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Texto de pré-visualização

ANA PAULA MÜLLER DE ANDRADE ANAHI GUEDES DE MELLO CARMEN SUSANA TORNQUIST DIANA BROWN ELIANA DIEHL FABÍOLA ROHDEN FERNANDA MANZINI MAIKA ARNO ROEDER MARIA LUCIA DA SILVEIRA MARINA BECKER MARINA MONTEIRO MILENA ARGENTA ROGÉRIO AZIZE SÔNIA WEIDNER MALUF Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas Sônia Weidner Maluf Carmen Susana Tornquist organização mioloantroppmd 10022010 1439 1 Copyright 2010 by Sônia Weidner Maluf e Carmen Susana Tornquist Capa e projeto gráfico Marina Moros Fotografia da capa Alfred Stieglitz 1918 Georgia OKeeffe Coordenação editorial Fábio Brüggemann Conselho editorial Daniel Mayer Fábio Brüggemann Péricles Prade Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida no todo ou em parte por quaisquer meios sem a autorização expressa dos editores Todos os direitos desta edição reservados a LETRAS CONTEMPORÂNEAS OFICINA EDITORIAL LTDA wwwletrascontemporaneascombr Maluf Sônia Weider e Tornquist Carmen Susana organização Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas Florianópolis Santa Catarina Letras Contemporâneas 2010 p 468 ISBN 9788576620518 mioloantroppmd 10022010 1439 2 05 APRESENTAÇÃO 21 GÊNERO SAÚDE E AFLIÇÃO POLÍTICAS PÚBLICAS ATIVISMO E EXPERIÊNCIAS SOCIAIS Sônia Weidner Maluf 69 VELHAS HISTÓRIAS NOVAS ESPERANÇAS Carmen Susana Tornquist Ana Paula M de Andrade Marina Monteiro 133 A CONSTRUÇÃO DA PESSOA NA EXPERIÊNCIA DA DEFICIÊNCIA CORPO GÊNERO SEXUALIDADE SUBJETIVIDADE E SAÚDE MENTAL Anahi Guedes de Mello 193 ITINERÁRIOS TERAPÊUTICOS E MODELOS DE SOFRIMENTO ENTRE VOLUNTÁRIAS DA PASTORAL DA SAÚDE DO BAIRRO SACO GRANDE II FLORIANÓPOLISSC Milena Argenta 215 A OBRIGAÇÃO DE CUIDAR MULHERES IDOSAS EM UMA COMUNIDADE DE FLORIANÓPOLIS Diana Brown 273 O GÊNERO NO MOVIMENTO DA REFORMA PSIQUIÁTRICA BRASILEIRA Ana Paula Müller de Andrade 295 SERVIÇO RESIDENCIAL TERAPÊUTICO MORADA DO GÊNERO Maika Arno Roeder 331 A MINHA MELHOR AMIGA SE CHAMA FLUOXETINA CONSUMO E PERCEPÇÕES DE ANTIDEPRESSIVOS ENTRE USUÁRIOS DE UM CENTRO DE ATENÇÃO BÁSICA À SAÚDE Eliana Diehl Fernanda Manzini Marina Becker 367 NOTAS DE UM NÃOPRESCRITOR UMA ETNOGRAFIA ENTRE OS ESTANDES DA INDÚSTRIA FARMACÊUTICA NO CONGRESSO BRASILEIRO DE PSIQUIATRIA Rogério Azize 303 O QUE SE VÊ NO CÉREBRO A PEQUENA DIFERENÇA ENTRE OS SEXOS OU A GRANDE DIFERENÇA ENTRE OS GÊNEROS Fabíola Rohden 441 NERVOS E NERVOSAS NO CONTEXTO DAS AFLIÇÕES CONTEMPORÂNEAS ENTREVISTA COM MARIA LUCIA DA SILVEIRA Carmen Susana Tornquist Sônia Weidner Maluf SUMÁRIO mioloantroppmd 10022010 1439 3 4 mioloantroppmd 10022010 1440 4 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 5 Esta coletânea é resultado de uma pesquisa que vem sendo desenvolvida desde 2006 cujo foco são os cruzamentos entre gênero saúde e aflição a partir de uma abordagem do chamado campo da saúde mental nas culturas urbanas brasileiras contemporâneas A pesquisa e as reflexões aqui contidas se desenvolveram principalmente em torno de três linhas de abordagem a análise das políticas públicas do ativismo político e das experiências sociais em torno do tema E uma quarta linha complementar também contemplada por alguns artigos nesta coletânea que é a análise dos discursos e práticas no campo biomedicina Em relação às políticas públicas foi feito levantamento e mapeamento da temática de gênero e saúde mental e suas interseccionalidades como raça classe e geração nos planos nacionais de saúde mental de política de saúde para a mulher e em outros programas governamentais no Brasil no estado de Santa Catarina e no município de Florianópolis Quanto 1 Sônia Weidner Maluf Carmen Susana Tornquist APRESENTAÇÃO mioloantroppmd 10022010 1440 5 6 ao ativismo foi realizado um mapeamento dos projetos ações e pesquisas desenvolvidas pelas organizações feministas movimentos de reforma psiquiátrica e antimanicomiais e ONGs afins nacionais e no estado de Santa Catarina em torno da questão de gênero e saúde mental Em relação às experiências sociais foram realizadas pesquisas de campo em bairros de segmentos populares da grande Florianópolis junto a mulheres usuárias dos serviços públicos de saúde eou que consomem psicotrópicos e antidepressivos e seus itinerários terapêuticos além de observações e entrevistas nos postos de saúde nos serviços públicos de atendimento psicológico centros de atendimento psicossocial associações civis e grupos de ajuda mútua Esses eixos temáticos como os artigos deste livro demonstrarão estão bastante articulados entre si sendo difícil pensálos como autônomos uns em relação aos outros Essas diferentes dimensões estão presentes nos artigos publicados neste livro buscando trazer uma contribuição a partir de uma abordagem antropológica para a compreensão do contexto atual do campo da saúde mental no Brasil Dados sobre alto índice de consumo de psicofármacos no Brasil e particularmente entre mulheres no caso dos medicamentos antidepressivos e os benzodiazepínicos têm sido foco de artigos acadêmicos e de matérias de jornal e revista juntamente com outros temas ligados à medicalização da vida do corpo e da subjetividade como o número mioloantroppmd 10022010 1440 6 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 7 proporcionalmente alto de cirurgias estéticas no Brasil comparativamente a outros países Em nossa pesquisa de caráter qualitativo e etnográfico a falta de informações sistematizadas por parte da rede pública que distribui gratuitamente esse tipo de medicamento nos impossibilitou acesso a dados quantitativos que cruzassem consumo de psicofármacos e marcadores como gênero e geração No entanto a pesquisa de campo realizada em diferentes frentes regiões e bairros de Florianópolis e em algumas outras cidades de Santa Catarina nos evidenciou a relevância de um recorte de gênero para uma análise mais densa dessa extensão do campo de atuação da biomedicina e sobretudo da indústria farmacêutica particularmente a dos psicofármacos no Brasil contemporâneo Além disso pensar essas questões no contexto da reforma psiquiátrica e do movimento de desinstitucionalização da saúde mental no Brasil nos traz elementos para analisar esse processo recente que envolveu associações de profissionais do campo da biomedicina da psicologia e de saúde em geral o movimento antimanicomial associações de usuários do sistema público de atendimento à saúde mental entre outros Alguns dos artigos publicados no livro buscam fazer uma análise dessa experiência recente em termos de política pública em relação à saúde mental no Brasil Além dos capítulos diretamente ou indiretamente relacionados à pesquisa incluímos na coletânea artigos produzidos por convidadas externas que participaram de nossos 2 3 4 mioloantroppmd 10022010 1440 7 8 seminários e apresentaram reflexões bastante enriquecedoras sobre temas articulados com os da pesquisa Além dos artigos das professoras Diana Brown e Fabíola Rohden incluímos uma entrevista com Maria Lúcia da Silveira as três gentilmente se dispuseram a expor suas pesquisas e debatêlas junto ao nosso grupo de pesquisa Também os artigos de Rogério Azize e de Maika Arno Roeder são produto de seus trabalhos individuais de pesquisa de doutoramento Rogério também apresentou e debateu seu trabalho em uma de nossas reuniões A distribuição dos capítulos buscou contemplar as diferentes temáticas e abordagens na seguinte ordem uma contextualização geral as experiências sociais a desinstitucionalização da saúde mental no Brasil a cultura dos medicamentos e a produção científica da diferença e da medicalização O artigo de Sônia Weidner Maluf busca fazer um apanhado geral dos resultados da pesquisa articulando os três eixos em que esta se desenvolveu e confrontando os diferentes discursos sociais em torno de gênero saúde e aflição Contextualiza a situação atual do campo da saúde mental no Brasil sobretudo em relação à expansão do atendimento na atenção básica e na disseminação do uso de psicotrópicos entre mulheres de diferentes camadas sociais O artigo confronta os discursos das políticas públicas centrados na noção de ciclo de vida biológico das mulheres adolescência gravidez puerpério menopausa às falas e relatos de experiências sociais de mulheres de bairros populares 4 mioloantroppmd 10022010 1440 8 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 9 de Florianópolis focados nas dimensões sociais simbólicas e políticas de suas experiências cotidianas e biográficas violência dupla jornada de trabalho desemprego ativismo político Aponta para a necessidade de que as políticas públicas em saúde levem em consideração os sentidos dados pelos sujeitos a suas experiências de sofrimento e aflição percebendoos também como produtores de verdade O artigo de Carmen Susana Tornquist Ana Paula Müller de Andrade e Marina Monteiro relata e discute a pesquisa etnográfica de maior duração desenvolvida no bairro Monte Cristo em Florianópolis O objetivo foi o de buscar compreender como e se a disseminação de diagnóstico de depressão acompanhado de tratamento e medicalização se fazia presente entre os grupos sociais mais pobres e considerados vulneráveis da cidade quais os sentidos que os sujeitos davam a estas situações e como buscavam resolver ou mitigar as perturbações e aflições pelas quais passavam Contextualiza a história do bairro formado a partir de uma ocupação e conquista do lugar em que as mulheres tiveram um papel preponderante e cujos eventos são centrais em seus relatos autobiográficos Trazendo as narrativas destas sobre suas experiências de aflição e adoecimento as autoras analisam os diferentes aspectos que aparecem como contexto e eventualmente causa de suas aflições como a violência no bairro as dificuldades econômicas dupla jornada de trabalho desemprego além de questões de autoimagem e percepção de si mioloantroppmd 10022010 1440 9 10 Anahí Guedes de Mello aborda a relação entre deficiência e saúde mental a partir das narrativas de pessoas com deficiência com histórico de ativismo Parte da ideia de que a deficiência atua como um regime de subjetivação no contemporâneo e busca compreender a especificidade desse processo de subjetivação ao partir do conceito de resiliência definido como a capacidade construir atitudes positivas a partir das adversidades da vida A manifestação de uma deficiência condição esta através da qual se experimenta situações extremas de perdas ou interrupções de determinadas atividades da vida cotidiana em decorrência de restrições físicas sensoriais intelectuais e sociais evidenciaria essa possibilidade de transformação de transcendência do sujeito aos seus próprios limites corporais Para a autora a deficiência sempre inesperada é a demonstração de que a subjetividade nunca é aquele lugar ideal seguro e estável o que coloca as pessoas com deficiência como sujeitos também desejantes A autora aponta também para a produtividade de um diálogo entre os estudos antropológicos e os estudos de deficiência O artigo de Milena Argenta é baseado em uma pesquisa de campo desenvolvida junto às mulheres que participam de uma associação ligada à Pastoral da Saúde em um bairro popular de Florianópolis A autora trabalha com narrativas terapêuticas de quatro mulheres que participam deste grupo já há algum tempo Chama atenção o fato de que embora todas considerem legítimos os veredictos médicos que as mioloantroppmd 10022010 1440 10 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 11 classificaram como tendo doenças de tipo depressivo por outro lado articulam este diagnóstico com outras explicações de cunho espiritual e religioso e com um modelo socialrelacional que acentua a importância da rede de sociabilidade e da ruptura com o modelo ainda dominante de restrição das atividades femininas à esfera doméstica que aparece em outros universos da pesquisa Assim a participação na associação comunitária dedicada a uma espécie de cura popular oferecida a outrem é também um espaço terapêutico no qual estas mulheres sofredoras de depressão atuam como cuidadoras o que sugere a importância deste rede de sociabilidade de compartilhamento de experiências sociais com destaque à experiência de sofrimento Milena Observa também como em outros universos da pesquisa mais ampla a permanência do modelo dos nervos entre estas mulheres mesmo que articuladas com o discurso biomédico Diana Brown faz uma reflexão sobre envelhecimento e aflição a partir de uma pesquisa de campo feita em um grupo de terceira idade em uma praia no norte de Florianópolis tendo como foco as narrativas de mulheres cuidadoras de outras pessoa da família No grupo social pesquisado a maioria de mulheres nativas o cuidado é visto como atividade essencialmente feminina o que é reforçado pela prática de fofocas e de discursos morais sobre mulheres que se dedicam ou não a essa tarefa quando algum parente próximo necessita em geral a mãe mais idosa ou o marido A autora aborda a mioloantroppmd 10022010 1440 11 12 atividade do cuidado como geradora de uma série de aflições que são relatadas pelas mulheres pesquisadas Entre as aflições que ocorrem durante suas atividades de cuidado dos parentes idosos doentes estão ansiedade cansaço extremo dor nas pernas esgotamento preocupação estresse insônia nervos tristeza úlcera dor de barriga depressão Confrontando essas falas com o que elas relatam sobre suas idas ao médico Diana Brown conclui que a apropriação por parte dessas mulheres de um léxico médico para se referir a suas aflições não significa a adoção da tradição individualista racionalizadora de suas experiências O artigo de Ana Paula Müller de Andrade têm como objetivo abordar aspectos relacionados à questão do gênero no movimento da reforma psiquiátrica brasileira no âmbito da assistência militância e política pública A autora traz um breve panorama da Reforma Psiquiátrica descrevendo os três pontos centrais desse projeto a extinção progressiva dos leitos em hospitais psiquiátricos deslocando o hospital psiquiátrico do centro da rede de cuidados em saúde mental a construção de uma rede de serviços de atendimento psicossocial e a superação da cultura manicomial através de práticas que possibilitem outros modos de subjetivação e convivência Apresentando dados que demonstram o quanto as mulheres têm estado presentes no campo da saúde mental mesmo não sendo objeto de uma reflexão sistemática por parte dos gestores e ativistas ligados ao movimento pela desinstitucionalização da saúde mental mioloantroppmd 10022010 1440 12 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 13 O artigo de Maika Arno Roeder traz alguns dos dados trabalhados em sua tese de doutorado acerca do processo de desinstitucionalização dos internos de unidades psiquiátrica com destaque às mulheres A autora analisa um dos primeiros serviços residenciais terapêuticos do sul do Brasil relatando como a equipe composta em sua maioria por mulheres montou a proposta e como a mesma foi sendo implementada com a adesão das internas que após décadas de interação puderam sair do hospital psiquiátrico e voltar a viver em um espaço doméstico Descreve as trajetórias dessas mulheres todas muito pobres e em grande parte migrantes que viveram a maioria um longo período de internação psiquiátrica e que hoje vivem na residência terapêutica Chama atenção o fato de que as residências masculinas tidas como ponto de comparação pela autora apresentam regras distintas daquelas destinadas às mulheres o que evidencia o atendimento desigual a que estão submetidos os pacientesusuários do serviço se tomamos gênero como um operador de hierarquia e desigualdade O artigo de Eliane Diehl Marina Ravazzi e Fernanda Becker analisa o processo de dispensação de medicamentos controlados referentes às doenças de tipo depressivo feito em uma das unidades de saúde de Florianópolis O levantamento das receitas feito durante um período de dois meses permitiu perceber que não apenas os médicos especialistas em saúde mental no caso os psiquiatras têm receitado fluoxetina mas mioloantroppmd 10022010 1440 13 14 também os clínicos gerais tem assumido esta tarefa para si sugerindo que não se pode deixar de analisar a crescente ambulatorização da saúde mental no contexto mais amplo de universalização do sistema de saúde Também chama atenção a maior incidência de mulheres como destinatárias dessas receitas Além de trabalharem com os dados quantitativos e documentais as autoras não puderam deixar de perceber a importância da dimensão qualitativa e junto aos dados quantitativos analisados oportunizam o acesso aos casos de três mulheres usuárias dos medicamentos dispensados na Unidade de Saúde O contato com as usuárias permite perceber a importância da abordagem qualitativa que dá visibilidade à dimensão subjetiva O fato de muitas mulheres usarem a fluoxetina como forma de aliviar sofrimentos dos mais diversos matizes constatado a partir da análise das receitas não permite por si só acessar os significados que as aflições e os medicamentos têm para o sujeitos que as vivenciam expresso por exemplo de maneira eloquente pela fala de uma delas que considera a fluotexina sua melhor amiga O artigo de Rogerio Azize parte de seu trabalho de doutoramento em andamento sobre o tema das neurociências segue na linha de seus estudos anteriores acerca da forte presença da indústria farmacêutica na formação e na prática médica Do ponto de vista de um nãoprescritor traz uma espécie de etnografia do congresso brasileiro de Psiquiatria que foi acompanhado pelo antropólogo com o propósito de mioloantroppmd 10022010 1440 14 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 15 perceber as influências da indústria farmacêutica nos eventos de caráter cientifico que em tese capacitam e atualizam os médicos em relação às doenças e aos procedimentos de alívio e de cura Partindo de um relato extremamente bem humorado no qual o antropólogo não poupa nem a si mesmo de descreverse de forma irônica Rogério descreve a organização e o cotidiano do evento particularmente a parte destinada à sociabilidade e à publicidade dos novos medicamentos produzidos pelas grandes multinacionais não sem chamar atenção para a presença de tensões e dissonâncias entre os congressistas no que se refere à assumida influência dos patrocinadores nas prescrições e propostas dos psiquiatrasconferencistas A presença de críticas à excessiva medicamentalização da saúde mental aparece nas falas de bastidores escutadas no congresso Fabíola Rohden cujos trabalhos sobre a construção da particularidade da mulher pelo discurso biomédico e constituição das assim chamadas medicinas das mulher são referências fundamentais para quem se debruça sobre a interface entre gênero e saúde neste artigo faz uma análise comparativa dos trabalhos produzidos no âmbito das faculdades de Medicina do século XIX no Brasil com os artigos publicados em algumas revistas de divulgação científica atualmente disponíveis em bancas de revistas também no Brasil acerca de temas ligados ao cérebro humano com forte destaque às diferenças de gênero Segundo as revistas 5 mioloantroppmd 10022010 1440 15 16 analisadas a pequena diferença existente entre homens e mulheres é transformada em grandiosa diferença por estar situada no nível do cérebro e mais recentemente nos hormônios É de fato impressionante como estas revistas veiculam a partir de dados e discursos de grande legitimidade científica ideias em sua estrutura muito similares àquelas demonstradas e professadas pelos acadêmicos de medicina do final do século XIX apesar do suposto longo tempo que nos separa deles e mais do que isto apesar das talvez não tão profundas como gostaríamos rupturas que os movimentos feministas e movimentos teóricos teriam provocado nas concepções contemporâneas daqueles que fazem ciência num contexto mais igualitário como o atual De fato o que as revistas analisadas demonstram aponta para a permanência das representações diferencialistas e essencialistas de gênero e para como as neurociências e teoriasideias que em torno delas orbitam cumprem um papel central na reprodução dessas representações sendo hoje o cérebro o novo foco de substancialização da diferença Finalmente publicamos uma entrevista com Maria Lucia da Silveira autora do trabalho pioneiro sobre mulheres e doenças dos nervos em uma comunidade do interior de Florianópolis que foi publicado como livro em 2000 Nessa entrevista feita em julho de 2009 Maria Lucia faz uma espécie de revisitação da etnografia que fez nos anos 90 Ela relata que a partir de sua insatisfação profissional enquanto médica 5 mioloantroppmd 10022010 1440 16 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 17 com os limites da relação médicopaciente seu trabalho naquele momento chamava a atenção com a veemência que lhe é particular para a importância de uma perspectiva antropológica na formação dos profissionais de saúde que levasse em consideração as falas das pacientes que buscam os postos de saúde hospitais e mesmo farmácias em busca de remédios e de escuta para suas aflições Naquele momento anterior ao boom das doenças depressivas que hoje atingiriam diferentes camadas sociais a médicaantropóloga chamava atenção para os detalhes das narrativas de sofrimentos dos nervos das mulheres pesquisadas apontando para as fortes conexões entre os ataques de nervos e os limites dos papéis femininos atribuídos a elas notadamente o confinamento ao espaço doméstico e familiar incluindo a conjugalidade aspecto que não deixa de aparecer nas pesquisas expostas nesta coletânea No seu trabalho de grande pioneirismo ainda hoje ao incorporar a perspectiva de gênero em diálogo com outros no campo das perturbações físicomorais à época notadamente os de Luiz Fernando Dias Duarte a autora chamava atenção para o uso que as mulheres faziam da linguagem dos nervos para chamar atenção sobre seus padecimentos cotidianos em grande parte relacionados ao casamento e às atribuições tidas como femininas de modo que os nervos chancelam uma alteração no cotidiano e uma forma de reconhecimento de si no contexto familiar Maria Lucia chama atenção na entrevista para o costume que encontramos em campo ainda hoje de as 5 mioloantroppmd 10022010 1440 17 18 mulheres fazerem estoques domésticos de medicamentos receita azul ou tarja pretacontrolados que não são disponibilizados de maneira fácil nos serviços de saúde o que em sua opinião seria uma forma de evitar uma possível falta desta companhia segura que o mesmo parece encarnar mas também uma espécie de pretexto para aprofundar redes de troca de informações e compartilhamento de experiências a partir do sofrimento Esperamos com os artigos publicados neste livro contribuir para uma reflexão crítica sobre gênero e saúde no campo das políticas de saúde mental no Brasil e sobretudo para a necessidade de se repensar a forma como os saberes e tecnologias do campo da biomedicina tem servido para construir reproduzir e reforçar as desigualdades e hierarquias de gênero NOTAS Cf Maluf Sônia Weidner Gênero subjetividade e saúde mental políticas públicas ativismo e experiências sociais em torno de gênero e saúde mental Projeto de Pesquisa CNPq Fapesc A pesquisa foi cocoordenada por Carmen Susana Tornquist e contou com uma ampla equipe que envolveu professoras da UFSC e da UDESC doutorandos mestrandos alunos de graduação e bolsistas de Iniciação Científica além de participantes externos voluntários Agradecemos os financiamentos do CNPq Editais Universal e Ciências Humanas e da Fapesc O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da UFSC 1 mioloantroppmd 10022010 1440 18 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 19 n 35506 Sobre questões de ética na pesquisa antropológica em saúde e seus desdobramentos específicos nesta pesquisa ver Langdon Maluf e Tornquist 2008 Falar genericamente de Brasil contemporâneo faz sentido quando levamos em conta que essa disseminação do uso de medicamentos psicotrópicos atinge não apenas populações urbanas mas também indígenas e rurais Neste último caso entram pesquisas sobre o tema desenvolvidas sob nossa orientação Que apesar de estarem formalmente vinculados à equipe de pesquisa não participaram cotidiana e sistematicamente de suas atividades SILVEIRA 2000 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS LANGDON E Jean MALUF Sônia W TORNQUIST Carmen Susana Ética e política na pesquisa os métodos qualitativos e seus resultados In Guerreiro Iara et all Ética nas pesquisas em ciências humanas e sociais na saúde São Paulo Hucitec 2008 p 128147 SILVEIRA Maria Lúcia O nervo cala o nervo fala a linguagem da doença Rio de Janeiro Fiocruz 2000 2 3 4 5 mioloantroppmd 10022010 1440 19 mioloantroppmd 20 10022010 1440 O deslocamento da experiência de sofrimento e aflição para o campo da saúde nas culturas urbanas contemporâneas no Brasil tem sido objeto de estudos e reflexões no campo das ciências sociais dos estudos em saúde coletiva e da antropologia em particular1 Questões como a medicalização e medicamentalização da subjetividade patologização do sofrimento terapeutização das escolhas individuais são tratadas pela literatura antropológica mais recente como sinais de uma expansão dos domínios de atuação da biomedicina e de extensão do campo do patológico para dentro do que tradicionalmente estaria nos domínios do normal2 O alongamento da lista de transtornos de ordem mental nos DSMs III e mais recentemente o IV 3 a multiplicação de escolhas medicamentosas que prometem o alívio do sofrimento psíquico e o crescimento da indústria de medicamentos ocorrem num contexto de expansão do poder da biomedicina em seu sentido amplo No Brasil todas essas questões combinamse com GÊNERO SAÚDE E AFLIÇÃO POLÍTICAS PÚBLICAS ATIVISMO E EXPERIÊNCIAS SOCIAIS Sônia Weidner Maluf mioloantroppmd 10022010 1440 21 22 algumas particularidades entre elas o movimento pela desinstitucionalização da saúde mental através da Reforma Psiquiátrica brasileira 4 e de uma política de acesso ao atendimento público de saúde e na complexa dinâmica em que universalização do acesso a saúde é vista como sinônimo de distribuição massiva de medicamentos pela rede pública Se de um lado os hospitais psiquiátricos estão fechando leitos ou deveriam estar como uma das metas da reforma psiquiátrica por outro a psiquiatria está cada vez mais presente nos ambulatórios e os medicamentos psicotrópicos sendo cada vez mais utilizados para além dos tratamentos psiquiátricos convencionais Essa disseminação do uso de psicofármacos e psicotrópicos de todo tipo com ênfase nos últimos anos nos antidepressivos inclusive entre mulheres de classes populares rurais e mulheres indígenas foi um dos fatores que inspirou a realização da pesquisa cujos resultados estão neste livro 5 Observamos junto com outros estudos sobre o tema que a constituição e o contexto atual do campo da chamada saúde mental 6 no Brasil têm evidenciado três aspectos complementares Em primeiro lugar a mudança nos últimos anos de um modelo manicomial e exclusivamente psiquiátrico de atendimento para um modelo ambulatorial disseminado e onde não só a psiquiatria passa a ser exercida nos espaços de atendimento público7 como as questões ligadas ao cuidado da saúde mental e as terapias medicamentosas nesse campo passam a ser largamente exercidas por outras especialidades mioloantroppmd 10022010 1440 22 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 23 da medicina Alguns autores identificam nessa mudança do modelo manicomial para o ambulatorial um processo de psiquiatrização da medicina8 Em segundo lugar e este também não é um fenômeno específico do Brasil ocorre a partir do final dos anos 70 um processo de remedicalização ou biologização da psiquiatria9 consolidado sobretudo com a publicação do DSM III Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders editado pela Associação Americana de Psiquiatria10 trazendo uma compreensão das doenças mentais como entidades mórbidas distintas e universais Aguiar 2004 22 e uma substituição da relação terapêutica médicopaciente pelo controle farmacológico dos sintomas idem11 Em terceiro lugar e aqui sim falamos especificamente do Brasil e mais especificamente ainda ao estado de Santa Catarina constatamos a alta disseminação do uso de psicofármacos e psicotrópicos de todo tipo com ênfase nos últimos anos nos antidepressivos não apenas pelas suas chamadas consumidoras tradicionais vinculadas às classes médias e altas mas agora cada vez mais entre mulheres de classes populares rurais e mulheres indígenas12 É esse terceiro fenômeno do alto consumo de psicofármacos entre mulheres de camadas populares somado ao uso de um vocabulário e de um quadro semântico para falar de sua perturbação depressão pânico etc que até alguns anos atrás estaria identificado de um lado a uma cultura psicológica ou psicanalítica específica das classes médias e de outro a uma racionalização médica da experiência subjetiva ou seja a uma mioloantroppmd 10022010 1440 23 24 concepção predominantemente individualista de corpo e pessoa que interessou particularmente investigar na pesquisa que deu origem a este livro Uma de nossas questões foi sobre o quanto esse fenômeno relativamente recente mas disseminado de consumo de medicamentos psicotrópicos e de uso de uma linguagem ou dialeto médico também entre mulheres de classes populares caracterizaria uma mudança significativa na percepção dos sofrimentos entre estes setores vistos como tradicionalmente menos afeitos aos discursos psicologizantes e biomédicos13 em relação ao predomínio já discutido em outros trabalhos do chamado paradigma dos nervos Duarte 1986 Silveira 2004 entre outros em que o físico e o moralpsicológico não são vistos como dimensões separadas da experiência Esta questão apesar de sua importância na contemporaneidade ainda tem sido pouco abordada pelos estudos antropológicos tanto na área de gênero quanto na de saúde OS ESTUDOS ANTROPOLÓGICOS DE SAÚDE GÊNERO E DO NERVOSO Os estudos de antropologia da saúde cresceram enormemente nos últimos anos estabelecendose como um campo em pleno processo de consolidação no interior da antropologia brasileira incluindo seus desdobramentos específicos como saúde indígena gênero e saúde religião e processos de cura saúde mental entre outros No caso da temática genérica de saúde mental e aflição incluindo a mioloantroppmd 10022010 1440 24 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 25 questão da doença dos nervos o gênero tem aparecido em sua relevância etnográfica tanto quantitativa ou seja pelo alto índice de mulheres sofredoras desse tipo de perturbação quanto qualitativa pela forma como as representações e ideologias da diferença de gênero conformam as experiências sociais da doença e do sofrimento psicológico físicomoral ou do nervoso14 No entanto poucas são as reflexões no caso brasileiro que dialogam com uma perspectiva de gênero Apesar da relevância etnográfica e fenomenológica do gênero na já grande produção antropológica brasileira sobre doença e perturbação saúde mental cultura psicanalítica e sobretudo doença dos nervos15 as abordagens de gênero são escassas16 No campo dos estudos de gênero as abordagens sobre saúde têm se restringido quase que em sua totalidade às questões de saúde sexual e reprodutiva e às questões cidadania e de acesso ao atendimento e ao cumprimento das políticas públicas de saúde Outros estudos em uma abordagem genealógica foucaultiana situam a medicina e o campo biomédico como discursos e saberes que instituem processos de subjetivação e de diferenciação de gênero Laqueur 2001 e Rohden 2001 e artigo nesta coletânea17 Nesta área têm sido recorrentes as controvérsias entre abordagens que consideram os processos de medicalização da reprodução como propiciadores de uma maior autonomia das mulheres sobre seus corpos e sua sexualidade e num outro extremo estudiosas que consideram este processo um fato de maior dependência mioloantroppmd 10022010 1440 25 26 das mulheres da tecnologia da indústria farmacêutica e portanto de perda de autonomia das mulheres dado os contextos políticos e econômicos mais amplos nos quais estão inseridas Os casos da pílula anticoncepcional das novas tecnologias reprodutivas da assistência ao parto e da cirurgias plásticas são exemplos emblemáticos destas controvérsias e reveladores das complexidades existentes entre os processo de medicalização do corpo e da vida e mais especificamente do corpo e da vida das mulheres18 Os estudos antropológicos sobre perturbação e nervos têm em geral estabelecido uma dicotomia entre dois modos ou modelos distintos de conceber a Pessoa e a subjetividade entre classes médias e classes populares no Brasil19 A configuração dos nervos é o paradigma central de um modelo descrito como predominante entre as camadas populares centrada em uma concepção holística e relacional da Pessoa e oposta a uma configuração psicológica focada na noção de indivíduo interiorizado e autonomizado 20 Na chamada configuração dos nervos o sofrimento e a aflição são descritos através da combinação de sintomas físicos dor nas pernas taquicardia cansaço etc com sintomas de ordem emocional vontade de chorar explosão de raiva vontade de quebrar a casa falta de vontade apontando para o modelo que Luiz Fernando Duarte denominou físicomoral diferente tanto da racionalização biomédica quanto da psicologização que separam a experiência afetiva e emocional da experiência física orgânica ou corporal mioloantroppmd 10022010 1440 26 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 27 Estudos antropológicos referentes aos anos 70 e 80 entre as classes médias urbanas brasileiras apontavam para a emergência de um modelo de subjetividade bastante influenciado pelos discursos psicológicos eou psicanalítico falar de si dar visibilidade ao fato de frequentar um analista utilizar linguagem especializada do jargão psicológico ou psicanalítico21 Esse último seria um modelo mais psicologizado ou individualista específico como ideal de certos segmentos das classes médias urbanas brasileiras22 Nesse caso a psicanálise e as psicoterapias de modo geral são tomadas como formas culturais particulares conformadas dentro de certa configuração de valores do mundo moderno23 Estes seriam ao mesmo tempo valores predominantes englobantes no discurso e nas instituições modernas mas específicos ou próprios a certos segmentos sociais Nos últimos anos no entanto esse chamado paradigma psi de certos setores das classes médias urbanas também nestas deslocouse para ou deu lugar a um paradigma biomédico e fisicalista num processo combinado de patologização da experiência e medicalização do cotidiano Ou seja entre as classes médias mais individualizadas o modelo biomédica viria substituindo o modelo chamado psicológico constatado por estudos antropológicos nos anos 70 e 80 A pergunta que a disseminação do uso dos psicofármacos e do dialeto médicopsiquiátrico entre mulheres de classes populares nos coloca é o quanto esse fenômeno significa um mioloantroppmd 10022010 1440 27 28 deslocamento da linguagem e do paradigma dos nervos para um outro paradigma não exatamente o da configuração psicológica na medida em que não é mais possível falar da psiquiatria hoje remedicalizada e rebiologizada como pertencente ao campo psi mas o de uma racionalização médica da experiência subjetiva e do sofrimento O quanto o idioma social da doença do sofrimento e da aflição teria se deslocado com essa expansão e disseminação não apenas da linguagem médica mas de seus modelos de adoecimento e cura Nesse caso o medicamento passaria a ser uma espécie de língua franca nos discursos sobre a subjetividade o medicamento colocaria ainda o sujeito num patamar de experiência compartilhada com outros sujeitos do mesmo e de outro segmento social Ao mencionar o confronto desses modelos resumidos na matriz dos nervos e na matriz psicologizante ou mesmo fisicalista não estou nem aderindo a uma dicotomização às vezes redutora entre cultura das classes médias e das classes populares por um lado nem considerando que esses modelos não sejam operacionais ou heurísticos24 Uma de nossas hipóteses iniciais foi justamente quanto à existência de um deslocamento ou mudança entre as camadas populares urbanas brasileiras em anos recentes da configuração dos nervos fundamentada em uma concepção que ultrapassa as dicotomias mentalorgânico ou físicopsicológico para um modelo que incorpora parcialmente uma concepção psicológica do sujeito e principalmente uma concepção medicalizada e racionalizada da subjetividade Ou mesmo para uma mioloantroppmd 10022010 1440 28 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 29 reconfiguração e recombinação desses dois modelos para além da perspectiva dicotômica como os estudos de campo realizados no âmbito da pesquisa ver demais artigos desta coletânea parecem demonstrar Um exemplo que reapareceu nas diversas pesquisas de campo empreendidas pela equipe de pesquisa é a fala de mulheres que recorrentemente se referiam a sua perturbação e aos motivos de estarem utilizando anti depressivos através de categorias como depressão de modo geral e mais especificamente síndrome do pânico ou pânico e eventualmente fibromialgia doença descrita como um conjunto de dores corporais que atingiria sobretudo mulheres diagnosticada clinicamente e tratada com anti depressivo Mas até que ponto a utilização de uma categoria médica significa a adoção dos mesmos sentidos dados a esta pelo campo biomédico e científico Essas questões sobre as especificidades das culturas populares em relação às concepções de saúde corpo e pessoa à circularidade dos níveis culturais e em relação ao significado do medicamento serão retomadas mais adiante Antes vou situar o contexto mais amplo das políticas de saúde saúde mental e saúde da mulher no Brasil e como a questão de gênero e saúde mental tem sido articulada na esfera governamental do Estado e das políticas públicas como aparecem no discurso dos movimentos sociais e como se configuram nas falas e narrativas sobre as experiências sociais de mulheres em relação a suas aflições adoecimento e formas de alívio tratamento ou cura Um confronto entre esses discursos e práticas sociais pode nos dar uma idéia das diferentes mioloantroppmd 10022010 1440 29 30 configurações em torno de gênero saúde e aflição que emergem no contexto mais amplo da saúde mental no Brasil DIFERENÇA E MEDICALIZAÇÃO COMO POLÍTICA PÚBLICA Como uma tendência contemporânea para uma racionalização biomédica da vida subjetiva se desdobra e se reflete no plano de políticas e programas governamentais nas áreas de saúde mental e gênero25 O contexto das políticas de saúde mental no Brasil hoje é o da Reforma Psiquiátrica levada a cabo a partir de um amplo programa de desinstitucionalização dos pacientes que busca romper com o modelo manicomial26 Esses programas governamentais propõem também a criação de uma ampla e disseminada rede pública de atendimento ambulatorial e clínico tanto nas unidades básicas de atenção à saúde já existentes quanto na criação de outros espaços como os CAPS Centros de Atendimento Psicossocial espaços mais especializados destinados aos chamados casos considerados pelos profissionais como de maior complexidade ou a alguns transtornos específicos como adição a álcool ou drogas os CAPSad É também necessário reconhecer que política pública não é apenas o documento público institucional como os planos nacional estaduais e municipais de saúde mental ou de saúde da mulher e os diversos programas terapêuticos mas também tudo aquilo que os profissionais e agentes de saúde que atuam no atendimento básico à saúde fazem no cotidiano de seu trabalho sobretudo no que diz respeito à relação com os mioloantroppmd 10022010 1440 30 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 31 pacientes e usuários27 desses serviços Nesse sentido para analisar as políticas públicas foi feita durante a pesquisa uma leitura atenta dos diversos planos e políticas de saúde mental em nível nacional estadual e municipal assim como de alguns programas terapêuticos de unidades básicas de saúde para chegar finalmente às práticas e discursos dos profissionais e agentes sociais que lidam cotidianamente e diretamente com as pessoas denominadas usuárias do sistema e dos serviços públicos de saúde28 No que diz respeito às políticas públicas e governamentais em relação a saúde mental as mulheres são mencionadas a partir do que seriam suas situações de vulnerabilidade ligadas à noção de ciclo de vida conforme veremos adiante As Diretrizes Nacionais de Saúde Mental de 1977 definiam entre outras coisas a necessidade de ações de prevenção primária visando os grupos de maior risco gestantes mães adolescentes e geriátricos no intuito de reduzir nesta população o surgimento de alterações e a promoção sic de níveis de saúde mental satisfatórios apud Cardoso 199936 As mesmas Diretrizes previam a formação de grupos de mães e gestantes Cardoso 199937 definindo os seguintes objetivos No caso das gestantes a finalidade é conscientizar a futura mãe do processo vivenciado desfazendo fantasias reduzindo ansiedade e orientandoa nos cuidados necessários para o desenvolvimento satisfatório do concepto promover o adequado relacionamento mãefilho evitando a conhecida síndrome de privação mioloantroppmd 10022010 1440 31 32 e ensejando o bom relacionamento físico mental e emocional da criança Brasil Ministério da Saúde Diretrizes Programáticas de Saúde Mental In Conferência Nacional de Saúde6 Brasília 1977 apud Cardoso 1999 p 37 No caso específico das políticas de saúde voltadas para as mulheres a quase totalidade dessas políticas expressa por exemplo no Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher PAISM de 1984 é ocupada com as questões de saúde reprodutiva e prevenção Como veremos adiante esse quadro não mudou substancialmente e foi apenas muito recentemente após a II Conferência Nacional de Políticas para Mulheres em 2007 que a necessidade de uma política de saúde mental também na perspectiva de gênero começou a ser discutida O II Plano Nacional de Políticas para Mulheres aprovado a partir da II Conferência prevê entre as prioridades em relação ao item Saúde das mulheres direitos sexuais e direitos reprodutivos Promover a implantação de um modelo de atenção à saúde mental das mulheres na perspectiva de gênero considerando as especificidades étnicoraciais Brasil Secretaria Especial de Políticas para Mulheres II Plano Nacional de Políticas para Mulheres Brasília 2007 p15 E entre as metas para o período Implantar cinco experiênciaspiloto uma por região de um modelo de atenção à saúde mental das mulheres na perspectiva de gênero Idem p16 mioloantroppmd 10022010 1440 32 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 33 No mesmo item sobre saúde do documento reforçase a ênfase aos direitos reprodutivos e à noção de ciclo vital e de ciclo de vida das mulheres definido pelas diversas fases de seu ciclo biológico como mulheres no climatério jovens e adolescentes A depressão pósparto tem aparecido de forma mais detalhada nas preocupações do Ministério da Saúde É citada em diversos documentos do Ministério O Manual Técnico sobre prénatal e puerpério de 2006 dedica um item inteiro aos Aspectos emocionais da gravidez e do puerpério introduzido da seguinte maneira as condutas baseadas somente nos aspectos físicos não são suficientes Elas necessitam ser potencializadas especialmente pela compreensão dos processos psicológicos que permeiam o período grávido puerperal notadamente no caso de gestantes adolescentes que pelas especificidades psicossociais da etapa evolutiva vivenciam sobrecarga emocional trazida pela gravidez Brasil Ministério da Saúde Manual Técnico Prénatal e puerpério Atenção qualificada e humanizada Brasília 2006 p35 Definindo uma série de procedimentos na relação do médico ou profissional com a paciente o documento também descreve o que seriam reações ou sintomas típicos para cada etapa da gravidez culminando com os sintomas do puerpério O documento também cita a redução dos casos de depressão pósparto como um dos efeitos de uma política de mioloantroppmd 10022010 1440 33 34 acolhimento da mulher nas unidades de saúde e principalmente na aceitação de um acompanhante de sua escolha idem p 15 A necessidade de uma política de saúde mental numa perspectiva de gênero foi também objeto de uma reunião no Ministério da Saúde em que foram levantados diversos aspectos de uma política específica voltada para as mulheres29 Na dimensão local da aplicação das políticas públicas as especificidades e cada contexto evidenciam um quadro bastante heterogêneo No caso dos programas terapêuticos de algumas unidades básicas de saúde e principalmente nas práticas dos profissionais que ali atuam percebemos em primeiro lugar em muitos casos um desconhecimento dos planos de saúde mental tanto nacionais quanto estaduais assim como dos planos de saúde das mulheres 30 Em segundo lugar há uma heterogeneidade muito grande nas práticas de atendimento que vão da distribuição de medicamentos psicotrópicos à implantação de outras formas de tratamento ou apoio como grupos terapêuticos grupos de idosos grupos de mulheres em tratamento de depressão e outros transtornos passando por aulas de alongamento e ginástica acupuntura homeopatia fitoterapia e arteterapia entre outros Mas mesmo constatando que as práticas não são homogêneas não se pode negar o peso que a distribuição generalizada de medicamentos como benzodiazepínicos e antidepressivos tem hoje no atendimento público não apenas nos CAPS especializados em saúde mental mioloantroppmd 10022010 1440 34 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 35 ou psicossocial mas também e sobretudo nas unidades básicas de saúde Temos muitos exemplos da pesquisa de campo realizada relatados tanto por pacientes quanto por profissionais que atuam nessas unidades além dos números relativos à distribuição e consumo desses medicamentos em que salta aos olhos o fato de que a maioria esmagadora de consumidores desses medicamentos na rede pública são mulheres31 Esses dados nos fazem questionar apesar de não haver uma política explícita e consolidada de gênero de saúde mental nos programas oficiais percebese que na aplicação da política de saúde no cotidiano das unidades de saúde e dos Centros de Atendimento Psicossocial uma política da diferença e a evidência de um discurso da diferença de gênero se faz presente na prática há uma política sendo implantada ou reproduzida uma política que implica na medicalização e medicamentalização de mulheres usuárias do serviço público A pesquisa feita nos documentos governamentais e junto aos agentes e profissionais de atenção básica à saúde nos apontou para alguns pontos que consideramos importantes na discussão de uma política sobre gênero e saúde mental sobretudo no que diz respeito ao atendimento básico e público entre eles 1 a necessidade de se fazer um balanço crítico de algumas práticas institucionais que acabam reforçando a desigualdade de gênero 2 a constatação de uma realidade de hipermedicalização e hipermedicamentalização das mulheres com o uso de psicofármacos 3 a confusão entre mioloantroppmd 10022010 1440 35 36 democratização e universalização do acesso à saúde e a distribuição massificada de medicamentos o que implicaria em repensar o atendimento básico em saúde mental em relação à necessidade de uma política terapêutica e psicoterapêutica menos medicamentosa ou seja 4 necessidade de uma política de saúde mental que ofereça outros tratamentos além da medicamentalização como acompanhamento terapêutico sistemático entre outros 5 a necessidade de se repensar os modelos de cuidado saúde doença sofrimento e cura também nas políticas oficiais de saúde da mulher e de saúde mental 6 a ruptura com um modelo de saúde da mulher assentado na visão biologicista do ciclo de vida e das fases da vida reprodutiva das mulheres como determinantes de maior ou menos vulnerabilidade destas a problemas de saúde mental Além destes pontos especificamente voltados à questão de gênero e saúde mental é preciso uma reflexão sobre o processo de desinstitucionalização dos pacientes internos trazido pela Reforma Psiquiátrica e o que parece ser o seu contraponto no plano da política pública a crescente medicamentalização e patologização dos pacientes na atenção básica Essas questões se evidenciam não apenas pela leitura das políticas governamentais ou pelas falas dos profissionais de saúde É sobretudo através do confronto entre os discursos das políticas de governo em torno de saúde mental e de saúde da mulher as plataformas políticas dos movimentos sociais e as experiências sociais de mulheres de camadas populares em mioloantroppmd 10022010 1440 36 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 37 seus cotidianos que somos levadas a questionar sobre o que seria então essa perspectiva de gênero vista como necessária nas políticas de saúde mental O que constatamos é que nos diferentes discursos de quem elabora as políticas públicas da indústria farmacêutica e dos próprios movimentos como veremos a seguir a perspectiva de gênero se reduz à definição do que seriam especificidades femininas quanto à aflição e ao sofrimento especificidades em geral ligadas à noção de ciclo de vida biológico que remeteria a uma maior vulnerabilidade das mulheres em situações como adolescência gravidez pósparto e menopausa prevalecendo um modelo físicalista e de racionalização médica da diferença de gênero Um argumento a ser desenvolvido é de que uma perspectiva crítica de gênero nas políticas de saúde da mulher incluindo saúde mental deveria ter o sentido exatamente inverso ao constatado deveria ter como objetivo rever as práticas que reforçam concepções reificadoras e reprodutoras da diferença sexual Isso implicaria não apenas em mudanças no texto dos planos governamentais mas também na formação dos profissionais de saúde e no questionamento dos próprios paradigmas do discurso e dos saberes biomédicos historicamente comprometidos com a reprodução da diferença e da desigualdade GÊNERO E SAÚDE NOS MOVIMENTOS SOCIAIS Particularmente em relação ao tema gênero e saúde grande parte das pesquisas acadêmicas fontes de mioloantroppmd 10022010 1440 37 38 financiamento políticas institucionais e governamentais discursos e práticas militantes têm se dado em torno especificamente da questão da saúde sexual e reprodutiva com ênfase em prevenção de DSTsAids contracepção aborto e saúde materna Essa tem sido a agenda comum não explícita das diferentes esferas governamentais e militantes em grande parte determinada pelas políticas de financiamento e pelos órgãos de fomento à pesquisa mas também pelas ações estratégias e políticas de intervenção social vinculadas aos movimentos sociais e às ONGs No caso específico dos movimentos e organizações feministas incluindo as ONGs que trabalham com a temática do gênero em um levantamento preliminar realizado junto a esses grupos e ONGs os projetos desenvolvidos por estes e nos encontros feministas como o 10º Encontro Feminista LatinoAmericano e do Caribe constatamos que a ênfase na saúde reprodutiva tem relegado a um segundo plano a própria questão da sexualidade32 Mesmo quando os diferentes discursos apontam para a saúde como um tema central e estratégico para o movimento feminista no que concerne particularmente ao campo da saúde mental o ativismo político feminista e as ações da ONGs se resumem a alguns trabalhos na área de assistência psicológica e a alguns projetos incipientes em torno dos vínculos entre violência e saúde mental33 O desenvolvimento da pesquisa junto aos movimentos redes e grupos pela igualdade de gênero apenas reforçou e nos deu mioloantroppmd 10022010 1440 38 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 39 evidências mais concretas dessa constatação Mas além disso constatamos que grande parte da política dos movimentos sociais em relação a saúde e saúde mental estão voltadas para uma demanda por mais acesso ao atendimento e aos medicamentos dentro de uma agenda política de universalização dos direitos e de equidade no acesso aos recursos de última geração oferecidos pela biomedicina mais notadamente aos medicamentos Ou seja predomina nos grupos ativistas e movimentos sociais em geral uma visão que confunde universalização democratização e acesso à saúde com distribuição de medicamentos A indústria farmacêutica é denunciada pelo monopólio das patentes dos medicamentos pelos altos preços mas muito pouco ou nada questionada pelas concepções de adoecimento cura e saúde ou pela própria lógica que predomina na produção e pesquisa de novos medicamentos o que implicaria num questionamento das noções mesmo de desenvolvimento e progresso da ciência34 Por outro lado assim como nas políticas governamentais grande parte dos discursos ligados ao ativismo e aos movimentos sociais incluindo os feministas acaba também por reduzir a discussão sobre gênero e saúde mental ao ciclo biológico das mulheres o que remete a uma noção de pessoa e de sujeito no que diz respeito a estas que mesmo em suas experiências de aflição as nos reduz a um corpo O questionamento dessa perspectiva não se dá apenas pela referência a uma abordagem teórica proporcionada pelos mioloantroppmd 10022010 1440 39 40 estudos de gênero que combate a redução da diferença ao biológico e constrói a crítica dos saberes médicos e científicos como discursos e saberes que reproduzem a diferença e a desigualdade de gênero35 mas no caso desta pesquisa é provocado pelo confronto dos discursos oficiais com o das próprias mulheres que são objeto dessas políticas como veremos a seguir AS EXPERIÊNCIAS SOCIAIS É justamente a partir dos diferentes discursos e experiências sociais que esses modelos fisicalistas e racionalizadores da experiência da aflição entre mulheres são confrontados de forma mais evidente na pesquisa Esse ao lado das políticas públicas e do ativismo constituiuse na terceira vertente de nossa abordagem Por experiências sociais estamos designando a dimensão da vivência e produção de saberes e discursos por parte daquelas que são justamente o público alvo das políticas públicas e da atuação dos profissionais e agentes de saúde as mulheres das classes populares Essa perspectiva não implica de forma alguma na reificação da dicotomia entre fato e valor representada nos estudos antropológicos de saúde por uma abordagem fenomenológica da experiência de sujeitos individuais de um lado e na abordagem das representações sociais da doença do corpo e da pessoa Nosso entendimento teórico e reflexivo sobre questões como doença aflição e sofrimento e das estratégias de ação e significação dadas pelos diferentes atores mioloantroppmd 10022010 1440 40 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 41 sociais tem como ponto de partida a ideia de que experiência e seus sentidos sociais são duas dimensões complementares em uma abordagem antropológica da saúde As falas relatos e narrativas das mulheres sobre sua experiência de aflição sofrimento e adoecimento e sobre seus itinerários e estratégias de cura alívio etc em geral articulamse com outras dimensões da experiência e da existência e enunciam mais do que interpretações do vivido no campo do adoecimento e da cura Além de veicularem visões de mundo valores e concepções de corpo pessoa família etc também a situação da pesquisa e a oportunidade de contar narrar suas experiências são apropriadas por elas como um momento de autorreflexão e de autoconstrução36 Na abordagem das experiências sociais a pesquisa desdobrouse em diversos trabalhos de campo específicos feitos junto a comunidades e bairros populares de Florianópolis entre eles os bairros Rio Vermelho Rio Tavares e Monte Cristo este último sendo aquele em que a pesquisa durou mais tempo e implicou em uma imersão mais densa na comunidade37 sendo também o bairro com característica mais marcada de bairro popular urbano que congrega populações de classes trabalhadoras em emprego formal ou informal Percebemos mais fortemente no bairro Monte Cristo mas também nos demais algumas mudanças no perfil sóciocultural e nos valores predominantes em estudos anteriores38 Quando empreendi em meados dos anos 80 uma pesquisa sobre mioloantroppmd 10022010 1440 41 42 narrativas de bruxaria gênero e poder em localidades em torno da Lagoa da Conceição em Florianópolis39 predominava nessas localidades uma dinâmica de bairro rural ou comunidade em que as redes de apoio parentela e vizinhança predominavam Mesmo com muitas mulheres trabalhando na prestação de serviços nas casas mais abastadas da comunidade ou no comércio na cidade grande parte de suas atividades e preocupações girava em torno do espaço doméstico e familiar e da vida na comunidade Na pesquisa sobre mulheres e doenças dos nervos no bairro Campeche de Maria Lúcia Silveira realizada no final dos anos 90 as queixas das mulheres estavam ligadas principalmente a questões que envolviam família e espaço doméstico ou seja ao espaço da casa ao trabalho doméstico à relação com marido e filhos Esse quadro mesmo nas comunidades tradicionais de Florianópolis tem mudado nos últimos anos os antigos nativos descendentes de colonos açorianos ou de exescravos passando a constituir uma população mais próxima às classes populares urbanas de cidades de médio e grande porte40 Na pesquisa de campo desenvolvida no bairro Monte Cristo bairro que tem como origem um movimento de ocupação e conquista constatase que as queixas mais fortes por parte das mulheres não se referem exclusivamente a conflitos na esfera doméstica e familiar mas estão ligadas ao contexto de violência no bairro a relatos sobre tiroteios no meio da madrugada acertos de conta filhos na prisão etc e a mioloantroppmd 10022010 1440 42 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 43 questões relativas a trabalho e dinheiro sugerindo um outro perfil para essas mulheres que se autodefinem agora menos como donas de casa e mais como mulheres trabalhadoras urbanas muitas delas provedoras do lar e mantenedoras dos laços familiares Além disso conforme apontam Tornquist Andrade e Monteiro no artigo nesta coletânea para muitas dessas mulheres a luta de ocupação e conquista do espaço para morar no bairro é uma referência constante nas falas das moradoras que ressignificam sua experiência atual a partir do fato passado da luta política e pela sobrevivência Nossas pesquisas junto a essas mulheres moradoras de bairro periféricos de Florianópolis nos têm ao contrário do discurso hegemônico tanto nas políticas de governo quanto nas plataformas de parte dos movimentos sociais apontado para outras questões que pontuam o discurso e as narrativas delas sobre suas aflições em geral ligados a experiências sociais vistas como perturbadoras articuladas em geral a suas vivências cotidianas e ao seu contexto social cultural e econômico e não a uma percepção de fases em seu ciclo de vida tal como colocam as políticas públicas em saúde mental e saúde da mulher Contrapondo um universo discursivo e simbólico a outro o das políticas públicas e o das experiências sociais evidenciamse dois modelos de compreensão da aflição um modelo fisicalista ou fisiológico que enfatiza uma concepção biológica da diferença de gênero e dos processos de sofrimento e adoecimento e uma concepção ou modelo que poderia se mioloantroppmd 10022010 1440 43 44 chamar de sociológico de sua perturbação centrado nas suas diferentes experiências cotidianas e nas próprias histórias e narrativas de vida dessas mulheres Isso expande a discussão antropológica feita em torno da questão da doença dos nervos em que ao modelo fisicalista biomédico se contrapunha um modelo físicomoral da perturbação no qual as concepções de saúde corpo e pessoa são fundamentalmente opostos ao modelo racionalizador moderno O que estou denominando de uma sociológica da narrativa das mulheres pesquisadas é sua dimensão que vai além de concepções de corpo pessoa e doença abrangendo dimensões sociais e históricas de sua aflição e seu malestar Como exposto elas relacionam seus sentimentos de aflição ao contexto de sua vida cotidiana no bairro problemas econômicos dupla jornada de trabalho e a sua percepção da passagem do tempo da ocupação e da luta política ao tempo presente em que o contexto do bairro é outro Uma sociológica que não deixa de incorporar ou englobar a dimensão fisicalista dos discursos e práticas biomédicas aceitando os diagnósticos realizando os tratamentos ingerindo os medicamentos mas ressignificandoos a partir de suas vivências cotidianas e valores compartilhados e eventualmente incorporandoos ou combinandoos a concepções físicomorais do sofrimento e da doença41 Em resumo o que estou chamando aqui de modelo sociológico para falar sobre suas aflições amplia a percepção e os discursos sobre a doença e o sofrimento para além das concepções de corpo mioloantroppmd 10022010 1440 44 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 45 saúde e doença incorporando as dimensões sociais e políticas do vivido a violência no bairro as dificuldades econômicas as desigualdades de gênero a história política de ocupação e conquista do lugar42 GÊNERO AFLIÇÃO E BIOPODER As frentes de pesquisa de campo junto às mulheres moradoras de bairros periféricos de Florianópolis com trajetória de diagnóstico e tratamento de depressão e com os profissionais e agentes de saúde que atuam no atendimento básico nos evidenciaram alguns aspectos da relação entre experiências sociais e políticas públicas em relação a saúde mental Esses diferentes aspectos só poderiam ser apreendidos mediante uma abordagem qualitativa método que orientou todos os trabalhos publicados nesta coletânea e etnográfica privilegiando as falas dos sujeitos sobre suas diferentes e singulares experiências e os sentidos sociais dados a estas por uma leitura etnográfica dos documentos e textos oficiais buscando apreender as categorias empregadas as redes de significado e a configuração de valores veiculada nesses textos pela apreensão das complexidades da dinâmica cultural em que esses valores são ressignificados e também apreendidos pelos diferentes setores sociais envolvidos Esse é um aspecto que vale a pena desenvolver um pouco mais ao mesmo tempo em que os sujeitos e grupos sociais que são alvo de uma política de saúde pública universalizadora e parcialmente distributiva mioloantroppmd 10022010 1440 45 46 acesso a médicos e outros profissionais de saúde a exames e a medicamentos são capazes de ressignificar os valores e sentidos embutidos nessas políticas também aderem aos regimes do biopoder e da biopolítica43 de diferentes maneiras Uma das faces dessa dinâmica é a constatação exposta acima de que mesmo com toda a crítica acadêmica à medicalização e à dimensão política do uso das tecnologias médicas como regimes de assujeitamento e controle percebe se nos diversos movimentos sociais ligados a saúde nas políticas públicas e nos discursos dos chamados usuários do sistema público de saúde um certo consenso em torno de uma demanda por medicalização Ou seja a idéia de uma política democrática de saúde está bastante ligada não apenas ao chamado acesso à saúde e sua universalização mas é traduzida nos discursos públicos ao acesso a medicamentos sobretudo às chamadas últimas gerações de medicamentos A demanda por medicalização aparece fortemente nas falas de muitos profissionais de saúde que se queixam das estratégias e formas de pressão utilizadas pelos pacientes para obterem uma receita44 e também nas falas das mulheres diagnosticadas como sofredoras de depressão e consumidoras de medicamentos quando relatam os efeitos do medicamento e as mudanças que esse uso provocou em suas vidas45 Isso nos coloca a questão do significado do medicamento que nos diferentes universos sociais simbólicos e retóricos passa a adquirir um estatuto de agente dotado de capacidade de mioloantroppmd 10022010 1440 46 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 47 ação A potência e capacidade transformadora do medicamento aparece em várias dimensões dos diferentes discursos sociais Da indústria farmacêutica aos profissionais de saúde aos mentores e gestores de políticas públicas aos ativistas no campo da saúde mental aos pacientes e usuários do sistema de saúde o medicamento é dotado de um poder de ação e de transformação do sujeito que dele faz uso46 A própria possibilidade de realização da Reforma Psiquiátrica e de desinstitucionalização da saúde mental no Brasil é remetida muitas vezes ao desenvolvimento de medicamentos que controlam a loucura possibilitando a saída dos manicômios47 Mas se para a indústria farmacêutica essa retórica está muito mais ligada a uma estratégia de divulgação e venda do medicamento nas falas de pacientes e usuárias o medicamento se torna a definição mesmo de tratamento médico de modo geral se não sair com a receita na mão a consulta não tem valor símbolo de cuidado de si moeda de troca e de status em comunidades pequenas e em relações de vizinhança48 O modelo biomédico da depressão fornece uma explicação bioquímica para o sofrimento ou seja imprime à depressão e a qualquer tipo de sofrimento e malestar um modelo explicativo racionalizado e biologizado Se no caso dos nervos e das nervosas havia uma desconsideração por parte do campo médico em relação mesmo a estabelecer um diagnóstico49 quanto mais a tratar nessa nova configuração da perturbação ocorre de um lado o reconhecimento e a medicalização até mioloantroppmd 10022010 1440 47 48 excessiva e de outro a incorporação de um discurso racionalizador sobre a experiência do sofrimento e da doença juntamente a um processo crescente de medicalização da vida e da subjetividade50 Maria Lúcia da Silveira relata que os médicos em geral não reconheciam o o nervoso como doença e raramente se propunham tratála a não ser com receitas de calmante barbitúricos e o uso de placebos51 O diagnóstico de depressão tem hoje atingido em alguns casos uma população de mulheres muito semelhante à das doenças dos nervos para além das mulheres das classes médias ou das elites urbanas mulheres de zona rural indígenas mulheres de classes e bairros populares que se tratam pela rede pública Percebese uma mudança de prática e de discurso tanto por parte dos profissionais de saúde em relação a esse novo mal quanto por parte das pacientes Os profissionais não apenas passam a acolher as pacientes sofredoras como possuem hoje todo um dispositivo de tratamento fornecido pela política de saúde pública e pelos programas terapêuticos cujo foco está na distribuição gratuita de medicamentos pela rede Os usuários do sistema público e pacientes passam a utilizar uma nova linguagem para falar de seu sofrimento agora mimetizando o dialeto médico que muitas vezes aparece combinado com o idioma dos nervos em outras passa a ser o idioma exclusivo para falar da aflição e inserindo posto de saúde visitas ao médico consumo de psicofármacos receitados por médicos como foco de seus itinerários terapêuticos52 mioloantroppmd 10022010 1440 48 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 49 De um sujeito irracional movido por emoções e afecções em base orgânica ou física as histéricas e as nervosas o novo discurso fisicalista sobre o sofrimento feminino não apenas reconhece o sofrimento mas o diagnostica e trata Nessa nova intervenção fisicalista emerge um sujeito também racionalizado e individualizado capaz de se manter na cadeia produtiva doméstica ou do trabalho assalariado e potencializado enquanto sujeito produtor e produtivo Joel Birman professor da UFRJ discute os efeitos do processo de medicalização do social realizado pela biopolítica remetendo sua origem à longa passagem da salvação para a cura53 Se na tradição grecoromana a relação do sujeito com o mal e com o sofrimento era de ordem ética na expansão do cristianismo passou a ser de ordem religiosa através da ideia de salvação e no mundo modernocontemporâneo essa relação passa a ser mediada pela ciência através da problemática da cura enunciada na própria emergência da modernidade idem p531 No entanto se a partir do século XIX a diferença entre o normal e o patológico deixa de ser uma diferença de essência e passa a ser quantificável