora que transfere ver para contextos como esses dificilmente constitui base suficiente para aquelas afirmações A longo prazo elas precisarão ser eliminadas em favor de um modo de discurso mais literal pp 1967 No entanto as objeções que esboçamos acima continuam em boa parte se aplicando pois Kuhn continuará sempre insistindo em que nos casos menos extremos o que foi dito sobre sensação é para ser entendido literalmente p 196 e que o que a percepção deixa para a interpretação depende drasticamente da natureza e quantidade da experiência e treinamento prévios P 198 grifo nosso Em seu 1970c Kuhn volta à carga Essas relações de semelhança dessemelhança aprendidas são anteriores a uma lista de critérios que nos possibilitem definir nossos termos Até que as tenhamos aprendido de modo algum vemos um mundo p 274 Um pouco mais abaixo em um contexto em que discutia uma quebra de comunicação communication breakdown envolvendo elementos químicos planetas e pêndulos Kuhn afirma Não podemos dizer com segurança nem mesmo que os dois homens vêem a mesma coisa possuem os mesmos dados mas os interpretam de modo diferente p 276 17 Podese talvez argumentar que é precisamente isto o que Imre Lakatos procurou fazer RESENHA CRÍTICA O artigo Kuhn e a estrutura das revoluções científicas discute a visão de ciência proposta por Thomas Kuhn especialmente destacando a noção de paradigmas e a distinção entre ciência normal e revoluções científicas Chibeni autor do texto busca recapitular os elementos centrais de Kuhn e em seguida analisar criticamente a tese da incomensurabilidade dos paradigmas apresentada por Kuhn O objetivo principal das notas é fornecer um embasamento para discussões em cursos de graduação sem adentrar em outras obras de Kuhn ou avaliações mais amplas de sua filosofia da ciência Kuhn no prefácio de seu livro aponta sua experiência profissional com a história da ciência e seu tempo no Center for Advanced Studies in the Behavioral Sciences como fundamentais para o desenvolvimento de suas ideias Ele introduz a noção de paradigma que vai além de uma teoria específica e engloba uma série de elementos como técnicas valores e crenças Esse conceito é crucial para entender a ciência normal período em que os cientistas se dedicam a resolver problemas dentro de um paradigma estabelecido Contrariamente ao que se pensava a atividade do cientista normal não visa confirmar ou refutar o paradigma mas sim aprofundar o estudo da natureza Kuhn destaca a natureza tácita do conhecimento do cientista normal adquirido através da imitação de problemassoluções exemplares o que questiona a abordagem positivista do significado dos termos teóricos As investigações na ciência normal muitas vezes resultam em anomalias que não são vistas como falsificadoras do paradigma mas como desafios que podem levar a estados de crise e eventualmente a uma busca por alternativas paradigmáticas A análise do conceito de paradigma e da ciência normal feita por Chibeni destaca a importância desses elementos na compreensão da proposta de Kuhn Ao explorar a noção de ciência normal o autor ressalta a abordagem nãocrítica do cientista questionando o papel das regras explícitas na formação do conhecimento científico Essa revisão crítica enriquece a compreensão do leitor sobre os fundamentos da teoria de Kuhn e suas implicações para a filosofia da ciência A discussão sobre o irracionalismo e a incomensurabilidade na obra de Thomas Kuhn abre um cenário complexo onde as fronteiras entre paradigmas científicos se tornam nebulosas e a transição entre eles parece escapar à lógica linear e objetiva Inicialmente a leitura realista não irracionalista das primeiras seções do livro de Kuhn parece plausível pois ele descreve o processo científico de forma que se encaixa dentro do paradigma do realismo científico comum No entanto à medida que Kuhn adentra nas discussões sobre as revoluções científicas e a mudança de paradigma uma reconstrução realista não irracionalista tornase cada vez mais difícil de sustentar Kuhn explicita sua posição antirealista em artigos posteriores refutando a visão tradicional de que a ciência busca a verdade objetiva No entanto ele nega veementemente a acusação de irracionalismo mesmo que suas ideias sobre incomensurabilidade dos paradigmas possam dar margem a essa interpretação A tensão entre suas posições é perceptível desde o texto original de 1962 Ao discutir a transição entre paradigmas Kuhn sugere que a escolha entre eles não é simplesmente uma questão de lógica ou evidência empírica mas sim uma mudança fundamental de perspectiva que redefine tanto os problemas quanto as soluções aceitáveis pela comunidade científica Ele argumenta que os paradigmas são incomensuráveis o que implica que não há critérios objetivos para determinar a superioridade de um sobre o outro Essa incomensurabilidade é fundamentada em três razões principais Primeiro Kuhn compara as mudanças de paradigma às revoluções políticas onde diferentes visões de mundo são incompatíveis e a escolha entre elas é essencialmente circular baseada nos valores e premissas de cada grupo Segundo ele argumenta que os próprios dados empíricos dependem do paradigma adotado o que implica que a mudança de paradigma altera não apenas as teorias mas também a percepção dos fenômenos observados Por fim Kuhn defende que a mudança de paradigma implica uma mudança nos significados dos termos científicos o que torna as teorias incomensuráveis entre si Essa perspectiva desafia a visão tradicional da ciência como um processo objetivo e cumulativo em direção à verdade Para Kuhn a mudança de paradigma é uma reconstrução fundamental do campo científico onde diferentes visões de mundo competem entre si sem que haja critérios objetivos para determinar qual é a verdadeira Assim enquanto Kuhn rejeita o irracionalismo suas ideias sobre incomensurabilidade lançam dúvidas sobre a racionalidade do processo científico conforme tradicionalmente entendido A crítica à incomensurabilidade conforme delineada abrange diversas áreas conceituais fundamentais propostas por Kuhn Uma análise cuidadosa revela pontos de discordância substanciais com a abordagem kuhniana Primeiramente a tese da mudança radical dos significados é questionada Embora seja reconhecida a insuficiência da teoria positivista do significado Kuhn não apresenta argumentos convincentes para demonstrar que a mudança teórica implica necessariamente em uma mudança radical nos significados de termos empíricos simples como chapa fotográfica ou verde Sua omissão neste aspecto compromete sua argumentação especialmente diante do holismo radical do significado que contradiz o senso filosófico comum Além disso a interdependência de significados entre termos teóricos é contestada pela teoria dos lawcluster concepts de Hilary Putnam que poderia ser utilizada para mitigar a tese da variação do significado proposta por Kuhn Isso sugere que a posição kuhniana não é a única possível e que outras teorias filosóficas oferecem perspectivas alternativas No que diz respeito à percepção a posição de Kuhn é considerada extremada e carecedora de justificativa adequada Sua própria admissão de que não dispõe de argumentos suficientemente fortes para sustentar sua radicalidade enfraquece sua posição A aplicação da teoria da incomensurabilidade à percepção de entidades como oxigênio condensador e átomos é questionada especialmente diante da falta de uma linguagem