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ENTRE QUATRO PAREDES Jean Paul Sartre Tradução de Guilherme de Almeida Personagens Inês Estelle Garcin O criado ENTRE QUATRO PAREDES Jean Paul Sartre 2 Cena 1 Garcin o criado do andar Um salão em estilo Segundo Império Um bronze sobre a lareira Garcin que entra e olha em torno Pois é Criado Pois é G Então é assim C É assim G Acho que com o tempo a gente se acostuma com os móveis C Isso depende das pessoas G Será que todos os quartos são iguais C Que idéia Recebemos chineses hindus Que quer que eles façam com uma poltrona Segundo Império G E eu Que quer que eu faça Sabe quem era eu Ora Isso não tem importância O que é fato é que sempre vivi no meio dos móveis de que não gostava e de situações falsas Achava isso adorável Que tal uma situação falsa numa sala de jantar a Luis Felipe C Vai ver também não ficará mal num salão Segundo Império G Ah Bom bom bom Olha em torno Em todo caso por essa eu não esperava Mas não me diga que não sabe o que se diz por lá C Sobre o quê G Quer dizer Num gesto vago e largo Sobre isso tudo C Acredita nessas tolices Gente que nunca pôs os pés aqui Se ao menos já tivessem estado por aqui G É mesmo Ambos riem Garcin fica sério de repente Onde estão as estacas C O quê G As estacas as grelhas os funis de couro C Está brincando G Silêncio Como Ah bem Não não estava brincando Silêncio Anda um pouco Nem espelhos nem janelas naturalmente Nada que seja frágil Com súbita violência E por que me tomaram a escova de dentes C Aí está a dignidade humana que volta É formidável G Batendo com raiva na poltrona Nada de formalidades comigo Reconheço minha posição mas não admito que C Cortando Está bem desculpe Mas o que quer Todos os fregueses fazem a mesma pergunta Mal chegam e querem saber Onde estão as estacas Garanto que nesse instante nem estão pensando em fazer sua toilette Depois ficam mais calmos e aí vem a escova de dentes Mas pelo amor de Deus pense um pouco Afinal de contas permita que eu lhe pergunte por que escovar os dentes G Calmo e sossegado É mesmo Por quê Olha em torno E por que olhar nos espelhos Ao passo que esse bronze felizmente Creio que há certos momentos em que seria capaz de olhar firme De olhar firme hein Ora ora Não há nada que ocultar diga lhe que conheço bem minha situação Quer que lhe conte como essas coisas se passam O sujeito sufoca mergulha afoga fica apenas com os olhos fora dágua e o que é que vê Um bronze de Barbedienne Que pesadelo Com certeza proibiram você de me responder Não insisto Mas não se esqueça de que ninguém me pilha assim à toa Não vá se gabar de me haver surpreendido Não sei encarar a situação de frente Continua a ENTRE QUATRO PAREDES Jean Paul Sartre 3 andar Então nada de escovas de dente Nada de cama também Porque não se dorme nunca não é isso C Ora essa G Eu era capaz de apostar Por que essa gente havia de dormir O sono ataca por trás das orelhas Sentese olhos se fechar mas por que dormir A gente se senta no sofá e psssst Adeus sono Então esfrega os olhos levantase e tudo recomeça C Como o senhor é romanesco G Calese Não vou gritar nem gemer mas quero encarar a situação de frente Não quero que ela se atire sobre mim por trás sem que eu possa reconhecêla Romanesco Então é que não se tem mesmo necessidade de sono Por que dormir se não se tem sono Ótimo Espera espera aí Por que é que há de ser doloroso por que é que há de ser forçosamente doloroso Já sei é a vida sem interrupção C Que interrupção G Remedandoo Que interrupção Desconfiado Olhe bem para mim Eu sabia Aí está o que explica a indiscrição grosseira e insustentável do seu olhar De fato estão atrofiadas C Do quê o senhor está falando G De suas pálpebras Nós nós batíamos as pálpebras Chamavase a isso piscar Um pequeno relâmpago negro uma cortina que cai e se ergue deuse a interrupção Os olhos se umedecem o mundo se aniquila Não pode imaginar como era refrescante Quatro mil repousos por hora Quatro mil pequenas evasões Quatro mil digo eu Como é Então vou viver sem pálpebras Não se faça de bobo Sem pálpebras sem sono é a mesma coisa Nunca mais hei de dormir Como poderei me tolerar Trate de responder faça um esforço Tenho um caráter implicante como vê e tenho o costume de implicar comigo mesmo Mas mas não posso estar implicando sem parar Por lá havia as noites Eu dormia Tinha o sono leve Em compensação sonhava coisas simples Havia uma campina Uma campina nada mais Eu sonhava que estava passeando por ela É de dia C Como vê as lâmpadas estão acesas G De fato É esse o dia de vocês E lá fora C Estupefato Lá fora G Lá fora do outro lado dessas paredes C Há um corredor G E no fim do corredor C Há outros quartos outros corredores e escadas G E que mais C Nada mais G Você naturalmente tem um dia de folga Aonde costuma ir C Em casa de meu tio que é chefe dos criados no terceiro andar G Eu devia ter desconfiado Onde está o interruptor da luz C Não existe G Como é Não se pode apagar C A gerência pode cortar a corrente elétrica Mas não me lembro se já aconteceu isso neste andar Temos eletricidade à vontade G Muito bem Quer dizer que a gente tem de viver de olhos abertos C Irônico Viver G Não vá me aborrecer agora por uma questão de vocabulário De olhos abertos Para sempre Será pleno dia em meus olhos E nada na minha cabeça Pausa E se eu atirasse esse bronze contra a lâmpada elétrica Será que ela se apagaria C É muito pesado ENTRE QUATRO PAREDES Jean Paul Sartre 4 G Tomando o bronze entre as mãos e tentando erguêlo Tem razão É muito pesado Silêncio C Se não precisa mais de mim vou me retirar G Sobressaltado Vaise embora Até logo O criado chega até à porta Espere O criado se volta É uma campainha isso aí O criado faz sinal que sim Posso tocar quando quiser e você tem obrigação de atender C Em princípio sim Mas a campainha é caprichosa Há qualquer coisa errada com o mecanismo G Vai até à campainha aperta o botão Ouvese o tocar Funciona C Espantado Funciona Toca também Mas não se entusiasme muito Isso não dura Então às suas ordens G Num gesto para detêlo Eu C O que há G Não não é nada Caminha pela sala Isso O que é C Não está vendo Um cortapapel G Há livros por aqui C Não G Então para quê isso O criado dá de ombros Está bem Pode se retirar O criado sai Cena 2 Garcin está só Vai até o bronze e o apalpa Sentase Levantase Vai até à campainha e aperta o botão Ela não toca Experimenta dois ou três vezes em vão Dirigese à porta e tenta abrila Não consegue Ele chama Criado criado Nenhuma resposta Esmurra a porta chamando o criado Acalmase subitamente Nesse instante abrese a porta e entra INÊS acompanhada do criado Cena 3 C A Garcin O senhor chamou G Não C Dirigindose a Inês Está em sua casa minha senhora Silêncio Se tiver alguma pergunta a fazer Inês não fala O criado está desapontado Os fregueses geralmente gostam de pedir informações Não importa Além do mais quanto à escova de dentes a campainha e o bronze de Barbedienne este senhor está a par de tudo e poderá informar tão bem quanto eu Sai Silêncio Garcin não olha para Inês Inês observa em redor e dirigese bruscamente a Garcin I Onde está Florence Silêncio de Garcin Perguntolhe Onde está Florence G Não sei de nada I Foi só isso que conseguiu descobrir A tortura pela ausência Pois falhou Florence era uma bobinha e não me faz falta G Queira perdoarme Quem está pensando que eu sou I O senhor O senhor é o carrasco G Sobressaltase e põese a rir É um equívoco engraçadíssimo O carrasco É boa A senhora entrou olhou para mim e pensou é o carrasco Que extravagância O criado é ridículo deveria ternos apresentado O carrasco Eu sou Joseph Garcin publicitário e ENTRE QUATRO PAREDES Jean Paul Sartre 5 homem de letras O fato é que estamos hospedados no mesmo estabelecimento senhora I Secamente Inês Serrano Senhorita G Muito bem Perfeito Derreteuse o gelo Quer dizer que me acha com cara de carrasco Quer fazer o favor de me explicar como se reconhecem os carrascos I Têm cara de quem tem medo G Medo É esquisitíssimo Medo de quem De suas vítimas I Ora Sei bem o que estou dizendo Espelho não me falta G Espelho Olha em volta Que maçada Tiraram daqui tudo quanto pudesse se parecer com um espelho Pausa Em todo caso posso lhe garantir que não tenho medo Não considero levianamente a situação e estou perfeitamente cônscio de sua gravidade Mas não tenho medo I Dando de ombros Isso é com o senhor Será que o senhor sai de vez em quando para um passeio G A porta está trancada I É pena G Compreendo muito bem que minha presença a aborrece E se dependesse de mim preferiria estar só Tenho que pôr a vida em ordem e preciso de sossego Mas tenho certeza de que nos acostumaremos um com o outro Não falo quase não me movo e faço pouco barulho Apenas se me atrevo a dar um conselho será bom conservarmos entre nós uma extrema polidez Será nossa melhor defesa I Não sou bem educada G Eu o serei por nós dois Um silêncio Garcin está sentado no sofá Inês andando de um lado para outro I Olhandoo Essa boca G Voltando a si Como é I Não é capaz de fazer parar sua boca Ela gira como um pião debaixo do nariz G Desculpe Não tinha percebido I É justamente o que estou censurando A boca é o tique de Garcin De novo Pretende ser bem educado e deixa sua cara assim à toa O senhor não está sozinho e não tem o direito de me impor o espetáculo do seu medo G Erguese e se dirige a ela E a senhora Não tem medo I Para quê O medo era bem antes quando tínhamos esperança G Com doçura Não há mais esperança mas estamos sempre antes Ainda não começamos a sofrer I Bem sei Um tempo Então o que é que vai acontecer G Não sei Estou esperando Silêncio Garcin vai se sentar de novo Inês continua a andar Garcin torce a boca e ao olhar para Inês esconde o rosto nas mãos Entra Estelle e o criado Cena 4 E Olha para Garcin que não ergueu a cabeça e a ele se dirige Não Não não erga a cabeça Eu sei que está escondendo a cabeça nas mãos Sei que não tem cara Garcin tira as mãos do rosto Ah Um tempo Surpreendida Não conheço o senhor G Não sou carrasco minha senhora ENTRE QUATRO PAREDES Jean Paul Sartre 6 E Não pensei que fosse o carrasco Eu eu pensei que alguém quisesse me pregar uma peça ao criado Quem mais está esperando C Ninguém mais E Aliviada Ah Então vamos ficar só nós três O senhor a senhora e eu Põese a rir G Secamente Não vejo razão para rir E Ainda rindo E esses sofás são medonhos E vejam como estão colocados Parece que é dia de Ano Novo e que eu estou visitando minha tia Marie Cada qual tem o seu imagino É este o meu Para o criado Eu nunca seria capaz de sentarme nele é uma catástrofe Não combina absolutamente com minha roupa Ela está de azul o sofá é verde I Quer ficar com o meu E O sofá Bordeaux A senhora é muito amável mas isso de pouco adiantaria Não O que fazer Cada qual com o que é seu Coubeme o verde fico com ele Um tempo O único que combinaria é o desse senhor Um silêncio I Está ouvindo Garcin G Sobressaltado O sofá Oh perdão Levantase É seu minha senhora E Obrigada Tira o manteau e o deixa sobre o sofá Um tempo Já que temos de morar juntos vamos nos apresentar Chamome Estelle Rigault Garcin se inclina e vai se apresentar quando Inês se interpõe I Inês Serrano Prazer em conhecêla G Inclinase de novo Joseph Garcin C Precisam ainda de mim E Não Pode ir Se precisar chamarei O criado sai Cena 5 I A senhora é muito bonita Eu queria Ter flores para lhe desejar boasvindas E Flores É mesmo Gostava muito de flores Aqui elas murchariam Faz tanto calor Ora o principal não acha é conservar o bom humor A senhora está I Sim a semana passada E a senhora E Eu Ontem A cerimônia ainda não acabou Fala com muita naturalidade como se estivesse vendo o que descreve O vento desmancha o véu de minha irmã Ela faz o que pode para chorar Vamos vamos Mais um esforço Aí está duas lágrimas duas lágrimas pequenas brilhando sobre o crepe Olga Jardet está muito feia essa manhã Sustem minha irmã pelo braço Não chora por causa do rimmel e devo confessar que eu no seu lugar era minha melhor amiga I A senhora sofreu muito E Não Estava embrutecida I O que foi que E Uma pneumonia Pronto Acabouse Vãose embora todos Bom dia Bom dia Quantos apertos de mão Meu marido ficou em casa está doente de pesar A Inês E a senhora I Gás E E o senhor aí G Doze balas no peito Gesto espantado de Estelle Desculpeme Não sou um morto de boa sociedade E Oh Meu senhor se quisesse deixar de empregar palavras tão cruas assim É é chocante Afinal de contas o que significa isto Quem sabe se nunca estivemos tão vivos ENTRE QUATRO PAREDES Jean Paul Sartre 7 quanto agora Quando for preciso referirme a este estado de coisas proponho que nos chamemos ausentes será mais correto O senhor há quanto tempo está ausente G Há um mês mais ou menos E De onde é o sr G De Rien E Eu de Paris Ainda tem alguém por lá G Cabisbaixo Minha mulher Ela veio ao quartel como todos os dias não a deixaram entrar Olha entre as barras das grades Ainda não sabe que estou ausente mas desconfia Vaise embora agora Está toda de preto Tanto melhor não precisará mudar de roupa Ela não chora Não chorou nunca O sol está lindo e ela está toda de preto na rua deserta com aqueles seus grandes olhos de vítima Ah ela me irrita I Silêncio Garcin vai se sentar no sofá do meio e esconde a cabeça entre as mãos Inês fala Estelle E Senhor senhor Garcin G Senhora E O sr se sentou no meu sofá G Perdão Levantase E Parece distraído G Estou pondo minha vida em ordem Inês começa a rir Os que riem fariam melhor se me imitassem I Minha vida está em ordem Perfeitamente em ordem Ela mesmo se pôs em ordem por lá Não tenho que me preocupar com isso G Verdade E a senhora acha isso tão simples Passa a mão pela testa Que calor Dão me licença Faz menção de tirar o paletó E Ah não Com mais doçura Isso não Tenho horror a homens em mangas de camisa G Vestindo de novo o paletó Está bem Passava as noites na sala da redação Fazia sempre um calor de esterco Faz um calor de esterco É noite E É verdade Já é de noite Olga se despe Como o tempo passa depressa na terra I É de noite Lacraram a porta do meu quarto E o quarto está vazio no escuro G Eles puseram os paletós no encosto das cadeiras e enrolaram as mangas da camisa acima dos cotovelos Há um cheiro de homem e de tabaco Silêncio Eu gostava de viver no meio de homens em mangas de camisa E Seriamente Pois é não temos o mesmo gosto É tudo o que isso quer dizer A Inês E a sra Gosta disso De homens em mangas de camisa I Em mangas de camisa ou não não gosto de homens E Com espanto olha para os dois Mas por que por que nos puseram juntos I Num grito abafado Que está dizendo E Olho para os dois e penso que temos de morar juntos Eu esperava encontrar aqui amigos família I Um excelente amigo com um buraco no meio da cara E Esse também Dançava tango como um profissional Mas nós nós porque foi que nos juntaram G Inês ri Ora por acaso Eles vão arrumando a gente onde podem por ordem de chegada A Inês Por que está rindo I Porque o sr me diverte com essa história de acaso Será que o sr tem assim tanta