mensurável etc54 o que marcaria a forma atual dessa diferença e o que definiria hoje o normal Se na história da loucura estudada por Foucault eram a anormalidade e a degeneração os objetos do enclausuramento talvez uma diferença que podemos perceber no contemporâneo é que o alvo da intervenção biomédica ou o foco da mioloantroppmd 10022010 1440 49 50 medicalização é a própria normalidade ou dito de outro modo no continuum entre o Normal e o Patológico ocorre um processo crescente de patologização do normal Não apenas a fronteira entre um e outro se torna mais tênue mas ela também se desloca estendendo o território do patológico ou seja estendendo a esfera sobre a qual atuam os chamados imperativos de normalidade Assim como a medicina e os discursos e saberes biopsicomédicos se constituem como regimes de subjetivação já analisados por Foucault eles atuam também como tecnologias do gênero ou ciências da diferença conforme a discussão de Fabíola Rohden 2001 Até que ponto essa medicalização da diferença e da subjetividade levaria a uma perda da capacidade de agência e de autonomia das mulheres e das pessoas em geral envolvidas nesses processos até que ponto indicariam novos regimes de subjetivação sobretudo no sentido do assujeitamento a um conjunto de normas e valores sociais estéticos e existenciais que passam a constituir esses sujeitos O quanto estamos mais uma vez diante da biomedicina e do sistema médico como tecnologias do gênero não pelas suas expressões específicas da saúde da mulher como a ginecologia e a obstetrícia mas em sua expressão que mais fortemente atingiu o coração da construção do sujeito no contemporâneo a psiquiatria e as medicinas do mental São questões que merecem um debate maior Um último ponto a ponderar são as experiências sociais em torno das questões aqui descritas ou seja o dos já mioloantroppmd 10022010 1440 50 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 51 mencionados itinerários escolhas agenciamentos e transgressões protagonizados pelos sujeitos diretamente envolvidos nesse processo de medicalização da vida e controle da experiência subjetiva das mulheres Se por um lado podemos perceber no uso massificado de psicofármacos na aceitação e legitimação dos diagnósticos médicos formas de medicalização da subjetividade por outro nenhum dispositivo disciplinador de controle ou de vigilância atua sem a participação adesão dos sujeitos envolvidos Da mesma forma e numa outra perspectiva complementar a incorporação de ideologias e valores advindos do campo científico e dos saberes médicos não acontece sem a reinvenção dos usos desses dispositivos e dos sentidos dados a esses usos Como foi colocado acima se de um lado existe um uso bastante disseminado para não dizer massivo de medicamentos psicotrópicos ou de psicofármacos em grande parte com receitas e medicamentos fornecidos na própria rede pública de outro lado é bastante comum que as pessoas incluam em seu itinerário terapêutico junto com o consumo desses medicamentos outras formas de tratamento como o recurso às chamadas medicinas alternativas ou não convencionais chás fitoterápicos práticas corporais meditação etc55 e às curas rituais ou religiosas Sem necessariamente confrontarem um modelo com o outro o que novamente nos faz questionar que não é exatamente a lógica intrínseca a esta ou àquela técnica terapêutica que define os sentidos desta mas são seus usos mioloantroppmd 10022010 1440 51 52 sociais que definem seus significados e sentidos articulados com uma experiência social e histórica mais abrangente 56 A abordagem etnográfica das experiências sociais desses sujeitos introduz essa dimensão muitas vezes não reconhecida e não levada em consideração nos espaços em que políticas públicas e programas governamentais são elaborados Para muito além por exemplo do que alguns programas de saúde definem como momentos de maior vulnerabilidade das mulheres ligados ao ciclo biológico reprodutivo o que temos ouvido na pesquisa de campo são relatos e narrativas de experiências de outra ordem social política simbólica ligadas a contextos tanto locais quanto sóciohistóricoculturais mais amplos que podem nos dizer muito sobre as aflições contemporâneas e suas configurações de gênero Levar essas vivências em consideração fazer um esforço para compreender ou ao menos ouvir as explicações e interpretações dos sujeitos que são alvo dos programas governamentais perceber os discursos e as experiências sociais como também produtores de verdade pode ser o começo de uma outra política pública não apenas em saúde NOTASia Social UF Algumas reflexões feitas neste artigo já foram expostas em trabalhos apresentados em congressos palestras e mesas redondas e parcialmente em Maluf 2009 Minha escolha por recolocar essas reflexões eventualmente repetindo algumas já contidas no artigo se dá pelo caráter deste livro cujo objetivo é reunir o conjunto dos resultados de uma pesquisa empreendida ao longo de três anos 1 mioloantroppmd 10022010 1440 52 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 53 Maluf 2007 Estou me referindo aqui à discussão de Georges Canguilhem sobre o normal e o patológico e o caráter de sua diferenciação inaugurada pelo discurso e pelos saberes biomédicos modernos que passa de uma diferença de qualidade e de essência para uma diferença de grau quantificável mensurável entre o estado de normalidade e o estado de patologia Russo 2004 e Aguiar 2004 4 Sobre a Reforma Psiquiátrica a Reforma Psiquiátrica Brasileira e o processo de desinstitucionalização da saúde mental ver Amarante Paulo 1994 1996 e 2000 Desviat Manuel 1999 Fonseca Tânia Galli Engelman Selda Perrone Claucia Maria 2007 entre outros Cf Maluf Sônia Weidner Gênero subjetividade e saúde mental políticas públicas ativismo e experiências sociais em torno de gênero e saúde mental Projeto de Pesquisa CNPq Fapesc A pesquisa foi cocoordenada por Carmen Susana Tornquist e contou com uma ampla equipe que envolveu professoras da UFSC e da UDESC doutorandos mestrandos alunos de graduação e bolsistas de Iniciação Científica além de participantes externos voluntários O conceito de saúde mental tem sido objeto de diversas reflexões no campo das ciências sociais e da antropologia em particular Ao utilizarmos durante a pesquisa e em alguns artigos deste livro o conceito de saúde mental temos claro que não se trata de uma categoria da análise antropológica e reconhecemos seus limites como categoria descritiva das diferentes representações modelos e experiências sociais em torno da questão do sofrimento e da aflição ver Duarte 1994 O termo saúde mental é utilizado aqui para contextualizar o universo empírico da pesquisa que vai 2 3 5 6 mioloantroppmd 10022010 1440 53 54 além do fenômeno dos nervos ou do nervoso cuja abordagem pode ser perfeitamente contida no conceito de perturbação físicomoral sugerido por Duarte Referese também ao contexto institucional das experiências e discursos sociais pesquisados principalmente aquele ligado às políticas públicas e programas governamentais todos eles englobados sob a idéia de uma política de saúde mental Para nos referirmos no entanto à dimensão da experiência dos sujeitos pesquisados utilizamos a noção mais ampla e abrangente de aflição ou aflições buscando abarcar os significados dados por estes em suas narrativas que além de modelos de saúde doença corpo e pessoa trazem concepções bastante articuladas com as dimensões sociais e históricas de suas vivências 7 Aguiar 2004 e para uma descrição mais detalhada do atendimento psiquiátrico comunitário ver Cardoso 1999 entre outros 8 Cardoso 1999 e Birman apud Cardoso 1999 Aguiar 2004 entre outros Evidentemente que esse é um processo bastante desigual e heterogêneo se formos pensar no Brasil como um todo e na forma bastante distinta como a Reforma Psiquiátrica e a desinstitucionalização da saúde mental no Brasil vem sendo realizada em cada região e estado do país Há que se pensar também na heterogeneidade do atendimento primário em saúde em relação às várias regiões 9 Falar em remedicalização da psiquiatria não significa que as psiquiatrias exercidas antes estivessem fora do campo médico ou não tivessem uma orientação biofísicoorgânica No entanto o conceito de medicalização utilizado está ligado a uma dupla tendência de um lado a redução dos fenômenos de sofrimento e aflição a desequilíbrios e distúrbios de ordem orgânica ou físico mioloantroppmd 10022010 1440 54 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 55 química de outro uma extensão da amplitude da ação e da intervenção médicas 10 Os DSMs organizados pelos psiquiatras da Associação de Psiquiatria dos Estados Unidos estabelecem orientações para a prática psiquiátrica incluindo a definição das doenças e transtornos mentais ou psicológicos e os procedimentos terapêuticos Os DSM I 1952 e II 1968 seguiam uma orientação influenciada pela psicanálise e por uma visão dinâmica e processual da saúde mental O DSM III significou uma ruptura com a visão psicossocial presente nos DSM anteriores e a reintrodução de uma visão biologizada e remedicalizada da doença e da perturbação mental Cf Aguiar 2004 e Russo 2004 O DSM IV atualmente em vigor foi publicado em 1994 com uma versão revisada em 2000 Atualmente encontrase em discussão a publicação do DSM V que deveria sair em 2012 Principalmente a partir do DSM III é notável a influência destes sobre a CID Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados da Organização Mundial de Saúde 11 Sobre esse processo de patologização a partir dos DSMs no que tange à sexualidade ver Russo 2004 12 Não estamos aqui colocando em questão o fato do sofrimento ou da aflição dessas mulheres ou tomandoas como simples vítimas da indústria farmacêutica Se existe um alargamento das aflições nas sociedades contemporâneas e vários teóricos e críticos da cultura contemporânea têm discutido essa questão é a linguagem biomédica da doença orgânica e da ação da tecnologia incluindo os medicamentos que aparece como a resposta mais potente dentre os diferentes dispositivos sociais simbólicos e mioloantroppmd 10022010 1440 55 56 cosmológicos disponíveis Outra questão a ser desenvolvida é o quanto afecções que antes eram tomadas como normais hoje são vistas como patologias a serem tratadas 13 Psicologia e medicina colocadas aqui no mesmo campo discursivo pelo sentido racionalizador de seus saberes um psicológico outro fisicalista cujo fundamento é a divisão entre corpo e mente ou entre físicoorgânico e psicológicomental 14 Na literatura antropológica nos campos da antropologia médica ver Helman 2003 e da antropologia da saúde a doença dos nervos ocupou um lugar importante ao ser comparada com outras chamadas síndromes culturais como o susto no México e na América Central Rubel Onell Ardón 1995 vistas em geral como manifestações populares de perturbações e transtornos ligados ao contexto social e cultural Helman 2003 p 242243 15 Ver Duarte 1986 e 1994 Silveira 2004 Rabelo Alves e Souza 1999 Figueira 1985 1988 Ropa e Duarte 1985 entre outros 16 Sendo exceção o trabalho de Maria Lúcia Silveira 2000 com a qual publicamos uma entrevista nesta coletânea Ainda sobre gênero e nervos ver também Rabelo Souza 2000 17 Não entram nesta referência os estudos especificamente nas áreas de psicologia ou de psicanálise e das correntes críticas como as teorias feministas cujo diálogo tenso com a psicanálise tem trazido à uma reflexão crítica questões como a subjetividade feminina o conceito de histeria as concepções em torno da sexualidade Para um mapa inicial dessa discussão e dessa crítica ver a coletânea Para além do falo uma crítica a Lacan do ponto de vista da mulher organizada por Tereza Brenan 18 Na maioria dos textos sobre a eclosão da chamada segunda onda mioloantroppmd 10022010 1440 56 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 57 do feminismo nos anos 70 a pílula anticoncepcional é tratada como um dos agentes centrais Teria sido graças à invenção da pílula que mulheres puderam se liberar das gravidezes compulsórias e finalmente desvincular sexo de procriação Além de estabelecer uma relação de causalidade entre um fenômeno e outro a invenção da pílula e a emergência do feminismo esse argumento dá um estatuto de agência à tecnologia aderindo a uma concepção de progresso científico linear Talvez seja interessante pensar no inverso o quanto a invenção da pílula não veio preencher um conjunto de questões colocadas já pelos diferentes discursos sociais quanto à liberação das mulheres e à liberdade sexual Além disso tanto no caso das sociedades ocidentais modernas antes do advento da pílula quanto em outras sociedades outros métodos anticonceptivos já eram e ainda são conhecidos e usados 19 Ver para esse enfoque os estudos de Duarte 1986 1998 2003 e sua apreensão dos diferentes modelos de Pessoa a partir da discussão de Dumont sobre o individualismo moderno e a oposição entre ideologias holistas e individualistas 20 Ver Duarte 1986 Cardoso 1999 Silveira 2004 Freire Costa 1989 entre outros 21 Ver Figueira 1985 e 1988 22 Figueira 1985 1988 Salem 1992 entre outros 23 Tania Salem 1992 questiona essa redução da psicanálise a uma das vertentes da configuração psicológica do indivíduo moderno Para ela a concepção de sujeito da psicanálise a partir da ideia de inconsciente e de uma despossessão subjetiva estabeleceria uma distância entre esta e a noção central de indivíduo moderno a partir do individualismo possessivo Stuart Hall 2000 ao discutir as mioloantroppmd 10022010 1440 57 58 formas de descentramento do sujeito moderno estabelece a psicanálise ao lado do marxismo de Foucault do feminismo e da filosofia da linguagem como um desses descentramentos Para outra crítica da abordagem antropológica da psicanálise ver Tenório 2000 24 Essa questão tem sido objeto de estudos antropológicos e historiográficos sobre as classes populares É possível detectar nesses estudos três tipos de abordagem das classes populares como portadoras de valores opostos aos das classes médias e de elite e aos valores hegemônicos do individualismo moderno das classes populares como permeadas pelos valores individualistas seja como vulneráveis a estes seja como demandantes de processos de modernização também no sentido simbólico e cultural e uma terceira vertente que ao mesmo tempo em que considera as especificidades dos diferentes grupos sociais e particularmente das classes populares urbanas brasileiras busca evitar uma dicotomização entre nós e eles levando em consideração as dinâmicas complexas da circulação dos valores e símbolos culturais e as transformações históricas e cotidianas pelas quais esses grupos e camadas sociais têm passado 25 Foucault 1979 já havia descrito esse processo de surgimento da medicina social como adoção pelo Estado de práticas de esquadrinhamento e racionalização do conhecimento sobre a população e seus malestares doenças etc constituindo uma das facetas do que ele denominou de biopoder um dos regimes centrais de subjetivação na modernidade 26 Ver o artigo de Ana Paula Muller de Andrade nesta coletânea 27 É dessa forma que pacientes freqüentadores e consumidores dos mioloantroppmd 10022010 1440 58 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 59 serviços públicos de saúde são denominados nos textos que definem as políticas públicas e nos estudos sobre o tema também 28 Ver o Trabalho de Conclusão de Curso de Rosana Schmidt 2007 que dedica uma parte da monografia a essa leitura 29 Tendo sido convidadas para participar dessa reunião fomos representadas por uma integrante da equipe de pesquisa Ana Paula Müller de Andrade 30 Ver a pesquisa de Schmidt 2007 junto a profissionais da rede de atenção básica à saúde em Florianópolis 31 Ver o artigo de Diehl Mazzini Becker nesta coletânea 32 Questão a ser examinada com maior detalhamento em outro momento 33 Um projeto de maior fôlego sobre o tema foi desenvolvido pela ONG Papai Recife junto com o Núcleo de Pesquisas Margens do Programa de PósGraduação em Psicologia da UFSC sobre gênero e violência com foco na pesquisa com homens agentes de violência 34 Ver para uma perspectiva crítica Boaventura de Sousa Santos 2004 35 Ver FaustoSterling 2000 Laqueur 2001 Rohden 2001 entre outros 36 Como descrevem Tornquist Andrade e Monteiro em artigo nesta coletânea 37 idem 38 Ver Maluf 1993 Silveira 2002 reforçando o que Motta 2002 já havia identificado em seu estudo sobre gênero e reciprocidade em um bairro do município 39 Maluf 1993 mioloantroppmd 10022010 1440 59 60 40 Ver Motta 2002 41 É possível ainda constatar o quanto a lógica racionalizadora da relação entre causa e efeito presente no uso do medicamento por exemplo está presente e se dissemina por outras práticas como a busca de alívio ou cura espiritual muitas vezes frustrada pela impossibilidade de resolução imediata ou alívio instantâneo do sofrimento da dor ou da aflição que um medicamento pode proporcionar ao menos temporariamente 42 No caso do bairro Monte Cristo 43 Ver Foucault 1979 1990 44 Conforme comentamos em Maluf 2009 esse fenômeno é comparável ao relatado por Rohden 2001 em relação a como no século XIX muitas mulheres se referiam a si mesmas como insanas nervosas histéricas e ninfomaníacas e buscavam os consultórios médicos a partir dessa autopercepção 45 Ver Diehl Manzini e Becker nesta coletânea Os exemplos que apareceram em campo são numerosos e algumas vezes chegam a atingir um tom quase anedótico como o diálogo que observei em uma clínica pediátrica entre duas mães comentando sobre as maravilhas da Ritalina utilizado entre outros em crianças para o chamado Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade Uma delas comentava que só estava esperando seu filho completar sete anos para começar a tomar o medicamento não entendendo porque o médico não havia autorizado o seu uso antes 46 Sobre os usos e sentidos sociais dos medicamentos ver Pignarré 1999 Lefevre 1991 Azize 2002 entre outros 47 Uma lógica semelhante aos discursos em torno da pílula anticoncepcional como liberadora das mulheres conforme exposto acima na nota 18 mioloantroppmd 10022010 1440 60 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 61 48 O que significa que nem sempre o medicamento recebido no posto de saúde será utilizado muitas vezes ele é armazenado em casa esperando o momento mais adequado para seu uso pelo paciente ou por algum outro destinatário vizinho parente por este escolhido Langdon idem e Silveira 2004 Essas estratégias e manipulações em relação aos medicamentos sugerem que a aceitação e mesmo a expectativa que assimila tratamento médico à ingestão de medicamentos não significa automaticamente a incorporação de uma ideologia racionalizadora da experiência de aflição ou mesmo de adoecimento 49 Ver Silveira 2000 e minha discussão sobre a questão em Maluf 2009 50 As expressões utilizadas no discurso farmacológico para descrever como agem alguns desses medicamentos dão o que pensar nesse campo Descritos como moduladores eles agiriam retirando os excessos e introduzindo uma visão da felicidade e do bemestar como eliminação dos excessos emocionais e consequentemente um maior controle das emoções É como se o comportamento blasé ao qual se refere Georg Simmel como dispositivo necessário para a sobrevivência do sujeito na metrópole fosse agora induzido quimicamente Uma comparação ainda com os tratamentos dados às histéricas no final do século XIX e início do XX é instigante pois estes também são focados em uma redução dos estímulos externos através do isolamento social destas evitação de espaços públicos e situações de aglomeração humana e mesmo de convívio social excessivo 51 A questão da subnotificação expressão utilizada pelos gestores de políticas públicas em saúde para se referir à falta de dados efetivos mioloantroppmd 10022010 1440 61 62 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGUIAR Adriano Amaral de A psiquiatria no divã entre as ciências da vida e a medicalização da existência Rio de Janeiro Relume Dumará 2004 sobre transtornos e enfermidades de todo tipo é o outro lado da hipermedicalização Estudos já apontaram as diferenças de tratamento por parte de profissionais de saúde em relação às queixas de homens e de mulheres O tempo de diagnóstico de uma mulher vítima de um enfarto por exemplo é maior do que o que se leva para diagnosticar um homem com a mesma afecção Essa diferença devese provavelmente à falta de acolhimento da queixa feminina como sintoma de um problema real e à demora no reconhecimento por parte do corpo médico de que se trata mesmo de um sintoma 52 Sobre o uso popular do jargão médico pelas classes populares ver o instigante artigo de Porter 1993 53 Birman 2007 54 Canguilhem 2000 55 Aquilo que a OMS passou a chamar de medicinas complementares denominação que deve ser utilizada com cuidado pois nem sempre aquilo que é chamado de complementar é apenas o complemento do tratamento médico convencional 56 Essa última questão se articula com outra constatação a de que a aceitação do diagnóstico e do tratamento médico não necessariamente exclui outros diagnósticos e tratamentos a busca por cura espiritual por tratamentos alternativos na base de fitoterápicos exercícios corporais e outros que será melhor desenvolvida em outro momento mioloantroppmd 10022010 1440 62 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 63 AGUIAR Adriano Amaral de A psiquiatria no divã entre as ciências da vida e a medicalização da existência Rio de Janeiro Relume Dumará 2004 AMARANTE Paulo org Psiquiatria social e Reforma Psiquiátrica Rio de Janeiro Ed Fiocruz 1994 AMARANTE Paulo org Ensaios Subjetividade saúde mental e sociedade Rio de Janeiro Ed Fiocruz 2000 AMARANTE Paulo O homem e a serpente Outras histórias para a loucura e a psiquiatria Rio de Janeiro Ed Fiocruz 1996 AZIZE Rogerio Lopes A química da qualidade de vida um olhar antropológico sobre uso de medicamentos e saúde em classes médias urbanas Dissertação de Mestrado em Antropologia Social Universidade Federal de Santa Catarina 2002 BIRMAN Joel A biopolítica na genealogia da psicanálise da salvação à cura História Ciências Saúde Manguinhos Rio de Janeiro v 4 n2 529542 abrjun 2007 CANESQUI Ana Maria Notas sobre a produção acadêmica de antropologia e saúde na década de 80 in Alves PC Minayo MCS org Saúde Doença um olhar antropológico Rio de Janeiro Ed FIOCRUZ 1994 1332 CANESQUI Ana Maria Antropologia da Saúde e Doença no Brasil na década de 1990 Ciência Saúde Coletiva Rio de Janeiro v 8 n 1 109124 2003 CANGUILHEM Georges O normal e o patológico Rio de Janeiro Forense Universitário 2000 CARDOSO Marina Médicos e clientela da assistência psiquiátrica à comunidade São Carlos FAPESPEd UFSCar 1999 mioloantroppmd 10022010 1440 63 64 DUARTE Luiz Fernando Dias Indivíduo e pessoa na experiência da saúde e da doença Ciências Saúde Coletiva 8 1 173183 2003 DUARTE Luiz Fernando Dias A outra saúde mental psicossocial físicomoral In ALVES Paulo Cesar MINAYO Maria Cecilia de S Saúde e doença um olhar antropológico Rio de Janeiro Ed Fiocruz 1994 DUARTE Luiz Fernando Dias Da vida nervosa nas classes trabalhadoras urbanas brasileiras Rio de Janeiro JZECNPq 1986 DUARTE Luiz Fernando Dias Da vida nervosa nas classes trabalhadoras urbanas brasileiras Rio de Janeiro JZECNPq 1986 DUARTE Luiz Fernando Dias Três ensaios sobre pessoa e modernidade Parte 1 O culto do Eu no templo da Razão Boletim do Museu Nacional Rio de Janeiro n41 N Série Antropologia 1983 FAUSTOSTERLING Anne Sexing the body gender politics and the construction of sexuality New York Basic Books 2000 FIGUEIRA Sérvulo A Introdução psicologismo psicanálise e ciências sociais in FIGUEIRA SA org A cultura da psicanálise São Paulo Brasiliense 1985 713 FIGUEIRA Sérvulo A Psicanalistas e pacientes na cultura COSTA Jurandir Freire Psicanálise e contexto social imaginário psicanalítico grupos e psicoterapias Rio de Janeiro Ed Campus 1989 COSTA Jurandir Freire Psicanálise e contexto social imaginário psicanalítico grupos e psicoterapias Rio de Janeiro Ed Campus 1989 DESVIAT Manuel A Reforma Psiquiátrica Rio de Janeiro Fiocruz 1999 mioloantroppmd 10022010 1440 64 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 65 psicanalítica in Figueira SA org Efeito Psi A influência da psicanálise Rio de Janeiro Campus 1988 131149 FONSECA Tânia Galli ENGELMAN Selda PERRONE Claucia Maria orgs Rizomas da Reforma Psiquiátrica Porto Alegre Ed UFRGS 2007 FOUCAULT Michel Microfísica do poder Rio de Janeiro Graal 1979 FOUCAULT Michel Tecnologias del Yo y otros textos afines Barcelona Paidós 1990 HALL Stuart A identidade cultural na pósmodernidade Rio de Janeiro DPA Editora 2000 HELMAN Cecil G Cultura saúde doença Porto Alegre Artmed 2003 LANGDON EstherJean A construção sociocultural da doença e seu desafio para a prática médica mimeog sd LAQUEUR Thomas W Inventando o sexo corpo e gênero dos gregos a Freud Rio de Janeiro RelumeDumará 2001 LEFEVRE Fernando A função simbólica dos medicamentos São Paulo Cortez Editora 1991 MALUF Sônia Weidner Encontros noturnos bruxas e bruxarias da Lagoa da Conceição Rio de Janeiro Rosa dos Tempos 1993 MALUF Sônia Weidner Sofrimento saúde mental e medicamentos regimes de subjetivação e tecnologias do gênero In TORNQUIST Carmen Susana COELHO Clair Castilhos LAGO Mara Coelho de Souza LISBOA Teresa Kleba Orgs Leituras de resistência corpo violência e poder Florianópolis Ed Mulheres 2009 vol II 145161 mioloantroppmd 10022010 1440 65 66 MARX Karl Sobre o suicídio São paulo Boitempo Editorial 2006 MOTTA Flavia de Matos Gênero e Reciprocidade uma Ilha ao Sul do Brasil Tese de Doutorado Ciências Sociais Unicamp 2002 PIGNARRE Philippe O que é o medicamento Um objeto estranho entre ciência mercado e sociedade Rio de Janeiro Editora 34 1999 PORTER Roy Expressando sua enfermidade a linguagem da doença na Inglaterra georgiana In BURKE Peter PORTER Roy Orgs Linguagem indivíduo e sociedade São Paulo Ed Unesp 1993 365394 RABELO Miriam Cristina ALVES Paulo César SOUZA Iara Maria Experiência de doença e narrativa Rio de Janeiro FIOCRUZ 1999 ROHDEN Fabíola Uma ciência da diferença sexo e gênero na medicina da mulher Rio de Janeiro EdFiocruz 2001 ROPA Daniela DUARTE Luis Fernando Dias Considerações teóricas sobre a questão do atendimento psicológico às classes trabalhadoras In FIGUEIRA SA org A cultura da psicanálise Sao Paulo Brasiliense 1985 178201 RUBEL Artur ONELL Carl W ARDÓN Rolando Collado Susto Una enfermedad popular Mexico EFE 1995 RUSSO Jane Do desvio ao transtorno a medicalização da sexualidade na nosografia psiquiátrica contemporânea In PISCITELLI Adriana GREGORI Maria Filomena CARRARA Sérgio Sexualidade e saberes convenções e fronteiras Rio de Janeiro Ed Garamond 2004 95114 SALEM Tania 1992 A despossessão subjetiva dos paradoxos do individualismo Revista Brasileira de Ciências Sociais ano 7 no 18 6277 mioloantroppmd 10022010 1440 66 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 67 SANTOS Boaventura de Sousa Org Conhecimento prudente para uma vida decente Um discurso sobre as ciências revisitado São Paulo Cortez Editora 2004 SILVEIRA Maria Lúcia O nervo cala o nervo fala a linguagem da doença Rio de Janeiro Ed Fiocruz 2004 SIMMEL Georg A metrópole e a vida mental in Velho Otavio G O fenômeno urbano Rio de Janeiro Zahar 1979 TENÓRIO Fernando Psicanálise configuração individualista de valores e ética do social História Ciências Saúde Manguinhos Vol 7 n1 Rio de Janeiro marçojunho 2000 117134 mioloantroppmd 10022010 1440 67 mioloantroppmd 68 10022010 1440 Este artigo busca desenvolver algumas análises em torno da pesquisa de campo realizada em um bairro de camadas populares da cidade de Florianópolis cujo objetivo foi o de buscar compreender como e se a disseminação de diagnóstico de depressão acompanhado de tratamento e medicalização se fazia presente entre os grupos sociais mais pobres e considerados vulneráveis1 da cidade quais os sentidos que os sujeitos davam a estas situações e como buscavam resolver ou mitigar as perturbações e aflições pelas quais passavam De uma perspectiva inicial de buscar compreender uma dimensão das experiências sociais ligadas ao diagnóstico de depressão seu tratamento e como os próprios sujeitos dão significado a essa experiência em suas vidas cotidianas nos depararamos com outros discursos sociais sobre a experiência de sofrimento e É uma bela loucura falar Com isso o homem dança em e por cima de todas as coisas Niezstche VELHAS HISTÓRIAS NOVAS ESPERANÇAS Carmen Susana Tornquist Ana Paula Muller de Andrade Marina Monteiro mioloantroppmd 10022010 1440 69 70 aflição que articulavam vivências pessoais singulares com a vivência política coletiva de um histórico de ocupação e conquista de um teto para morar A abordagem das experiências sociais era um dos objetivos do projeto de pesquisa Gênero subjetividade e saúde mental a ser desenvolvida a partir do contato com sujeitos que se dispusessem a contar suas trajetórias de vida considerando as formas peculiares com que vivenciavam dificuldades sofrimentos e aflições que nas últimas décadas têm sido tratados com medicamentos e que acabam integrando esse quadro mais geral de disseminação do diagnóstico de depressão Observamos também na pesquisa desenvolvida em outras frentes que nos serviços públicos de saúde e na atenção básica as mulheres estão entre as principais pacientes atendidas por problemas desta ordem bem como são as principais consumidoras desse tipo de medicamentos2 As mulheres são também a grande maioria das participantes de sessões coletivas de psicoterapia oferecidas crescentemente nos postos de saúde de Florianópolis Iniciamos o trabalho no bairro Monte Cristo tendo em vista a busca de narrativas individuais a partir da noção de itinerários terapêuticos3 centradas que estávamos em um primeiro momento em uma abordagem da perturbação do sofrimento e dos tratamentos utilizados No entanto ao longo do trabalho adotamos a perspectiva de deixar que o próprio campo fizesse emergir as questões e desta forma mioloantroppmd 10022010 1440 70 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 71 modificamos os caminhos inicialmente planejados A partir da insistência de nossas principais interlocutoras secundarizamos esta perspectiva e nos rendemos às formas coletivas de narração das quais se destacaram muito mais do que narrativas centradas em processos de saúde e de doença as narrativas coletivas que falavam dos modos de subjetivação das mulheres e de formas particulares de dar sentido a suas trajetórias no que elas têm em comum Em campo observamos alguns tipos de relatos orais com características diferenciadas conversas informais itinerários terapêuticos coletados em entrevistas individuais narrativas individuais narrativas coletivas ritualizadas e ainda entrevistas com profissionais de saúde4 Percebemos que as narrativas produzidas nos momentos coletivos de narração enfocavam não apenas as histórias de vida pessoais mas também os contextos em que tais histórias foram experimentadas A articulação dos domínios da vida pública o contexto e da vida privada a casa estava evidente talvez por se tratarem de narrativas que tinham como contexto uma experiência social coletiva e marcante extremamente politizada que foi a participação das interlocutoras no Movimento dos Sem Teto no início da década de 90 em Florianópolis apesar de viverem atualmente um contexto mais marcado pela despolitização e privatização das ações coletivas conforme analisa Francisco Canella5 Assim nosso foco esteve voltado para os diferentes discursos produzidos pelas mulheres mioloantroppmd 10022010 1440 71 72 nossas principais interlocutoras e em função disto dedicamos uma boa parte deste texto à descrição do bairro e dos sentidos que as pessoas atribuem aos processos que vivenciam como observamos em suas falas cotidianas que chamamos de crônicas orais do dia a dia Além de ser um bairro popular o Monte Cristo tem outras características que justificam sua escolha tratase de um bairro periférico da cidade situado fora da parte insular da capital catarinense e marcado por uma situação sócioeconômica mais precária do que os outros bairros populares situados no interior da ilha outrora vilarejos de pescadoreslavradores nos quais a heterogeneidade social é muito maior e os moradores mais pobres são em geral nativos do local e não padecem do problema do acesso a terra entre outras especificidades6 No Monte Cristo além de uma maior homogeneidade sócio econômica o acesso a serviços e equipamentos coletivos e à moradia é muito mais grave associado à presença ostensiva de redes de tráfico e ao estigma que pesa sobre a região Ao iniciarmos o trabalho de campo nos deparamos com a necessidade de delimitar nosso trabalho à dimensão da pesquisa propriamente dita diferenciado dos projetos sócioeducativos comuns em todo o bairro Monte Cristo desafio bastante comum à antropologia desenvolvida em nosso país em função das urgências e desigualdades de direitos sociais7 e da forma com que os pesquisadores costumam ser vistos pelos grupos populares mais especificamente como aponta Alba Zaluar mioloantroppmd 10022010 1440 72 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 73 em seu clássico estudo sobre Cidade de Deus8 Como evitar que fôssemos vistas como psicólogas que poderiam ajudar as pessoas a aliviar suas dores uma vez que a pesquisa tratava de temática comumente associada à psicologia profissão conhecida e prestigiada também neste contexto popular ainda mais levando em conta que uma de nós era psicóloga A propósito como veremos adiante os sentidos que o ofício da psicologia adquire no grupo são curiosos e apareceram em várias situações E mais como manternos no papel de pesquisadoras sem confundir as atividades de pesquisa com as de assessoria ou de filantropia mais corriqueiras e valorizadas na comunidade9 Nos sentimos sempre no fio do equilibrista entre os limites da atividade de pesquisa com sua dinâmica e compromissos intrínsecos e o desejo de participar de forma mais efetiva e afetiva dos dilemas e crises que envolviam as pessoas particularmente quando uma espécie de crise abalou em nosso entender o grupo de mulheres da Santo Expedito 10 As entrevistas formais11 com os devidos termos de consentimentos informados aprovados pelo Comitê de Ética da UFSC no qual a pesquisa foi aprovada pareciam nos proteger da impressão de que o grupo nos desviava dos nossos objetivos no entanto nem sempre foram bem sucedidas seja pelo formalismo introduzido pelo termo entrevista pelo constrangimento gerado pelo gravador ou ainda pela dinâmica particular deste universo mioloantroppmd 10022010 1440 73 74 Diante da receptividade e do interesse do grupo da Santo Expedito quando do primeiro contato e apresentação da pesquisa optouse por priorizar a realização da observação participante nas reuniões encontros das mulheres e visitas a comunidade realizando entrevistas apenas em alguns casos Dos diversos dados que pudemos obter ao longo de nosso trabalho destacaremos o contexto em que tais narrativas são constituídas e seus conteúdos propriamente ditos compondo uma interpretação com a qual pretendemos contribuir para o refinamento do debate acerca dos processos de subjetivação de grupos populares na contemporaneidade ACERCA DO ACERCAMENTO O CONTEXTO DA CONSTRUÇÃO E RECONSTRUÇÃO DAS NARRATIVAS Nossa entrada na Santo Expedito se deu através de professores da UDESC que desenvolviam projetos na comunidade e possibilitaram certa confiança e simpatia já no primeiro contato etapa em geral tão demorada do trabalho etnográfico clássico solitário e laborioso com olhares e conversas milimetricamente conquistados Esta porta de acesso facilitada no entanto não apenas marcou decisivamente o material etnográfico que conseguimos acessar durante os quase 18 meses em que ficamos no bairro mas impôs obviamente algumas limitações o limite de certo tipo de rede social muito marcada pelos tempos da ocupação e pelo viés igrejeiro como chamaremos aqui de onde surge inclusive a noção de comunidade12 bastante comum entre moradores de bairros mioloantroppmd 10022010 1440 74 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 75 populares e que em geral denota a presença de mediadores sociais ligados as igrejas ao Estado à universidade ou a partidos políticos Essa noção de comunidade não é necessariamente compartilhada por todos não apenas porque alguns dos moradores originais venderam ou alugaram suas casas e foram viver em outro local mas também porque muitos teriam se afastado daquele espírito de grupo e de luta que marcara os anos 90 quando o Movimento dos Sem Teto era forte na cidade e quando esta população migrante em sua maioria participou da luta pelo acesso a moradia que deu origem a esta comunidade Portanto partilhamos estes fragmentos do cotidiano com uma das várias redes que atravessam o que hoje sobreviveu dos tempos da ocupação quando o direito à moradia foi adquirido pelas quase cinquenta famílias que participaram do movimento13 Paralelamente a esta outra entrada em campo foi realizada através da unidade de saúde do bairro onde foram realizadas entrevistas com algumas profissionais e usuárias dos serviços de saúde de forma mais sistemática Lisanda agente comunitária de saúde da unidade se propôs a acompanhar a andança pelo bairro e casas principalmente pela comunidade Santa Cecília permitindo assim o trânsito por algumas regiões uma vez que a maior parte das residências visitadas estavam localizadas em áreas onde os traficantes locais controlam a entrada Estar com Lisanda significava também estar acompanhada de alguém da comunidade investido da mioloantroppmd 10022010 1440 75 76 legitimidade que o jaleco branco confere a quem o usa e ter mais facilidade para obter permissão para circular pela comunidade Permissão que no nosso caso tinha um porém a cada ida era necessário que Lisanda avisasse antecipadamente os comércios14 sobre a presença de uma pessoa externa A partir deste acesso marcadamente ligado à unidade de saúde foram feitas cinco entrevistas individuais com usuárias da unidade de saúde Assim não apenas as narrativas das duas comunidades se deram de formas diferentes como trouxeram conteúdos muitos diversos Se na Santo Expedito havia uma grande valorização da dimensão coletiva comunitária enquanto forma de se organizar e narrar os eventos ligados ao processo de ocupação da terra na Santa Cecília as entrevistas estiveram focadas nos itinerários terapêuticos e centradas no que as interlocutoras denominavam em geral como depressão Duas comunidades duas abordagens diferentes interações diversas mas com um mesmo eixo que além de conectálas de alguma maneira surgia como central em suas histórias o bairro Seja por sua violência tantas vezes ressaltada quanto pelos aspectos cotidianos que remetiam a idéia de familiaridade e comunidade através da percepção do bairro como uma extensão da casa para onde a vida pública se dirige com aspectos familiares e através do qual as redes sociais se consolidam No entanto se é verdade que várias entrevistas puderam ser analisadas a partir desta concepção na Santa Cecília já no mioloantroppmd 10022010 1440 76 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 77 universo específico da Santo Expedito e pela forma como o campo foi se desenhando para nós o que se impôs foi a emergência de um espaço de narração compartilhada Uma verdadeira comunidade de ouvintes15 se impôs à nossa volta a partir da proposta inicial de Miranda e com a presença de narradoras reconhecidas enquanto tais pelo grupo de mulheres Atualmente o bairro conta com várias associações de moradores nas comunidades organizadas em um conselho de todo o bairro e vários projetos sociais sendo alguns ligados a universidades16 ongs e grupos de tipo assistencialista mais clássico desenvolvendo trabalhos pesquisas e estágios17 Também são evidentes as relações de lideranças ou moradores locais com os vários partidos políticos que atuam na cidade e que sobretudo nos períodos eleitorais mas não só se fazem presentes através de eventos festas ou atividades de cunho social como por exemplo os cursos mantidos por uma deputada da bancada evangélica que compõe uma espécie de lista de apoiadores que em determinadas situações é acionada pelas lideranças Muito embora o cotidiano dos bairros populares esteja absolutamente vinculado à cidade formal18 de cuja dinâmica faz parte pelo trabalho pelo consumo pelos meios de comunicação pela mobilidade não conformando de modo algum uma espécie de gueto as fronteiras territoriais e simbólicas estão presentes no discurso dos de fora e dos da comunidade Por outro lado há fronteiras internas criadas mioloantroppmd 10022010 1440 77 78 por um sistema de classificação que não conseguimos senão vislumbrar entre as nove comunidades que compõem o bairro Monte Cristo A comunidade Santo Agostinho é considerada a mais temida e muitas vezes obscurecida pelos moradores que situam seus endereços no bairro Monte Cristo por outro lado a mesma pode ser referida em situações nas quais ao contrário de se invisibilizarem os moradores querem proteger se ou ameaçar alguém recorrendo ao próprio estigma que recai sobre eles Mario conta que um menino da Santo Expedito foi ameaçado em outro bairro ao que teria respondido não te mete comigo que eu sou da Santo Agostinho Este tipo de situação não é incomum e parece revelar o quanto a questão do território no caso o local de moradia é fundamental na conformação das identidades dos sujeitos e como estes lidam com estas identidades de formas diferenciadas Se para abrir um crediário numa loja comercial do centro da cidade ou obter um emprego os moradoresas costumam dizer que o bairro a que pertencem é Capoeiras bairro vizinho de classe média para resistir a provocações de que são alvo na rua ou na escola a referência ao Santa Cecília a Santo Agostinho ou a Santo Expedito pode ser acionada mesmo que não corresponda aos fatos É comum os moradores sublinharem os perigos existentes no local os meninos envolvidos com drogas as balas perdidas as investidas súbitas e sempre violentas da polícia os mortos e feridos desta guerra que povoa sites da internet19 falas de mioloantroppmd 10022010 1440 78 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 79 motoristas comentários de professores queixas de profissionais fotos e chamadas diárias nos jornais Os moradores também enfatizam o fato de ralharem e xingarem os meninos que passavam a fazer o que não deviam e a andar com quem não presta embora cientes do pouco efeito destas preleções diante desta irresistível escolha pelo dito mundo da criminalidade por jovens pobres urbanos Neste contexto a via sedutora do tráfico e da criminalidade parece se apresentar como uma opção possível e viável que permite acesso a lugares de poder e de reconhecimento embora marcada pela fugacidade Cabe destacar que também aqui as relações entre criminalidade e masculinidade são muito fortes20 embora as conseqüências e as marcas da violência sejam democráticas elas parecem envolver a todos sejam os que têm algum tipo de relação mais direta com o tráfico seja os que não compartilham senão o mesmo espaço de moradia uma memória de experiências vividas como ameaça permanente seja ela a perpretada pela polícia seja a praticada pelos próprios traficantes Também são referidas as batidas e correrias provocadas pela polícia e a luta demorada pela conquista de pedaços de uma área de lazer há anos prometida pela prefeitura Nestas crônicas ordinárias que destacam a violência policial e aquela promovida pelos traficantes também são referidas as grandes dificuldades de obtenção de trabalho de permanência nas escolas e em programas educacionais de acesso aos equipamentos coletivos dos percalços da mobilidade mioloantroppmd 10022010 1440 79 80 urbana de escassez de recursos entre outras expressões da condição de subalternidade que os pobres ocupam na sociedade e na cidade de Florianópolis em particular Percebemos mais tarde que nós também partilhávamos de certa dose de temor ao adentrar pelas ruelas da Santo Expedito Íamos para o Monte Cristo em grupo às vezes em três às vezes em duas imbuídas de certa cautela que o imaginário local suscita em torno da região Nossos familiares preocupavamse com nossas saídas diurnas e noturnas à Santo Agostinho cuja fama de perigosa e violenta é diariamente alimentada pela mídia local A propósito desta experiência Alba Zaluar se pergunta pode um antropólogo vivendo em cidades tomadas pelo medo de uma criminalidade violenta que afeta a todos mas particularmente ao segmento social ao qual pertence estudar aqueles que são a razão do medo21 Mesmo que temas como tráfico violência e criminalidade não fossem alvos de nossa pesquisa nos foi impossível analisar as narrativas acerca de sofrimento e aflição entre estes grupos sem atentar para o contexto social fortemente marcado por estes temas Neste sentido destacamos a mágoa e a raiva que os moradores sentiam por terem seu espaço transformado em depósito de lixo por pessoas de classe média alta que costumavam descartar em terreno em frente à comunidade coisas que não queriam mais em suas casas desde móveis e aparelhos estragados sem nenhuma serventia até restos de comidas coisas deterioradas e animais domésticos mortos de mioloantroppmd 10022010 1440 80 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 81 dentro de seus automóveis novos com vidros fumês e alta velocidade provavelmente por considerarem aquelas pessoas como abjetos22 de uma sociedade que de seu trabalho e de seus votos depende A maioria dos moradores do Monte Cristo são migrantes do interior do estado de Santa Catarina mas há quem tenha vindo do Maranhão como uma das lideranças comunitárias da Santo Agostinho da Paraíba como a moça que revende produtos de beleza a domicílio do Rio de Janeiro mas sobretudo do Rio Grande do Sul Paraná e São Paulo regiões que nas últimas décadas têm provocado a vinda de toda uma população migrante para a região metropolitana de Florianópolis23 Dentre as cinco interlocutoras da comunidade Santo Expedito a maior parte é migrante oriundas do interior do estado de Santa Catarina e cujas trajetórias revelam a recorrência de uma trajetória comum às classes populares no Brasil24 marcada pela migração constante de um lugar a outro em busca de trabalho e de moradia em geral através de redes sociais e sempre envolvidos em situações familiares Este é o caso de Antônia que relata ter vindo para Florianópolis após ter se separado do marido que era alcoólatra e que a ameaçava numa trajetória de migração que já começara antes gaúcha veio com a família para o oeste do estado tendo vivido em Blumenau quando casada Já Miranda conta que veio de Lages para a capital quando tinha dezessete anos diante do pedido mioloantroppmd 10022010 1440 81 82 de sua irmã biológica por ocasião da morte do pai biológico uma vez que vivia com uma família que até então a criara Anita veio de um município vizinho da Grande Florianópolis ao qual ainda retorna em visita de vez em quando Maria Dite veio sozinha de interior do estado para morar com parentes que já residiam na cidade em busca de um trabalho melhor Tereza era a única do grupo que era daqui mesmo tendo sido criada em outro bairro situado na ilha A grande maioria dos moradores vive esta instabilidade também no mundo do trabalho e as mulheres de forma particular muitas já trabalharam em vários locais desde empresas até casas particulares na qualidade de empregadas babás faxineiras ou cuidadoras em geral como Neusa cuja casa abriga uma espécie de creche comunitária25 necessária para as mulheres que trabalham fora e um dos objetivos sonhados para a Casa da Comunidade quando de sua construção Estes trabalhos tidos como femininos de certa forma são uma ampliação do trabalho invisível desenvolvido dia após dia década após década no espaço doméstico O abandono de trabalhos formais muitas vezes vistos como prazerosos bons e até vantajosos do ponto de vista econômico não raro devese à necessidade de cuidar de um neto de um filho de um parente consangüíneo de um companheiro doente ou que necessite de cuidados e vigilância caso dos adolescentes homens que podem cair em atividades ruins Tal abandono não parece de modo algum ser mal visto pelas pessoas da família e da comunidade ao contrário um forte sentimento de dever e de obrigação familiar a ser cumprido está aí presente mioloantroppmd 10022010 1440 82 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 83 Como sabemos os trabalhos desempenhados historicamente pelas mulheres ligados ao mundo chamado privado ou doméstico são fundamentais na reprodução da vida social na unidade familiar são desempenhados uma série de serviços diários sem feriado nem fimdesemana necessários à reprodução da força de trabalho Como apontam várias autoras feministas o trabalho remunerado depende em grande medida do trabalho nãoremunerado26 Em geral correspondendo a uma divisão sexual do trabalho mas nos casos de famílias chefiadas por mulheres como muitas das que compõem o universo social do Monte Cristo pudemos perceber claramente a importância que estes trabalhos não remunerados adquirem na vida das famílias bem como a concomitância dos dois tipos de atividades a famosa dupla jornada desempenhadas por várias das nossas interlocutoras mulheres que ocupam o papel de provedoras mais permanentes de suas famílias MUITAS FORMAS DE NARRAR RELATOS DE BASTIDORES CRÔNICAS DO COTIDIANO TRAJETÓRIAS INDIVIDUAIS E NARRATIVAS COLETIVAS As palavras formam os fios com os quais tecemos nossas experiências Aldous Huxley Foi neste contexto e no momento em que se desenrolava uma assembléia da comunidade na qual ninguém parecia estranhar a nossa presença que falamos sobre nossa pesquisa e de nosso interesse em saber se elaseles conheciam pessoas mioloantroppmd 10022010 1440 83 84 que estivessem padecendo de algum tipo de sofrimento de ordem psicológica mental nervosismo depressão ou algo deste tipo A repercussão foi imediata Maria Dite logo falou que era o caso da Julia e que não seria difícil uma vez que isto tem muito por aqui Com seu estilo discreto porém firme Miranda aproximouse de nós e falou com certo orgulho Eu posso ajudar sim porque eu sou a psicóloga da comunidade Pedro um dos poucos homens ali presentes fez um discurso contundente e muito articulado sobre o estigma da comunidade a dureza de ser pobre na cidade e sobre as diferenças entre as comunidades do bairro Após a reunião e nossa apresentação aproximouse de uma de nós e num depoimento em tese sobre outrem disse que poderia ajudar sim a que nós encontrássemos outras pessoas que estivessem passando por problemas já que isso referência aos problemas como os que tínhamos apresentado era novamente muito comum aqui Inaugurando a narrativa que chamamos paralela à narrativa coletiva oficial com que passamos a lidar diuturnamente neste universo Pedro falou de sua falta de vontade de sair de casa vontade de só dormir das dificuldades da vida nestas condições o fato de estar na perícia27 desta fase difícil em que se encontrava Assim a escolha das narrativas como aporte teórico e metodológico decorrente da concepção mais geral da pesquisa encontrou um campo fértil no contexto do Monte Cristo tanto na sua forma mais individualizada através das entrevistas e mioloantroppmd 10022010 1440 84 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 85 na forma coletiva e ritualizada as narrativas coletivas quanto nas conversas informais As pessoas falam muito e gostam de ser ouvidas e compreendidas neste sentido contrariam a previsão de Walter Benjamim acerca da decadência de arte de contar histórias na modernidade28 Num universo onde o letramento não se coloca como hegemônico a oralidade desponta como dimensão fundamental do cotidiano Trabalhamos com três tipos de narrativas o relato coletado em entrevistas na forma de itinerário terapêutico a narrativa coletiva feita em grupo sobre as origens da comunidade uma espécie de narrativa oficial do grupo e as narrativas paralelas conversas que ocorriam antes e após o momento de narrativa coletiva e que sempre aconteciam de forma individualizada Entendemos aqui narrativa como um processo de construção da linearidade histórica que compõe o indivíduo indivíduo este que emerge enquanto tal no ato mesmo de narrar o sujeito que narra não é o mesmo sujeito narrado a não ser como um resultado temporário deste É esse trabalho de transformação que reunirá todas as experiências e práticas narradas que lhes dará um sentido e colocará o sujeito que conta em uma posição diferente do sujeito que é objeto de sua narrativa29 Pudemos a partir desta noção refletir sobre as implicações que o ato de narrar tem na vida dos sujeitos bem como analisar os conteúdos destas narrativas e perceber as especificidades dos sofrimentos e perturbações neste contexto social mioloantroppmd 10022010 1440 85 86 ITINERÁRIOS TERAPÊUTICOS AS NARRATIVAS INDIVIDUAIS Na comunidade Santa Cecília como dito anteriormente os contatos ocorreram de maneira diferente utilizandose de uma espécie de escolta a agente comunitária residente do local foram realizadas as ditas entrevistas formais onde as trajetórias terapêuticas individuais formaram o centro das narrativas Aqui a narrativa enquanto possibilitadora de reatribuição de significados e propiciadora de compreensão a partir do tempo espaço em que as pessoas se encontram aparece como pano de fundo e suas narrativas por vezes emocionadas são vistas à luz de um sentido dado no momento em que se encontravam e de onde seria impossível desvincular suas trajetórias terapêuticas com suas histórias surgindo possíveis causas e explicações de fatos do passado que lhes eram imperceptíveis na época em que viviam tais experiências conforme as próprias interlocutoras afirmaram Nos relatos acerca das experiência de adoecimento apareceram com frequência alguns temas que destacamos como a experiência com médicos remédios e algumas situações de internação psiquiátrica a experiência com a violência que se estende como pano de fundo do bairro e os problemas envolvendo casa trabalho e gênero nos quais aparecem alguns impasses entre as esferas pública e privada30 Entre trocas constantes de remédios controlados e buscas por religiões diferentes encontramse a maior parte dos relatos sobre as trajetórias terapêuticas narradas individualmente pelas mioloantroppmd 10022010 1440 86 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 87 interlocutoras Se em alguns casos uma conversa resolve em outros casos a ida à igreja pode ser uma outra opção de alívio ou cura neste sentido Miranda enfatiza a dimensão da sociabilidade presente no espaço religioso Idas recorrentes a médicos também são relatadas e em quase todos os casos a figura do médico é criticada no geral eles são associados ao ato de prescrever receitas e vistos como pessoas inacessíveis que não escutam e portanto não entendem imaginário muito diferente daquele que é construído em relação ao psicólogo Os remédios são relatados ora como propiciadores de amenização dos males sentidos e ora como causadores de efeitos colaterais Falta de memória dor do estômago dor de cabeça insônia micções involuntárias levam a trocas constantes dos remédios ora por não fazerem mais efeitos ora pelos efeitos colaterais serem maiores que os supostos benefícios um campo de experimentação onde o remédio aparece como uma salvação um suporte ou um descaminho Joana às vezes os deixa de lado mas logo o médico a convence de voltar a tomálos Fiquei bem ruim daí não queria mais tomar os remédios Porque pra mim isso aí Eu não acredito eu não acredito nos remédios pra mim eu não acredito é a mesma coisa eu não sei tudo o mesmo eu sinto Eu sinto um monte de coisa ruim Como é que os remédios vão fazer Vão fazer efeito Joana 31 anos afastada do trabalho Amanda diz que houve época que tomava treze tipos de remédio parecia uma galinha comendo milho diz mioloantroppmd 10022010 1440 87 88 Entretanto teve que voltar a usálos Até um tempo atrás eu tentei fui parando aos poucos o médico me ensinou a ir parando eu tentei mas não consegui daí o corpo começou a pedir de novo enfrentei suadouros enfrentei assim dores horríveis pra tentar ficar sem que daí começou o psicológico a pedir muito a pensar muito só em morrer morrer morrer a ter crise de choro de choro daíAmanda 29 anos afastada do trabalho Três das interlocutoras passaram pela experiência de internação psiquiátrica das quais duas foram internadas por passarem a ter atitudes consideradas nocivas e agressivas por seus familiares Joana foi internada duas vezes por surtos psicóticos Vivian 31 anos não trabalha foi internada durante um mês por ficar agressiva Joana dá detalhes sobre os tempos em que ficou internada conta que deixou de tomar o remédio após a sugestão de um amigo para sair do regime de internação já que os remédios a deixavam dopada ao ponto de não conseguir conversar coerentemente com o médico Narra também os momentos de loucura dos quais lembra vagamente quando tentou envenenar seu marido com água sanitária e punhase a rir na janela enquanto ele tomava a sopa Se em tempos normais ela geralmente teme a tudo e a todos em seus surtos ela passa a representar a ameaça Internadas longe do olhar da família longe dos perigos e principalmente longe de causar perigos a narrativa de Joana que em seus surtos tornase violenta assemelhase nos relatos mioloantroppmd 10022010 1440 88 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 89 sobre a reação agressiva de Vivian ao ser confrontada com uma situação de grande impacto fúria essa que entra em contraste com a costumeira calma A violência dos atos das narradoras é considerada patológica anormal e pertubadora da ordem do lar e através da internação essa ordem é reestabelecida Sobre esta questão da internação um episódio vivenciado na Santo Expedito se mostrou ilustrativo em uma conversa descontraída sobre dietas Antônia diante de uma proposta que lhe parecia absurda replica em tom de brincadeira Está louca Se estiver não há mais o que fazer não aceitam mais ninguém na Colônia Santana31 Diante da surpresa das demais Anita reafirma que atualmente a Colônia Santana não aceita mais loucos revelando o conhecimento que tem do processo de desinstitucionalização trazido pela Reforma Psiquiátrica Sério diz Miranda Nossa mas como fica então ao que Anita responde Ah tem que ficar em casa mesmo reiterando a ideia apontada pelos familiares de Vivian acerca dos benefícios do recurso ao internamento em caso de crise Joana apresenta um discurso duplo sobre os remédios se por um lado afirma por vezes só ter conseguido sair do hospital psiquiátrico quando deixou de tomar os remédios e conseguiu ter uma conversa lúcida com o médico o convencendo a lhe dar alta médica por outro lado no decorrer de sua narrativa atribui seu estado atual às negligências passadas com os remédios ao mesmo tempo em que duvida da capacidade destes para solucionar seus problemas mioloantroppmd 10022010 1440 89 90 Daí foi indo foi indo se agravando e daí se agravou mais porque eu não tomava os remédios do jeito que era pra ter tomado Joana Interessante notar que nos casos considerados o medicamento não apareceu como propiciador de uma suposta cura entre suprimir sintomas e fazer sentirse melhor por um lado e trazer inúmeros efeitos colaterais por outro o recurso aos remédios parece simbolizar que a pessoa está vivendo um processo indesejado do qual pretende sair Além disso Joana assim como muitas outras usuárias das unidades de saúde mostram um agenciamento próprio quanto ao uso dos medicamentos diminuindo ou aumentando doses recorrendo a autopercepção acerca dos efeitos destes sobre si mesmas e compartilhando estas experiências com outras pessoas Esta apropriação do uso dos remédios envolve o costume de recomendar e aceitar sugestões de pessoas amigos vizinhos parentes que padecem de males similares Se por um lado a família aparece por vezes no lugar de acolhimento quando em casos de adoecimento por outro aparece como desencadeadora de alguns processos dessas doenças principalmente no que se refere a problemas com o marido e sobrecarga de cuidados com a casa e os filhos É em relação ao segundo argumento que se baseiam algumas das justificativas para a afirmação quase unânime de ser a mulher mais comumente afetada por casos de depressões mioloantroppmd 10022010 1441 90 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 91 Acho que na verdade nós mulheres que a gente quis ter as mesmas igualdades que o homem só que a gente esqueceu que a gente além de trabalhar e tudo A gente quer ter a igualdade só que a gente esqueceu que tem filhos Amanda Aqui se percebe a idéia de que uma das causas apontadas por elas como fonte de sua aflição seria a entrada das mulheres em um universo que seria mais propriamente masculino no caso o trabalho remunerado acarretando o que descrevem como uma certa negligência com os afazeres ligados à maternidade percebida como um fator importante de diferença em relação aos homens Os profissionais da unidade de saúde quando interrogados sobre qual seria a parcela mais atingida pela depressão e seus correlatos apontam em sua maioria para o público feminino resposta essa que segue ao lado da argumentação de que as mulheres buscam ajuda quando começam a sentir os primeiros sintomas enquanto os homens a procurariam quando o sofrimento está muito grave Também aparece nos seus discursos relações entre o fato de serem mulheres e as doenças em função de certas características que as tornariam mais passíveis de serem acometidas por sofrimentos psíquicos Esta ideia parece cara também a Miranda uma das interlocutoras para quem as mulheres são mais propensas a esse tipo de sofrimento devido às preocupações com a casa filhos e trabalho associando o fato de que a esfera doméstica é segundo ela um espaço estressante mioloantroppmd 10022010 1441 91 92 É a mulher A mulher sempre fica mais deprimida sabe Porque é a casa é filho então o trabalho né E o homem não sabe que o homem né não Ele não demonstra pode estar mesmo lá e eles nãoné E a mulher não a mulher é muito É por isso que tem que ter ter cabeça porque senão 32 Se Amanda por vezes atribui sua doença ao trabalho também a relaciona ao marido pois trabalhava por ambos e é comum em sua fala definir o trabalho como uma esfera masculina como se sua doença lhe tivesse acontecido por ter ultrapassado uma barreira que não lhe era possível atravessar Mas acho que é isso a gente querer Querer e ter que mesmo que não queira a mulher está assumindo todas as situações Os maridos os homens na grande maioria eles estão bem Não tem mais aquela cultura de antes de ter o alicerce da família isso mudou muito eu vejo assim Faltou ter a proteção que eu precisava e ainda quero Eu não desisti de ter a minha família mesmo tendo dois filhos de achar um companheiro que cuide de mim E não querer ser tão sabe Tão independente Porque eu acho que a mulher não tá preparada assim pra essa independência porque a gente querendo ou não a gente é muito mais sensível então a gente tá indo por um lado assim que querendo ou não a sociedade ta fazendo a gente ir mas que eu acho que a gente não tem capacidade psicológica pra isso Amanda grifos nossos mioloantroppmd 10022010 1441 92 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 93 Lisanda a agente comunitária de saúde que afirma que em sua microárea33 não há nenhum caso de depressão em homens associando os casos mais frequentes às mulheres acaba novamente construindo explicações para isso a partir de um entendimento da esfera pública como masculina Geralmente é mais com mulheres que acontecem elas começam a ficar agressivas com as crianças e acaba que as que perdem mais com isso né Porque infelizmente os maridos saem de casa né a mulher tá nervosa por qualquer motivo eles simplesmente saem ou brigam com a mulher faz qualquer coisa e as crianças ficam ali né todos os dias Eu acho que quem perde mais com isso são as crianças infelizmente são Porque a mãe se torna mais agressiva ou mais desleixada Lisanda grifos nossos Joana uma das interlocutoras conta um pouco de sua trajetória depressiva seus dribles ao excesso de medicamentos suas questões acerca do sentido da vida e da existência Tomei tantos remédios tanto Porque daí eu sou tão neurótica que pra mim nada nada é Mas não é que faz bem é que eu sou tão neurótica que nada é bom pra mim Nada Tomava paroxetina34 tomava fluoxetina35 tomava tudo Haldol36 Tomei tudo quanto foi remédio acho pra depressão eu já tomei Porque eu eu não tomava também eles trocavam e não adiantava porque daí eu não tomava Eu via tomava dois dias e aí dava dor no estômago ai não quero mais porque dá dor no estômago dor de cabeça ai não quero mais porque dá dor de cabeça Daí agora não quero mais viver Pra mioloantroppmd 10022010 1441 93 94 mim não tem mais né Não tem mais graça pra mim Não quero mais viver Porque não tenho Não tenho mais não tenho mais o que fazer Daqui a pouco a gente vai morrer mesmo Aí a gente tava até em pensando em arrumar a casa tava pensando Ai meu Deus que a gente vai construir né Pra que Pra que construir Sabe A minha vida Eu vivo assim eu não tenho sabe tu não tem esperança tu não tem sabe Não tem assim um Vejo um futuro assim pra mim sabe Que eu sofro muito Muito mesmo E não tem na minha cabeça não tem nada assim nada de positivo assim Não tem nada de positivo não vem nada assim Nada Que tipo assim os médicos não me dizem do que é ao certo né Não sei assim do quê que é Pra mim só pode ser assim porque meu marido é muito bom pra mim ele tem muita paciência comigo Porque já vai fazer 3 anos que eu tô doente assim e ele tem muita paciência comigo sabe Porque eu sofro demais assim é muito ruim é uma coisa assim eu É um sentimento assim muito ruim Porque no começo eu tinha muita assim eu chorava muito era mais de chorar e de ficar triste Aí como eu não me tratava eu achava que não Que não ia melhorar tipo um dia eu ia na igreja outro dia eu ia no centro espírita Outro dia eu ia sabe Tudo lugar eu ia e daí nunca E parava com os remédios Nesses tipo uns 2 anos eu fiquei nesse nesse Eu tomava remédio parava eu tomava remédio parava grifos nossos Vemos aqui a busca de várias formas de alívio por parte de Joana que procura uma explicação acerca das causas de sua mioloantroppmd 10022010 1441 94 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 95 doença e insatisfeita com a falta de respostas pretende ela mesmo avaliar os efeitos dos remédios Das cinco entrevistadas três contam casos parecidos de mulheres que se dedicavam muito ao trabalho e que passado um tempo passaram a desenvolver algum tipo de sintoma como fobia do local de trabalho muitas delas estando inclusive afastadas destes Observase aqui uma contraposição do que observou Maria Lúcia da Silveira com as mulheres nervosas entre as quais a esfera de sua perturbação estaria relacionada muito mais à casa ao âmbito privado do que à esfera do trabalho ao passo que os homens adoeceriam por problemas relativos à esfera pública37 Eu sempre lutei eu nunca quis ficar aqui no bairro sabe Daí por isso que eu trabalhava tanto guerreava tanto tanto tanto Tinha dias que ia trabalhar as sete e meia da manhã e voltava Passava a madrugada trabalhando voltava só no outro dia duas horas pra casa porque tinha que mudar a loja tinha quesabe Mas eu ia trabalhava sabe Pensava não eu tenho que tirar meus filhos daqui meus filhos não podem viver no meio do tiroteio essa era a minha luta Então agora com tudo isso eu tive que voltar a morar aqui na comunidade Amanda Trabalhava sempre desde os 15 anos eu trabalhei Sempre desde os quinze anos sempre trabalhei No super sempre trabalhei ótimo ótimo foi muito bom assim sabe Mas foi depois que eu fui lá pra esse lugar mioloantroppmd 10022010 1441 95 96 ali que começou Porque daí deu o estresse do o estresse do serviço que eu trabalhava o dia todosaía de lá cinco Entrava lá às sete e saía de lá às cinco seis horas tem vez que dez horas da noite mas aí eu já chegava em casa já o estresse de ver tiroteio ver morte ver um monte de coisa aquilo ali foi Foi vindo foi vindo aí depois eu comecei a ficar assim Joana grifos nossos Mirian Cristina Rabelo et all 1999 