observacional pura A sugestão de que cientistas tratam essas entidades como fundamentais em sua experiência imediata parece não estar fundamentada em bases sólidas Por fim a tese da mudança do referencial também é criticada A falta de um corpo mínimo de premissas comuns é contraditória com várias afirmações de Kuhn sobre os valores compartilhados pelos cientistas a sobreposição entre os problemas resolvidos pelos paradigmas sucessivos e a preservação de partes concretas das realizações passadas Essas afirmações parecem mais conformes ao senso comum e à tradição filosófica do que a tese da incomensurabilidade o que sugere que é legítimo e natural aceitálas e utilizálas para criticar a posição de Kuhn Apesar das críticas à tese da incomensurabilidade é reconhecido que a análise da ciência empreendida por Kuhn contém elementos originais e importantes Estes devem ser considerados independentemente da rejeição da incomensurabilidade forte contribuindo para uma compreensão mais profunda da natureza da ciência Após a leitura do texto fica claro que o autor apresenta uma série de críticas às teses de Thomas Kuhn sobre a incomensurabilidade na ciência Uma das críticas centrais diz respeito à falta de justificativa adequada por parte de Kuhn para sustentar sua posição extremada Questionase a ideia de que a mudança radical das teorias científicas implica necessariamente em uma mudança radical nos significados dos termos empíricos simples como chapa fotográfica ou verde argumentando que essa visão vai contra o bom senso filosófico Além disso o autor destaca a existência de teorias filosóficas alternativas como a teoria dos lawcluster concepts de Hilary Putnam que poderiam oferecer uma perspectiva diferente sobre a relação entre os significados dos termos teóricos e empíricos A crítica de também se estende à aplicação da incomensurabilidade à percepção de entidades como oxigênio e átomos destacando a falta de uma linguagem observacional pura e argumentando que a sugestão de que cientistas tratam essas entidades como fundamentais em sua experiência imediata carece de fundamentação sólida Por fim o autor questiona a falta de um corpo mínimo de premissas comuns para argumentos a favor e contra os paradigmas científicos apontando contradições nas próprias afirmações de Kuhn sobre os valores compartilhados pelos cientistas e a preservação de partes concretas das realizações passadas Apesar das críticas reconhecese a importância dos elementos originais apresentados por Kuhn em sua análise da ciência sugerindo que esses elementos devem ser considerados independentemente da rejeição da incomensurabilidade forte
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KUHN E A ESTRUTURA DAS REVOLUÇÕES CIENTÍFICAS SILVIO SENO CHIBENI Departamento de Filosofia IFCH Universidade Estadual de Campinas wwwunicampbrchibeni ÍNDICE 1Introdução 1 2 Paradigmas e ciência normal 2 3 Irracionalismo e incomensurabilidade 3 4 Esboço de críticas à incomensurabilidade 4 5 Referências 5 1 INTRODUÇÃO As presentes notas primeiramente recapitulam e reconstroem racionalmente de maneira breve os elementos centrais mais originais da visão de ciência proposta por Thomas Kuhn nas Seções 1 a 7 de The Structure of Scientific Revolutions As seções restantes nas quais a controversa tese da incomensurabilidade dos paradigmas é apresentada e defendida são então objeto de uma análise em nível introdutório Após o isolamento de algumas passagens nas quais a visão de Kuhn parece enquadrarse na concepção usual que não contempla a existência da incomensurabilidade procurase extrair do texto complexo as três razões principais que Kuhn apresenta a favor daquela tese Por fim esboçase um esquema das objeções que se poderiam levantar contra a argumentação de Kuhn O objetivo aqui é primordialmente pedagógico estas anotações poderiam servir para uma discussão em um curso de graduação que se seguiria a uma primeira leitura do livro de Kuhn Não se fará qualquer tentativa de acompanhar o problemático desenvolvimento do pensamento de Kuhn em seus escritos filosóficos posteriores incluindose aí o perturbador Posfácio de 1969 Também foge completamente ao escopo destas notas a avaliação geral da filosofia da ciência de Kuhn bem como o exame de seus antecessores e de seus numerosos críticos e seguidores1 2 PARADIGMAS E CIÊNCIA NORMAL No Prefácio de seu livro Kuhn aponta dois fatores decisivos na gênese de suas idéias acerca da ciência Primeiro seu contato profissional com a história da ciência reveloulhe a inadequação da visão corrente de ciência Depois seu estágio no Center for Advanced Studies in the Behavioral Sciences da Universidade de Stanford possibilitoulhe comparar os problemas métodos valores e atividades dos cientistas sociais com os dos cientistas naturais que lhe eram familiares Esse confronto forneceulhe a chave para a compreensão da natureza da ciência Uma disciplina ingressa na fase científica com a aquisição de um paradigma2 A noção de paradigma recebe ao longo do livro caracterizações múltiplas e nem sempre precisas conforme o próprio Kuhn irá conceder depois3 Aqui nos contentaremos em observar que o que Kuhn tem em mente é que uma disciplina científica não se caracteriza conforme usualmente se assumia apenas por uma dada teoria específica ao lado dela encontrase uma plêiade de teorias auxiliares técnicas matemáticas e experimentais realizações concretas que servem de modelo valores crenças variadas inclusive de ordem metafísica etc4 Às atividades desenvolvidas pelos cientistas sob a diretriz de um determinado paradigma Kuhn denomina ciência normal Em oposição os episódios nos quais um paradigma é substituído por outro constituem as revoluções científicas Indubitavelmente uma das mais importantes contribuições de Kuhn à filosofia da ciência foi haver descoberto nas palavras de Popper 1970 a existência da ciência normal ou seja ter notado que há períodos do desenvolvimento de uma dada especialidade científica em que os cientistas dedicamse a resolver os problemas deixados em aberto pelo paradigma5 A estes problemas Kuhn denomina quebracabeças puzzles Seção 4 Como a partilha de um paradigma tem o efeito de eliminar as discussões sobre os fundamentos e de fixar as regras padrões e objetivos de sua disciplina os cientistas normais podem centralizar seus esforços na articulação interna do paradigma na extensão do conhecimento dos fatos selecionados como importantes pelo paradigma e no incremento do ajuste desses fatos com as previsões teóricas do paradigma Kuhn defende que essa atividade do cientista normal não visa a confirmar ou refutar o paradigma sob o qual se desenvolve A postura nãocrítica do cientista normal diante do paradigma que adota é essencial segundo ele para que o estudo da Natureza possa ser aprofundado A descrição detalhada que Kuhn fornece da ciência normal contém elementos originais importantes Kuhn defende que grande parte do conhecimento do cientista normal é na expressão de Polanyi tácito ie adquirido pela inspeção e imitação de problemassoluções exemplares e não através de regras e proposições explicitáveis Seções 4 e 5 Isto leva Kuhn a investigar o processo de aprendizado de ciência Seção 11 Expende a tal respeito interessantes considerações sobre o papel dos livrostexto na educação científica ressaltando sua eficácia na formação do cientista normal6 Associada a esse assunto está a crítica de Kuhn à doutrina positivista do significado