necessidade de apurar as coisas Eles não fazem nada por acaso E Com timidez Mas quem sabe se já nos encontramos antes I Nunca Eu não a teria esquecido E Então quem sabe temos relações comuns Não conhece os DuboisSeymour I Acho que não E Recebem todo mundo ENTRE QUATRO PAREDES Jean Paul Sartre 8 I E o que fazem E Com surpresa Nada Têm um castelo em Corrèze e I Eu eu era empregada dos correios E Um pequeno recuo de corpo Ah Então expliqueme E o senhor senhor Garcin G Nunca saí de Rien E Nesse caso o sr tem toda a razão foi o acaso que nos juntou I O acasoEntão é por acaso que estes móveis estão aqui É por acaso que o sofá da direita é verde e o da esquerda é bordeaux Por acaso não é Pois experimente trocálos de lugar e verão o que acontece E este broze também é um acaso E este calor Silêncio O que lhe digo é que tudo isso foi preparado com carinho nos mínimos pormenores Este aposento estava à nossa espera E Mas como assim Tudo aqui é tão feio tão duro tão anguloso Eu tinha horror aos ângulos I Erguendo os ombros Pensa então que eu vivia num salão Segundo Império E Um tempo e silêncio Então é tudo previsto I Tudo E nós combinamos com isso tudo E Não ser por um acaso que a sra está à minha frente Que é que eles esperam I Não sei mas esperam E Não posso tolerar que esperem qualquer coisa de mim Isso me dá logo vontade de fazer o contrário I Pois então faça Faça Nem ao menos sabe o que querem E Batendo o pe É insuportável E por causa de vocês dois qualquer coisa tem de me acontecer Olhaos Por causa de vocês dois Havia rostos que falavam logo Os seus não dizem nada G Bruscamente a Inês Vamos Por que é então que estamos juntos Já disse muita coisa vá até o fim I Surpresa Não sei de nada disso Não sei absolutamente nada G Precisa saber reflete I Se um de nós tivesse ao menos a coragem de dizer G o quê I Estelle E Que é I O que foi que a senhora fez Por que a mandaram para cá E Com vivacidade Mas eu não sei Não sei absolutamente nada Perguntome mesmo se isto tudo não será um equívoco A Inês Nada de risadas Penso só na quantidade de pessoas que que se ausentam cada dia Chegam aqui aos milhares e têm de tratar com subalternos com empregados sem instrução Como quer que não haja equívoco Não dê risadas não A Garcin E o senhor Diga alguma coisa Se se enganaram no meu caso também podiam terse enganado no seu A Inês E no seu também Não será melhor pensar que estamos aqui por equívoco I É tudo que nos tem a dizer E Que mais quer saber Não tenho o que esconder Eu era órfã e pobre e educava meu irmão mais moço Um velho amigo de meu pai me pediu em casamento Era rico e bom Aceitei Que faria a sra no meu lugar Meu irmão era doente e sua saúde reclamava os maiores cuidados Seis anos vivi com meu marido sem o menor contratempo Há dois anos encontrei aquele que eu devia amar Reconhecemonos imediatamente Ele queria fugir comigo e recusei Depois tive minha pneumonia É tudo Invocando certos princípios talvez haja quem possa me culpar de ter sacrificado a um velho a minha mocidade A Garcin Acha que isso seja um crime G Claro que não E a sra acha que seja um crime viver segundo seus princípios ENTRE QUATRO PAREDES Jean Paul Sartre 9 I Quem poderia censurálo por isso G Eu dirigia um jornal pacifista Rebentou a guerra Que fazer Todos os olhos estavam grudados em mim Vamos ver se ele terá coragem Pois tive coragem cruzei os braços e eles me fuzilaram Que crime há nisso Que crime E Pousandolhe a mão no ombro Não há crime O senhor é I Concluindo com ironia Um herói E sua mulher Garcin G Que é que tem Tireia da sarjeta E A Inês Está vendo Está vendo I Estou vendo Para quem está representando esta comédia se estamos entre nós E Com insolência Entre nós I Entre assassinos Estamos no inferno minha filha e aqui não pode haver erros e não se condena ninguém à toa G Calese I No inferno Condenados Condenados E Calese Faça o favor de calarse Proíboa de empregar expressões grosseiras I Condenada a santinha Condenado o herói sem mácula Tivemos nosso momentos de prazer não é verdade Houve pessoas que sofreram por nós até à morte e isso nos divertia bastante Agora temos de pagar G Erguendo a mão Vai calarse ou não I Encarandoo sem medo mas com enorme surpresa Ah Um tempo Esperem aí Agora compreendo porquê nos puseram juntos G Tome cuidado com o que vai dizer I Vão ver como é tolo Tolo como tudo Não Não existe tortura física não é mesmo E no entanto estamos no inferno E ninguém mais chegará Ninguém Temos de ficar juntos sozinhos até o fim Não é isso Quer dizer que há alguma coisa que faz falta aqui o carrasco G A meia voz bem sei I Pois é fizeram uma economia de pessoal Só isso São os próprios fregueses que se servem como nos restaurantes cooperativos E Que quer dizer I Cada um de nós é o carrasco para os outros dois Um tempo Eles ruminam a idéia G Com voz doce Não serei o carrasco de ninguém Não lhes desejo mal e nada tenho a ver com as senhoras Nada É muito simples Vejam só cada qual no seu canto esse é que é o jogo A senhora aqui a senhora ali eu lá E silêncio Nem um pio Não é difícil não é mesmo Cada um de nós tem muito que se incomodar consigo mesmo Acho que eu seria capaz de passar dez mil anos sem falar E É preciso que eu me cale G É sim E e estaremos salvos Calarse Olhar em si mesmo jamais erguer a cabeça Estão de acordo I De acordo E Hesita um pouco de acordo G Então adeus Dirigese ao seu sofá e põe a cabeça entre as mãos Silêncio Inês põese a cantar para si mesma I Na rua das capasbrancas Eles plantaram palancas E ergueram com alavancas A força feita de trancas Na rua das capasbrancas Nesse meio tempo Estelle empoa o rosto e pinta os lábios Ao se empoar procura por todos os lados inquietamente Remexe para um lado e outro sua bolsa Voltase para Garcin ENTRE QUATRO PAREDES Jean Paul Sartre 10 E O sr terá um espelho Garcin não responde Um espelho um espelhinho de bolso não importa Não responde Se me deixam sozinha pelo menos arranjemme um espelho Garcin continua com a cabeça entre as mãos Não responde I Com solicitude Tenho um espelho em minha bolsa Procurao na bolsa com raiva Não está mais Devem Ter ficado com ele no depósito E Que aborrecimento Um tempo Ela fecha os olhos e cambaleia Inês corre para ampará la I Que tem E Abre os olhos Sinto uma coisa esquisita Ri e se apalpa Com a sra não é assim também Quando não me vejo por mais que me apalpe fico na dúvida se existo mesmo de verdade I Tem sorte Eu sempre me sinto interiormente E Ah sim interiormente Tudo o que se passa nas cabeças é tão vago que me dá sono Tempo Meu quarto tem seis espelhos grandes Estou vendo todos Estou vendo Mas eles não me vêem Eles refletem a penteadeira o tapete as janelas Como é vazio um espelho em que não estou Quando eu falava sempre dava um jeito para que houvesse um espelho em que eu pudesse me ver Eu falava e me via falar Eu me via como os outros me viam Por isso ficava acordada Com desespero Meu rouge Tenho certeza de que pintei mal Mas não posso ficar sem espelho por toda a eternidade I Quer que eu lhe sirva de espelho Venha convidoa a vir à minha casa Sentese aí no meu sofá E Mostrando Garcin Mas I Façamos de conta que ele não existe E Nós vamos nos fazer mal Foi a senhora quem disse I Acha que eu posso querer o seu mal E Sabese lá I Você é quem vai me fazer mal Mas que importa Já que é preciso sofrer que seja por você Sentese Chegue mais perto Mais Olha nos meus olhos está se vendo neles E Estou tão pequenininha Vejome muito mal Muito mal I Mas eu vejo você inteirinha Façame perguntas Nenhum espelho será mais fiel Estelle entediada voltase para Garcin como para pedir auxílio E Senhor por favor não estamos incomodando com nossa tagarelice Garcin não responde I Deixeo em paz Com ele não se conta mais estamos sozinhas Façame perguntas E Pintei bem meus lábios I Deixeme ver Não Não muito bem E Bem que eu desconfiava Felizmente lança um olhar a Garcin ninguém me viu Vou pintar de novo I É melhor Não Acompanhe o desenho dos lábios Deixe que eu ajude Assim assim Está bem E Tão bem como eu estava quando cheguei I Melhor Mais pesado mais cruel Essa boca de inferno E Está bem mesmo Como é desagradável não poder julgarme por mim mesma A senhora jura que está bem mesmo I Não quer me tratar por você E Você jura que estou bem I Você é linda E Mas será que a sra tem bom gosto O meu gosto Como é desagradável como é desagradável I Tenho sim o seu gosto porque você me agrada Olhe bem para mim Sorria Eu também não sou feia Será que não valho mais do que um espelho ENTRE QUATRO PAREDES Jean Paul Sartre 11 E Não sei A sra me intimida Minha imagem nos espelho era domesticada Eu a conhecia tão bem Eu vou sorrir meu sorriso irá até o fundo das suas pupilas e Deus sabe o que será dele I E quem impede você de me domesticar Olhamse Estelle sorri meio fascinada Não quer mesmo me tratar por você E Custame tratar as mulheres por você I E particularmente as empregadas dos correios imagino Que é que você tem aí no rosto embaixo Essa mancha vermelha E Num sobressalto Mancha vermelha Que horror Onde I Aqui Aqui Eu sou o espelho que atrai as cotovias minha pequena cotovia pilheia Não há vermelhidão alguma Nem sinal hein Que tal se o espelho começasse a mentir Ou se fechasse os olhos se não quisesse olhar que faria você de toda essa beleza Não tenha medo Preciso olhar para você Meus olhos ficarão sempre abertos sempre abertos e eu serei boazinha Mas tem de dizer você E Um tempo você gosta de mim I Muito E Um tempo Designa Garcin com a cabeça Eu queria que ele também olhasse para mim I Sim Porque é homem A Garcin O sr ganhou Garcin não responde Olhe para ela de uma vez Não responde Basta de comédia O sr não perdeu uma palavra do que dizíamos G Erguendo bruscamente a cabeça Diz bem Nem uma palavra Por mais que enterrasse os dedos nos ouvidos as senhoras falavam dentro de minha cabeça Quer me deixar em paz agora Não tenho nada com a senhora I E com essa pequena tem alguma coisa Percebi sua manobra foi para interessála que o senhor tomou esses ares de importância G Já disse que me deixe Alguém no jornal está falando de mim Quero ouvir Essa pequena não me interessa pode ficar tranqüila E Obrigada G Eu não pretendia ser grosseiro E Grosseirão Um tempo Estão de pé uns diante dos outros G Está aí Eu tinha pedido que se calassem E Foi ela quem começou Veio me oferecer o espelho sem que eu tivesse pedido nada I Nada Apenas se esfregava nele e fazia tudo para ele olhasse para você E E daí G Estão loucas Não estão vendo onde vamos parar Calemse de uma vez Um tempo Vamos nos sentar de novo calmamente fechar os olhos e cada qual procurará esquecer a presença do outro Um tempo Ele se senta de novo Elas voltam hesitantes para seus lugares I Voltase bruscamente Ah esquecer Que infantilidade Eu o sinto até nos meus olhos Seu silêncio grita em minhas orelhas Pode soldar a boca pode cortar a língua Será que por isso o sr deixaria de existir Faria parar esse seu pensamento que estou ouvindo que faz tictac como um despertador E sei que o sr ouve o meu É inútil s encolher todo no sofá O sr está por toda parte os sons me chegam sujos porque o sr os ouvir quando passavam O sr roubou meu próprio rosto até O sr conhece meu rosto e eu não E ela Ela O sr a roubou de mim Se estivéssemos sozinhas pensa que ela me trataria como me trata Não não Tire essas mãos da cara É cômodo não é Mas eu não deixo O sr ficaria aí insensível mergulhado em si mesmo como um Buda Eu de olhos fechados sentindo que ela lhe dedica todos os ruídos de sua vida até mesmo o farfalhar do seu vestido e lhe manda sorrisos que o sr não vê Nada disso Quero escolher meu inferno olhar para o sr sem assombro e lutar de rosto nu ENTRE QUATRO PAREDES Jean Paul Sartre 12 G Está bem Estou vendo que era preciso chegar a esse ponto Eles manobram conosco como se fôssemos criancinhas Se me tivessem alojado entre os homens os homens sabem se calar Mas não se deve exigir muito Aproximase de Estelle e lhe acaricia o queixo Então menina sou do seu gosto Dizem que você estava de olho em mim E Não me toque G Ora Vamos ficar à vontade Eu gostava muito de mulheres sabe E elas de mim muito Não temos nada mais a perder Polidez por que À vontade Daqui a pouco estaremos nus E Deixeme G Nus Ah eu avisei em tempo Não lhes pedi nada nada mais do que paz e um pouco de silêncio Enterrei os dedos nos ouvidos Gomes falava de pé entre as mesas e todos os camaradas do jornal ouviam em mangas de camisa Eu queria entender o que diziam era difícil os acontecimentos da terra passam tão depressa Vocês querem ou não calarse Agora acabouse Ele já não está falando o que pensa de mim entrou de novo na sua cabeça Pois bem temos de ir até o fim E nus Preciso saber com quem estou lidando I Já sabe Agora já sabe G Enquanto cada um de nós não confessar porque foi condenado nada saberemos Você aí a loira comece Por que foi Diga o porquê Sua fraqueza pode evitar catástrofes Quando conhecermos nossas sujeitas todas Vamos por que foi E Digo que ignoro tudo Eles não quiseram me contar G Eu sei A mim também não quiseram responder Mas eu me conheço Tem medo de ser a primeira a falar Pois bem eu começo Silêncio Eu não sou boa coisa I Está certo Sabese que o sr desertou G Deixe disso Não fale isso nunca Estou aqui porque torturei minha mulher Apenas isso Durante cinco anos Naturalmente ela ainda está sofrendo Lá está ela assim que falo dela começo a vêla É Gomes que me interessa e é ela que vejo Onde está Gomes Durante cinco anos sabem Eles lhe entregaram minhas roupas ela está sentada perto da janela e pôs meu paletó sobre os joelhos O paletó dos doze buracos O sangue parece ferrugem As bordas dos orifícios estão chamuscados Ah É uma peça de museu um paletó histórico E dizer que eu usei aquilo Você vai chorar Vai acabar por chorar Eu entrava em casa bêbado como uma cabra com cheiro de vinho e de mulher Ela me havia esperado a noite toda e não chorava Nem uma palavra de censura naturalmente Apenas seus olhos Seus grandes olhos Não me arrependo de nada Pagarei mas não me arrependo Cai neve lá fora mas você vai chorar afinal É uma mulher que tem vocação para mártir I Quase com doçura Por que a fez sofrer G Porque era fácil Uma palavra bastava para fazêla mudar de cor Era uma sensitiva Ah nem uma censura Sou muito implicante Esperava esperava sempre mas nada Nem um choro nem uma censura Eu a tinha tirado da sarjeta compreendem Ela passa a mão pelo paletó sem olhar Seus dedos procuram os buracos às cegas Que é que você aguarda Que é que você espera Digolhe que não me arrependo de nada Enfim ela me admirava demais Compreendem isso I Não A mim ninguém admirava G Tanto melhor Tanto melhor para a sra Tudo isso pode parecer abstrato Pois bem eis um caso pitoresco Eu tinha instalado em casa uma mulher Que noites Minha mulher que dormia no primeiro andar de certo ouvia tudo Era a primeira a se levantar e como nós ficávamos deitados até tarde ela nos trazia café com leite na cama I Cafajeste ENTRE QUATRO PAREDES Jean Paul Sartre 13 G Pois é pois