aponta que conforme sua pesquisa de campo os signos de normalidade são basicamente três desempenho de papéis sociais aparência e relação com os outros Sendo o primeiro associado frequentemente ao trabalho este aparece como a força em oposição a fraqueza estado de doença Na família como relação de reciprocidade relação essa que a doença acaba quebrando Amanda lamenta que antes da sua doença era ela a propiciadora de favores familiares e atualmente é ela quem depende de ajuda O fato de não trabalhar a incapacidade de prover seu sustento para ela também parecem ser sinônimo de fraqueza Ela relata que sempre almejava deixar o bairro por considerálo ruim para educar seus filhos Tendo desenvolvido fobia de trabalho viu seus esforços se desfazerem e por motivos de ordem financeira teve que voltar a morar na comunidade em que a mãe e o irmão moravam No caso aqui relatado as doenças aparecem não apenas como opositoras do trabalho como também acarretadas por esse mesmo quando ele é referido como fonte de prazer ou símbolo de independência Impossibilitadas de trabalharem por mioloantroppmd 10022010 1441 96 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 97 estarem doentes desenvolvendo as doenças por trabalharem muito a doença se mostra como uma opositora mas também como uma evasão do mundo do trabalho ANALISANDO ALGUMAS CATEGORIAS Diante da complexidade dos dados que foram observados em campo julgamos apropriado fragmentar os itinerários para fins de comparação e de análise buscamos a partir dos itinerários e das demais narrativas e observações compreender como a experiência social em torno do gênero e da saúde mental se estabelece BALAS DE CHUMBO NERVOS DE AÇO Um primeiro aspecto que parece ser elucidativo é a relação da violência com experiências de sofrimento Foi comum já nos primeiros contatos com a rede de pessoas indicadas por Miranda nos defrontarmos com relatos acerca da violência que atravessa o bairro e as próprias casas das pessoas que nele vivem Nos relatos das moradoras eou das profissionais da unidade de saúde que atende a região as histórias de doenças de tipo depressivo como ficar na cama o tempo todo não sair na rua não conseguir dormir ter pesadelos estão ligadas diretamente as cenas dantescas vividas pelos moradores em função do envolvimento dos filhos e parentes com a violência com o tráfico ou com o uso de drogas Ao elaborar uma explicação sobre sua depressão Joana encontra três causas sua negligência com o uso dos remédios mioloantroppmd 10022010 1441 97 98 excesso da rotina de trabalho e principalmente a violência presente na comunidade em que foi morar depois de casada Não sei a causa da depressãode repente pode ser do lugar que eu morei Eu tipo assim eu morava com a minha mãe e nunca tinha visto morte nunca tinha visto assalto nunca tinha visto briga E depois que eu fui morar lá eu vi muito disso né Eu vi muito tiroteio muita morte Eu achei que Daí a minha doença pode ter sido disso Daí eu fiquei assim né Sentia muita coisa ruim muita coisa de ruindade Fiquei no super tá 4 anos aí comecei a sentir essas coisas daí achei que era do super supermercado aí mas aí não não acho Fui pro médico perguntei pro médico e o doutor disse ai não Silvana não tens que ver do que é que é grifos nossos Não apenas as moradoras como também as profissionais de saúde fazem uma referência uma associação quanto ao fato do bairro ter um contexto violento que parece permear algumas experiências de sofrimento como narrado a seguir Então assim a questão da violência é uma questão importante aqui Presente sem dúvida Eu atendi uma vez uma mulher aqui na frente O filho dela morreu aqui na frente do Posto Uma dessas casas aqui às quatro da tarde quatro e meia com três tiros na frente dela na sala dela O cara entrou e matou o filhoDe 18 anos Ela estava Estava tomando café na mesa com o filho o cara entrou e matou Lili médica residente da unidade de saúde do Monte Cristo grifos nossos mioloantroppmd 10022010 1441 98 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 99 Embora os moradores demonstrem certo incômodo com a presença tão constante dos traficantes as maiores críticas locais se referem à polícia Aos policiais é atribuída a desordem a exposição das crianças ao perigo a tirar a comunidade de seu cotidiano pacífico Cláudia Fonseca38 aponta para essa mudança de perspectiva entre bem e mal onde o elemento policial é o elemento estranho aquele que traz o perigo e a desordem Vemos aqui como em vários outros contextos brasileiros uma situação na qual o Estado a quem caberia o dever de promover a ordem inclusive através do monopólio da violência39 assume outro significado percebe se haver uma dissociação entre a polícia e a ordem havendo também uma tentativa de deslegitimar as atividades policiais uma vez que os policiais são aqueles que já chegam com as armas em punho ao lado das crianças brincando na rua enquanto os traficantes mesmo invasivos acabam por adotar uma postura mais respeitosa com os moradores garantindo certa ordem do que a polícia uma inversão pois do que se entenderia costumeiramente por ordem O relato de outra moradora ilustra um pouco mais a influência do cotidiano marcado pela polícia nas experiências dos moradores Segundo conta é constante a invasão da sua casa e a ameaça com armas pela polícia em várias ocasiões o que diz lhe deixava muito nervosa e amedrontada Conta ainda que tem dificuldades para dormir para comer e está sempre ansiosa pois depois que seu filho começou a se mioloantroppmd 10022010 1441 99 100 envolver com o tráfico a polícia entra em sua casa sem pedir licença sem mandato judicial tendo sua casa assim invadida algumas vezes Relata que numa manhã dormia com a janela aberta em função do calor e acordou com uma pistola apontada para sua cabeça Parece claro que o contexto no qual as pessoas vivem interfere na constituição de suas subjetividades Como sugere Rosária Peruzzo Nós nos tornamos no que somos ou seja constituímos nossa subjetividade interagindo diariamente com uma heterogeneidade de processos individuais e coletivos os quais estão em constante movimento de construção e desconstrução E desta forma passamos a constituir sempre novas composições subjetivas40 É neste sentido que entendemos que os processos de subjetivação se constituem mediante uma infinidade de movimentos atravessamentos e desdobramentos que a vida cotidiana situada no espaçotempo de seu desenvolvimento apresenta CORPO E ESTÉTICA Entre as mulheres do grupo da Santo Expedito percebe se uma forte preocupação com a aparência peso corporal cabelos unhas e pele por exemplo e com a indumentária muitas delas pintando os cabelos com frequência bem como trocando informações sobre produtos de beleza Na ocasião mioloantroppmd 10022010 1441 100 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 101 de um dia das mães participamos de uma reunião na casa de Maria Dite que contou com a presença de uma representante de produtos cosméticos que segundo ela também apresentavam diversas funções terapêuticas conforme demonstrava enquanto nos mostrava seus produtos suas formas de uso e possíveis benefícios Nesta reunião também pudemos perceber o compartilhamento por parte das mulheres de saberes que fazem parte deste universo da cosméticaestética feminina e a importância em deter estes conhecimentos e adquirir os produtos muitas delas fazendo pequenas prestações para poder adquirilos Por outro lado são muitas as queixas relativas ao excesso de peso das dietas que não se cumprem de alimentos que não devem se ingeridos e de roupas que apertam mostrando um apreço por silhuetas mais magras Este último aspecto foi apontado também pelos profissionais de saúde com os quais conversamos como uma das queixas freqüentes apresentadas pelas mulheres que chegam ao posto de saúde em busca de ajuda um detalhe que nunca deixa de ser mencionado quando as pacientes solicitam alguma medicação ou quando o médico a prescreve revelando o peso que o mandato da beleza feminina nos moldes contemporâneos assume também entre mulheres de classes populares41 É interessante notar como para estas mulheres o corpo registra a experiência de vida e guarda ou evoca uma memória mioloantroppmd 10022010 1441 101 102 em um de nossos encontros Tereza mostra a enorme cicatriz que atravessa seu abdômen e que carrega a lembrança de uma cirurgia feita somente após seu marido consentir pois conforme nos conta ele não queria que eu fizesse pois não tinha quem fizesse as coisas em casa diz ela Antônia também conta em detalhes o processo de implante de um rim doado por sua filha descrevendo com riqueza de detalhes os processos pelos quais o mesmo fora retirado do corpo da filha e colocado em seu corpo numa narrativa que acentua a importância da consangüinidade e da relação mãe e filha elaa filha dizia se tu me deste a vida como eu que posso te ajudar a viver não vou fazer isto Ao falar da sociedade disciplinar Foucault vê o corpo enquanto materialidade do poder poder esse que se exerce sobre o corpo de muitas maneiras No caso em questão gostaríamos de enfatizar as estratégias de poder que por um lado constitui o corpo enquanto órgão de trabalho e por outro impõe um corpomodelo a ser seguido ou seja aquilo que Foucault entende como controleestimulação surgido historicamente em uma espécie de oposição às investidas por uma liberação do corpo42 O corpo ideal o corpo que trabalha o corpo que consome aparecem enquanto corpos que permeiam as práticas e as relações cotidianas propiciando formas de subjetivação próprias43 mioloantroppmd 10022010 1441 102 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 103 O SEGREDO DO PSICÓLOGO É cada vez mais freqüente espalharse em volta o embaraço quando se anuncia o desejo de ouvir uma história Walter Benjamin Chamounos atenção o uso corrente de termos como depressão estresse e neurótico que fazem parte do vocabulário cotidiano dos moradores de forma heterogênea e articulada as categorias de nervos estar ruim e não estar boa como vimos anteriormente e também o reconhecimento da psicologia como uma profissão dedicada a atuar nos casos de sofrimento e aflição Encontramos várias referências ao trabalho doa psicólogoa no Monte Cristo profissão conhecida das mulheres da Santo Expedito e dosas usuáriosas da unidade de saúde local que oferece serviço de atendimento psicológico reconhecida por Miranda que se orgulha de seu papel de psicóloga da comunidade buscada como apoio a um momento difícil como o caso de Maria Dite recomendado e custeado pelos seus atuais patrões Oa psicólogoa aparece como um personagem dedicado a ajudar as pessoas que estão passando por momentos difíceis escutando o que o sujeito tem a dizer e buscando razões para o sofrimento aspecto no qual se diferenciaria dos médicos cujo trabalho também valorizado se resumiria à prescrição de remédios Marília moradora do bairro nos conta ter atravessado vários períodos depressivos e que buscou ajuda nos remédios mioloantroppmd 10022010 1441 103 104 na terapia e nas conversas com amigasvizinhas Segundo ela tais depressões tiveram início após ela ter presenciado seu filho ter sido vítima de uma bala em uma briga que envolveu seu exmarido Ela conta que conversa muito com suas amigas a quem ajuda e com quem também compartilha suas angústias Na sua reflexão acerca deste processo Marília cita o trabalho do psicólogo que consultou refletindo acerca da particularidade de sua escuta ela conta que já fez tratamento com um psicólogo e diz ter entendido qual era o segredo dele de sua profissão quando ele a fez contar a cena do filho por umas quatro horas O segredo desta conversa seria que oa psicólogoa escutava a história inteira permitindo que a narrativa se desenvolvesse até o final pela narradora ao contrário das conversas com suas amigas as quais apesar de a escutarem interrompiamna muitas vezes interceptando sua fala com outras perguntas opiniões demandas e sobretudo aligeirando sua narrativa Se por um lado a experiência compartilhada pelas amigas permite a conversa e esta é importante no alivio da angústia por outro lado esta se coloca em geral como truncada diferenciandose da escuta psicológica Podese perceber neste sentido que ao lado da capacidade de narrarcontarcompartilhar com outras pessoas as próprias angústias está a capacidade de ouvir e acolher a angústia alheia por parte das mulheres O desejo de contarnarrarcompartilhar parece relacionarse com a plurificação da capacidade do mioloantroppmd 10022010 1441 104 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 105 sujeito de ordenação de práticas sociais e psíquicas ambas permeadas pelas noções e teorias sobre a angústia e suas terapêuticas por parte da comunidade44 Neste sentido Miranda conta como diversas mulheres vêm lhe procurar para conversar quando estão tristes deprimidas ou quando têm algum problema Ah Miranda preciso falar contigo preciso Aí começamos a conversar assim Foi Deus que mandou aqui porque tô indo me jogar debaixo do trânsito da Via Expressa agora Aí eu disse não não tu não vai fazer isso é uma mulher nova é bonita não tens como fazer isso Aí eu saí e conversei com ela larguei a louça tudo né e fomos dar voltas daí porque fiquei das 200 até as 600 horas foi sincromáticosic mesmo Dando volta né conversando conversando Aí depois ela assim ai foi bem melhor Aí ela foi pra casa né foi pra casa foi aí eu disse assim ó quando tu quiser me procura que né Ela assim ai não quero nem imaginar se não fosse tu hoje mesmo eu eu me eu ia morrer Eu ia morrer hoje né Aí eu assim quando tu quiser tu me procura tu pode vimvoltar que eu vou estar sempre disponível pra te ajudar E assim ó essa semana também veio um Às vezes eu preciso mais do que elas também grifos nossos É importante observar que Miranda recorre a tal terapêutica ela mesma nos momentos em que atravessa períodos em que está mais pra baixo mais triste fato esse que pôde ser observado durante nosso campo quando sua mioloantroppmd 10022010 1441 105 106 sobrinha foi alvo de uma bala perdida no bairro Observamos que esta interpretação que chamamos de terapêutica local aparece em outros relatos como o de Marília que acentua a importância da conversa com as amigas Os lugares de fala e de escuta que configuram a conversa são circulares e compartilhados referindose a experiências sociais comuns nas quais um dia o sujeito pode estar mal precisando ser escutado e no outro pode assumir a função do escutador A conversa tão cara a quem dela necessita pode possibilitar o alívio da angústia tendo assim um valor terapêutico Esta dinâmica que denominamos de terapêutica está presente na fala de um educador da Santo Agostinho ele afirma que muitas das participantes do grupo de mulheres da sua comunidade autodesignadas como depressivas e medicalizadas via unidade de saúde encontraram suporte e alívio nas rodas de conversa encorajando muitas delas a abandonar os remédios CAPTURADAS PELAS INTERLOCUTORAS AS NARRATIVAS COLETIVAS O mérito da informação reduzse ao instante em que era nova Com a narrativa é diferente ela não se exaure Conserva sua força e é capaz de desdobramento mesmo depois de passado muito tempo Walter Benjamin Chegamos ao espaço público que a Casa da Comunidade representa na Santo Expedito em função da veemência de nossa principal interlocutora Miranda que desde o início de nossas conversas incluindo as telefônicas reiterava seu desejo de mioloantroppmd 10022010 1441 106 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 107 organizar um chá da tarde no qual pudessem participar várias pessoas que estariam segundo ela precisando de apoio Ela reiterava sempre a importância da fala e da conversa nos seus trabalhos como psicóloga da comunidade frisando que a conversa com as pessoas com aflições que a procuram tinha efeitos terapêuticos e se queixava da falta de conversas desse tipo dentre as pessoas da comunidade A gente devia fazer um tipo de um chá e convidar essas pessoas que a gente vê assim né Aí faz uma roda e fica conversando Que é que a pessoa cada um na sua casa assim elas não tem aquele sabe Eu acho que tinha que ter assim pelo menos um encontro uma vez por mês Eu acho que tinha que ter um encontro assim de mulher né Eu acho legal Que muitas pessoas precisam muitas né Que trabalham a semana toda e precisa daquilo Só Muitas não trabalham e aídepois ficam só ali na casa é aquela coisa né Esse negócio de casa estressa muito né Então é bom pelo menos ter um encontro alguma coisa né assim uma vez por mês Eu acho legal Aí a gente faz um encontro daí começa a conversar É bom pra pessoa Começa a rir um monte né ri conversa eE a pessoa já sai bem diferente daí também né já é outra pessoa quando sai dali Vai ser bom para vocês também Miranda Para Miranda um encontro para conversa ou desabafo entre amigas aparece como uma maneira potencial de auxílio nos problemas enfrentados ou seja a conversa aparece como mioloantroppmd 10022010 1441 107 108 um fim terapêutico ideia que é compartilhada por outras pessoas do bairro A sua interpretação acerca de como resolver problemas psicológicos envolve uma dimensão religiosa e social postulava que quando ela mesma estava mal tinha que dar uma volta ir a igreja sair de casa encontrar pessoas e conversar Muita gente tem problemas que podem ser auxiliados com a conversa referindose a problemas como desemprego trabalho família maridosaúde Miranda ocupava um lugar peculiar no grupo de mulheres não era uma das lideranças do grupo de mulheres organizados na comunidade e sua relação com o processo de ocupação parecia um tanto obscuro Observamos que ao contrário das demais mulheres ela era a única que não possuía casa própria e que mudanças de endereço e de telefone eram bem mais frequentes com ela do que com as demais Assim deixamos de lado nossa busca de itinerários terapêuticos individuais e passamos a marcar novos encontros conversas ritualizadas mediadas por comidas e bebidas preparadas por todas Estes encontros permitiram a vivência de um tempo a parte fora das experiências cotidianas Nestas conversas o passado surgia como mediador de um tempo out por diversas vezes como o tempo da glória vivida tempos da ocupação da felicidade agora perdida com o distanciamento das relações de outrora vistas como muito estreitas próximas permeadas pela dimensão do prazer de viver que hoje parece distante e marcadas por muitas esperanças Entendemos isso mioloantroppmd 10022010 1441 108 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 109 não como um desvio ao assunto proposto mas que narrar a ocupação era também uma forma de falar de si e que através das narrativas das experiências passadas muito do que elas vivem hoje também estava sendo revelado A roda de conversas passou a ter um lugar privilegiado na nossa pesquisa por entender que se tratava da forma como estas mulheres haviam optado para falar de si e que tínhamos de fato levado a sério a proposta de ouvir o que queriam dizer Antônia sempre era chamada para estas ocasiões parecendo depender dela e de Miranda o início das conversas embora Anita ocupasse também um lugar fundamental e legítimo no momento de relatar os vários e complexos eventos que compuseram o processo da ocupação45 Tanto Antônia quanto Miranda partilhavam da idéia de que os encontros seriam produtivos para todas as mulheres sublinhando que nós estávamos incluídas nestes benefícios Antônia lembrava que nós também teríamos que contar alguma coisa já que queríamos ouvilas com tanto afinco Tratavase a nosso ver de um convite para participar daquilo que Benjamin chama de comunidade de ouvintes e que parece fazer parte da terapêutica local Assim passamos a freqüentar a casa comunitária local onde as mulheres se reúnem para realizar as atividades de trabalho espaço próprio do lazerlabor e as sessões de trabalho manual nas máquinas de costura e teares foram substituídas diversas vezes por uma roda na frente de comes e bebes mioloantroppmd 10022010 1441 109 110 A comida apareceu aqui como também observou Soraia Simões46 em seu trabalho como uma mediadora importante para a conversa talvez apontando para uma situação de maior igualdade ou de cumplicidade condições que nos faz mulheres com uma provável atribuição de gênero nestas artes do cozinhar que se manifestam nas conversas suscitadas pelas diferentes comidas Neste momento éramos iguais apesar das diferenças sociais marcadas pelo papel que forçosamente ocupamos como pesquisadoras professoras eou psicólogas47 Muitas vezes concorrendo com outras atividades pré agendadas supostamente mais importantes os nossos chás da tarde pareciam ter certa popularidade as mulheres nos cobravam inclusive porque havíamos sumido no período das férias Nesse espaçotempo à parte nossos encontros foram focados nos relatos coletivos havendo narradoras oficiais do grupo no entanto houve espaço também para as conversas individuais Quando em grupo de certa maneira todos os assuntos podiam ser discutidos mas não de maneira pessoal as referências à sexualidade de Maria Dite por exemplo costumava aparecer com freqüência mas sempre com tom jocoso Quando em conversa paralela o clima mudava o momento de uma conversa particular se mostrava como abertura para confidências acerca dos nervos de estar mal de não estar boa ou estar ruim naquele momento de estar estressada ou de precisar de uma psicóloga mioloantroppmd 10022010 1441 110 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 111 Porém se estes relatos mais confidenciais ocupavam os bastidores as narrativas que acabaram ocupando o lugar central destas rodas de conversa de modo algum podiam ser confundidas com desabafos previstos inicialmente Eram relatos dos tempos da ocupação os tempos em que como anunciou Maria Dite sob a aquiescência de todas elas eram felizes e não sabiam Através da fala de Antônia que compartilha com Anita o lugar de narradora no grupo ficamos sabendo então de como a comunidade se formou a partir da ocupação no dia que antecedeu o Dia das Almas Finados em 1990 Ela conta como chegaram a ter a coragem necessária para entrar no movimento encenando com o apoio da mesa de um copo e do silêncio absoluto de todas a sua volta como se convenceram a participar da luta Se tem um copo de leite aqui que ninguém vai beber e que vai estragar e você está do outro lado da mesa você não vai vir pegar Se não tomar ele vai estragar A mesma coisa é da terra é pra ser de todo mundo não só de alguns Tu vai dizer que isto é um roubo Não é Antônia encenando a fala de um dos principais assessores do movimento Antônia reportase à noção de justiça social que marcou boa parte dos movimentos sociais na época e que foi decisiva na sua adesão à luta pela terra naquele momento em que todas enfrentavam enormes dificuldades para pagar aluguel ou viver de favor e de forma inconstante com parentes mioloantroppmd 10022010 1441 111 112 A gente achava que tinha que ter habitação para baixa renda em Florianópolis A primeira ocupação foi a Novo Horizonte e felizmente a segunda foi a nossa Nós nos conhecemos na preparação da ocupação éramos 70 famílias e ficamos em 48 Depois faltou muita gente muitos desistiram Mas nós fomos preparados pra ocupar bonitinho com arquiteto medindo terreno com cordão com piquete com tudo grifo nosso Anita Assim contrariando parentes e patrões escondendo seu envolvimento com o Movimento usando nomes clandestinos e desafiando autoridades e leis as mulheres emergem como heroínas deste tempo em parte já olvidado que de certa forma nossa busca parecia revivificar Anita reitera a importância que elas tiveram na vinda das demais famílias que iriam participar da ocupação num complexo e silencioso processo de organização que não podia ser visibilizado sob pena de prejudicar a luta Também destacam a importância de manteremse firmes na ocupação mesmo assim muitos haviam desistido diante do medo que a luta evocava Na noite da ocupação quando eu vi tinha oito carros da polícia E o Moisés estava lá na frente de mãos abertas na frente da polícia que veio para bater e o pessoal falou agora vocês vão pro terreno agora ou esquece a ocupação Uns lotes estavam marcados outros não era um salvese quem puder Aí a gente descobriu mesmo o que era uma ocupaçãoAnita mioloantroppmd 10022010 1441 112 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 113 Os homens aparecem nas narrativas ora como coadjuvantes ora como irresponsáveis são maridos de algumas namorados e filhos que apoiavam a decisão das mulheres em participar e depois em permanecer na ocupação outras vezes a eles eram atribuídas falhas como a de Mário que teria dado bolo já no momento da vinda dos caminhões para o local Marcamos um encontro e ele não veio depois ligou de outro lugar e tivemos que ir atrás dele de novo Já naquele momento segunda estas narrativas são as mulheres que aparecem coordenando o tráfego dos caminhões que traziam as mudanças dos ocupantes O meu caminhão teve que dar uma volta e ir buscar a mudança do Mário que tinha se perdido por aí Maria Dite Relatam o caso de um incêndio que ocorreu num barraco durante os primeiros meses de ocupação em que um dos homens alcoolizado nem percebera que o local estava incendiando Elas o teriam salvado salvando também o seu filho ainda bebê de um berço quase em chamas Os homens aparecem também como objetos de desejo como o caso de alguns policiais que apesar de seu papel repressivo no acampamento teriam sido facilmente seduzidos pela conversa e pelo café quentinho oferecido pelas mulheres ficando assim amigos da ocupação e interessados por algumas delas Esta aí quase que arrumou um marido contam entre risos e relatos detalhados sobre Maria Dite que não nega seu papel naqueles fatos nem esconde sua satisfação em ter sido simpática e atenciosa com aqueles homens policiais que coitados passavam a noite sozinhos na ocupação mioloantroppmd 10022010 1441 113 114 Os relatos detalhados do processo de ocupação destacam a atuação das mulheres a coragem necessária para ocupar a persistência fundamental para permanecer na ocupação em função das condições precárias do esforço e do jogo de cintura que o acampamento exigia seja para acessar a água proteger se de intempéries como para negociar com os vizinhos geralmente hostis às suas presenças aprender a participar das reuniões aprender a falar com as autoridades e com a imprensa Sublinham também as dificuldades de conciliar estas atividades com as atividades costumeiras como cuidar de crianças da casa trabalhar fora Quando da obtenção da área da comunidade foi necessário trabalhar nos mutirões e acompanhar a construção das casas Éramos muito unidas foi uma expressão que escutamos várias vezes nos tempos iniciais da ocupação onde todos se ajudavam onde exerciam mais o papel de comunidade do que de famílias depois que mudaram enfim para as casas novas as vidas se distanciaram afirmando que tal união acabou se desfazendo com o passar dos anos A ocupação aparece assim não apenas como um processo político mas também como uma época onde o coletivo foi prioritariamente vivenciado uma época não apenas heróica mas de vivências compartilhadas significando não apenas a luta pelas casas enquanto materialidade mas da construção de lares interconectados ou seja de redes sociais Este parece ser o significado maior da ocupação e da criação da comunidade Na mioloantroppmd 10022010 1441 114 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 115 narrativa de Anita destacase não apenas a presença das assessorias desde irmãs padres e pastores até militantes ligados a partidos de esquerda e sindicatos mas o desafio que as conversas com as autoridades lançavam e que implicava num aprendizado em termos de fala e de representação O que foi dito de besteira naquela reunião falava todo mundo junto foi aqui que o subprefeito disse nós vamos mandar colocar a polícia em cima de tudo pois são tudo bandidos gente que tá num ginásio é tudo de fora bandido que tava ali nem nome têm porque a gente não podia dizer o nome Eu disse um nome de uma prima que me veio na cabeça na hora do nervoso não podíamos revelar nosso verdadeiro nome e ele pediu para soletrar direitinho Eu disse como o senhor viu nos somos organizados e vamos nos reunir e depois a gente vai pra comunidade fazer uma reunião e conversar com o pessoal Ele disse então vão e voltem em dez minutos Pois nós fomos lá e só voltamos quatro horas mais tarde Ele tava bufando E disse eu não falei pra voltarem logo Agora são quatro da manhã Eu olhei e disse a gente não gostaria de falar eu tava chorando mas escolhemos um representante o advogado do MST que vai falar em nosso nome Anita destaca a importância dos assessores neste processo e de como uma narrativa que fosse compreendida pelas autoridades se mostrava muito importante para a conquista da terra e a construção de um sujeito político o que mioloantroppmd 10022010 1441 115 116 reitera a idéia de que a constituição do sujeito seja ele individual seja ele coletivo como aqui apresentado passa necessariamente pelo uso da palavra e pelo plano discursivo e narrativo SENTIDOS DA NARRATIVA SENTIDOS DA OCUPAÇÃO A narrativa da ocupação voltou à tona diversas vezes inclusive durante uma das crises que envolvia o grupo nas suas tentativas de dar conta dos trabalhos coletivos desenvolvidos pelo mesmo A propósito do desejo incansável de contar a mesma história acreditamos que o desejo de narrar os tempos da ocupação justamente no momento desta crise nos trabalhos comunitários mais importantes bem como a violência cruel e desorganizadora está relacionado com o lugar que ocupa na dramaticidade da vida da qual fazem parte os momentos de crise e desânimo e o papel das narrativas neste processo As narrativas podem ser entendidas como ordenadoras da experiência e como processo que lhe concede um sentido mas também fazem parte do processo de situar o sujeito no mundo nesse duplo de construir e ser construído por determinadas experiências Assim escolher e narrar um determinado evento já pressupõe que a narradora o faça sobre os significados que isso tem para ela Não que a importância desta narrativa esteja em representar o que aconteceu ou o que foi experimentado mas em ressignificálo através de uma ação o narrar Também não trata apenas de uma interpretação mioloantroppmd 10022010 1441 116 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 117 mas também de sua constituição Como observou Langdon entre o povo Siona a narrativa com um papel análogo ao rito Nas narrações de sua literatura oral ou em suas narrativas pessoais os siona criam e recriam seus modelos de realidade e também fornecem modelos para a ação48 Se a história da ocupação tomou conta por um tempo da agenda já apertada das mulheres os encontros não aconteceram para falar de assuntos tradicionalmente tidos como femininos como família saúde gravidez e partos nos quais se observam processos de aprendizagem troca de segredos e compartilhamento de experiências como observam estudos feitos por Cláudia Fonseca Sônia Maluf entre outras49 mas sim para contar da ocupação narrativa central que versava sobre política poder justiça e lutas coletivas incorporando dimensões ligadas à família aos trabalhos domésticos à sexualidade ao corpo O esforço de comparar os tempos de hoje com os tempos da ocupação parece corresponder ao que observou Francisco Canella50 de um momento altamente politizado dinâmico e rico em expectativas que marcou os primeiros anos que se seguiram à ocupação seguiuse um processo de desmobilização generalizada no qual a privatização da vida e o refluxo dos projetos coletivos passaram a predominar Certa nostalgia também se relaciona com um tempo em que todas eram jovens tinham filhos pequenos ou ainda eram solteiras A memória cerne das narrativas de outrora é uma reconstrução fortemente seletiva desde o mioloantroppmd 10022010 1441 117 118 presente de um tempo passado e nos trabalhos da memória a tendência à nostalgia se coloca como quase inevitável51 A possibilidade de contar suas histórias de vida neste caso uma história de vida coletiva e politizada lhes confere um lugar de protagonismo um estatuto de sujeitos políticos sujeitos coletivos que atuaram no espaço público de forma corajosa e ousada A expressão éramos felizes e não sabíamos sinaliza para a percepção que as mulheres parecem ter deste sujeito coletivo que se diluiu ou enfraqueceu tanto por suas peculiaridades comuns às ações coletivas que tendem a ser fluidas e instáveis quanto em função do contexto social contemporâneo CONSIDERAÇÕES FINAIS As narrativas das mulheres do Monte Cristo sobre suas experiências de aflição e sofrimento localizam essas vivências muito mais nas suas experiências individuais e sociais do que em explicações de tipo essencialista presentes em várias políticas públicas como relacionadas ao ciclo de vida biológico ou ainda com heranças genéticas ou predisposições naturais para os sofrimentos52 Nas explicações dadas por essas mulheres para suas depressões angústias desejo de dormir o tempo todo ou morrer logo destacamse aquelas que apontam para o contexto social em que estão inseridas Embora a categoria depressão seja conhecida e usada eventualmente pelas mulheres cabe destacar que ela aparece mioloantroppmd 10022010 1441 118 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 119 junto de outras expressões como nervos não estar bem da cabeça estar ruim estar passando por dificuldades esta última parecendo indicar um estado comum que qualquer pessoa pode atravessar em algum momento da vida pois deve se a situações de difícil solução e para cuja mitigação a conversa e o desabafo com uma vizinha ou amiga podem contribuir Observouse a valorização dos espaços de conversa coletiva por parte das mulheres que são a ampla maioria nos trabalhos de tipo comunitário mas também a valorização da presença dos profissionais ou mediadores externos em espaços coletivos sejam eles profissionais de saúde ou educadoresas que atuam em vários projetos nesta região que parece contrastar com a medicalização mais volumosa nos bairros do interior da ilha onde grupos comunitários parecem não ter tanta centralidade na vida cotidiana das pessoas É visível que os processos de subjetivação dos e das moradorasmoradores do Monte Cristo estão marcados por circunstâncias drásticas e trágicas e parece que a tentativa de falar destas situações que se repetem nos relatos individuais e coletivos expressam a importância do falar e de colocar em palavras o que apesar de corriqueiro não se configura como normal Não nos parece normal ver o filho sendo baleado na mesa da cozinha nem é normal ser acordado com um revólver na cabeça Acreditamos que neste caso a forma repetida e recorrente com que as dimensões mais sórdidas da contemporaneidade são narradas pelas pessoas é além de uma mioloantroppmd 10022010 1441 119 120 história que merece ser recontada também uma tentativa de ordenar uma realidade trágica e fortemente desorganizadora com que um cotidiano já marcado pela precariedade se depara na medida em que é alvo de suspeita escárnio e estigma Por outro lado as narrativas coletivas que versam sobre o tempo da ocupação são narrativas heróicas que falam dos poderes das mulheres e de sua constituição enquanto sujeitos coletivos e políticos algo que nos últimos anos parece ter se perdido no emaranhado da vida cotidiana e no contexto mais geral de despolitização e refluxo das lutas populares urbanas Talvez por isso o desejo de contar esta história tenha se sobrepujado as outras atividades comunitárias pois a partir deste presente talvez mais dificultoso recontar esta história era uma forma de falar do tempo em que elas eram felizes e não sabiam NOTAS 1 Expressão que tem se popularizado entre profissionais de saúde e de educação observáveis em documentos e programas sociais mas que aqui não será problematizado 2 O que não significa que todas consumam esses medicamentos pois tal como observou Maria Lúcia da Silveira em sua pesquisa em muitas situações observase o costume do estocamento domiciliar de medicamentos Silveira observou um fenômeno similar ao que vimos em vários contextos etnográficos desta pesquisa o fato de que as pessoas guardam em casa várias caixas de remédios controlados cuja aquisição só pode ser feita através de mioloantroppmd 10022010 1441 120 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 121 prescrição médica Estes pequenos estoques parecem ora ter um efeito tranqüilizador para os sujeitos em vista da dificuldade de obtêlos ora como objeto de troca entre vizinhas e pessoas que padeceriam do mesmo malidentificado pelo consumo do mesmo medicamento Silveira 2000 3 Itinerário terapêutico entendido como o resultado de um determinado curso de ações uma ação realizada ou o estado de coisas provocado por ela Estabelecido por atos distintos que se sucedem e sobrepõem o itinerário terapêutico é um nome que designa um conjunto de planos estratégias e projetos voltados para um objeto preconcebido o tratamento da aflição Rabelo 1999 4 Os itinerários terapêuticos e as entrevistas foram gravados individualmente ao passo que as narrativas coletivas e as conversas informais foram anotadas em diário de campo e num segundo momento as narrativas coletivas sobre a ocupação também foram gravadas 5 Canella 2007 Essa questão será retomada adiante 6 A cidade de Florianópolis situase fundamentalmente em uma ilha mas tem uma parte continental O acesso atualmente se dá via aérea e via terrestre nas duas pontes de concreto que ligam o continente e a Grande Florianópolis a parte insular na qual se situam as famosas 42 belas e paradisíacas praias bem como o núcleo urbano da cidade 7 Tornquist 2003 8 No primeiro capítulo de A máquina e a Revolta Alba Zaluar relata detalhadamente como lidou com as demandas de cunho mais clientelista e pessoal dos grupos com que se envolveu com uma consciência muito clara e atual a nosso ver dos limites de seu trabalho naquele contexto 2001 mioloantroppmd 10022010 1441 121 122 9 Não entraremos aqui na discussão acerca das relações entre pesquisa e ativismo que se colocaram ao longo do trabalho de campo dada a complexidade que tal tema envolve porém salientamos que nos parecia fundamental não confundir as dimensões da pesquisa mesmo com seus elementos intrínsecos de reciprocidade com outras formas de apoio à comunidade num sentido mais local ou no sentido político mais amplo Uma reflexão instigante sobre os desafios destas atividades na região pode ser ver em Canella 2007 10 Adotamos nomes fictícios para as pessoas e também para as nove comunidades que compõem o bairro Monte Cristo por razões éticas 11 Entendemos que a dimensão ética não se restringe a interlocução formalizada entre pesquisadora entrevistadoas que pode servir como um cheque em branco como diz Luiz Roberto Cardoso de Oliveira que liberaria o pesquisadora de uma vigilância permanente em termos da dimensão ética Langdon Maluf e Tornquist 2008 12 Utilizamos aqui o termo comunidade no sentido êmico mas sabendo da polissemia do mesmo conforme analisou Canella os sentidos locais desta categoria em geral pretendem indicar uma diferença com o termo favela pelo qual vistos de fora costumam ser designados chamando atenção para o sentido mais corrente que implicaria na idéia de coabitação de um mesmo espaço e em vivenciar um cotidiano comum marcado por problemas e dificuldades embora também possa indicar noção de comunidade presente entre as lideranças e assessores ressaltase a idéia de união o sentido político a união em torno de um objetivo e a negação mioloantroppmd 10022010 1441 122 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 123 do Estado em um primeiro momento marcado pela forte presença de setores da Igreja Católica Canella 2007 13 O movimento dos semteto surgiu em Florianópolis no final dos anos 80 e início dos 90 a partir de uma onda migratória de pessoas de baixa renda que se depararam com dificuldades ligadas à moradia Em torno desta situação se articularam vários setores da sociedade entre eles facções da igreja católica que passaram a organizar entre outras coisas algumas ocupações urbanas Ver Franzoni 1993 e Canella 2007 14 Sinônimo de traficante de drogas termo retirado de uma novela da Globo e utilizado pela interlocutora em tom jocoso 15 Benjamin 1986 16 Miguel e Fortes 2007 17 Esta situação não raro leva a um congestionamento de mediadores ou pesquisadores no bairro sendo comum portanto que em muitas reuniões e grupos estes estejam presentes em maior número do que os próprios moradoresas situação que merece uma reflexão a parte 18 Chamamos aqui cidade formal no sentido daquela parte do território urbano que é visibilizada urbanizada contando com equipamentos coletivos em melhor estado do que os que encontramos nas áreas ditas periféricas e empobrecidas 19 Monte Cristo é um bairro periférico localizado na região continental de Florianópolis Os índices de violência são considerados os maiores de Santa Catarina Ou ainda Bairro que abriga diversos grupos de Pagode e Rap como Código Negro Sistema Urbano entre outros Wikipedia acesso em 26112008 ou É uma realidade caracterizada por sinais de degradação da condição humana Portal Social acesso em 26112008 mioloantroppmd 10022010 1441 123 124 20 Zaluar 2004 21 Zaluar 1993 p 137 22 Abjeto é um processo discursivo que relacionase a todo tipo de corpos cujas vidas não são consideradas vidas e cuja materialidade é entendida como não importante Butler 1996 ou seja corpos aos quais não são conferidas importância ontológica ou política 23 Baeninger Rosana 2007 24 Durham Eunice 1984 25 Creches que funcionam em bairros nos quais o poder público não chegou e que funcionam na casa de mulheres que se propõem a cuidar das crianças com certo subsídio do Estado e que caracteriza as políticas neo liberais de desresponsabilização com direitos sociais universais relativos a educação infantil nas últimas décadas no Brasil Campos 2007 26 Mathieu 1991 Sorj 2004 Paulilo 1984 entre outras 27 Estar na perícia e ou estar encostado significa estar afastado do trabalho por motivos de saúde e recebendo benefício do INSS 28 A arte de narrar caminha para o fim Tornase cada vez mais raro o encontro com pessoas que sabem narrar alguma coisa direito É cada vez mais freqüente espalharse em volta o embaraço quando se anuncia o desejo de ouvir uma história É como se uma faculdade que nos parecia inalienável a mais garantida entre as coisas seguras nos fosse retirada Ou seja a arte de trocar experiências Benjamin 1983 p 57 29 Maluf 1999 p8 30 Cf também relatório de PIBIC de Monteiro 2009 31 Colônia Santana é uma das principais instituições psiquiátricas de Santa Catarina situada próxima de Florianópolis e muito conhecida da população como uma casa de loucos mioloantroppmd 10022010 1441 124 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 125 32 Este aspecto aparece também em Silveira 2000 quando argumenta que na visão das próprias pacientes o nervoso aparece indistintamente entre homens e mulheres e que no entanto as mulheres têm mais facilidade para exteriorizar seu sofrimento por ser socialmente aceitalegitimada para isso enquanto os homens tem a sua disposição um arsenal maior de válvulas de escape para as suas tensões cotidianas 33 Segundo o Programa de Saúde da Família PSF as equipes de saúde da família organizam seu trabalho tendo como base o distrito sanitário compreendido por microáreas que o compõem 34 Antidepressivo inibidor seletivo da recaptação de serotonina Kaplan et all 1997 35 Antidepressivo da classe dos inibidores seletivos da recaptação da serotonina IDEM 36 Nome comercial O princípio ativo é o haloperidol um antipsicótico IBIDEM 37 Silveira 2000 38 Fonseca 1993 procura discutir as concepções de violência em classes populares ao mostrar como esta é uma noção que acaba sendo flexível assim como as de bem e mal e atribui à classe média a tentativa de fazer valer um discurso moral que negligencia como fruto de ignorância as experiências e simbolismos das classes populares 39 De acordo com Max Weber o Estado reclama para si o monopólio legítimo do uso da violência física ou seja cabe ao Estado tanto o exercício exclusivo da violência quanto o monopólio da prescrição e interdição desta Mas isso não significa que toda e qualquer violência cometida pelo Estado seja legítima estando o Estado mioloantroppmd 10022010 1441 125 126 nas sociedades modernas vinculado nos preceitos do sistema legal A violência é empregada pelo Estado visando promover a ordem Weber 1997 Aqueles que estão autorizados ao uso da violência o fazem em circunstâncias determinadas em obediência ao império da lei Adorno 2002 p274 40 Peruzzo 1999 p56 41 Este aspecto aliás aparece nas entrevistas com profissionais e conversas com usuárias em outros bairros e unidades de saúde nos quais a pesquisa Gênero saúde mental e subjetividades foi desenvolvida 42 Convém enfatizar que o poder entendido como relação de forças não é aceito passivamente mas incorporado pelos indivíduos Foucault1986 43 Para Focault o controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia mas começa no corpo com o corpo Foi no biológico no somático no corporal que antes de tudo investiu a sociedade capitalista O corpo é uma realidade biopolítica Foucault1986 p80 e enquanto tal passível às normatizações que a medicina passou a imputarlhe a medicina é uma estratégia biopolítica idem 44 Como sugere Bezerra 2001 45 A ocupação que chamamos aqui de processo ocorreu em algumas etapas preparação e organização dos interessados em participar a ocupação propriamente dita que iniciou no feriado de Finados de 1990 e se estendeu por cerca de um ano e mudança para as residências próprias numa área próxima Durante o período de assentamento as pessoas moraram em barracos moradias provisórias erguidos na área conhecida como Coloninha e foi mioloantroppmd 10022010 1441 126 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 127 neste período que se deram as negociações relativas a terra e moradia e o período dos mutirões no qual as casas foram construídas 46 Simões 2008 47 Uma tarde a psicóloga do grupo de pesquisadoras foi alvo de várias chacotas e risadas logo ela que sempre suscitara curiosidade e certa reverência da parte do grupo diante de um prato de canjica gentil e improvisadamente trazido por Miranda na única vez em que nosso chá da tarde fora olimpicamente esquecido a psicóloga serviuse de um porção muito pequena com cautela e cuidado tão grandes que todas as mulheres da cooperativa ficaram a olhar cada detalhe do gesto e puseramse a rir e comentar sua ignorância diante de uma simples canjica 48 Langdon 1999 p242 49 Fonseca 2000 Maluf 1993 Tornquist 2007 50 Canella 2007 51 Bosi 1996 52 Conforme artigo de Sônia W Maluf neste livro ADORNO Sérgio Monopólio Estatal da Violência na Sociedade Brasileira Contemporânea In Miceli S e outros Org O que ler na ciência social brasileira 19702002 São Paulo Sumaré 2002 v IV p 267307 BAENINGER Rosana e ALVES Pedro Região Metropolitana de Florianópolis migração e dinâmica da expansão urbana XVI Encontro Nacional de Estudos Populacionais ABEP Caxambu 2008 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS mioloantroppmd 10022010 1441 127 128 HORKHEIMERADORNO São PauloAbril CulturalColeção Os pensadores 1983 BEZERRA JR Benilton A clínica e a reabilitação psicossocial In PITTA Ana Reabilitação psicossocial no Brasil Hucitec São Paulo 2001 p 137 142 BOSI Eclea Memória e sociedade lembranças de velhos Cia das Letras São Paulo 1996 BUTLER Judith Como os corpos se tornam matéria Disponível em httpwwwscielobrpdfrefv10n111634pdf Acesso em 27 de junho de 2008 CANELLA F Disputas simbólicas e sentidos de comunidade a memória de moradores da periferia urbana de Florianópolis 1989 2005 In V Encontro Regional Sul de História Oral Culturas Identidades e Memórias 2007 Florianópolis IV Encontro Regional Sul de História Oral anais eletrônicos Nº 01 2007 Florianópolis Universidade Federal de Santa Catarina 2007 DUARTE Luiz Fernando Dias Da vida nervosa nas classes trabalhadoras urbanas Rio de Janeiro Zahar 2006 A outra saúde mental psicossocial físicomoral In ALVES P C e MINAYO M C org Saúde e doença um olhar antropológico Rio de Janeiro FIOCRUZ 1994 p 83 90 Indivíduo e pessoa na experiência da doença Ciência e Saúde Coletiva v 8 n 1Rio de Janeiro RJ 2003 DURHAM Eunice A caminho da cidade São Paulo Perspectiva 1984 FONSECA ClaudiaFamília fofoca e honra Editora da UFRGS Porto Alegre 2004 mioloantroppmd 10022010 1441 128 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 129 FOUCAULT Michel Microfísica do poder Rio de Janeiro Graal 1986 FRANZONI Tereza Mara BASTOS Rafael Jose de Menezes As perigosas relações entre movimento popularcomunitario e administração publica municipal na Ilha de Santa Catarina 252f Dissertação Mestrado Universidade Federal de Santa Catarina Florianópolis 1993 GOLDMAN Marcio Os tambores dos mortos e os tambores dos vivos Etnografia antropologia e política em Ilhéus Bahia Revista de Antropologia São Paulo USP v 46 n2 p 423444 2003 KAPLAN Harold et all Compêndio de psiquiatriaciências do comportamento epsiquiatria clínica 7ªed Porto Alegre Artes Médicas 1997 LANGDON Esther Jean MALUF Sônia TORNQUIST Carmen Susana Ética e política na pesquisa os métodos qualitativos e seus resultados In GUERREIRO Iara SCHMIDT Maria Luisa S ZICKER Fabio Ética nas pesquisas em ciências humanas e sociais na saúde São Paulo Hucitec 2008 128147 LANGDON Esther Jean A fixação da narrativa do mito para a poética de literatura oral Revista Horizontes Antroplógicos Porto Alegre ano 5 n12 p1335 1999 MALUF Sônia Encontros noturnos bruxas e bruxarias na Lagoa da Conceição Rio de Janeiro Rosa dos tempos 2000 Antropologia narrativas e a busca de sentido Revista Horizontes Antroplógicos Porto Alegre ano 5 n12 p 69 82 1999 mioloantroppmd 10022010 1441 129 130 Mitos Coletivos Narrativas pessoais cura ritual trabalho terapêutico e emergência do sujeito nas culturas da Nova Era ManaRio de Janeiro v 11 n2 p 499 528 2005 MANZINI Fernanda e BECKER Marina A mulher e a pílula da felicidade uma abordagem sobre o uso de fluoxetina Trabalho de Conclusão de Estágio Universidade Federal de Santa Catarina 2007 MATHIEU NicoleClaude Anatomie politique catégorisations et idéologies du sexe Paris CôtéFemmes 1991 MIGUEL Denise Soares e FORTES Priscila Rodrigues Tecnologia e Educação transformando informação em conhecimento Revista Udesc em Ação Florianópolis v 1 n 1 p 1 9 2007 PAULILO Maria Ignez O peso do trabalho leve São PauloSBPC Ciência Hoje 58 1986 6470 V5n8 p6470 1986 PERUZZO Rosária Metamorfoses na constituição de Si Expressão PsiPelotas v3n2 p5564 1999 RABELO Miriam et all Experiência de doença e narrativa Rio de Janeiro Fiocruz 1999 ROHDEN Fabiola Uma ciência da diferença sexo e gênero na medicina da mulher Rio de Janeiro Editora Fiocruz 2001 SILVEIRA Maria Lúcia O nervo cala o nervo fala a linguagem da doença Rio de Janeiro Fiocruz 2000 SIMÕES Soraia Conversas na cozinha sociabilidade feminina e hermenêutica em um conjunto habitacional da Zona Sul do Rio de JaneiroLille Rio de Janeiro 2008 mimeo mioloantroppmd 10022010 1441 130 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 131 SINGER Paul Economia Política da urbanização São Paulo Contexto 2002 SORJ Bila Trabalho remunerado e nãoremunerado In VENTURI Gustavo e RECAMÁN Marisolorg A mulher brasileira nos espaços público e privado São Paulo Fundação Perseu Abramo 2004 TORNQUIST Carmen Susana Salvar o dito honrar a dádiva Revista Impulso Piracicaba v14 n 35 p6374 2003 Gerar parir narrar narrativas de parto e o poder relativo das mulheres In HARTMANN Luciana e FISCHMANFernando orgs Donos da Palavra autoria experiência e performance em narrativas orais na América do Sul Santa Maria Editora da UFSM 2007 WEBER Max COHN Gabriel Sociologia 6 ed São Paulo Atica 1997 Grandes cientistas sociais 13 ZALUAR Alba Relativismo cultural na cidade Rio de Janeiro Brasília Tempo BrasileiroUNB Anuário Antropológico n 90 1993 Introdução afetiva e metodológica In A Máquina e a Revolta São Paulo Brasiliense 2001 Integração perversa pobreza e tráfico de drogas Rio de Janeiro Fundação Getúlio Vargas 2000 mioloantroppmd 10022010 1441 131 mioloantroppmd 132 10022010 1441 O objetivo deste trabalho1 é abordar algumas questões relativas à constituição social da experiência da deficiência2 a partir da análise de narrativas de pessoas com deficiência Essa abordagem tem como foco de análise as questões de construção da pessoa do corpo do gênero da sexualidade da subjetividade e da saúde mental no sentido de compreender como essas categorias se articulam na manifestação da deficiência como identidade política Para este propósito foi feita uma pesquisa de campo baseada na observação participante entrevistas e conversas com pessoas com deficiência com histórico de ativismo inspirandome nas orientações de Cardoso de Oliveira 2006 para quem as entrevistas mescladas com observação participante complementamse dialogicamente permitindo o verdadeiro encontro etnográfico na Antropologia Interpretativa de Geertz 1989 quando sustenta que a cultura ou realidade social do grupo a ser estudado deve ser interpretada como um texto um manuscrito estranho A CONSTRUÇÃO DA PESSOA NA EXPERIÊNCIA DA DEFICIÊNCIA CORPO GÊNERO SEXUALIDADE SUBJETIVIDADE E SAÚDE MENTAL Anahi Guedes de Mello mioloantroppmd 10022010 1441 133 134 desbotado cheio de elipses incoerências emendas suspeitas e comentários tendenciosos idem ibidem p 7 onde constróise uma leitura através de uma descrição densa de uma hierarquia estratificada de estruturas significantes em termos dos quais gestos são produzidos percebidos e interpretados idem ibidem p 5 atribuindolhes significados e no conceito crítico de autoridade etnográfica de Clifford 2002 quando propõe um modelo dialógico ou polifônico de etnografia aquela que represente distintas vozes e perspectivas Para esse autor a cultura é algo relacional formada por processos comunicativos e de empatia em que etnógrafo e nativo estão em relações de poder Os sujeitos envolvidos nesta pesquisa3 são pessoas com deficiência compondo um total de cinco sendo três com deficiência física e dois com deficiência visual Vinícius 23 anos homem com amputação das duas pernas Marisa 38 anos mulher com baixa visão Débora 43 anos mulher com cegueira Laura 69 anos mulher com deficiência física em consequência de poliomielite e Rita 50 anos mulher com deficiência física tetraplegia em decorrência de acidente automobilístico aos 29 anos Todos os sujeitos vivem uma vida independente4 pertencem à classe média de Florianópolis Vinícius Marisa e Débora e Rio de Janeiro Laura e Rita Apenas os que residem na primeira são casadosas e têm filhosas Com exceção de Vinícius e Rita todos têm deficiência congênita5 ou a adquiriram em tenra idade mioloantroppmd 10022010 1441 134 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 135 Ocasionalmente utilizarei alguns relatos de uma colega do Movimento de Vida Independente6 MVI um deles Sabrina mulher com deficiência física devido à poliomielite autorizados e extraídos de uma lista de discussão A pesquisa iniciouse no segundo semestre de 2007 e foi parcialmente concluída no segundo semestre de 2009 Durante a primeira etapa foi feito um extenso levantamento bibliográfico e leituras sobre a produção intelectual acerca do tema da deficiência tanto em Antropologia quanto em outras áreas do conhecimento que o perpassam como a Educação a Medicina e a Psicologia Na segunda etapa o do trabalho de campo propriamente dito contatei sujeitos que tivessem um histórico de ativismo na área da deficiência com atuação em Organizações NãoGovernamentais ONGs de pessoas com deficiência7 Os contatos e entrevistas se deram primeiro com os sujeitos de Florianópolis entre abril e maio de 2008 na sede de duas entidades a Associação dos Deficientes Físicos de Florianópolis Aflodef e a Associação Catarinense para a Integração do Cego ACIC A primeira se localiza no centro da cidade a segunda no bairro Saco Grande As duas têm como missão principal promover respectivamente a inclusão e reintegração de pessoas com deficiência física e visual em vários setores da sociedade8 porquanto parecem assumir dois papéis distintos que frequentemente se confundem entre si a de prestadoras de serviços9 e de defesa de direitos humanos 10 mioloantroppmd 10022010 1441 135 136 Para desenvolverem a maioria de seus projetos as duas entidades mantêm várias parcerias eou convênios com órgãos governamentais tanto os da esfera municipal quanto os da estadual e outras organizações nãogovernamentais Essas entidades têm a característica de serem espaços de marcante sociabilidade entre seus membros o que remonta àquilo que Magnani 1998 definiu como pedaço ou seja uma categoria que designa aquele espaço intermediário entre o privado a casa e o público onde se desenvolve uma sociabilidade básica mais ampla que a fundada nos laços familiares porém mais densa significativa e estável que as relações formais e individualizadas impostas pela sociedade Magnani 1998 p 116 Em relação às duas pessoas do Rio de Janeiro os contatos iniciais foram feitos através de trocas de emails onde combinamos um encontro aproveitando a oportunidade de minha estada naquela cidade por uma semana em julho de 2008 As entrevistas se deram em seus respectivos apartamentos Importante esclarecer aqui que ao contrário dos entrevistados de Florianópolis tanto Laura quanto Rita me conheciam de outra época por militarmos no mesmo movimento o MVI11 As entrevistas gravadas sem objeções em todos os casos foram baseadas em técnicas narrativas ou seja métodos que mioloantroppmd 10022010 1441 136 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 137 pretenden describir la experiencia subjetiva de las personas de una forma que sea fiel al sentido que éstas dan a sus proprias vidas Booth 1998 p 253 O foco da análise das narrativas sobre as experiências com a deficiência é o de como esta se constitui em um modo de subjetivação ou seja de constituição de sujeitos A escolha desta perspectiva teórica devese ao fato de que a configuração sóciocultural da deficiência como fenômeno com frequência se dá na presença de um eixo onde práticas eminentemente medicalizadas individualizadas e de cariz marcadamente assistencialista se ligam à narrativa da tragédia pessoal Martins 2004 p 212 Por isso fazse necessária a crítica a esse dito discurso através da incorporação das vozes de quem entende melhor que ninguém e a partir de sua experiência vital e de sua concreta capacidade de sentido o que é a deficiência Em outras palavras em vez da perpetuada reiteração de narrativas de tragédia pessoal teríamos narrativas de transformação social sem itálico no original idem ibidem p 17 onde a experiência da deficiência passa a ser bastante reveladora em termos de mudança ou transformação pessoal As narrativas autobiográficas são também narrativas de transformação e mudança pessoal Maluf 1999 perspectiva que vai ao encontro da abordagem de busca de sentido ou seja a necessidade de o antropólogo ir além da literalidade idem ibidem p 70 mioloantroppmd 10022010 1441 137 138 A TRÍADE PESSOA CORPO E SUBJETIVIDADE INTERFACES ENTRE DEFICIÊNCIA E SAÚDE DOENÇA O recorte teórico de minha análise se baseia no pressuposto de que a deficiência atua como um regime de subjetivação Foucault 1984 no contemporâneo articulando se também com o campo da reflexão antropológica sobre a pessoa Mauss 2003 Dumont 198513 Regimes ou modos de subjetivação são os diferentes modos pelos quais em nossa cultura os seres humanos se tornaram sujeitos Foucault 1995 Neste sentido podese dizer que o corpo seria um arcabouço para os processos de subjetivação a trajetória para se chegar ao ser e também prisioneiro deste A constituição do ser humano como um tipo específico de sujeito ou seja subjetivado de determinada maneira só é possível pelo caminho do corpo Mendes 2006 p 168 Em seu artigo Uma Categoria do Espírito Humano a noção de pessoa a de eu Mauss demonstra que a noção de pessoa é uma categoria construída histórica e socialmente ao longo dos séculos de uma simples mascarada à máscara até uma forma fundamental do pensamento e da ação Mauss 2003 p 397 Para os propósitos deste trabalho interessame especificamente dois tipos de pessoa definidos por Mauss a pessoa moral e a pessoa ser psicológico Segundo Mauss o cristianismo retomou o conceito de pessoa moral e a converteu em entidade metafísica a pessoa é consciente independente autônoma livre mioloantroppmd 10022010 1441 138 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 139 responsável idem ibidem p 390391 Em seguida a definição de pessoa como ser psicológico trouxe sua importância quando apareceu a categoria do eu com a qual o homem tem consciência psicológica de si mesmo e é capaz de se transformar Para Foucault 2004 não há um sujeito soberano universal O sujeito se constrói sempre em relação aos jogos de verdade presentes na cultura da sociedade em que vive Normas disciplinas e práticas históricas de sujeição se aplicam sobre o indivíduo com a pretensão de dizer verdades normalizar atos comportamentos costumes e desejos O sujeito não está confinado a uma única forma de subjetividade Nisso radica precisamente a dimensão política dos processos de subjetivação entendidos como a possibilidade de que a relação consigo mesmo se constitua em uma prática de resistência contra o saberpoder estabelecido buscando produzir novos modos de existência a partir de outras experiências de assujeitamento É a experiência que é a racionalização de um processo ele mesmo provisório que redunda em um sujeito ou melhor em sujeitos Eu chamaria de subjetivação o processo pelo qual se obtém a constituição de um sujeito mais precisamente de uma subjetividade que não é evidentemente mais que uma das possibilidades dadas de organização de uma consciência de si sem itálico no original Foucault 2004 p 262 Interesseime por essa concepção foucaultiana influenciada pela leitura em setembro de 2004 de uma mioloantroppmd 10022010 1441 139 140 reportagem ampla no jornal Diário Catarinense sobre as paraolímpiadas Nada relevante se não fosse o estranhamento que me causou a leitura de um pequeno trecho do artigo do jornalista Mauricio Xavier14 Tratavase da entrevista da atleta Roseane dos Santos vencedora de duas medalhas de ouro nas Paraolímpiadas de 2000 uma em arremesso de peso e outra em lançamento de disco afirmando a melhor coisa que aconteceu na minha vida foi perder a perna em um acidente Minha primeira reação ao lêla foi um misto de incredulidade e repugnância No prólogo do livro de Carolyn Vash 1988 George W Hohmann seu orientador afirma que a mais valiosa contribuição dessa autora é a noção de acolhida da deficiência e de sua transcendência Não era a primeira vez que eu ouvia falar disso Trinta anos antes um amigo meu paraplégico antigo estivador e de pouca instrução me dissera Por nada no mundo eu perderia a chance de ser um desgraçado de paraplégico Na época pensei que ele estava completamente louco Levei muitos anos para compreender o que esse homem simples e sábio tinha descoberto em dois anos que uma deficiência pode ser um aspecto especial da própria pessoa que oferece novas oportunidades para experiência crescimento maturação e autorealização Eu havia sido totalmente treinado pelo processo de reabilitação na idéia de que minha deficiência era o inimigo a ser derrotado controlado minimizado compensado e sim negado Não era nunca nunca certo gostar de ser o que eu era entre outras coisas deficiente Vash 1988 p XIII mioloantroppmd 10022010 1441 140 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 141 Enaltecer uma condição intrinsecamente adversa a experiência da deficiência fazendo dela motivo de orgulho era novidade para mim não só como pessoa com deficiência e ativista da deficiência mas também como pesquisadora Tinha experimentado anos atrás um movimento semelhante porém mais fortemente demarcado entre as pessoas surdas o Deaf Pride15 Mello 2006 Que alteridade é esta que faz da deficiência um poderoso artifício de subjetividade Qual seria o limite entre ser uma pessoa e ter uma deficiência Qual é o seu lugar no mundo ou melhor como as pessoas com deficiência se colocam no mundo Nos primeiros tempos do movimento de reabilitação existia muita conversa sobre a importância de aceitar se a deficiência de alguém Isso algumas vezes significava a ausência do mecanismo de defesa da negação Outras vezes significava simplesmente reconhecer uma perda sem se sentir péssimo por causa disso A aceitação era boa Não se esperava entretanto que as pessoas gostassem de suas deficiências isso era considerado pior que a negação Isso exigia que a pessoa deficiente soubesse exatamente onde estava a linha demarcatória entre a aceitação e o regozijo e ficasse eternamente vigilante para não cruzála Aceitação era morder o projétil e sorrir ao mesmo tempo e com a mesma facilidade Vash 1988 p XXIV Partindo dessa reflexão percebi que a deficiência poderia ser a investigação da razão do investimento Goldman 1999 mioloantroppmd 10022010 1441 141 142 p 36 ou seja o modo de subjetivação 16 Assim a deficiência pode ser também pensada na perspectiva da genealogia do sujeito modernocontemporâneo da centralidade do corpo deficiente como idioma simbólico e político da identidade e seu impacto na subjetividade da pessoa contrapondose às ideias hegemônicas de tratála tão somente como um fardo desvio aberração perturbação ou anormalidade A existência do corpo parece estar sujeita a um peso assustador que os rituais devem conjurar tornar imperceptível sob a familiaridade das ações Prova disso é a discrição normal nos elevadores nos transportes em comum ou nas salas de espera quando os atores face a face esforçamse para mutuamente e com certo desconforto tornarse transparentes uns para os outros a simbólica corporal perde momentaneamente o poder de conjuração O corpo tornase um incômodo um peso As esperas respectivas dos atores não são mais simétricas e deixam ao contrário transparecer falhas Os corpos deixam de corresponderse na imagem fiel do outro nessa espécie de bloco mágico onde os atores apagam sua corporeidade na familiaridade dos sinais e símbolos ao mesmo tempo em que a colocam adequadamente em cena Um desconforto emerge a cada ruptura das convenções de apagamento A esse respeito podese chamar a atenção para as dificuldades relacionadas com as pessoas que possuem alguma deficiência física ou sensorial ou catalogadas como trissômicas débeis ou doentes mentais Nesses atores o corpo não passa despercebido como manda a norma mioloantroppmd 10022010 1441 142 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 143 de discrição e quando esses limites de identificação somáticos com o outro não mais ocorrem o desconforto se instala O corpo estranho se torna corpo estrangeiro e o estigma social funciona então com maior ou menor evidência conforme o grau de visibilidade da deficiência O corpo deve ser apagado diluído na familiaridade dos sinais funcionais Mas com a simples presença física o deficiente físico ou o louco perturbam a regularidade fluida da comunicação Proibindo o próprio corpo eles suscitam o afastamento bastante revelador da atitude de nossas sociedades para com a corporeidade Le Breton 2006 p 4950 O culto ao belo inibe as pessoas com deficiência e constrange os normais Assim devido à promoção da beleza harmônica que herdamos dos gregos até nossos dias a manifestação da deficiência lesiona o conceito e a idealização de corporeidade grega que eugenicamente temos tão enraizados dentro de nós Silva 1986 Amaral 1995 Carvalho 2001 Bianchetti 2001 A imagem corporal desviante afeta a relação com o outro e com o próprio corpo naquele que se sente diferente adquirindo um protagonismo superlativo que se soma à exigência de encaixar o outro dentro de padrões inalcançáveis O desvio é criado pela sociedade isto é tal pessoa é desviante porque o rótulo do desvio foi a ela sobreposto com êxito O desvio não é uma característica que seja encontrada no indivíduo mas um veredicto enunciado acerca desse indivíduo por um grupo social Scheneider 1999 p 60 mioloantroppmd 10022010 1441 143 144 Aliás foi em nome desse rótulo que