dos termos teóricos segundo a qual tais termos adquirem significado através de sua conexão aos termos observacionais através de regras de correspondência7 Propõe que embora certas regras explícitas possam em determinadas ocasiões contribuir para a especificação dos significados dos termos uma parte importante desse significado é adquirida pela exposição a exemplares Ademais sustenta 8 que qualquer reconstrução racional do conhecimento científico que procure reduzir os significados dos termos a regras de correspondência distorcerá de modo grave a nossa compreensão da natureza daquele conhecimento As investigações da ciência normal acabam levando não intencionalmente à acumulação de quebra cabeças particularmente resistentes às tentativas de resolução Essas dificuldades de ajuste do paradigma à Natureza não são vistas como falseadoras do paradigma mas como meras anomalias Seções 6 e 7 Quando incidem sobre partes vitais do paradigma ou estão ligadas a algum fator externo premente ou acumulamse em grande número ou resistem por muito tempo essas anomalias levam a estados de crise Seções 7 e 8 Somente então iniciase a busca deliberada de alternativas para o paradigma vigente Fatores variados e não necessariamente racionais podem levar um indivíduo ou um pequeno grupo de indivíduos a se interessar por uma dessas alternativas por embrionárias que sejam e tomar para si a tarefa de desenvolvêla e posteriormente de convencer o restante da comunidade científica a que pertencem Apenas nessas condições a comunidade científica pode se dispor a abandonar o seu paradigma um paradigma nunca é rejeitado sem que concomitantemente um outro seja aceito Esta é outra tese importante de Kuhn Seção 8 que foi também defendida de forma independente por outros filósofos da ciência seus contemporâneos 3 IRRACIONALISMO E INCOMENSURABILIDADE Nada do que foi visto até aqui conflita com a visão realista e não irracionalista ordinária Ou pelo menos podese afirmar que é possível uma leitura realista não irracionalista das primeiras sete seções do livro de Kuhn Quando porém adentramos as seções nas quais Kuhn trata das revoluções científicas e expõe as razões que acredita determinarem a mudança de paradigma uma reconstrução realista não irracionalista começa a parecer implausível Em seus artigos posteriores Kuhn explicitamente admite e reitera a sua posição antirealista Enfatiza que a visão realista usual segundo a qual o objetivo da ciência é a busca da verdade entendida no sentido clássico é insustentável9 Nas presentes notas essa questão não será abordada de maneira explícita Já a acusação de irracionalismo é repudiada veementemente por Kuhn10 Paradoxalmente ao mesmo tempo reforça seus argumentos a favor da tese da incomensurabilidade dos paradigmas que dá margem àquela acusação Essa tensão já está presente no texto original de 1962 e é exclusivamente dele que nos ocuparemos a seguir Inicialmente isolemos algumas passagens compatíveis com uma visão não irracionalista do processo de substituição de paradigmas Há três tipos de saída para uma crise p 84 i A articulação ulterior do paradigma acaba resolvendo as anomalias que geraram a crise ii as anomalias resistem mas são postas de lado aguardando solução futura ou iii um novo paradigma é adotado à luz do qual as anomalias se resolvem ou deixam de ser consideradas importantes A decisão de se rejeitar um paradigma é sempre simultaneamente a decisão de se aceitar um outro e o julgamento que leva à decisão envolve a comparação de ambos os paradigmas com a Natureza e a comparação de um paradigma com o outro p 77 A transição de um paradigma em crise para um novo paradigma a partir do qual uma nova tradição de ciência normal possa emergir está longe de ser um processo cumulativo alcançado através de uma articulação ou extensão do paradigma anterior É ao invés uma reconstrução do campo a partir de fundamentos novos que muda algumas de suas mais elementares generalizações teóricas bem como muitos dos métodos e aplicações de seu paradigma Durante o período de transição haverá uma sobreposição overlap ampla porém nunca completa entre os problemas que podem ser resolvidos pelo velho e pelo novo paradigma pp 845 Kuhn defende aqui a tese antipositivista já defendida por Popper de que uma nova teoria ou mais amplamente um novo paradigma não pode ser interpretada como um caso particular da teoria anterior As revoluções científicas são aqui tomadas como sendo aqueles episódios nãocumulativos nos quais um paradigma mais velho é substituído total ou parcialmente por um paradigma incompatível 11 Sendo os paradigmas constelações tão amplas de teorias métodos técnicas e valores com contornos parcialmente difusos a competição entre paradigmas não é o tipo de batalha que possa ser resolvida por provas p 148 não pode ser forçada pela lógica e pela experiência neutra p 150 No entanto faz muito sentido perguntarse qual dentre duas teorias atuais em competição se ajusta melhor aos fatos p 147 Ademais dizer que a resistência à mudança de paradigma é inevitável e legítima que a mudança de paradigma não pode ser justificada por provas não é dizer que nenhum argumento é relevante ou que os cientistas não possam ser persuadidos a mudar de opinião A questão da natureza dos argumentos científicos nas fases revolucionárias não possui uma resposta única e uniforme Provavelmente a mais determinante alegação isolada da parte dos proponentes de um novo paradigma é que eles podem resolver as dificuldades que levaram à crise Alegações desse tipo são particularmente propensas a alcançar êxito se o novo paradigma exibe uma precisão quantitativa flagrantemente melhor do que o seu competidor mais velho Argumentos particularmente persuasivos podem ser desenvolvidos se o novo paradigma permite a predição de fenômenos de que de nenhum modo se suspeitava enquanto o velho paradigma prevalecia pp 1524 Todos os argumentos a favor de um novo paradigma discutidos até aqui baseiamse na capacidade comparada dos competidores resolverem problemas Para os cientistas esses argumentos são os mais significativos e persuasivos Os exemplos precedentes não deixam dúvida sobre a fonte de seu imenso apelo p 155 Embora os paradigmas novos raramente ou nunca possuam todas as capacidades de seus predecessores eles usualmente preservam muito das partes mais concretas das realizações achievements passadas e sempre permitem problemassoluções concretos adicionais p 169 Passemos agora a algumas das afirmações de Kuhn que deram lugar às críticas de irracionalismo Muitas passagens do livro indicam que Kuhn concebe o processo de substituição de paradigmas como não sendo passível de efetuarse com base em critérios objetivos12 Central nesta questão é a afirmação de que diferentes paradigmas são incomensuráveis Como a noção de paradigma a noção de incomensurabilidade é de caracterização problemática nos escritos de Kuhn Grosso modo ligase a uma alegada dificuldade de comunicação entre os profitentes de paradigmas diferentes 13 Para efeito de análise é conveniente separar em três as razões de Kuhn para essa tese mudança do referencial mudança dos dados e mudança dos significados i A primeira razão a mudança do referencial é exposta pela primeira vez de modo mais ou menos extenso no início da Seção 9 Kuhn traça um paralelo entre as revoluções científicas e as revoluções políticas Vejamos estes trechos As revoluções políticas objetivam a mudar as