é o cafajeste bemamado Parece distraído Não é nada É o Gomes Mas não está falando de mim Um cafajeste a sra estava dizendo Claro Se não que estaria eu fazendo aqui E a senhora I Bem eu era o que eles chamam por lá de uma mulher condenada Jà condenada não é verdade Por isso não houve grandes surpresas G E é só I Não Há também aquele caso da Florence Mas é uma história de mortos Três mortos Primeiro ele depois ela e eu Não sobrou ninguém Estou tranqüila apenas o quarto De tempos em tempos vejo o quarto Vazio de janelas fechadas Arre Afinal tiraram os lacres Alugase Está para alugar Tem um letreiro pregado na porta É é irrisório G Três A senhora disse três I Três G Um homem e duas mulheres I Sim G Como Silêncio Ele se matou I Ele Seria incapaz disso E não é que não tivesse sofrido Não Ficou debaixo de um bonde esmagado Que brincadeira eu morava na casa deles ele era meu primo G Florence era loira I Loira Olha para Estelle Sabe de uma coisa Não me arrependo de nada mas não me agrada contar essa história G Vamos vamos Foi ficando com nojo dele I Pouco a pouco Uma palavra aqui outra ali Por exemplo fazia barulho quando bebia soprava pelo nariz dentro do copo Coisinhas Oh era um coitado vulnerável Por que está rindo G Porque eu não eu não sou vulnerável I Isso não se sabe Eu me interessei por ela Ela viu isso por meus olhos Enfim tive de ficar com ela Tomamos um quarto no outro extremo da cidade G E então I Então aconteceu aquele bonde Eu dizia sempre está vendo meu bem Nós o matamos Silêncio Eu sou má G E eu também I Não O senhor o senhor não é mau É outra coisa G O quê I Mais tarde eu lhe direi Eu sim sou má Quer dizer preciso do sofrimento dos outros para existir Uma tocha Uma tocha nos corações Quando estou sozinha me apago Durante seis meses eu ardi no coração dela queimei tudo Uma noite ela se levantou foi abrir a torneira de gás sem que eu percebesse Depois voltou e se deitou ao meu lado É tudo G Hum I Que há G Nada Isso não está direito I Pois é não está direito E daí G Oh tem razão Para Estelle Você agora O que foi que você fez E Já disse que não estou sabendo de nada Por mais que eu me pergunte G Bem então vamos ajudála Aquele sujeito de cara arrebentada quem era E Que sujeito G Aquele de quem você tinha medo quando chegou aqui Você sabe muito bem E Era um amigo G Por que tinha medo dele E O sr não tem o direito de me interrogar ENTRE QUATRO PAREDES Jean Paul Sartre 14 I Foi por sua culpa que ele se matou E Que absurdo A senhora está louca G Então por que é que ele me metia medo Deu um tiro na cara hein Foi isso que lhe arrancou a cabeça E Calemse Calemse G Por sua causa Por sua causa I Um tiro por sua causa E Deixemme em paz Tenho medo de vocês Quero ir embora Quero ir embora Ela se precipita para a porta e a sacode G Pode ir Não quero outra coisa Mas o diabo é que a porta está fechada por fora Estelle aperta o botão da campainha não toca Inês e Garcin riem Encostada na porta Estelle se vira para eles E De voz lenta Vocês são ignóbeis I Perfeitamente ignóbeis E daí Então o tal sujeito se matou por sua causa Era seu amante G É claro que era seu amante E queria você só para ele Não é isso I Dançava tango como um profissional mas era pobre imagino G Antes um silêncio estamos perguntando se ele era pobre E Sim era pobre G Além disso você tinha de zelar pela sua reputação Um dia ele chegou suplicou e você fez troça I Hein hein hein Você fez troça Foi por isso que ele se matou E Era com esses olhos que você olhava para Florence I Era Um tempo Estelle começa a rir E Estão completamente errados Ela se apruma e os enccara encostada sempre na porta Num tom e provocante Ele queria que eu tivesse um filho Pronto Estão contentes G E você você não queria E Não queria mas a criança veio assim mesmo Fui passar cinco meses na Suíça Ninguém soube de nada Era uma menina Roger estava ao meu lado quando ela nasceu Achava interessante ter uma filha Eu não G E depois E Havia um balcão sobre o lado Arranjei uma pedra grande Ele gritava Estelle por favor eu suplico Eu o detestava Ele viu tudo Debruçouse no balcão e viu os círculos concêntricos na água do lago G Depois E Nada mais Voltei a Paris e ele fez o que bem entendeu G Estourou os miolos E Isso mesmo Mas não era preciso fazer isso Meu marido não desconfiava de nada Um tempo Tenho ódio de vocês Tem uma crise de soluços secos G É inútil Aqui as lágrimas não correm E Que covarde que eu sou Que covarde Um tempo Se soubessem como tenho ódio de vocês I Corre para tomála nos braços Coitadinha A Garcin Acabouse o inquérito Não adianta ficar com essa cara de carrasco G De carrasco Olhando em torno Daria tudo para me ver num espelho Um tempo Que calor Maquinalmente tira o paletó Ah desculpe Vesteo de novo E Pode ficar em mangas de camisa agora G Está bem Atira o paletó sobre seu sofá Não me queira mal Estelle E Não lhe quero mal I E a mim Você quer mal E sim Silêncio ENTRE QUATRO PAREDES Jean Paul Sartre 15 I Afastase Pois é Garcin estamos nus Está enxergando melhor agora G Não sei Talvez um pouquinho melhor Com timidez Será que a gente não poderia experimentar ajudarse uns aos outros I Não preciso que me ajude G Inês eles emaranharam todo o fio Se você fizer o menor gesto se erguer as mãos para se abanar Estelle e eu sentiremos o abalo Nenhum de nós pode se salvar sozinho Temos de nos perder juntos ou nos desembaraçar juntos Escolha Um tempo Que tal I Já alugaram As janelas estão escancaradas Há um homem sentado na minha cama Já alugaram Já alugaram Entre entre Não faça cerimônia É uma mulher Ela se dirige a ele e pousa as mãos nos seus ombros Que é que estão esperando para acender a luz Não se enxerga mais nada Será que vão se beijar Esse quarto é meu é meu Por que não acendem a luz Já não posso vêlos Que é que estão cochichando Será que ele vai acariciála em minha cama Ela lhe diz que é meiodia e que o sol está forte Será que estou ficando cega Pronto acabouse Não vejo e não escuto mais Pois é Acho que com a Terra está tudo acabado Nada de álibi Estremece Sintome me vazia Agora estou morta de verdade completamente aqui Que estava dizendo Falava em me ajudar não é G É I A quê G A estragar o joguinho deles I A troco de quê G Você me ajudará É preciso muito pouco Apenas um pouquinho de boa vontade I Boa vontade Onde é que vou achar isso Estou podre G E eu Tempo Mas e se experimentássemos assim mesmo I Estou ressequida Não posso receber nem dar Como quer que eu o ajude Um galho morto o fogo o devora Tempo Olha Estelle que tinha posto a cabeça entre as mãos Florence era loira G Sabe você por acaso que essa pequena vai ser seu carrasco I É possível que já tenha desconfiado disso G Com ela é que eles vão pegar você Quanto a mim eu eu ela não me interessa Ao passo que com você I O quê G É uma armadilha Eles estão à espreita para ver se você sai na esparrela I Bem sei E você você é outra armadilha Pensa que eles não previram todas as suas palavras E que debaixo delas não há alçapões que nós não vemos Tudo é armadilha Mas o que importa Eu também sou uma armadilha Uma armadilha para ela Quem sabe se sou eu quem vai pegála G Não vai pegar coisa alguma Somos cavalinhosdepau que correm um atrás do outro sem nunca alcançar o que perseguem Acredite que eles prepararam tudo Solte se Inês Abra as mãos largue a presa Do contrário você fará a infelicidade de nós três I Será que tenho cara de quem larga a presa Eu sei o que me espera Vou arder estou ardendo e sei que isso não terá fim Sei tudo Pensa que largarei a presa Hei de têla Ela há de ver você pelos meus olhos como Florence via o outro Que tem você de falar de sua desgraça Digo que sei tudo e nem sequer posso Ter pena de mim Uma armadilha Ah uma armadilha Naturalmente caí numa esparrela E daí Se eles estão contentes tanto melhor G Eu posso ter pena de você Tomandoa nos ombros Olha para mim estamos nus Nus até os ossos e conheço você até o fundo do coração É um elo entre nós Acredita que lhe queria fazer mal Não me arrependo de nada não me queixo Eu também estou ressequido Mas de você posso ter pena ENTRE QUATRO PAREDES Jean Paul Sartre 16 I Que se abandonara enquanto ele falava agora se desembaraça Não me toque Detesto que me toquem E fique com sua piedade Vamos Para você também Garcin há muitas armadilhas neste quarto Para você Preparadas para você É melhor se meter com sua vida Se você nos deixar a essa pequena e a mim completamente em paz tratarei de não prejudicar você em nada G Olhandoa um momento e dando de ombros Está bem E Erguendo a cabeça Socorro Garcin G Que quer de mim E Se levanta e se aproxima dele A mim você pode ajudar G Entendase com ela Inês se aproxima de Estelle colocase atrás dela sem tocála Durante as réplicas que se seguem ela lhe falará quase no ouvido Estelle voltada para Garcin que olha sem falar Responde apenas a ele como se fosse ele que a interrogasse E Por favor o senhor me prometeu o senhor me prometeu Garcin depressa depressa Não quero ficar sozinha Olga levouo ao dancing I Quem foi que ela levou E Pierre Estão dançando juntos I Quem é Pierre E Um bobinho Ele me chamava de sua águaviva Ele gostava de mim Ela o levou ao dancing I Você gosta dele E Sentamse de novo Ela está exausta Por que é que ela dança A não ser para emagrecer É claro que não É claro que eu não gostava dele Ele tem dezoito anos e não sou nenhum bichopapão I Então deixeos Por que se incomodar com isso E Ele era meu I Nada mais é seu sobre a Terra E Ele era meu I Sim era Experimente tocálo experimente tocálo Olga sim pode tocálo não é Não é Pode pegar suas mãos roçar nos seus joelhos E Ela empurra contra ele o peito enorme Ela respira no seu peito Pequeno Polegar pobre Pequeno Polegar O que está esperando para dar uma gargalhada Ah Bastava um olhar meu e ela não se atreveria nunca Será que não sou mesmo mais nada I Mais nada E não há nada mais de você na terra tudo quanto tem está aqui Quer a faca de cortar papel O bronze de Barbedienne O sofá azul é seu E eu meu bem sou sua para sempre E Ah Minha Mas qual é de vocês que teria a coragem de me chamar de águaviva A vocês não se pode enganar Vocês sabem que eu sou um lixo Pense em mim Pierre só em mim defendase Enquanto você pensar Minha águaviva minha querida água viva eu não estarei aqui senão pela metade não serei senão meio culpada serei água viva aí perto de você Ela está vermelha como um tomate Ora isso é impossível tantas vezes nós nos rimos dela juntosQue música é essa Eu gostava tanto dela Ah é o SaintLouis Blues Pois que dancem que dancem Garcin você havia de se divertir se pudesse vêla Ela nunca saberá que eu a estou vendo Estou vendo você estou vendo você com esse penteado desmanchado essa cara transtornada e pisando nos pés dele É de morrer de rir Vamos mais depressa mais depressa Ele me dizia Você é tão leve Ele a puxa a empurra É indecente Vamos vamos Começa a dançar enquanto fala Aviso você que estou vendo Ela pouco se importa e dança através do meu olhar Nossa querida Estelle Que nossa querida Estelle Ah Calese Nem sequer chorou uma lágrima durante o meu enterro Ela disse a ele Nossa querida Estelle Tem a coragem de lhe falar de mim Vamos Atenção ao compasso Ela nunca seria capaz de dançar e ENTRE QUATRO PAREDES Jean Paul Sartre 17 falar ao mesmo tempo Mas o que é que Não não lhe conte nada Fique com ele leve o guardeo e faça dele o que quiser mas não lhe conte nada Pára de dançar Bom Pois bem agora pode ficar com ele Garcin ela contou tudo Roger a viagem à Suíça a criança ela contou tudo Nossa querida Estelle não era Não não De fato eu não era Ele sacode a cabeça com ar tristonho mas não se pode dizer que a notícia o transtornou Fique com ele agora Não vou disputar com você aqueles longos cílios e aquele ar de menina que ele tinha Ah ele me chamava sua águaviva seu cristal Pois o cristal se quebrou em migalhas Minha querida Estelle Vamos Atenção ao compasso Um dois Dança Daria tudo no mundo para voltar um instante à terra um só instante para dançar Dança um tempo Já não estou ouvindo bem Apagaramse as luzes como para um tango Por que tocam na surdina Mais alto Como está longe Eu não ouço mais nada Pára de dançar Nunca mais A terra me abandonou Garcin olhe para mim Me abrace por trás de Estelle Inês faz sinal a Garcin para que se afaste E Autoritária Garcin G Recuando um passo e mostrando Inês a Estelle Entendase com ela E Agarrandoo Não fuja Você não é homem Vamos olhe para mim não desvie os olhos será tão difícil Meus cabelos são de ouro e alguém se matou por mim Eu lhe peço Você tem de olhar para qualquer coisa Se não for para mim será para o bronze para os sofás Vale mais a pena olhar para mim apesar de tudo G Repelindoa a custo Peçolhe que se entenda com ela E Ela não conta É uma mulher I Eu não conto Mas minha cotovia há muito tempo que você está abrigada no meu coração Não tenha medo Olharei para você sem parar sem um estremecimento de pálpebras Você viverá no meu olhar como uma lantejoula num raio de sol E Um raio de sol Não me amole Há pouco você quis que pregar uma peça e viu que não deu certo I Estelle minha águaviva meu cristal E Seu cristal É grotesco A quem quer enganar Todo mundo sabe que atirei a criança pela janela O cristal está em pedacinhos no chão e não me importo Sou apenas uma pele É minha pele não é para você I Venha Você será o que quiser águaviva águasuja será quem quiser ser E Largueme Você não tem olhos Que hei de fazer para que você me deixe Tome Cospelhe no rosto Inês a solta I Garcin você me paga G Então você quer mesmo um homem E Um homem não Você G Nada disso Qualquer um serviria Vim parar aqui tem de ser comigo Bom Tomaa pelos ombros Bem sabe que não tenho nada do que você gosta não sou um bobinho e não danço tango E Aceitoo como você é Talvez eu o transforme G Duvido Eu serei distraído Tenho outras coisas em que pensar E Que coisas G Para você não teriam interesse E Vou me sentar no sofá no seu sofá e esperar que se ocupe de mim I Numa gargalhada Ah cadela Ele nem mesmo é bonito E A Garcin Não ouça o que ela diz ela não tem olhos não tem ouvidos ela não existe G Eu darei a você o que puder Não é muito Amor não Eu conheço você demais E Você me deseja G Sim ENTRE QUATRO PAREDES Jean Paul Sartre 18 E É quanto me basta G Pois então Inclinase sobre ela I Estelle Garcin Vocês perderam o juízo Eu estou aqui G Estou vendo E daí I Vocês não podem diante de mim vocês não não podem E Por que não Sempre me despi diante de minha criadadequarto I Agarrandose a Garcin Deixea deixea Não a toque com essas mãos sujas de homem G Empurrandoa violentamente Basta Não sou nenhum cavalheiro e não me importo de bater numa mulher I Você me prometeu Garcin me prometeu Por favor você me prometeu G Foi você que faltou com a palavra Ela se afasta até o fundo do aposento I Façam o que quiserem Vocês são os mais fortes Mas se lembrem estou aqui olhando Não tirarei os olhos de você Garcin Terá de beijála sob o meu olhar Que ódio tenho de vocês dois Amemse Amemse Estamos no inferno e minha vez chegará