os estudos e movimentos eugênicos na História foram responsáveis por grandes genocídios atentando contra os direitos humanos sobretudo contra todos aqueles que fossem diferentes dos padrões antropométricos fisiométricos e psicométricos sendo eles exterminados ou segregados a modernidade inaugurou para as pessoas portadoras de deficiência novas formas de exclusão e dominação Em primeiro lugar trouxe o poder regulador e por vezes mesmo fascizante da biomedicina apoiado pela instauração da ciência que os estudos sobre a deficiência questionam em toda a linha Basta lembrar neste contexto o movimento da eugenia e a institucionalização das pessoas portadoras de deficiências no Ocidente Pereira 2006 p 67 Neste sentido as pessoas com deficiência também eram um prato cheio Silva 1986 ao lado dos negros índios homossexuais judeus ciganos dentre outros instaurandose as artimanhas do biopoder sobre elas conforme prenuncia Foucault 1982 é o corpo da sociedade que se torna no decorrer do século XIX o novo princípio É este corpo que será preciso proteger de um modo quase médico em lugar dos rituais através dos quais se restaurava a integridade do corpo do monarca serão aplicadas receitas terapêuticas como a eliminação dos doentes o controle mioloantroppmd 10022010 1441 144 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 145 dos contagiosos a exclusão dos delinqüentes A eliminação pelo suplício é assim substituída por métodos de assepsia a criminologia a eugenia a exclusão dos degenerados Foucault 1982 p 145 Estes ideais eugênicos persistem até os dias atuais sob a roupagem da Nova Genética ou Novagenia termos estes cunhados por Black 2003 para se referir às novas formas ou práticas eugênicas17 que têm surgido no mundo contemporâneo e nas chocantes declarações de alguns de nossos políticos divulgadas pela mídia provocando uma onda de protestos inclusive dos próprios movimentos pelos direitos das pessoas com deficiência18 Sociedades de enfermos físicos morais ou mentais além de por natureza serem infelizes e viverem em constantes tragédias decorrentes da ação negativa e danosa desses componentes infelizes não acompanham o progresso dos povos mais sadios melhor dotados e em conseqüência cada vez mais deles se tornam dependentes Wilson Passos então vereador do Rio de Janeiro ao justificar um projeto de sua autoria o PL nº 10442007 que visa a beneficiar família saudável que tenha filho sadio19 As pessoas poderão se valer da ciência para evitar que seus filhos nasçam feios deformados deficientes ou idiotas Luiz Henrique Silveira governador do Estado de Santa Catarina em O DNA Espartano artigo de sua autoria publicado no jornal A Notícia em 28 de agosto de 200520 mioloantroppmd 10022010 1441 145 146 A repulsa à doença é instintiva no ser humano Poucas pessoas sentem prazer em apertar a mão de uma pessoa portadora de lepra ou de AIDS De um modo geral as pessoas não se sentem confortáveis na companhia de pessoas doentes ainda mais quando se trata de doença letal ou deformadora A discriminação é válida quando se trata de doença contagiosa ou de epidemia que coloca em risco a vida e a saúde da comunidade A deformidade física fere o senso estético do ser humano A exposição em público de chagas e aleijões produz asco no espírito dos outros uma rejeição natural ao que é disforme e repugnante ainda que o suporte seja uma criatura humana Portadores de doenças e deformidades costumam freqüentar locais públicos exibindo as partes afetadas do corpo não só com o intuito de provocar comiseração como também com o propósito de afrontar a sensibilidade dos outros para o que é normal saudável e simétrico Denise Frossard juíza e até então deputada federal ao justificar como relatora os motivos de sua rejeição ao PL nº 5488 de 2001 que previa a criminalização de ato discriminatório em razão de doença ou deficiência de qualquer natureza21 Em Foucault 2001a podemos perceber que os conceitos de anomalia e anormal começam a tomar forma no século XIX com a influência da Medicina e do Direito no Ocidente a partir de três figuras o monstro humano o indivíduo a ser corrigido e a criança masturbadora dos quais me interessa definir as duas primeiras posto que as pessoas com deficiência se encaixam nessas O monstro se define em sua existência mioloantroppmd 10022010 1441 146 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 147 mesma e em sua forma não apenas uma violação das leis da sociedade mas uma violação das leis da natureza o que combina o impossível com o proibido idem ibidem p 69 70 O indivíduo a ser corrigido se refere a todo aquele que apresentam dificuldades para seguir as regras sociais Esse indivíduo está sob o domínio da família mesma no exercício de seu poder interno ou na gestão de sua economia ou no máximo é a família em relação com as instituições que lhe são vizinhas ou que a apóiam idem ibidem p 72 O monstro e o indivíduo a ser corrigido representam pois o veredicto final do corpo deficiente que fere a ordem social e demarca a linha proibida entre o sagrado e o profano A possessão do demônio relaciona à deficiência o resultado do pecado e da condição impura a própria idéia da sujeira que ofende a ordem Douglas 1976 p 1112 Barnes 1998 p 65 por sua vez critica a visão essencialmente fenomenológica de Douglas assentada na idéia de que o preconceito contra as pessoas com deficiência é de uma forma ou de outra inevitável e universal porquanto sempre negativas Esta teoria tiene al menos dos problemas Primero existen muchas probas antropológicas de que todas las sociedades no responden a la insuficiência exactamente de la misma forma Segundo reduce las explicaciones de fenómenos culturales como las percepciones de la diferencia física sensorial e intelectual al nivel de procesos de pensamiento con lo que desatende las consideraciones económicas y sociales mioloantroppmd 10022010 1441 147 148 Desde la era de Neanderthal en adelante al menos los arqueólogos han documentado la aparición regular de individuos que en actualidad serían considerados discapacitados existen pruebas sustanciales en América del Norte Europa Egipto China y Perú que abarcan miles de años de historia y que demuestran que la incidencia de la insuficiencia era algo común entre nuestros antepasados existen muchos ejemplos de comunidades en donde a supervivencia económica es extremamente inestable y a pesar de ello las personas con insuficiencias siguen siendo miembros valorados de la comunidad Dos ejemplos son los dalegura una tribu de aborígenes australianos y los palute una tribu de indígenas americanos En ambas sociedades el infanticidio estaba prohibido se consideraba la edad como signo de autoridade y de respecto y los individuos con insuficiencias no eran abandonados Barnes 1998 p 6566 A discussão sobre os modelos médico e social da deficiência22 muito se assemelha aos debates potencialmente presentes na Antropologia sobre os modelos racionais de saúde e doença23 uma vez que a deficiência muitas vezes é confundida com doença conforme sugere Pereira 2006 ao se referir à forma como a Sociologia tem estudado a questão da deficiência24 A tendência da Sociologia tem sido de facto em centrar se muito mais na questão do corpo e da doença o que constitui outro motivo para uma certa ala dos estudos mioloantroppmd 10022010 1441 148 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 149 da deficiência particularmente a que é influenciada pelo modelo social se distanciar desta perspectiva pois não considera que seja produtivo a associação da doença com a deficiência e o enfoque na experienciação da incapacidade Pereira 2006 p 22 Essa mesma autora ao apoiarse nas argumentações de Wendell 1996 sobre o caso das pessoas com doenças crônicas considera pertinente o argumento da associação da deficiência à doença mas também alerta que os estudos sobre deficiência deixam de fora as doenças crônicas que também podem gerar deficiências Para eles25 esta associação é perigosa pois toda a mudança de perspectiva que os estudos sobre a deficiência têm vindo a propor passa exactamente pela viragem do olhar em relação à Deficiência da tragédia pessoal e da pena e vitimização trazida pela modernidade para uma perspectiva outra Por outro lado sempre foi objectivo dos estudos sobre a deficiência e do modelo social em particular questionar e colocar em causa a associação que o senso comum e a biomedicina fazem da Deficiência com doença Na realidade isto é importante pois nem todas as pessoas que têm incapacidades são doentes ou necessitam de cuidados médicos pelo contrário as pessoas podem ter uma incapacidade específica serem invisuais não terem um membro mas podem ser perfeitamente saudáveis Outras no entanto podem ter doenças que causaram a incapacidade como é o caso das doenças mioloantroppmd 10022010 1441 149 150 crónicas e outras ainda podem ter conseqüências graves de saúde devido à sua incapacidade embora esta não tenha sido causada por uma doença Todas estas cargas negativas da doença a possível associação ao modelo médico e a resistência dos activistas e dos estudos sobre a deficiência não tornam fácil a discussão da doença crónica dentro da questão da Deficiência A verdade no entanto é que ela é pertinente Wendell coloca na outra categoria as pessoas com doenças crónicas Esta divisão é na minha opinião útil para esta discussão pois permite desmistificar vários aspectos a doença PODE e é em alguns casos incapacitante no entanto como já foi referido nem todas as incapacidades estão relacionadas com a doença ou são causadas por ela Pereira 2006 p 3436 Por outro lado as noções de doença e de deficiência assim como os modos de se lidar com elas mudam não só de acordo com os tempos e as culturas mas também de acordo com os saberes que se propõem a estudálas Berger 1999 p 19 Assim na perspectiva antropológica a manifestação de deficiências e doenças deve ser interpretada no contexto sociocultural Um debate que corrobora com a ideia dos processos de patologização da deficiência se refere ao uso em diferentes épocas e culturas de diversas terminologias para se referir às pessoas com deficiência Sassaki 200326 mostrando como os discursos e práticas sociais atribuem significados ao conceito de deficiência O discurso sobre a deficiência é pois um mioloantroppmd 10022010 1441 150 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 151 discurso sobre a pessoa porquanto o uso de distintos termos para um mesmo segmento também reflete toda uma discussão teórica sobre as noções de pessoa enquanto categorias de pensamento nativas explícitas ou implícitas enquanto portanto construções culturalmente variáveis Seeger DaMatta e Viveiros de Castro apud Goldman 1999 p 24 e mesmo sobre as questões em torno do conceito de experiência de saúdedoença Rodrigues Caroso 1998 Caroso Rodrigues AlmeidaFilho 2004 Alves Rabelo 1999 Langdon 2001 Duarte 2003 Outro exemplo dessa abordagem entre deficiência e doença parte do entendimento de que é possível se fazer articulações entre a experiência da deficiência com a questão denominada pelo sistema biopsicomédico de saúde mental27 Duarte 1994 isso porque ambas primeiro estiveram sob o domínio do paradigma biomédico historicamente ligado ao surgimento de uma concepção de normalização do corpo proposta esta que Foucault 2001b chamou de biopolítica que transforma o saberpoder em um agente de transformação da vida humana por meio da administração e controle de corpos Creio que é fazendo a história das relações entre o corpo e os mecanismos de poder que o investem que podemos chegar a compreender como e por que nessa época esses novos fenômenos da possessão apareceram tomando o lugar dos fenômenos um pouco anteriores da feitiçaria A possessão faz parte em seu aparecimento em seu desenvolvimento e nos mecanismos que a suportam da história política do corpo Foucault 2001b p 271 mioloantroppmd 10022010 1441 151 152 Em relação à presença de uma deficiência conforme apontado por Vash 1988 as reações emocionais em relação à deficiência são diversificadas e variam de pessoa para pessoa Para algumas a manifestação de uma deficiência pode ser potencialmente fragilizadora à sua saúde mental28 uma vez que a experiência do corpo deficiente e muitas vezes rejeitado pode chegar a privar a pessoa de usufruir de muitas atividades dependendo da severidade da sua deficiência e portanto pode contribuir decisiva e subjetivamente para o processo de terapeutização29 da pessoa frente à sua deficiência em diferentes etapas da vida Por isso estou particularmente interessada nos processos de negociação do sujeito com os limites corporais que experimenta em função de viver com uma deficiência A noção de limite descrita por Sontag 1984 como uma cidadania mais onerosa é particularmente útil para se pensar esse processo de retransformação da identidade devido à presença ou manifestação de uma deficiência Neste sentido perguntei à Paula se a falta de próteses influenciaria no aspecto psicológico das pessoas que dela necessitam Com certeza É o seu meio de locomoção então imagina uma pessoa que fica totalmente digamos voltada só para aquele mundo da família e também sempre visando só a questão da deficiência porque se a pessoa não tem condição se ela não tem uma prótese ela não sai de dentro de casa ela não tem condição de caminhar e isso gera uma série de dificuldades seja em qualquer área da vida educação trabalho a pessoa quer voltar a mioloantroppmd 10022010 1441 152 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 153 uma vida ativa geralmente ela o objetivo é esse Então a questão digamos do acesso é importantíssimo tanto não só ao equipamento mas como também as barreiras arquitetônicas que é por isso que a gente briga tanto com essa questão Paula Todavia as pessoas não são apenas receptoras passivas dos valores culturais Ocorre uma negociação onde há um poder opressivo normativo de controle social e um contrapoder que são as resistências a esse poder Eis o que afirma Foucault 1982 Mas a partir do momento em que o poder produziu este efeito como consequência direta de suas conquistas emerge inevitavelmente a reivindicação de seu próprio corpo contra o poder E assim o que tornava forte o poder passa a ser aquilo por que ele é atacado Foucault 1982 p 146 No caso das pessoas com deficiência observase que as resistências a esse poder estimulam a formação de bioidentidades sociais construídas a partir de uma doença e deficiência determinada Ortega 2004 p 16 conforme expresso na fala de Sílvia ao se referir a Vinícius o Vinícius é uma pessoa que se assume muito ele usa bermuda mesmo com a prótese dele ele não tem vergonha É diferente de outras pessoas que tentam esconder Sabes que eu atendo pessoas com deficiência aqui né Às vezes as pessoas vêm pra mim e eu não consigo ver a deficiência eu sou obrigada a perguntar mioloantroppmd 10022010 1441 153 154 para a pessoa porque eu fico atendendo eu tenho que anotar tudo ali eles escondem a mão escondem a perna eles dão um jeito eu acho detá mas qual é a tua deficiência porque eu não estou vendo E muita gente que trabalha e esconde mesmo para não mostrar botam a mão para dentro da blusa quando não tem o braço Que eles se assumam enquanto deficiente e não tenham vergonha disso Porque muitas pessoas a gente sabe eu trabalho aqui faço visita sei de quanto existe deficientes que ficam em casa trancados chorando porque ficou deficiente e não se assume E o Vinícius é um exemplo de tudo isso que a gente prega O Vinícius é uma pessoa que ele está sempre correndo atrás ele não se acomoda ele viaja sozinho ele vai para todos os lugares sozinho Ele é independente ele é o nosso atleta E ele está sempre aqui conosco ajudando a gente Então assim ele é uma pessoa que ele serve de exemplo para os outros por isso que ele está sempre aqui conosco porque a gente sabe que as pessoas reclamam muito da vida Ah porque depois que aconteceu isso isso isso só que ele é um exemplo para mostrar que tudo é possível na vida da gente quando a pessoa quer que tem força de vontade quando a pessoa decidiu que vai mudar que vai aceitar Porque eu digo que é difícil é eu digo que é difícil você aceitar a sua deficiência Sílvia Há uma série de questões que essa fala levanta que estão relacionadas às discussões sobre a forma como pessoa e deficiência são articuladas no discurso dos sujeitos vergonha visibilidade independência autonomia capacidade de ação entre outras mioloantroppmd 10022010 1441 154 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 155 Vinícius adquiriu a deficiência física aos 18 anos vítima de um choque elétrico de alta tensão que lhe custou a amputação das duas pernas Ficou internado no hospital por cerca de 2 meses sendo que 1 mês e 12 dias esteve em coma Perguntei lhe como se sentiu quando recebeu a primeira notícia de sua nova condição corporal A primeira foi que eu fiquei em coma na verdade A primeira foi meio constrangedora quando eu deixei de correr risco de vida 72 horas eles me deram de vida depois que eu me acidentei Vinícius A resposta de Vinícius foi bastante direta e curta O importante foi sobreviver ao acidente quiçá também à deficiência Sempre que eu lhe insistia sobre a primeira reação perante a amputação de seu corpo percebi em seus gestos que talvez não fosse de seu interesse tocar no assunto A experiência do corpo deficiente nesse caso parece se deslocar para a esfera do privado As narrativas sobre a experiência de viver em um corpo lesado ou doente reservavamse à vida privada pois eram indícios contrários à negociação pública de que a deficiência estava na sociedade e não no indivíduo Reconhecer que o corpo lesado impunha dor ou sofrimento era abrir uma porta perigosa para a essencialização da deficiência um receio que não foi atenuado nem mesmo pelo fato de os primeiros teóricos do modelo social da deficiência experimentarem a deficiência Ser deficiente era antes o passaporte de mioloantroppmd 10022010 1441 155 156 entrada na comunidade de teóricos do modelo social um argumento de autoridade que uma estratégia de considerar o privado também político como viam as feministas Diniz 2007 p 64 Já o relato de Rita se aproxima da dor e do sofrimento logo que percebeu a gravidade da lesão de seu corpo Bom a primeira impressão meu Deus Bom eu fiquei quase seis meses no hospital depois do meu acidente de início eu não tava entendendo o que estava acontecendo eu demorei dois meses não eu fiquei três meses no hospital no primeiro mês eu tinha muita visita muita visita eu não consegui me dar conta que não consegui mexer a perna Aí de repente eu comecei nesse dia eu expulsei todo mundo do quarto tinha muita gente não parava de entrar gente eu não consegui ficar sozinha comigo mesmo ai teve um momento que eu falei assim saí todo mundo expulsei todo mundo Eu chorei quase uma hora chorando direto aí depois disso o meu médico foi a única pessoa que ele entrou no meu quarto a gente ficou mais de uma hora conversando e me contando tudo o que aconteceu comigo daí que caiu a ficha né Aí a primeira impressão foi assim aí que eu me dei conta Rita Aqui é possível se falar em ruptura em relação a um momento anterior a narrativa de alguma forma enuncia sobre o momento em que ela percebe a sua nova condição a partir da autopercepção em relação ao corpo e à impossibilidade de mexer a perna mioloantroppmd 10022010 1441 156 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 157 Em relação à Laura as lembranças são esparsas como ela mesma define em função de ter adquirido a deficiência em tenra idade aos dois anos Bom no meu caso como foi uma coisa muito remota muito precoce na minha história de vida eu não tenho lembrança nítida só que fatos que cercaram a época em que eu tive a pólio só que são lembranças muito esparsas Olha mesmo nessa idade eu me lembro do dia que eu comecei a sentir sintomas da pólio e lembro também de fato mais recente por exemplo quando eu comecei a fazer tratamento de reabilitação Quando fui pra São Paulo fazer um programa cirúrgico isso eu tinha três anos Eu me lembro nitidamente dessa parte Era muito impactante porque têm pessoas que não se lembram nada da infância são muitos fatos assim que eu guardo Laura Para Laura essa ruptura não aparece em seu relato talvez se o entrevistado tivesse sido um parente próximo essa percepção fosse outra A forma de narrar a deficiência sua aceitação ou negação depende de quando e como aconteceu a deficiência Nas palavras de Berger 1999 São profundas as diferenças na percepção de si e da deficiência no que diz respeito à deficiência ser congênita ou adquirida só posteriormente No caso de pessoas que já nascem com algum tipo de deficiência ou a adquirem enquanto ainda são crianças toda a experiência do mundo e de si mesmo terá a deficiência como um referencial a mais o que não acontece se a pessoa cresce mioloantroppmd 10022010 1441 157 158 e se relaciona com um mundo segundo estratégias formadas desde a tenra idade e depois tem que reelaborar sua percepção de si e do mundo por ocasião da aquisição de uma deficiência Berger 1999 p 07 Débora e Marisa me relataram sobre o processo de aceitação da deficiência seus aspectos positivos e negativos Ah eu assim quando era criança Não tem para mim não foi muito ruim porque a criança não tem muita noção de perda para mim eu acho que eu não sofri não eu acho que não Eu não lembro assim de sofrimento nada Quem sofre mais é quando perde em adulto adolescente adulto mas criança não tem muita noção quando era criança eu não tinha aquela noção se enxergava pouco se não enxergava depois que eu fiquei cega no começo é claro foi meio difícil mas depois isso ali passou e agora assim eu como é que eu vou dizer pra ti eu encaro de maneira normal eu sei que eu não enxergo mas eu consigo fazer bastante coisa então não é que eu aceite eu convivo com ela Sei conviver bem Tem que conviver né ficar parada não dá como é que eu vou te falar Não é assim um peso para mim ser cega e também não é assim uma coisa boa mas também não é uma coisa ruim é uma coisa assim que ficou natural até minha família todo mundo que convive comigo a nossa experiência é assim a pessoa fica sabendo da ACIC ela perdeu a visão ela vem aqui pra conhecer e às vezes ela não retorna depois de um ano dois anos ela faz outro contato e retorna porque ela teve que ter aquele tempo pra ela digerir aquilo ela não mioloantroppmd 10022010 1441 158 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 159 consegue aceitar que está sendo atendida por uma associação de cegos ela ainda está chorando a perda daí a gente faz a visita domiciliar conversa e dá um tempo pra ela não fica em cima a gente dá um tempo Débora Aqui também o fato de ter adquirido a deficiência em tenra idade determina uma forma de narrar sua experiência com a cegueira A comparação é feita com pessoas que adquiriram a deficiência já adultas identificada por elas como uma perda e que estas sim teriam dificuldades em aceitar ou incorporar essa situação Quando eu era pequena eu não sentia diferença nenhuma até porque eu não me dava conta dessa deficiência A partir do momento em que eu fui crescendo e me deparando com essa deficiência até os 12 anos de idade foi muito tranqüilo até 12 anos Quando eu entrei na adolescência e aí eu mudei de colégio de um colégio pequeno para um colégio muito grande interrompe Quando eu entrei na adolescência eu mudei de colégio na 7a série de um colégio muito pequeno para o Instituto Estadual de Educação Aí é que eu me deparei com a discriminação eu me coloquei numa concha eu tentava me esconder eu não me relacionava bem com os meus amigos na verdade eu acho que eu fugia muito deles às vezes eles até tentavam conversar comigo queriam me fazer participar das mesmas atividades que eles mas naquela época eu acho que eu me excluía em função da vergonha da deficiência mioloantroppmd 10022010 1441 159 160 mesmo pelo fato de ser diferente enfim e eu passei de 12 vamos dizer até uns 20 anos até uns 18 anos quando eu terminei o meu segundo grau muito excluída excluída por mim mesma e quando eu fiz o vestibular e eu passei para fazer faculdade foi aonde eu comecei a me relacionar um pouco melhor com as pessoas porque daí eu já era adulta embora eu ainda não falasse muito sobre a minha deficiência eu só comecei a aceitar e a me dar muito bem com essa deficiência em 96 quando eu já tinha terminado a faculdade e aí eu procurei uma oftalmologista especialista em baixa visão que foi quem me encaminhou para a ACIC aí eu entrei como aluna me identifiquei percebi que tinham outras pessoas também com a mesma deficiência e dali pra frente eu comecei a me relacionar muito bem com essa deficiência não só aqui dentro mas também lá fora Quando eu tenho que falar sobre essa deficiência quando eu tenho que fazer algum curso hoje é muito tranqüilo Olha eu acho que a deficiência ela é positiva quando eu falo em relação a amadurecimento tu és obrigada a amadurecer e a conviver com aquilo ali mas não dá para dizer que ela em si traga alguma coisa de muito positiva Eu acho que querendo ou não a deficiência é uma coisa muito negativa sim que atrapalha muito a sua vida sim e que tu tem que conviver com ela Então eu considero ela muito mais negativa muito mais negativa do que positiva Traz alguns aprendizados sim a gente até aprende pelo fato de ter essa deficiência a lidar talvez um pouco melhor com as pessoas a talvez até ser um pouco mais humana nesse sentido mas não é bom para ninguém Marisa mioloantroppmd 10022010 1441 160 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 161 Nessa longa narrativa é apenas no final que ela se refere ao tipo de deficiência visual Questões como vergonha e dificuldades de construir uma rede de sociabilidade na escola marcam esse segundo momento da experiência com a deficiência a partir da saída do espaço familiar e um contato cotidiano mais sistemático com redes sociais mais amplas Muitas vezes é nesse momento que experiências ligadas a questões de estigma e preconceito são vividas Outra questão interessante nessa fala é a apreensão da experiência da deficiência como experiência de crescimento amadurecimento apreensão que aproxima a deficiência de algumas experiências de adoecimento relatadas pela literatura específica do campo da Antropologia da Saúde30 Por outro lado essas narrativas revelam também que há uma linha tênue que separa a deficiência da doença ou seja não são experiências de mesmo teor ou sentido Percebese que em sua totalidade talvez pela tenra idade em que a deficiência se manifestou inexiste para esses sujeitos a experiência do sofrimento da perda e da tragédia enfim de uma ruptura fenomenológica associada à cegueira Martins 2005 esta evasão ao idealismo não se oferece a uma reinstauração da narrativa da tragédia pessoal longe disso Na verdade em muitas histórias de vida com que tomei contacto os sofrimentos mais directamente associados à dimensão física da cegueira estão ausentes Assim é numa primeira instância porque na vida de mioloantroppmd 10022010 1441 161 162 pessoas que nascerem cegas não existe uma experiência de perda não há um mundo empobrecido naquilo que nele se pode apreender não há um constrangimento em relação aos modos de realizar nem tão pouco sic um confronto com as coisas que se tornaram impossíveis de fazer Não há portanto a experiência de uma ruptura fenomenológica nem a submissão a uma imperativa metamorfose no modus vivendi É óbvio que as pessoas que já nasceram cegas têm uma noção do lapso que as separa de quem vê um lapso que é actualizado quotidianamente na comparação com os outros e na percepção das facilidades que a visão permite na apreensão de elementos da realidade e na execução de algumas tarefas idem ibidem p 0607 Justamente por isso que os significados atribuídos à experiência da deficiência não se assemelham à experiência de doença encontrados na literatura antropológica No entanto considero que a inexistência dessa ruptura é relacional uma vez que depende também do contexto social em que se vive e das características pessoais da pessoa Pinheiro 2004 p 70 se baseia no conceito de resiliência para explicar por que pessoas com trajetórias semelhantes diferenciamse pelo fato de algumas conseguirem superar as crises e outras não Entendo por resiliência Barlach 2005 como a capacidade do ser humano em se superar adaptarse e construir atitudes positivas a partir das adversidades da vida Mas para desenvolver atitudes resilientes a pessoa com deficiência precisa estar inserida num ambiente propício ao desenvolvimento de sua autoestima mioloantroppmd 10022010 1441 162 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 163 adquirindo a habilidade necessária para enfrentar de forma aberta e construtiva os seus conflitos existenciais de maneira que não a impeça de construir um projeto de vida a capacidade de amar trabalhar ter expectativas e projeto de vida consequentemente de dar um sentido a nossa existência humana denota ser a base onde as habilidades humanas se apóiam para serem utilizadas diante das adversidades da vida que certamente todos em menor ou maior intensidade teremos que enfrentar enquanto estivermos vivos Pinheiro 2004 p 75 Assim todas as pessoas experimentam as expectativas de um projeto de vida no sentido de uma abertura a algo além que transcende e consegue romper as barreiras da dor e do sofrimento No caso das pessoas com deficiência a resiliência demandada pelo corpo deficiente pode abrir espaço para o assujeitamento Ainda sobre a experiência da deficiência é Vinícius quem traz o relato mais surpreendente ENTREVISTADORA Se você pudesse tirar a sua deficiência você a tiraria VINÍCIUS Agora eu gosto de ser com deficiência porque eu viajo muito conheci muita coisa depois da deficiência Fiz muita viagem Na viagem muitas coisas boas aconteceram porque a minha vida também era muito ruim e não teria a cabeça que eu tenho hoje também eu fazia muita coisa errada quando eu era sem deficiência mioloantroppmd 10022010 1441 163 164 ENTREVISTADORA Você ficou mais consciente da sua responsabilidade é isso VINÍCIUS Isso dos limites né ENTREVISTADORA Você tem orgulho de ter a deficiência VINÍCIUS Orgulho não viu Tenho uma satisfação do jeito que eu sou tenho uma lesão leve Mais importante que a leve lesão isto é a falta das duas pernas é estar vivo Nesse processo de consciência de si ao negociar com seus limites corporais impostos a deficiência vai se configurando num poderoso artifício de subjetividade expressa inclusive em piadas eou apelidos relacionados à sua própria condição de deficiência Falo que economizo meus sapatos que duram muito porque não ando Quando faço depilação agradeço por não sentir aquela dor insuportável A cadeira de rodas faz parte do meu corpo e quando ela às vezes fica um pouco afastada fico desesperada Rita É uma catarse gostosa e sempre rimos muito de nossas próprias piadas Por exemplo dois amigos nossos paraplégicos na época jogadores de basquete em um torneio pelo nordeste ouviram de pessoas que estavam próximas a eles mas um é a mesma carinha e focinho do outro Como se a cadeira de ambos os igualassem no físico E por aí vai temos um anedotário sobre isto Minha cadeira de rodas é algo que já me pertence e faz parte de meu espaço interno e externo Tive dificuldades em me sentar definitivamente na cadeira mioloantroppmd 10022010 1441 164 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 165 Em meus sonhos eu me via sempre caminhando Foi preciso um trabalho interno para sentarme simbolicamente na cadeira Tanto que a coisa que mais temo numa viagem aérea por exemplo é que a cadeira não tenha sido embarcada no porão do avião E já aconteceu isto de fato numa de minhas viagens Cheguei a São Paulo e minha cadeira tinha ficado no Rio Foi uma sensação horrível como se eu tivesse ficado sem as pernas A cadeira é minha perna Laura As ajudas técnicas 31 são colaboradoras parceiras com as quais preciso estabelecer uma relação de companheirismo eu cuido delas de sua manutenção e elas de mim Minhas muletas se chamam Ana Paula e Fernandinha É que sempre as chamei de minhas meninas um dia um amigo perguntou se elas não tinham nomes Respondi que não e ele prontamente batizou Gostei dos nomes e deixei Sempre que perguntam quem é quem argumento que são gêmeas e por isso não sei Sabrina Essas narrativas apontam para o estatuto de quase pessoa dado às próteses a ideia das próteses como fetiches na medida em que esses objetos são cultuados corporificados e nomeados como pessoas pelos sujeitos São histórias marcadas por discursos de resistência à patologização da deficiência em que meus interlocutores ressignificam a experiência da deficiência pela incorporação desses objetos no seu corpo e pelo uso resiliente do humor ou seja encontrar o cômico nas suas próprias desgraças Elas revelam a ressignificação da mioloantroppmd 10022010 1441 165 166 deficiência a partir do momento em que os sujeitos tomam consciência de si através de um processo simbólico de auto aceitação da realidade do corpo deficiente como um outro modo de existência corporal Também usam como estratégias de subjetivação as piadas os apelidos carinhosos as próteses como extensão de seu corpo sem as quais sentiriam angústias e as práticas de ativismo político Tudo isso desencadeia num ativismo 32 denotando infinitas possibilidades de transformação e mudança pessoal Isso significa sobretudo a incorporação da deficiência como parte de sua constituição de pessoa no sentido de compreender que o corpo deficiente também tem desejos sente dores prazer e fome No meu entender é justamente esta concepção de consciência de si o que aproxima a noção de pessoa de Mauss à ideia de sujeito em Foucault O sujeito pode ser assujeitado pela experiência do corpo deficiente constituindo uma identidade política positiva que se dá pela consciência de si mesmo Nas palavras de Ortega 2004 o conceito de deficiência releva o de doença referindose à déficit a serem compensados socialmente e não a doenças a serem tratadas Rabinow 1999 Esse conceito usado oficialmente pela primeira vez na Inglaterra durante a II Guerra Mundial como uma forma de avaliação da força de trabalho disponível com o objetivo de incorporar o maior número de pessoas está na base da biopolítica cujos grupos se distinguem precisamente pelas deficiências a serem compensadas mioloantroppmd 10022010 1441 166 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 167 deficiência da mulher frente ao homem do negro frente ao branco do gay frente ao heterossexual do portador de deficiência frente ao indivíduo fisicamente normal dos idosos frente aos jovens etc A política se dissolve em políticas particulares que aspiram compensar as deficiências de um grupo biopolítico determinado cuja uma das conseqüências é o esquecimento de ideais sociais mais abrangentes Ortega 2004 p 16 Mais do que autoafirmação do sujeito esse processo de subjetivação em torno da experiência da deficiência está intimamente relacionado com o conceito de resiliência Assim as respostas de meus interlocutores evidenciam essa possibilidade de transformação social de transcendência do sujeito aos seus próprios limites corporais Tratase pois conforme prenuncia o título de um livro de Vasconcelos 2003 do poder que brota da dor e da opressão33 SOBRE O ENFOQUE DE GÊNERO E SEXUALIDADE NA DEFICIÊNCIA ALGUMAS NOTAS DE CAMPO Neste tópico eu gostaria de apontar brevemente para algumas perspectivas de investigação antropológica a partir de minhas observações de campo O impacto causado pelos Estudos Culturais Scheer 199534 e pelas teorias feministas Diniz 2003 2007 Ortega 2009 queer Sherry 2004 e pós modernas Corker Shakespeare 2002 também se refletiu nos Estudos sobre Deficiência35 especialmente em relação às discussões teóricas sobre os modelos da deficiência e à deficiência como uma condição de vulnerabilidade para a mioloantroppmd 10022010 1441 167 168 violência de gênero36 Williams 2003 Mays 2006 Trabalhos de feministas como Fine Asch 1988 Finger 1992 Ferri Gregg 1998 e Asch 2001 dentre outras merecem destaque tanto por problematizarem implícita ou explicitamente a relação entre deficiência e gênero quanto por apontarem para uma total falta de preocupação dos movimentos feministas para a questão da deficiência e dos movimentos da deficiência em relação à importância de outras categorias identitárias em especial a de gênero igualmente significativas para a formação da identidade das pessoas com deficiência No caso brasileiro grande parte das políticas públicas transversais para a promoção das igualdades mencionam apenas a raça o gênero a classe a geração e a orientação sexual sem se incluir a deficiência nos debates e cruzamentos com todas essas categorias que convivem com a experiência da opressão e da discriminação37 Essa constatação corrobora com autores como Pereira 2006 quando enfatiza que Se outras perspectivas como questões de gênero de raça de orientação sexual já se encontram mais presentes a questão da Deficiência continua ainda muito nas margens das margens Penso no entanto que problematizar e tornar mais presente a questão da Deficiência é fulcral para pensar uma sociedade mais emancipada e livre de formas de opressão e nesse sentido é de extrema relevância trazer a discussão sobre a Deficiência para o âmago da teoria sociológica Pereira 2006 p 01 mioloantroppmd 10022010 1441 168 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 169 Especialmente em relação ao enfoque de gênero e sexualidade gostaria de tecer algumas considerações quanto à sua pertinência observada durante o campo que se deu primeiro na Aflodef Cheguei lá e minutos após me apresentar na recepção e conversado com alguns associados sobre meu objetivo de pesquisa aguardei na sala de espera a Paula sentada numa das cadeiras e tentando adivinhar as conversas por leitura labial sem sucesso Só consegui captar os gestos de animosidade entre sorrisos e gargalhadas Nesse momento notei a presença de homens com deficiência física na sala Não havia nenhuma mulher nessa mesma condição com exceção da secretária que ficava na mesa de recepção Pensei que fosse mero acaso que elas não estivessem ali Depois soube pela Paula que a Aflodef tem até então cerca de dois mil e oitocentos associados mas apenas cerca de 42 pessoas frequentam assiduamente aquele espaço e geralmente só aquelas que praticam esporte exatamente homens com deficiência física em sua maioria que é aonde a gente consegue ter um convívio maior Paula Quanto às mulheres poucas praticam natação atletismo e tênis de mesa A maior parte de seus associados procuram a entidade para demandas de reabilitação e trabalho No entanto a pergunta que gerou parte da narrativa de Sílvia sobre Vinícius mostrada anteriormente quando comenta sobre a pessoa ter vergonha de sua deficiência foi baseada nesse contexto de gênero Recorrendo à literatura antropológica deparome novamente com Berger 1999 quando afirma que mioloantroppmd 10022010 1441 169 170 O envolvimento afetivo é um dos momentos da vida de um portador de deficiência em que não há como camuflar a deficiência O que se espera e se busca num relacionamento afetivo é a aceitação total da pessoa e isto significa inclusive aceitar a deficiência que a pessoa porta Ambos precisam estar inteiros na relação e o que se descobre nesta hora de nudez e de entrega total é que o corpo em seu sentido mais físico é o suporte do indivíduo constitutivo mesmo da identidade da pessoa Aceitar o outro significa aceitálo sem ressalvas considerandose a deficiência da pessoa mas também indo além dela Berger 1999 p 101 Noutros termos se é possível camuflar a deficiência em várias situações cotidianas mesmo durante as práticas esportivas o mesmo não se pode esperar das relações afetivo sexuais Em agosto de 2008 tive a oportunidade de participar durante três semanas e conjuntamente com outras 24 mulheres com deficiência de diferentes nacionalidades do 4th International Womens Institute on Leadership and Disability em Eugene EUA onde tomei conhecimento de perspectivas globais da deficiência na atualidade inclusive no campo do feminismo No dia 26 desse mês tivemos uma programação ou melhor uma reunião íntima o Womens Interest Day em que entre dezenove e vinte horas da noite todas as mulheres com deficiência de cada país poderiam se quisessem falar dos seus problemas mais íntimos relativos à deficiência Um dos relatos in loco que escutei presenciando em seguida mioloantroppmd 10022010 1441 170 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 171 uma comoção geral foi o de uma mulher com deficiência física em decorrência de poliomielite filipina e usuária de cadeira de rodas Em seu relato ela nos narrou que no momento das relações sexuais pedia para seu até então marido apagar as luzes pois não queria que ele olhasse nem tocasse nessa parte de seu corpo Relataranos sentir vergonha de uma de suas pernas mais larga que a outra A autoimagem do corpo deficiente parece representar o limite do tabu de si mesmo em que a deficiência é camuflada mesmo durante os atos sexuais o que nos remete à idéia do corpo como uma espécie de máscara que impede tais indivíduos de revelarem o seu eu verdadeiro38 Antonio 2008 p 78 O mesmo estudo antropológico de Antonio sobre a cirurgia plástica demonstrou a recorrência feminina quanto às queixas e sentimentos de vergonha em relação ao próprio corpo e devido a isso evitar expor o corpo nas relações sexuais mesmo com o marido ou namorado de anos de relacionamento idem ibidem p 77 Esse ocorrido me fez pensar que o estatuto de pessoa das pessoas com deficiência será plenamente conquistado somente quando o tema da sexualidade for contemplado nas políticas públicas39 uma vez que sua condição de pessoa comum será assim reconhecida Os temas que já estão bem discutidos nos movimentos e políticas sociais da deficiência Educação Trabalho Acessibilidade etc ainda pertencem à esfera pública São os temas da esfera privada que irão garantir a conquista desse estatuto de pessoa Neste sentido as pessoas com mioloantroppmd 10022010 1441 171 172 deficiência têm muito a aprender com os movimentos feministas e de lésbicas gays bissexuais e transgêneros LGBT em suas atuais demandas em matérias de direitos sexuais e reprodutivos que se concentram em questões do campo privado CONSIDERAÇÕES FINAIS Diniz 2007 referese na introdução de seu livro O Que É Deficiência à inspiração literária dada pela cegueira do renomado escritor argentino Jorge Luis Borges para justificar que ser cego é um modo de vida Concordo plenamente que a deficiência é um dos componentes da diversidade humana A cegueira é um modo de vida mas penso que devemos ir mais além ao considerarmos a diversidade numa mesma deficiência Torres Mazzoni Mello 2007 Em uma mesma sociedade há vários modos de ser cego ser surdo ou mesmo ser tetraplégico A experiência da deficiência não é a mesma nem foi tratada de forma negativa em todas as épocas e sociedades Barnes 1998 Assim compartilho com a proposta de Maluf 2001 de que o conceito de embodiment de Csordas 1990 ao focar nas experiências individuais e subjetivas dos sujeitos envolvidos Maluf 2001 p 97 pode trazer uma contribuição à análise antropológica do corpo e da corporeidade neste caso da deficiência para além das discussões sobre os significados da deficiência em culturas distintas A deficiência faz parte do rol dos entrelugares que fornecem terreno para a elaboração de estratégias de mioloantroppmd 10022010 1441 172 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 173 subjetivação singular ou coletiva de que decorrem novos signos de identidade e postos inovadores de colaboração e contestação Bhabha 1998 p 20 Sempre inesperada a deficiência é a demonstração de que a subjetividade nunca é aquele lugar ideal seguro e estável Justamente por isso que as pessoas com deficiência são também sujeitos desejantes40 A pessoa com deficiência tenha a deficiência que tenha sempre é diferente da deficiência em si e essa diferença se joga em sua subjetividade A Antropologia tem muito a ganhar ao se dedicar ao tema da deficiência uma vez que os dispositivos e as significações sociais tem grande potencial de fazer esse campo científico avançar em seus temas mais fundamentais Ou seja estudar a deficiência antropologicamente é tão importante para a Antropologia quanto para os Estudos sobre Deficiência A contribuição da Antropologia aos Estudos sobre Deficiência está presente e tem um valor inestimável Enfoques antropológicos baseados em conceitos como cultura estigma desvio e liminaridade foram apropriados pelos Estudos sobre Deficiência para explicar o fenômeno da deficiência e são várias as disciplinas da Antropologia que se sobrepõem aos Estudos sobre Deficiência ainda que o uso do método etnográfico seja relativamente recente nestes Kasnitz Shuttleworth 2001 ReidCunningham 2009 Conforme sustenta Gardou 2006 a experiência do corpo deficiente já vinha revelando dimensões novas para a abordagem antropológica do corpo e da mioloantroppmd 10022010 1441 173 174 corporalidade A corporificação da experiência da deficiência ao subverter o estigma do corpo deficiente releva a condição de pessoa ou seja a deficiência é também uma forma de se constituir como um determinado tipo de sujeito nesse caso é o corpo ou mais especificamente uma determinada corporalidade que constrói uma determinada pessoa Maluf 2001 p 96 NOTAS 1 Este trabalho faz parte de uma pesquisa mais abrangente denominada Gênero Subjetividade e Saúde Mental políticas públicas ativismo e experiências sociais em torno de gênero e saúde mental Maluf 2006 coordenada pela Profª Drª Sônia Weidner Maluf envolvendo uma equipe maior de pesquisadores 2 Concebo deficiência como uma condição através da qual se experimenta situações extremas de perdas ou interrupções de determinadas atividades da vida cotidiana em decorrência de restrições físicas sensoriais cognitivas e sociais Esta definição está de acordo com a letra e do preâmbulo da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência quando afirma que a deficiência é um conceito em evolução e que a deficiência resulta da interação entre pessoas com deficiência e as barreiras devidas às atitudes e ao ambiente que impedem a plena e efetiva participação dessas pessoas na sociedade em igualdade de oportunidades com as demais pessoas BRASIL 2008 p 21 Do ponto de vista antropológico deficiência englobaria os diferentes sentidos ou modos de defini la percebêla tratála etc o que nos remonta às categorias nativas em torno da experiência da deficiência mioloantroppmd 10022010 1441 174 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 175 3 Ressalto que embora se priorize as narrativas de pessoas com deficiência destacarei algumas falas de duas profissionais atuantes na área da deficiência que convivem com um dos sujeitos da pesquisa Uma é do setor de recursos humanos Paula e outra é assistente social Sílvia A fim de preservar a identidade dos informantes esclareço que todos os nomes são fictícios 4 Tratase de uma categoria nativa que tem origem no Movimento de Vida Independente MVI Porém aqui tomo vida independente no sentido de que os sujeitos são capazes de exercer todos os atos da vida civil 5 Significa que a deficiência é de nascença 6 O Movimento de Vida Independente MVI começou oficialmente em 1972 com a fundação do Centro de Vida Independente de Berkeley CVIBerkeley o primeiro CVI dos Estados Unidos e do mundo Há mais de 600 Centros de Vida Independente CVIs espalhados por diversos lugares do mundo No Brasil em 1988 foi fundado o Centro de Vida Independente do Rio de Janeiro CVI Rio o primeiro do país e da América Latina Atualmente há 20 CVIs espalhados por todos os cantos do país Para os ativistas desse movimento vida independente significa que as pessoas com deficiência têm o direito de fazerem suas próprias escolhas sem as interferências institucionais e familiares O conceito de vida independente parte do princípio de que apenas as pessoas com deficiência sabem o que é melhor para si mesmas Entendese que a pessoa com deficiência dependendo do tipo e grau ou severidade da deficiência pode não realizar sozinha determinadas atividades dependendo por isso mesmo de terceiros Mas a elas devese ser creditado o poder de tomar decisões sobre essas atividades mioloantroppmd 10022010 1441 175 176 respeitando suas opiniões e desejos Uma pessoa com tetraplegia severa pode não ser por exemplo capaz de se vestir sozinha por restrição de autonomia mas ela tem independência para decidir e escolher que tipo de roupa quer vestir A autonomia controle sobre o próprio corpo e sobre o ambiente mais próximo e a independência faculdade de decidir por si mesma são os dois lados da mesma moeda fundamentalmente importantes na vida das pessoas com deficiência 7 É importante diferenciar ONGs de pessoas com deficiência das ONGs para pessoas com deficiência No primeiro caso as ONGs são geridas pelas próprias pessoas com deficiência por exemplo os CVIs no segundo pelos profissionais da deficiência eou os pais e mães de pessoas com deficiência Um exemplo de ONGs para pessoas com deficiência são as conhecidas Apaes Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais 8 Por exemplo encaminhamento para o mercado de trabalho prática de esportes aulas de informática e de locomoção e mobilidade para pessoas com deficiência visual este último parte essencial do serviço de reabilitação oferecido pela ACIC A ACIC inclusive oferece às pessoas de outros municípios do estado a possibilidade de morarem temporariamente em sua sede visando à sua readaptação Neste caso a ACIC também funciona como uma espécie de colégiointernato 9 Em termos de infraestrutura de espaço e de atendimento ao público a ACIC está melhor equipada do que a Aflodef a primeira oferece serviços emergenciais mais completos justamente por contar com uma ampla equipe de profissionais da saúde tais como psicólogos e oftalmologistas contrariamente à Aflodef que não mioloantroppmd 10022010 1441 176 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 177 possui em seu quadro de funcionários profissionais psicólogos e fisioterapeutas muito embora se reconheça essa necessidade A Aflodef prioriza as práticas esportivas entre seus associados mas também oferece serviços de atendimento sócioemergencial por exemplo doações de materiais ortopédicos muletas cadeiras de rodas e próteses a quem não tem condições financeiras de adquiri las 10 Ambas ocupam cargos eou posições de destaque em conselhos de direitos das pessoas com deficiência eou em eventos que tenham alguma relação com a área da deficiência 11 Laura faz parte de um CVI enquanto Rita já foi 12 Ver a crítica de Oliver 1986 à teoria da tragédia pessoal 13 Em Dumont 1985 encontramos uma reflexão a partir do paradigma maussiano de pessoa sobre o indivíduo e o individualismo moderno articulada com a concepção iluminista de sujeito universal Para Mauss a forma moderna da pessoa é o indivíduo 14 Xavier Mauricio Esqueça o Olhar Piedoso Jornal Diário Catarinense Florianópolis 21 set 2004 p 05 15 Tradução de Orgulho Surdo 16 Segundo Goldman 1999 p 35 as formas de subjetivação estudadas por Foucault poderiam ser chamadas a grosso modo de noção de pessoa em referência a Mauss 2003 17 A eugenia é a seleção das pessoas que supostamente teriam as melhores características físicas e mentais e a eliminação das doentes e as consideradas fracas Na Nova Genética ou Novagenia denunciada por Black 2003 o discurso eugênico tem assumido outras configurações através de práticas de discriminação genética mioloantroppmd 10022010 1442 177 178 em que a liberdade de ser e ter da pessoa é violada em nome do confisco e uso indevido de seu material genético Por exemplo nos EUA muitas pessoas por terem predisposição genética a determinadas doenças têm ou tiveram seu direito ao seguro de vida negado pelas seguradoras 18 O Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência Conade com sede em Brasília chegou a divulgar em 15 de dezembro de 2005 uma moção de repúdio Moção nº 05 2005 contra o parecer de Denise Frossard Tal moção pode ser acessada no seguinte endereço eletrônico httpwwwmjgovbr conadearquivosdocsmocoes20055doc 19 Moreira Gabriela Vereador apresenta projeto para beneficiar família saudável que tenha filho sadio O Globo On Line Rio de Janeiro 01 abr 2007 Disponível em httpogloboglobocom riomat20070401295175547asp Acesso em 26 jul 2009 20 Ver repercussão do artigo do governador no site do Jornal da Ciência mantido pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência SBPC httpwwwjornaldacienciaorgbr Detalhejspid31160 21 Após a violenta reação de diversos setores da sociedade brasileira principalmente das pessoas com deficiência e suas organizações representativas Denise Frossard apresentou um pedido público de desculpas disponível em httpwwwandreibastosnombr artigos17htm 22 Ambos os modelos são conhecidos como os modelos clássicos da deficiência levando em consideração por exemplo que Pfeiffer 2002 distingue dez modelos ou paradigmas da deficiência Um é o modelo do déficit que tem três variantes o modelo médico o mioloantroppmd 10022010 1442 178 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 179 modelo da reabilitação e o modelo da educação especial frente ao qual distingue outros nove Em linhas gerais no modelo médico o foco se centraliza na deficiência da pessoa objetivandose a cura ou medicalização do corpo deficiente No modelo social a deficiência é vista como o resultado das interações pessoais ambientais e sociais da pessoa com seu entorno Por isso para o modelo social da deficiência as experiências de opressão vivenciadas pelas pessoas com deficiência não estão na lesão corporal mas na estrutura social incapaz de responder à diversidade Entretanto é importante ressaltar que o que se questiona no modelo social é a idéia de que a deficiência é somente uma questão médica Ou melhor em um ponto os modelos social e médico coincidiam ambos concordavam que a lesão era um tema da alçada dos cuidados médicos Diniz 2007 p 23 23 Há uma grande produção antropológica sobre doença e perturbação saúde mental cultura psicanalítica e doença dos nervos onde autores como Duarte 1986 1994 e Langdon 2005 têm questionado sobre o caráter biologizante desses modelos 24 Refirome especialmente à Sociologia americana e britânica e isso somente quando trata da deficiência como objeto de estudo uma vez que em muitas partes do mundo a questão da deficiência está ainda bastante ausente da teoria sociológica Pereira 2006 p 02 25 Ou seja para os teóricos dos estudos sobre deficiência 26 Sassaki em mensagem endereçada ao meu email em abril de 2009 escreve A expressão pessoa com diversidade funcional como substituto do termo pessoa com deficiência traz no seu bojo um eufemismo na mesma linha de expressões que já foram mioloantroppmd 10022010 1442 179 180 superadas tais como pessoa com capacidades especiais pessoa com eficiências diferentes pessoa com habilidades diferenciadas pessoa especial pessoa dEficiente portador de necessidades especiais portador de direitos especiais pessoa mentalmente diferente e pessoa verticalmente prejudicada Todas as propostas eufemísticas constituem uma tentativa de se empregar expressões que substituam as palavras tidas como grosseiras ou desagradáveis Historicamente a primeira proposta eufemística foi feita nos EUA na década de 80 com a expressão pessoa fisicamente desafiada physically challenged person que logo desapareceu quando por coerência deveriam surgir os termos pessoa visualmente desafiada pessoa auditivamente desafiada pessoa mentalmente desafiada na época ainda não se utilizava o termo deficiência intelectual e pessoa multiplamente desafiada além do termo genérico pessoas desafiadas para designar pessoas com qualquer um daqueles advérbios que acabou ficando sem sentido Fonte Berkeley Center for Independent Living How do you say Guidelines on appropriate ways to describe people with disabilities BerkeleyCA EUA 1989 No Brasil por exemplo o termo pessoa verticalmente prejudicada já constava em 2005 na cartilha intitulada Politicamente Correto com um enunciado um pouco diferente pessoa verticalmente comprometida Esse termo foi recomendado em substituição às palavras anão e nanismo A cartilha foi organizada pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos SEDH da Presidência da República A distribuição dos 5000 exemplares começou em 30405 mas já nos primeiros dias a cartilha causou tanta polêmica que Nilmário Miranda então ministrochefe da SEDH mandou abortar a mioloantroppmd 10022010 1442 180 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 181 distribuição e recolher os exemplares que já tinham sido distribuídos Fonte Folha de SPaulo 1505 6505 e 15505 27 Sobre a noção de saúde mental Maluf 2006 argumenta que não se trata de uma categoria da análise antropológica e dos seus limites como categoria descritiva ou que dê conta das diferentes representações modelos físicomorais e experiências sociais em torno da questão ver Duarte 1994 28 Ver também Olkin 1999 29 Recorro novamente a Vash 1988 para quem a deficiência é uma experiência de crescimento de transcendência e tal abordagem remonta à noção de acolhida da deficiência de Vash em que temse a expectativa de que muitas pessoas com deficiência podem com o passar do tempo acolher a deficiência e ao acolhêla as energias do processo de reabilitação podem ser dirigidas para treinar a pessoa da forma mais eficiente de lidar com os percalços do viver com uma deficiência A energia pode ser liberada da função de compensar a deficiência da tentativa de ser normal do ódio pela deficiência ou da negação dela e ser encaminhada para aspectos mais alegres da vida como por exemplo o experienciar o aprender o produzir o amar e o conhecer transcendendo assim os efeitos da deficiência 30 Por exemplo ver a coletânea de artigos organizados por Duarte Leal 1998 31 Ajudas técnicas são qualquer produto instrumento equipamento ou sistema técnico utilizado por uma pessoa com limitações oriundas de deficiência fabricado especificamente ou disponível no mercado criado para prevenir compensar mitigar ou neutralizar a deficiência incapacidade ou minusvalia dessa mioloantroppmd 10022010 1442 181 182 pessoa Torres et al 2002 No âmbito da legislação federal o tema das ajudas técnicas é ampliado recebendo tratamento mais aprofundado pelo Decreto Federal nº 529604 Ademais no Brasil o termo ajudas técnicas costuma aparecer como sinônimo de tecnologia assistiva no sentido de recursos tecnológicos que promovam a funcionalidade de pessoas com deficiência 32 Em Santos 2005 há uma diferença entre o ativismo político geral e o ativismo Segundo esse autor o ativismo é uma categoria nativa que denota a a possibilidade de ressignificação da vida idem ibidem p 52 33 Refirome a empowerment por vezes traduzido como empoderamento Em minha opinião o conceito de empoderamento é o cerne da filosofia de vida independente Cf Charlton 1998 34 Em Mello 2006 podese perceber os desdobramentos causados pelo impacto dos Estudos Culturais no movimento do Orgulho Surdo marcado pelo campo dos Estudos Surdos cujo referencial teórico principal é Stuart Hall No campo dos Estudos sobre Deficiência podemos perceber essa influência no trabalho de Scheer 1995 já citado a partir da proposta de uma cultura da deficiência Disability Culture 35 Os Estudos sobre Deficiência são um sólido campo acadêmico interdisciplinar que pretende refletir em suas mais variadas vertentes sobre o fenômeno da deficiência a partir do uso de metodologias e ferramentas analíticas próprias das Ciências Sociais Vários são os programas de graduação eou pós graduação que já esboçam esta proposta em muitos países mas mioloantroppmd 10022010 1442 182 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 183 ainda não têm significativa presença nas Ciências Sociais brasileiras permanecendo restrita a outras áreas do conhecimento como a Psicologia a Educação e a Medicina A principal referência neste campo é o Centro de Estudos sobre Deficiência da Universidade de Leeds na Inglaterra http wwwleedsacukdisabilitystudies 36 A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência faz menção ao gênero sete vezes e ainda inclui em seu texto um artigo específico sobre as mulheres com deficiência em razão de sua dupla condição de vulnerabilidade por gênero e deficiência 37 Diniz Squinca e Medeiros 2007 p 04 afirmam que O Estado brasileiro incorporou a transversalidade de gênero e raça em grande parte das políticas sociais mas é ainda rara à referência à deficiência 38 A meu ver a expressão eu verdadeiro tem uma conotação essencialista o que não diminui o interesse pela discussão do autor sobre o corpo como máscara 39 Finger 1992 p 09 fez o mesmo questionamento muitas vezes a sexualidade é a causa de nossa opressão mais grave também muitas vezes é a causa de nossa mais profunda dor Resultanos mais fácil falar e formular estratégias para a mudança sobre a discriminação no trabalho na educação na moradia que falar sobre nossa exclusão da sexualidade e da reprodução 40 Ou sujeitos de desejo Foucault 1984 mioloantroppmd 10022010 1442 183 184 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVES Paulo C RABELO Miriam C Significação e Metáforas na Experiência da Enfermidade In ALVES Paulo C RABELO Miriam C Orgs Experiência de Doença e Narrativa Rio de Janeiro Ed Fiocruz 1999 AMARAL Lígia A Conhecendo a Deficiência em Companhia de Hércules São Paulo Robe Editorial 1995 ANTONIO Andrea T Corpo e Estética um estudo antropológico da cirurgia plástica Campinas 2008 153 p Dissertação Mestrado em Antropologia Social Universidade de Campinas Campinas ASCH Adrienne Critical Race Theory Feminism and Disability reflections on social justice and personal identity In SMITH Bonnie G HUTCHISON Beth Org Gendering Disability New Brunswick Rutgers University Press 2001 BARLACH Lisete O Que É Resiliência Humana uma contribuição para a construção do conceito 2005 Dissertação Mestrado em Psicologia Instituto de Psicologia Universidade de São Paulo São Paulo BARNES Colin Las Teorías de la Discapacidad y los Orígenes de la Opresión de las Personas con Discapacidad en la Sociedad Occidental In BARTON L Comp Discapacidad y Sociedad Madrid Ediciones Morata La Coruña Fundación Paideia 1998 BHABHA Homi K O Local da Cultura Belo Horizonte UFMG 1998 BERGER Mirela A Projeção da Deficiência São Paulo 1999 202 p Dissertação Mestrado em Antropologia Social Universidade de São Paulo São Paulo mioloantroppmd 10022010 1442 184 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 185 BIANCHETTI Lucídio Os Trabalhos e os Dias dos Deuses e dos Homens a mitologia como fonte para refletir sobre normalidade e deficiência Revista Brasileira de Educação Especial v 7 nº 1 2001 p 6175 BLACK Edwin A Guerra Contra os Fracos a eugenia e a campanha norteamericana para criar uma raça superior São Paulo A Girafa 2003 BOOTH Tim El Sonido de las Voces Acalladas cuestiones acerca del uso de los métodos narrativos con personas con dificultades de aprendizaje In BARTON Len Comp Discapacidad y Sociedad Madrid Ediciones Morata La Coruña Fundación Paideia 1998 BRASIL Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência Tradução Oficial Brasil Brasília Secretaria Especial de Direitos Humanos SEDH Coordenadoria Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência Corde 2008 CARDOSO DE OLIVEIRA Roberto O Trabalho do Antropólogo Brasília 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MELLO Anahi G Nem Toda Pessoa Cega Lê em Braille nem Toda Pessoa Surda se Comunica em Língua de Sinais Educação e Pesquisa v 33 n 2 maioago 2007 p 369386 VASCONCELOS Eduardo M O Poder que Brota da Dor e da Opressão empowerment sua história teorias e estratégias São Paulo Paulus 2003 VASH Carolyn L Enfrentando a Deficiência a manifestação a psicologia a reabilitação São Paulo Pioneira Editora da Universidade de São Paulo 1988 WENDELL Susan The Rejected Body feminist philosophical reflections on disability New York Routledge 1996 WILLIAMS Lúcia C A Sobre deficiência e violência reflexões para uma análise de reflexão na área Revista Brasileira de Educação Especial v9 n2 2003 p141154 mioloantroppmd 10022010 1442 191 mioloantroppmd 192 10022010 1442 Este artigo aborda os itinerários terapêuticos e os modelos de sofrimento revelados nas narrativas de voluntárias da Pastoral da Saúde diagnosticadas com depressão No bairro Saco Grande II localizado no município de FlorianópolisSC a Pastoral da Saúde criou a associação Vida Verde que mantém um horto medicinal uma oficina de fitoterapia e uma farmácia de produtos fitoterápicos O Saco Grande II fica entre o centro da cidade e as praias do norte da ilha frequentadas por turistas de diversas regiões do Brasil e do exterior Além da população de origem local este bairro tem recebido nos últimos anos o afluxo de populações migrantes vindas tanto do interior do estado de Santa Catarina quanto de bairros submetidos a processos de reurbanização por parte do poder público A Pastoral da Saúde se insere em um grupo de entidades ligadas à igreja católica que desenvolvem diversas modalidades de ação social1 chamadas Pastorais Sociais Estas entidades são organizadas e coordenadas pela igreja em seus diversos ITINERÁRIOS TERAPÊUTICOS E MODELOS DE SOFRIMENTO ENTRE VOLUNTÁRIAS DA PASTORAL DA SAÚDE DO BAIRRO SACO GRANDE II FLORIANÓPOLISSC Milena Argenta mioloantroppmd 10022010 1442 193 194 níveis mundial continental nacional regional estadual e municipal Além de produzirem e venderem produtos fitoterápicos como tinturas cremes sabonetes xaropes xampus etc as voluntárias da Associaçao Vida Verde recebem pessoas que sofrem de perturbações diversas e prezam pelo que denominam um atendimento mais humanizado em relação à prática biomédica o que na concepção delas significa dar atenção ao doente e acima de tudo ouvir suas queixas ainda que não estejam diretamente relacionadas à doença em questão O ouvir dedicado e paciente encontrado na Pastoral estendese também às próprias voluntárias que estabelecem entre si uma rede de solidariedade e apoio mútuo Neste sentido o trabalho na pastoral é concebido pelas voluntárias como uma atividade de cunho terapêutico que contribui no tratamento de doenças de ordem emocional psíquica ou moral2 Muitas das voluntárias que atuam na associação Vida Verde inseriramse no grupo após terem sido diagnosticadas com depressão dentro do sistema médico e receberem recomendações médicas para se envolverem com alguma atividade ocupacional Os dados analisados neste trabalho integram as narrativas de quatro mulheres que trabalhavam como voluntárias da Pastoral da Saúde do bairro Saco Grande II de Fevereiro a abril de 20083 Dentre as quatro entrevistadas três apresentam idades entre 50 e 65 anos e uma delas é mais jovem com 30 mioloantroppmd 10022010 1442 194 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 195 anos Esta é solteira mora com a mae duas irmãs e um sobrinho Trabalhava como ajudante de cozinha mas parou de trabalhar devido à doença As demais sao trabalhadoras do lar e uma delas também interrompeu seu trabalho como empregada doméstica após a doença Apenas uma das entrevistadas é casada e as duas outras sao divorciadas Uma entre as quatro terminou o ensino médio enquanto as outras possuem ensino fundamental incompleto Todas as entrevistadas frequentam a igreja católica e duas entre elas frequentam também o espiritismo e a umbanda Cada uma das mulheres que participaram da pesquisa apresentou uma trajetória terapêutica particular vinculada às suas próprias histórias de vida o que procurei considerar e valorizar em minhas reflexões Entretanto este trabalho se concentra nas recorrências presentes na fala das quatro voluntárias em questão e procura analisar a dimensão social e compartilhada do sofrimento A análise que pretendo desenvolver neste trabalho baseia se em algumas abordagens recentes de antropólogos brasileiros em relação à saúde e à chamada saúde mental as quais tentarei expor brevemente para em seguida partir para a análise Pesquisas antropológicas recentes no campo da saúde têm valorizado a abordagem de processos narrativos pelos quais os indivíduos reconstituem