instituições políticas de maneiras que essas próprias instituições proíbem O seu sucesso requer pois o parcial abandono de um conjunto de instituições em favor de outro e no ínterim a sociedade não é completamente governada por nenhuma instituição Então à medida que a crise se aprofunda muitos desses indivíduos se comprometem com alguma proposta concreta de reconstrução da sociedade segundo um novo referencial institucional E uma vez ocorrida a polarização recursos políticos falham Por diferirem sobre a matriz institucional dentro da qual a mudança política deve ser alcançada e avaliada e por não reconhecerem nenhum referencial suprainstitucional para a arbitragem das diferenças revolucionárias as partes de um conflito revolucionário têm em última instância de apelar para técnicas de persuasão de massa e freqüentemente ao uso da força Embora as revoluções tenham tido um papel vital na evolução das instituições políticas esse papel depende de serem eventos parcialmente extrapolíticos ou extra institucionais O restante deste ensaio objetiva a demonstrar que o estudo histórico das mudanças de paradigma revela na evolução da ciência características muito semelhantes às que vimos de descrever Como a escolha entre instituições políticas em competição a escolha entre paradigmas em competição mostrase ser uma escolha entre modos de vida comunitária incompatíveis Quando paradigmas comparecem como têm de comparecer no debate sobre a escolha de paradigmas seu papel é necessariamente circular Cada grupo usa o seu próprio paradigma para argumentar na defesa desse mesmo paradigma pp 934 A argumentação não pode ser tornada lógica ou mesmo probabilisticamente determinante para aqueles que se recusam a entrar no círculo As premissas e valores partilhados pelas duas partes de um debate sobre paradigmas não são suficientemente extensas para tal Como nas revoluções políticas também na escolha entre paradigmas não existe padrão superior ao assentimento da comunidade relevante p 94 Essa opinião de Kuhn recebe plausibilidade por sua referência não a teorias mas a paradigmas que são muito mais abrangentes conforme fica explícito nesta passagem Paradigmas sucessivos nos dizem coisas diferentes sobre a população do Universo e sobre o comportamento dessa população Mas paradigmas diferem mais do que nisto pois se dirigem não apenas à Natureza mas também reflexivamente sobre a ciência que os produziu São a fonte dos métodos campo de problemas e padrões de solução aceitos por toda comunidade científica madura em qualquer tempo Como conseqüência a aceitação de um novo paradigma freqüentemente requer uma redefinição da ciência correspondente Alguns dos velhos problemas podem ser relegados a uma outra ciência ou declarados completamente nãocientíficos Outros que previamente eram não existentes ou triviais podem com um novo paradigma tornarse os arquétipos mesmos da realização científica importante E com a mudança dos problemas freqüentemente também mudam os padrões que distinguem soluções científicas reais de meras especulações metafísicas jogos de palavras ou brincadeiras matemáticas A tradição de ciência normal que emerge de uma revolução científica não é apenas incompatível mas freqüentemente incomensurável com a tradição anterior p 103 E um pouco mais adiante Kuhn comenta Ao aprender um paradigma o cientista adquire teoria métodos e padrões conjuntamente usualmente em uma mistura inextricável Portanto quando os paradigmas mudam usualmente há deslocamentos significantes nos critérios que determinam a legitimidade tanto dos problemas como das soluções propostas Essa observação fornece nossa primeira indicação explícita de porque a escolha entre paradigmas em competição via de regra suscita questões que não podem ser resolvidas pelos critérios da ciência normal Na medida em que duas escolas científicas discordam sobre o que é um problema e sobre o que é uma solução elas irão inevitavelmente engajarse em um diálogo de surdos talk through each other quando debaterem os méritos relativos de seus respectivos paradigmas Nos argumentos parcialmente circulares que via de regra resultam de tal situação mostrarseá que cada paradigma satisfaz mais ou menos os critérios que ele dita para si mesmo e não satisfaz alguns daqueles ditados por seu oponente Há ainda outras razões para a incompletude do contato lógico que caracteriza os debates de paradigmas Por exemplo visto que nenhum paradigma jamais resolve todos os problemas que ele define e visto que nenhum par de paradigmas deixam sem solução exatamente os mesmos problemas os debates de paradigma sempre envolvem a questão Quais problemas é mais importante ter resolvido Como a questão dos padrões em competição essa questão de valores pode ser respondida apenas em termos de critérios que ficam completamente fora da ciência normal e é tal recurso a critérios externos que de modo mais óbvio torna o debate de paradigmas revolucionário pp 10910 ii Uma segunda razão para a incomensurabilidade surge porém com a argumentação filosófica direta que Kuhn apresenta contra a existência de uma base empírica mínima comum que poderia servir de referência nas disputas entre paradigmas rivais Tratase do que acima denominamos tese da mudança dos dados Kuhn defende que os próprios dados empíricos dependem de modo tão estreito do paradigma adotado que quando este muda aqueles também mudam Kuhn rejeita a opinião ordinária segundo a qual os dados são de algum modo neutros podendo ser interpretados desta ou daquela maneira dependendo do paradigma que se adote Kuhn inicia a defesa dessa tese na Seção 8 onde aproveita e radicaliza a idéia de Hanson de que a mudança de paradigma pode ser comparada a uma mudança de gestalt Comenta então que Esse paralelo pode ser enganoso Os cientistas não vêem algo como alguma outra coisa eles simplesmente o vêem p 85 O assunto é retomado explicitamente na Seção 10 na qual Kuhn expõe mais extensamente os motivos pelos quais a comparação com as gestalt switches são por um lado adequadas e por outro não As razões da inadequação são basicamente duas no caso das mudanças de gestalt que acompanham as mudanças de paradigma não dispomos de um padrão externo com relação ao qual a comutação de visão possa ser demonstrada p 114 e a mudança é em geral irreversível Tais pontos ficarão evidenciados nas citações abaixo que também exibem o caráter radical da posição de Kuhn Guiados por um novo paradigma os cientistas adotam novos instrumentos e olham para novos lugares Mais importante ainda durante as revoluções os cientistas vêem coisas novas e diferentes quando olham com instrumentos familiares para os lugares que haviam olhado anteriormente Na medida em que o seu único acesso ao mundo é através do que vêem e fazem podemos desejar dizer que após a revolução os cientistas estão respondendo a um mundo diferente p 111 O que eram patos no mundo do cientista antes da revolução são coelhos após ela Transformações como essas embora mais graduais e quase sempre irreversíveis são concomitantes comuns do treinamento científico Olhando para uma câmara de bolhas o estudante vê linhas entrecortadas e confusas enquanto que o físico vê um registro de eventos subnucleares sic familiares O mundo no qual o estudante então adentra não é porém fixado de uma vez por todas pela natureza do meio environment de um lado e da ciência de outro É ao invés determinado conjuntamente pelo meio e pela tradição de ciência