Durante a cena seguinte ela olhará sem nada dizer G Se volta para Estelle e a segura pelos ombros Debruçase sobre ela e se ergue bruscamente E Num gesto de despeito Eu disse que não se importasse com ela G Não se trata dela Gomes está no jornal Fecharam as janelas quer dizer que é inverno Seis meses Faz seis meses que ele me Não lhe avisei que eu poderia ficar distraído Eles estão tremendo de frio não tiraram os paletós é esquisito que estejam com tanto frio por lá e eu aqui com tanto calor Dessa vez é de mim que ele está falando E Será que isso vai demorar Pelo menos me conte o que ele está dizendo G Nada Não está dizendo nada É apenas um safado Presta atenção Um safado Ora Voltase para Estelle Vamos tratar de nós Você gostará de mim E Sorrindo Quem sabe G Terá confiança em mim E Que pergunta boba Você não sairá dos meus olhos e não é com Inês que irá me enganar G É evidente Um tempo Afasta Estelle Eu me referia a uma outra confiança Escuta Vá vá Diga logo o que quiser Não estou aí para me defender A Estelle Estelle preciso que você tenha confiança me mim E Que complicação Mas você tem minha boca meus braços meu corpo inteiro Seria tudo tão simples Minha confiança Mas eu não tenho confiança para oferecer É horrível como você me constrange Para exigir assim minha confiança deve ter feito algo de muito ruim G Eles me fuzilaram E Já sei Você se recusou a partir E daí G Não Não me recusei propriamente Aos invisíveis Ele fala bem sabe atacar mas não diz o que se devia fazer Então eu havia de entrar pela casa do general e dizer Meu general recusome a partir Que tolice Estaria no xadrez Eu queria poder manifestar me sim manifestarme Não queria que abafassem minha voz A Estelle E eu eu tomei o trem Eles me prenderam na fronteira E Queria ia para onde G Para o México Pensava em lançar ali um jornal pacifista Silêncio Então Diga alguma coisa E Que quer que eu diga Você fez bemjá não queria combater Gesto contrariado de Garcin Ora meu bem não adivinha o que devo responder I Você deve dizer que ele fugiu como um leão meu bem Porque ele fugiu o seu queridinho E é isso que o atormenta G Fugi parti diga como entender E Era natural que fugisse Se você tivesse ficado eles o agarrariam ENTRE QUATRO PAREDES Jean Paul Sartre 19 G Claro Um tempo Estelle acha que sou um covarde E Mas eu não sei meu amor Não estou na sua pele Você é quem deve resolver G Num gesto cansado Não sei resolver E Afinal de contas você deve se lembrar Deve ter tido razões para fazer o que fez G Sim E E então G Mas será que essas razões eram de fato razões E Desorientada Como você é complicado G Eu queria me manifestar Eu eu refleti maduramente Será que minhas razões eram de fato razões I Ah Esse é que é o caso Será que as razões eram de fato razões Você raciocinava não queria alistarse levianamente Mas o medo o ódio todas essas sujeiras que a gente esconde também são razões Vamos Procure Pergunte a si mesmo G Calese Pensa que esperei seus conselhos Eu andava na minha cela noite e dia da porta à janela da janela à porta Eu era o espião de mim mesmo Fui seguindo meu próprio rastro Tenho a impressão que passei toda uma vida a me interrogar Mas estava tudo consumado Eu tomei o trem quanto a isso não há dúvida mas por quê Por quê Enfim pensei minha morte é que vai decidir Se eu morrer limpo terei provado que não sou covarde E Como foi a sua morte Garcin G Foi mal Inês começa a rir Ora apenas uma fraqueza corporal Não me envergonho Mas o fato é que tudo ficou no ar para sempre Para Estelle Venha aqui você Olhe bem para mim Preciso de alguém que olhe para mim enquanto estão falando de mim na terra Gosto de olhos verdes I Olhos verdes Essa é boa E você Estelle Gosta de covardes E Se soubesse como pouco me importo com isso Covarde ou não contanto que ele saiba beijar G Absorto Eles abanam a cabeça fumando seus charutos Estão chateados Eles pensam Garcin é um covarde Pensam por pensar moles fracos sem convicção Garcin é um covarde eis o que ficou decidido entre eles os meus companheiros Daqui a seis meses começarão a dizer Covarde como o Garcin Vocês duas tem sorte na terra ninguém se preocupa com vocês Para mim a vida é pior I E sua mulher Garcin G Minha mulher Que tem isso Está morta I Morta G Esqueci de contar Morreu há pouco Há dois meses mais ou menos I De desgosto G De desgosto é claro De que queria que morresse Ora Tudo vai bem Acabouse a guerra minha mulher morreu e eu passei às páginas da história Garcin tem um soluço seco e passa as mãos pelo rosto Estelle o abraça E Meu bem meu bem Olhe para mim querido Toque em mim Tomalhe a mão e a leva ao seio Toqueme Garcin faz um gesto se desembaraçando dela Deixe sua mão em meu seio deixe Não se mexa Que importa o que pensam de você Um a um todos hão de morrer Esqueçaos só eu existo G Retirando a mão e o corpo Não eles não me esquecem Hão de morrer mas outros virão para repetir a estória Deixei minha vida em suas mãos E Ora você pensa demais G Que fazer Antes eu agia Ah poder saltar entre eles um dia só Que golpe Mas estou fora do jogo Dão o baralho sem contar comigo E têm razão pois estou morto Liquidado como um rato Ri Caí no domínio público Um tempo E Com doçura Garcin ENTRE QUATRO PAREDES Jean Paul Sartre 20 G E você Pois bem escute você vai me fazer um favor Não não diga que não Sei que você há de achar esquisito que se possa pedir um favor a você já que não está habituada a isso Mas se quisesse se fizesse um esforço nós poderíamos nos amar de verdade Veja só são mil a repetir que sou um covarde Mas o que são mil Se houvesse uma alma uma só que afirmasse com todas as suas forças que eu não fugi que eu não posso ter fugido que eu tenho coragem que sou um sujeito direito tenho tenho certeza de que me salvaria Acredite em mim Eu ficaria gostando de você mais do que de mim mesmo E Rindo Idiota meu querido idiota Então você pensa que eu seria capaz de amar um covarde G Mas você dizia E Estava brincando com você Gosto de homens Garcin de homens de verdade de pele áspera e mãos fortes Você não tem o queixo de um covarde a boca de um covarde a voz de um covarde seus cabelos não são os de um covarde E é pela sua boca pelos seus cabelos que gosto de você G Verdade Verdade mesmo E Quer que eu jure G Agora eu desafio a todos aos que estão por lá e aos que estão por aqui Estelle nós vamos sair do inferno Inês dá uma gargalhada Ele a interrompe e a encara O que há I Ainda rindo Ela não acredita em nada do que está dizendo Será que você é tão ingênuo assim Estelle acha que sou um covarde Se você soubesse como ela está rindo de suas palavras E Inês A Garcin Não ouça o que ela diz Se quer que eu confie em você comece por confiar em mim I Pois sim pois sim Confie nela Ela precisa de um homem acredite de um braço de homem na sua cintura de um cheiro de homem de um desejo de homem em olhos de homem Quanto ao mais Ah Para lhe ser agradável ela seria capaz de dizer que você é o Padre Eterno G Estelle É verdade isso Responda É verdade E Que quer que eu diga Não entendo essas coisas Batendo o pé Que irritante que é tudo isso Mesmo que você fosse covarde eu gostaria de você Pronto Não basta isso Um tempo G Às duas Tenho nojo de vocês Dirigese à porta E Que vai fazer G Voume embora I Atalhando rápido Não irá muito longe a porta está fechada G Eles terão de abrir Aperta o botão Não toca E Garcin I A Estelle Não se importe A campainha está quebrada G Pois garanto que eles hão de abrir Bate na porta com os nós dos dedos Não agüento mais vocês não agüento mais Estelle corre para ele e ele a repele Vá Tenho ainda mais nojo de você do que dela Não quero apodrecer nos seus olhos Você é perigosa mole Você é um polvo um pântano Bate na porta Abrem ou não E Garcin por favor não vá Não falarei mais deixarei você tranqüilo mas não vá Inês mostrou as garras Não quero ficar sozinha com ela G Arranjese Não lhe pedi que viesse E Covarde covarde Você é mesmo um covarde I Aproximandose de Estelle Então minha cotovia não está satisfeita Para agradálo você me cuspiu no rosto e brigamos por causa dele Mas o desmanchaprazeres vaise embora vai nos deixar entre mulheres E Você não ganhará nada com isso Se essa porta se abrir eu também irei ENTRE QUATRO PAREDES Jean Paul Sartre 21 I Para onde E Não importa O mais longe possível de você G Não cessou de bater na porta Abram Vamos abram Aceitarei tudo as tenazes o chumbo derretido as pinças os garrotes tudo que queima tudo o que dilacera Quero sofrer de verdade Prefiro cem dentadas prefiro a chibata a esse sofrimento cerebral esse fantasma de sofrimento que roça que acaricia e que nunca dói o bastante Agarra o trinco da porta e a sacode Abrem ou não A porta se abre bruscamente Ele quase cai Um longo silêncio I Então Garcin Pode ir G Lentamente Não compreendo porque essa porta se abriu I Que está esperando Vá vá depressa G Não não vou I E você Estelle Estelle não se move Inês dá uma gargalhada Então qual de nós Qual de nós três O caminho está livre quem é que nos prende É de morrer de rir Nós somos inseparáveis E Estelle se atira sobre Inês pelas costas Inseparáveis Garcin ajudeme Depressa ajudeme Vamos arrastála para fora e fechar a porta Ela vai ver I Debatendose Estelle Estelle Eu lhe peço fique comigo No corredor não Não me atire no corredor G Soltea E Está louco Ela tem ódio de você G Foi por causa dela que fiquei Estelle solta Inês que olha assombrada para Garcin I Por minha causa Um tempo Bom Então fechem a porta Faz dez vezes mais calor depois que ela se abriu Garcin fecha a porta Por minha causa G Você sabe o que é um covarde I Sei sim G Você sabe o que é o mal a vergonha o medo Houve dias em que você se enxergou até o fundo do coração e isso a deixava moída E no dia seguinte não sabia o que pensar não conseguia decifrar a revelação da véspera Sim você sabe quanto custa o mal E quando diz que sou um covarde é com conhecimento de causa não é I É G É a você que eu devo convencer você é da minha laia Pensou então que eu me iria embora Eu não poderia deixar você aqui triunfante com todos esses pensamentos na cabeça esses pensamentos que me dizem respeito I Quer mesmo convencerme G Não quero outra coisa Já não os escuto mais sabe Decerto é porque já não em mais nada a ver comigo Acabouse Está arquivado o caso Nada mais sou sobre a terra nem mesmo um covarde Estamos sós agora Inês só restam vocês duas para pensar em mim Ela não conta Mas você você me odeia Se acreditar em mim poderá salvarme I Não será fácil Olhe para mim tenho a cabeça dura G Empregarei nisso todo o tempo que for necessário I Você tem o tempo todo O tempo todo G Tomandoo pelos ombros Escute Cada qual tem o seu alvo não é mesmo Nunca liguei prá dinheiro prá amor Só queria ser um homem Um forte Apostei tudo numa só cartada Pode ser um covarde aquele que escolheu os caminhos mais perigosos Podese lá julgar toda uma vida por um só ato I Por que não Durante trinta anos você sonhou que tinha coragem e se permitiu mil pequenas fraquezas porque aos heróis tudo é permitido Que cômodo que era Depois na hora do perigo encostaram você na parede e você tomou o trem para o México G Não sonhei com esse heroísmo Escolhio A gente é o que a gente quer ser ENTRE QUATRO PAREDES Jean Paul Sartre 22 I Prove então Prove que não era um sonho Só os atos decidem sobre o que a gente quis G Morri cedo demais Não me deram tempo para praticar os meus atos I Morrese sempre cedo demais ou tarde demais No entanto a vida aí está liqüidada Já se deu o traço debaixo das parcelas resta fazer a soma Você nada mais é do que sua vida G Víbora Tem sempre resposta para tudo I Ora vamos não desanime Deve ser fácil para você me persuadir Procure argumentos faça um esforço Garcin sacode os ombros Então como é Não disse que você era vulnerável Agora vai pagar caro Você é um covarde Garcin porque eu quero que você seja um covarde Eu quero compreende Eu quero No entanto veja que fraquinha eu sou um sopro Sou apenas o olhar que está vendo você o pensamento incolor que está pensando em você Ele caminha para ela de mãos abertas Ah abremse agora essas mãos grossas de homem A troco de quê Não se agarram pensamentos com as mãos Vamos não tem o que escolher Tem de me convencer Pilheio E Garcin G O que é E Vinguese G Como E Beijeme Ela vai ficar danada G É verdade Inês Você me pilhou mas a pilhei também Debruçase sobre Estelle Inês dá um grito I Covarde covarde Vá se fazer consolar por mulheres E Danese Inês Danese I Bonito par Se você visse essa pata grossa achatada nas suas costas machucando a carne e o vestido Ele tem mãos está transpirando Vai deixar no vestido ua mancha azul E Danese danese Aperteme mais contra você Garcin Ela vai estourar I Isso mesmo apertea bem forte Apertea Misturem bem os seus calores Que bom que é o amor hein Garcin É morno e profundo como o sono mas não deixarei você dormir E Não ouça o que ela diz Tome a minha boca Sou toda sua sua I Então o que é que você está esperando Façam o que mandam Garcin o covarde tem nos seus braços Estelle a infanticida Façam as apostas Garcin o covarde conseguirá beijála E estou vendo vocês vendo vocês Eu sozinha sou toda ua multidão A multidão Garcin compreende A multidão Murmurando Covarde covarde covarde É inútil fugir de mim Não deixarei você Que é que está procurando nos lábios dela O esquecimento Mas eu eu não esquecerei você E é a mim que você tem de convencer a mim Venha venha Espero por você Veja Estelle ele já desaperta o seu abraço É obediente como um cachorro Você não há de têla G Não ficará escuro nunca I Nunca G Você me verá sempre I Sempre G Deixa Estelle e faz alguns passos em cena Aproximase do bronze O bronze Apalpao Pois bem é agora O bronze aí está eu o contemplo e compreendo que estou no inferno Digo a vocês que tudo estava previsto Eles previram que eu haveria de parar em frente deste bronze tocandoo com minhas mãos com todos esses olhares sobre mim Todos esses olhares que me comem Voltase bruscamente Ah vocês são só duas Pensei que fossem muitas muitas mais Ri Então é isso que é o inferno Nunca imaginei Não se ENTRE QUATRO PAREDES Jean Paul Sartre 23 lembram O enxofre a fogueira a grelha Que brincadeira Nada de grelha O inferno O inferno são os outros E Meu amor Repelindoa Garcin grita G Deixeme Ela está entre nós dois Não posso amar quando ela me vê E Ah é assim Pois ela não nos verá mais Toma a faca de cortar papel precipitase sobre Inês desferindolhe vários golpes I Debatendose e rindo Que é que você está fazendo Que está fazendo Ficou louca Bem sabe que já estou morta Estelle deixa cair o cortador de papel Um tempo Inês a apanha e põese a golpear com raiva falando I Morta morta morta Nem a faca nem o veneno nem a forca Está tudo acabado compreende E estamos juntos para sempre Ri E Dando risadas Para sempre meu Deus Que engraçado Para sempre G Ri e olha para as duas Para sempre Os três caem sentados cada qual sobre um sofá Um longo silêncio Deixam de rir e se entreolham Garcin se ergue G Pois é Vamos continuar oOo