experiências de aflição e têm chamado a atenção para o fato de que a doença não pode ser tratada como uma associação mecânica entre signos e sintomas mioloantroppmd 10022010 1442 195 196 No contexto desta pesquisa as narrativas assumem uma importância primordial pois foi através delas que foi possível se ter acesso à forma como as voluntárias conseguiram organizar os eventos vividos e dar sentido à própria experiência De acordo com Rabelo e Alves 1999 p 201 as narrativas refletem uma experiência individual mas ao mesmo tempo revelam as imagens e metáforas de um campo intersubjetivo através do qual os indivíduos dão forma e comunicam suas experiências singulares Ao narrar um problema caracterizandoo como doença os indivíduos não estão apenas apontando fatos consumados eles estão tecendo em torno de si os fios de uma realidade em que buscam habilmente envolver os outros Rabelo 1999 p 85 Os relatos das minhas entrevistadas revelaram um entrelaçamento entre a experiência do sofrimento e uma interpretação acerca de suas causas Ao relatarem o modo como reconheceram suas sensações de malestar como possíveis sinais de que algo não vai bem elas sempre faziam referência a acontecimentos do passado ou a atributos reconhecidos por elas como característicos de sua personalidade a separação do marido em um caso e uma personalidade introspectiva em outro por exemplo Definir e explicar uma doença de acordo com Souza 1998 envolve interpretação e distanciamento o que significa que os sujeitos ao voltaremse para a própria experiência com o intuito de explicar o sofrimento afastamse de seu fluxo de mioloantroppmd 10022010 1442 196 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 197 vivências e estas quando em retrospectiva aparecem dotadas de sentido Desse modo o problema diante do qual o sujeito se encontra passa a definir o que é relevante ou não o que merece ser revisto com maior clareza e o que pode permanecer inquestionado em sua trajetória de vida Portanto o olhar que se volta para o passado é feito à luz de um projeto a cura e desse modo comandado por uma visão de futuro Souza 1998 p 151 As narrativas acerca de uma doença revelam o itinerário percorrido pelos sujeitos na tentativa de atribuir sentido à experiência e aliviar o sofrimento4 O itinerário terapêutico consiste em um conjunto de processos de busca de tratamento que se inicia com a constatação de uma enfermidade e passa por diversas etapas nas quais podem se atualizar diferentes interpretações para o sofrimento e possibilidades de cura Buchillet 1991 Contudo este itinerário não é necessariamente produto de um plano organizado e pré determinado Alves e Souza 1999 apontam que os processos de busca de tratamento e cura só constituem uma unidade quando o sujeito olha para suas próprias experiências passadas na tentativa de interpretálas com o seu conhecimento presente a partir das circunstâncias atuais Ao abordar os itinerários terapêuticos das voluntárias da Pastoral da Saúde diagnosticadas com depressão procuro apresentálas como sujeitos que compartilham com outros sujeitos envolvidos no processo de interpretação da doença mioloantroppmd 10022010 1442 197 198 uma gama de crenças e receitas práticas para lidar com o sofrimento e aliviálo Os itinerários retratam a singularidade absoluta do percurso de cada um o modo como os sujeitos interpretam e atribuem significado às suas escolhas mas ao mesmo tempo em que são únicos não falam de um indivíduo apenas mostram as dimensões sociais da experiência Maluf 2003 TRAJETÓRIAS SINGULARES UMA PESSOA COLETIVA As narrativas das entrevistadas sobre o sofrimento e a busca de cura ilustram muito bem o caráter amplo e processual da doença em constante interpretação para os sujeitos que a vivenciam Com a intervenção de outros sujeitos parentes amigos médicos e outros terapeutas de transformações ocorridas no cotidiano com o passar do tempo com a adoção e o abandono de determinados tratamentos a ocorrência de novas crises ou a percepção de melhoras a doença ganha novos significados e o doente reconstitui sua trajetória e a própria experiência de sofrimento atribuindolhes novos sentidos Nesta lógica o modo como cada uma das entrevistadas reconstitui sua experiência de sofrimento e trajetória terapêutica é fortemente influenciado pelas condições atuais em que se encontram Assim o olhar de uma pessoa que afirma ter se curado para o próprio sofrimento é diferente do de outra que já seguiu diversos tratamentos e não conseguiu se curar No primeiro caso a ênfase está na cura no fato de ter mioloantroppmd 10022010 1442 198 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 199 se livrado das coisas ruins que causavam a doença e retomado suas atividades cotidianas O tratamento o médico e o remédio nesse caso são vistos como positivos já que seu percurso é revisto a partir do fato de ter atingido seu objetivo principal a cura No segundo a entrevistada enfatiza o sofrimento as sensações que ela não consegue aliviar e sua frustração por mobilizar tantos recursos terapêuticos e não atingir os resultados esperados Sua trajetória é reconstituída a partir de um olhar orientado por essa sensação de angústia e frustração por não conseguir se curar Entretanto é possível identificar diversos elementos comuns nas narrativas Na experiência das quatro entrevistadas o sofrimento se inicia com uma crise Em alguns casos essa crise consiste em um evento dramático na trajetória de vida dessas mulheres separação adoecimento e morte da mãe por exemplo entendido por elas como causador do sofrimento Em outros a crise é vivenciada no próprio corpo surto psicótico infarto são algumas das vivências citadas e serve como principal indicador de uma situação de enfermidade Em ambas as situações a identificação de uma crise aparece como um marcador narrativo de ruptura nos termos de Maluf 1999 ela é provocada por uma ou mais situações de aflição e ao mesmo tempo reveladora dessa aflição A doença aparece nos relatos enquanto uma disrupção na biografia que divide suas vidas em antes e depois Antes elas se dedicavam a diversas atividades que foram interrompidas mioloantroppmd 10022010 1442 199 200 ou passaram a ser realizadas com menor vontade depois da doença Dentre elas destacamse as atividades domésticas como cozinhar lavar passar e organizar a casa além de sair de casa para visitar parentes e amigos fazer compras freqüentar salões de beleza etc Os principais sintomas identificados como característicos do sofrimento são tristeza vontade de se isolar indisposição para desempenhar as atividades cotidianas ausência de vontade de viver sensação de morte sensação de estar presa sono falta de apetite variações de humor vontade de acabar com a própria vida etc além de sensações físicas como dor de cabeça dor nas costas falta de ar dor no peito agitação e nervosismo Uma característica marcante na experiência de sofrimento das entrevistadas é a identificação do espaço doméstico a casa com o sofrimento Os discursos de duas das entrevistadas revelaram o cansaço de uma vida dedicada ao trabalho doméstico em conjunto com as preocupações com a família e os problemas de relacionamento com o marido No caso de uma delas o cansaço é acentuado com o trabalho como diarista pois além da própria casa ela ressalta que passou a vida toda cuidando da casa dos outros Neste aspecto a experiência de sofrimento das entrevistadas aparece como um idioma nos termos de Silveira 200088 que permite que se destaquem da vida social alguns papéis que dele se utilizam com frequência sobretudo aos ligados ao que é esperado mioloantroppmd 10022010 1442 200 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 201 tradicionalmente como atribuição feminina Esse idioma de acordo com a autora tem usos e finalidades e pode demonstrar opressão na ou da vida diária questões ligadas à sexualidade dificuldades de relacionamento social etc Outra entrevistada mais jovem e solteira tem outra relação com o ambiente doméstico que aparece em sua fala como um lugar de introspecção e solidão A depressão que se manifesta para ela como a perda da vontade de viver leva à reclusão em casa vontade de ficar só deitada na cama sozinha em um canto escuro sem ver ninguém etc Neste sentido a casa aparece não somente como o lugar onde essas mulheres sofrem mas onde não há vida A vida enquanto vontade disposição para fazer as coisas está fora de casa em atividades desvinculadas do ambiente doméstico e que ocupem a mente enquanto em casa a cabeça se preenche com besteiras ou coisas ruins como idéias suicidas por exemplo Por isso esforçarse para melhorar significa sair de casa e tentar viver Outra recorrência no discurso das entrevistadas é a valorização do diagnóstico e do tratamento médico Quando falam do sofrimento elas falam de uma doença específica e muito séria a depressão Do mesmo modo o tratamento que vai curar essa doença é o tratamento médico com medicamentos Os fitoterápicos da Pastoral da Saúde assim como as atividades ocupacionais com as quais elas procuram se envolver são considerados muito bons ou eficientes mioloantroppmd 10022010 1442 201 202 como se ajudassem a diminuir o sofrimento de uma maneira mais ampla Mas quando falam em tratamento para a doença depressão elas se referem ao tratamento médico com medicamentos Porém a adesão a determinado tratamento não exclui os outros Ao contrário as voluntárias fazem uso de uma grande quantidade de recursos terapêuticos simultaneamente e acreditam que todos contribuem em alguma medida para sua recuperação mas percebem os diferentes tratamentos como atuantes em diferentes dimensões do sofrimento A ênfase no diagnóstico médico e no tratamento com medicamentos retrata a inarredável legitimidade do discurso médicocientífico sobre o processo de adoecimento tratamento e cura entre elas Diagnosticado como depressão o sofrimento passa a ter um nome científico reconhecido nas sociedades urbanas modernocontemporâneas como uma doença séria Nesta lógica o diagnóstico confere validade e legitimidade ao sofrimento dessas mulheres e a medicalização constitui uma forma de objetiválo Contudo a relação estabelecida com os médicos não é de passividade e isenta de conflitos Em geral elas aceitam o diagnóstico mas tentam negociar o tratamento avaliandoo segundo suas percepções de crises ou melhoras e conciliando o com outros tratamentos que também consideram importantes Uma das entrevistadas relatou uma relação extremamente conflituosa com o médico a ponto de lhe causar mioloantroppmd 10022010 1442 202 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 203 um trauma relacionado ao tratamento com medicamentos Esse conflito se manifesta por ser a relação médicopaciente essencialmente uma relação de poder na qual o poder do médico se garante e se justifica nos privilégios do conhecimento Como afirma Foucault 1979123 o médico é competente o médico conhece as doenças e os doentes detém um saber científico que é do mesmo tipo que o do químico ou do biólogo eis o que permite a sua intervenção e a sua decisão As quatro voluntárias conferem grande importância ao que chamam de lado espiritual no processo de tratamento e cura Entretanto a influência da espiritualidade é percebida por elas de duas maneiras distintas Algumas acreditam que o sofrimento pode ter causas espirituais ou seja pode estar relacionado a uma experiência do sobrenatural como mediunidade não desenvolvida castigo ou coisa ruim enviada por outra pessoa Neste sentido um tratamento espiritual significa uma mediação com esse sobrenatural que estaria causando a doença De outro modo as demais não concebem uma intervenção direta de algo sobrenatural como causa de seu sofrimento Este é entendido apenas como decorrente de um desequilíbrio emocional ou psíquico e desse modo trabalhar a dimensão espiritual através de rezas retiros espirituais ou simplesmente freqüentando a missa seria uma forma de se reequilibrar lavar a alma libertarse de qualquer mágoa rancor ou raiva que possa estar causando esse desequilíbrio mioloantroppmd 10022010 1442 203 204 O trabalho como voluntária da Pastoral da Saúde é evidenciado pelas entrevistadas como uma atividade que contribui em grande parte para sua recuperação por dois motivos principais O primeiro está relacionado ao caráter ocupacional dessa atividade já que o trabalho voluntário lhes permite sair de casa e ocupar a mente com coisas boas O segundo referese à rede de amizade e solidariedade que as voluntárias estabelecem entre si Na Pastoral elas encontram outras mulheres que se não estão passando ou já passaram pelo mesmo sofrimento compreendemno e estão dispostas a ouvir suas queixas Com exceção de uma delas cujo percurso é percebido como tendo atingido seu fim último a cura as narrativas das voluntárias revelam uma trajetória ainda incompleta em busca de cura que se desenrola de maneira não linear e em constante ressignificação propiciada por novos acontecimentos e pela aquisição de novos conhecimentos na interação com outros sujeitos envolvidos nesse processo MODELOS DE PESSOA E MODELOS DE SOFRIMENTO NA EXPERIÊNCIA DAS VOLUNTÁRIAS Pesquisas recentes sobre saúde mental têm apontado uma dicotomia entre dois modelos distintos de conceber pessoa e subjetividade entre classes médias e classes populares no Brasil um modelo relacional de pessoa e o modelo do indivíduo ocidental moderno Essa diferença cultural influenciaria o modo como saúde e doença são concebidas e experimentadas por sujeitos diferentes entre as classes mioloantroppmd 10022010 1442 204 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 205 populares e os segmentos dominantes eruditos e oficiais das sociedades nacionais modernas Para Duarte 1986 os indivíduos das classes populares concebem a pessoa de forma holista inserida em relações sociais mais amplas e indissociáveis de sua concepção do Eu Esta visão contrasta segundo o autor com a concepção individualista da pessoa moderna predominante nas classes médias na qual o indivíduo é concebido como um ente psicológico autônomo constituindose enquanto categoria com valor e sentido moral Entre as classes médias predominaria um modelo individualistaracionalista com ênfase na dimensão psicológica dos indivíduos centrado na racionalização médica e medicalização da subjetividade no qual o termo mais apropriado para tratar do sofrimento seria distúrbio psicológico ou psíquico Entre as classes populares o autor aponta a predominância do modelo dos nervos no qual o discurso e a experiência da doença freqüentemente questionam a dicotomia corpomente presente na biomedicina relacionando em um único episódio de doença elementos de ordem biológica social espiritual e moral Observando as teorias sobre pessoa desde a Antiguidade Clássica Duarte 1994 demonstra que os saberes antigos dos nervos contribuíram para as especulações sobre a constituição humana como as teorias sobre a relação entre o coração e o cérebro mas mantiveramse subordinados às teorias da alma e à configuração dos humores e temperamentos até mioloantroppmd 10022010 1442 205 206 o século XVIII Com as transformações sociais e culturais que culminam na chamada cultura ocidental moderna os nervos são reapropriados em um sistema mecanicista integrado o sistema nervoso servindo de suporte para o surgimento do novo sujeito moderno autônomo e universalmente idêntico Em finais do século XIX surge uma nova configuração da pessoa em decorrência da força das idéias individualizantes a concepção dos saberes psicologizados Isso se dá de acordo com o autor a partir da influência da psicanálise e em oposição ao saber considerado antiquado dos nervos No entanto Duarte 199487 argumenta que as classes populares em geral no ocidente continuaram a dispor de um modelo de pessoa condizente ou solidário com suas próprias resistências à individualização no sentido de conversão à ideologia culta do individualismo Para abordar as experiências de sofrimento neste grupo social o autor propõe então o uso do termo perturbação físicomoral que evoca as condições situações ou eventos de vida considerados irregulares ou anormais pelos sujeitos sociais e que envolvam ou afetem não apenas sua mais imediata corporalidade mas também sua vida moral seus sentimentos e sua autorepresentação Duarte 2003 p 177 As perturbações físicomorais de acordo com o autor compreendem um núcleo de sintomas físicos mais ou menos constantes como dores de cabeça tremura aflição ou insônia mas paralelamente observase uma rica expressão de sintomas mioloantroppmd 10022010 1442 206 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 207 morais como tristeza preocupação aborrecimento ou fúria que acionam as metáforas mecânicas e orgânicas associadas ao nervoso A lógica do nervoso admite que um evento físico possa acarretar reações morais ou uma experiência moral ter implicações físicas sem que no entanto se deixe de distinguir entre os dois planos Duarte 1986 Ao longo deste trabalho procurei analisar as experiências de sofrimento e os itinerários terapêuticos de voluntárias da Pastoral da Saúde do bairro Saco Grande II que foram diagnosticadas pelos médicos como tendo depressão As narrativas de sofrimento e busca de tratamento e cura revelaram alguns aspectos compartilhados na experiência das voluntárias a identificação de uma crise como desencadeadora e ao mesmo tempo reveladora do sofrimento valorização do diagnóstico e do tratamento médicos identificação do espaço doméstico a casa com o sofrimento influência da dimensão espiritual no processo de tratamento e cura e uma grande importância concedida ao trabalho voluntário na Pastoral da Saúde enquanto uma atividade com sentido terapêutico que contribui em grande parte na recuperação Os relatos das voluntárias apontam diversas questões que nos ajudam a refletir sobre suas percepções e experiências de sofrimento relacionadas às concepções de pessoa e subjetividade presentes no grupo pesquisado que a meu ver poderiam ser agrupadas em três modelos de sofrimento mioloantroppmd 10022010 1442 207 208 A ênfase e a valorização do diagnóstico e tratamento médicos evidenciada nas narrativas das voluntárias diagnosticadas com depressão sugerem a predominância de um modelo biomédico centrado na racionalização médica da experiência subjetiva e do sofrimento e na medicalização O discurso das outras voluntárias da Pastoral também aparece vinculado a um modelo biomédico na medida em que valoriza a racionalidade científica e revela concepções sobre o corpo saúde e doença baseadas no dualismo corpomente característico da medicina ocidental moderna Por outro lado revelouse também no discurso de todas as voluntárias entrevistadas um modelo espiritual que valoriza a influência da religiosidade e da dimensão espiritual na experiência do sofrimento e busca de cura É claro que essa influência aparece com algumas particularidades na experiência de cada uma das entrevistadas mas é concebida por todas como um fator de fundamental importância no processo de adoecimento tratamento e cura É possível falar ainda em um modelo socialrelacional que se expressa na importância atribuída ao papel da rede social na qual se inserem enquanto um recurso terapêutico Nos relatos das quatro voluntárias diagnosticadas com depressão a doença aparece como resultante e ao mesmo tempo um indicador de situações problemáticas em seu grupo social mais próximo e o tratamento deve em grande parte proporcionar o reestabelecimento de vínculos sociais e redes de amizade e mioloantroppmd 10022010 1442 208 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 209 solidariedade a partir do envolvimento com atividades que as tiram de dentro de casa do isolamento e aproximamnas de outras pessoas O modelo dos nervos proposto por Duarte pode ser percebido em diversos momentos na fala das voluntárias seja nas interpretações e explicações para o processo de adoecimento na percepção e avaliação dos tratamentos e da cura ou na própria experiência de um sofrimento que envolve e afeta não somente a experiência sensível como também a vida moral e as relações estabelecidas com os outros Quando descrevem suas sensações sintomas físicos como aflição dor no peito sono agitação dor de cabeça etc aparecem paralelamente a sintomas morais como tristeza vontade de morrer e vontade de se isolar aproximandose ao que Duarte denomina de perturbação físicomoral Do mesmo modo como coloquei acima o modelo individualistaracionalista também se faz presente no discurso das voluntárias que incorpora em alguns aspectos as explicações biomédicas ligadas à interiorização e psicologização dos sujeitos bem como a primazia de uma realidade reificada da doença e da medicalização sobretudo na centralidade dada ao diagnóstico médico da depressão É interessante perceber que as experiências de sofrimento e as percepções das voluntárias sobre o processo de adoecimento e busca de tratamento e cura expressam uma interação entre os saberes ditos leigos ou ordinários que mioloantroppmd 10022010 1442 209 210 fundamentam as representações das classes populares sobre o corpo saúde e doença com os eruditos ou científicos formadores das concepções dos segmentos dominantes Isso nos leva a refletir sobre as nuances desses modelos de conceber pessoa e subjetividade propostos por Duarte que a meu ver não constituem quadros de referência fechados estáticos e determinantes diretos das concepções e da experiência dos sujeitos em um mesmo segmento social São ao contrário dinâmicos e se atualizam na experiência vivida e compartilhada entre os sujeitos que interagem com outros no mesmo e também em distintos segmentos sociais O próprio Duarte chama a atenção para a dimensão dinâmica dessa oposição entre saberes eruditos e ordinários O autor ressalta que desde o século XVIII as fórmulas da biomedicina não têm cessado de influir nas representações gerais concernentes ao adoecimento e de modificar os patamares de tolerância e demanda das instituições médicas Duarte sugere que algo porém de uma reinvenção parece envolver a forma dessa difusão tornando permanentemente fluidas e complexas as fronteiras delineadas por esse modelo de diferença Duarte 199814 O fato de aderirem e valorizarem o diagnóstico e o tratamento médicos e de muitas vezes fazerem uso de elementos de uma linguagem médicopsiquiátrica para falar do sofrimento não invalida as interpretações e suas perspectivas de tratamento e cura vinculadas à dimensão espiritual ou à mioloantroppmd 10022010 1442 210 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 211 rede de sociabilidade na qual as voluntárias se inserem e não significa que a experiência sensível de uma perturbação nomeada com uma categoria biomédica se restrinja ao que a biomedicina associa à depressão Ao contrário as voluntárias conciliam interpretações e tratamentos diversos para o sofrimento que é percebido e vivenciado ao longo uma trajetória biográfica singular em constante interação com os outros sujeitos que participam desse processo Ao analisar as narrativas de sofrimento e trajetórias terapêuticas destas quatro mulheres em suas buscas por tratamento e cura tive a intenção de demonstrar que os sujeitos são ativos na interpretação de suas perturbações e nas tentativas de amenizálas Elas vivenciam situações de aflição e constroem significados relacionados a estas através de processos que envolvem não somente a experiência sensível mas também uma interação dinâmica com familiares curadores e demais pessoas próximas NOTAS 1A CNBB define ação social como um serviço que multiplica atividades de conscientização organização e transformação as quais levam à conversão pessoal por um lado e a mudanças concretas de ordem social econômica e política por outro CNBB REGIONAL SUL IV 2000 2 Sobre noções como saúde mental psicossocial físicomoral ver Duarte 1994 3 Este artigo baseiase em meu trabalho de conclusão do curso de mioloantroppmd 10022010 1442 211 212 BUCHILLET Dominique org A antropologia da doença e os sistemas oficiais de saúde In Medicinas tradicionais e Medicina Ocidental na Amazônia Belém MPEB Cnpq SET PR CEJUP UEP 1991 CNBB REGIONAL SUL IV Manual da Pastoral da Saúde Florianópolis CNBB Regional Sul IV 2000 DUARTE Luiz Fernando Dias A outra saúde mental psicossocial físicomoral In ALVES Paulo Cesar MINAYO Maria Cecília de Souza orgs Saúde e doença um olhar antropológico Rio de Janeiro Ed Fiocruz 1994 P 8390 Da vida nervosa nas classes trabalhadoras urbanas brasileiras Rio de Janeiro JZECNPq 1986 Indivíduo e pessoa na experiência da saúde e da doença Ciências Saúde Coletiva v 8 n1 pp 173183 2003 Investigação antropológica sobre doença sofrimento e perturbação uma introdução In LEAL Ondina F DUARTE Luiz Fernando D orgs Doença sofrimento perturbação perspectivas etnográficas Rio de Janeiro FIOCRUZ 1998 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ciências sociais na Universidade Federal de Santa Catarina defendido em Agosto de 2008 e vinculado ao projeto de pesquisa Gênero subjetividade e saúde mental Políticas públicas ativismo e experiências sociais em torno de gênero e saúde mental coordenado pela professora Sônia Weidner Maluf aprovado e financiado pelo CNPq Edital Universal 4 Para uma abordagem sobre as noções de doença sofrimento e perturbação sob uma perspectiva diferente da abordagem da experiência ver Duarte 1998 mioloantroppmd 10022010 1442 212 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 213 FOUCAULT Michel A casa dos loucos In Microfísica do poder Rio de Janeiro Edições Graal 1979 P 113128 MALUF Sônia Weidner Antropologia narrativas e a busca de sentido Horizontes Antropológicos Porto Alegre v 5 n12 Dezembro de 1999 6982 Peregrinos da Nova Era itinerários espirituais e terapêuticos no Brasil dos anos 90 Antropologia em Primeira Mão Florianópolis PPGASD UFSC 2007 526 RABELO Miriam C Narrando a doença mental no Nordeste de Amaralina relatos como realizações práticas In RABELO Miriam C ALVES P C SOUZA I M orgs Experiência de doença e narrativa Rio de Janeiro Editora Fiocruz 1999 ALVES Paulo Cesar Tecendo o Self e Emoção nas Narrativas de Nervoso In RABELO Miriam C ALVES Paulo Cesar SOUZA I M orgs Experiência de doença e narrativa Rio de Janeiro Editora Fiocruz 1999 SILVEIRA Maria Lúcia O Nervo Cala o nervo fala A linguagem da doença Rio de Janeiro Editora Fiocruz 2004 SOUZA I M Um retrato de Rose Considerações sobre processos interpretativos e elaboração de história de vida In LEAL O F DUARTE L F D orgs Doença sofrimento perturbação perspectivas etnográficas Rio de Janeiro FIOCRUZ 1998 mioloantroppmd 10022010 1442 213 mioloantroppmd 214 10022010 1442 Eu dava banho na minha mãe ela sempre gostava disso e eu tratava ela com muito carinho Ela morreu nos meus braços quando dava banho nela E depois que ela morreu eu fui ao medico e disse a ele que estava muito nervosa e tinha dor de barriga porque tinha cuidado durante sete anos da minha mãe com Alzheimer E ele fez exames e disse Isto não é nervos é uma ulcera de falta de alimentação Ainda bem que sua mãe morreu agora porque se tivesse resistido mais um pouquinho ela teria levado você junto Estávamos sentadas à mesa da cozinha de Eulália conversando sobre sua vida e sua família Eu tinha perguntado se seus pais ainda viviam e ela explicou que depois da morte do seu pai sua mãe tinha vindo viver com ela e quando Eulália tinha 60 anos sua mãe que então estava no começo dos 80 foi diagnosticada com a Doença de Alzheimer e por sete anos Eulália cuidou dela em sua casa Naquela época Eulália ainda estava trabalhando como camareira e contou que cuidava da mãe de manhã fazia o café para ela dava banho lavava sua A OBRIGAÇÃO DE CUIDAR MULHERES IDOSAS EM UMA COMUNIDADE DE FLORIANÓPOLIS Diana Brown mioloantroppmd 10022010 1442 215 216 roupa a roupa de cama e lhe preparava e dava o almoço Depois saia para trabalhar pegava o ônibus muitas vezes sem comer o próprio almoço Seu marido aposentado por invalidez cuidava da mãe de Eulália durante a tarde e ela ao voltar à noite do trabalho cuidada da mãe de novo Nos fins de semana os seus filhos e esposas ajudavam na cozinha e com a limpeza da casa Esta narrativa sobre cuidados com uma idosa doente emergiu cedo durante minha atual pesquisa sobre envelhecimento saúde e beleza numa vizinhança no norte da Ilha de Santa Catarina Florianópolis formada principalmente por classes populares que inclui uma concentração de pessoas nativas da Ilha que até muito recentemente eram agricultores camponeses e que remetem sua ancestralidade aos imigrantes das ilhas dos Açores que chegaram ali no século XVIII Ela me alertou para o que descobri ser uma situação comum no Grupo de Terceira Idade com o qual venho trabalhando nos últimos quatro anos tanto como participante quanto como pesquisadora1 que mulheres nos seus 6070 e até 80 anos idosas de acordo com o Censo que agora define o início da velhice aos 60 anos cuidam de parentes idosos doentes e incapacitados em casa A narrativa de Eulália captura os temas principais que vou desenvolver aqui a predominância de mulheres como cuidadoras principais de idosos doentes e a imbricação deste cuidado com redes de cuidado mais amplos dentro da rede mioloantroppmd 10022010 1442 216 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 217 familiar a intimidade corporal envolvida no cuidado com parentes idosos aflições que resultam deste cuidado e os encontros que estas situações geram entre as linguagens local e biomédica sobre a aflição finalmente idosos como cuidadores de idosos a Terceira Idade cuidando da Quarta Idade Vou explorar estes tópicos de uma perspectiva etnográfica enfatizando a importância da especificidade contextual de fatores e relacionamentos a partir dos quais estas práticas e significados emergem Heck e Langdon 2002 Silveira 2000 bem como localizandoos no contexto de uma comunidade nativa coesa que se esforça para não perder seus valores e tradições ao mesmo tempo em que é insistentemente parte do mundo contemporâneo Este estudo também contribui para o conhecimento do multifacetado e complexo panorama das relações sociais e familiares envolvendo pessoas idosas no Brasil hoje Alves 2008 p 238 Este estudo contribui também para o conhecimento do complexo e multifacetado panorama das relações e familiares envolvendo pessoas idosas hoje no Brasil Alves 2008 p 38 Meu foco sobre as cuidadoras femininas é uma conseqüência não antecipada de dois aspectos da minha pesquisa primeiro que as mulheres são a grande maioria dos participantes tanto deste quanto de outros Grupos de Terceira Idade Britto da Motta 1999 p 219 Alves 2008 p 132 por isto figuram aqui proeminentemente como sujeitos da pesquisa segundo que o cuidado dos doentes é feito predominantemente mioloantroppmd 10022010 1442 217 218 por mulheres e é visto pelos membros deste grupo e nesta vizinhança como trabalho de mulher como é o caso em geral no Brasil e em grande parte do mundo Caldas 2002 Neriv 2006 Silveira 2000 É importante notar no entanto que gênero é relacional Scott 1988 Di Leonardo 1991 isto é que as práticas e valores de um gênero não podem ser analisadas sem se levar em conta outros na sociedade Assim nesta situação também os cuidados prestados por mulheres e seus problemas de saúde derivados deste seu papel de cuidadoras devem ser vistos no contexto de um panorama local mais amplo e das relações de gênero nas famílias Meu trabalho aqui se aproxima da recente literatura sobre cuidadores de idosos no Brasil no âmbito das ciências da saúde em especial da psicologia da gerontologia e da enfermagem que tem aumentado com a constatação de que a população brasileira está envelhecendo como resultado da transformação demográfica envolvendo maior longevidade e taxas mais baixas de fertilidade Esta literatura que tem sido fortemente influenciada pela extensa literatura vinda dos Estados Unidos e da Europa oferece modelos úteis para a categorização de cuidadores e para o exame de redes de cuidadores Reconhece a diversidade das situações de cuidado e inclui estudos locais de cuidadores em diversos setores de classe e étnicos da população No entanto de uma perspectiva etnográfica estes estudos tem duas insuficiências primeiro com poucas exceções Caldas 2002 Santos 2006 eles tendem a caracterizar os mioloantroppmd 10022010 1442 218 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 219 cuidadores primariamente através de entrevistas e negligenciam a importância dos contextos locais para a configuração de valores e significados nos quais o ato de cuidar está imerso bem como a dimensão experiencial das atividades relacionadas ao cuidado Neste trabalho eu situo as atividades relativas ao cuidado nas relações sociais que são praticadas e valoradas dentro desta comunidade e dou atenção à dimensão de experiência que estes cuidadores têm enquanto cuidadores Em segundo lugar estes estudos tem sido feitos a partir de preocupações e de um quadro de referências biomédicas e tendem a trazer consigo a bagagem cultural associada a estas perspectivas orientadas pela biomedicina a aceitação acrítica e o uso de categorias biomédicas e da linguagem derivada especificamente da sua especialidade médica e mais geralmente a partir de uma visão de mundo científica ocidental Quero problematizar esta visão de mundo científica e explorar os resultados dos encontros entre membros de uma população local que usa linguagens locais de aflição e as linguagens dos especialistas biomédicos A VIZINHANÇA Florianópolis é hoje uma cidade de aproximadamente 408000 mil pessoas muito procurada pelas classes medias por sua qualidade de vida e um destino preferido de turistas em busca de suas praias e beleza natural A vizinhança na qual tenho trabalhado se localiza no que é agora uma comunidade praieira no norte da ilha Até os anos 1950 estava isolada e mioloantroppmd 10022010 1442 219 220 esparsamente habitada por uma população em grande parte descendente da imigração açoriana Seus habitantes viviam em comunidades camponesas isoladas da lavoura e da pesca coletavam madeira para seus engenhos de farinha e criavam vacas em campos comunais Não havia estradas nem transporte público por vários quilômetros e as viagens eram feitas a pé ou de canoa A escola local só chegava ao segundo ano primário a Igreja Católica estava a vários quilômetros de caminhada e não havia posto de saúde A penetração desta área por especuladores de terra começou lentamente nos anos 1920 aumentou durante os 1950 fazendo com que parte da população nativa se mudasse Mas não foi até a década de 1970 que esta área de praia começou a se desenvolver como um balneário ocupado por pessoas de fora e se tornou parte do que Lago 1998 260 chamou de processo galopante de urbanização das praias envolvendo a expansão de equipamentos turísticos novas habitações hotéis e empreendimentos comerciais Motta 2002 Fantin 2000 A vizinhança é agora um dos muitos enclaves nativos que pontilham a área costeira da ilha Os nativos como os antigos residentes da área referemse a si mesmos são chamados de Manezinhos pelos de fora2 vivem agora num dos cantos da praia agrupados ao longo de uma estrada interiorana secundária e das servidões que se estendem para cima das colinas3 Eles vivem nas margens e nos interstícios dos novos estabelecimentos comerciais e apartamentos de luxo associados mioloantroppmd 10022010 1442 220 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 221 com o turismo em expansão Novos residentes que são tratados pelos nativos como os de fora ou forasteiros ou invasores são principalmente de classe média alguns de outras cidades de Santa Catarina muitos do Rio Grande do Sul Diferente dos padrões de moradia intercalado comuns em outros locais da ilha Rial 1988 Motta 2002 há uma tendência de segregação residencial os nativos tendem a viver em áreas longe da praia e os novos moradores perto dela Durante a temporada a população incha com visitantes da Argentina Uruguai e outras partes do Brasil Com todas estas mudanças há uma comunidade nativa muito vital ainda que pequena cujos residentes ainda vivem nas propriedades dos seus ancestrais lineares a maioria com títulos de posse Tendem a viver em segmentos familiares residências ver Rial 1988 Motta 2002 em terrenos e propriedades vizinhas que agora contem várias casas e pode incluir parentes lineares de três quatro e até cinco gerações numa só propriedade Os laços de parentesco são extraordinariamente densos e importantes Maluf 1993 Motta 2002 eles estruturam muito da vida diária das relações e atividades e são onipresentes nas conversas Falar de um membro específico desta comunidade para uma pessoa de outra provavelmente evocará uma recitação espontânea das relações de parentesco entre eles grau e geração incluindo as relações afins Numa conversa com uma mulher que escolhi ao acaso dentre os membros do Grupo de Terceira Idade ela não mediu mioloantroppmd 10022010 1442 221 222 esforços para se conectar com todas as outras mulheres nativas do grupo Os freqüentes casamentos entre famílias e as densas relações de parentesco na vizinhança e com outras comunidades de vizinhanças nativas por muitas gerações produziu uma comunidade muito coesa pelo parentesco residência comum e pela estabilidade resultante das gerações de parentes que vivem nas mesmas propriedades Assim apesar da enormidade das mudanças que ocorreram nos últimos 40 anos nas quais a comunidade passou de uma comunidade de agricultura e pesca de subsistência a fazer parte do mundo urbano contemporâneo da dependência da escrita do trabalho assalariado do consumismo membros desta comunidade não estão vivendo em pobreza eles possuem suas casas têm pequenas rendas de aposentadoria e continuam a fazer trabalhos para os mais ricos que vieram de fora trabalhando como empregadas faxineiras zeladores jardineiros trabalhadores da construção e no pequeno comércio Eles se tornaram parte da classe popular enquanto alguns de seus filhos tiveram mobilidade ascendente e são agora classe média Eles se acomodaram e até se beneficiaram deste novo mundo mas continuam a manter valores comuns embebidos nas memórias de seu mundo anterior de ter crescido e criado seus filhos nele da terra e de quem viveu nela valores que eles mantêm e lutam por transmitir aos filhos e netos Alguns aspectos desta identidade nativa são significativas na moldagem da natureza do ato de cuidar e serão tratadas adiante mioloantroppmd 10022010 1442 222 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 223 Estes valores são frequentemente reforçados pela fofoca uma realidade central dos encontros diários A fofoca é muito intensa nesta comunidade todos são muito curiosos sobre a vida dos outros e preocupados em manterse atualizados sobre o que estão fazendo Grande parte desta fofoca ocorre nos encontros da comunidade tais como as atividades do Grupo de Terceira Idade do Grupo do Apostolado da Igreja Católica local e na rua Muito poucos desta geração dirigem carros ainda que seus filhos geralmente o façam por isto podem ser encontrados caminhando na rua fazendo compras parando para fofocar com os vizinhos esperando no ponto de ônibus Aprendi logo no começo de minha pesquisa que quando eu oferecia carona para uma destas pessoas era provável que recusassem explicando Não eu prefiro caminhar Assim posso dar um oi pra todo o mundo e ficar sabendo as novidades A fofoca é intensa e constante e inclui não só os da comunidade mas se estende para os de fora como eu que participam de sua vida Um dos tópicos centrais da fofoca é saúde e doença As pessoas fofocam sobre sua própria saúde seus sintomas seus remédios detémse em descrições detalhadas trocam novas receitas e novas fontes de uma pletora de remédios caseiros Também conversam sobre quem está doente nas suas famílias na comunidade demorando em descrições detalhadas de suas condições seus tratamentos e de quem está cuidando deles As conversas quase sempre incluem longas ladainhas de mioloantroppmd 10022010 1442 223 224 condições sintomas doenças tratamentos e comentários sobre como os doentes estão sendo cuidados quem cuida deles qual a qualidade do cuidado Todos os tópicos relacionados à saúde são matéria para uma boa fofoca As mulheres com quem tenho trabalhado são idosas em seus 60 70 80 várias nos 90 e ao menos duas com mais de 100 anos Cresceram juntas casaram dentro da comunidade ou com pessoas de comunidades nativas vizinhas e criaram seus filhos na condição de agricultores e pescadores camponeses antes do advento da eletricidade das estradas ou qualquer escolaridade além do segundo ano primário Entre as grandes e até muito chocantes mudanças dos últimos 40 anos elas mantiveram muitas das práticas e valores da juventude incluindo o sentido de importância da família A maioria casou com outros nativos O GRUPO DE TERCEIRA IDADE Três manhãs por semana às 8h30 os participantes se reúnem para a ginástica Chegam a pé de bicicleta raramente de carro ao prédio de cimento que pertence à Associação de Moradores e por uma hora fazem exercícios dançam jogam resmungam de exaustão e compartilham novidades num ambiente de muito deboche amistoso que inclui comentários e piadas sobre o envelhecimento dos seus corpos A ginástica tem mais ou menos 22 membros as idades indo dos 60 aos 86 principalmente mulheres algumas viúvas e algumas casadas com alguns maridos participando também A ginástica é a mioloantroppmd 10022010 1442 224 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 225 atividade principal deste Grupo de Terceira idade a maioria de seus membros também participam dos encontros semanais freqüentados exclusivamente por mulheres em passeios ocasionais muito esperados a lugares de interesse e mais raramente em atividades mais inclusivas atividades e festas organizadas pela Prefeitura e que se destinam a todos os grupos da cidade O grupo tem 45 integrantes cujas idades vão dos 60 aos 95 a maioria de mulheres ainda que alguns homens especialmente maridos das mulheres membros frequentemente vão aos passeios e às festas Façanhas como dançar no corredor do ônibus em alguns dos passeios já se tornaram lendárias Esse é um dos mais de 100 Grupos de Convivência de Florianópolis patrocinados pela Prefeitura que os apoia através de pequenas doações periódicas de mantimentos para a preparação de lanches materiais como pano e linhas para trabalhos manuais ocasionais fornecimentos de ônibus para os passeios um estagiário de Educação Física de uma universidade local para conduzir o grupo de ginástica convites para ocasionais eventos de âmbito municipal ou regional com a convocação de Grupos de Terceira Idade para almoços e bailes shows de talentos e atividades carnavalescas No entanto a liderança das atividades regulares deste e de outros grupos se origina totalmente dentro do próprio grupo Sua composição social é genericamente similar àquela de outros Grupos de Convivência de Terceira Idade mioloantroppmd 10022010 1442 225 226 principalmente da classe popular em contraste com os demais participantes da classe média como nas Universidades da Terceira Idade Brito da Motta 1999 p 22021 Alves 2008 p 132 No entanto seu perfil reflete a composição social mista da vizinhança na qual se localiza ainda que principalmente de classe popular e principalmente de nativos também inclui alguns poucos participantes não nativos da classe média As relações entre nativos e não nativos no grupo são geralmente cordiais apesar das nativas tenderem a manter certa distância e de vez em quando se desenvolvem algumas tensões Nas vezes em que os líderes do grupo coordenadores eleitos pelos membros foram nãonativos rapidamente se enfrentaram com a dificuldade de tentar impor suas idéias para o grupo e aprenderam que as nativas tem opiniões fortes Apesar deste conflitos menores este Grupo de Terceira Idade tanto quanto a capela católica local é fonte de coesão tanto dentro da comunidade nativa quanto na vizinhança mais ampliada CUIDADORES E REDE DE CUIDADOS Um dia depois da reunião semanal do Grupo de Terceira idade eu estava conversando com DLuiza viúva de 78 anos e pilar da comunidade nativa que vive circundada pelos filhos suas esposas e esposos netos e bisnetos Estávamos falando sobre sua grande família e ela comentou para mim Sim eu posso morrer feliz Se eu caísse doente aqui nessa grama na frente do lugar de encontro do Grupo de Terceira Idade agora mesmo dentro de minutos minha mioloantroppmd 10022010 1442 226 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 227 família estaria aqui para cuidar de mim Graças a Deus estão todos muito perto de mim muito preocupados comigo e eu sei que vão cuidar muito bem de mim Ela expressava ali a verdade de sua própria situação o ideal de cuidado de um idoso doente nesta comunidade cercada por familiares próximos de várias gerações que estarão totalmente disponíveis para tomar conta dela com muito carinho Perguntei lhe quem assumiria o principal peso do cuidado dela e ela disse Ah Minhas filhas e quando perguntei por que as filhas e não os filhos ela me olhou como se eu fosse um tanto retardada Por que são mulheres e sabem fazer estas coisas de casa e de cuidar da gente porque já cuidaram das crianças né Os meus filhos ah eles ajudam também E aqui ela enunciou o esquema da divisão de trabalho por gênero e da complementaridade de gênero que deles resulta nesta em outras comunidades nativas da ilha ver Motta 1998 em outros lugares do Brasil Brito da Motta 1999 e 2002 em especial entre gerações mais idosas Mulheres estão a cargo da casa da cozinha da lavação de roupa do cuidado com as crianças pequenas enquanto os homens trabalham em atividades fora da casa antes na lavoura e em especial na pesca um domínio masculino hoje no trabalho assalariado Esta divisão do trabalho dita que sobre as mulheres recai a expectativa de serem cuidadoras principais dos idosos doentes esposas para seus maridos que normalmente morrem antes delas e filhas para seus pais mioloantroppmd 10022010 1442 227 228 Os exemplos de cuidados apresentados abaixo mostram que este ideal não é sempre alcançado e que a flexibilidade dentro das redes de parentesco e nos papéis de gênero garante que os cuidadores possam mobilizar um amplo espectro de membros da família para diferentes tarefas para que o trabalho de cuidar possa ser bem feito Cuidadores principais aquele que tem total ou a maior responsabilidade pelos cuidados prestados ao idoso dependente no domicílio Caldas 2002 p 51 são geralmente mulheres mais velhas ainda que uma violação controversa desta regra esteja apresentada abaixo mas os cuidadores secundários os familiares voluntários e profissionais que realizam cuidados complementares idemibidem incluem tanto homens quanto mulheres parentes e afins de várias gerações Juntos estes cuidadores constituem as redes de cuidadores que se formam para o cuidado de qualquer idoso Eles ilustram o amálgama do cuidado com as relações familiares e de parentes e a habilidade de mobilizar um largo espectro de membros da família para desempenharem tarefas diferenciadas que garantam um cuidado bem feito O MARIDO DE NILDA Um exemplo que corresponde a todos estes imperativos revezavamse nessa atividade Ela chegava em casa pelas oito ou nove da noite muito cansada exausta nervosa e com dor mioloantroppmd 10022010 1442 228 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 229 nas pernas de ficar sentada o dia todo tendo comido na rua e ia para a cama mas normalmente não dormia Nos fins de semana suas noras e uma sobrinha de seu marido vizinhas que trabalhavam durante a semana vinham para ajudar limpando a casa fazendo faxina fazendo comida lavando roupa As despesas do hospital estavam cobertas por seu plano de saúde mas não os exames nem a medicação que ela pagou com dinheiro que seu marido tinha poupado para emergências e com a ajuda dos filhos Este exemplo de cuidado de um idoso doente obedece a todas as regras locais do cuidado com os doentes o cuidador principal é uma mulher a esposa os cuidadores secundários são membros da família incluindo os filhos e as noras as cunhadas e sobrinhas Cuidar envolve parentes consangüíneos e afins igualmente todos morando muito próximos e juntos formam a rede de cuidadores cuidadosamente orquestrada para garantir cuidado 24 horas ou como diz Santos um corpo de bailarinos de um grande baile de cuidadores Santos 2006 p 100 A divisão por gênero das tarefas de cuidado segue a divisão de trabalho por gênero observada nesta comunidade e em outras ver Neri 2006 p 25 Nilda fornece o cuidado doméstico íntimo para seu marido em casa e apoio emocional a ele quando está no hospital enquanto seus filhos que também fornecem este apoio de noite assumem as atividades extradomésticas Esta divisão de tarefas por gênero expressa as idéias da comunidade sobre os papéis adequados para mioloantroppmd 10022010 1442 229 230 mulheres e homens cuidadores Também mostra o envolvimento de uma geração mais jovem de filhos e suas mulheres participando no cuidado dos idosos aprendendo no processo os fortes valores de cuidar de seus velhos DONA JOANA Um exemplo de cuidado de uma idosa doente na ausência de um esposo ou filha demonstra como outras mulheres parentes irmãs e netas podem ser trazidas para estas redes de cuidado A doente idosa era uma viúva sem filhos e por isto sua irmã de 83 anos e divorciada assumiu o papel de cuidadora principal trouxe sua irmã para viver numa casa no fundo do quintal de sua propriedade levoua ao hospital para sua operação de câncer do intestino e organizou os parentes para ficarem com ela no hospital Trouxea para casa já muito fraca e com a bolsa de rectocolostomia e Joana que estava também cuidando de outra irmã doente em sua casa no principio pagou uma vizinha para ficar com a irmã Mas quando isto não deu certo Joana acionou sua própria filha e sua neta que vivem num bairro vizinho Sua neta disponível porque desempregada naquele momento chegava às oito da manhã para preparar as refeições lavála trocar suas fraldas e fazerlhe companhia durante o dia e foi me dito eu ela fazia tudo isto com muito carinho Ela ia embora à noite quando sua mãe a filha de Joana chegava para passar a noite Outro filho de Joana que tampouco era vizinho ajudava com seu carro e com a compra de medicamentos Joana estava a cargo de organizar e passou o papel de cuidadora para sua filha e neta mioloantroppmd 10022010 1442 230 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 231 Desta forma quanto os parentes mais próximos e os primeiros a serem definidos como cuidadores não existem ou não estão disponíveis a rede de cuidadores se constitui de outros membros femininos da rede de parentesco e utiliza duas gerações descendentes a filha de Joana e sua neta trazendo membros ainda mais jovens da família e da comunidade indivíduos agora nos seus 30 anos para a experiência as obrigações e o conhecimento prático do cuidado Já mencionei que as conversas sobre os doentes e seus cuidados são um tópico preferido da fofoca Quero agora explorar um exemplo atual muito controvertido que é assunto de muita conversa É controvertido porque gerou descontentamento com a forma como o cuidado está sendo dado e sobre a quem a responsabilidade do cuidado foi alocada não por estar prejudicando a saúde do idoso doente mas por causa de quem cuida Assim além de ilustrar o forte senso da comunidade sobre a obrigação da família de cuidar de idosos doentes mesmo na presença de conflitos familiares este exemplo mostra o peso moral que a comunidade coloca na obrigação de parentes específicos cuidarem adequadamente de seus familiares doentes Ao sublinhar o que é visto como uma quebra no cuidado familiar apropriado este exemplo encerra as regras não escritas que governam as expectativas da comunidade em relação a quem deve adequadamente servir como cuidador principal mioloantroppmd 10022010 1442 231 232 DONA EDI Dona Edi tem 95 anos viúva nativa e até o ano passado era uma vigorosa participante do Grupo de Terceira Idade presente em quase todas suas atividades Ela caminhava para os encontros para as aulas de alfabetização de adultos que este grupo tinha naquela época e ia a todos os passeios Frequentemente a vi descendo sozinha do ônibus que vinha do centro a uma hora de distância com pacotes nas duas mãos caminhando firme até sua casa Mas no inicio deste ano ela desenvolveu um câncer no intestino foi operada fez uma rectocolostomia e voltou para casa fraca e tendo que ficar na cama com a bolsa presa ao abdome Ela teve três filhos dois homens já mortos e uma mulher agora com 63 anos Sabese em toda a vizinhança que Dona Edi e sua filha não se dão bem e há muitas histórias conflitantes sobre porque isto acontece dando a culpa a uma ou outra ou às duas Quando conheci Dona Edi ela vivia num apartamento úmido parte de um conjunto de apartamentos de alvenaria no fundo da propriedade da sua filha atrás da casa grande e confortável desta Mesmo então muitos acreditavam que a filha devia trazer sua mãe para viver na casa Mas a filha não o fez e a sua mãe então mudouse para outro apartamento mais cômodo na mesma rua Mas depois da operação ela voltou ao apartamento no fundo do terreno de sua filha agora no entanto como uma idosa dependente e acamada incapacitada de cuidar de si mesma mioloantroppmd 10022010 1442 232 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 233 Seu cuidador principal é seu neto José agora pelos 40 anos que vive na casa ao lado com sua família Logo que D Edi saiu do hospital este neto estava de férias de seu emprego e passava bastante tempo com ela não só fazendolhe companhia mas também trocando suas fraldas e esvaziando sua bolsa o que como ambos comentaram para mim em separado achavam inapropriado e muitíssimo embaraçoso Quando ele teve de voltar ao trabalho suas tarefas foram divididas com relutância entre sua esposa seu irmão e a esposa dele que assumiu a tarefa de dar banho e trocála mas recentemente no meio da noite quando a bolsa se desconectou e derramou seu conteúdo sobre D Edi e sua cama José foi de novo chamado para limpar tudo Ele contratou uma vizinha membro do Grupo de Terceira Idade a quem paga uma pequena soma para vir quatro dias por semana fazer almoço limpar o apartamento e fazer companhia durante a tarde Ele seu irmão e suas esposas se alternam dormindo no apartamento para o caso de D Edi precisar qualquer coisa durante a noite Quanto a sua filha a pessoa que de acordo com virtualmente todos os membros da comunidade nativa deveria ter assumido o cuidado primário ela aparece de vez em quando para fazer almoço e dormir no apartamento Mas apesar de estar aposentada permanece na periferia do cuidado de sua mãe A opinião da vizinhança é muito vocal neste caso como fica claro nos comentários a seguir mioloantroppmd 10022010 1442 233 234 Helena devia ter se responsabilizado pelo cuidado mãe imagine um homem trocando as fraldas dela tratando da bolsa Que vergonha que Helena não pegou o cuidado da mãe Como pode fazer assim com a própria mãe Helena devia ter levado a mãe para viver junto com ela é uma vergonha Mas se ela tivesse feito isso ela teria que assumir mais do cuidado da mãe em vez de ter os filhos dela cuidando dela e ela não queria isto Contam que perguntaram para a irmã de D Edi por que ela que mora num bairro vizinho não assumiu o cuidado da irmã ao que ela teria respondido Olha se minha irmã tem uma filha que mora ao lado dela e pode cuidar dela porque é que eu que tenho 93 anos e moro num outro bairro deveria fazer isto D Edi lamenta que não tenha realmente uma filha que Helena não faça nada do que uma filha deveria fazer por sua mãe quando ela está doente Há os que dizem que a filha é nervosa Mas há outros que discordam e dizem que ela é uma pessoa muito difícil Por outro lado um defensor da filha me disse que esta filha tentou várias vezes ajudar mais mas que nada do que ela faz agrada sua mãe nem sua comida nem seu cuidado E que isto é verdade desde que ela era adolescente E Helena protestou Eu não estou bem não posso cuidar da minha mãe mioloantroppmd 10022010 1442 234 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 235 A partir deste exemplo do que é amplamente percebido como uma violação das expectativas da comunidade é possível elaborar sobre o que são essas expectativas de cuidado Como já mencionei a carga do cuidado de D Edi na ausência de um esposo deveria recair sobre sua filha que é a cuidadora principal apropriada por ser filha mulher e morar perto A irmã de D Edi também concorda e usa este argumento para justificar sua recusa de cuidar de sua irmã em vez de dizer que ela é muito velha e vive longe No entanto a escolha apropriada do cuidador não se realiza por causa da animosidade nos sentimentos o que Mendes baseada num estudo de cuidadores em Campinas refere como o critério de proximidade afetiva esperado das relações entres esposos e entre pais e filhosMendes19984 Neste exemplo a historia da má relação entre mãe e filha é suficientemente forte para desbancar todas as regras prévias A rede de cuidado fica então constituída sob a direção da segunda geração descendente e uma vez que não há netas mulheres recai sobre um neto e sobre as mulheres afins realizar as tarefas íntimas para a avó de seus maridos Este exemplo de cuidado e a quebra que opera fornece uma expressão clara das regras locais relativas às obrigações de parentes específicos para cuidar dos idosos de sua família Ainda que superficialmente estas regras se coadunem com imperativos genéricos do cuidado derivados da literatura internacional que coloca as relações da família nuclear de esposoa e filhos no mioloantroppmd 10022010 1442 235 236 coração da responsabilidade do cuidado primário Neri 2006 p 25 fica claro a partir dos exemplos acima que os arranjos do cuidado nesta comunidade se estendem muito além da família nuclear Enquanto uma pressão considerável é feita sobre os membros femininos da família nuclear para assumir o cuidado principal as redes de parentesco desta comunidade são grandes e flexíveis o bastante para na ausência do cuidador principal apropriado ainda poderem demandar outros parentes para as atividades de cuidado incluindo aqueles da segunda geração descendente Com base na necessidade e disponibilidade parentes masculinos também podem ser trazidos para as redes de cuidado mesmo a papéis centrais Mas quando este cuidado envolve intimidade corporal entre os cuidadores e os doentes como o cuidado do corpo de uma mulher mais velha por um homem jovem mesmo sendo um parente não se considera apropriado Pareceria que o cuidado dos parentes doentes recai principalmente sobre as mulheres por que envolve uma extensão do tipo de assistência íntima esperada delas no cuidado das crianças Estas mesmas habilidades domésticas estão disponíveis para uso no cuidado de outra categoria de dependente um idoso doente Mães seriam inofensivas delas se esperaria serem capazes de dessexualizar os corpos enquanto isto não seria esperado de parentes masculinos sempre ameaças potenciais Observei alguma flexibilidade de gênero nestes casos quando as esposas estão doentes os maridos assumem estas tarefas se ninguém mioloantroppmd 10022010 1442 236 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 237 mais está disponível e frequentemente observai homens de gerações mais jovens cujas mulheres também trabalham fora de casa cozinhar e fazer outros trabalhos de casa Mas há limites na flexibilidade de gênero no cuidado dos idosos foi considerado altamente inapropriado que um neto devesse assumir qualquer destas tarefas especialmente as íntimas de lavar seu corpo mudar a fralda e trocar e limpar a bolsa quando havia uma filha que poderia fazer isto Isto levanta a questão da materialidade física do cuidado com um idoso dependente tem a ver com corpos e requer uma intimidade corporal entre cuidadores e doentes que em várias destas narrativas é aludida particularmente em relação aos atos do banho Estas alusões ao banho em especial às de filhas banhando suas mães deixam ver as dimensões prazerosas da intimidade e do contato físico entre os cuidadores e aqueles de quem cuidam o que como nota Twigg 2003 é frequentemente remetido ao domínio da higiene As narrativas que eu cito aqui mencionam muitas vezes os prazeres de dar banho Mas tais intimidades também podem produzir desconforto e embaraço especialmente quando os corpos velhos são submetidos ao olhar fixo da juventude idem154 e mais ainda quando este olhar é masculino e a intimidade envolve as áreas genital e anal É isto exatamente o que ocorre no cuidado intimo de Dona Edi por seu neto Twigg nos adverte que este tipo de intimidade corporal entre as pessoas com quem se está em contato diário próximo ameaça a identidade e o mioloantroppmd 10022010 1442 237 238 status daqueles a quem se olha e que portanto não deveríamos make any easy assumptions about kinship closeness translating unproblematically into bodily closeness5 Portanto o cuidado de D Edi feito por seu neto violou regras cruzadas de gênero geração e talvez de parentesco também O cuidado íntimo que ele lhe dá não é apropriado mesmo sendo ele um parente e talvez exatamente por ser DONA LULI O exemplo final é de uma idosa doente que não é nativa e que apresenta um contraste extremo com aqueles da comunidade nativa que acabo de descrever Ainda que este caso único não possa ser tomado como representativo da comunidade não nativa de classe média ilustra o que encontrei como uma situação bastante comum nesta população Luli tem 84 anos viúva aposentada oriunda da serra de Santa Catarina Até dois anos atrás era uma participante influente e respeitada do Grupo de Terceira Idade Mas ela teve um ataque cardíaco varias quedas graves e está agora confinada ao primeiro andar da casa grande e bem cuidada que sua filha construiu para ela há uns seis anos atrás Ela mora ali com sua filha solteira agora com 60 anos que trabalha no centro da cidade Seu filho que vive numa cidade distante vem visitá la com os filhos e netos várias vezes ao ano A filha é a cuidadora principal da mãe uma vez que organiza toma as decisões e supervisiona esse cuidado mas mioloantroppmd 10022010 1442 238 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 239 participa muito pouco no cuidado direto desta Este cuidado foi dividido entre quatro cuidadores secundários nenhum deles membro da família todos pagos Eles são um atendente em tempo integral que trabalha de segunda a sábado das oito da manhã às oito da noite outro que trabalha seis noites por semana das oito às oito outro que vem passar o sábado e o domingo dormindo na noite de sábado e uma cozinheira faxineira que trabalha de segunda a sábado das oito às 14 horas preparando comidas e cuidando da casa DLuli diz que sua filha cuida muito bem dela mas que raramente está em casa e não lhe dá muita atenção nem muito carinho Fica claro que este exemplo apresenta um padrão de cuidado muito diferente dos anteriores Aqui ainda que a filha supervisione o cuidado os cuidadores diretos são nãomembros da família e o resto da sua pequena família está disponível somente para apoio econômico uma vez que vivem em outras partes do país Enquanto esta situação particular está relacionada com diferenças no padrão de residência e no menor tamanho da família extensa também está baseada na disponibilidade maior de recursos do que na maioria dos grupos familiares da comunidade nativa É cuidado do idoso em casa mas também é um cuidado de qualidade afetiva diferente do que aquele dos exemplos já dados Este caso sugere as complexidades e as variações no cuidar de idosos em casa Outro exemplo de maiores dificuldades da população não nativa para recorrer às redes de cuidado é o de outra mulher mioloantroppmd 10022010 1442 239 240 casada com sessenta e poucos anos Seus dois filhos vivem em bairros vizinhos mas ela não é muito chegada às suas esposas e comentou comigo recentemente depois de falar com uma certa inveja sobre uma idosa nativa que estava sendo cuidado por sua família em casa Quando eu ficar doente eu vou me por numa Casa de Repouso porque sei que meus filhos não vão querer cuidar de mim Ainda que eu não possa tirar quaisquer conclusões firmes com base em tão poucos exemplos o contraste estridente entre estas duas situações e os exemplos anteriores sugere que os valores comunitários de reciprocidade entre gerações e a obrigação de cuidar dos parentes idosos reforçados por pressões coletivas da comunidade sobre aqueles que os violam são eficientes na perpetuação do sentido de obrigação nas gerações seguintes tanto dos filhos quanto dos netos É muito claro que os padrões de residência que mantêm as gerações de parentes próximos é também crucial da mesma forma que é a dificuldade de juntar recursos financeiros suficientes para soluções alternativas Assim ainda que os padrões de cuidado dos idosos doentes nesta comunidade se pareçam superficialmente com aqueles da literatura mais ampla estes exemplos sugerem que estes padrões podem ser distintos em sua densidade sua extensão no grau dos cuidados diretos feitos pelos parentes mesmos e nas pressões locais exercidas pela comunidade mioloantroppmd 10022010 1442 240 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 241 AFLIÇÕES DOS CUIDADORES PRINCIPAIS Estas mulheres cuidadoras relatam uma grande variedade de aflições que ocorrem durante suas atividades de cuidado dos parentes idosos doentes ansiedade extremo cansaço dor nas pernas esgotamento preocupação estresse insônia nervos tristeza úlcera dor de barriga depressão Ao escutar seus relatos seguidos de detalhes dos cuidados que prestam e ir me dando conta de quão duro trabalhavam da sua pesada carga de incessante e repetitivo trabalho físico junto com a responsabilidade por outras atividades de casa com o peso da responsabilidade em dar atenção e conforto aos doentes que carregavam sobre seus ombros com o fardo emocional de ver os seres amados adoecer e morrer maravilheime com sua resistência Não só achei perfeitamente compreensível que se queixassem da experiência das aflições relativas aos cuidados fiquei surpresa que não passassem por mais aflições Estas mulheres enfrentam fortes pressões da família e da comunidade para cuidar dos doentes idosos em casa em circunstâncias nas quais pouca assistência e poucos recursos são oferecidos pelo Estado Elas enfrentam uma situação que tem sido identificada tanto no Brasil Alves 2002 p161 como em outras culturas Brown e Harris 1978 Miles 1988 como a atividade que é a maior produtora de ansiedade Quero iniciar minha discussão das aflições dos cuidadores desta comunidade com outra narrativa de uma cuidadora sobre sua experiência e suas aflições enquanto cuidava de sua mãe mioloantroppmd 10022010 1442 241 242 com Alzheimer por um período de mais de seis anos Citoa mais extensivamente por que esta narrativa oferece um detalhado relato do processo e da rotulação da doença que sua mãe desenvolvia sobre suas próprias atividades de cuidado dela e suas próprias aflições bem como sobre a linguagem em que são expressas que usa termos de uso comum nesta comunidade Coloquei em itálico os termos em que ela descreve as aflições de sua mãe e suas próprias Celeste é uma nativa de 79 anos casada e com muitos filhos e irmãs morando em casas vizinhas Quando ela estava com quase 70 anos sua mãe que morava na casa ao lado foi diagnosticada com Alzheimer Ela tinha estado doente por muitos anos tinha sofrido um AVC depois tinha tido câncer e começou a ficar esquecida depois muito depressiva e tinha crises nervosas A esta altura Celeste trouxe a mãe para casa e a levou ao médico que a diagnosticou com Alzheimer E então por seis anos como ela descreveu C eu cuidei dela direto Os últimos três anos e meio ela estava muito ruim Eu fazia tudo dava banho nela lavava ela trocava a roupa trocava a fralda e quando ela colocava as mãos por dentro da fralda e se cobria de fezes eu limpava tudo Eu lavava a roupa dela a roupa de cama e fazia comida e dava pra ela E ela fugia fugia ia na rua e eu tinha que fechar tudo todas as portas todas as janelas Eu fiz tudo sozinha tinha parentes que ajudaram mas foi coisa do momento Eu perguntava à filha ao lado à irmã na frente para ajudar mioloantroppmd 10022010 1442 242 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 243 a dar banho