normal particular que o estudante foi treinado para seguir Portanto nos momentos de uma revolução quando a tradição de ciência normal muda a percepção que o cientista tem de seu meio tem de ser reeducada em algumas situações familiares ele tem de aprender a ver uma nova gestalt Uma vez que o faça o mundo de sua pesquisa parecerá aqui e ali incomensurável com o que habitava antes Esta é outra razão pela qual escolas guiadas por diferentes paradigmas estão sempre ligeiramente at crosspurposes pp 1112 Considerando então os experimentos psicológicos dos óculos inversores e das cartas de baralho anômalas Kuhn acrescenta A revisão da rica literatura experimental da qual esses exemplos foram tirados nos faz suspeitar que algo parecido com um paradigma é prérequisito para a própria percepção O que um homem vê depende tanto daquilo para que olha como daquilo que sua experiência visualperceptual prévia o ensinou a ver p 113 Ainda comentando os tais experimentos psicológicos Kuhn continua O sujeito de um experimento de cartas anômalas sabe que sua percepção há de ter mudado porque uma autoridade externa o experimentador asseguralhe que independentemente do que ele viu estava o tempo todo olhando para um cinco de copas preto A menos que haja um padrão externo com respeito ao qual uma comutação de visão possa ser demonstrada nenhuma conclusão sobre possibilidades perceptuais alternativas poderia ser extraída Com a observação científica porém a situação é exatamente oposta O cientista não pode ter outro recurso além ou acima do que ele vê com seus olhos e instrumentos Nas ciências portanto se comutações perceptuais acompanham as mudanças de paradigma não podemos esperar que os cientistas atestem tais comutações diretamente pp 1145 Kuhn passa então a fornecer vários exemplos de mudança perceptual que teriam ocorrido na astronomia olhando para a Lua antes viase um planeta depois um satélite olhandose para um certo ponto luminoso nos céus antes viase uma estrela depois um cometa e por fim o planeta Urano etc Como já mencionamos Kuhn rejeita explicitamente a explicação interpretativa destes casos segundo a qual se diz por exemplo que viase a Lua como um planeta e depois como um satélite Nisso consiste pois a tese da mudança dos dados sobre a qual Kuhn continuará insistindo até o final do livro Um pouco mais adiante nesta mesma Seção 10 por exemplo Kuhn considerará extensamente o famoso caso do pêndulo Até que aquele paradigma escolástico a teoria do impetus fosse inventado não havia pêndulos para os cientistas verem mas apenas pedras balançantes p 120 Feita essa extensão do conceito de percepção para englobar boa parte do conceito de interpretação Kuhn parece defender ainda nessa mesma seção uma radical extensão do conceito de percepção numa segunda direção este conceito se aplicaria não somente aos objetos macroscópicos ordinários mas também às entidades usualmente tidas como inobserváveis postuladas pelas diferentes teorias científicas como elétrons campos magnéticos vírus etc Nesse sentido ampliado Kuhn fala então por exemplo que Lavoisier viu oxigênio onde Pristley tinha visto ar desflogistizado e onde outros não tinham visto absolutamente nada p 118 que onde Bertholet via um composto químico Proust via apenas uma mistura física p 132 e até mesmo que ao contemplar uma pedra que cai Aristóteles via uma mudança de estado ao invés de um processo p 124 iii A terceira razão para a incomensurabilidade dos paradigmas é introduzida por Kuhn quando ele discute a tese da inclusão lógica das teorias ver nota 11 acima Tratase da mudança dos significados dos termos em que uma teoria se expressa Isso impede que a teoria antiga seja deduzida como um caso especial da nova teoria Conforme já observamos Kuhn rejeita a doutrina positivista do significado dos termos teóricos Sua proposta apresentada brevemente acima importa em uma concepção holista do significado segundo a qual os significados dos termos teóricos de uma teoria dependem da totalidade de suas conexões com os demais termos Assim se em um novo paradigma um determinado conceito comparece em leis e relações diferentes o seu significado será ipso facto alterado Vejamos estas assertivas típicas de Kuhn a páginas 149 e 150 Algo mais do que a incomensurabilidade de padrões é no entanto envolvido nas mudanças de paradigma Como os novos paradigmas nascem dos velhos eles ordinariamente incorporam muito do vocabulário e aparelhos conceptuais e manipulativos que o paradigma tradicional havia anteriormente empregado Mas eles raramente empregam da maneira tradicional esses elementos emprestados Dentro do novo paradigma os velhos termos conceitos e experimentos caem sob novas relações uns com os outros O resultado inevitável é aquilo que temos de denominar embora o termo não seja muito correto um desentendimento misunderstanding entre as duas escolas em competição Os leigos que mofaram da teoria da relatividade geral de Einstein porque o espaço não podia ser curvo não estavam simplesmente errados como também não estavam os matemáticos físicos e filósofos que tentaram desenvolver uma versão euclidiana da teoria de Einstein O que anteriormente se havia significado por espaço era necessariamente plano homogêneo isotrópico e não afetado pela presença da matéria Para efetuar a transição para o universo de Einstein a rede conceitual completa whole conceptual web cujos fios são espaço tempo matéria força etc teve que ser deslocada e ajustada de novo ao todo da Natureza Somente os homens que juntos fizeram ou deixaram de fazer essa transformação estariam aptos a descobrir precisamente aquilo sobre o que concordavam ou discordavam Considere como um outro exemplo os homens que chamavam Copérnico de louco porque ele afirmava que a Terra se movia Parte do que eles significavam por Terra era posição fixa A sua Terra pelo menos não podia ser movida Correspondentemente a inovação de Copérnico não foi simplesmente mover a Terra Ao invés foi toda uma maneira nova de considerar os problemas da física e da astronomia que necessariamente mudou o significado de ambos Terra e movimento Sem tais mudanças o conceito de uma Terra móvel era loucura Este último exemplo traz à luz um aspecto importante De forma consentânea com sua rejeição da distinção positivista entre termos teóricos e observacionais ver pp 126 et seqs Kuhn estende a doutrina holista do significado aos próprios termos tidos como observacionais como Terra movimento etc Assim para ele os significados de todos os termos podem se alterar com a mudança de paradigma Evidentemente isto implica a incomensurabilidade radical dos paradigmas 4 ESBOÇO DE CRÍTICAS À INCOMENSURABILIDADE Indicaremos agora de modo esquemático alguns pontos sobre os quais críticas às teses de Kuhn acerca da incomensurabilidade podem ser desenvolvidas Iniciaremos pela última razão apontada ou seja pela tese da mudança radical dos significados Parece razoável seguir Kuhn e Quine na rejeição da teoria positivista do significado dos termos teóricos dada a carga de argumentos que já se produziu contra ela Também temos que reconhecer que a própria proposta positivista de dividir de maneira objetiva e definitiva os termos nãológicos da linguagem da ciência em termos teóricos e termos observacionais puros encontrou objeções aparentemente insuperáveis No entanto não está claro que tais concessões nos empurrem para as posições extremas defendidas por Kuhn Primeiramente Kuhn