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Texto de pré-visualização
ENTRE QUATRO PAREDES Jean Paul Sartre Tradução de Guilherme de Almeida Personagens Inês Estelle Garcin O criado ENTRE QUATRO PAREDES Jean Paul Sartre 2 Cena 1 Garcin o criado do andar Um salão em estilo Segundo Império Um bronze sobre a lareira Garcin que entra e olha em torno Pois é Criado Pois é G Então é assim C É assim G Acho que com o tempo a gente se acostuma com os móveis C Isso depende das pessoas G Será que todos os quartos são iguais C Que idéia Recebemos chineses hindus Que quer que eles façam com uma poltrona Segundo Império G E eu Que quer que eu faça Sabe quem era eu Ora Isso não tem importância O que é fato é que sempre vivi no meio dos móveis de que não gostava e de situações falsas Achava isso adorável Que tal uma situação falsa numa sala de jantar a Luis Felipe C Vai ver também não ficará mal num salão Segundo Império G Ah Bom bom bom Olha em torno Em todo caso por essa eu não esperava Mas não me diga que não sabe o que se diz por lá C Sobre o quê G Quer dizer Num gesto vago e largo Sobre isso tudo C Acredita nessas tolices Gente que nunca pôs os pés aqui Se ao menos já tivessem estado por aqui G É mesmo Ambos riem Garcin fica sério de repente Onde estão as estacas C O quê G As estacas as grelhas os funis de couro C Está brincando G Silêncio Como Ah bem Não não estava brincando Silêncio Anda um pouco Nem espelhos nem janelas naturalmente Nada que seja frágil Com súbita violência E por que me tomaram a escova de dentes C Aí está a dignidade humana que volta É formidável G Batendo com raiva na poltrona Nada de formalidades comigo Reconheço minha posição mas não admito que C Cortando Está bem desculpe Mas o que quer Todos os fregueses fazem a mesma pergunta Mal chegam e querem saber Onde estão as estacas Garanto que nesse instante nem estão pensando em fazer sua toilette Depois ficam mais calmos e aí vem a escova de dentes Mas pelo amor de Deus pense um pouco Afinal de contas permita que eu lhe pergunte por que escovar os dentes G Calmo e sossegado É mesmo Por quê Olha em torno E por que olhar nos espelhos Ao passo que esse bronze felizmente Creio que há certos momentos em que seria capaz de olhar firme De olhar firme hein Ora ora Não há nada que ocultar diga lhe que conheço bem minha situação Quer que lhe conte como essas coisas se passam O sujeito sufoca mergulha afoga fica apenas com os olhos fora dágua e o que é que vê Um bronze de Barbedienne Que pesadelo Com certeza proibiram você de me responder Não insisto Mas não se esqueça de que ninguém me pilha assim à toa Não vá se gabar de me haver surpreendido Não sei encarar a situação de frente Continua a ENTRE QUATRO PAREDES Jean Paul Sartre 3 andar Então nada de escovas de dente Nada de cama também Porque não se dorme nunca não é isso C Ora essa G Eu era capaz de apostar Por que essa gente havia de dormir O sono ataca por trás das orelhas Sentese olhos se fechar mas por que dormir A gente se senta no sofá e psssst Adeus sono Então esfrega os olhos levantase e tudo recomeça C Como o senhor é romanesco G Calese Não vou gritar nem gemer mas quero encarar a situação de frente Não quero que ela se atire sobre mim por trás sem que eu possa reconhecêla Romanesco Então é que não se tem mesmo necessidade de sono Por que dormir se não se tem sono Ótimo Espera espera aí Por que é que há de ser doloroso por que é que há de ser forçosamente doloroso Já sei é a vida sem interrupção C Que interrupção G Remedandoo Que interrupção Desconfiado Olhe bem para mim Eu sabia Aí está o que explica a indiscrição grosseira e insustentável do seu olhar De fato estão atrofiadas C Do quê o senhor está falando G De suas pálpebras Nós nós batíamos as pálpebras Chamavase a isso piscar Um pequeno relâmpago negro uma cortina que cai e se ergue deuse a interrupção Os olhos se umedecem o mundo se aniquila Não pode imaginar como era refrescante Quatro mil repousos por hora Quatro mil pequenas evasões Quatro mil digo eu Como é Então vou viver sem pálpebras Não se faça de bobo Sem pálpebras sem sono é a mesma coisa Nunca mais hei de dormir Como poderei me tolerar Trate de responder faça um esforço Tenho um caráter implicante como vê e tenho o costume de implicar comigo mesmo Mas mas não posso estar implicando sem parar Por lá havia as noites Eu dormia Tinha o sono leve Em compensação sonhava coisas simples Havia uma campina Uma campina nada mais Eu sonhava que estava passeando por ela É de dia C Como vê as lâmpadas estão acesas G De fato É esse o dia de vocês E lá fora C Estupefato Lá fora G Lá fora do outro lado dessas paredes C Há um corredor G E no fim do corredor C Há outros quartos outros corredores e escadas G E que mais C Nada mais G Você naturalmente tem um dia de folga Aonde costuma ir C Em casa de meu tio que é chefe dos criados no terceiro andar G Eu devia ter desconfiado Onde está o interruptor da luz C Não existe G Como é Não se pode apagar C A gerência pode cortar a corrente elétrica Mas não me lembro se já aconteceu isso neste andar Temos eletricidade à vontade G Muito bem Quer dizer que a gente tem de viver de olhos abertos C Irônico Viver G Não vá me aborrecer agora por uma questão de vocabulário De olhos abertos Para sempre Será pleno dia em meus olhos E nada na minha cabeça Pausa E se eu atirasse esse bronze contra a lâmpada elétrica Será que ela se apagaria C É muito pesado ENTRE QUATRO PAREDES Jean Paul Sartre 4 G Tomando o bronze entre as mãos e tentando erguêlo Tem razão É muito pesado Silêncio C Se não precisa mais de mim vou me retirar G Sobressaltado Vaise embora Até logo O criado chega até à porta Espere O criado se volta É uma campainha isso aí O criado faz sinal que sim Posso tocar quando quiser e você tem obrigação de atender C Em princípio sim Mas a campainha é caprichosa Há qualquer coisa errada com o mecanismo G Vai até à campainha aperta o botão Ouvese o tocar Funciona C Espantado Funciona Toca também Mas não se entusiasme muito Isso não dura Então às suas ordens G Num gesto para detêlo Eu C O que há G Não não é nada Caminha pela sala Isso O que é C Não está vendo Um cortapapel G Há livros por aqui C Não G Então para quê isso O criado dá de ombros Está bem Pode se retirar O criado sai Cena 2 Garcin está só Vai até o bronze e o apalpa Sentase Levantase Vai até à campainha e aperta o botão Ela não toca Experimenta dois ou três vezes em vão Dirigese à porta e tenta abrila Não consegue Ele chama Criado criado Nenhuma resposta Esmurra a porta chamando o criado Acalmase subitamente Nesse instante abrese a porta e entra INÊS acompanhada do criado Cena 3 C A Garcin O senhor chamou G Não C Dirigindose a Inês Está em sua casa minha senhora Silêncio Se tiver alguma pergunta a fazer Inês não fala O criado está desapontado Os fregueses geralmente gostam de pedir informações Não importa Além do mais quanto à escova de dentes a campainha e o bronze de Barbedienne este senhor está a par de tudo e poderá informar tão bem quanto eu Sai Silêncio Garcin não olha para Inês Inês observa em redor e dirigese bruscamente a Garcin I Onde está Florence Silêncio de Garcin Perguntolhe Onde está Florence G Não sei de nada I Foi só isso que conseguiu descobrir A tortura pela ausência Pois falhou Florence era uma bobinha e não me faz falta G Queira perdoarme Quem está pensando que eu sou I O senhor O senhor é o carrasco G Sobressaltase e põese a rir É um equívoco engraçadíssimo O carrasco É boa A senhora entrou olhou para mim e pensou é o carrasco Que extravagância O criado é ridículo deveria ternos apresentado O carrasco Eu sou Joseph Garcin publicitário e ENTRE QUATRO PAREDES Jean Paul Sartre 5 homem de letras O fato é que estamos hospedados no mesmo estabelecimento senhora I Secamente Inês Serrano Senhorita G Muito bem Perfeito Derreteuse o gelo Quer dizer que me acha com cara de carrasco Quer fazer o favor de me explicar como se reconhecem os carrascos I Têm cara de quem tem medo G Medo É esquisitíssimo Medo de quem De suas vítimas I Ora Sei bem o que estou dizendo Espelho não me falta G Espelho Olha em volta Que maçada Tiraram daqui tudo quanto pudesse se parecer com um espelho Pausa Em todo caso posso lhe garantir que não tenho medo Não considero levianamente a situação e estou perfeitamente cônscio de sua gravidade Mas não tenho medo I Dando de ombros Isso é com o senhor Será que o senhor sai de vez em quando para um passeio G A porta está trancada I É pena G Compreendo muito bem que minha presença a aborrece E se dependesse de mim preferiria estar só Tenho que pôr a vida em ordem e preciso de sossego Mas tenho certeza de que nos acostumaremos um com o outro Não falo quase não me movo e faço pouco barulho Apenas se me atrevo a dar um conselho será bom conservarmos entre nós uma extrema polidez Será nossa melhor defesa I Não sou bem educada G Eu o serei por nós dois Um silêncio Garcin está sentado no sofá Inês andando de um lado para outro I Olhandoo Essa boca G Voltando a si Como é I Não é capaz de fazer parar sua boca Ela gira como um pião debaixo do nariz G Desculpe Não tinha percebido I É justamente o que estou censurando A boca é o tique de Garcin De novo Pretende ser bem educado e deixa sua cara assim à toa O senhor não está sozinho e não tem o direito de me impor o espetáculo do seu medo G Erguese e se dirige a ela E a senhora Não tem medo I Para quê O medo era bem antes quando tínhamos esperança G Com doçura Não há mais esperança mas estamos sempre antes Ainda não começamos a sofrer I Bem sei Um tempo Então o que é que vai acontecer G Não sei Estou esperando Silêncio Garcin vai se sentar de novo Inês continua a andar Garcin torce a boca e ao olhar para Inês esconde o rosto nas mãos Entra Estelle e o criado Cena 4 E Olha para Garcin que não ergueu a cabeça e a ele se dirige Não Não não erga a cabeça Eu sei que está escondendo a cabeça nas mãos Sei que não tem cara Garcin tira as mãos do rosto Ah Um tempo Surpreendida Não conheço o senhor G Não sou carrasco minha senhora ENTRE QUATRO PAREDES Jean Paul Sartre 6 E Não pensei que fosse o carrasco Eu eu pensei que alguém quisesse me pregar uma peça ao criado Quem mais está esperando C Ninguém mais E Aliviada Ah Então vamos ficar só nós três O senhor a senhora e eu Põese a rir G Secamente Não vejo razão para rir E Ainda rindo E esses sofás são medonhos E vejam como estão colocados Parece que é dia de Ano Novo e que eu estou visitando minha tia Marie Cada qual tem o seu imagino É este o meu Para o criado Eu nunca seria capaz de sentarme nele é uma catástrofe Não combina absolutamente com minha roupa Ela está de azul o sofá é verde I Quer ficar com o meu E O sofá Bordeaux A senhora é muito amável mas isso de pouco adiantaria Não O que fazer Cada qual com o que é seu Coubeme o verde fico com ele Um tempo O único que combinaria é o desse senhor Um silêncio I Está ouvindo Garcin G Sobressaltado O sofá Oh perdão Levantase É seu minha senhora E Obrigada Tira o manteau e o deixa sobre o sofá Um tempo Já que temos de morar juntos vamos nos apresentar Chamome Estelle Rigault Garcin se inclina e vai se apresentar quando Inês se interpõe I Inês Serrano Prazer em conhecêla G Inclinase de novo Joseph Garcin C Precisam ainda de mim E Não Pode ir Se precisar chamarei O criado sai Cena 5 I A senhora é muito bonita Eu queria Ter flores para lhe desejar boasvindas E Flores É mesmo Gostava muito de flores Aqui elas murchariam Faz tanto calor Ora o principal não acha é conservar o bom humor A senhora está I Sim a semana passada E a senhora E Eu Ontem A cerimônia ainda não acabou Fala com muita naturalidade como se estivesse vendo o que descreve O vento desmancha o véu de minha irmã Ela faz o que pode para chorar Vamos vamos Mais um esforço Aí está duas lágrimas duas lágrimas pequenas brilhando sobre o crepe Olga Jardet está muito feia essa manhã Sustem minha irmã pelo braço Não chora por causa do rimmel e devo confessar que eu no seu lugar era minha melhor amiga I A senhora sofreu muito E Não Estava embrutecida I O que foi que E Uma pneumonia Pronto Acabouse Vãose embora todos Bom dia Bom dia Quantos apertos de mão Meu marido ficou em casa está doente de pesar A Inês E a senhora I Gás E E o senhor aí G Doze balas no peito Gesto espantado de Estelle Desculpeme Não sou um morto de boa sociedade E Oh Meu senhor se quisesse deixar de empregar palavras tão cruas assim É é chocante Afinal de contas o que significa isto Quem sabe se nunca estivemos tão vivos ENTRE QUATRO PAREDES Jean Paul Sartre 7 quanto agora Quando for preciso referirme a este estado de coisas proponho que nos chamemos ausentes será mais correto O senhor há quanto tempo está ausente G Há um mês mais ou menos E De onde é o sr G De Rien E Eu de Paris Ainda tem alguém por lá G Cabisbaixo Minha mulher Ela veio ao quartel como todos os dias não a deixaram entrar Olha entre as barras das grades Ainda não sabe que estou ausente mas desconfia Vaise embora agora Está toda de preto Tanto melhor não precisará mudar de roupa Ela não chora Não chorou nunca O sol está lindo e ela está toda de preto na rua deserta com aqueles seus grandes olhos de vítima Ah ela me irrita I Silêncio Garcin vai se sentar no sofá do meio e esconde a cabeça entre as mãos Inês fala Estelle E Senhor senhor Garcin G Senhora E O sr se sentou no meu sofá G Perdão Levantase E Parece distraído G Estou pondo minha vida em ordem Inês começa a rir Os que riem fariam melhor se me imitassem I Minha vida está em ordem Perfeitamente em ordem Ela mesmo se pôs em ordem por lá Não tenho que me preocupar com isso G Verdade E a senhora acha isso tão simples Passa a mão pela testa Que calor Dão me licença Faz menção de tirar o paletó E Ah não Com mais doçura Isso não Tenho horror a homens em mangas de camisa G Vestindo de novo o paletó Está bem Passava as noites na sala da redação Fazia sempre um calor de esterco Faz um calor de esterco É noite E É verdade Já é de noite Olga se despe Como o tempo passa depressa na terra I É de noite Lacraram a porta do meu quarto E o quarto está vazio no escuro G Eles puseram os paletós no encosto das cadeiras e enrolaram as mangas da camisa acima dos cotovelos Há um cheiro de homem e de tabaco Silêncio Eu gostava de viver no meio de homens em mangas de camisa E Seriamente Pois é não temos o mesmo gosto É tudo o que isso quer dizer A Inês E a sra Gosta disso De homens em mangas de camisa I Em mangas de camisa ou não não gosto de homens E Com espanto olha para os dois Mas por que por que nos puseram juntos I Num grito abafado Que está dizendo E Olho para os dois e penso que temos de morar juntos Eu esperava encontrar aqui amigos família I Um excelente amigo com um buraco no meio da cara E Esse também Dançava tango como um profissional Mas nós nós porque foi que nos juntaram G Inês ri Ora por acaso Eles vão arrumando a gente onde podem por ordem de chegada A Inês Por que está rindo I Porque o sr me diverte com essa história de acaso Será que o sr tem assim