nela e ao marido se fosse necessário levar ela de um lugar para outro mas eu tinha força tinha saúde e fiz tudo A única coisa que não podia fazer era levar a mãe no colo fiquei triste por não poder fazer isto A sogra do irmão me chamou de heroína por ter cuidada sozinha da mãe Mas eu senti a maior satisfação que tive na vida de cuidar dela D E a Sra sentia só satisfação mais nada Celeste Eu me sentia muito nervosa estressada cansada porque a mãe fugia de casa e eu ficava acordada a noite toda e depois tive que enfrentar o dia Me senti esgotada cansada e até dava dor na barriga e eu achava que era nervos mas os filhos insistiram em me levar ao médico E eu disse a ele que estava nervosa porque estava tomando conta da minha mãe com Alzheimer E ele me examinou e me disse que não era nervos que eu estava com uma úlcera muito grande e precisava operar logo E eu não quis operar eu queria continuar tomando conta da minha mãe Mas o médico insistiu E aí o problema o que fazer com a minha mãe E sem eu saber o filho a filha o irmão e o filho dele se reuniram para resolver o problema Nenhum deles podia cuidar dela porque todos tinham empregos e famílias e crianças em casa E eles resolveram juntos colocar a minha mãe numa Casa de Repouso Cada um deu um dinheiro e juntaram isso com a aposentadoria da minha mãe A Casa de Repouso custava mil reais por mês mas a mulher lá viu que era gente pobre e só cobrou a metade do preço Eu fiz a operação e depois fiquei tão magra tão fraca que não podia nem andar sozinha Não pude mais cuidar mioloantroppmd 10022010 1442 243 244 da mãe E ela ficou lá na Casa de Repouso mas teve convulsão já tinha tido isso comigo e eu cuidava disso mas o pessoal lá não quis e mandaram ela internar no hospital E eu fui lá visitála todo dia E ela ficou lá e morreu lá no hospital Nunca mais voltou pra minha casa D E depois de sua mãe morrer como foi para a senhora C Aí Diana a morte dela me deixou mal senti muita tristeza porque eu gostava muito dela A filha insistiu em me levar a uma psicóloga eu disse a ela que estava sentindo muita tristeza por causa da morte da minha mãe e ela me disse que foi depressão e deu comprimidos para mim Mas não ajudou muito O que me ajudou foi o grupo da igreja Elas vieram me visitar em casa fizeram orações para mim e aos poucos eu melhorei Mas sabe que eu senti a maior satisfação que eu tive na vida cuidando dela Me sentia muito bem cuidando dela Tinha muito carinho por ela Com quase setenta anos à época da doença de sua mãe Celeste se descreve como forte e saudável As aflições que relata aparecem como resultado da natureza e do peso das atividades do cuidado e do progresso da doença da mãe mais do que em razão de problemas de saúde dela mesma Ela descreve ter cuidado de sua mãe praticamente sozinha Admirada por outros membros da família como heroína pelo seu autosacrifício e pela qualidade do cuidado que prestou ao mesmo tempo ela se sente obrigada a assumir o cuidado da mãe pelo seu amor por ela por ser obrigação das filhas e porque ninguém mais mioloantroppmd 10022010 1442 244 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 245 estava disponível Mendes se refere a tais mulheres como as heroínas do cotidiano Mendes 1998 Mas fica claro que Celeste está atuando no seio da coletividade de sua rede de parentesco que por sua vez cuida dela levaa ao médico quando percebe que ficou doente e coopera no cuidado com sua mãe quando Celeste tem de ir para o hospital6 A necessidade que estes parentes sentiram de arcar com a difícil obrigação financeira de enviar sua mãe para a Casa de Repouso quando Celeste ficou doente realça papel crucial dela no cuidado de sua mãe nesta rede ninguém mais se dispõe a tomar o seu papel de cuidadora porque não podem devotar a mesma qualidade de tempo e cuidado que ela como uma mulher mais velha que recebe aposentadoria pode fazer Quando ela adoece eles precisam recorrer ao cuidado institucional do setor formal Celeste é um exemplo do outro extremo dos valores comunitários sobre cuidados diferente da filha de D Edi que é acusada de fazer muito pouco Celeste é louvada como a heroína por fazer mais do que a comunidade espera destes cuidadores Este exemplo também ilustra as dificuldades e os custos para a saúde pessoal para os que cuidam de uma parente com a doença de Alzheimer Ainda que eu não tenha classificado as atividades e experiências dos cuidadores de acordo com doenças particulares do idoso de quem cuidam como é comum em estudos das ciências da saúde Caldas 2002 Santos 2006 meus exemplos aqui confirmam suas conclusões de que o cuidado mioloantroppmd 10022010 1442 245 246 de parentes com Alzheimer e outras demências apresentam dificuldades especiais e acarretam um custo especialmente angustiante A outra mulher que cuida da mãe com esta doença cuja história citei acima também se descreve neste período como muito nervosa tendo também desenvolvido uma úlcera Uma das mulheres com úlcera fez várias declarações apaixonadas durante nossa conversa sobre as alegrias e os sacrifícios pelos quais tinha passado durante o cuidado de sua mãe Muitos dos cuidadores também manifestaram seu prazer e satisfação com essas atividades especialmente quando cuidavam das mães e dos pais mesmo que todos os cuidadores mencionados declarem ter passado por aflições resultantes das suas responsabilidades e atividades como cuidadores diretos Isto levanta a questão discutida por Neri 2006 p 10 de que as responsabilidades e atividades do cuidado podem ser positivas ainda que sejam vistas na literatura mais ampla como negativas onde relatos de aspectos positivos deste cuidado são vistos como racionalizações de uma situação inevitável e não são levados a sério A LINGUAGEM DAS AFLIÇÕES Para iniciar a discussão sobre a linguagem das aflições eu gostaria de retornar ao exemplo de Celeste e sua descrição de suas aflições e das de sua mãe e salientar novamente que os termos usados por ela são todos termos usados comumente nesta comunidades Estes termos derivam de várias categorias mioloantroppmd 10022010 1442 246 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 247 incluem termos biomédicos termos descritivos leigos alguns com conteúdo particularmente emocional tal como tristeza o termo estresse que perpassa estas duas categorias e referências à popular doença dos nervos e nervoso Os termos biomédicos que ela usa são aqueles que foram oferecidos a ela por especialistas médicos para identificar as condições que eles diagnosticaram como biomédicas o AVC e o câncer de sua mãe sua própria úlcera ou como desordens mentais a doença de Alzheimer de sua mãe sua própria depressão Celeste expressa sua própria compreensão de suas aflições em termos descritivos que acompanham de perto o fardo das atividades diárias que conta realizar ela se sente cansadaesgotada nervosa tem dor de barriga e depois da morte da mãe sente tristeza Estes termos expressam tanto sua exaustão física e seu estado mental de tensão e angústia enquanto cuidava da mãe Em outras palavras são termos que expressam sua experiência incorporada os aspectos físicos e mentais do sobretrabalho e da preocupação coadunados em linguagem comum cotidiana Num contexto biomédico estes termos são considerados sintomas apresentando queixas que descrevem uma condição médica subjacente mais do que a condição em si mesma são os sintomas de apresentação a partir dos quais o diagnóstico é parcialmente derivado Este é o padrão nas consultas médicas Kleinman 1980 A linguagem das queixas de Celeste se modifica durante suas interações com a linguagem usada pelos médicos Seus mioloantroppmd 10022010 1442 247 248 encontros com a biomedicina produzem para ela uma reescrita da linguagem da doença Várias vezes durante este relato ela vai aos médicos levando os sintomas descritivos de sua aflição eles reinterpretam o diagnóstico dela traduzindoo da linguagem popular para a biomédica tratando suas queixas como sintomas e ressignificandoas em linguagem médica sua mãe não está esquecida tem Alzheimer Celeste não está nervosa ela tem uma úlcera Celeste diz à psicóloga que sofre de tristeza e a psicóloga lhe diz que não é tristeza é depressão Mas há mais nesta ressignificacao no processo de reinterpretar os médicos também desconectam a aflição da narrativa do sofrimento na qual está socialmente enraizada e na qual Celeste a expressou Os médicos ressignificam sua aflição como uma condição individual uma desordem orgânica ou mental enquanto descartam como irrelevante o enraizamento dela na doença e morte da mãe Taussig1992 No entanto é importante reconhecer também que nem todos aqueles que praticam a biomedicina necessariamente fazem isto Uma mulher cujo pai se viu preso à cama e esquecido depois de uma queda levouo várias vezes ao médico Quando perguntei se ele lhe tinha dado algum diagnóstico como doença de Alzheimer ela respondeu Não o médico nunca falou isto Pelo contrário ele sempre dizia que meu pai não tinha doença que era a idade mesmo Ao contrário do exemplo acima no qual os médicos medicalizaram a condição da mãe de Celeste este não medicalizou a idade avançada de seu pai mas encaroua como uma condição natural da vida mioloantroppmd 10022010 1442 248 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 249 Uma vez que os médicos fazem o diagnóstico biomédico Celeste tende a aceitar e usar os termos deles minha mãe tinha Alzheimer eu tinha uma úlcera eu sofria de depressão Mas ela continua a associar suas aflições mesmo em sua nova terminologia com o cuidado que prestou à mãe em outras palavras ela aceita a nova terminologia mas não aceita plenamente a separação da aflição da situação moral e social na qual se enraíza Continua a pensar estas aflições como emergentes do e vinculadas ao contexto da doença de sua mãe E sua visita ao psicólogo é significativa porque implicitamente enquanto Celeste pode ter aceito a linguagem do diagnóstico ela não abraça o tratamento e no fim rejeita sua eficácia em favor de benefícios maiores derivados das visitas e orações dos membros de sua igreja ela sente que são estes os restauradores de sua saúde As instituições religiosas são mencionadas na literatura sobre cuidado como fontes de ajuda para cuidadores em sofrimento ver Santos 2006 mas o que é significativo em termos de mima analise é que a ajuda que ela recebe dos membros da igreja local oferece um exemplo do enraizamento social da cura tanto quanto da aflição e da reafirmação dos valores comunitários O relato de Celeste sobre suas experiências com os médicos apresenta um exemplo bem claro do encontro entre o que Duarte 2003 chamou de forças individualizantes da biomedicina que interpreta as aflições de Celeste em termos biomédicos como isoladas do seu ambiente social e que mioloantroppmd 10022010 1442 249 250 mantém uma distinção cartesiana entre doenças físicas do corpo úlcera e doenças mentais depressão e as noções de Celeste sobre suas aflições mergulhadas nas relações sociais e abarcando tanto a dimensão física quanto mental da aflição Na sua afirmação estava nervosa porque estava cuidando da minha mãe com Alzheimer ela expressa o que é o cerne do que Duarte 19861994 2003 rotula de perturbações físico morais Perturbações físicomorais antes de tudo são relacionais isto é são concebidas como imersas nas relações sociais e elas emergem e oferecem expressões de situações sociais relacionais Mais ainda são físicomorais elas podem expressar doenças mentais e físicas como partes de uma mesma entidade Duarte2003177 Celeste expressa sua aflição em termos relacionais como decorrentes de seu papel como cuidadora da sua mãe enquanto que seu uso do termo nervosa compreende tanto sua dor de barriga quanto suas preocupações e ansiedades de cuidadora Duarte cuja conceituação deste termo advém de seu trabalho com a popular doença dos nervos vê nervos como representando e expressando a ordem relacional das classes populares no Brasil e mais amplamente das populações marginalizadas em outros lugares do mundo e como expressão da noção social relacional de pessoa em oposição à ideologia hegemônica do mundo moderno ocidental representada especialmente pela biomedicina que apresenta o modelo moderno do indivíduo Esta visão relacional da pessoa parece apropriada para as mioloantroppmd 10022010 1442 250 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 251 cuidadoras mulheres aqui apresentadas e para as vidas de outros membros mais velhos desta comunidade que de forma semelhante veem a si mesmos sobretudo como imersos nas redes de família e nas de comunidade que são constituídas e se cruzam com os laços de parentesco Eles vêem suas obrigações para com suas famílias e seus recursos como estando à disposição de suas famílias Eu sugeriria até que a situação de cuidado dos idosos doentes em casa é o espaço adequado para explorar as aflições relacionadas como perturbações físico morais ainda que esta estratégia mais do que explorar estas perturbações enquanto relacionadas a uma doença popular específica as exploraria como emergindo em situações sociais específicas situações que como esta análise sugeriu são capazes de gerar uma variedade de aflições NERVOS E NERVOSOS Os termos crise de nervos e nervosa ambos presentes na narrativa de Celeste e nas outras merecem discussão tanto porque aparecem frequentemente nestas narrativas como linguagem da aflição quanto porque eles têm um peso forte nos estudos antropológicos de saúde no Brasil especialmente através do trabalho de Duarte 1986 1994 O estudo etnográfico de Silveira 2000 sobre nervos é particularmente relevante para minha pesquisa uma vez que foi feito em outra comunidade nativa de Florianópolis Os informantes de Silveira a auxiliam a deixar claro uma importante distinção que também aparece no relato de Celeste mioloantroppmd 10022010 1442 251 252 entre sofrer dos nervos ou ter crises de nervos e estar nervosoa Estas duas condições foram um tanto confundidas na literatura antropológica porque ambas podem ser aludidas através do termo nervosoa Com base em seu trabalho de campo Silveira define nervos quando usado no sentido de sofrer dos nervos como um fenômeno polissêmico 2000 p 12 que pode abranger quase todo o corpo e as funções orgânicas inclusive as mentais indo desde a ansiedade ou um malestar indefinido até crises convulsivaspassando por formas variadas de agressividade ou apatia idem p11 À insistência de Duarte de que as perturbações tais como nervos tendem a ser condições de longo prazo com crises de perda de controle e explosões emocionais deve ser somada às constatações de Silveira bem como a constatação de que as pessoas que sofrem estas crises são consideradas pelos membros da comunidade como estando fora dos limites do comportamento normal da comunidade 2003 p117 ver também Alves 2002 p 162 Nervos pode também ter um componente de gênero Silveira menciona que nervos é definida em geral como uma doença de mulheres que quando estas manifestações aparecem entre mulheres são consideradas casos de nervos enquanto que os homens que têm os mesmos sintomas podem ser considerados dentro dos limites normais do compartamento masculino Silveira 200036 O uso que Celeste faz do termo crise de nervos para descrever o estado de sua mãe que precedeu ao diagnóstico médico de doença de mioloantroppmd 10022010 1442 252 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 253 Alzheimer seus acessos de agressividade perda de controle e convulsões estão de acordo com esta definição Como descobri em outras conversas o termo nervos neste sentido é usado na comunidade em que trabalho no mesmo sentido proposto por Duarte para se referir a mulheres que sofrem do que agora se rotula geralmente de problemas psiquiátricos 1994 e são estigmatizadas por esta condição dos nervos Silveira 200046 Doença dos nervos não se encontra entre as aflições destes cuidadores Longe de serem considerados como extrapolando os limites do comportamento normal são considerados modelos de comportamento correto heroínas Estar nervoso por outro lado é considerado como muito diferente de nervoso ou nervos atribuído àqueles que sofrem dos nervos ou que têm crises de nervos Silveira explica que pessoas na comunidade que estudou com freqüência são nervosas mas não sofrem dos nervos Como acentuam os nativos nervosoa isto qualquer um pode ser tanto faz se é homem ou mulher e por qualquer coisa que não vá bem já sofrer mesmo dos nervos felizmente são poucos os que sofrem de nervos 2000 p 14 Em outras palavras estar nervosoa é uma aflição mais comum e relativamente menos séria que pode atingir qualquer um e aqueles atingidos permanecem nos limites de normalidade da comunidade idemÉ neste sentido de estar nervosoa que Celeste e outros cuidadores com quem trabalhei e pessoas na comunidade falam É o termo que Celeste usa com maior freqüência no mioloantroppmd 10022010 1442 253 254 seu relato para descrever as aflições por que passa no cuidado com a mãe Seu uso aqui sugere que o termo nervosa compartilha a mesma qualidade polissêmica de doença dos nervos e abrange muitos aspectos de sua aflição tanto mental quanto física suas sensações de estar estressada esgotada e sua dor de estômago é este termo nervosa que ela tal como Dona Nilda usa para descrever sua aflição para o médico Eu disse pra ele que eu estava nervosa de cuidar da mãe com Alzheimer e é só quando ele a corrige para dizer que ela não está nervosa mas tem uma úlcera que ela aceita ter também um mal especificamente orgânico Significativamente até que a úlcera seja diagnosticada pelos médicos ambas as mulheres consideram seu estômago dolorido como sendo parte de seu estado de nervosa Ambas mostram que assim como doença dos nervos nervosa é um estado polissêmico que tanto pode se referir às aflições físicas quando mentais Ao se identificarem como nervosas Celeste e Nilda se viram em termos corporificados elas tinham reações corporais ao cuidado com suas mães cujos efeitos eram expressos sobre seus corpos e mentes inseparavelmente No entanto ainda que Celeste como outros dos sujeitos pesquisados continue a descrever a si mesma e a outros em sua família como estando nervosos esta situação pode estar mudando Celeste usa outro termo estresse que eu ouço também bastante entre as outras mulheres Ah hoje eu estou muito estressada tenho demais pra fazer e minha irmã vem mioloantroppmd 10022010 1442 254 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 255 hoje com a família para almoçar Assim como os termos nervosa estressada expressam as ansiedades e pressões criadas pelas demandas de situações sociais especificas Uma mulher a quem perguntei sobre estar nervosa responde Ah hoje ninguém mais usa o termo nervosa é tudo estresse depressão até esquizofrenia Ela colocava assim o termo estresse junto com outros da linguagem psicológica alegando que a linguagem popular dos nervos está sendo substituída por termos biomédicos científicos modernos Em seguida a este comentário ela fez referência a uma novela de televisão que estava passando na qual um dos personagens sofre de esquizofrenia observando que a apresentação da doença estava fornecendo ao publico uma compreensão dela melhor do que se tinha antes7 DISCUSSÃO Quero agora situar minhas informações sobre prestação de cuidados e a Terceira Idade no contexto mais amplo das transformações contemporâneas na família e na sociedade O cuidado de idosos doentes em casa aparece como crucial em relação a três desenvolvimentos importantes O alarme sobre os crescentes índices do envelhecimento da população brasileira e a proporção crescente de idosos na população e sua aumentada longevidade junto com o declínio da fertilidade e da mortalidade infantil da taxa de fecundidade da taxa de natalidade e conseqüente decréscimo do numero de crianças Franca e Soares 1997 p 146149 levanta novas questões sobre mioloantroppmd 10022010 1442 255 256 quem vai cuidar destes idosos O governo brasileiro não está equipado para fazêlo e tem emitido diretivas para que as famílias cuidem de seus parentes doentes e velhos em casa Santos 2006 Debert 1999 chamou a isto de privatização do envelhecimento Mais ainda as famílias brasileiras que devem arcar com o peso deste cuidado são vistas como em processo de desestruturação redução no tamanho de famílias extensas a famílias nucleares com menor número de crianças crescente instabilidade em virtude do divórcio perda de coesão e aumento dos conflitos de gênero e gerações Costa lamenta que o lar moderno deixou de cumprir suas antigas funções Em vez de propiciar carinho e proteção estaria fomentando a Guerra entre os sexos e as gerações Costa 198711 citado por Franca e Soares 1997 ver também Lins de Barros 1987 Muitos temem o impacto devastador destes fatores sobre a habilidade das famílias de cuidar de parentes idosos em casa Chaimowitz 1998 apesar de que pesquisadores também dizem que esta visão sinistra de uma família brasileira crescentemente disfuncional tem sido contestada e está dando lugar a uma noção mais matizada e complexa da pluralidade das composições familiares Alves 208 p 126 Enquanto isso as famílias num amplo espectro de localidades e classes sociais continuam a cuidar de seus idosos doentes em casa na verdade Santos 2006 p 10 sugere num paradoxo que tal cuidado aumentou nos últimos 10 anos mioloantroppmd 10022010 1442 256 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 257 Em minha pesquisa com idosos cuidando de idosos doentes em casa tive poucas evidencias destes processos de desestruturação mas preciso dizer que tenho trabalhado principalmente com mulheres de uma geração mais velha entre as quais tais mudanças são menos evidentes Mesmo nas meus questionamentos sobre as gerações mais jovens ainda encontro relativamente pouca evidência de tais rupturas familiares Ao contrário o que chama a atenção é a estabilidade das unidades residenciais muitos filhos e netos continuam a viver nos terrenos de seus pais na comunidade e encontrei também a cooperação e solidariedade intergeracional continuada nas redes de cuidadores que são mobilizados para atender os idosos doentes Este fato é um argumento contrário ao da dissolução familiar E ainda que a interface de gênero geração classe social e etnicidade que produziu as obrigações assumidas por estes cuidadores mais velhos esteja certamente mudando pareceme provável que as obrigações continuem a motivar atitudes ainda que talvez sejam constituídas de novas formas Meu estudo nesta comunidade sugere que ao menos por agora os valores comunitários continuam a exercer pressão sobre as mulheres para que cuidem dos idosos de sua família sem que haja pressão ou coerção aparente das políticas públicas Em outras palavras este grupo produz imperativos para o cuidado dos idosos doentes por si mesmo e assim reproduz as diretivas do Estado sem a intervenção deste O Estado se mioloantroppmd 10022010 1442 257 258 beneficia dos valores da comunidade geradores dos imperativos morais que orientam estes cuidadores da terceira idade Uma segunda questão se relaciona às minhas observações que as cuidadoras de idosos neste estudo são elas mesmas membros do Grupo de Terceira Idade Ainda que este grupo seja autoseletivo de idosas e eu certamente não quero dizer que todos os cuidadores sejam idosos sua visibilidade nesta comunidade levame a duas observações Uma di respeito às questões de gênero e envelhecimento e a outra às relações entre a terceira e a quarta idade Em relação a gênero e envelhecimento as mulheres mais velhas e as de gerações mais velhas especialmente viúvas tem sido descritas na literatura sobre comunidades nativas Motta 1998 Silva 2006 e outras Brito da Motta 2002 p 45 Faircloth 1998 p 8 como pessoas com maior liberdade sendo mais livres das restrições de gênero e de responsabilidades domésticas para com suas famílias do que em períodos anteriores de sua vida A pressão doméstica continuada sobre os idosos enquanto avós para que cuidem de seus netos tem sido discutida não só em termos da importância de seus laços afetivos com seus netos mas também como cargas impostas a eles pelos filhos às vezes encaradas pelos idosos com relutância e mesmo hostilidade como fica evidenciado na nomenclatura vovós babás Lins de Barros 1987 p 68 ou serviços de avós como auxiliares domésticas Brito da Motta 1999 p 214 No entanto não conheço discussões que abordem a maior mioloantroppmd 10022010 1442 258 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 259 liberdade declarada das idosas em relação aos deveres domésticos na idade avançada e no contexto de das obrigações familiares de cuidar de idosos doentes da sua geração ou de uma anterior Minha pesquisa sugere que nesta geração de idosas desta comunidade tais liberdades das mulheres mais velhas podem ser exageradas no discurso ao menos são condicionais à saúde dos outros idosos na família Suas responsabilidades de gênero para o cuidado dos dependentes em casa pode continuar à medida que envelhecem e pode ser invocada a qualquer momento impondolhes uma carga pesada e em geral por longo período Estas são obrigações como mostrei difíceis de evitar e que significam que a liberdade aparente pode ser súbita e drasticamente abreviada Se a participação no Grupo de Terceira Idade for vista na medida das novas liberdades para as mulheres mais velhas a necessidade destas mulheres de se ausentarem destas atividades durante os períodos de cuidados com os idosos oferece evidência poderosa de suas possibilidades restritas de aproveitar estas liberdades Elas podem ganhar muito respeito tornaremse heroínas em suas famílias e na comunidade um heroísmo que celebra não só suas realizações pessoais mas as coletivas uma heroína reforçando o papel modelo Elas podem manter laços afetivos próximos com parentes idosos e doentes e ter prazer no cuidado e querer prestálo mas ao mesmo tempo na realidade tem pouca escolha é um heroísmo forçado Como sugeri as mulheres que resistem a cumprir este papel de cuidadoras mioloantroppmd 10022010 1442 259 260 perdem o respeito tanto da família quanto da comunidade Além de circunscrever suas liberdades tais atividades de cuidadoras têm custos de saúde reais como mostrei na discussão da linguagem das aflições Estresse ansiedade angústia e outros sintomas psicológicos e físicos ou físico morais são produzidos neste cuidado e o impacto na saúde destas mulheres pode ser maior por causa de sua idade mais avançada no momento em que assumem os encargos do cuidado Como as experiências destas cuidadoras se relacionam com as discussões sobre a terceira e quarta idades Argumento que elas oferecem evidência de que a terceira idade é que cuida da quarta idade As mulheres cuidadoras que tenho discutido aqui estão todas acima dos sessenta anos encaixandose assim no critério de participação nos Grupos de Terceira Idade ainda que como a maioria nestes grupos não se considerem velhas Alves 2008 p132 Debert 1999 Leibing 2005 Elas são idosas cuidando de outros idoso ainda que sejam em geral mais moças de 61 a 75 do que os idosos de quem cuidam cuja idade está entre os 80 e os 95 No entanto na terminologia atual são membros da terceira idade cuidando da quarta idade uma vez que a distinção entre estas idades não está marcada pela idade cronológica mas por diferenças nas condições físicas e no estilo de vida A terceira idade é definida como a idade do período após a aposentadoria entre idade adulta e a velhice Leibing 2005 p 18 e está baseada na idéia de prolongamento mioloantroppmd 10022010 1442 260 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 261 da meia idade promovendo um compromisso com o envelhecimento positivo e o prolongamento da alegria de viver através de atividades que mantenham a saúde física ofereçam prazer e lazer e mantenham a independência e a autonomia A quarta idade por contraste é uma contra categoria negativa em relação à terceira idade na qual são projetados todos os aspectos negativos do envelhecimento associados com o declínio físico e a dependência de outras pessoas Leibing 2005 p 18 A linha entre estas categorias é frágil a transição de uma a outra ocorre com o declínio físico e isto tem sido visível no Grupo de Terceira Idade com que tenho trabalhado nos últimos quatro anos na medida em que os membros adoecem súbita ou gradualmente e deixam o grupo para serem cuidados em casa perdendo sua independência Alguns pesquisadores enfatizam a interdependência entre estas categorias alegando que os relatos otimistas sobre a terceira idade só resultam possíveis por que se projeta na escura quarta idade todos os aspectos negativos do envelhecimento Twigg 2003 p 146 Leibing 2005 Outros sugeriram ou afirmaram diretamente que a onda atual de atenção à terceira idade com a promoção de atividades para velhos saudáveis tem tirado a atenção e os recursos das necessidades dos velhos da quarta idade dependentes e doentes e levado a negligenciá los ver por exemplo Debert1999 Esta acusação pode ter alguma verdade no entanto deve ser qualificada pela minha evidência de que as mulheres da mioloantroppmd 10022010 1442 261 262 terceira idade estão ajudando a cuidar dos indivíduos da quarta Cohen 1055 p 319 adverte que um etnógrafo deve prestar muita atenção à relação entre aquele que fala e o corpo em processo de envelhecimento De um ponto de vista institucional aquilo que ele designa como conhecimento sobre o corpo em processo de envelhecimento em abstrato pode ser verdadeiro que a atenção às atividades da terceira idade tenha levado à negligência das necessidades dos idosos dependentes da quarta idade No entanto os casos estudados aqui a que Cohen se referiria como conhecimento sobre um corpo particular em processo de envelhecimento sugerem que longe de retirar atenção e recursos do cuidado com idosos dependentes da quarta idade os membros da terceira idade nesta comunidade estão ativamente engajados no provimento de cuidado para os idosos dependentes e são decisivos ao fazê lo Outro estudo em Florianópolis também mostra que a maioria dos cuidadores de idosos doentes em casa são eles mesmos idosos Santos 2006 p 102 Seguindo a lógica desta evidência as atividades oferecidas aos membros deste Grupo de Terceira idade a ginástica a vida social os passeios ajudam nos a permanecer saudáveis e ativos tornandoos disponíveis para cuidar dos idosos da quarta idade em suas próprias famílias e também a retardar o tempo em que eles se tornarão idosos doentes em suas casas Este cuidado de uma idade por outra idade acontece dentro da família longe da visão pública de forma que esta importante contribuição das atividades da mioloantroppmd 10022010 1442 262 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 263 terceira idade no cuidado dos idosos dependentes deixou de ser notada A conexão entre tais atividades cuidadoras e a participação nos Grupos de Terceira Idade em comunidades tais como esta só se tornam visíveis quando ambos são vistos juntos no contexto das práticas e valores das comunidades locais Estes dão o sentido da interdependência ou melhor da dependência da terceira e quarta idades entre si Cuidadores da terceira idade cuidam dos parentes da quarta os da terceira idade se tornam parte da quarta necessitando deste cuidado e tendo a esperança de que serão cuidados para reproduzir desta vez do outro lado o drama cíclico da necessidade e do cuidado Isto me conduz a outra questão relativa à importante distinção entre o conceito de Terceira Idade como uma ideologia e como é vivido e praticado pelos membros de uma comunidade em particular Terceira Idade apresenta uma imagem nova de envelhecimento bem sucedido associada à ambição ao aprimoramento de si e à independência focada na competência e no esforço individuais que não leva em conta a importância da interdependência social na idade avançada Luborsky 1995 p 278 Leibing 2005 Terceira Idade é concebida como uma ideologia de comprometimento com a saúde individual autonomia e prazer que traz consigo os valores da classe média associados à sua origem francesa e influência americana Leibing 2005 Apresentase como outro exemplo do que Duarte chama de ideologia individualizante hegemônica do mundo moderno ocidental No entanto na mioloantroppmd 10022010 1442 263 264 comunidade na qual tenho trabalhado a ideologia da Terceira Idade tem sito ressignificada pelos membros do grupo que veem o grupo como um lugar de apoio e que reforça seus valores relacionais e seu sentido de conexão social Eles preservam sua saúde não só para satisfação e prazer individuais para gozar a vida mas de forma condizente com os parâmetros da responsabilidade familiar Assim me comentou uma pessoa eu fico muito triste tenho muita pena de faltar na ginástica eu preciso dela para ficar forte e saudável de jeito que eu possa cuidar de minha família Minha família precisa de mim Estas mulheres mais velhas conhecem e aceitam seu papel crucial de cuidar de seus lares As ideologias que produzem instituições tais como os Grupos de Terceira Idade podem ser individualizantes mas de novo nesta dimensão vivida são moldadas pelas práticas de uma comunidade particular Este ponto de que a vida social começa nas relações sociais elas mesmas e pode ter um efeito transformador das ideologias confirma o argumento de Duarte discutido acima Continuando esta discussão Duarte argumentou persuasivamente que as doenças nas classes populares estão imersas em redes de relações e que as conceitualizações de doença especialmente como são representadas na doença dos nervos imersas nestas relações são em grande parte independentes de ou resistentes à hegemonia ideológica e conceitual do pensamento científico ocidental com seus dualismos como mente e corpo e sua linguagem científica mioloantroppmd 10022010 1442 264 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 265 individualizante A questão colocada por minha pesquisa é o que acontece nas classes populares quando pessoas como estas cujas narrativas apresentei aqui começam a usar a linguagem da medicina científica As mulheres cuidadoras que mostrei são membros de uma vizinhança que pertence às classes populares de fato estas mulheres mais velhas muitas das quais são quase analfabetas que foram criadas e criaram seus filhas no que ainda era uma comunidade camponesa podem ser consideradas como estando especialmente distantes do mundo urbano contemporâneo A vizinhança na qual suas vidas se alicerçam é caracterizada por relações de parentesco densas e sustenta uma comunidade moral poderosa que se manifesta nas redes de cuidadores e na ética do cuidado dos mais velhos por parentes em suas casas No entanto os modos de expressão destas mulheres utilizam a linguagem da ciência moderna Citei uma opinião vinda do seio da comunidade que sugere que a linguagem dos nervos está sendo suplantada pela linguagem da ciência médica e observei isto eu mesma nas conversas com outros na comunidade Encontrei relativamente poucas evidências das muitas categorias folk ou populares que encontrei em meados dos anos 1970 entre membros das classes populares na periferia da cidade de Campinas São Paulo onde discussões elucidavam rotineiramente miríades de doenças incluindo nervos de adultos tanto quanto de crianças como também era o caso da elite local com quem também trabalhei Brown 1980 1992 mioloantroppmd 10022010 1442 265 266 Ao contrario surpreendime nesta comunidade de Florianópolis com a adoção e uso cuidadosos da linguagem biomédica pelas pessoas Ao discutirem problemas de saúde estas mulheres fazem questão de usar a terminologia médica própria e se orgulham de poder fazêlo não só as pessoas mais jovens da comunidade mas também aquelas com 60 70 e 80 anos Por exemplo elas falam rotineiramente e com confiança de radioterapias quimioterapias operações de aneurisma no abdômen sobre aqueles que sofrem isquemia cerebral um AVC uma hérnia inguinal tireoidismo Mais ainda estas mulheres estão muito ansiosas por aprender a usar computadores e se inscrevem no curso básico oferecido pela igreja local Elas querem ser capazes de se comunicar com seus filhos e parentes em outros lugares mas também querem a satisfação de serem capazes de compreender e participar do mundo moderno É isto que parece também motiválas no domínio das complexas linguagens da biomedicina e da psicologia Pareceme que as mulheres de idade mais do que os homens talvez avaliam bem os benefícios da modernidade Quando perguntei aos homens de idade que tinham sido principalmente pescadores sobre os velhos tempos e se eles achavam que estavam melhor ou pior agora eles tipicamente respondiam que preferiam o passado quando tudo era sossegado e eles podiam realizar sem interferências a atividade que mais mioloantroppmd 10022010 1442 266 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 267 identificam com sua identidade masculina pescar As mulheres tendem a responder de outra forma que elas acham a vida agora muito melhor do que era no passado Citam as vantagens da eletricidade da água corrente das estradas dos supermercados tudo que fez suas atividades domésticas ficarem mais fáceis Esta reação de gênero às mudanças modernas talvez também influencie o interesse que elas manifestam pela terminologia biomédica e pelos computadores A linguagem científica e as categorias de doença parecem estar tomando o lugar do léxico das doenças populares ao mesmo tempo em que estas mulheres mais velhas se mantém socialmente imersas nas suas famílias e comunidades Elas estão encontrando e se apropriando claramente da terminologia da biomedicina na verdade elas estão saboreando este processo Ao mesmo tempo a aceitação da nova linguagem biomédica não parece ter trazido com ela as tendências individualizantes da separação dualista de corpomente da tradição hegemônica moderna de onde deriva É até possível que as classes populares estejam se apropriando da linguagem médica para situála no seu próprio campo social para suas próprias finalidades usandoa na mediação de situações de obrigação social ao mesmo tempo em que retêm a natureza relacional e físico moral de sua compreensão e aplicação destes termos mioloantroppmd 10022010 1442 267 268 Agradecimentos Quero agradecer ao CNPq pela bolsa de Pesquisador Visitante na UFSC no período 20052007 Agradeço também a Sônia Maluf pela paciência a Jean Langdon e Cleide Albuquerque pelas sugestões e comentários durante a pesquisa de campo e a Maria Amélia Dickie por toda a ajuda apoio e pela tradução do inglês NOTAS 1 Tenho acompanhado as atividades de seus membros a cada ano entre os meses de junho a agosto 2 Rial 1994 mostrou que em anos recentes esta designação negativa significando algo como caipira foi ressignificada para expressar exotismo e o ser pitoresco 3 Este padrão residencial reflete os padrões de ocupação da terra que datam do século XVIII quando a Coroa Portuguesa deu posse de terra para estas famílias imigrantes na forma de estreitas faixas de terra que iam do mar até o topo das colinas circundantes Campos 1991 Ainda que tenham perdido ou vendido parte desta terra para os de fora a lei ainda reconhece seus direitos de usufruto sobre quantidades significativas de terra 4 Mendes 1998 ver também Neri 200626 propõe uma serie de imperativos que definem as determinações de quem será o cuidador principal de um parente doente Estes incluem parentesco com frequência maior para os cônjuges antecedendo sempre a presença de algum filho gênero com mioloantroppmd 10022010 1443 268 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 269 predominância para a mulher proximidade física considerando quem vive mais perto da pessoa que requer os cuidados e proximidade afetiva destacando a relação conjugal e a relação entre pais e filhos 5 Não deveríamos assumir que a proximidade de parentesco se traduza sem problemas em proximidade corporal 6 Tal arranjo em que parentes juntam dinheiro é às vezes chamado de monte Rial 1988 Silva 2006 7 O termo estresse é um substituto interessante para nervos Na medida em que tem sido popularizado e agora é um termo leigo tendo se tornado parte do léxico nativo sob a influencia dos termos biomédicos usados pelos agentes de saúde e pela media sua origem está na ciência médica De fato também é considerado pelos médicos como m termo de diagnostico biomédico suficientemente amplo e vago para aqueles que dizem que estão sofrendo dos nervos Silveira 2000 p 66 Por isto é um termo eu faz a ponte entre termos leigos usados na comunidade e as terminologias medicas modernas BUCHILLET Dominique org A antropologia da doença e os sistemas oficiais de saúde In Medicinas tradicionais e Medicina Ocidental na Amazônia Belém MPEB Cnpq SET PR CEJUP UEP 1991 CNBB REGIONAL SUL IV Manual da Pastoral da Saúde Florianópolis CNBB Regional Sul IV 2000 DUARTE Luiz Fernando Dias A outra saúde mental psicossocial físicomoral In ALVES Paulo Cesar MINAYO REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS mioloantroppmd 10022010 1443 269 Maria Cecília de Souza orgs Saúde e doença um olhar antropológico Rio de Janeiro Ed Fiocruz 1994 P 8390 Da vida nervosa nas classes trabalhadoras urbanas brasileiras Rio de Janeiro JZECNPq 1986 Indivíduo e pessoa na experiência da saúde e da doença Ciências Saúde Coletiva v 8 n1 pp 173183 2003 Investigação antropológica sobre doença sofrimento e perturbação uma introdução In LEAL Ondina F DUARTE Luiz Fernando D orgs Doença sofrimento perturbação perspectivas etnográficas Rio de Janeiro FIOCRUZ 1998 FOUCAULT Michel A casa dos loucos In Microfísica do poder Rio de Janeiro Edições Graal 1979 P 113128 MALUF Sônia Weidner Antropologia narrativas e a busca de sentido Horizontes Antropológicos Porto Alegre v 5 n12 Dezembro de 1999 6982 Peregrinos da Nova Era itinerários espirituais e terapêuticos no Brasil dos anos 90 Antropologia em Primeira Mão Florianópolis PPGASD UFSC 2007 526 RABELO Miriam C Narrando a doença mental no Nordeste de Amaralina relatos como realizações práticas In RABELO Miriam C ALVES P C SOUZA I M orgs Experiência de doença e narrativa Rio de Janeiro Editora Fiocruz 1999 ALVES Paulo Cesar Tecendo o Self e Emoção nas Narrativas de Nervoso In RABELO Miriam C ALVES Paulo Cesar SOUZA I M orgs Experiência de doença e narrativa Rio de Janeiro Editora Fiocruz 1999 mioloantroppmd 10022010 1443 270 SILVEIRA Maria Lúcia O Nervo Cala o nervo fala A linguagem da doença Rio de Janeiro Editora Fiocruz 2004 SOUZA I M Um retrato de Rose Considerações sobre processos interpretativos e elaboração de história de vida In LEAL O F DUARTE L F D orgs Doença sofrimento perturbação perspectivas etnográficas Rio de Janeiro FIOCRUZ 1998 mioloantroppmd 10022010 1443 271 mioloantroppmd 272 10022010 1443 O campo da saúde mental e da reforma dos modos de cuidar em saúde mental especificamente o processo da reforma psiquiátrica brasileira tem se mostrado um terreno profícuo para a construção de entendimentos acerca dos processos que atravessam tanto a prática cotidiana da assistência e a militância política como a produção teórica necessária para a superação de práticas asilares que tendem a reforçar o estigma e o preconceito para com a loucura e o louco este último entendido segundo Pelbart 1990 como o personagem social produzido com o encargo simbólico de corporificar a loucura As reflexões trazidas no decorrer deste trabalho têm como objetivo discutir aspectos relacionados à questão do gênero no âmbito da assistência militância e política pública no movimento1 da reforma psiquiátrica brasileira iniciado na década de 70 a partir do questionamento dos saberes e práticas psiquiátricos e o espaço do hospital psiquiátrico como local de tratamento É importante entender que a emergência deste O GÊNERO NO MOVIMENTO DA REFORMA PSIQUIÁTRICA BRASILEIRA Ana Paula Müller de Andrade mioloantroppmd 10022010 1443 273 274 movimento foi fruto de um momento histórico no qual os movimentos sociais exerceram um papel fundamental na conquista de direitos e também espaços de abertura e discussões sobre a realidade sóciopolítica e de algumas verdades tomadas até então como absolutas Em sua análise sobre os diferentes movimentos de Reforma Psiquiátrica no mundo Itália França Estados Unidos dentre outros países Desviat 1999 mostra como o contexto pósSegunda Guerra aliado a outros fatores como o advento dos psicotrópicos e da psicanálise foram elementos propulsores destes que aconteceram de maneiras distintas nos diferentes países em que ocorreram O processo da reforma psiquiátrica brasileira teve seu início e foi desencadeado tendo como contexto o país em processo de democratização e especificamente um diálogo estreito com a experiência italiana2 que já iniciara seu processo de reforma psiquiátrica aprovara a Lei 180 e já fechara os hospitais psiquiátricos Iniciado por trabalhadores da saúde e sustentado até os dias de hoje por diversos atores tais como usuários dos serviços familiares trabalhadores da saúde e também de outros campos do conhecimento tal processo ganhou força em um encontro na cidade de Bauru em 1988 reunindo todos os envolvidos e que com a criação do lema Por uma sociedade sem manicômios impulsionaram o movimento da reforma psiquiátrica no país e reforçaram a necessidade de transformações no campo da saúde mental mioloantroppmd 10022010 1443 274 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 275 Em 2001 após vários anos de tramitação no Congresso Nacional e de mobilizações da sociedade civil organizada o país aprovou a Lei 10216 Brasil 2004 que estabelece direitos para os portadores de transtornos mentais e redireciona a assistência psiquiátrica no país indicando a criação de uma rede de serviços comunitários que substitua o hospital psiquiátrico Desde a aprovação da lei muitos serviços de saúde mental baseados nos pressupostos do modelo psicossocial3 de cuidado CAPS NAPS Serviços Residenciais Terapêuticos além da articulação com a Atenção Básica através da Estratégia de Saúde da Família vêm sendo implantados de forma heterogênea em todo o país A proposta de assistência nestes serviços prevê a formulação de um projeto terapêutico que contenha propostas capazes de superar a simples assistência e incorporar uma nova forma de cuidar contribuindo para a invenção de novas perspectivas de vida e de subjetivação para os sujeitos Estes serviços deveriam estar orientados dentro de uma proposta territorial para permitir a organização da rede de cuidados em saúde mental na comunidade o mais próximo possível da população a ser atendida A construção destes espaços tem produzido novos sentidos e despertado inúmeras inquietações acerca dos avanços e retrocessos do movimento da reforma psiquiátrica por se tratar de um processo bastante inovador original e prolífero permeado por inúmeras iniciativas práticas e de transformação com o surgimento de novos atores e protagonistas e uma emergente produção mioloantroppmd 10022010 1443 275 276 teórica na qual novas questões surgem no cenário do campo da saúde mental Amarante 1996 p14 Ao propor uma transformação no âmbito das relações da sociedade com as questões da saúde mental dentre as inúmeras questões que o movimento de reforma psiquiátrica no Brasil despertou na busca pela desinstitucionalização4 da loucura podemos reconhecer no mínimo três pontos estabelecidos para que tal reforma pudesse avançar e alcançar seus objetivos Eles serão apresentados aqui em separado mas são completamente interligados Um deles estaria situado no âmbito da extinção progressiva dos leitos em hospitais psiquiátricos que pragmaticamente deslocaria o hospital da pessoa que sofre Com a tentativa de superação do entendimento tanto da loucura como do louco o cuidado exercido nos serviços de saúde mental criados a partir do processo de desinstitucionalização diferentemente do hospital psiquiátrico pressupõe espaços para a produção de outros modos de subjetivação não só para as pessoas que sofrem mas também para os profissionais e os familiares espaços estes que superem aqueles impostos pela cultura manicomial uma vez que o hospital psiquiátricoasilo e o isolamento através de suas práticas asilares acabam com as possibilidades de significação pelos sujeitos sendo também como sugeriram Rotelli Leonardis e Mauri 2001 um lugar zero dos intercâmbios sociais mioloantroppmd 10022010 1443 276 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 277 Neste sentido no desenvolvimento da pesquisa Gênero subjetividade e saúde mental pudemos perceber o quanto o gênero tem estado presente no cenário da saúde mental e tem se constituído num outro regime de subjetivação revelando uma importante interface gênero e saúde mental Percebemos também que ainda que a categoria gênero não esteja presente nas políticas de saúde mental nas diferentes esferas de governo bem como no discurso dos trabalhadores e militantes e nos projetos terapêuticos dos serviços sua presença no campo assistência se inscreve de forma significativa exigindo esforços para a compreensão desta interface com a qual este trabalho pretende contribuir PARTICULARIDADES DO PROCESSO GÊNERO E SAÚDE MENTAL Com base no exposto anteriormente e a partir dos dados da pesquisa em suas diferentes dimensões podemos perceber que tanto a saúde mental quanto o gênero vem se constituindo como regimes de subjetivação que se desdobram não apenas nas políticas públicas como também nos modos de cuidar e buscar cuidados nos serviços de saúde mental O gênero conforme apontam Rohden 2001 e Laqueur 2001 tem estado presente nas concepções da medicina de forma significativa a partir do século XIX e o conjunto de concepções que advém desse saber tem instituído uma série de concepções ligadas em especial as questões reprodutivas e às assimetrias de gênero historicamente construídas Tais concepções se inscrevem também no campo das representações mioloantroppmd 10022010 1443 277 278 quanto ao sofrimento psíquico entendido tanto no modelo dos nervos como no modelo da saúdedoença mental6 e atravessam as concepções quanto a sua etiologia e terapêuticas Em sua análise sobre a construção da ginecologia como uma ciência da diferença Rohden argumenta que é possível dizer que as teorias da insanidade e das doenças dos nervos nas mulheres baseada no predomínio da função reprodutiva foi predominante no século XIX porque as mulheres também experimentavam suas vidas reprodutivas como problemáticas 2001 p30 É possível perceber que as teorias da insanidade atualizadas nos dias de hoje marcam o campo da saúde mental seja na assistência militância ou política pública e se encontram permeadas por uma racionalidade biomédica e psicologizante Nesse sentido diante das mudanças produzidas pelo movimento da reforma psiquiátrica brasileira bem como pela disseminação de uma cultura psicanalítica tal como apontado por Figueira 1988 ou então como apontou Maluf 2006 de um possível deslocamento entre as camadas populares urbanas brasileiras em anos recentes da configuração dos nervos para um modelo que combina psicologização e medicalização da subjetividade percebese que há um alargamento do campo do que é considerado patológico mais precisamente sobre a experiência do sofrimento mental Um ícone deste processo pode ser reconhecido na intensificação do diagnóstico da depressão a partir do modelo mioloantroppmd 10022010 1443 278 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 279 biomédico em especial entre as mulheres Esta intensificação diagnóstica combinada com a sua hipermedicalização apontaria para uma contradição do que foi sugerido por CostaRosa 2000 no que diz respeito ao estreitamento da faixa do tratável na perspectiva do modelo psicossocial em que não se pretenderia tratar todas as experiências como problemas de saúde mental dada a complexidade das mesmas Tal contradição aponta para uma possível limitação ou dificuldade enfrentada pelo movimento da reforma psiquiátrica na consolidação de um de seus pressupostos onde ao invés de se atentar para a convivência com a diferença e a pluralidade de experiências há uma atenção voltada predominantemente para o diagnóstico a categorização a ordenação e a classificação das experiências de vida O gênero tal como exemplificado neste processo tem marcado assim as concepções e teorias acerca do sofrimento insanidade bem como as políticas públicas a militância e a prática assistencial tal como apontou Silveira Além disso gênero tem motivado o atendimento diferenciado na assistência médica seja pela especificidade de características médico fisiológicas seja pelos preconceitos e estereótipos médicos a ele ligados 2000 p84 Estas marcas ainda que não estejam presentes explicitamente no rol de preocupações dos envolvidos no movimento da reforma psiquiátrica são reconhecidas pela maioria destes Quando se questiona sobre qual é o público mioloantroppmd 10022010 1443 279 280 que recorre aos serviços de saúde mental de alta média ou baixa complexidade seja entre gestorases eou trabalhadoras es a resposta é sempre a mesma as mulheres Tal fato faz pressupor que a pouca preocupação com uma particularidade tão marcante neste campo possa ser entendida como fruto de um entendimento de uma natureza feminina do sofrimento afetivo Como foi apontado por Rohden quanto a uma concepção de natureza feminina ligada a questões biológicas o útero Daí derivaria a idéia de que as doenças das mulheres nada mais seriam do que a expressão mesma de sua natureza Na medida em que são mulheres são também doentes e são doentes porque são mulheres 2001 p16 E por isso não se envidaria esforços para um entendimento maior disso Outros estudos7 têm apontado para o fato de que as práticas assistenciais apresentam uma significativa presença da dimensão do gênero tanto pela busca de alívio do sofrimento pelas mulheres nas unidades de saúde quanto pelo relacionamento que as mesmas estabelecem com seus pares no seu cotidiano nos seus lugares de convivência e sociabilidade Como sugeriu Maluf 2006 7 Nos estudos antropológicos sobre saúde mental distúrbios psicológicos eou perturbações nervosas o gênero tem aparecido em sua relevância etnográfica tanto quantitativa pelo alto índice de mulheres sofredoras desse tipo de perturbação quanto qualitativa pelas especificidades da experiência social feminina da doença e do sofrimento psicológico físico moral ou do nervoso mioloantroppmd 10022010 1443 280 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 281 De toda maneira falar da superação de práticas asilares em relação ao gênero é também falar da experiência de mulheres acometidas pelo sofrimento psíquico que por não terem sido asiladas em função de suas diferenças eou sofrimentos podem produzir novos significados para sua experiência de sofrimento e que procuram atendimento nas unidades de saúde para alívio do mesmo traçando itinerários terapêuticos diversos Nestes itinerários e mais especialmente nas unidades de saúde é possível perceber que o gênero se produz por uma complexidade de fazeres onde os saberes e os poderes se inscrevem Especialmente quanto às mulheres esses são visivelmente marcados em seus corpos e subjetivamente experimentados pela intensa medicalização de seus sofrimentos Assim as transformações produzidas pelo movimento da reforma psiquiátrica brasileira têm gerado transformações na vida de inúmeras pessoas que passaram a compor o cenário da saúde mental no país e que tem experimentado diferentes modalidades de atenção Destaco aqui uma consideração importante de Rotelli quanto a estas transformações Estamos sempre mais convencidos de que o trabalho terapêutico seja este trabalho de desinstitucionalização voltado para reconstruir as pessoas como atores sociais para impedirlhes o sufocamento sob o papel o comportamento a identidade estereotipada e introjetada que é a máscara que se sobrepõe à dos doentes e também à das mulheres8 Que tratar signifique mioloantroppmd 10022010 1443 281 282 ocuparse aqui e agora para que se transformem os modos de viver e sentir esse sofrimento do paciente e que ao mesmo tempo se transforme sua vida concreta quotidiana 2001 p94 Por isso é importante compreender como o movimento da reforma psiquiátrica e o modelo psicossocial por ele proposto tem conseguido considerar as relações estabelecidas pelas mulheres nos seus espaços de cuidado convivência e sociabilidade Além de pensar nestas relações também é necessário entender os objetivos para os quais estes serviços foram criados e como pensar sobre os mesmos na perspectiva apontada por Bezerra de que qualquer dispositivo de cuidado CAPS ou outros visa não apenas evitar o sofrimento desnecessário mas também criar espaços de tolerância e modos de acolhimento e convivência com aquilo que na vida subjetiva é da ordem do intratável do inevitavelmente doloroso do que não tem remédio nem nunca terá 2004 p 27 O sofrimento é entendido aqui não apenas como uma categoria nosográfica mas como uma experiência subjetiva e elemento mediador das mulheres nas suas relações cotidianas Silveira em sua pesquisa sobre a questão dos nervos numa comunidade do Campeche demonstrou como a questão dos nervos é traduzida na sua dimensão relacional e sociocultural no sentido de que se apresenta como um mediador das relações naquela comunidade argumentando que mioloantroppmd 10022010 1443 282 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 283 Na sua multiplicidade de apresentações usos e finalidades pude compreender os casos dos nervos entre as mulheres do Campeche como atos ou cenas representativas de crises dentro dos dramas sociais que se desenvolvem a custa de situações relacionais as quais demandam formas coletivas de resolver ou de reequilibrar o grupo social envolvido 2000 p89 Entendo ser importante destacar que a questão relacional não diz respeito apenas à relação profissional usuária mas das demais relações travadas pelas pessoas nas suas experiências de vida social familiar profissional dentre outras Retomar esta discussão em conjunto com o entendimento de sujeito que está por trás da proposta da reforma psiquiátrica e por dentro do movimento social que lhe deu origem é indicar que ao que se pode perceber apesar dos avanços representados pela transformação dos modos de cuidar em saúde ainda é possível reconhecer a manutenção de uma lógica manicomial que persiste nos modos de subjetivação A reforma da concepção cultural hegemônica que é reproduzida nos saberes e fazeres no comportamento das pessoas nos modos de subjetivação precisa ser compreendida a partir de concepções fundamentais tais como a de louco e a de loucura para que se possam construir de fato práticas inovadoras Nesse sentido uma provocação quanto ao papel dos atores desse processo e das concepções de loucura terapêutica e o louco é feita por Pelbart que ao discutir tais concepções diz mioloantroppmd 10022010 1443 283 284 Por louco entendo esse personagem social discriminado excluído e recluso Por loucura que para facilitar chamarei aqui de desrazão entendo uma dimensão essencial de nossa cultura a estranheza a ameaça a alteridade radical tudo aquilo que a civilização enxerga como o seu limite o seu contrário o seu outro o seu além 1990 p133 Este personagem objetivado desconstituído de sua subjetividade porque entendido como destituído de razão passa a ser foco de intervenções como por exemplo a hiper medicalização de sua existência e de seu sofrimento e o fato deste sofrimento ser apreendido como uma categoria diagnóstica previamente estabelecida Discutindo o processo de reabilitação psicossocial e a clínica exercida nos serviços de saúde mental criados na lógica do modelo psicossocial Bezerra sugere pensar o sujeito a partir da psicanálise como sendo esta rede de crenças e desejos que em cada organismo singular é chamado a produzir pelo fato de que nós ao contrário das outras espécies só nos relacionamos com os outros e com nós mesmos com nossa sexualidade com nossos desejos com a alteridade dos outros e da natureza através da mediação do sentido 2001 p142 Ainda que tal sujeito possa ser pensado como essa rede de crenças singular que inspirou todo o movimento de reforma psiquiátrica brasileira percebemos que no que se refere ao gênero entendido como um marcador social de diferenças para mioloantroppmd 10022010 1443 284 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 285 esses sujeitos este vem sendo pouco reconhecido ainda que muito presente nas práticas assistenciais bem como na formulação e execução das políticas de saúde mental9 Uma concepção importante de sujeito a ser considerada neste trabalho foi apresentada por Foucault10 Este autor sugere que o sujeito não pode ser reduzido à razão e em especial com o surgimento da psicanálise há um deslocamento da razão e a negação de qualquer essência humana Nas palavras do autor Há dois significados para a palavra sujeito sujeito a alguém pelo controle ou dependência e preso à sua própria identidade por uma consciência ou autoconhecimento Ambos sugerem uma forma de poder que subjuga e torna sujeito a 1995 p235 Desta forma quando falamos dos sujeitos tal como discutido aqui estamos tratando das relações por eles travadas e a partir das quais podem se reconhecer como tal e por isso parece que as transformações destas relações se constituem no maior desafio a ser enfrentado Acredito que considerar o gênero enquanto um modo de constituição de subjetividades e de sujeitos que se apresenta na mesma medida da complexidade destas relações e da experiência do sofrimento psíquico que aparece com freqüência na experiência feminina é outro desafio Um conjunto de dados apresentado no relatório da pesquisa de avaliação dos Centros de Atenção Psicossocial da Região Sul do país CAPS Sul coordenada por Kantorski mioloantroppmd 10022010 1443 285 286 2007 demonstra o quanto as mulheres têm estado presentes no campo da saúde mental seja como usuárias dos serviços de saúde familiares ou como trabalhadoras e gestoras revelando seu protagonismo nas transformações Os dados demonstram que dos 30 coordenadores de CAPS da região sul do país 28 são mulheres dos trabalhadores nestes serviços 78 são mulheres e dos familiares que freqüentam os mesmos 717 são mulheres e revelam outra dimensão em que o gênero tem estado presente neste processo de forma significativa e que não parece inviabilizar ações e políticas que reforcem as diferenças e assimetrias O fato das questões de gênero não comporem as discussões e preocupações no campo da saúde mental diante dos dados apresentados nesta pesquisa por exemplo parecem indicar para a reprodução de uma cultura fortemente marcada pelas desigualdades de gênero É neste sentido que entendemos a importância de discutir como estas mulheres que tem protagonizado o movimento da reforma psiquiátrica brasileira e tem se constituído subjetivamente nestes processos percebem a questão do adoecimento no seu diaadia nos lugares de uso comum bem como de que forma se relacionam entre si e com as demais pessoas acometidas ou não de algum tipo de sofrimento Como diz Silveira mioloantroppmd 10022010 1443 286 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 287 Portanto para pensar as causas das doenças é preciso pensar necessariamente a cultura e a sociedade e estendendo a compreensão da doença como experiência analisar seu significado para o próprio doente e para os que o cercam buscando as implicações clínicas da relação entre a doença e a cura e entre a sociedade e a cultura 2000 p19 No que se refere à Política Nacional de Saúde Mental cumpre salientar que a ausência do gênero enquanto categoria importante neste processo não condiz com a presença significativa das mulheres nos espaços em que tal política é gestada e executada Isto pode estar relacionado aos poucos esforços que tem se empenhado na compreensão desta interface mas também ao fato de que ainda que exista uma proposta de superação do modelo manicomial de alguma maneira ainda se incorra na repetição de algumas características deste Assim a interface gênero e saúde mental se evidencia na presença feminina no campo da assistência em saúde mental como usuárias familiares trabalhadoras e gestoras dos serviços de saúde na hipermedicalização da experiência feminina e sua articulação às assimetrias de gênero e por fim no modo de consideração da categoria gênero tanto nas políticas públicas como nas formas de assistência e militância política E o que se pode perceber é que conforme sugeriu Maluf 2008 se não existe uma política ou programas oficiais de gênero e saúde mental na prática há uma política sendo implantada ou mioloantroppmd 10022010 1443 287 288 reproduzida uma política que implica na medicalização e medicamentalização de mulheres usuárias do serviço público Entendo que o gênero enquanto um regime de subjetivação tem exercido implicitamente uma grande influência nas formas de pensar e intervir no campo da saúde mental seja na assistência na militância bem como nas políticas públicas de saúde mental e que o pouco reconhecimento de sua complexidade pesa sobre as mulheres que buscam nos serviços de saúde mental alívio para seus sofrimentos ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS Considerando a complexidade que a interface gênero e saúde mental introduz tanto no campo da saúde mental como nos estudos de gênero as considerações trazidas aqui traduzem esforços preliminares para pensar na mesma Como um primeiro aspecto particularmente importante nesta discussão é a possibilidade de entendermos tanto o gênero quanto a saúde mental como construções sociais historicamente implicadas na configuração dos saberes e fazeres e nos modos de subjetivação O gênero tal como discutimos até aqui e a ser considerado como uma categoria importante no campo da saúde mental pressupõe o entendimento de que a questão do sofrimento psíquico ou doença mental está diretamente relacionada com aspectos sociais culturais e de poder Além disso também é necessário ressaltar que tais sofrimentos advêm de relações mioloantroppmd 10022010 1443 288 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 289 assimétricas de gênero e de papéis sociais e identidades historicamente assumidas pelas mulheres Ainda que a loucura tenha sido entendida historicamente sob diferentes aspectos mas especialmente pela psiquiatria como uma doença mental e por isso incorporada pelo saber médico tratase sobretudo de uma construção social como argumentou Pelbart mas também Laqueur quanto ao sexo e Silveira quanto as nervosas do Campeche Desta forma a consideração do gênero enquanto uma categoria presente de forma implícita e significativa no movimento de reforma psiquiátrica no Brasil constituise em mais um desafio colocado ao mesmo A pesquisa e a prática enquanto processos necessários à manutenção deste movimento e à reforma da assistência em saúde mental remetem à reflexão acerca de seus desdobramentos dos espaços onde vivem e se relacionam pessoas singulares portadoras de subjetividades marcadas socialmente pelo gênero e que também têm sonhos histórias e projetos de vida reais Acredito que a consolidação do modelo psicossocial exige a utilização de múltiplos recursos da diversidade e ampliação de saberes capazes de elevar a capacidade de análise e de intervenção Os aspectos discutidos no corpo deste trabalho fazem parte de um conjunto maior de saberes e fazeres que estão sempre por ser reformulados transformados para responderem às demandas que o movimento da reforma psiquiátrica possa gerar mioloantroppmd 10022010 1443 289 290 NOTAS 1 Movimento em dois sentidos tanto por tratarse do movimento social como por fazer parte do processo complexo da reforma psiquiátrica brasileira com avanços e retrocessos transformações e estagnações que produz inúmeros sentidos e inquietações e que precisa ser inventado cotidianamente 2 Foram importantes interlocutores deste diálogo autores como Franco Rotelli Franco Basaglia Benedetto Saraceno dentre outros Cabe destacar que este diálogo se mantém nos dias de hoje através de intercâmbio de experiências participação em eventos convênios universitários dentre outros 3 Abílio da CostaRosa 2000 propõe a designação de dois modos básicos das práticas em saúde mental no modo tal como se apresentam no contexto atual modo asilar e modo psicossocial p142 Para tanto traça um paralelo entre estes dois modos no que diz respeito às concepções de