não forneceu nenhum argumento para mostrar que a mudança de uma teoria altamente teórica sobre a estrutura do núcleo ou sobre o mecanismo molecular das mutações genéticas por exemplo acarreta alterações substanciais nos significados de termos que designam itens empíricos como chapa fotográfica ponteiro clicks por minuto círculo verde ervilha etc Essa é uma omissão grave de Kuhn pois o holismo radical do significado que invoca contra a comensurabilidade dos paradigmas contraria o bom senso filosófico como o exemplo que acabamos de dar evidencia e portanto não poderia ter sido proposto sem maiores justificações como o foi Ademais mesmo com relação à interdependência de significados entre termos relativamente próximos entre si e distantes do nível empírico na malha teórica de um paradigma há pelo menos uma teoria filosófica relativamente bem articulada a teoria dos lawcluster concepts desenvolvida por Hilary Putnam cuja exploração poderia ser usada para atenuar a tese da variação do significado adotada por Kuhn14 Passando agora à idéias de Kuhn acerca da percepção notamos inicialmente que o próprio Kuhn reconhece que está afrontando um tradicional paradigma filosófico que serviu bem tanto à ciência como à filosofia e para o qual ainda não se forneceu uma alternativa viável p 121 Na ausência de uma alternativa desenvolvida diz Kuhn acho impossível abandonar inteiramente esse ponto de vista p 126 Estou agudamente consciente confessa das dificuldades criadas ao se dizer por exemplo que quando Aristóteles e Galileo olhavam para pedras balançantes o primeiro via uma queda dificultada e o segundo um pêndulo Estou convencido apesar disso que temos de aprender a fazer sentido de proposições que pelo menos se pareçam com essas p 121 Como no caso da tese da mudança radical dos significados estamos aqui diante de uma posição filosófica extrema a favor da qual o próprio autor reconhece não dispor de argumentos cuja força seja proporcional à sua radicalidade Kuhn não mostrou que experiências perceptuais como a visão de um pêndulo não podem ser analisadas em partes mais elementares Aliás o próprio Kuhn não consegue manter consistentemente sua posição ao longo do livro como é óbvio de sua constante menção à pedra balançante para a qual tanto os aristotélicos como os cientistas modernos olhariam Sua afirmação citada acima de que a situação na ciência é exatamente oposta p 114 à do experimento de cartas anômalas e das figuras de gestalt porque em um caso haveria padrões externos e no outro não é claramente arbitrária E o realismo metafísico que subjaz à afirmação de que no caso das figuras de gestalt a pessoa sabe que nada mudou no mundo porque ela segura o mesmo pedaço de papel nas mãos p 114 é em diversas passagens estendido ao mundo que o cientista investiga15 A posição kuhniana sobre as percepções atinge a implausibilidade máxima quando Kuhn a aplica à visão do oxigênio do condensador dos compostos químicos e mesmo dos átomos e elétrons No final de suas críticas à tentativa do estabelecimento de uma linguagem observacional pura Kuhn acrescenta Sob tais circunstâncias podemos ao menos suspeitar que os cientistas estão certos tanto em princípio como na prática quando tratam oxigênio e pêndulos e talvez átomos e elétrons também como os ingredientes fundamentais de sua experiência imediata Isto é sugerir que o cientista que olha para uma pedra balançante não pode ter nenhuma experiência que seja em princípio mais elementar do que a visão de um pêndulo pp 1278 Deixando para o nosso leitor a avaliação final de semelhantes afirmações16 passemos para concluir à primeira razão para a incomensurabilidade apontada por Kuhn ou seja a que acima denominamos de tese da mudança do referencial A inexistência de um corpo mínimo de premissas comuns sobre as quais argumentos a favor e contra os paradigmas em debate poderiam se apoiar está em oposição aparente com várias afirmações do próprio Kuhn que já citamos anteriormente na Seção 3 os cientistas partilham como valores o objetivo de explicar a Natureza e resolver problemas a abrangência coerência interna e precisão quantitativa das teorias sua capacidade de antecipar fatos além disso há um sobreposição ampla entre os problemas que podem ser resolvidos pelos paradigmas sucessivos os paradigmas preservam muito das partes mais concretas das realizações passadas Essas últimas asserções fazem pouco sentido se não se assumir que há fatos empíricos comuns a diferentes paradigmas Dado que estas afirmações de Kuhn são claramente mais conformes ao senso comum à tradição filosófica e à observação do desenvolvimento histórico da ciência do que as afirmações anteriores a favor da incomensurabilidade parece legítimo e natural aceitálas e então usálas para criticar aquelas Notemos por fim que ainda que rejeitemos a tese da incomensurabilidade forte a análise da ciência empreendida por Kuhn contém elementos originais e importantes que podem ser mantidos independentemente Esses elementos mencionados brevemente na Seção 2 destas notas indubitavelmente devem ser levados em consideração em qualquer esforço ulterior de compreensão da natureza da ciência17 5 REFERÊNCIAS BIRD Alexander Thomas Kuhn The Stanford Encyclopedia of Philosophy Winter 2018 Edition Edward N Zalta ed httpsplatostanfordeduarchiveswin2018entriesthomaskuhn FEYERABEND P K 1970 Consolations for the specialist In Lakatos Musgrave 1970 pp 197230 KUHN T S 1970a The Structure of Scientific Revolutions 2nd ed Chicago University of Chicago Press 1970b Logic of discovery or psychology of research In Lakatos Musgrave 1970 pp 123 1970c Reflections on my critics In Lakatos Musgrave 1970 pp 23178 1977 Second thoughts on paradigms In Suppe 1977 pp 45982 2000 The Road Since Structure Chicago University of Chicago Press LAKATOS I Falsification and the methodology of scientific research programmes In Lakatos Musgrave 1970 pp 91195 LAKATOS I MUSGRAVE A 1970 eds Criticism and the Growth of Knowledge Cambridge Cambridge University Press MASTERMAN M 1970 The nature of a paradigm In Lakatos Musgrave 1970 pp 5989 NEWTONSMITH W H 1981 The Rationality of Science London and New York Routledge and Kegan Paul Oberheim Eric and HoyningenHuene Paul The Incommensurability of Scientific Theories The Stanford Encyclopedia of Philosophy Fall 2018 Edition Edward N Zalta ed httpsplatostanfordeduarchivesfall2018entriesincommensurability PEARCE WILLIAMS L 1970 Normal science scientific revolutions and the history of science In Lakatos Musgrave 1970 pp 4950 POPPER K R 1970 Normal science and its dangers In Lakatos Musgrave 1970 pp 518 PUTNAM H 1975 Mind Language and Reality Philosophical Papers vol 2 Cambridge Cambridge University Press SUPPE F 1977 ed The Structure of Scientific Theories 2nd ed Urbana Chicago and London University of Illinois Press TOULMIN S 1970 Does the distinction between normal and revolutionary science hold water In Lakatos Musgrave 1970 pp 3947 WATKINS J W N 1970 Against normal science In Lakatos Musgrave 1970 pp 2537 S S Chibeni 1 Para um texto recente e acessível sobre Thomas Kuhn ver por exemplo Bird 2018 2 Kuhn 1970a Seção 2 especialmente pp 13 19 e 22 Daqui em diante salvo indicação em contrário todas as referências de páginas se referirão a essa obra ou seja à segunda edição de The Structure of Scientific Theories exceto pelo acréscimo do Posfácio o texto corresponde ao da primeira edição com alterações mínimas Mais tarde Kuhn