tanta necessidade de apurar as coisas Eles não fazem nada por acaso E Com timidez Mas quem sabe se já nos encontramos antes I Nunca Eu não a teria esquecido E Então quem sabe temos relações comuns Não conhece os DuboisSeymour I Acho que não E Recebem todo mundo ENTRE QUATRO PAREDES Jean Paul Sartre 8 I E o que fazem E Com surpresa Nada Têm um castelo em Corrèze e I Eu eu era empregada dos correios E Um pequeno recuo de corpo Ah Então expliqueme E o senhor senhor Garcin G Nunca saí de Rien E Nesse caso o sr tem toda a razão foi o acaso que nos juntou I O acasoEntão é por acaso que estes móveis estão aqui É por acaso que o sofá da direita é verde e o da esquerda é bordeaux Por acaso não é Pois experimente trocálos de lugar e verão o que acontece E este broze também é um acaso E este calor Silêncio O que lhe digo é que tudo isso foi preparado com carinho nos mínimos pormenores Este aposento estava à nossa espera E Mas como assim Tudo aqui é tão feio tão duro tão anguloso Eu tinha horror aos ângulos I Erguendo os ombros Pensa então que eu vivia num salão Segundo Império E Um tempo e silêncio Então é tudo previsto I Tudo E nós combinamos com isso tudo E Não ser por um acaso que a sra está à minha frente Que é que eles esperam I Não sei mas esperam E Não posso tolerar que esperem qualquer coisa de mim Isso me dá logo vontade de fazer o contrário I Pois então faça Faça Nem ao menos sabe o que querem E Batendo o pe É insuportável E por causa de vocês dois qualquer coisa tem de me acontecer Olhaos Por causa de vocês dois Havia rostos que falavam logo Os seus não dizem nada G Bruscamente a Inês Vamos Por que é então que estamos juntos Já disse muita coisa vá até o fim I Surpresa Não sei de nada disso Não sei absolutamente nada G Precisa saber reflete I Se um de nós tivesse ao menos a coragem de dizer G o quê I Estelle E Que é I O que foi que a senhora fez Por que a mandaram para cá E Com vivacidade Mas eu não sei Não sei absolutamente nada Perguntome mesmo se isto tudo não será um equívoco A Inês Nada de risadas Penso só na quantidade de pessoas que que se ausentam cada dia Chegam aqui aos milhares e têm de tratar com subalternos com empregados sem instrução Como quer que não haja equívoco Não dê risadas não A Garcin E o senhor Diga alguma coisa Se se enganaram no meu caso também podiam terse enganado no seu A Inês E no seu também Não será melhor pensar que estamos aqui por equívoco I É tudo que nos tem a dizer E Que mais quer saber Não tenho o que esconder Eu era órfã e pobre e educava meu irmão mais moço Um velho amigo de meu pai me pediu em casamento Era rico e bom Aceitei Que faria a sra no meu lugar Meu irmão era doente e sua saúde reclamava os maiores cuidados Seis anos vivi com meu marido sem o menor contratempo Há dois anos encontrei aquele que eu devia amar Reconhecemonos imediatamente Ele queria fugir comigo e recusei Depois tive minha pneumonia É tudo Invocando certos princípios talvez haja quem possa me culpar de ter sacrificado a um velho a minha mocidade A Garcin Acha que isso seja um crime G Claro que não E a sra acha que seja um crime viver segundo seus princípios ENTRE QUATRO PAREDES Jean Paul Sartre 9 I Quem poderia censurálo por isso G Eu dirigia um jornal pacifista Rebentou a guerra Que fazer Todos os olhos estavam grudados em mim Vamos ver se ele terá coragem Pois tive coragem cruzei os braços e eles me fuzilaram Que crime há nisso Que crime E Pousandolhe a mão no ombro Não há crime O senhor é I Concluindo com ironia Um herói E sua mulher Garcin G Que é que tem Tireia da sarjeta E A Inês Está vendo Está vendo I Estou vendo Para quem está representando esta comédia se estamos entre nós E Com insolência Entre nós I Entre assassinos Estamos no inferno minha filha e aqui não pode haver erros e não se condena ninguém à toa G Calese I No inferno Condenados Condenados E Calese Faça o favor de calarse Proíboa de empregar expressões grosseiras I Condenada a santinha Condenado o herói sem mácula Tivemos nosso momentos de prazer não é verdade Houve pessoas que sofreram por nós até à morte e isso nos divertia bastante Agora temos de pagar G Erguendo a mão Vai calarse ou não I Encarandoo sem medo mas com enorme surpresa Ah Um tempo Esperem aí Agora compreendo porquê nos puseram juntos G Tome cuidado com o que vai dizer I Vão ver como é tolo Tolo como tudo Não Não existe tortura física não é mesmo E no entanto estamos no inferno E ninguém mais chegará Ninguém Temos de ficar juntos sozinhos até o fim Não é isso Quer dizer que há alguma coisa que faz falta aqui o carrasco G A meia voz bem sei I Pois é fizeram uma economia de pessoal Só isso São os próprios fregueses que se servem como nos restaurantes cooperativos E Que quer dizer I Cada um de nós é o carrasco para os outros dois Um tempo Eles ruminam a idéia G Com voz doce Não serei o carrasco de ninguém Não lhes desejo mal e nada tenho a ver com as senhoras Nada É muito simples Vejam só cada qual no seu canto esse é que é o jogo A senhora aqui a senhora ali eu lá E silêncio Nem um pio Não é difícil não é mesmo Cada um de nós tem muito que se incomodar consigo mesmo Acho que eu seria capaz de passar dez mil anos sem falar E É preciso que eu me cale G É sim E e estaremos salvos Calarse Olhar em si mesmo jamais erguer a cabeça Estão de acordo I De acordo E Hesita um pouco de acordo G Então adeus Dirigese ao seu sofá e põe a cabeça entre as mãos Silêncio Inês põese a cantar para si mesma I Na rua das capasbrancas Eles plantaram palancas E ergueram com alavancas A força feita de trancas Na rua das capasbrancas Nesse meio tempo Estelle empoa o rosto e pinta os lábios Ao se empoar procura por todos os lados inquietamente Remexe para um lado e outro sua bolsa Voltase para Garcin ENTRE QUATRO PAREDES Jean Paul Sartre 10 E O sr terá um espelho Garcin não responde Um espelho um espelhinho de bolso não importa Não responde Se me deixam sozinha pelo menos arranjemme um espelho Garcin continua com a cabeça entre as mãos Não responde I Com solicitude Tenho um espelho em minha bolsa Procurao na bolsa com raiva Não está mais Devem Ter ficado com ele no depósito E Que aborrecimento Um tempo Ela fecha os olhos e cambaleia Inês corre para ampará la I Que tem E Abre os olhos Sinto uma coisa esquisita Ri e se apalpa Com a sra não é assim também Quando não me vejo por mais que me apalpe fico na dúvida se existo mesmo de verdade I Tem sorte Eu sempre me sinto interiormente E Ah sim interiormente Tudo o que se passa nas cabeças é tão vago que me dá sono Tempo Meu quarto tem seis espelhos grandes Estou vendo todos Estou vendo Mas eles não me vêem Eles refletem a penteadeira o tapete as janelas Como é vazio um espelho em que não estou Quando eu falava sempre dava um jeito para que houvesse um espelho em que eu pudesse me ver Eu falava e me via falar Eu me via como os outros me viam Por isso ficava acordada Com desespero Meu rouge Tenho certeza de que pintei mal Mas não posso ficar sem espelho por toda a eternidade I Quer que eu lhe sirva de espelho Venha convidoa a vir à minha casa Sentese aí no meu sofá E Mostrando Garcin Mas I Façamos de conta que ele não existe E Nós vamos nos fazer mal Foi a senhora quem disse I Acha que eu posso querer o seu mal E Sabese lá I Você é quem vai me fazer mal Mas que importa Já que é preciso sofrer que seja por você Sentese Chegue mais perto Mais Olha nos meus olhos está se vendo neles E Estou tão pequenininha Vejome muito mal Muito mal I Mas eu vejo você inteirinha Façame perguntas Nenhum espelho será mais fiel Estelle entediada voltase para Garcin como para pedir auxílio E Senhor por favor não estamos incomodando com nossa tagarelice Garcin não responde I Deixeo em paz Com ele não se conta mais estamos sozinhas Façame perguntas E Pintei bem meus lábios I Deixeme ver Não Não muito bem E Bem que eu desconfiava Felizmente lança um olhar a Garcin ninguém me viu Vou pintar de novo I É melhor Não Acompanhe o desenho dos lábios Deixe que eu ajude Assim assim Está bem E Tão bem como eu estava quando cheguei I Melhor Mais pesado mais cruel Essa boca de inferno E Está bem mesmo Como é desagradável não poder julgarme por mim mesma A senhora jura que está bem mesmo I Não quer me tratar por você E Você jura que estou bem I Você é linda E Mas será que a sra tem bom gosto O meu gosto Como é desagradável como é desagradável I Tenho sim o seu gosto porque você me agrada Olhe bem para mim Sorria Eu também não sou feia Será que não valho mais do que um espelho ENTRE QUATRO PAREDES Jean Paul Sartre 11 E Não sei A sra me intimida Minha imagem nos espelho era domesticada Eu a conhecia tão bem Eu vou sorrir meu sorriso irá até o fundo das suas pupilas e Deus sabe o que será dele I E quem impede você de me domesticar Olhamse Estelle sorri meio fascinada Não quer mesmo me tratar por você E Custame tratar as mulheres por você I E particularmente as empregadas dos correios imagino Que é que você tem aí no rosto embaixo Essa mancha vermelha E Num sobressalto Mancha vermelha Que horror Onde I Aqui Aqui Eu sou o espelho que atrai as cotovias minha pequena cotovia pilheia Não há vermelhidão alguma Nem sinal hein Que tal se o espelho começasse a mentir Ou se fechasse os olhos se não quisesse olhar que faria você de toda essa beleza Não tenha medo Preciso olhar para você Meus olhos ficarão sempre abertos sempre abertos e eu serei boazinha Mas tem de dizer você E Um tempo você gosta de mim I Muito E Um tempo Designa Garcin com a cabeça Eu queria que ele também olhasse para mim I Sim Porque é homem A Garcin O sr ganhou Garcin não responde Olhe para ela de uma vez Não responde Basta de comédia O sr não perdeu uma palavra do que dizíamos G Erguendo bruscamente a cabeça Diz bem Nem uma palavra Por mais que enterrasse os dedos nos ouvidos as senhoras falavam dentro de minha cabeça Quer me deixar em paz agora Não tenho nada com a senhora I E com essa pequena tem alguma coisa Percebi sua manobra foi para interessála que o senhor tomou esses ares de importância G Já disse que me deixe Alguém no jornal está falando de mim Quero ouvir Essa pequena não me interessa pode ficar tranqüila E Obrigada G Eu não pretendia ser grosseiro E Grosseirão Um tempo Estão de pé uns diante dos outros G Está aí Eu tinha pedido que se calassem E Foi ela quem começou Veio me oferecer o espelho sem que eu tivesse pedido nada I Nada Apenas se esfregava nele e fazia tudo para ele olhasse para você E E daí G Estão loucas Não estão vendo onde vamos parar Calemse de uma vez Um tempo Vamos nos sentar de novo calmamente fechar os olhos e cada qual procurará esquecer a presença do outro Um tempo Ele se senta de novo Elas voltam hesitantes para seus lugares I Voltase bruscamente Ah esquecer Que infantilidade Eu o sinto até nos meus olhos Seu silêncio grita em minhas orelhas Pode soldar a boca pode cortar a língua Será que por isso o sr deixaria de existir Faria parar esse seu pensamento que estou ouvindo que faz tictac como um despertador E sei que o sr ouve o meu É inútil s encolher todo no sofá O sr está por toda parte os sons me chegam sujos porque o sr os ouvir quando passavam O sr roubou meu próprio rosto até O sr conhece meu rosto e eu não E ela Ela O sr a roubou de mim Se estivéssemos sozinhas pensa que ela me trataria como me trata Não não Tire essas mãos da cara É cômodo não é Mas eu não deixo O sr ficaria aí insensível mergulhado em si mesmo como um Buda Eu de olhos fechados sentindo que ela lhe dedica todos os ruídos de sua vida até mesmo o farfalhar do seu vestido e lhe manda sorrisos que o sr não vê Nada disso Quero escolher meu inferno olhar para o sr sem assombro e lutar de rosto nu ENTRE QUATRO PAREDES Jean Paul Sartre 12 G Está bem Estou vendo que era preciso chegar a esse ponto Eles manobram conosco como se fôssemos criancinhas Se me tivessem alojado entre os homens os homens sabem se calar Mas não se deve exigir muito Aproximase de Estelle e lhe acaricia o queixo Então menina sou do seu gosto Dizem que você estava de olho em mim E Não me toque G Ora Vamos ficar à vontade Eu gostava muito de mulheres sabe E elas de mim muito Não temos nada mais a perder Polidez por que À vontade Daqui a pouco estaremos nus E Deixeme G Nus Ah eu avisei em tempo Não lhes pedi nada nada mais do que paz e um pouco de silêncio Enterrei os dedos nos ouvidos Gomes falava de pé entre as mesas e todos os camaradas do jornal ouviam em mangas de camisa Eu queria entender o que diziam era difícil os acontecimentos da terra passam tão depressa Vocês querem ou não calarse Agora acabouse Ele já não está falando o que pensa de mim entrou de novo na sua cabeça Pois bem temos de ir até o fim E nus Preciso saber com quem estou lidando I Já sabe Agora já sabe G Enquanto cada um de nós não confessar porque foi condenado nada saberemos Você aí a loira comece Por que foi Diga o porquê Sua fraqueza pode evitar catástrofes Quando conhecermos nossas sujeitas todas Vamos por que foi E Digo que ignoro tudo Eles não quiseram me contar G Eu sei A mim também não quiseram responder Mas eu me conheço Tem medo de ser a primeira a falar Pois bem eu começo Silêncio Eu não sou boa coisa I Está certo Sabese que o sr desertou G Deixe disso Não fale isso nunca Estou aqui porque torturei minha mulher Apenas isso Durante cinco anos Naturalmente ela ainda está sofrendo Lá está ela assim que falo dela começo a vêla É Gomes que me interessa e é ela que vejo Onde está Gomes Durante cinco anos sabem Eles lhe entregaram minhas roupas ela está sentada perto da janela e pôs meu paletó sobre os joelhos O paletó dos doze buracos O sangue parece ferrugem As bordas dos orifícios estão chamuscados Ah É uma peça de museu um paletó histórico E dizer que eu usei aquilo Você vai chorar Vai acabar por chorar Eu entrava em casa bêbado como uma cabra com cheiro de vinho e de mulher Ela me havia esperado a noite toda e não chorava Nem uma palavra de censura naturalmente Apenas seus olhos Seus grandes olhos Não me arrependo de nada Pagarei mas não me arrependo Cai neve lá fora mas você vai chorar afinal É uma mulher que tem vocação para mártir I Quase com doçura Por que a fez sofrer G Porque era fácil Uma palavra bastava para fazêla mudar de cor Era uma sensitiva Ah nem uma censura Sou muito implicante Esperava esperava sempre mas nada Nem um choro nem uma censura Eu a tinha tirado da sarjeta compreendem Ela passa a mão pelo paletó sem olhar Seus dedos procuram os buracos às cegas Que é que você aguarda Que é que você espera Digolhe que não me arrependo de nada Enfim ela me admirava demais Compreendem isso I Não A mim ninguém admirava G Tanto melhor Tanto melhor para a sra Tudo isso pode parecer abstrato Pois bem eis um caso pitoresco Eu tinha instalado em casa uma mulher Que noites Minha mulher que dormia no primeiro andar de certo ouvia tudo Era a primeira a se levantar e como nós ficávamos deitados até tarde ela nos trazia café com leite na cama I Cafajeste ENTRE QUATRO PAREDES Jean Paul Sartre 13 