paradigma instituição objeto e dos meios de trabalho dentre outros e diz Por oposição ao modo asilar como paradigma das práticas dominantes proponho designar modo psicossocial ao paradigma que vai se configurando tendo por base as práticas da reforma psiquiátricap151 4 A desinstitucionalização é entendida aqui tal como discutida por Rotelli 2001 p 29 e 30 como um trabalho prático de transformação que a começar pelo manicômio desmonta a solução institucional existente para desmontar e remontar o problema Além disso ao tratar da solução institucional este autor discute o objeto desta instituição e argumenta Mas se o objeto ao invés de ser a doença tornase a existência sofrimento dos pacientes e a sua relação com o corpo social então desinstitucionalização será mioloantroppmd 10022010 1443 290 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 291 AMARANTE Paulo O homem e a serpente outras histórias para a loucura e a psiquiatria Rio de Janeiro Editora Fiocruz 1996 BEZERRA Benilton A clínica e a reabilitação psicossocial In PITTA Ana org Reabilitação psicossocial no Brasil São Paulo SP HUCITEC 2001 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS o processo críticoprático para a reorientação de todos os elementos constitutivos da instituição para este objeto bastante diferente do anterior 5Tais modos entendidos como a produção de modos de existência ou estilos de vida Deleuze 1992 142 6 Tais modelos são discutidos em Duarte 1988 Neste mesmo livro o autor mostra como o nervoso foi associado a mulher e a cabeça ambos implicados numa relação entre uma avaliação moral e um estado físico 7 Diehl Manzini e Becker neste volume e Silveira 2000 8 Grifo da autora 9 Para uma abordagem mais ampla dessa questão nas políticas públicas em saúde mental no Brasil ver artigo de Maluf nesta coletânea 10 Foucault deu uma enorme contribuição para o campo dos estudos sobre a saúde mental especialmente e dentre outras questões para o entendimento da loucura Em seu clássico livro História da Loucura na Idade Clássica abordou como esta foi tratada ao longo de diferentes períodos históricos e dos inúmeros desdobramentos que tais diferenças de entendimento desencadearam situando a mesma no âmbito social político e cultural para além do individual mioloantroppmd 10022010 1443 291 292 BEZERRA Benilton O cuidado nos Caps os novos desafios In ALBUQUERQUE PLIBÉRIO MOrgsO cuidado em saúde mental ética clínica e política Rio de Janeiro Coordenação de Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro 2004 BRASIL Ministério da Saúde Legislação em saúde mental 1990 2004 Brasília Ministério da Saúde 2004 5ª Edição Ampliada COSTA ROSA Abílio da O modo psicossocial um paradigma das práticas substitutivas ao modo asilar In AMARANTE Paulo org Ensaios subjetividade saúde mental e sociedade Rio de Janeiro Editora Fiocruz 2000 DELEUZE Gilles Conversações 19721990 Rio de Janeiro Ed 34 1992 DESVIAT Manuel A reforma psiquiátrica Rio de Janeiro Editora Fiocruz 1999 DUARTE Luiz Fernando Dias Da vida nervosa nas classes trabalhadoras urbanas Rio de Janeiro Zahar 1988 FIGUEIRA Sérvulo Psicanalistas e pacientes na cultura psicanalítica In FIGUEIRA Sérvulo Efeito Psi a Influência da Psicanálise Rio de Janeiro Campus 1988 FOUCAULT Michel Vigiar e punir nascimento da prisão Petrópolis Vozes 1987 FOUCAULT Michel O sujeito e o poder In DREYFUS Hubert e RABINOW Paul Michel Foucault uma trajetória filosófica para além do estruturalismo e da hermenêutica Rio de janeiro Forense Universitária 1995 FOUCAULT Michel História da loucura 5ªed São Paulo Editora Perspectiva 1997 FOUCAULT Michel O nascimento da clínica 5ªed Rio de Janeiro Forense Universitária 2001 mioloantroppmd 10022010 1443 292 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 293 KANTORSKI Luciane Prado coordenadora CAPSUL Avaliação dos CAPS da região sul do Brasil Relatório Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico CNPq Ministério da Saúde Pelotas 2007 LAQUEUR Thomas Inventando o sexo Corpo e gênero dos gregos a Freud Rio de Janeiro Relume Dumará 2001 MALUF Sônia W Mesa A medicalização do sofrimento e a perda da tristeza II Congresso Catarinense de Saúde Coletiva UFSC Florianópolis 2008 MALUF Sônia W Gênero subjetividades e saúde mental Práticas e representações sobre saúde mental através de uma abordagem de gênero Projeto de Pesquisa UFSC 2006 MANZINI Fernanda e BECKER Marina A mulher e a pílula da felicidade uma abordagem sobre o uso de fluoxetina Trabalho de Conclusão de Estágio orientado pela profª Eliana Diehl Curso de Graduação em Farmácia UFSC 2007 PELBART Peter Pal Manicômio mental a outra face da clausura In Lancetti Antonio org SaúdeLoucura 2 São Paulo Hucitec p 130138 1990 ROHDEN Fabíola Uma ciência da diferença sexo e gênero na medicina da mulher Rio de Janeiro Editora Fiocruz 2001 ROTELLI Franco et al Desinstitucionalização São Paulo Hucitec 2001a 2ªed ROTELLI Franco et al Desinstitucionalização uma outra via A reforma Psiquiátrica Italiana no contexto da Europa Ocidental e dos Países Avançados In ROTELLI et al Desinstitucionalização São Paulo Hucitec 2001b 2ª Ed SILVEIRA Maria Lucia da O nervo cala o nervo fala a linguagem da doença Rio de Janeiro Editora Fiocruz 2000 mioloantroppmd 10022010 1443 293 mioloantroppmd 294 10022010 1443 O trabalho de vinte e cinco anos com saúde mental permitiume vislumbrar inúmeras possibilidades de escolhas ao adentrar neste campo de conhecimento na busca por um tema cuja reflexão pudesse dedicar muitas horas de minha vida Resolvi então voltar minha atenção à vida de seis mulheres que viveram mais de trinta anos num hospital psiquiátrico e que por circunstâncias da vida em face da Reforma Psiquiátrica foram transferidas para um Serviço Residencial Terapêutico SRT analisando de que maneira o gênero estaria imbricado neste contexto Sendo assim procuro nestas linhas compartilhar com os leitores alguns pontos desta experiência etnográfica que rendeu parte de uma tese intitulada Gênero e Saúde Mental nos Serviços Residenciais Terapêuticos1 permitindome conhecer e aprofundar um pouco mais sobre o significado deste dispositivo de atenção à saúde para as personagens desta história situandoo na paisagem da Reforma Psiquiátrica RP brasileira SERVIÇO RESIDENCIAL TERAPÊUTICO MORADA DO GÊNERO Maika Arno Roeder mioloantroppmd 10022010 1443 295 296 A consideração de abordar a RP fazse necessária uma vez que ela se baseia na construção de outro lugar social para o sofrimento psíquico podendo o projeto terapêutico do SRT servir como uma importante ferramenta de transformação ao se vincular à proposta de se levar em conta a subjetividade e a cidadania Se por um lado o SRT pode assumir uma função mediadora na construção deste outro espaço para o sofrimento psíquico ele também pode funcionar como morada de estratégias utilizadas como dispositivo de controle do poder impondo uma série de desafios à pessoa com sofrimento psíquico sua equipe terapêutica ou à própria comunidade O acesso à possibilidade de cura bem como a própria vivência relacionada à cidadania nem sempre se configura como processo democrático pois envolvem disputas a serem constantemente negociadas Os próprios atos da vida civil neste caso ficam a cargo de um determinado perito cuja atribuição é a de sugerir ao juiz sua opinião técnica a respeito da capacidade de discernimento sobre a própria vida uma vez que o processo de desinstitucionalização da pessoa está associado ao seu grau de dependência Certamente esta constatação corrobora com Marsiglia et al 1990 quando alerta para o fato de que as garantias constitucionais parecem ainda não ser suficientes para promover as condições necessárias ao exercício da cidadania plena com liberdade igualdade e garantia dos direitos humanos mioloantroppmd 10022010 1443 296 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 297 a todos os cidadãos sendo este processo mais complexo no que se refere às pessoas com sofrimento psíquico devido ao maior número de obstáculos que necessitam ser transpostos Ademais a possibilidade de reprodução nos serviços substitutivos2 das características negativas do hospital psiquiátrico descaracterização do indivíduo sua institucionalização segregação e abandono alerta para a necessidade de se acompanhar de perto a qualidade da assistência prestada Tal problemática social num panorama mais abrangente reafirma que não se trata de transpor um simples desafio e que existem inúmeras intersecções de fatores que se entrelaçam e se cruzam na dinâmica da social e política No âmbito das pesquisas científicas embora diversos estudos tenham demonstrado os avanços e as dificuldades relacionados à implantação de residências em saúde mental assim como o impacto das transformações ligadas à desinstitucionalização na vida de seus moradores estudos que se fundamentem sob a ótica de gênero ainda parecem escassos Scatena 2000 Roeder 2001 e 2005 Santos Riveiro e Marchese 2006 Vidal e Guljor 2006 Mendonça 2006 Santos 2006 Desta forma ao pesquisar sobre a saúde mental sob a ótica de gênero busco contribuir com algumas informações sobre o significado do SRT para a vida de mulheres que transcenderam da condição de pacientes para a de moradoras pois a compreensão do que é ser cidadã no Brasil mioloantroppmd 10022010 1443 297 298 sendo moradora de um SRT só adquire sentido pleno quando confrontada às transformações ocorridas nas últimas décadas em relação às condições sociais que as mulheres com sofrimento psíquico ocupam na ordem mundial Sabese que a exclusão social da pessoa alienada através do asilamento era recomendada há pouco mais de vinte anos como uma medida necessária para reconstituir o direcionamento de sua vontade com o intuito de devolvêla à razão Longe do meio e da família entendiase que esta poderia recomporse moralmente retomando o próprio controle Ao se curar o louco poderia resgatar seu status de cidadão pois mesmo alienado não perderia sua condição humana Vasconcelos 2000 Os resultados históricos produziram no entanto a cronicidade uma incurabilidade de fato e a violação dos direitos de cidadania A segregação a violência e a iatrogenia contribuíram para a necessidade de se investir em dispositivos assistenciais mais humanitários cujo comprometimento com as necessidades prementes da população que fora institucionalizada segundo Vasconcelos 2000 vem se constituindo como primeiro impulso para reverter os comprometimentos gerados àqueles que passaram por anos de reclusão No Brasil as iniciativas críticas em relação à psiquiatrização se intensificaram em meados da década de 1980 no bojo do processo de redemocratização da sociedade mioloantroppmd 10022010 1443 298 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 299 brasileira momento em que a cidadania ocupa lugar privilegiado de discussão Para Leone 2000 p123 é em torno da cidadania como um dos valores fundamentais que um conjunto de iniciativas teóricas políticas culturais metodológicas se articula e dá curso a um processo irreversível de transformação no campo da saúde mental no Brasil Este processo tem sido frequentemente designado de Reforma Psiquiátrica Com base na necessidade de suprir a carência de moradia e ao mesmo tempo contemplar aspectos relativos à continuidade de um acompanhamento psiquiátrico é que foram criados dispositivos assistenciais no Brasil com a finalidade de servirem de lares abrigados MS 2004 2005 regulamentados pelas Portarias GMMS 1062000 e 1220 2000 Esta estratégia política da RP tem contribuído para a redução significativa do número de leitos no país e o consequente fechamento de vários hospitais psiquiátricos especializados Os SRTs residenciais em saúde mental residências terapêuticas lares abrigados ou simplesmente casas ou moradias são casas localizadas no espaço urbano constituídas para responder às necessidades de moradia desta população de atendimento contínuo como as pessoas egressas de hospitais psiquiátricos Representam um esforço para que seus moradores possam ressignificar seu lugar no social enquanto cidadãos requerendo seus direitos e assumindo obrigações mioloantroppmd 10022010 1443 299 300 A legislação vigente recomenda que o programa terapêutico destes dispositivos seja centrado na construção progressiva da autonomia para as atividades da vida cotidiana como também na ampliação da reinserção social Este dispositivo passa a se constituir então em um espaço de mudança que envolve um conjunto complexo de fatores sendo permitido aos moradores ocupar diferentes lugares além daqueles tradicionalmente autorizados durante a estadia nos hospitais especializados Com base nas considerações acima resolvi neste momento me dedicar às seguintes questões a como foi criado e como funciona o SRT b quem são as suas moradoras e quais são seus itinerários terapêuticos c como se percebem e como fazem distinção entre a situação de vida atual e a pregressa e d qual o significado do SRT para as residentes compreendendo os sentidos da experiência cotidiana subjetiva e analisando em que medida as questões de gênero fundamentam estas histórias Parto da premissa que estes são temas antropológica e sociologicamente relevantes onde os significados são construídos com base na experiência social vivenciada na esfera micropolítica PERCURSO METODOLÓGICO Privilegiei nesta pesquisa as narrativas e os conteúdos de falas manifestos os pontos de vista as experiências e as trajetórias de vida das residentes por entender que estes se mioloantroppmd 10022010 1443 300 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 301 constituem em importantes recursos para a apreensão dos significados dos atos e das formas de relação dessas pessoas frente ao contexto sociocultural que compõe suas estruturas de vida Cabe salientar que as transcrições das falas das interlocutoras estão destacadas entre aspas e para preservar o anonimato das mesmas adotouse o nome de flores com a finalidade de identificálas A idéia de aplicar esta pesquisa no Residencial do Pomar foi motivada pelo fato deste ter sido o primeiro residencial em saúde mental a ser criado em Santa Catarina e sobretudo destinado às mulheres Este quando da sua criação constituiu se em um projeto piloto que se tornou referência no estado de Santa Catarina Na oportunidade esclareço que para me referir aos chamados problemas mentais ou sofrimento psíquico transitei por outras denominações com as quais me deparei na literatura com a finalidade de buscar uma aproximação com os próprios termos utilizados pelas residentes um desafio metodológico a ser partilhado com os leitores O trabalho de campo foi realizado em sua maior parte dentro do Serviço Residencial Terapêutico feminino que integra a rede de assistência em saúde mental do Sistema Único de Saúde SUS e foi criado a partir dos esforços do Instituto de Psiquiatria de Santa Catarina IPQ anteriormente denominado Hospital Colônia Santana HCS3 em encontros que duraram em média de duas a três horas por dia entre duas e três vezes por semana durante três meses mioloantroppmd 10022010 1443 301 302 A coleta de dados também se estendeu aos Serviços Residenciais Masculinos para a Unidade de Gestão Participativa4 localizada no IPQ e nas praças e mediações destes locais visitados devido à permanência temporária de algumas das residentes nestes espaços ou em virtude da necessidade de ampliar o conhecimento sobre o funcionamento destes serviços e as variações possíveis A observação participante a análise documental a coleta de narrativas e a elaboração de histórias de vida de moradoras integrantes do primeiro SRT de Santa Catarina assim como a participação em grupos terapêuticos e visitas a todos os SRT do estado foram as técnicas empregadas A análise do discurso serviu de aliado ao estudo deste universo simbólico assim como do ponto de vista analítico foi dada ênfase às teorias pós estruturalistas Para pensar sobre o lugar social da mulher louca no campo da saúde mental utilizeime das contribuições dos estudos de gênero tratando das formas de subjetivação destas mulheres diante das mudanças que ocorreram em suas vidas advindas da criação do SRT sinalizando com isso o potencial de metamorfose das residentes que evidencia a passagem da condição social de pessoa sujeitada e institucionalizada para o de uma pessoa que luta por seus direitos de cidadania Antes de apresentar as principais personagens desta pesquisa aproveito a oportunidade para discorrer sobre a criação implantação e funcionamento da casa onde vivem mioloantroppmd 10022010 1443 302 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 303 atualmente e que serviu de palco para as grandes mudanças ocorridas em suas vidas Criação Implantação e Funcionamento do primeiro SRT em Santa Catarina Há em Santa Catarina três Serviços Residenciais em Saúde Mental sendo um destinado ao público feminino e dois ao masculino Apesar de funcionarem há alguns anos somente em 2008 é que conseguiram ser efetivamente cadastrados no SUS Segundo uma das profissionais entrevistadas a idéia da fundação do primeiro SRT no Estado o Residencial do Pomar objeto deste estudo surgiu por volta de 1986 a 1987 estimulado por um Congresso de Psiquiatria que aconteceu na cidade de Camboriú que alertava para o fato de que era possível investir no tratamento da doença mental em regime de maior liberdade pois até então o que se tinha disponível era a internação em hospital psiquiátrico A Residência foi concebida como uma Unidade de Internação da Segunda Enfermaria Feminina5 a partir daquela equipe composta por uma psicóloga uma assistente social e uma enfermeira e principalmente de um grupo de pacientes que vinham sinalizando pedindo e mostrando que tinham alguma condição de se tornarem moradoras e que queriam sair do hospital Tratase de pessoas que moravam no hospital há muito tempo e que diziam eu podia fazer minha comida passear e sair Elas verbalizavam isto segundo a funcionária de forma diferente das outras pacientes mioloantroppmd 10022010 1443 303 304 A idéia da Residência começou a tomar corpo O projeto do Residencial do Pomar levou três anos para ser escrito pois na época de sua criação não havia bibliografia sobre o assunto não havia internet e nos congressos e outros encontros de psiquiatria ainda não se falava a respeito de um modelo a ser seguido A referida residência foi idealizada com base na concepção da equipe e transpõe uma série de desafios como a falta de recursos humanos ou a própria imagem social da loucura dentre outros A esse respeito afirma uma das profissionais entrevistadas Na época esta idéia era um absurdo pois não se concebia tirar o doente mental de dentro do hospital Isto mexia com o imaginário das pessoas da comunidade hospitalar Fulana de tal com uma faca na mão vai degolar todo mundo Além disso as pacientes transferidas eram consideradas as melhores pacientes do Hospital pois ajudavam na limpeza e nos cuidados com as outras pacientes atuando como se fossem funcionárias daquele local Isto para a os profissionais que trabalhavam na época era considerado um escândalo As residentes levaram quase um ano no processo de adaptação Conforme seus relatos primeiro foram conhecer a casa fizeram a limpeza da mesma prepararam café da tarde onde tudo parecia ser muito novo Da mesma forma a equipe de profissionais que temia o fracasso do Projeto também teve que lidar com seus desafios Mas somente após três anos residindo no Residencial é que a equipe percebeu no mioloantroppmd 10022010 1443 304 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 305 comportamento das moradoras o resgate das suas habilidades pessoais e sociais bem como os avanços no processo de reabilitação sobretudo naquele ligado ao resgate do domínio do cotidiano autônomas para cozinhar cuidar das coisas da casa sentiremse seguras manterem um relacionamento social adequado e resgatarem o autocuidado fortalecendo ao mesmo tempo o cuidado entre elas Tempo que foi também necessário para que se conquistasse a aceitação das residentes pelas pessoas que residiam na comunidade local O processo de adaptação também contou com episódios de rejeição por parte dos moradores da redondeza sendo este problema parcialmente contornado com a ajuda do padre da comunidade CONHECENDO SUAS MORADORAS Na época em que as residentes foram entrevistadas mais precisamente em meados de 2008 a faixa etária das residentes variava entre 43 e 71 anos sendo que somente uma delas se encontrava na faixa etária considerada adulta sendo as demais definidas como idosas Com exceção de uma das residentes que nasceu no Paraná todas as outras são provenientes do interior de Santa Catarina muitas vindas da zona rural onde seus pais trabalhavam na lavoura ou com serviços domésticos Todas são brancas solteiras e de baixo nível sócio econômico Somente uma das residentes frequentou o ensino do primeiro grau e não conseguiu completálo As demais não mioloantroppmd 10022010 1443 305 306 são alfabetizadas e atribuem o fato da interrupção dos estudos ao aparecimento do problema dos nervos Outras sequer tiveram a oportunidade de estudar Criadas por estranhos cujo nível de instrução era extremamente baixo nunca chegaram a freqüentar a escola Quando eu fiquei doente fui internada e não pude mais estudar Lírio Eu dava ataque dava crise eu não podia estudar Violeta Eu nunca estudei Não tinha família nem nada Era tudo muito pobre e depois logo eu vim para o hospital Margarida As residentes tiveram a oportunidade de participar de alguns cursos profissionalizantes dentre os quais panificação corte e costura horticultura entre outros realizados com a parceria da Secretaria de Estado da Saúde SES com o Sistema Nacional de Empregos do Ministério do Trabalho SINE e a Fundação de Ensino Técnico de Santa Catarina FETESC Todas essas mulheres são devotas da religião católica sendo que somente duas delas atualmente se consideram praticantes e a outra está afastada das cerimônias religiosas por dificuldade de locomoção até a Igreja Com relação à maternidade três das residentes engravidaram sendo que duas antes da internação psiquiátrica e uma durante o período da hospitalização Os filhos foram encaminhados para adoção por familiares ou por desconhecidos mioloantroppmd 10022010 1443 306 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 307 A manifestação dos sintomas advindos segundo elas do problema dos nervos se deu por volta da infância e da adolescência Com o aparecimento dos primeiros sintomas foram internadas por imposição de terceiros sendo algumas encaminhadas por familiares outras trazidas ao Hospital Colônia Santana pela Prefeitura do local em que viviam uma vez que perambulavam pelas ruas da cidade na condição de moradoras de rua Problemas de desemprego carência de recursos financeiros dificuldades no controle dos sintomas da doença e compreensão do que estava acontecendo com sua saúde exemplificam as dificuldades que estas mulheres encontravam contribuindo para o abandono das mesmas por familiares por patrões ou mesmo pela comunidade na qual pertenciam assim que afloraram os seus sintomas Na época em que as residentes foram internadas a cultura da atenção à saúde ainda era fortemente hospitalocêntrica mesmo porque não havia sido criado no Brasil pelo menos oficialmente qualquer outro tipo de serviço como Centros de Atenção Psicossocial por exemplo sendo a internação no Hospital Colônia Santana o único recurso oferecido Além do mais a dificuldade de comprar remédios para tratar a doença bem como outros problemas de ordem socioeconômica e cultural contribuiram para dar início à carreira de longas internações em hospital psiquiátrico culminando com a ruptura dos laços sociais de outrora mioloantroppmd 10022010 1443 307 308 Estas mulheres permaneceram desta maneira anos de suas vidas confinadas em uma instituição psiquiátrica até que fosse criado o SRT para abrigálas conforme demonstra a tabela abaixo Itinerário Terapêutico Tempo de Internação e de Moradia no Serviço Residencial Terapêutico Tabela 1 Distribuição Conjunta do Ano da Primeira Internação no Instituto de Psiquiatria Ano de Entrada no Serviço Residencial Terapêutico Tempo de Permanência no Instituto de Psiquiatria e Tempo de Permanência no Serviço Residencial Terapêutico Até o Ano de 2008 Ano primeira internação Data entrada Tempo Permanência Tempo permanência no SRT Internadas IPQ no SRT 1952 1990 38 anos 18 anos 1955 1990 35 anos 18 anos 1969 1990 21 anos 18 anos 1981 1991 10 anos 17 anos 1997 2002 5 anos 6 anos Não discriminado 1991 média média 17 anos no prontuário aproximadamente 20 anos Os dados da Tabela 1 revelam que a permanência das residentes internadas em hospital psiquiátrico variava de cinco a trinta e oitos anos sendo que a grande maioria permaneceu institucionalizada por mais de vinte anos duas destas por mais de 35 anos mioloantroppmd 10022010 1443 308 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 309 Cabe ressaltar que não consta num dos prontuários o tempo de internação de uma das residentes É possível observar então que o tempo de hospitalização é ainda maior do que o tempo em que permanecem na condição de moradoras que para um maior número de moradoras varia de dezessete a dezoito anos Somente uma delas chegou mais recentemente ao Residencial do Pomar cerca de seis anos atrás Após traçar um breve panorama sobre o SRT onde vivem e o itinerário de internação das residentes passo a discorrer sobre quem são elas O Processo saúdedoença o que é ser paciente O que é ser moradora A visão das residentes com relação a como se percebem e como fazem distinção entre a situação de vida atual e a pregressa está intimamente relacionada com o estado de saúde doença A noção de saúde e de melhora da vida pessoal das mesmas está associada ao controle de crises que se dá através do uso continuado de medicamentos sendo a boa saúde também percebida como algo espiritual e portanto atribuído a um poder superior A utilização de termos diversos como doença mental loucura dentre outros que não foram pensados de maneira uniforme nem ao longo da história nem no mesmo espaço temporal contribuiu para a compreensão de como elas atribuem significados ao processo saúdedoença mioloantroppmd 10022010 1443 309 310 Para chegar a esta conclusão baseeime nas contribuições de autores clássicos da área cujas concepções revolucionaram a compreensão desse processo a relativização da dicotomia saúdedoença proposta pelo filósofo Georges Canguilhem 2000 a desconstrução do conceito de loucura de acordo com a análise filosóficohistórica de Michel Foucault 1989 1989b e a crítica do sociólogo Erving Goffmann 1982 à concepção de doença mental Em seguida me utilizarei da visão de outras os autorases como Silveira 2000 e Duarte 1986 1994 dentre outros para tratar do tema As considerações de Alves 1993 Kleinman 1991 Caprara 1998 e Langdon 2005 também foram empregadas para a compreensão do processo de adoecimento e cura Posteriormente tais contribuições serão articuladas ao pensamento de Butler 2003 para dar conta dos aspectos pertinentes ao gênero Inspirada pelas contribuições dos autores acima busquei associar o projeto de cura das moradoras do Residencial do Pomar ao processo de resgate das suas cidadanias ampliando a compreensão da própria definição do que seja moradora e paciente Neste sentido ser moradora na visão das residentes marca uma diferença de um passado em que foram submetidas à situação de pacientes de um hospital psiquiátrico e que tiveram seus vínculos com a sua rede familiar rompidos sendo consideradas pacientes crônicas6 de um hospital psiquiátrico mioloantroppmd 10022010 1443 310 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 311 A cosmologia das residentes apoiada na definição de saúdedoença parece se guiar pela lógica binária que só pode situálas numa determinada posição que deve ser definida entre duas possibilidades uma relacionada à condição de moradora e a outra relacionada à condição de paciente Embora os diagnósticos das residentes sejam os mais distintos como transtornos mentais orgânicos esquizofrenia e oligofrenia todas as residentes foram encaminhadas para a hospitalização e devido a problemas de ordem psicossocial como abandono familiar ou dificuldade dos familiares conviverem com a doença por exemplo colaborando para que permanecessem internadas por muitos anos Além de carregarem consigo o peso do estigma e do preconceito relacionado à doença mental somavam às suas vidas toda uma problemática advinda do processo de institucionalização deflagrado através do diagnóstico Desde o instante em que a marca da loucura lhes foi imputada é como se a doença mental tivesse ocupado o lugar de sujeito O discurso e as ações expressas por estas mulheres então eram vistos como sintomas da doença e suas vidas colocadas à mercê dos médicos Ademais uma vez recebida a marca da loucura tornavase difícil para elas conviver com o peso da discriminação advinda do preconceito Como relatou Rosa É muito difícil ser doente dos nervos Agora eu sou moradora e não sou mais doente mioloantroppmd 10022010 1443 311 312 A avaliação da loucura na história se baseava historicamente no grau de sanidade observado através das afeições morais associando a psiquiatria a uma disciplina moral Se as pessoas demonstrassem ser desordenadas e pervertidas isso era considerado um sinal de alienação Já a cura por sua vez significa a volta às afeições morais dentro dos seus justos limites Foucault 1979 p121 A observação de Foucault pode ser percebida na fala de Violeta que atesta que o comportamento moral tem uma relação direta com o estado de saúde A mulher que fala palavrão por exemplo e cujo comportamento não parece ser condizente com os padrões sociais determinados para uma dama pode se constituir em um sinal de estar apresentando doença Segundo depoimento de Violeta Lá no hospital as pessoas estão ruins das idéias falam mal e chamam nome de morfética7 e isto muito esquisito sic Deve ser uma doença muito feita Para morar aqui a pessoa tem que estar bem das idéias Estar doente na visão de todas as residentes é estar ruim das idéias O problema dos nervos estaria vinculado à noção de doença sendo associado a vários sentimentos como confusão agitação violência perdas familiares e de amigos privação opressão reclusão dor isolamento dependência sujeição perda de produtividade falta de envolvimento indisciplina ou a um comportamento moralmente impróprio às mulheres Os significados que definem o termo problemas mioloantroppmd 10022010 1443 312 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 313 dos nervos são assim segundo elas muito parecidos ao descrito por Silveira 2000 em seu estudo sobre doença dos nervos entre as mulheres do bairro Campeche em Florianópolis Para ser moradora é preciso estar bem das idéias com a cabeça em ordem Estar bem das idéias significa na visão das residentes não dizer palavrão não brigar não discutir com os outros não prejudicar ou depreciar a imagem do outro não depreciar a autoimagem através de comportamento moralmente incorreto e não responder a provocações Além do mais é imprescindível para a condição de moradora ajudar nos serviços da Casa incluindo as atividades domésticas e até mesmo as atividades de conservação do lar como o conserto de coisas quebradas por exemplo A moradora também pode passear ter liberdade para defender as suas coisas ter amigos e namorar desde que seja com respeito não envolvendo sexo e mediante a aprovação e a supervisão das outras residentes O casamento e a maternidade por outro lado são contra indicados à condição de moradoras sob a visão das mesmas Não existe consenso sobre a necessidade de ter que tomar remédio para ser moradora eis que uma das residentes associa a sua cura à condição de moradora e portanto não vê sentido em se submeter ao tratamento medicamentoso já que se considera curada Outras no entanto acreditam que permanecem no SRT porque além de não terem para onde ir pois não têm mais laços familiares nem condição financeira mioloantroppmd 10022010 1443 313 314 necessitam do remédio para evitar os episódios de crise Além disso precisa ser crônica isto é ter permanecido por muito tempo internada A palavra crise por sua vez está associada a um desequilíbrio provisório do estado de saúde sendo possível que a moradora volte a apresentar uma crise sendo portanto segundo elas próprias necessário controlar os fatores de risco desencadeadores da mesma através do uso correto e continuado de medicamentos A crise parece estar relacionada a episódios breves que no entanto podem se tornar recorrentes se transformando em problemas dos nervos nas quais a pessoa fica mole esquece de tudo não sabe onde está cai no chão e até se perde A crise está também relacionada à fraqueza na cabeça ao nervosismo tremedeira vontade de quebrar as coisas e derrubar tudo não conseguir segurar nada sentir pensamentos estranhos e provocar sofrimento A crise pode se materializar com manchas roxas no braço e também pode causar machucados provenientes de ferimentos causados por acidentes advindos da perda de consciência momentânea como queimaduras batidas na cabeça e cortes nas mãos As cicatrizes em três das residentes revelam alguns acidentes sofridos servindo de prova material das perdas ocasionadas pelas crises A crise também é considerada por elas como um fator de risco para a permanência da condição de moradora assim como a presença dos sinais relacionados ao problema dos nervos também denominado de variação dos nervos pois tudo isso recoloca a ameaça do retorno à hospitalização mioloantroppmd 10022010 1443 314 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 315 A transferência das residentes para o SRT não significa que elas não retornarão ao Hospital quando for definido que é necessário Episódios relacionados a problemas de saúde seja de ordem clínica ou psiquiátrica são tratados ainda no Hospital Segundo entrevista realizada com uma das funcionárias do SRT isto se dá em função do Hospital ter todo o aparato necessário para efetivar um atendimento de qualidade que demande quase todos os níveis de complexidade assistencial Um atendimento que se encontra disponível por 24 horas e sem burocracia Além do mais os exames são rápidos e é possível fazer desde os de baixo custo aos de maior custo a medicação é facilitada e a equipe de saúde já é conhecida Além de tudo é muito mais cômodo para a equipe terapêutica responsável Desta forma parece que nenhuma das residentes participa das ações de saúde da rede básica demonstrando a forte centralização do atendimento à saúde destas Estas por sua vez colocam resistência rejeitam a internação no IPQ e querem ser tratadas em seu ambiente seu espaço reivindicando segundo a informante suas subjetividades seus modos de ser Aqui é minha casa não quero ir embora quando ficar doente Jasmim As afirmações da profissional citada acima sobre a centralização das atividades de saúde podem ser evidenciadas na fala de Hortência Eu já fui lá ao posto de saúde da comunidade Eu conheço Eu já fui buscar muitas vezes remédio para a Margarida no Posto de Saúde mas eu nunca precisei Se precisar eu sei onde fica mioloantroppmd 10022010 1443 315 316 O tratamento associado à hospitalização pode ser compreendido em função das residentes não conhecerem dispositivos comunitários de atenção à saúde mental como Centros de Atenção Psicossocial ou mesmo Programas de Saúde Mental da Rede Básica o que se reforça pelo fato de a rede de assistência em saúde local não dispor ainda destes recursos O tratamento que conhecem e que vivenciaram por tantos anos para curar o problema dos nervos e prevenir as crises é somente o da hospitalização no Instituto de Psiquiatria em função da comodidade do processo de encaminhamento para o IPQ para a realização de consultas e exames necessários por parte da equipe terapêutica do SRT e por parte das residentes por serem estimuladas a serem atendidas no IPQ pela comodidade da própria Equipe Terapêutica Da mesma forma que o tratamento dos problemas dos nervos e das crises parece estar associado à hospitalização no hospital psiquiátrico os problemas de ordem clínica também podem ser considerados um impeditivo para a condição de moradora considerando a gravidade e o tempo de hospitalização A lógica binária da posição de residentes versus paciente do Hospital revelaria que ainda não houve a oportunidade da assunção do papel de pacientes subordinado à condição de cidadãs o que significaria por exemplo passar a frequentar os centros de atenção básica à saúde entre outros mioloantroppmd 10022010 1443 316 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 317 A condição de ser moradora além de requerer uma boa aptidão relacionada à disposição autonomia e eficiência para o cumprimento das tarefas necessárias ao bom funcionamento do lar e ao auto cuidado e à preservação do Grupo deve ser reservada somente àquelas cujos laços familiares já foram rompidos e cuja problemática da ordem psicossocial impeça o retorno da vida pregressa à hospitalização Talvez o rompimento com os laços familiares seja o que faz com que as residentes prezem tanto uma organização que leve em consideração o fortalecimento de uma nova identidade familiar cujos laços se firmam a partir da habitação compartilhada O comportamento moralmente questionável de qualquer uma das residentes também pode ser prejudicial ao Grupo e portanto na visão das mesmas pode colocar em cheque todo o esforço que demanda o fortalecimento da imagem de uma pessoa mentalmente saudável cuidadosamente cultivada por elas e portanto moralmente correta O almejado padrão moralmente correto do comportamento das residentes também parece estar associado ao padrão imposto pela Igreja Católica Sendo assim além de terem que controlar os sinais de uma possível crise é necessário corresponder à imagem ideal da mulher cristã Imagem esta fortalecida no ambiente hospitalar que ficou por muitos anos sob a responsabilidade das Irmãs de Caridade e atualmente nas missas das quais participam Além do que infringir o código comportamental previsto para elas poderia ser confundido mioloantroppmd 10022010 1443 317 318 com problemas dos nervos podendo ocasionar a perda da posição de moradora Não é a toa que o itinerário das residentes envolve como as principais atividades de lazer aquelas que se dão no âmbito doméstico e que são consideradas as mais apropriadas a um bom comportamento feminino como assistir TV sobretudo as novelas e os programas de auditório além da participação em atividades sociais do bairro como missas bingos enterros batizados casamentos e bailes São poucas as ocasiões em que participam de eventos noturnos Algumas já são até madrinhas de filhos da comunidade onde residem Passeios a pontos turísticos passeios à praia ao Shopping ida ao circo ou outros lugares também foram relatados e são os mais apreciados embora aconteçam em menor frequência As visitas tradicionais às lojas das redondezas da Casa também fazem parte do itinerário deste grupo assim como a ida ao salão de beleza por parte de algumas das residentes A ampliação da oferta de tantas experiências nem sempre foi constante na vida das residentes Da vida no hospital para a Casa ocorreram profundas mudanças que vêm se operando no dia a dia e portanto são repletas de desafios e significados diversos que remetem à apropriação da vida sob outra perspectiva que será tratada a seguir DE VOLTA AO MUNDO DA VIDA DO HOSPITAL PARA CASA Ao se submeterem à hospitalização com o consequente afastamento das suas moradias dos seus pertences da rede social enfim das referências que as ligavam a um determinando mioloantroppmd 10022010 1443 318 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 319 mundo as residentes deixaram para trás seu nome suas roupas seus bens materiais seus amores suas redes de relações e tantas outras coisas como um rito de passagem que para Goffman 2005 pode vir a representar uma despedida e um novo começo A volta ao mundo da vida de uma outra forma remete a uma ideia da retomada de valores deixados para trás num esforço de restituição das cidadanias destas mulheres que passaram anos de suas vidas hospitalizadas Neste caso a metáfora retorno para casa pode ser considerada como a primeira referência simbólica de um novo rito de passagem que sinaliza uma nova vida uma nova identidade uma nova referência O significado de se habitar o SRT não significaria portanto somente o uso da casa mas um processo de reapropriação da própria vida pelas residentes Significa a passagem do lugar de pacientes para o de residentes Com base nos depoimentos abaixo é possível perceber as mudanças ocorridas na vida das moradoras do Residencial do Pomar neste percurso No tempo de hospital eles não deixavam agente fazer nada Por isso eu gostei de vir morar aqui Margarida Era difícil a vida na rua Não tinha onde tomar banho o que comer suja cabelo sem pentear Daí me pegaram na rua e comecei a morar no hospital Lírio Aqui na casa nós escolhemos o que queremos marcamos no papel e compramos Aqui fazemos de tudo Lírio mioloantroppmd 10022010 1443 319 320 Aqui na casa é tudo arrumadinho É tudo com amor Agora essa é a minha família e se eu precisar de ajuda elas tomam conta de mim Rosa A melhor coisa da minha vida foi morar aqui Estou muito feliz Nunca mais quero sair daqui nem voltar para a minha casa sic Aqui cada uma faz o que gosta Lírio De uma posição de abjeção conceito formulado por Butler 2003 para se referir à situação de exclusão dos papéis de sujeito as residentes buscaram caminhos para afirmar sua subjetividade para contrapor o lugar social que ocupavam anteriormente Do tempo de moradia antes e durante a hospitalização algumas das poucas lembranças parecem aflorar sentimentos que muitas vezes as conduzem ao silêncio O rompimento de Violeta com a carreira hospitalar exemplifica o quanto neste momento é importante investir no papel de moradora e não mais de paciente Como ela relatou Já faz tanto tempo que nem lembro mais da vida no hospital Antes nós éramos de uma enfermaria Hoje não somos mais Nós quase não temos mais amigas lá Mesmo com todo o sofrimento advindo do período da internação demonstraram que longe de parecerem cansadas de si mesmas ainda possuíam forças para se tornarem proprietárias de si Como símbolo maior de civilidade elas transformaramse aos olhos do Outro em pessoas mais dignas mioloantroppmd 10022010 1443 320 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 321 socialmente com toda a discrição que um bom estrategista requer em sua conduta a ponto de gerar certo estranhamento por sua sutileza Como sujeitos dotados de potencial de metamorfose que seria já uma posição política que evidenciaria este certo estranhamento à condição de pacientes socialmente destinadas a elas des constroem a imagem de pessoa doente a partir então da tomada de consciência sobre as suas diferenças Essas transformações passaram a ser tão costumeiras quanto possíveis servindo para realçar a percepção da dignidade necessária às modificações presentes É o que poderia ser denominado de período de adaptação à nova situação Esta performance talvez passa a ser considerada o primeiro passo do processo de autonomia das residentes Tratase de uma posição frágil pois caso não correspondam às demandas previstas para o lugar de residentes restalhes somente a de pacientes de um hospital psiquiátrico retroagindo à hospitalização com toda a carga advinda desta situação cujo rótulo diagnóstico é apenas o início de uma jornada marcada pela mortificação do eu O retorno às afeições morais dentro dos padrões permitidos pode ser considerada a performance que assinala a aprovação de um comportamento moralmente próprio às mulheres que se encontram bem das idéias pois não dizem palavrão não brigam não contestam não prejudicam ou depreciam ninguém Ao contrário se envolvem com esmero nas tarefas mioloantroppmd 10022010 1443 321 322 domésticas que lhes são delegadas participam na administração do lar cuidam das outras residentes e se responsabilizam por si e pelo lar contribuindo com a prevenção de qualquer episódio de crise o que evidencia a aptidão necessária para a manutenção da condição de residente A demonstração de que estas mulheres contribuíram para o êxito dos papéis previstos parece repartir a responsabilidade por seu estado de saúde como um dos indicativos de que vêm realizando tudo o que estava ao alcance incluindo a própria medicalização o controle sobre a saúde e o comportamento moralmente correto A ameaça do retorno das mesmas para o hospital entretanto pode estar sendo sutilmente utilizada como estratégia de controle de poder O comportamento reprovado pode sinalizar doença e a consequente hospitalização Não é para menos que poderiam estar se esforçando para demonstrar disposição autonomia e eficiência com base no referencial que possuem de boas cidadãs que neste caso se fundamenta nos estereótipos do papel tradicional de mulher engendrados neste caso pela equipe terapêutica pela Igreja Católica pela comunidade local por seus pares e familiares De maneira geral considerando os diferentes graus de envolvimento posso ousar afirmar com base nas impressões obtidas que as residentes constroem a imagem que têm de si mesmas como mulheres moralmente corretas e socialmente desejáveis cuja saúde se caracteriza pelo fato de serem ativas mioloantroppmd 10022010 1443 322 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 323 trabalhadoras responsáveis por suas vidas capazes de decidirem sobre seus corpos dotadas de maior liberdade de ir e vir com potencial para opinarem sobre o próprio tratamento com a cabeça em ordem respeitosas disciplinadas e colaboradoras para com as demais São capazes de cuidar de si e das outras residentes de desfrutar dos mesmos privilégios e costumes da comunidade além de se considerarem boas domésticas A identidade grupal por sua vez parece estar associada à organização familiar que deve ser vivenciada sob as bases da cumplicidade do respeito da lealdade do envolvimento e da vigilância de todas CONSIDERAÇÕES FINAIS Mesmo com todos os avanços conquistados observase que uma moralidade tradicional e hierárquica também em relação a questões de gênero e sexualidade parece embasar os parâmetros científicos que engendram a percepção sobre estas mulheres e a própria visão sobre seu estado de saúde O SRT parece carregar consigo a ambigüidade de pretender tratar e proteger suas residentes ao mesmo tempo em que lhes incentiva e limita os direitos de cidadania A própria denominação configurada na legislação atual é ambígua no sentido de se pretender ser tanto um serviço que se propõe a determinadas terapias quanto um residencial com a finalidade de garantir os direitos de moradia mioloantroppmd 10022010 1443 323 324 Foi possível verificar na visão das residentes e membros da equipe terapêutica que o Residencial do Pomar tem colaborado para uma visão comunitária contribuindo para o acolhimento e a reintegração das residentes Supre também a carência de moradia ao mesmo tempo em que dá suporte ao acompanhamento psiquiátrico e clínico Ao habitarem a Casa as mulheres iniciam o seu processo de transição do papel de institucionalizadas para o de moradoras revelando o quanto são dotadas de potencial de metamorfose O retorno ao zelo pelas coisas do lar a possibilidade de poder juntar objetos que contenham suas histórias e armazenálos num espaço cuidadosamente arranjado o cultivo da privacidade a possibilidade de comer algo diferente saber que tem onde receber amigos ou ainda a possibilidade de poder decidir sobre a própria beleza exemplificam como se deu o processo de adaptação e de apropriação da vida das residentes O trânsito entre províncias e mundos pode ser considerado então como uma das questões cruciais para a compreensão sócioantropológica dessas residentes que passaram a transitar em distintos planos e níveis de realidade socialmente construídos ao irem morar numa Residência O desempenho das residentes parece talhado então para demonstrar sua capacidade de adequação de autonomia seu perfeito estado de saúde em consonância com a política necessária à solicitação da condição de moradora um histórico mioloantroppmd 10022010 1443 324 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 325 de bons antecedentes evidenciando o quanto essas mulheres longe de serem incapazes e inferiores sabem fazer política no cotidiano A própria imposição de normas aos corpos das residentes como o controle sobre a sexualidade sobre o direito de ir e vir sem restrições ou a obrigatoriedade do uso da medicação dentre outras medidas exemplificam que nem sempre a própria negociação sobre o estado de saúde é algo tão democrático quanto aparenta funcionando como dispositivo biopolítico de poder Há de se considerar que alterações no comportamento previsto podem ser desencadeadoras de uma ação que as faça perder a condição de moradoras com o consequente retorno à hospitalização psiquiátrica pois não dispõem de outros serviços de saúde mental ou de uma rede de assistência capaz de satisfazer integralmente as suas necessidades Mas conforme mencionei anteriormente a luta pela superação da posição de pacientes tem seu preço pois a construção de sujeitos singulares neste caso parece ser feita com base em essências naturalizadas e fundamentadas na imagem tradicional de mulher Neste caso passividade desdobramento disponibilidade capacidade para o trabalho doméstico e demais tarefas consideradas femininas correspondem então ao ideal de saúde mental para as residentes Já a sexualidade e a maternidade tornamse algo impróprio ao lugar que ocupam socialmente mioloantroppmd 10022010 1443 325 326 Por meio do SRT elas conquistam maior privacidade adquirem a noção de propriedade constroem um universo simbólico através dos objetos que adquirem e trabalham formas próprias de autodeterminação de suas vidas demonstrando que mesmo se vestindo com uma roupagem essencializada nos moldes do feminino tradicional são dotadas de potencial de metamorfose e são capazes de contribuir com um projeto coletivo com vistas à colaboração da gestão de problemas sociais Mesmo com toda a restrição presente ressaltase que a liberdade para escolherem e controlarem suas vidas foi ampliada mas o controle sobre a mesma impõe limites ao próprio livre arbítrio pois a todo o momento existe um campo de possibilidades que precisa ser negociado a fim de se ampliar os direitos as trocas e a circulação das diferenças Se por um lado isto dificulta a cidadania por outro parece estimulálas no sentido de resolver seus problemas Se ainda são vistas através das lentes dos papéis tradicionais femininos é mediante o reforço a esta mesma imagem que intensificam a sua performance diária através da demonstração das suas habilidades femininas tão necessárias à presença da imagem de boa saúde NOTAS 1 Tese defendida em setembro de 2008 no Centro de Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina sob a orientação de Luzinete Simões Minella e Sônia Weidner Maluf 2 Serviços substitutivos são dispositivos assistenciais criados a partir da política da RP brasileira como os Centros de Atenção Psicossocial e os Serviços Residenciais Terapêuticos em Saúde Mental por exemplo com a finalidade de se evitar ao máximo o tratamento em mioloantroppmd 10022010 1443 326 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 327 situação de confinamento como o atendimento prestado nos hospitais especializados em psiquiatria ou nos leitos psiquiátricos de hospitais gerais destinada somente para os casos em que a internação se faça necessária depois de esgotadas todas as possibilidades de atendimento em unidades extrahospitalares e de urgência conforme o recomendados na PT SNAS nº 2241992 3 Hospital Colônia Santana foi inaugurado em 10 de novembro de 1941 no Salto do Maroim no município de São José com a missão de ser o primeiro grande empreendimento destinado ao tratamento dos doentes mentais em Santa Catarina 4 UGP Unidade de Gestão Participativa é uma unidade do Centro de Convivência Santana CCS destinada a abrigar mulheres internas em condição asilar que possuem internação prolongada mas com possibilidade de autodeterminação Esta Unidade com 20 vagas é indicada para pacientes internas agudas e subagudas que estejam com o quadro psiquiátrico compensado embora pouco produtivo e com remota possibilidade de alta não oferecendo risco evidente de fuga Tem por objetivo o resgate das habilidades sociais e da cidadania assim como a melhoria da qualidade de vida visando o retorno gradativo das mesmas ao convívio sóciofamiliar Projeto Terapêutico da Unidade de Gestão Participativa 2002 5 A Segunda Enfermaria Feminina era uma das unidades do Hospital Colônia Santana destinada a abrigar mulheres adultas e mais idosas sem prognóstico de saírem do Hospital devido a problemas de ordem clínica eou psicossocial 6 Paciente crônica significa na visão das residentes aquela que permanece internada por muitos anos 7 Morfética é o termo utilizado pelas Residentes como uma pessoa sonsa meio desligada do mundo meio retardada mioloantroppmd 10022010 1443 327 328 AMARANTE Paulo O homem e a serpente outras histórias para a loucura e a psiquiatria Rio de Janeiro Editora Fiocruz 1996 BEZERRA Benilton A clínica e a reabilitação psicossocial In PITTA Ana org Reabilitação psicossocial no Brasil São Paulo SP HUCITEC 2001 BEZERRA Benilton O cuidado nos Caps os novos desafios In ALBUQUERQUE PLIBÉRIO MOrgsO cuidado em saúde mental ética clínica e política Rio de Janeiro Coordenação de Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro 2004 BRASIL Ministério da Saúde Legislação em saúde mental 19902004 Brasília Ministério da Saúde 2004 5ª Edição Ampliada COSTA ROSA Abílio da O modo psicossocial um paradigma das práticas substitutivas ao modo asilar In AMARANTE Paulo org Ensaios subjetividade saúde mental e sociedade Rio de Janeiro Editora Fiocruz 2000 DELEUZE Gilles Conversações 19721990 Rio de Janeiro Ed 34 1992 DESVIAT Manuel A reforma psiquiátrica Rio de Janeiro Editora Fiocruz 1999 DUARTE Luiz Fernando Dias Da vida nervosa nas classes trabalhadoras urbanas Rio de Janeiro Zahar 1988 FIGUEIRA Sérvulo Psicanalistas e pacientes na cultura psicanalítica In FIGUEIRA Sérvulo Efeito Psi a Influência da Psicanálise Rio de Janeiro Campus 1988 FOUCAULT Michel Vigiar e punir nascimento da prisão Petrópolis Vozes 1987 FOUCAULT Michel O sujeito e o poder In DREYFUS Hubert e RABINOW Paul Michel Foucault uma trajetória filosófica para além do estruturalismo e da hermenêutica Rio de janeiro Forense Universitária 1995 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS mioloantroppmd 10022010 1443 328 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 329 FOUCAULT Michel História da loucura 5ªed São Paulo Editora Perspectiva 1997 FOUCAULT Michel O nascimento da clínica 5ªed Rio de Janeiro Forense Universitária 2001 KANTORSKI Luciane Prado coordenadora CAPSUL Avaliação dos CAPS da região sul do Brasil Relatório Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico CNPq Ministério da Saúde Pelotas 2007 LAQUEUR Thomas Inventando o sexo Corpo e gênero dos gregos a Freud Rio de Janeiro Relume Dumará 2001 MALUF Sônia W Mesa A medicalização do sofrimento e a perda da tristeza II Congresso Catarinense de Saúde Coletiva UFSC Florianópolis 2008 MALUF Sônia W Gênero subjetividades e saúde mental Práticas e representações sobre saúde mental através de uma abordagem de gênero Projeto de Pesquisa UFSC 2006 MANZINI Fernanda e BECKER Marina A mulher e a pílula da felicidade uma abordagem sobre o uso de fluoxetina Trabalho de Conclusão de Estágio orientado pela profª Eliana Diehl Curso de Graduação em Farmácia UFSC 2007 PELBART Peter Pal Manicômio mental a outra face da clausura In Lancetti Antonio org SaúdeLoucura 2 São Paulo Hucitec p 130138 1990 ROHDEN Fabíola Uma ciência da diferença sexo e gênero na medicina da mulher Rio de Janeiro Editora Fiocruz 2001 ROTELLI Franco et al Desinstitucionalização São Paulo Hucitec 2001a 2ªed ROTELLI Franco et al Desinstitucionalização uma outra via A reforma Psiquiátrica Italiana no contexto da Europa Ocidental e dos Países Avançados In ROTELLI et al Desinstitucionalização São Paulo Hucitec 2001b 2ª Ed SILVEIRA Maria Lucia da O nervo cala o nervo fala a linguagem da doença Rio de Janeiro Editora Fiocruz 2000 mioloantroppmd 10022010 1443 329 mioloantroppmd 330 10022010 1443 A partir de 1950 os medicamentos psicotrópicos1 modificaram a paisagem da loucura paulatinamente esvaziando os manicômios e substituindo a camisadeforça e os tratamentos de choque pela redoma medicamentosa Roudinesco 2000 Também é fato que emoções e sentimentos que eram considerados como parte da vida por exemplo tristeza culpa raiva entre outros atualmente são objeto de intervenção com medicamentos sendo a indústria farmacêutica um dos principais promotores dessa tendência A depressão antigamente definida como melancolia entre outras denominações domina a subjetividade contemporânea Segundo Roudinesco 2000 a depressão tornouse a epidemia psíquica das sociedades democráticas e é neste cenário que surgem novos tratamentos a cada dia oferecendo a tão esperada solução na forma de comprimidos ou cápsulas Segundo Azize 2002 para ilustrar a idéia de que A MINHA MELHOR AMIGA SE CHAMA FLUOXETINA CONSUMO E PERCEPÇÕES DE ANTIDEPRESSIVOS ENTRE USUÁRIOS DE UM CENTRO DE ATENÇÃO BÁSICA À SAÚDE Eliana Diehl Fernanda Manzini Marina Becker mioloantroppmd 10022010 1443 331 332 a depressão é uma doença comum da qual qualquer pessoa pode ser acometida e que por isso não deveria ser causa de nenhuma espécie de estigma o texto do sítio eletrônico oficial do Prozac cuja substância ativa é a fluoxetina2 traz nomes de alguns personagens conhecidos que sofrem ou teriam sofrido de depressão O subtexto parece dizer Se expoentes da cultura mundial podem desenvolver depressão por que não eu ou você A fluoxetina tem papel de destaque na medicalização crescente da sociedade contemporânea O Prozac atingiu uma sociedade que estava no clima certo para ele Campanhas apoiadas pelo laboratório Eli Lilly fabricante do Prozac alertaram os médicos e o público para os perigos da depressão O Prozac foi lançado como totalmente seguro podendo ser receitado para qualquer um Era a droga maravilhosa a resposta fácil o reanimador instantâneo o eldorado neurológico Moore 2007 Quando chegou o dia do lançamento os pacientes já o pediam pelo nome Em 1999 o medicamento respondia por mais de 25 do faturamento de 10 bilhões de dólares do laboratório Moore 2007 correspondendo a aproximadamente US 261 bilhões WHO 2004 Em que pese a importância de dados mais amplos sobre medicamentos abordagens macropolíticas e macroeconômicas não têm sido suficientes para explicar por que por exemplo o consumo de medicamentos é prática relevante mesmo onde mioloantroppmd 10022010 1443 332 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 333 os serviços de saúde são deficientes os medicamentos de venda sob prescrição são disponíveis livremente e a automedicação é importante recurso de cuidado Para melhor compreender esses fenômenos alguns autores como Van der Geest 1987 Etkin et al 1990 e Van der Geest et al 1996 propuseram estudos em contextos locais de distribuição e uso dos medicamentos na perspectiva de uma antropologia dos medicamentos que pressupõe a coexistência de medicamentos e de remédios e a questão de como as percepções e usos de um afeta o outro Whyte Van der Geest 1988 Para esses autores não basta rotular os medicamentos como substâncias com propriedades bioquímicas e farmacológicas mas sim pesquisar as situações dinâmicas nas quais os mesmos são percebidos e utilizados pois o significado dos medicamentos é apreendido em termos da experiência e concepção da doença Van der Geest Whyte 1989 Essa pesquisa buscou identificar a dispensação de antidepressivos em um Centro de Saúde de atenção básica em Florianópolis caracterizando os medicamentos os usuários e os prescritores bem como a percepção do uso de fluoxetina entre usuários METODOLOGIA A pesquisa foi realizada entre março e junho de 2007 em um Centro de Saúde CS de atenção básica especialmente no serviço de farmácia no município de Florianópolis Santa Catarina como parte do projeto Gênero Subjetividade e Saúde mioloantroppmd 10022010 1443 333 334 Mental práticas e representações sobre saúde mental através de uma abordagem de gênero realizado e coordenado pelo Grupo de Estudos de Gênero Subjetividade e Saúde Mental do Programa de PósGraduação em Antropologia Social da UFSC Para fornecer elementos que facilitassem a compreensão da elevada frequência de dispensação de antidepressivos no CS em especial de fluoxetina optouse por quantificar a dispensação de antidepressivos analisar as prescrições de fluoxetina entrevistar usuárias deste medicamento e realizar observação participante durante todo o período da pesquisa Para obter a série histórica do consumo dos antidepressivos escolheramse os meses de janeiro a março de 2007 Os dados do consumo mensal dos antidepressivos constantes na Relação Municipal de Medicamentos Essenciais REMUME amitriptilina fluoxetina e imipramina dispensados no CS foram obtidos consultandose o livro de registro específico dos medicamentos controlados3 BRASIL 1998 Partindose dos dados desse livro de registro buscaram se as receitas de fluoxetina referentes aos meses de janeiro a março de 2007 que se encontravam armazenadas na farmácia do Centro Os dados de gênero e idade foram obtidos consultandose o cadastro do usuário no InfoSaúde sistema de informatização de dados da atenção à saúde utilizado pela Secretaria Municipal de Saúde a especialidade do médico mioloantroppmd 10022010 1443 334 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 335 prescritor a Denominação Comum Brasileira DCB ou nome comercial a quantidade e a posologia foram obtidas analisando se as receitas Quando da ausência da especialidade do prescritor na receita realizouse pesquisa via Internet acessandose o sítio eletrônico do Conselho Regional de Medicina de Santa Catarina4 Para a compreensão do contexto de uso da fluoxetina foi utilizado o método etnográfico usando como técnicas a observação participante durante a pesquisa no serviço de farmácia com anotações em diário de campo e as entrevistas baseadas em roteiro prévio Para a entrevista selecionaramse dois usuários através de abordagem no momento da entrega da fluoxetina O projeto Gênero Subjetividade e Saúde Mental no qual essa pesquisa está inserida recebeu o Parecer favorável n 355 06 do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Santa Catarina e também foi aprovado pela Secretaria Municipal de Saúde de Florianópolis O CENÁRIO DA PESQUISA Em 2007 Florianópolis possuía aproximadamente 396 mil habitantes e a cobertura dos serviços básicos de saúde através da estratégia Saúde da Família atingia em torno de 77 da população Florianópolis 2007a A rede básica era e ainda é a mais utilizada na prestação dos serviços públicos de saúde Sartor 2004 sendo a porta de entrada para os usuários Florianópolis 20022005 mioloantroppmd 10022010 1443 335 336 A Secretaria Municipal de Saúde de Florianópolis encontravase na época da pesquisa na Gestão Plena de Atenção Básica Ampliada5 e gerenciava uma rede composta por 54 unidades de saúde sendo 48 Centros de Saúde CS um ambulatório de especialidades Policlínica II um pronto atendimento no Norte da Ilha um laboratório de análises clínicas e três Centros de Atenção Psicossocial CAPs As unidades de saúde do Município encontravamse divididas em cinco Regionais de Saúde Centro Continente Leste Norte e Sul sendo cada Regional gerenciada por uma equipe composta de um coordenador regional um enfermeiro um técnico de enfermagem e um auxiliar administrativo Estas foram implantadas em junho de 2002 com o propósito de promover o gerenciamento da rede em nível regional Florianópolis 2007b A Regional de Saúde Norte contava com 10 CS entre eles o Centro desse estudo e um Pronto Atendimento Possuía uma população de aproximadamente 65000 habitantes Florianópolis 2007b Os medicamentos sujeitos a controle especial psicotrópicos até outubro de 2006 eram distribuídos no CS Centro e na Policlínica do Estreito Após esta data a entrega de tais medicamentos foi descentralizada e no momento da pesquisa cada Regional de Saúde tinha um CS destinado a esta distribuição O CS deste estudo prestava os serviços de clínica geral mioloantroppmd 10022010 1443 336 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 337 enfermagem odontologia programa Capital Criança vacinação teste do pezinho pediatria ginecologia psiquiatria e farmácia e funcionava das 7h às 19h Havia um farmacêutico responsável pela distribuição dos psicotrópicos que era feita de segundafeira a sextafeira das 8h às 13h A psiquiatra atendia de segundafeira à sextafeira no período da tarde OS ANTIDEPRESSIVOS A dispensação dos medicamentos antidepressivos foi quantificada para os meses de janeiro fevereiro e março de 2007 no CS Tabela 1 Tabela 1 Dispensação de antidepressivos nos meses de janeiro a março de 2007 em um Centro de Saúde Florianópolis Medicamento Janeiro Fevereiro Março Total unidade unidade unidade Amitriptilina 6750 14220 15690 36660 Fluoxetina 24391 11429 29790 65610 Imipramina 5510 5300 6900 17710 Total 36651 30949 52380 119980 Comprimido Cápsula mioloantroppmd 10022010 1443 337 338 Os baixos números na dispensação quando comparados entre si de amitriptilina no mês de janeiro e de fluoxetina no mês de fevereiro justificamse pela falta destes medicamentos nos referidos períodos Esta falta não interferiu na média obtida pois houve um aumento na distribuição assim que a situação se regularizou A fluoxetina foi o antidepressivo mais prescrito 547 no período analisado observandose também significativa diferença com o segundo colocado a amitriptilina 306 e o terceiro colocado a imipramina 148 Considerando os dias de funcionamento do CS por mês foi possível obter uma média diária da distribuição destes medicamentos Tabela 2 Tabela 2 Média mensal e diária da dispensação de antidepressivos nos meses de janeiro a março de 2007 em um Centro de Saúde Florianópolis Medicamento Dispensação média mensal Dispensação média diária unidade unidade Amitriptilina 12220 632 Fluoxetina 21870 1131 Imipramina 5903 305 Comprimido Cápsula mioloantroppmd 10022010 1443 338 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 339 Em um levantamento feito pelo farmacêutico do Centro eram atendidos em média 100 usuários de medicamentos sujeitos a controle especial por dia Segundo os dados obtidos dispensavase fluoxetina para cerca de 15 usuários por dia Comparando a média de usuários destes medicamentos à média obtida dos usuários de fluoxetina é possível observar o quão elevada era a demanda deste antidepressivo AS RECEITAS DE FLUOXETINA Partindose dos dados do livro de registro específico dos medicamentos controlados no CS buscaramse as receitas primeira via de fluoxetina referentes aos meses de janeiro a março de 2007 que se encontravam armazenadas no serviço de farmácia Foram analisadas 855 receitas sendo 330 do mês de janeiro 140 de fevereiro e 385 de março Após a análise das 855 receitas buscouse no InfoSaúde os dados dos usuários Como a análise foi feita para um período de três meses e a fluoxetina era dispensada para no máximo 60 dias de tratamento os usuários poderiam vir mais de uma vez na farmácia neste período Foi preciso então avaliar se os registros dos usuários não se repetiam para então começar a buscar esses dados Obtevese um total de 692 usuários sendo 564 mulheres 815 e 128 homens 185 Desde total 111 mulheres e 30 homens retornaram à farmácia no referido período mioloantroppmd 10022010 1443 339 340 Para a identificação da idade dos usuários de fluoxetina considerouse a data na qual a medicação foi dispensada organizandose por faixa etária Tabela 3 Tabela 3 Distribuição por faixa etária dos usuários de fluoxetina em um Centro de Saúde Florianópolis janeiro março de 2007 Entre as mulheres a faixa etária predominante foi de 41 a 50 anos Já entre os homens as faixas etárias predominantes foram de 31 a 40 anos e de 51 a 60 anos Chamou a atenção o número de usuários abaixo de 20 anos 12 mulheres e 6 homens