dirá que a transição para a fase científica só se dá com a aquisição de um tipo especial de paradigma ver Kuhn 1970a Posfácio pp 1789 Sobre o critério de demarcação kuhniano e sua comparação ao de Popper ver Kuhn 1970b Seção 1 3 Ver Kuhn 1970a Posfácio pp 1812 Kuhn 1977 passim Masterman 1970 4 Em textos posteriores Kuhn 1970a Posfácio pp 1745 1977 Seção II Kuhn irá distinguir o sentido amplo do termo paradigma tal qual acabamos de descrever e ao qual denomina matriz disciplinar de um sentido mais restrito e segundo ele filosoficamente mais profundo as soluções de quebracabeças concretas que empregadas como modelos ou exemplos podem substituir regras explícitas como uma base para a solução dos quebracabeças restantes da ciência normal 1970a p 175 a estes Kuhn denomina exemplares Abaixo continuaremos usando o termo geral paradigma a não ser quando uma maior precisão se fizer necessária 5 Alguns críticos eg Pearce Williams 1970 e Toulmin 1970 negam ou põem em dúvida a existência da ciência normal descrita por Kuhn Outros eg Popper 1970 Watkins 1970 e Feyerabend 1970 admitemna mas por motivos variados consideram a ciência normal nociva à ciência 6 Kuhn nota porém que esse tipo de obra introduz graves distorções na visão do desenvolvimento histórico da ciência tornando invisíveis as revoluções científicas 7 Além disso a própria distinção entre termos teóricos e observacionais é rejeitada por Kuhn 8 Isto é tornado explícito apenas em Kuhn 1977 Seções 4 5 e 6 9 Ver eg 1970a Posfácio Subseção 6 p 206 1970c Seção 5 pp 2645 10 Ver eg 1970c Seção 5 1970a Posfácio Subseção 5 11 P 92 Mais abaixo consideraremos com alguma extensão a razão filosófica principal pela qual Kuhn rejeita a tese da inclusão lógica das teorias sucessivas Fornece também razões históricas e metodológicas Embora admita que a tese é logicamente possível observa que não corresponde ao que de fato ocorreu no desenvolvimento da ciência E diz que há motivos para isto Primeiro o único motivo para a introdução de novas teorias é o desejo de dar conta de anomalias de uma teoria anterior e neste caso é evidente que deve existir um conflito entre a velha e a nova teoria Depois se a tese da inclusão lógica das teorias for defendida pela usual restrição das teorias a um certo domínio de fenômenos aqueles para os quais a teoria fornece previsões corretas tornase qualquer teoria já aplicada com sucesso a algum grupo de fenômenos imune a ataques ademais o cientista estaria neste caso impedido de falar cientificamente de fenômenos ainda não observados o que representaria o fim do avanço da ciência 12 Na penúltima seção do livro por exemplo encontramos esta afirmação forte Ordinariamente é apenas muito mais tarde após o novo paradigma haver sido desenvolvido aceito e explorado que argumentos aparentemente decisivos são desenvolvidos P 156 o grifo é nosso 13 Já vimos várias razões pelas quais os proponentes de paradigmas em competição hão de fracassar no estabelecimento de um contato completo com o ponto de vista uns dos outros Coletivamente essas razões foram descritas como a incomensurabilidade das tradições de ciência normal pré e pósparadigmáticas p 148 Uma análise acessível do conceito de incomensurabilidade pode ser encontrada em Oberheim HoyningenHuene 2018 14 O texto mais antigo de Putnam que trata desse assunto The analytic and the synthetic foi publicado no mesmo ano que o livro de Kuhn no volume III dos Minnesota Studies in the Philosophy of Science Reimpresso em Putnam 1975 pp 3369 É interessante notar que Putnam diz que a idéia dos law cluster concepts lhe foi sugerida pelas Philosophical Investigations de Wittgenstein e que Kuhn também declara que esta obra também teve uma influência no desenvolvimento de suas concepções acerca do significado Para uma defesa interessante da idéia de evadir à incomensurabilidade através da rejeição da doutrina do significado adotada por Kuhn ver NewtonSmith 1981 15 Na página 122 por exemplo Kuhn afirma a respeito do cientista que mudou de paradigma Confrontando a mesma constelação de objetos como antes e sabendo que o faz Na página 150 Kuhn diz sobre os cientistas de diferentes paradigmas Ambos estão olhando para o mundo e aquilo para que olham não mudou 16 Na Subseção 4 do Posfácio Kuhn recua parcialmente explicando que essas afirmações devem nos casos extremos ser entendidas metaforicamente De modo algum vemos correntes elétricas mas apenas a agulha de um amperímetro ou galvanômetro Porém nas páginas que precedem particularmente na Seção 10 repetidamente agi como se de fato percebêssemos entidades teóricas como correntes elétrons e campos como se aprendêssemos a fazêlo a partir do exame de exemplares e como se também nesses casos fosse errado substituir a fala de visão pela fala de critérios e interpretações A metáfora que transfere ver para contextos como esses dificilmente constitui base suficiente para aquelas afirmações A longo prazo elas precisarão ser eliminadas em favor de um modo de discurso mais literal pp 1967 No entanto as objeções que esboçamos acima continuam em boa parte se aplicando pois Kuhn continuará sempre insistindo em que nos casos menos extremos o que foi dito sobre sensação é para ser entendido literalmente p 196 e que o que a percepção deixa para a interpretação depende drasticamente da natureza e quantidade da experiência e treinamento prévios P 198 grifo nosso Em seu 1970c Kuhn volta à carga Essas relações de semelhança dessemelhança aprendidas são anteriores a uma lista de critérios que nos possibilitem definir nossos termos Até que as tenhamos aprendido de modo algum vemos um mundo p 274 Um pouco mais abaixo em um contexto em que discutia uma quebra de comunicação communication breakdown envolvendo elementos químicos planetas e pêndulos Kuhn afirma Não podemos dizer com segurança nem mesmo que os dois homens vêem a mesma coisa possuem os mesmos dados mas os interpretam de modo diferente p 276 17 Podese talvez argumentar que é precisamente isto o que Imre Lakatos procurou fazer RESENHA CRÍTICA O artigo Kuhn e a estrutura das revoluções científicas discute a visão de ciência proposta por Thomas Kuhn especialmente destacando a noção de paradigmas e a distinção entre ciência normal e revoluções científicas Chibeni autor do texto busca recapitular os elementos centrais de Kuhn e em seguida analisar criticamente a tese da incomensurabilidade dos paradigmas apresentada por Kuhn O objetivo principal das notas é fornecer um embasamento para discussões em cursos de graduação sem adentrar em outras obras de Kuhn ou avaliações mais amplas de sua filosofia da ciência Kuhn no prefácio de seu livro aponta sua experiência profissional com a história da ciência e seu tempo no Center for Advanced Studies in the Behavioral Sciences como fundamentais para o desenvolvimento de suas ideias Ele introduz a noção de paradigma que vai além de uma teoria específica e engloba uma série de elementos como técnicas valores e crenças Esse conceito é crucial para entender a ciência normal período em que os cientistas se dedicam a resolver problemas dentro de um paradigma estabelecido Contrariamente ao que se pensava a atividade do cientista normal não visa confirmar ou refutar o paradigma mas sim aprofundar o estudo da natureza Kuhn destaca a natureza tácita do conhecimento do cientista normal adquirido através da imitação de problemassoluções exemplares o que questiona a abordagem positivista do