G Pois é pois é o cafajeste bemamado Parece distraído Não é nada É o Gomes Mas não está falando de mim Um cafajeste a sra estava dizendo Claro Se não que estaria eu fazendo aqui E a senhora I Bem eu era o que eles chamam por lá de uma mulher condenada Jà condenada não é verdade Por isso não houve grandes surpresas G E é só I Não Há também aquele caso da Florence Mas é uma história de mortos Três mortos Primeiro ele depois ela e eu Não sobrou ninguém Estou tranqüila apenas o quarto De tempos em tempos vejo o quarto Vazio de janelas fechadas Arre Afinal tiraram os lacres Alugase Está para alugar Tem um letreiro pregado na porta É é irrisório G Três A senhora disse três I Três G Um homem e duas mulheres I Sim G Como Silêncio Ele se matou I Ele Seria incapaz disso E não é que não tivesse sofrido Não Ficou debaixo de um bonde esmagado Que brincadeira eu morava na casa deles ele era meu primo G Florence era loira I Loira Olha para Estelle Sabe de uma coisa Não me arrependo de nada mas não me agrada contar essa história G Vamos vamos Foi ficando com nojo dele I Pouco a pouco Uma palavra aqui outra ali Por exemplo fazia barulho quando bebia soprava pelo nariz dentro do copo Coisinhas Oh era um coitado vulnerável Por que está rindo G Porque eu não eu não sou vulnerável I Isso não se sabe Eu me interessei por ela Ela viu isso por meus olhos Enfim tive de ficar com ela Tomamos um quarto no outro extremo da cidade G E então I Então aconteceu aquele bonde Eu dizia sempre está vendo meu bem Nós o matamos Silêncio Eu sou má G E eu também I Não O senhor o senhor não é mau É outra coisa G O quê I Mais tarde eu lhe direi Eu sim sou má Quer dizer preciso do sofrimento dos outros para existir Uma tocha Uma tocha nos corações Quando estou sozinha me apago Durante seis meses eu ardi no coração dela queimei tudo Uma noite ela se levantou foi abrir a torneira de gás sem que eu percebesse Depois voltou e se deitou ao meu lado É tudo G Hum I Que há G Nada Isso não está direito I Pois é não está direito E daí G Oh tem razão Para Estelle Você agora O que foi que você fez E Já disse que não estou sabendo de nada Por mais que eu me pergunte G Bem então vamos ajudála Aquele sujeito de cara arrebentada quem era E Que sujeito G Aquele de quem você tinha medo quando chegou aqui Você sabe muito bem E Era um amigo G Por que tinha medo dele E O sr não tem o direito de me interrogar ENTRE QUATRO PAREDES Jean Paul Sartre 14 I Foi por sua culpa que ele se matou E Que absurdo A senhora está louca G Então por que é que ele me metia medo Deu um tiro na cara hein Foi isso que lhe arrancou a cabeça E Calemse Calemse G Por sua causa Por sua causa I Um tiro por sua causa E Deixemme em paz Tenho medo de vocês Quero ir embora Quero ir embora Ela se precipita para a porta e a sacode G Pode ir Não quero outra coisa Mas o diabo é que a porta está fechada por fora Estelle aperta o botão da campainha não toca Inês e Garcin riem Encostada na porta Estelle se vira para eles E De voz lenta Vocês são ignóbeis I Perfeitamente ignóbeis E daí Então o tal sujeito se matou por sua causa Era seu amante G É claro que era seu amante E queria você só para ele Não é isso I Dançava tango como um profissional mas era pobre imagino G Antes um silêncio estamos perguntando se ele era pobre E Sim era pobre G Além disso você tinha de zelar pela sua reputação Um dia ele chegou suplicou e você fez troça I Hein hein hein Você fez troça Foi por isso que ele se matou E Era com esses olhos que você olhava para Florence I Era Um tempo Estelle começa a rir E Estão completamente errados Ela se apruma e os enccara encostada sempre na porta Num tom e provocante Ele queria que eu tivesse um filho Pronto Estão contentes G E você você não queria E Não queria mas a criança veio assim mesmo Fui passar cinco meses na Suíça Ninguém soube de nada Era uma menina Roger estava ao meu lado quando ela nasceu Achava interessante ter uma filha Eu não G E depois E Havia um balcão sobre o lado Arranjei uma pedra grande Ele gritava Estelle por favor eu suplico Eu o detestava Ele viu tudo Debruçouse no balcão e viu os círculos concêntricos na água do lago G Depois E Nada mais Voltei a Paris e ele fez o que bem entendeu G Estourou os miolos E Isso mesmo Mas não era preciso fazer isso Meu marido não desconfiava de nada Um tempo Tenho ódio de vocês Tem uma crise de soluços secos G É inútil Aqui as lágrimas não correm E Que covarde que eu sou Que covarde Um tempo Se soubessem como tenho ódio de vocês I Corre para tomála nos braços Coitadinha A Garcin Acabouse o inquérito Não adianta ficar com essa cara de carrasco G De carrasco Olhando em torno Daria tudo para me ver num espelho Um tempo Que calor Maquinalmente tira o paletó Ah desculpe Vesteo de novo E Pode ficar em mangas de camisa agora G Está bem Atira o paletó sobre seu sofá Não me queira mal Estelle E Não lhe quero mal I E a mim Você quer mal E sim Silêncio ENTRE QUATRO PAREDES Jean Paul Sartre 15 I Afastase Pois é Garcin estamos nus Está enxergando melhor agora G Não sei Talvez um pouquinho melhor Com timidez Será que a gente não poderia experimentar ajudarse uns aos outros I Não preciso que me ajude G Inês eles emaranharam todo o fio Se você fizer o menor gesto se erguer as mãos para se abanar Estelle e eu sentiremos o abalo Nenhum de nós pode se salvar sozinho Temos de nos perder juntos ou nos desembaraçar juntos Escolha Um tempo Que tal I Já alugaram As janelas estão escancaradas Há um homem sentado na minha cama Já alugaram Já alugaram Entre entre Não faça cerimônia É uma mulher Ela se dirige a ele e pousa as mãos nos seus ombros Que é que estão esperando para acender a luz Não se enxerga mais nada Será que vão se beijar Esse quarto é meu é meu Por que não acendem a luz Já não posso vêlos Que é que estão cochichando Será que ele vai acariciála em minha cama Ela lhe diz que é meiodia e que o sol está forte Será que estou ficando cega Pronto acabouse Não vejo e não escuto mais Pois é Acho que com a Terra está tudo acabado Nada de álibi Estremece Sintome me vazia Agora estou morta de verdade completamente aqui Que estava dizendo Falava em me ajudar não é G É I A quê G A estragar o joguinho deles I A troco de quê G Você me ajudará É preciso muito pouco Apenas um pouquinho de boa vontade I Boa vontade Onde é que vou achar isso Estou podre G E eu Tempo Mas e se experimentássemos assim mesmo I Estou ressequida Não posso receber nem dar Como quer que eu o ajude Um galho morto o fogo o devora Tempo Olha Estelle que tinha posto a cabeça entre as mãos Florence era loira G Sabe você por acaso que essa pequena vai ser seu carrasco I É possível que já tenha desconfiado disso G Com ela é que eles vão pegar você Quanto a mim eu eu ela não me interessa Ao passo que com você I O quê G É uma armadilha Eles estão à espreita para ver se você sai na esparrela I Bem sei E você você é outra armadilha Pensa que eles não previram todas as suas palavras E que debaixo delas não há alçapões que nós não vemos Tudo é armadilha Mas o que importa Eu também sou uma armadilha Uma armadilha para ela Quem sabe se sou eu quem vai pegála G Não vai pegar coisa alguma Somos cavalinhosdepau que correm um atrás do outro sem nunca alcançar o que perseguem Acredite que eles prepararam tudo Solte se Inês Abra as mãos largue a presa Do contrário você fará a infelicidade de nós três I Será que tenho cara de quem larga a presa Eu sei o que me espera Vou arder estou ardendo e sei que isso não terá fim Sei tudo Pensa que largarei a presa Hei de têla Ela há de ver você pelos meus olhos como Florence via o outro Que tem você de falar de sua desgraça Digo que sei tudo e nem sequer posso Ter pena de mim Uma armadilha Ah uma armadilha Naturalmente caí numa esparrela E daí Se eles estão contentes tanto melhor G Eu posso ter pena de você Tomandoa nos ombros Olha para mim estamos nus Nus até os ossos e conheço você até o fundo do coração É um elo entre nós Acredita que lhe queria fazer mal Não me arrependo de nada não me queixo Eu também estou ressequido Mas de você posso ter pena ENTRE QUATRO PAREDES Jean Paul Sartre 16 I Que se abandonara enquanto ele falava agora se desembaraça Não me toque Detesto que me toquem E fique com sua piedade Vamos Para você também Garcin há muitas armadilhas neste quarto Para você Preparadas para você É melhor se meter com sua vida Se você nos deixar a essa pequena e a mim completamente em paz tratarei de não prejudicar você em nada G Olhandoa um momento e dando de ombros Está bem E Erguendo a cabeça Socorro Garcin G Que quer de mim E Se levanta e se aproxima dele A mim você pode ajudar G Entendase com ela Inês se aproxima de Estelle colocase atrás dela sem tocála Durante as réplicas que se seguem ela lhe falará quase no ouvido Estelle voltada para Garcin que olha sem falar Responde apenas a ele como se fosse ele que a interrogasse E Por favor o senhor me prometeu o senhor me prometeu Garcin depressa depressa Não quero ficar sozinha Olga levouo ao dancing I Quem foi que ela levou E Pierre Estão dançando juntos I Quem é Pierre E Um bobinho Ele me chamava de sua águaviva Ele gostava de mim Ela o levou ao dancing I Você gosta dele E Sentamse de novo Ela está exausta Por que é que ela dança A não ser para emagrecer É claro que não É claro que eu não gostava dele Ele tem dezoito anos e não sou nenhum bichopapão I Então deixeos Por que se incomodar com isso E Ele era meu I Nada mais é seu sobre a Terra E Ele era meu I Sim era Experimente tocálo experimente tocálo Olga sim pode tocálo não é Não é Pode pegar suas mãos roçar nos seus joelhos E Ela empurra contra ele o peito enorme Ela respira no seu peito Pequeno Polegar pobre Pequeno Polegar O que está esperando para dar uma gargalhada Ah Bastava um olhar meu e ela não se atreveria nunca Será que não sou mesmo mais nada I Mais nada E não há nada mais de você na terra tudo quanto tem está aqui Quer a faca de cortar papel O bronze de Barbedienne O sofá azul é seu E eu meu bem sou sua para sempre E Ah Minha Mas qual é de vocês que teria a coragem de me chamar de águaviva A vocês não se pode enganar Vocês sabem que eu sou um lixo Pense em mim Pierre só em mim defendase Enquanto você pensar Minha águaviva minha querida água viva eu não estarei aqui senão pela metade não serei senão meio culpada serei água viva aí perto de você Ela está vermelha como um tomate Ora isso é impossível tantas vezes nós nos rimos dela juntosQue música é essa Eu gostava tanto dela Ah é o SaintLouis Blues Pois que dancem que dancem Garcin você havia de se divertir se pudesse vêla Ela nunca saberá que eu a estou vendo Estou vendo você estou vendo você com esse penteado desmanchado essa cara transtornada e pisando nos pés dele É de morrer de rir Vamos mais depressa mais depressa Ele me dizia Você é tão leve Ele a puxa a empurra É indecente Vamos vamos Começa a dançar enquanto fala Aviso você que estou vendo Ela pouco se importa e dança através do meu olhar Nossa querida Estelle Que nossa querida Estelle Ah Calese Nem sequer chorou uma lágrima durante o meu enterro Ela disse a ele Nossa querida Estelle Tem a coragem de lhe falar de mim Vamos Atenção ao compasso Ela nunca seria capaz de dançar e ENTRE QUATRO PAREDES Jean Paul Sartre 17 falar ao mesmo tempo Mas o que é que Não não lhe conte nada Fique com ele leve o guardeo e faça dele o que quiser mas não lhe conte nada Pára de dançar Bom Pois bem agora pode ficar com ele Garcin ela contou tudo Roger a viagem à Suíça a criança ela contou tudo Nossa querida Estelle não era Não não De fato eu não era Ele sacode a cabeça com ar tristonho mas não se pode dizer que a notícia o transtornou Fique com ele agora Não vou disputar com você aqueles longos cílios e aquele ar de menina que ele tinha Ah ele me chamava sua águaviva seu cristal Pois o cristal se quebrou em migalhas Minha querida Estelle Vamos Atenção ao compasso Um dois Dança Daria tudo no mundo para voltar um instante à terra um só instante para dançar Dança um tempo Já não estou ouvindo bem Apagaramse as luzes como para um tango Por que tocam na surdina Mais alto Como está longe Eu não ouço mais nada Pára de dançar Nunca mais A terra me abandonou Garcin olhe para mim Me abrace por trás de Estelle Inês faz sinal a Garcin para que se afaste E Autoritária Garcin G Recuando um passo e mostrando Inês a Estelle Entendase com ela E Agarrandoo Não fuja Você não é homem Vamos olhe para mim não desvie os olhos será tão difícil Meus cabelos são de ouro e alguém se matou por mim Eu lhe peço Você tem de olhar para qualquer coisa Se não for para mim será para o bronze para os sofás Vale mais a pena olhar para mim apesar de tudo G Repelindoa a custo Peçolhe que se entenda com ela E Ela não conta É uma mulher I Eu não conto Mas minha cotovia há muito tempo que você está abrigada no meu coração Não tenha medo Olharei para você sem parar sem um estremecimento de pálpebras Você viverá no meu olhar como uma lantejoula num raio de sol E Um raio de sol Não me amole Há pouco você quis que pregar uma peça e viu que não deu certo I Estelle minha águaviva meu cristal E Seu cristal É grotesco A quem quer enganar Todo mundo sabe que atirei a criança pela janela O cristal está em pedacinhos no chão e não me importo Sou apenas uma pele É minha pele não é para você I Venha Você será o que quiser águaviva águasuja será quem quiser ser E Largueme Você não tem olhos Que hei de fazer para que você me deixe Tome Cospelhe no rosto Inês a solta I Garcin você me paga G Então você quer mesmo um homem E Um homem não Você G Nada disso Qualquer um serviria Vim parar aqui tem de ser comigo Bom Tomaa pelos ombros Bem sabe que não tenho nada do que você gosta não sou um bobinho e não danço tango E Aceitoo como você é Talvez eu o transforme G Duvido Eu serei distraído Tenho outras coisas em que pensar E Que coisas G Para você não teriam interesse E Vou me sentar no sofá no seu sofá e esperar que se ocupe de mim I Numa gargalhada Ah cadela Ele nem mesmo é bonito E A Garcin Não ouça o que ela diz ela não tem olhos não tem ouvidos ela não existe G Eu darei a você o que puder Não é muito Amor não Eu conheço você demais E Você me deseja G Sim ENTRE QUATRO PAREDES Jean Paul Sartre 18 E É quanto me basta G Pois então Inclinase sobre ela I Estelle Garcin Vocês perderam o juízo Eu estou aqui G Estou vendo E daí I Vocês não podem diante de mim vocês não não podem E Por que não Sempre me despi diante de minha criadadequarto I Agarrandose a Garcin Deixea deixea Não a toque com essas mãos sujas de homem G Empurrandoa violentamente Basta Não sou nenhum cavalheiro e não me importo de bater numa mulher I Você me prometeu Garcin me prometeu Por favor você me prometeu G Foi você que faltou com a palavra Ela se afasta até o fundo do aposento I Façam o que quiserem Vocês são os mais fortes Mas se lembrem estou aqui olhando Não tirarei os olhos de você Garcin Terá de beijála sob o meu olhar Que ódio tenho de vocês dois Amemse Amemse Estamos no inferno e