significado dos termos teóricos As investigações na ciência normal muitas vezes resultam em anomalias que não são vistas como falsificadoras do paradigma mas como desafios que podem levar a estados de crise e eventualmente a uma busca por alternativas paradigmáticas A análise do conceito de paradigma e da ciência normal feita por Chibeni destaca a importância desses elementos na compreensão da proposta de Kuhn Ao explorar a noção de ciência normal o autor ressalta a abordagem nãocrítica do cientista questionando o papel das regras explícitas na formação do conhecimento científico Essa revisão crítica enriquece a compreensão do leitor sobre os fundamentos da teoria de Kuhn e suas implicações para a filosofia da ciência A discussão sobre o irracionalismo e a incomensurabilidade na obra de Thomas Kuhn abre um cenário complexo onde as fronteiras entre paradigmas científicos se tornam nebulosas e a transição entre eles parece escapar à lógica linear e objetiva Inicialmente a leitura realista não irracionalista das primeiras seções do livro de Kuhn parece plausível pois ele descreve o processo científico de forma que se encaixa dentro do paradigma do realismo científico comum No entanto à medida que Kuhn adentra nas discussões sobre as revoluções científicas e a mudança de paradigma uma reconstrução realista não irracionalista tornase cada vez mais difícil de sustentar Kuhn explicita sua posição antirealista em artigos posteriores refutando a visão tradicional de que a ciência busca a verdade objetiva No entanto ele nega veementemente a acusação de irracionalismo mesmo que suas ideias sobre incomensurabilidade dos paradigmas possam dar margem a essa interpretação A tensão entre suas posições é perceptível desde o texto original de 1962 Ao discutir a transição entre paradigmas Kuhn sugere que a escolha entre eles não é simplesmente uma questão de lógica ou evidência empírica mas sim uma mudança fundamental de perspectiva que redefine tanto os problemas quanto as soluções aceitáveis pela comunidade científica Ele argumenta que os paradigmas são incomensuráveis o que implica que não há critérios objetivos para determinar a superioridade de um sobre o outro Essa incomensurabilidade é fundamentada em três razões principais Primeiro Kuhn compara as mudanças de paradigma às revoluções políticas onde diferentes visões de mundo são incompatíveis e a escolha entre elas é essencialmente circular baseada nos valores e premissas de cada grupo Segundo ele argumenta que os próprios dados empíricos dependem do paradigma adotado o que implica que a mudança de paradigma altera não apenas as teorias mas também a percepção dos fenômenos observados Por fim Kuhn defende que a mudança de paradigma implica uma mudança nos significados dos termos científicos o que torna as teorias incomensuráveis entre si Essa perspectiva desafia a visão tradicional da ciência como um processo objetivo e cumulativo em direção à verdade Para Kuhn a mudança de paradigma é uma reconstrução fundamental do campo científico onde diferentes visões de mundo competem entre si sem que haja critérios objetivos para determinar qual é a verdadeira Assim enquanto Kuhn rejeita o irracionalismo suas ideias sobre incomensurabilidade lançam dúvidas sobre a racionalidade do processo científico conforme tradicionalmente entendido A crítica à incomensurabilidade conforme delineada abrange diversas áreas conceituais fundamentais propostas por Kuhn Uma análise cuidadosa revela pontos de discordância substanciais com a abordagem kuhniana Primeiramente a tese da mudança radical dos significados é questionada Embora seja reconhecida a insuficiência da teoria positivista do significado Kuhn não apresenta argumentos convincentes para demonstrar que a mudança teórica implica necessariamente em uma mudança radical nos significados de termos empíricos simples como chapa fotográfica ou verde Sua omissão neste aspecto compromete sua argumentação especialmente diante do holismo radical do significado que contradiz o senso filosófico comum Além disso a interdependência de significados entre termos teóricos é contestada pela teoria dos lawcluster concepts de Hilary Putnam que poderia ser utilizada para mitigar a tese da variação do significado proposta por Kuhn Isso sugere que a posição kuhniana não é a única possível e que outras teorias filosóficas oferecem perspectivas alternativas No que diz respeito à percepção a posição de Kuhn é considerada extremada e carecedora de justificativa adequada Sua própria admissão de que não dispõe de argumentos suficientemente fortes para sustentar sua radicalidade enfraquece sua posição A aplicação da teoria da incomensurabilidade à percepção de entidades como oxigênio condensador e átomos é questionada especialmente diante da falta de uma linguagem observacional pura A sugestão de que cientistas tratam essas entidades como fundamentais em sua experiência imediata parece não estar fundamentada em bases sólidas Por fim a tese da mudança do referencial também é criticada A falta de um corpo mínimo de premissas comuns é contraditória com várias afirmações de Kuhn sobre os valores compartilhados pelos cientistas a sobreposição entre os problemas resolvidos pelos paradigmas sucessivos e a preservação de partes concretas das realizações passadas Essas afirmações parecem mais conformes ao senso comum e à tradição filosófica do que a tese da incomensurabilidade o que sugere que é legítimo e natural aceitálas e utilizálas para criticar a posição de Kuhn Apesar das críticas à tese da incomensurabilidade é reconhecido que a análise da ciência empreendida por Kuhn contém elementos originais e importantes Estes devem ser considerados independentemente da rejeição da incomensurabilidade forte contribuindo para uma compreensão mais profunda da natureza da ciência Após a leitura do texto fica claro que o autor apresenta uma série de críticas às teses de Thomas Kuhn sobre a incomensurabilidade na ciência Uma das críticas centrais diz respeito à falta de justificativa adequada por parte de Kuhn para sustentar sua posição extremada Questionase a ideia de que a mudança radical das teorias científicas implica necessariamente em uma mudança radical nos significados dos termos empíricos simples como chapa fotográfica ou verde argumentando que essa visão vai contra o bom senso filosófico Além disso o autor destaca a existência de teorias filosóficas alternativas como a teoria dos lawcluster concepts de Hilary Putnam que poderiam oferecer uma perspectiva diferente sobre a relação entre os significados dos termos teóricos e empíricos A crítica de também se estende à aplicação da incomensurabilidade à percepção de entidades como oxigênio e átomos destacando a falta de uma linguagem observacional pura e argumentando que a sugestão de que cientistas tratam essas entidades como fundamentais em sua experiência imediata carece de fundamentação sólida Por fim o autor questiona a falta de um corpo mínimo de premissas comuns para argumentos a favor e contra os paradigmas científicos apontando contradições nas próprias afirmações de Kuhn sobre os valores compartilhados pelos cientistas e a preservação de partes concretas das realizações passadas Apesar das críticas reconhecese a importância dos elementos originais apresentados por Kuhn em sua análise da ciência sugerindo que esses elementos devem ser considerados independentemente da rejeição da incomensurabilidade forte