minha vez chegará Durante a cena seguinte ela olhará sem nada dizer G Se volta para Estelle e a segura pelos ombros Debruçase sobre ela e se ergue bruscamente E Num gesto de despeito Eu disse que não se importasse com ela G Não se trata dela Gomes está no jornal Fecharam as janelas quer dizer que é inverno Seis meses Faz seis meses que ele me Não lhe avisei que eu poderia ficar distraído Eles estão tremendo de frio não tiraram os paletós é esquisito que estejam com tanto frio por lá e eu aqui com tanto calor Dessa vez é de mim que ele está falando E Será que isso vai demorar Pelo menos me conte o que ele está dizendo G Nada Não está dizendo nada É apenas um safado Presta atenção Um safado Ora Voltase para Estelle Vamos tratar de nós Você gostará de mim E Sorrindo Quem sabe G Terá confiança em mim E Que pergunta boba Você não sairá dos meus olhos e não é com Inês que irá me enganar G É evidente Um tempo Afasta Estelle Eu me referia a uma outra confiança Escuta Vá vá Diga logo o que quiser Não estou aí para me defender A Estelle Estelle preciso que você tenha confiança me mim E Que complicação Mas você tem minha boca meus braços meu corpo inteiro Seria tudo tão simples Minha confiança Mas eu não tenho confiança para oferecer É horrível como você me constrange Para exigir assim minha confiança deve ter feito algo de muito ruim G Eles me fuzilaram E Já sei Você se recusou a partir E daí G Não Não me recusei propriamente Aos invisíveis Ele fala bem sabe atacar mas não diz o que se devia fazer Então eu havia de entrar pela casa do general e dizer Meu general recusome a partir Que tolice Estaria no xadrez Eu queria poder manifestar me sim manifestarme Não queria que abafassem minha voz A Estelle E eu eu tomei o trem Eles me prenderam na fronteira E Queria ia para onde G Para o México Pensava em lançar ali um jornal pacifista Silêncio Então Diga alguma coisa E Que quer que eu diga Você fez bemjá não queria combater Gesto contrariado de Garcin Ora meu bem não adivinha o que devo responder I Você deve dizer que ele fugiu como um leão meu bem Porque ele fugiu o seu queridinho E é isso que o atormenta G Fugi parti diga como entender E Era natural que fugisse Se você tivesse ficado eles o agarrariam ENTRE QUATRO PAREDES Jean Paul Sartre 19 G Claro Um tempo Estelle acha que sou um covarde E Mas eu não sei meu amor Não estou na sua pele Você é quem deve resolver G Num gesto cansado Não sei resolver E Afinal de contas você deve se lembrar Deve ter tido razões para fazer o que fez G Sim E E então G Mas será que essas razões eram de fato razões E Desorientada Como você é complicado G Eu queria me manifestar Eu eu refleti maduramente Será que minhas razões eram de fato razões I Ah Esse é que é o caso Será que as razões eram de fato razões Você raciocinava não queria alistarse levianamente Mas o medo o ódio todas essas sujeiras que a gente esconde também são razões Vamos Procure Pergunte a si mesmo G Calese Pensa que esperei seus conselhos Eu andava na minha cela noite e dia da porta à janela da janela à porta Eu era o espião de mim mesmo Fui seguindo meu próprio rastro Tenho a impressão que passei toda uma vida a me interrogar Mas estava tudo consumado Eu tomei o trem quanto a isso não há dúvida mas por quê Por quê Enfim pensei minha morte é que vai decidir Se eu morrer limpo terei provado que não sou covarde E Como foi a sua morte Garcin G Foi mal Inês começa a rir Ora apenas uma fraqueza corporal Não me envergonho Mas o fato é que tudo ficou no ar para sempre Para Estelle Venha aqui você Olhe bem para mim Preciso de alguém que olhe para mim enquanto estão falando de mim na terra Gosto de olhos verdes I Olhos verdes Essa é boa E você Estelle Gosta de covardes E Se soubesse como pouco me importo com isso Covarde ou não contanto que ele saiba beijar G Absorto Eles abanam a cabeça fumando seus charutos Estão chateados Eles pensam Garcin é um covarde Pensam por pensar moles fracos sem convicção Garcin é um covarde eis o que ficou decidido entre eles os meus companheiros Daqui a seis meses começarão a dizer Covarde como o Garcin Vocês duas tem sorte na terra ninguém se preocupa com vocês Para mim a vida é pior I E sua mulher Garcin G Minha mulher Que tem isso Está morta I Morta G Esqueci de contar Morreu há pouco Há dois meses mais ou menos I De desgosto G De desgosto é claro De que queria que morresse Ora Tudo vai bem Acabouse a guerra minha mulher morreu e eu passei às páginas da história Garcin tem um soluço seco e passa as mãos pelo rosto Estelle o abraça E Meu bem meu bem Olhe para mim querido Toque em mim Tomalhe a mão e a leva ao seio Toqueme Garcin faz um gesto se desembaraçando dela Deixe sua mão em meu seio deixe Não se mexa Que importa o que pensam de você Um a um todos hão de morrer Esqueçaos só eu existo G Retirando a mão e o corpo Não eles não me esquecem Hão de morrer mas outros virão para repetir a estória Deixei minha vida em suas mãos E Ora você pensa demais G Que fazer Antes eu agia Ah poder saltar entre eles um dia só Que golpe Mas estou fora do jogo Dão o baralho sem contar comigo E têm razão pois estou morto Liquidado como um rato Ri Caí no domínio público Um tempo E Com doçura Garcin ENTRE QUATRO PAREDES Jean Paul Sartre 20 G E você Pois bem escute você vai me fazer um favor Não não diga que não Sei que você há de achar esquisito que se possa pedir um favor a você já que não está habituada a isso Mas se quisesse se fizesse um esforço nós poderíamos nos amar de verdade Veja só são mil a repetir que sou um covarde Mas o que são mil Se houvesse uma alma uma só que afirmasse com todas as suas forças que eu não fugi que eu não posso ter fugido que eu tenho coragem que sou um sujeito direito tenho tenho certeza de que me salvaria Acredite em mim Eu ficaria gostando de você mais do que de mim mesmo E Rindo Idiota meu querido idiota Então você pensa que eu seria capaz de amar um covarde G Mas você dizia E Estava brincando com você Gosto de homens Garcin de homens de verdade de pele áspera e mãos fortes Você não tem o queixo de um covarde a boca de um covarde a voz de um covarde seus cabelos não são os de um covarde E é pela sua boca pelos seus cabelos que gosto de você G Verdade Verdade mesmo E Quer que eu jure G Agora eu desafio a todos aos que estão por lá e aos que estão por aqui Estelle nós vamos sair do inferno Inês dá uma gargalhada Ele a interrompe e a encara O que há I Ainda rindo Ela não acredita em nada do que está dizendo Será que você é tão ingênuo assim Estelle acha que sou um covarde Se você soubesse como ela está rindo de suas palavras E Inês A Garcin Não ouça o que ela diz Se quer que eu confie em você comece por confiar em mim I Pois sim pois sim Confie nela Ela precisa de um homem acredite de um braço de homem na sua cintura de um cheiro de homem de um desejo de homem em olhos de homem Quanto ao mais Ah Para lhe ser agradável ela seria capaz de dizer que você é o Padre Eterno G Estelle É verdade isso Responda É verdade E Que quer que eu diga Não entendo essas coisas Batendo o pé Que irritante que é tudo isso Mesmo que você fosse covarde eu gostaria de você Pronto Não basta isso Um tempo G Às duas Tenho nojo de vocês Dirigese à porta E Que vai fazer G Voume embora I Atalhando rápido Não irá muito longe a porta está fechada G Eles terão de abrir Aperta o botão Não toca E Garcin I A Estelle Não se importe A campainha está quebrada G Pois garanto que eles hão de abrir Bate na porta com os nós dos dedos Não agüento mais vocês não agüento mais Estelle corre para ele e ele a repele Vá Tenho ainda mais nojo de você do que dela Não quero apodrecer nos seus olhos Você é perigosa mole Você é um polvo um pântano Bate na porta Abrem ou não E Garcin por favor não vá Não falarei mais deixarei você tranqüilo mas não vá Inês mostrou as garras Não quero ficar sozinha com ela G Arranjese Não lhe pedi que viesse E Covarde covarde Você é mesmo um covarde I Aproximandose de Estelle Então minha cotovia não está satisfeita Para agradálo você me cuspiu no rosto e brigamos por causa dele Mas o desmanchaprazeres vaise embora vai nos deixar entre mulheres E Você não ganhará nada com isso Se essa porta se abrir eu também irei ENTRE QUATRO PAREDES Jean Paul Sartre 21 I Para onde E Não importa O mais longe possível de você G Não cessou de bater na porta Abram Vamos abram Aceitarei tudo as tenazes o chumbo derretido as pinças os garrotes tudo que queima tudo o que dilacera Quero sofrer de verdade Prefiro cem dentadas prefiro a chibata a esse sofrimento cerebral esse fantasma de sofrimento que roça que acaricia e que nunca dói o bastante Agarra o trinco da porta e a sacode Abrem ou não A porta se abre bruscamente Ele quase cai Um longo silêncio I Então Garcin Pode ir G Lentamente Não compreendo porque essa porta se abriu I Que está esperando Vá vá depressa G Não não vou I E você Estelle Estelle não se move Inês dá uma gargalhada Então qual de nós Qual de nós três O caminho está livre quem é que nos prende É de morrer de rir Nós somos inseparáveis E Estelle se atira sobre Inês pelas costas Inseparáveis Garcin ajudeme Depressa ajudeme Vamos arrastála para fora e fechar a porta Ela vai ver I Debatendose Estelle Estelle Eu lhe peço fique comigo No corredor não Não me atire no corredor G Soltea E Está louco Ela tem ódio de você G Foi por causa dela que fiquei Estelle solta Inês que olha assombrada para Garcin I Por minha causa Um tempo Bom Então fechem a porta Faz dez vezes mais calor depois que ela se abriu Garcin fecha a porta Por minha causa G Você sabe o que é um covarde I Sei sim G Você sabe o que é o mal a vergonha o medo Houve dias em que você se enxergou até o fundo do coração e isso a deixava moída E no dia seguinte não sabia o que pensar não conseguia decifrar a revelação da véspera Sim você sabe quanto custa o mal E quando diz que sou um covarde é com conhecimento de causa não é I É G É a você que eu devo convencer você é da minha laia Pensou então que eu me iria embora Eu não poderia deixar você aqui triunfante com todos esses pensamentos na cabeça esses pensamentos que me dizem respeito I Quer mesmo convencerme G Não quero outra coisa Já não os escuto mais sabe Decerto é porque já não em mais nada a ver comigo Acabouse Está arquivado o caso Nada mais sou sobre a terra nem mesmo um covarde Estamos sós agora Inês só restam vocês duas para pensar em mim Ela não conta Mas você você me odeia Se acreditar em mim poderá salvarme I Não será fácil Olhe para mim tenho a cabeça dura G Empregarei nisso todo o tempo que for necessário I Você tem o tempo todo O tempo todo G Tomandoo pelos ombros Escute Cada qual tem o seu alvo não é mesmo Nunca liguei prá dinheiro prá amor Só queria ser um homem Um forte Apostei tudo numa só cartada Pode ser um covarde aquele que escolheu os caminhos mais perigosos Podese lá julgar toda uma vida por um só ato I Por que não Durante trinta anos você sonhou que tinha coragem e se permitiu mil pequenas fraquezas porque aos heróis tudo é permitido Que cômodo que era Depois na hora do perigo encostaram você na parede e você tomou o trem para o México G Não sonhei com esse heroísmo Escolhio A gente é o que a gente quer ser ENTRE QUATRO PAREDES Jean Paul Sartre 22 I Prove então Prove que não era um sonho Só os atos decidem sobre o que a gente quis G Morri cedo demais Não me deram tempo para praticar os meus atos I Morrese sempre cedo demais ou tarde demais No entanto a vida aí está liqüidada Já se deu o traço debaixo das parcelas resta fazer a soma Você nada mais é do que sua vida G Víbora Tem sempre resposta para tudo I Ora vamos não desanime Deve ser fácil para você me persuadir Procure argumentos faça um esforço Garcin sacode os ombros Então como é Não disse que você era vulnerável Agora vai pagar caro Você é um covarde Garcin porque eu quero que você seja um covarde Eu quero compreende Eu quero No entanto veja que fraquinha eu sou um sopro Sou apenas o olhar que está vendo você o pensamento incolor que está pensando em você Ele caminha para ela de mãos abertas Ah abremse agora essas mãos grossas de homem A troco de quê Não se agarram pensamentos com as mãos Vamos não tem o que escolher Tem de me convencer Pilheio E Garcin G O que é E Vinguese G Como E Beijeme Ela vai ficar danada G É verdade Inês Você me pilhou mas a pilhei também Debruçase sobre Estelle Inês dá um grito I Covarde covarde Vá se fazer consolar por mulheres E Danese Inês Danese I Bonito par Se você visse essa pata grossa achatada nas suas costas machucando a carne e o vestido Ele tem mãos está transpirando Vai deixar no vestido ua mancha azul E Danese danese Aperteme mais contra você Garcin Ela vai estourar I Isso mesmo apertea bem forte Apertea Misturem bem os seus calores Que bom que é o amor hein Garcin É morno e profundo como o sono mas não deixarei você dormir E Não ouça o que ela diz Tome a minha boca Sou toda sua sua I Então o que é que você está esperando Façam o que mandam Garcin o covarde tem nos seus braços Estelle a infanticida Façam as apostas Garcin o covarde conseguirá beijála E estou vendo vocês vendo vocês Eu sozinha sou toda ua multidão A multidão Garcin compreende A multidão Murmurando Covarde covarde covarde É inútil fugir de mim Não deixarei você Que é que está procurando nos lábios dela O esquecimento Mas eu eu não esquecerei você E é a mim que você tem de convencer a mim Venha venha Espero por você Veja Estelle ele já desaperta o seu abraço É obediente como um cachorro Você não há de têla G Não ficará escuro nunca I Nunca G Você me verá sempre I Sempre G Deixa Estelle e faz alguns passos em cena Aproximase do bronze O bronze Apalpao Pois bem é agora O bronze aí está eu o contemplo e compreendo que estou no inferno Digo a vocês que tudo estava previsto Eles previram que eu haveria de parar em frente deste bronze tocandoo com minhas mãos com todos esses olhares sobre mim Todos esses olhares que me comem Voltase bruscamente Ah vocês são só duas Pensei que fossem muitas muitas mais Ri Então é isso que é o inferno Nunca imaginei Não se ENTRE QUATRO PAREDES Jean Paul Sartre 23 lembram O enxofre a fogueira a grelha Que brincadeira Nada de grelha O inferno O inferno são os outros E Meu amor Repelindoa Garcin grita G Deixeme Ela está entre nós dois Não posso amar quando ela me vê E Ah é assim Pois ela não nos verá mais Toma a faca de cortar papel precipitase sobre Inês desferindolhe vários golpes I Debatendose e rindo Que é que você está fazendo Que está fazendo Ficou louca Bem sabe que já estou morta Estelle deixa cair o cortador de papel Um tempo Inês a apanha e põese a golpear com raiva falando I Morta morta morta Nem a faca nem o veneno nem a forca Está tudo acabado compreende E estamos juntos para sempre Ri E Dando risadas Para sempre meu Deus Que engraçado Para sempre G Ri e olha para as duas Para sempre Os três caem sentados cada qual sobre um sofá Um longo silêncio Deixam de rir e se entreolham Garcin se ergue G Pois é Vamos continuar oOo