Obtiveramse ainda os dados estado civil e ocupação mas uma vez que os cadastros no InfoSaúde não eram atualizados com frequência pelos usuários esses dados podiam não expressar a realidade e por isso as autoras optaram por não divulgar os mesmos Faixa etária anos Mulheres n Homens n 10 20 12 21 6 46 21 30 58 103 13 102 31 40 114 202 33 258 41 50 181 321 23 180 51 60 134 238 31 242 61 70 45 80 15 117 71 e mais 20 35 7 55 Total 564 1000 128 1000 mioloantroppmd 10022010 1444 340 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 341 Na análise das prescrições a especialidade do prescritor foi obtida através do carimbo aposto à mesma ou em consulta ao sítio eletrônico do Conselho Regional da categoria CRM SC o dado requerido foi obtido através do número do registro do profissional no referido órgão Entre 30 especialidades médicas que geraram receitas de fluoxetina as principais estão descritas na Tabela 4 Tabela 4 Principais especialidades do prescritor das receitas de fluoxetina em um Centro de Saúde Florianópolis janeiromarço de 2007 Entre as outras especialidades identificadas de acordo com a classificação do órgão regulador médico foram observadas alergia e imunologia anestesiologia cancerologia cirurgia geral cirurgia torácica dermatologia endocrinologia Especialidade do prescritor Receitas n Medicina de família e comunidade 255 298 Psiquiatria 254 297 Clínica médica 62 73 Cardiologia 26 30 Neurologia 26 30 Outras 121 142 Não identificada 108 126 CRM ilegível no carimbo 3 04 Total 855 1000 mioloantroppmd 10022010 1444 341 342 gastroenterologia geriatria ginecologia e obstetrícia hematologia e hemoterapia homeopatia infectologia medicina do trabalho medicina física e reabilitação nefrologia neurocirurgia neurologia pediátrica nutrologia oftalmologia ortopedia e traumatologia pediatria pneumologia reumatologia e urologia Para 108 receitas não foi possível identificar as especialidades porque o dado não estava disponível no sítio eletrônico do CRMSC Segundo a legislação vigente no município à época Instrução Normativa n 012006 Florianópolis 2006 as prescrições médicas odontológicas e de enfermagem no âmbito do Sistema Único de Saúde SUS deviam adotar obrigatoriamente a Denominação Comum Brasileira DCB e todo o medicamento somente seria fornecido mediante apresentação de receita médica odontológica e de enfermagem originais segundo a dosagem e apresentação existente na lista da REMUME Florianópolis 2006 Entre as 855 receitas analisadas 850 adotavam a DCB 994 e 5 06 apresentavam nome comercial sendo que nenhuma delas apresentava o nome de referência Quanto à quantidade de cápsulas 49 57 receitas indicavam tratamento superior a 60 dias sendo que em 32 delas era solicitada uma cápsula ao dia para 90 dias de uso contrariando a Portaria n 34498 Brasil 1998 Verificouse também que a posologia estava ausente em duas receitas 02 e que em 13 receitas 15 ela estava ilegível mioloantroppmd 10022010 1444 342 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 343 AS ENTREVISTADAS A primeira entrevistada foi Dilma 6 43 anos viúva funcionária pública aposentada Tinha dois filhos e nasceu em Florianópolis Não tinha religião definida mas frequentava cultos evangélicos Segundo ela foi diagnosticada com Transtorno Obsessivo Compulsivo TOC e depressão Relatou que sempre apresentou os sintomas e não associava a doença a nenhum fator desencadeante Fazia acompanhamento com psiquiatra e utilizava psicotrópico A entrevista foi realizada em um dia frio de maio em sua própria residência situada em um bairro próximo ao CS Dilma morava com seus dois filhos um deles dependente químico que estava para ser internado Na sala havia quadros e trabalhos artesanais que Dilma confeccionava os quais como comentou considerava sua terapia Dilma foi muito receptiva mostrou ser uma pessoa extrovertida e alegre O resultado foi uma entrevista de mais de uma hora de duração e relatos com riqueza de detalhes A segunda entrevistada foi Maria 62 anos separada advogada aposentada Tinha três filhos e nasceu no município do Rio de Janeiro Era católica Tinha depressão atribuindo a patologia ao falecimento do irmão e a problemas de saúde Fazia acompanhamento com psiquiatra e psicanalista e utilizava fluoxetina Maria foi muito receptiva e a entrevista foi realizada imediatamente após o convite em uma sala do CS Suas mioloantroppmd 10022010 1444 343 344 respostas foram curtas e objetivas sem muitos detalhes A entrevista foi realizada em 10 minutos Essa situação entrevista no próprio Centro e pouco tempo de conversa pode ter enviesado algumas das respostas especialmente aquelas referentes à relação com os médicos embora o único vínculo dela com o CS fosse o recebimento da fluoxetina como veremos abaixo A DISPENSAÇÃO DE ANTIDEPRESSIVOS NO CENTRO DE SAÚDE O presente estudo mostrou que a quantidade expressiva de unidades de antidepressivos dispensada em três meses no CS bem como a indicação de fluoxetina predominantemente para mulheres 815 do total de usuários sendo a maioria delas entre 31 e 60 anos confirmam a importante relação entre gênero e prescrição de antidepressivos já assinalada pela literatura Andrade et al 2004 estudando o cumprimento da legislação quanto à prescrição e dispensação dos medicamentos psicotrópicos das Listas B e C17 definidas pela Portaria n 34498 Brasil 1998 no município de Ribeirão Preto São Paulo analisaram receitas e notificações dos medicamentos retidas em farmácias particulares com manipulação referentes ao mês de novembro de 2000 Foram coletadas 753 receitas sendo 527 701 de substâncias da Lista B e 226 299 da Lista C1 Nesse trabalho as autoras observaram que da Lista C1 o medicamento mais prescrito foi a fluoxetina 688 sendo significativa a diferença para o segundo fármaco mais mioloantroppmd 10022010 1444 344 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 345 prescrito a amitriptilina 125 Os dados observados por Andrade et al 2004 assemelharamse aos encontrados nesta análise a fluoxetina foi o antidepressivo mais prescrito 547 no período analisado também com significativa diferença em relação à amitriptilina 306 e à imipramina 148 Outros trabalhos no Brasil que corroboram tendências semelhantes em outros países ocidentais têm demonstrado que a receita médica de psicotrópicos especialmente antidepressivos e ansiolíticos para mulheres é mais frequente do que para homens Silveira 2000 Diehl 2001 Rodrigues et al 2006 Lima et al 2008 As razões pelas quais os médicos prescrevem esses medicamentos mais frequentemente para as mulheres do que para os homens são complexas Dentre elas autores apontam para a influência da propaganda da indústria farmacêutica que promove os medicamentos como solução para os estresses e os conflitos próprios do papel da mulher descrevendo a depressão como um distúrbio mental feminino Mastroianni et al 2008 as dificuldades do médico para lidar com os problemas socioafetivos das mulheres não vendo alternativas a não ser medicalizálos Whyte et al 2002 a maneira que as mulheres manipulam seus problemas de modo a receberem receitas dos medicamentos que desejam Whyte et al 2002 Em contraste o álcool e o fumo drogas lícitas e não os psicotrópicos parecem ser o principal consolo químico usado pelos homens em diversas sociedades mioloantroppmd 10022010 1444 345 346 Para TraversoYepéz e Medeiros 2004 um dos fatores de maior procura das mulheres pelos serviços de saúde deve se ao fato de que ao assumir o papel de cuidadora na família a mulher tende a prestar uma atenção maior às sensações corporais bem como se preocupar com os sinais e sintomas da doença Observase que as diferenças de gênero relacionadas ao processo saúdedoença referemse muito mais ao papel social às dificuldades socioeconômicas às condições de trabalho e às desigualdades a que as mulheres são submetidas criando uma imagem de fragilidade e submissão Chamou a atenção o número expressivo de receitas emitidas por médicos de família e comunidade Segundo o modelo da Estratégia de Saúde da Família que preconiza vínculo com a população é esse o profissional que acompanha o usuário o que justificaria o dado encontrado Outros estudos Rozemberg 1994 Silveira 2000 Diehl 2001 Rodrigues et al 2006 apontaram que os psiquiatras fornecem menos receitas de psicotrópicos do que os clínicos gerais e outros especialistas pois de maneira geral o usuário consulta uma primeira vez com o psiquiatra e após mantém as receitas com outros médicos que estão mais acessíveis nas comunidades e nos serviços de saúde No caso desse Centro a presença de atendimento psiquiátrico todas as tardes de segundafeira à sextafeira contribuiu para o número significativo de receitas dessa especialidade 3 mioloantroppmd 10022010 1444 346 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 347 Andrade et al 2004 verificaram que quanto à relação entre a especialidade do prescritor e o perfil de prescrição as especialidades foram muito variáveis sendo que em 124 receitas 328 não foi possível identificálas pois não constava o número do CRMSP ou nas que constavam o profissional não estava incluso na listagem que o órgão disponibilizava em sua página eletrônica Entre as prescrições com especialidade identificada a maioria foi emitida por clínicos gerais 251 seguida por psiquiatras 139 neurologistas 121 endocrinologistas 99 e ginecologistas 45 Outras observações sobre as receitas aviadas no CS que mereceram destaque das 13 receitas assinadas por ginecologistas uma foi emitida para um homem as 12 receitas aviadas por pediatras eram de usuários adultos com a faixa de idade variando de 25 a 78 anos Esses dados confirmam que para muitos usuários de psicotrópicos o mais importante é a manutenção da emissão das receitas permitindo muito provavelmente o manejo fora do controle médico Comparando o dado DCB desse trabalho 994 das receitas traziam essa informação com aqueles encontrados por Andrade et al 2004 que observaram que em 782 das receitas os medicamentos não foram prescritos de acordo com a DCB podemos sugerir que em Florianópolis os médicos aderiam melhor a essa exigência legal Segundo o artigo 59 da Portaria n 34498 Brasil 1998 a quantidade prescrita de cada medicamento constante da Lista C1 está limitada a cinco 3 mioloantroppmd 10022010 1444 347 348 ampolas e para as demais formas farmacêuticas a quantidade corresponde a no máximo 60 dias de tratamento As 49 57 receitas que indicavam quantidades superiores ao tratamento de 60 dias geravam problemas na dispensação pois o usuário por desconhecer a legislação exigia a entrega da quantidade prescrita pelo médico o que demandava explicações sobre o motivo para dispensar somente a quantidade permitida pela legislação A ausência da posologia em duas receitas e a ilegibilidade8 em 13 delas podiam também causar problemas já que o número de unidades dispensadas era calculado com base na posologia Além disso a dificuldade de leitura da letra do prescritor tem sido responsável por graves problemas de saúde pois pode induzir a erros no uso O CONTEXTO DE USO DA FLUOXETINA Dilma relatou sofrer de TOC Dizia sempre ter tido os sintomas mas só descobriu que estava doente em setembro de 2006 infelizmente eu fui me dar conta disso aos 40 anos Como não sabia que estava doente Dilma sofreu achando que o problema era com ela Isso a afastou da vida social do convívio com amigos e família Segundo ela Eu perdi alguns amigos alguns colegas eu fiz algumas inimizades no meu local de trabalho casamento eu passei por três Eu atribuo tudo isso ao TOC Dilma Após perceberse doente imputou à doença dificuldades de sua vida Para ela o TOC a impediu de realizar muitas coisas mioloantroppmd 10022010 1444 348 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 349 Quando eu olho pra trás eu vejo que tudo na vida que eu não consegui realizar foi por causa do TOC Aquelas coisas que eu não consegui realizar eu não conseguir realizar por causa do TOC e as coisas que eu perdi eu também perdi por causa do TOC Dilma Ela teve câncer na mandíbula fez tratamento e no momento da entrevista fazia acompanhamento Como já mencionado também tinha problemas com o filho mais novo que era dependente químico Nenhum desses problemas era comparado ao TOC Apesar de todo sofrimento que eu tive com o câncer tudo eu não considero nada pior do que o TOC Considero porque o TOC faz com que eu sinta vontade de morrer eu tenho vontade de me machucar Dilma Maria sofria de depressão Problemas de saúde e o falecimento do irmão desencadearam sua doença Em seu relato Meu irmão um cara novo e tudo teve linfoma Podem ter sido todos esses problemas Porque todo mundo tem problema mas de repente a gente tem um pouco mais do que os outros e você segurar como eu sempre segurei nunca procurei ninguém pra me servir de bengala fui superando as coisas da vida Claro você vai crescendo Tudo tem um preço Maria Quando perguntada se conhecia as causas de sua doença Maria soube informar a possível causa orgânica de sua mioloantroppmd 10022010 1444 349 350 depressão Demonstrou ter conhecimentos mais técnicos sobre a doença e sobre a ação do medicamento Dilma fazia acompanhamento mensal com um médico psiquiatra Chegou a fazer terapia mas Fui a várias terapias Eu parei de ir pra psicoterapia porque eu já tava com vontade de pegar a psicóloga e de socar sabe Eu sentia raiva Eu não queria admitir de jeito nenhum que eu tinha algum problema não queria admitir que eu tivesse que tomar um psicotrópico sabe Dilma Usuária de fluoxetina desde setembro de 2006 começou a terapia com uma cápsula ao dia e chegou a tomar quatro cápsulas Ela era a grande responsável pelo manejo de sua terapia como relatou Ele o médico acha que eu tô tomando quatro cápsulas Já faz um tempão que eu tomo três Como eu não quero ficar sem medicação eu deixo ele pensar que eu to tomando quatro aí eu nunca fico sem Dilma Para não ficar sem a medicação ela não contou ao médico que diminuiu a dosagem e assim continuava obtendo prescrições de quatro cápsulas diárias Para Dilma o médico era um instrumento para conseguir a prescrição Whyte et al 2002 descrevendo um estudo realizado entre mulheres holandesas usuárias de benzodiazepínicos medicamentos ansiolíticos enfatizaram o papel ambíguo dos medicamentos na vida delas pois assim como aumentavam a dependência de mioloantroppmd 10022010 1444 350 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 351 consultas e eram agentes de controle médico eles eram importantes recursos de poder dando às usuárias controle sobre suas vidas isto é nas interações entre mulheres com problemas de saúde mental9 e tranqüilizantes pode ser dito que mulheres e medicamentos têm agência Whyte et al 2002 p 61 Segundo esses autores inicialmente os médicos exercem poder pois prescrevem os medicamentos ainda que as mulheres possam manipular esse momento representando seus problemas de tal maneira a obter os medicamentos que desejam com o uso contínuo as mulheres passam a ter o controle decidindo quando e como tomam seus medicamentos e certificandose de que conseguirão os mesmos através dos médicos o uso contínuo não é questionado pelos profissionais pela família ou pelos amigos e esse silêncio dá autonomia às mulheres para algumas mulheres que se tratam por muito tempo com aumento das doses há um sentimento de perda do controle e nesse estágio o medicamento é que tem mais poder No caso de Dilma encontravase há poucos meses usando a fluoxetina conferindolhe autonomia sobre seu tratamento Além disso a manipulação do tratamento e da relação com o médico tinha motivos práticos pois Dilma já havia enfrentado o desabastecimento do antidepressivo na rede pública e para ela fazer um estoque minimizava o problema de uma possível falta do mesmo Foi observado durante a pesquisa que muitos usuários chegavam com receitas do Dr X que fazia prescrições mioloantroppmd 10022010 1444 351 352 de por exemplo quatro tipos de antiinflamatórios para a mesma pessoa O farmacêutico da unidade relatou que a comunidade gostava do Dr X pois com suas receitas se podia armazenar medicamentos em casa já que a falta destes era recorrente nos Centros de Saúde Portanto essa estratégia dos usuários compensava o receio de ficar sem medicamentos Dilma usou fluoxetina pela primeira vez quando um de seus filhos sofreu um acidente Segundo seu relato ela foi bem orientada para tomar uma cápsula por vez mas por livre arbítrio tomou 30 de uma só vez e ficou cerca de uma semana praticamente dormindo Ela não contou ao médico que tomou esta quantidade de cápsulas mas questionou o papel do prescritor Meu Deus como esses médicos são irresponsável né Dá um monte de remédio desses pra uma pessoa que estava no estado que eu tava Por pouco eu não morri né Dilma Eu acho pra te falar a verdade que esses psiquiatras são uns irresponsáveis eu acho Porque se eu chegar lá pra ele e contar uma historinha pra ele e pedir um monte de remédio pra dormir com certeza ele vai dar Dilma Maria fazia acompanhamento com endocrinologista e foi este médico que indicou o uso da fluoxetina Meu médico quis que eu tomasse porque eu tava com problema de ficar assim Um pouco parada e tive uma fase né de vontade de não sair de casa Maria Após a indicação do endocrinologista Maria procurou mioloantroppmd 10022010 1444 352 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 353 um psiquiatra com quem fazia acompanhamento no período da entrevista Ela possuía uma boa relação de confiança com seu médico Eu tenho um grande médico me tratando então a gente tem aquela certeza de ter um suporte bom Maria As relações estabelecidas com os médicos diferiam entre Maria e Dilma Maria tinha confiança em seu médico e atribuía a ele a decisão de iniciar e cessar o uso da medicação já Dilma questionava o papel do médico e era a responsável pela sua terapia utilizando desta relação para obter o que necessitava isto é a prescrição Para Carvalho e Dimenstein 2003 o medicamento representa na relação médicousuária o poder que esse profissional exerce na medida em que é ele que sabe o que é bom para a paciente Segundo as autoras nessa relação existe geralmente uma submissão ao saber e à figura do médico como autoridade que não pode ser colocada em dúvida principalmente se o profissional é aquele que a acompanha há muito tempo Por outro lado existe uma linha tênue entre medicamento prescrito a automedicação pois não se tem a certeza de que os medicamentos serão utilizados corretamente conforme a posologia médica Van Der Geest et al 1996 Dilma mesmo relatando não gostar de usar medicamentos criou uma relação de dependência com a fluoxetina Em seus relatos o medicamento aparecia como o principal responsável pela sua melhora mioloantroppmd 10022010 1444 353 354 Eu atribuo a minha melhora ao remédio Não à psicoterapia não à consulta com o psiquiatra Dilma grifo das autoras Mas eu tenho percebido que depois que eu comecei a tomar a fluoxetina eu tô mais tranquila pra cuidar dos outros problemas Dilma Ela condicionava seu dia ao medicamento à fluoxetina levantar da cama fazer suas atividades sair de casa Fica sempre em cima do armário Eu nunca deixo de tomar é a primeira coisa que eu faço quando eu acordo Nem tomo café nada A primeira coisa que eu faço é tomar a fluoxetina Dilma Eu já sinto de manhã como é que eu tô Todo dia Eu não me esqueço um dia só de tomar o comprimido nenhum dia porque pra mim é a coisa mais séria da minha vida Dilma grifo das autoras É uma coisa assim bem engraçada porque o comprimido na realidade ele tem me ajudado muito assim ele tornou pra mim meu melhor amigo Se eu vou pro centro eu levo o comprimido se eu vou viajar eu levo o comprimido Qualquer lugar eu vá eu levo o comprimido porque eu não sei né se eu vou ficar ou se eu vou voltar Eu não posso deixar acontecer Dilma grifo das autoras A entrevistada deixou claro que não pretendia abandonar o tratamento mioloantroppmd 10022010 1444 354 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 355 Nunca abandonei o medicamento não vou abandonar Posso abandonar marido filho colega porque eu tenho a impressão de que se eu parar a fluoxetina agora eu vou ter uma crise redobrada de TOC Dilma O medicamento aparecia personificado como um melhor amigo Representava a solução para um grande problema em sua vida o TOC e por isso ganhava lugar de destaque em sua vida Era atribuído a ele um poder extraordinário com um sentido que extrapolava as indicações terapêuticas desse recurso Maria utilizava outros medicamentos devido a outras comorbidades Dizia não gostar de tomar medicamentos mas que aderia ao tratamento por ser necessário Em suas palavras Eu não gosto de tomar remédio mas a fluoxetina eu fui realmente compelida a tomar porque bom Eu não vou entrar em parafuso pra amanhã ou depois tá morrendo cedo sem necessidade e tem muita gente precisando de mim tambéme eu também tenho que achar alguma coisa de que gostar na minha vida Maria Para Maria a fluoxetina representava um importante recurso para enfrentar a sua vida e poder continuar sendo apoio de outras pessoas Segundo ela o tratamento com a fluoxetina não seria contínuo Assim que o médico diagnosticasse a cura de sua doença ela pretendia descontinuar o uso Em suas palavras era possível identificar a importância do papel do médico no manejo da terapia Segundo ela mioloantroppmd 10022010 1444 355 356 Com certeza melhorei Curar ainda não me sinto curada ainda não me sinto com o pique necessário pra poder parar de tomar Quem vai dizer isso talvez junto com aquilo que eu conversar com ele vai ser meu próprio médico né Maria Quando questionada sobre sua religião Dilma dizia não acreditar em mais nada Frequentava alguns cultos evangélicos em uma igreja próxima de sua casa A fluoxetina assumia papel em sua vida que a religião não alcançou o da cura Segundo ela Tem hora que eu faço umas coisas que não sou eu não sou eu Parece que me baixa uma coisa um troço sabe Eu acreditei em tanta coisa Em nome de Jesus eu fiz tanta coisa pra me livrar disso e acabei na fluoxetina e com a fluoxetina eu não sinto mais isso A minha melhor amiga chamase fluoxetina Dilma grifo das autoras Não precisei comprar vela não precisei comprar coração de boi nada risos Não precisei trocar de religião Foi tão simples resolver Dilma Segundo Whyte et al 2002 nas sociedades modernas o medicamento tem substituído a religião como ideologia moral dominante e instituição de controle tornando mais e mais o dia adia sob o domínio influência e supervisão médica As críticas à medicalização indicam que o processo tem efeitos negativos que diminuem a autonomia transformam o indivíduo em paciente e aumentam sua dependência na profissão médica e indiretamente na indústria farmacêutica mioloantroppmd 10022010 1444 356 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 357 Carvalho e Dimenstein 2003 citando Barros relataram que o medicamento assume uma conotação de mercadoria e também um duplo papel ao satisfazer ao mesmo tempo os interesses do capital e do modelo hegemônico que orienta a prática médica A partir desta idéia generalizada de solução ele satisfaz as expectativas do paciente e do profissional quando da prescrição momento que se transformou na parte mais importante da consulta Na relação médicousuária o profissional até consegue ampliar a visão sobre os problemas da mulher usuária dos medicamentos psicotrópicos na medida em que os reporta a aspectos sociais e econômicos Porém esse olhar escapa da possibilidade de atuação dos profissionais já que as questões sociais não lhes dizem respeito O social aparece de uma maneira totalmente naturalizada como se todas as mulheres vivenciassem esses eventos da mesma forma e por não levarem em conta a subjetividade das usuárias eles acabam por atuar de forma reducionista medicalizando os problemas Diehl 2001 Carvalho Dimenstein 2003 A alta medicalização dos processos de doença pode estar encobrindo questões de mudanças sociais e culturais mais profundas semelhante ao que Rozemberg 1994 encontrou entre uma população rural no Espírito Santo em relação ao uso de ansiolíticos onde as dificuldades em manter os modos tradicionais de agricultura de subsistência têm sido silenciadas pelo uso de calmantes Rozemberg 1994 p 307 Da mesma maneira Silveira 2000 observou que entre moradoras de um mioloantroppmd 10022010 1444 357 358 bairro de Florianópolis Santa Catarina o uso de medicamentos através da receita azul significou a medicalização de problemas socioafetivos econômicos e outros não passíveis de melhora com calmantes erros na dosagem e uso prolongado de agentes psicoativos com graus de dependência e iatrogênese variáveis Silveira 2000 p 76 Para essa autora na perspectiva das pacientes e de sua família a medicalização dos problemas sociais funcionava somente como uma solução para o médico já que mesmo usando tais medicamentos as crises permaneciam É necessário ainda compreender que a prática da medicalização na saúde mental e em todos os outros âmbitos de atenção à saúde é reflexo de um modelo de formação médico centrado especialista curativista focado no medicamento e que incentiva o uso abusivo de tecnologias É preciso levar em consideração também o papel da indústria farmacêutica na manutenção deste modelo Dilma e Maria relataram que mantinham o vínculo com o CS apenas em função da possibilidade de obter o medicamento Ao longo da pesquisa foi possível perceber que essa era uma prática constante entre os usuários dos antidepressivos Outros autores Rodrigues et al 2006 Lima et al 2008 encontraram associação significativa entre o alto consumo de psicotrópicos e a utilização de serviços públicos de saúde Embora os dados indiquem melhor acesso aos antidepressivos e outros fármacos psicoativos no caso de mioloantroppmd 10022010 1444 358 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 359 Florianópolis com a descentralização da dispensação dos medicamentos controlados em cinco CS de atenção básica o fato de não haver outros vínculos com o CS restringia e dificultava o trabalho dos profissionais envolvidos pois não conhecendo e acompanhando o usuário o trabalho destes limitavase a somente fornecer o medicamento Além disso podese sugerir que a organização do serviço estava contribuindo para a medicalização pois os serviços ofertados eram basicamente o atendimento individual e a entrega dos medicamentos Essa situação indica que no planejamento e organização dos serviços de atenção básica devem ser considerados participação comunitária controle social saberes populares eou tradicionais sobre saúde e doença redes sociais grupos de autoajuda abordagem de patologias crônicodegenerativas envelhecimento adolescência dependência química violência relações de gênero e educação para a saúde fazendose necessário o entendimento dos sentidos atribuídos pelos sujeitos aos eventos patológicos às políticas públicas e aos serviços de saúde que lhe são acessíveis Garnelo Langdon 2005 p 135 Os dados desta pesquisa lançam algumas questões a ampla variedade de especialidades médicas identificadas nesse estudo está apta para diagnosticar e tratar comorbidades que requeiram o uso de fluoxetina Será que todos os casos demandam tratamento com terapia medicamentosa Sabese que há a mioloantroppmd 10022010 1444 359 360 sobrevalorização do medicamento e a não consideração de outros fatores no processo saúdedoença As visões divergentes entre as duas usuárias por exemplo na relação com o medicamento e com o prescritor reforçam que o processo saúdedoença não é um evento biológico universal como propõe a biomedicina e suas intervenções mas que as concepções e experiências individuais sobre o mesmo marcadas por um contexto sociocultural e político específico afetam as formas ou padrões de consumo e as percepções dos medicamentos da parte dosas usuáriosas 1 Segundo a Portaria n 34498 Brasil 1998 psicotrópico é a substância que pode determinar dependência física ou psíquica e relacionada como tal nas listas aprovadas pela Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas reproduzidas nos anexos da Portaria 2 A fluoxetina um inibidor seletivo da recaptação de serotonina ISRS é um agente psicotrópico cujas propriedades antidepressiva antiobsessivacompulsiva e antibulímica são atribuídas à inibição da captação da serotonina nos neurônios do sistema nervoso central A ligação aos receptores muscarínicos histaminérgicos alfa1 adrenérgicos e outros receptores no cérebro é muito menor quando comparada com os antidepressivos tricíclicos clássicos As indicações classificadas pelo órgão regulador dos Estados Unidos da América FDA Food and Drug Administration são depressão transtorno obsessivocompulsivo TOC bulimia nervosa transtorno do pânico síndrome de tensão prémenstrual 3 No Brasil a legislação que aprova o regulamento técnico sobre NOTAS mioloantroppmd 10022010 1444 360 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 361 substância e medicamentos sujeitos a controle especial é a Portaria n 34498 SVSMS de 12 de maio de 1998 Brasil 1998 4 Portal Médico CRMSC Disponível em http w w w p o r t a l m e d i c o o r g b r indexaspopcaopesqmedcrmportalSC Acesso em 19 maio 2007 5 A Gestão Plena da Atenção Básica Ampliada foi definida pela Norma Operacional da Assistência à Saúde do SUS em 2001 Brasil 2001 conhecida como NOASSUS 0101 sendo que os municípios habilitados deveriam incluir como áreas estratégicas mínimas de atuação o controle da tuberculose a eliminação da hanseníase o controle da hipertensão arterial o controle da diabetes mellitus a saúde da criança a saúde da mulher e a saúde bucal O processo de habilitação dos municípios para a gestão do sistema de saúde conforme a NOASSUS 0101 foi extinto em 2006 pelo Pacto pela Saúde Brasil 2006 mas o município de Florianópolis na época da pesquisa ainda não havia aderido integralmente às novas regras 6 Os nomes foram alterados para preservar a identidade das entrevistadas 7 Os antidepressivos fluoxetina amitriptilina e imipramina fazem parte da Lista C1 sujeitos a Receita de Controle Especial em duas vias 8 A ilegibilidade de uma receita para qualquer classe terapêutica é classificada como falta ética pelo artigo 39 do Código de Ética Médica CFM 1988 9 No original em inglês female distress foi identificado como problemas de saúde mental incluindo ansiedade e insônia Whyte et al 2002 p 52 mioloantroppmd 10022010 1444 361 362 ANDRADE Márcia F ANDRADE Regina C G SANTOS Vânia Prescrição de psicotrópicos avaliação das Informações contidas em receitas e notificações Revista Brasileira de Ciências Farmacêuticas v 40 n 4 p 471479 outdez 2004 AZIZE Rogério L A química da qualidade de vida um olhar antropológico sobre o uso de medicamentos e saúde em classes médias urbanas brasileiras 2002 118 f Dissertação Mestrado em Antropologia Programa de PósGraduação em Antropologia Social Universidade Federal de Santa Catarina Florianópolis 2002 BRASIL Ministério da Saúde Portaria n 344 de 12 de maio de 1998 Aprova o Regulamento Técnico sobre substâncias e medicamentos sujeitos a controle especial Republicada no Diário Oficial da União de 31 de dezembro de 1998 Seção I p 5064 BRASIL Ministério da Saúde Portaria n 95 de 26 de janeiro de 2001 Aprova na forma do Anexo desta Portaria a Norma Operacional da Assistência à Saúde NOASSUS 012001 Disponível em httpelegisanvisagovbrleisrefpublic showActphpid696wordnoas Acesso em 03 agosto 2009 BRASIL Ministério da Saúde Portaria n 399 de 22 de fevereiro de 2006 Divulga o Pacto pela Saúde 2006 Consolidação do SUS e aprova as Diretrizes Operacionais do Referido Pacto Disponível em httpelegisanvisagovbrleisrefpublic showActphpid21812wordPacto pela Saude Acesso em 03 agosto 2009 CARVALHO Lúcia F DIMENSTEIN Magda A mulher seu médico e o psicotrópico redes de interfaces e a produção de REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS mioloantroppmd 10022010 1444 362 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 363 subjetividade nos serviços de saúde Revista Interações v 8 n 15 p 3764 janjun 2003 CFM Conselho Federal de Medicina Resolução CFM n 1246 Código de Ética Médica de 08 de janeiro de 1988 Disponível em h t t p w w w p o r t a l m e d i c o o r g b r indexaspopcaocodigoeticaportal Acesso em 28 maio 2007 DIEHL Eliana E Entendimentos Práticas e Contextos Sociopolíticos do Uso de Medicamentos entre os Kaingáng Terra Indígena Xapecó Santa Catarina Brasil 2001 230 f Tese Doutorado em Saúde Escola Nacional de Saúde Pública Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro 2001 ETKIN Nina L ROSS Paul J MUAZZAMU Ibrahim The indigenization of pharmaceuticals therapeutic transitions in rural hausaland Social Science and Medicine v 30 n 8 p 919928 1990 FLORIANÓPOLIS Secretaria Municipal de Saúde Plano Municipal de Saúde Gestão 20022005 20022005 Disponível em httpwwwpmfscgovbrsaude Acesso em 03 agosto 2009 FLORIANÓPOLIS Secretaria Municipal de Saúde Instrução Normativa n 1 2006 Disponível em httpwwwpmfscgovbr saude Acesso em 28 maio 2007 FLORIANÓPOLIS Secretaria Municipal de Saúde Plano Municipal de Saúde de Florianópolis 20072010 2007a Disponível em httpwwwpmfscgovbrsaude Acesso em 03 agosto 2009 FLORIANÓPOLIS Secretaria Municipal de Saúde Unidades Locais de Saúde com Medicamentos Controlados 2007b Disponível em httpwwwpmfscgovbrsaude Acesso em 11 abril 2007 LANGDON Esther Jean GARNELO Luiza A antropologia e a mioloantroppmd 10022010 1444 363 364 reformulação das práticas sanitárias na atenção básica à saúde In MINAYO MCS COIMBRA JR CEA org Críticas e Atuantes Ciências Sociais e Humanas em Saúde na América Latina Rio de Janeiro FIOCRUZ 2005 p 133156 LIMA Maria Cristina Pereira MENEZES Paulo Rossi CARANDINA Luana CESAR Chester LG BARROS Marilisa BA GOLDBAUM Moisés Transtornos mentais comuns e uso de psicofármacos impacto das condições socioeconômicas Revista de Saúde Pública v 42 n 4 p 717723 ago 2008 MASTROIANNI Patrícia C VAZ Amanda CR NOTO Ana R GALDURÓZ José CF Análise do conteúdo de propagandas de medicamentos psicoativos Revista de Saúde Pública v 42 n 5 p 968971 out 2008 MOORE Anna Felicidade na dose certa Carta Capital São Paulo 23 mai 2007 Especial ano XIII n 455 p 813 RODRIGUES Maria Aparecida P FACCHINI Luiz A LIMA Maurício S Modificações nos padrões de consumo de psicofármacos em localidade do Sul do Brasil Revista de Saúde Pública v 40 n 1 p 107114 janfev 2006 ROUDINESCO Elisabeth Porque a psicanálise Rio de Janeiro Jorge Zahar 2000 p 1352 ROZEMBERG Brani O consumo de calmantes e o problema de nervos entre lavradores Revista de Saúde Pública v 28 n 4 p 300308 1994 SARTOR Vanessa de B A assistência farmacêutica e a estratégia saúde da família em busca da integralidade da atenção à saúde no Curso de Especialização em Saúde da FamíliaModalidade Residência 2004 Trabalho de Conclusão Especialização em Saúde da Família mioloantroppmd 10022010 1444 364 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 365 Curso de Especialização Multiprofissional em Saúde da Família Modalidade Residência Universidade Federal de Santa Catarina Florianópolis 2004 SILVEIRA Maria Lúcia O Nervo Cala O Nervo Fala A Linguagem da Doença Rio de Janeiro FIOCRUZ 2000 123 p TRAVERSOYÉPEZ Marta MEDEIROS Luciana F Tremendo diante da vida um estudo de caso sobre a doença dos nervos Revista Interações v 9 n 18 p 87108 juldez 2004 VAN DER GEEST Sjaak Pharmaceutical in the Third World the local perspective Social Science and Medicine v 25 n 3 p 273 76 1987 VAN DER GEEST Sjaak WHYTE Susan R The charm of medicines metaphors end metonyms Medical Anthropology Quarterly v 3 n 4 p 345367 1989 VAN DER GEEST Sjaak WHYTE Susan R HARDON Anita The anthropology of pharmaceuticals a biographical approach Annual Review of Anthropology v 25 p 15378 1996 WHO World Health Organization The World Medicines Situation Geneve WHO 2004 WHYTE Susan VAN DER GEEST Sjaak Medicines in Context an Introduction In VAN DER GEEST Sjaak WHYTE Susan ed The Context of Medicines in Developing Countries Studies in Pharmaceutical Anthropology Dordrecht Kluwer Acad Publ 1988 p 311 WHYTE Susan R VAN DER GEEST Sjaak HARDON Anita Woman in distress medicines for control In WHYTE Susan R VAN DER GEEST Sjaak HARDON Anita org Social lives of medicines Cambridge Cambridge University Press 2002 p 5063 mioloantroppmd 10022010 1444 365 mioloantroppmd 366 10022010 1444 INTRODUÇÃO No livro A cientista que curou o seu próprio cérebro a neurocientista Jill Bolte Taylor relata como se recuperou de um derrame no lado esquerdo do seu cérebro partindo do momento em que percebeu que estava tendo um AVC até o que ela chama de my stroke of insight uma tomada de consciência de que ela poderia em parte assumir o comando do que se passa no seu cérebro escolhendo reativar ou não determinados neurocircuitos em seu processo de recuperação2 Não se trata aqui de apresentar o livro mas apenas tomar de empréstimo uma frase curta porém paradigmática para introduzir o debate que proponho aqui A saúde mental de nossa sociedade é estabelecida pela saúde mental dos cérebros que a formam Taylor 2008 p 190 Duas questões relacionadas entre si surgem de imediato a partir deste excerto A primeira seria o que significa saúde mental no contexto da frase de Taylor a segunda seria a NOTAS DE UM NÃOPRESCRITOR UMA ETNOGRAFIA ENTRE OS ESTANDES DA INDÚSTRIA FARMACÊUTICA NO CONGRESSO BRASILEIRO DE PSIQUIATRIA1 Rogerio Azize mioloantroppmd 10022010 1444 367 368 propósito da relação que a frase estabelece entre mente e cérebro Não precisamos ir muito longe para perceber que mente no trecho apresentado é uma espécie de fenômeno de segunda ordem do cérebro uma consequência da atividade em rede de nossos bilhões de neurônios o mesmo valendo para a idéia de saúde ou doença mental Esta é a perspectiva que as neurociências contemporâneas assim como a corrente que se convencionou chamar psiquiatria biológica nos apresentam hoje uma visão fisicalista da idéia de mente que trabalha com a possibilidade de uma base biológica para as doenças mentais em suas mais variadas formas Assim cérebro mente e sujeito se confundem saúde mental parece ser um sinônimo para saúde cerebral e males como a esquizofrenia e as variantes da depressão e da ansiedade possuiriam uma materialidade equivalente a um acidente vascular cerebral3 Mais um ponto merece destaque no trecho acima destacado A noção de que a saúde mental de uma sociedade é estabelecida pela saúde mental dos cérebros que a formam traz embutido o pressuposto nada óbvio de que uma sociedade é formada por cérebros Temos aqui uma pista etnográfica importante um acento no cerebralismo face específica da idéia mais ampla de um fisicalismo marca a noção de pessoa que perfaz tais discursos e marca mesmo uma noção de sociedade A difusão destas idéias é um processo complexo que se dá em inúmeros espaços mas não sem encontrar opositores ou pesquisadores que trabalham com uma perspectiva mioloantroppmd 10022010 1444 368 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 369 interacionista entre mente e cérebro4 Ainda que uma visão de mundo cerebralista tenha hoje larga difusão não se trata de um ponto de vista unívoco mesmo internamente à psiquiatria como aponta uma já razoável bibliografia produzida por profissionais da área5 Este artigo apresenta dados de uma etnografia realizada em um espaço onde essa tensão entre diferentes paradigmas a respeito da saúde mentalcerebral se mostra bastante evidente o Congresso Brasileiro de Psiquiatria que no de 2007 estava em sua 25ª edição em Porto Alegre Participei deste congresso movido especialmente por um interesse no marketing dos psiconeurofármacos já informado de que parte do espaço físico do evento é ocupada por estandes de laboratórios farmacêuticos agentes importantes na difusão de uma perspectiva fisicalista das doenças mentais tanto para o público leigo quanto para os profissionais da biomedicina Minha intenção era etnografar este espaço do evento ainda sem muita clareza de como isso poderia ser feito e coletar material publicitário para posterior análise O evento assim eu soube posteriormente recebeu 5038 congressistas inscritos em atividades científicas e o público total presente foi de 7000 pessoas o que faz desta reunião a terceira maior em sua especialidade conforme informa a própria Associação Brasileira de Psiquiatria ABP organizadora e promotora do evento6 Tanto as atividades científicas quanto a área de exposições ocupavam o centro de eventos e exposições mioloantroppmd 10022010 1444 369 370 da Federação das Indústrias do Estado do Rio Grande do Sul FIERGS Em síntese tratase de um evento de grandes proporções cuja programação se espalha por mesas redondas sobre os mais diversos temas 67 ao todo conferências especiais simpósios fóruns sessões de casos clínicos e sessões de vídeos Alguns simpósios chamados justamente de Simpósios da Indústria são organizados pelos laboratórios farmacêuticos com objetivos específicos de divulgação Em alguns casos é possível encontrar o mesmo profissional apresentando trabalhos em atividades diversas como por exemplo em uma conferência especial e em um simpósio da indústria o que demonstrava haver trânsito entre as áreas científica e comercial do congresso Os limites deste texto vão pouco além da área dos expositores apesar da programação do congresso ir muito além disso Por vezes farei menção a outros espaços e atividades do congresso mas somente quando isso for essencial e especialmente quando estas atividades estiverem em relação de identidade ou oposição ao que vi nos estandes da indústria Isso não significa que as outras atividades do congresso não sejam dignas de nota mas um relato ainda mais extenso vai além das possibilidades deste artigo No Brasil lembremos é vetada a publicidade de medicamentos controlados caso de grande parte dos medicamentos que atuam no sistema nervoso central diretamente ao público consumidor sendo assim a publicidade mioloantroppmd 10022010 1444 370 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 371 de laboratórios voltada aos profissionais de saúde aptos a prescrever cresce ainda mais em importância no processo de divulgação de medicamentos A relação que se estabelece a partir daí entre indústria e médicos vem sendo alvo de críticas que denunciam desde uma possível criação e difusão de diagnósticos7 favorecendo os interesses comerciais da indústria o que já foi chamado de disease mongering8 até uma desobediência às regras que limitam a publicidade aberta ao consumidor9 Aliás vale dizer que mesmo seguidas à risca tais limitações não significam que a indústria farmacêutica não tenha formas de acesso ao público leigo se atentarmos às inúmeras campanhas de sensibilização criadas pela indústria farmacêutica que não divulgam determinados medicamentos mas sim determinadas doenças mas que podem funcionar como um mecanismo poderoso de divulgação indireta de um ou outro produto10 Fazse necessário ainda sublinhar a seriedade com a qual um tema como a saúde mental deve ser encarado seja qual for o front de pesquisa Mas por que ocupar algumas linhas com essa observação redundante No caso da área de estandes do Congresso Brasileiro de Psiquiatria parte do relato pode soar engraçada e até irônica se algo soar assim é preciso lembrar que este espaço é dedicado à divulgação de medicamentos mas também acaba por funcionar como uma área de lazer dos congressistas alimentação sorteios distribuição de brindes diversos sociabilidade o que pode gerar cenas de fato peculiares A pretensão deste artigo é muito mais etnográfica mioloantroppmd 10022010 1444 371 372 do que teórica assim sendo serei econômico nas citações mas procuro fazer justiça nas breves notas de rodapé a autores que me são de grande inspiração ENTRE OS ESTANDES Minha intenção ao chegar ao local da reunião era permanecer na área destinada aos estandes da indústria farmacêutica o que de fato fiz na maior parte do tempo durante os quatro dias de congresso Mas ao analisar melhor o programa oficial outros eventos chamaram a minha atenção como os simpósios da indústria palestras e mesasredondas Ainda assim procurei me concentrar na chamada área dos expositores Ao fazer a inscrição recebi um crachá com uma tarja azul bebê a cor é assim identificada no Programa Oficial do Congresso que identificava a categoria estudante Outras cores eram destinadas aos membros da organização vermelho associados da Associação Brasileira de Psiquiatria verde escuro médicos amarelo escuro profissionais da saúde azul etc Logo no espaço de recepção aos congressistas depareime com uma placa na qual se lia AVISO é permitido o acesso de congressistas não médicos na área de exposição da indústria desde que sejam respeitadas as normas da ANVISA Os participantes do evento têm sua categoria profissional facilmente identificada de acordo com as cores da tarja do crachá É proibida a distribuição de materiais publicitários de medicamentos a profissionais de saúde não habilitados a prescrever mioloantroppmd 10022010 1444 372 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 373 Como uma de minhas intenções era colher material publicitário fiquei preocupado com a restrição legal de distribuição do material A cor azul bebê em meu crachá explicitava minha condição de estudante e poderia dificultar assim eu acreditava meu acesso a alguma atividade dos estandes e ao material distribuído É claro que eu não tinha a intenção de me fazer passar por médico ou mesmo estudante de medicina mas como veremos logo adiante a minha condição de estudante pouco me atrapalhou devido à forma como as regras da agência reguladora parecem ser interpretadas naquele espaço No mesmo prédio contíguo ao espaço de inscrição e recepção abriase um amplo salão ocupado pelos expositores Uma linha imaginária dividia este salão em dois lados um deles ocupado pelos estandes da indústria farmacêutica e o outro ocupado por estandes de livrarias grupos de ajuda mútua chapelaria e venda de produtos identificados com a região como chocolates e doces Não foi sem alguma angústia que dei os primeiros passos no que me parecia ser uma espécie de Shopping Center voltado exclusivamente para o marketing de psiconeurofármacos e comecei a me aproximar dos estandesA comparação com um centro de compras pode soar estranha visto que eu estava em um congresso científico mas de fato é a imagem mais próxima que me vem à cabeça em termos comparativos Visto de cima a partir de um andar mais alto ficava evidente uma diferença mioloantroppmd 10022010 1444 373 374 entre os dois lados do amplo salão o estímulo visual iluminação e concentração de congressistas circulando era claramente maior no lado ocupado pela indústria Quanto à minha ansiedade ficava por conta de uma estréia em um novo campo com regras que teriam que ser decodificadas em pouco tempo já que se tratava de uma experiência curta de 4 dias ainda que bastante concentrada em um espaço físico relativamente pequeno mas não por isso menos complexo e denso de significados O relato da minha experiência neste espaço não é linear no tempo ou no espaço já que voltei várias vezes aos mesmos estandes em momentos e dias diferentes do congresso Procurei visitálos com atenção a todos mas sem dúvida alguns deles pelo seu tamanho decoração ou pelas atividades que propunham aos congressistas chamavam de imediato mais atenção do que outros Por vezes um estande de apresentação menos espetacular poderá concentrar a presença de congressistas incluindo a mim mesmo devido a algum brinde distribuído à presença de uma celebridade ou uma alimentação específica A dinâmica da minha circulação pela área dos estandes variava ao sabor das atividades que chamavam mais atenção a cada momento Optei então por uma apresentação não linear que toma como ponto de partida cada estande em separado seriam vários os exemplos possíveis então me concentrarei em alguns que considero mais significativos no que diz respeito à densidade das experiências etnográficas e mesmo ao fato de ter havido alguma interação com os funcionários dos estandes e com os congressistas mioloantroppmd 10022010 1444 374 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 375 CYMBALTA QUÍMICA E SENTIDOS Quando comecei a circular pela área dos expositores as atividades do congresso estavam apenas começando impressos ainda estavam sendo arrumados para distribuição e algumas equipes pareciam estar tendo os primeiros contatos com ações de marketing dos estandes O primeiro expositor que prendeu minha atenção na verdade o primeiro estande no lado da indústria para quem adentrava o salão vindo da área de recepção divulgava o medicamento Cymbalta cloridrato de duloxetina11 do Laboratório Lilly BoehingerIngelheim Ao me aproximar do estande recebi alguns brindes um biscoito da sorte cuja mensagem era preparado para ver as coisas de forma diferente e um pequeno brinquedo plástico com uma lente que aumenta um pequeno impresso interno uma espécie de óculo no qual se lia PR3P4RADO P4R4 V3R A5 CO1545 D3 UM J3170 D1F3R3N73 Visite o estande do Cymbalta Conforme anunciado em um pequeno folheto que me foi entregue as ações de marketing neste espaço estavam baseadas no conceito trata além do óbvio O promotor que trabalhava no estande me explica a idéia além de tratar a depressão o remédio trata sintomas associados à doença como dores e problemas sexuais e aí estaria a conexão com ver as coisas de forma diferente ou com o além do óbvio O foco da ação de marketing mais visível estaria nos sintomas físicos da depressão dividindo a atenção com os sintomas emocionais mioloantroppmd 10022010 1444 375 376 As atividades estavam voltadas de diferentes formas para o estímulo dos sentidos No interior do estande três espaços principais chamavam atenção o planetário de palavras a parede dos sentidos e um balcão com serviço de café e alimentação Além disso no chão do estande estavam impressas as frases a depressão fez de mim uma pessoa solitária meu sonho é voltar à vida que eu tinha antes vivo preocupada e não consigo resolver nada minha vida não é mais como era antes Já nas paredes principais impressos maiores contrapunham problemas e soluções um deles mostra uma mulher com as mãos na cabeça e destaque para a frase estou me sentindo desanimada o tempo todo a partir da palavra desanimada saem traços que indicam outros termos perda de prazer tristeza ansiedade queixas dolorosas tensão muscular e alteração do apetite Em contraposição o impresso central do estande destaca uma mulher sorrindo e a frase eu posso ter a minha vida de volta e a partir da palavra vida indicavase os termos tempo com a família voltar a trabalhar ter confiança sorrir reencontrar amigos e caminhar É digno de nota um certo recorte de gênero neste estande já que as imagens em destaque são sempre de mulheres o mesmo valendo para o material impresso distribuído Fica mais do que evidente ao menos no que diz respeito a este estande a relação entre a depressão e uma imagem feminina Isso não deveria ser surpresa já que no caso da depressão maior uma das indicações do medicamento dados epidemiológicos mioloantroppmd 10022010 1444 376 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 377 indicariam uma prevalência na proporção de 21 entre mulheres e homens Justo e Calil 2006 O dado epidemiológico justifica o porquê da prevalência de imagens femininas mas é aconselhável desconfiar um pouco dos números já que a própria produção do dado científico pode ser generificado influenciado pela representação da biomedicina acerca do feminino12 Entrei por uma porta convidado pelos funcionários onde se lia planetário de palavras onde eles disseram que eu teria uma experiência visual A sala estava já escura quando entrei Em alguns segundos cercado por quatro paredes teve início a projeção de uma série de poemas e letras de músicas que giravam em torno do grupo presente Trechos de João Cabral de Melo Neto Chico Buarque Nelson Sargento e outros poetas e compositores são projetados nas paredes circulando por elas e ao mesmo tempo são declamados no áudio13 Os primeiros trechos em destaque falam de tristeza angústia e desesperança em seguida outros trechos falam de dar a volta por cima e felicidade A contraposição dos poemas claramente nos leva da doença à cura da depressão à redescoberta do prazer com a vida e conclui com um tom otimista No escuro e cercado por mais sete pessoas não tenho condições de tomar notas dos trechos de poesias e letras de músicas Em seguida à projeçãoleitura dos poemas divulgase o medicamento indicado para transtorno depressivo maior e para tratamento das dores relacionadas à neuropatia diabética chamase atenção mioloantroppmd 10022010 1444 377 378 ainda para as possíveis novas indicações de Cymbalta como o transtorno de ansiedade Ainda neste mesmo estande o laboratório traz um móvel com 48 gavetas uma estrutura de madeira denominada parede dos sentidos Entre uma maioria de gavetas brancas algumas coloridas azuis e verdes trazem o nome dos cinco sentidos humanos A idéia é que ao abrir as gavetas indicadas o congressista tenha uma experiência sensorial a partir de um sentido a visão trazia fotos a audição um fone e o dizer aperte no play mas que não emitia qualquer som a gaveta do olfato trazia um sachet perfumado o tato apresentava uma substância gelatinosa mas que não grudava nos dedos e o paladar oferecia pequenas balinhas A estratégia era estabelecer uma relação entre a perda de prazer acarretada pelos estados depressivos e o estímulo dos sentidos dos congressistas A escolha de marketing fica mais clara quando folheio uma monografia do medicamento disponível no estande a qual tive acesso sem qualquer impedimento Na introdução desta monografia apresentase a teoria bioquímica da depressão baseada no papel dos neurotransmissores serotonina e noradrenalina o texto confere destaque aos sintomas físicos que são fortemente reconhecidos como parte da síndrome depressiva e sublinha que os principais sintomas da depressão que incluem humor depressivo dores e queixas físicas perda de energia e prejuízo da função cognitiva não estão claramente mioloantroppmd 10022010 1444 378 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 379 identificados com um ou outro neurotransmissor Dessa forma vemos que há uma grande sobreposição dos sintomas mediados por estes dois neurotransmissores tornado impossível determinar clinicamente se um paciente deprimido responderá melhor a um inibidor de recaptação de serotonina ou de noradrenalina Além disso pelo fato de muitos pacientes se apresentarem tanto com sintomas emocionais quanto físicos da depressão usar um antidepressivo que atue tanto na serotonina como na noradrenalina pode aumentar a chance de melhorar todos os sintomas do paciente Sendo o Cymbalta um inibidor de recaptação dos dois neurotransmissores a estratégia de destacar os sintomas físicos da depressão no estande indo além do óbvio que seria tratar os sintomas emocionais ficava agora mais clara para um leigo como eu Como não se conhece conforme se afirma na monografia qual a relação exata de cada neurotransmissor com os sintomas destacados no estande o Cymbalta traria vantagens sobre por exemplo os inibidores seletivos de recaptação de serotonina como o conhecido Prozac por exemplo14 Percebi nas experiências neste estande que eu deveria estar atento a uma relação fina entre os medicamentos e as ações de marketing relação esta que nem sempre é tão óbvia para alguém não versado em psicofarmacologia e deveria atentar também a um possível diálogo surdo entre os estandes visto que eu estava em meio a empresas concorrentes divulgando mioloantroppmd 10022010 1444 379 380 argumentos para convencer os prescritores Em dias seguintes do congresso passei a me apresentar mais diretamente aos promotores como um estudante com interesse em fazer um trabalho sobre esta relação RIVOTRIL DRINKS E ARTE NO ESTANDE DO PÂNICO O estande que divulgava o Rivotril Clonazepam do laboratório Roche pareciame um dos mais peculiares Talvez por isso durante os quatro dias de congresso presenciei e participei de algumas cenas que se relacionam especificamente com este espaço ao qual voltava ciclicamente As atividades oferecidas pelo estande combinavam artes plásticas e um clima de lounge com serviço de bar e um DJ O formato do espaço pode remeter a várias imagens um discovoador uma flor ou mesmo uma taça de champagne talvez inspirado na arquitetura do Museu de Arte Contemporânea em NiteróiRJ um dos conhecidos projetos de Niemeyer em torno desta estrutura funcionava o bar onde eram servidos coquetéis não alcoólicos no horário comercial do congresso e alcoólicos no momento do happyhour no início da noite quando um clima de festa tomava conta da área próxima a este estande Uma vez terminadas as atividades era nesta região onde se concentravam os congressistas Das diversas indicações previstas na bula do medicamento o estande destacava o distúrbio do pânico um dos transtornos de ansiedade Um grande cartaz no centro do estande mostra um corpo que parece ser masculino em corrida e traz a palavra pânico impressa sobre ele mioloantroppmd 10022010 1444 380 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 381 Dj barman e os promotores do estande vestiam uma camiseta preta na qual as letras RIV se multiplicavam de forma irregular Em uma primeira aproximação tomei um drink não alcoólico As 3 opções de drinks disponíveis eram adjetivos rápido eficaz e barato este último por exemplo era feito com suco de laranja suco de maracujá mix de limão e sprite adjetivos estes que obviamente são características atribuídas ao medicamento pelo laboratório No bar tive acesso ao cardápio completo de coquetéis nãoalcoolicos criados sob encomenda para este estande por uma empresa especializada em serviços de barman que incluía ainda as opções eficaz acessível seguro e controle a receita deste último contem monin blue Curaçao groselha mix de limão e sprite Duas situações no espaço da RocheRivotril são especialmente dignas de nota No primeiro dia de congresso chamou minha atenção uma grande tela para pintura em um dos cantos deste estande com várias pequenas latas de tinta próximas a ela Além de outras formas mais ou menos irregulares um duende um gato olhos uma estrela um coração a palavra Rivotril em destaque liase na parte de baixo da tela a frase viva a psicanálise Tive o reflexo de fotografar esta imagem porque achei interessante a valoração da psicanálise no estande de um medicamento Quando voltei algumas horas mais tarde a este mesmo ponto a tela continuava lá mas o conteúdo dos desenhos tinha se modificado As intervenções haviam se multiplicado a tela tinha menos espaços mioloantroppmd 10022010 1444 381 382 vazios e da frase viva a psicanálise havia sobrado somente o viva O resto da frase estava coberto por novas pinturas Perguntei a um dos promotores se eles haviam trocado a tela Ele me disse que não e explicou que se tratava de uma obra conjunta que qualquer pessoa poderia fazer uso das tintas e pintar alguma coisa Comentei sobre a frase que havia sumido e ele me disse é só ficou o viva deve ter sido algum psiquiatra clínico que passou por aqui e esse rivotril não fomos nós porque a ANVISA não permite Uma resposta curta mas na qual se entrevê tensões a suposta figura de um psiquiatra clínico cuja intervenção na pintura coletiva insere uma diferença entre o medicamento e a psicanálise e também mais uma vez a ANVISA órgão cujos olhos estariam supostamente atentos em busca de alguma irregularidade Uma segunda situação ocorreu após mais uma volta pelos estandes e um retorno ao espaço do pânico Desta vez estava acompanhado de uma amiga com quem encontrei por acaso uma médicapsiquiatra com formação também em antropologia como eu A companhia desta colega ajudoume a perceber uma tensão nem sempre explícita naquele espaço entre diferentes paradigmas que convivem nas áreas Psi Quando nos aproximamos do estande ela se mostrou surpresa por uma das atividades organizadas pelo laboratório ser de artes plásticas com tintas e mesas disponíveis para quem quisesse dispor do material A surpresa dela estava relacionada à sua opinião de que o Rivotril seria um medicamento que chapa mioloantroppmd 10022010 1444 382 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 383 o usuário efeito colateral que estaria em tensão com atividades artísticas De qualquer forma nos aproximamos do bar para tomar um coquetel ainda nãoalcoolico presenciei então um diálogo curioso um congressista deixava o balcão com o seu drink que era servido com uma espécie de gelo especial que faz com que o drink solte fumaça ao passar por mim e minha amiga ele comenta só que o Rivotril não solta fumaça ao que minha amiga contrapôs com e o coquetel não chapa como o Rivotril O estande disponibiliza um grande volume de material de marketing entre pequenos impressos monografias do produto e sobre doenças por ele tratadas além de uma série de CDs que continham filmes promocionais que seriam parte de um Festival de Curtas chamado Pânico em cena 200715 Como já disse os laboratórios estavam proibidos por ordem da ANVISA de entregar material de marketing para um não prescritor como eu Mas nesta passagem pelo estande descrita acima acompanhado da colega psiquiatra percebi que essa regra era tratada com ambigüidade Quando nos aproximamos fomos atendidos por uma promotora do estande a quem perguntamos a respeito do acesso ao material publicitário Ela nos questionou se alguém nos visita uma frase que eu ouviria com freqüência em vários estandes durante o congresso Ela se refere aos representantes dos laboratórios que circulam por consultórios médicos divulgando os produtos A médica que me acompanhava disse que ninguém a visita e a promotora mioloantroppmd 10022010 1444 383 384 informou que se ela o quisesse seria necessário cadastrar o endereço do consultório Eu acusei de imediato minha condição de nãoprescritor e foi então que percebi como os laboratórios expositores ou ao menos os promotores destes espaços interpretavam as regras da ANVISA Ela disse que não poderia me entregar alguns materiais porque os fiscais da ANVISA estavam de olho mas que os folhetos estão em exposição e eu poderia pegálos por conta própria Por um segundo refleti se eu estaria ferindo algum critério ético de pesquisa antropológica mas conclui que se havia algum mal entendido seria entre os laboratórios e a agência reguladora O fato é que em todos os dias do congresso eu tive que fazer uso do serviço de chapelaria tal o volume de material impresso que me era disponibilizado o que gerava um peso considerável Eu voltava para casa com algumas sacolas de material publicitário dos laboratórios peças que me foram entregues pelos promotores ou que estavam disponíveis nos estandes mesmo para um nãoprescritor16 UM RELAX COM LORAX No caso do medicamento Lorax Lorazepam o estande disponibilizava massagens de diversos estilos para os congressistas em cadeiras especiais uma atividade bastante concorrida Em destaque na estrutura do estande lêse a chamada proporcione um relax com lorax e mais abaixo rápido e eficaz alívio da ansiedade Considerei eu mesmo que uma massagem não faria mal já nesta altura no terceiro mioloantroppmd 10022010 1444 384 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 385 dia de congresso O massagista por quem fui atendido era na verdade um fisioterapeuta pergunto a ele sobre a relação entre as massagens e o medicamento lorax ao que ele responde olha eu não tenho conhecimento farmacológico mas lendo ali na estrutura do estande ansiedade acho que a idéia é relacionar o relaxamento gerado pela massagem com o remédio Eu trabalho em outra linha Ele começa a me explicar os efeitos positivos da massagem como ela mexe com os meridianos como comprovado pelos orientais mas essa coisa dos meridianos e a nossa explicação hormonal na verdade é a mesma coisa né e segue explicando como a massagem pode atuar no nível dos neurotransmissores dopamina e endorfina A forma como ele equipara a lógica dos meridianos à explicação hormonal da biomedicina Ocidental pode ter um caráter pedagógico mas não deixa de mostrar como diferentes sistemas de crença circulam naquele espaço ainda que submetidos ou equiparados à lógica dos neurotransmissores DEPAKOTE E O DIAGNÓSTICO DE VAN GOGH Este estande contava com um garotopropaganda bastante conhecido o pintor Van Gogh imagem que prendeu minha atenção Por experiência própria de pesquisa e também pelo relato de outros pesquisadores Martin 2007 sei ser comum atribuir diagnósticos psiquiátricos a personagens conhecidos da história universal Van Gogh pode ser bipolar assim como Abraham Lincoln ou Mark Twain são indicados como tendo mioloantroppmd 10022010 1444 385 386 tido depressão o subtexto visa diminuir o estigma em torno destas doenças explicitamente mas também fala das pretensões universalizantes das categorias nosológicas psiquiátricas que viajam entre culturas e também no tempo O pintor especialmente tem sido citado quando se discute caso de um documentário da BBC chamado Brain Story apresentado pela neurocientista Susan Greenfield as relações entre cérebro e criatividade de como uma doença cerebral poderia influenciar a visão e as técnicas de um artista Perguntei a um dos expositores neste estande o porquê de se utilizar imagens do pintor Ele me explicou que Van Gogh era bipolar e sofria de crises convulsivas A idéia é que se o Depakote existisse na época ele não teria se matado cortado a orelha ou casado com uma prostituta Imediatamente me veio à cabeça um complemento para a frase pensei que ele também não teria pintado o que pintou e da forma como pintou se pensarmos o sujeito em sua totalidade mais um segundo e percebi que o meu incômodo falava das minhas crenças e acusava um algo que eu poderia chamar etnocentrismo uma postura que seria aconselhável ter sob controle Questionei ainda por que a coluna do estande trazia um impresso com a palavra EvoluiR com a 1ª e última letra destacadas em maiúsculas o mesmo funcionário me explicou que eles estavam divulgando uma nova apresentação extended release o que explicava o ER mioloantroppmd 10022010 1444 386 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 387 ZYPREXA E ABILIFY ANTIPSICÓTICOS ENGORDAM Dois estandes que divulgavam antipsicóticos estavam lado a lado na área dos expositores o dos medicamentos Zyprexa olanzapina do laboratório Lilly e o Abilify aripiprazol do laboratório Bristol O mesmo motivo movia as escolhas de marketing dos dois estandes a relação entre uso de antipsicóticos e aumento de peso mas as soluções encontradas foram diferentes O estande do Zyprexa era maior em tamanho e recebia um maior movimento de congressistas quem passava por ali poderia tirar uma foto de recordação do congresso eu fiz isso na qual o fotografado ficava logo abaixo da frase Zyprexa 10 anos Obrigado por fazer parte dessa história Outra atividade neste espaço era uma espécie de competição em bicicletas ergométricas cujo vencedor levava como prêmio uma garrafa squeeze do gênero utilizado por ciclistas e outros atletas Enquanto observo três congressistas competindo eu tiro uma foto minha no sistema instantâneo disponível e aproveito para fazer um pequeno lanche oferecido pelo laboratório composto por iogurte natural sem açúcar flocos de milho sem açúcar e pequenos pedaços de melão A alimentação leve e o exercício físico no estande estavam relacionados ao programa que o laboratório Lilly fabricante do Zyprexa divulgava chamado bem estar voltado segundo um folheto distribuído para promover a atenção à saúde dos portadores de transtornos mentais levando em conta a integração entre corpo e mente saudáveis em convênio com mioloantroppmd 10022010 1444 387 388 o Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo Quando questionei o funcionário sobre a relação entre o medicamento e as atividades do estande ele me explicou que o Zyprexa é um antipsicótico o uso de antidepressivos e antipsicóticos muitas vezes acarreta um aumento de peso Então a gente faz isso para que os médicos digam aos seus pacientes façam exercício comam melhor Em uma tarde uma extensa fila se formou rumo a este estande porque o ex jogador de vôlei Giovane Gávio contratado pelo laboratório distribuía aos profissionais prescritores bolas de vôlei autografadas em mais uma atividade que relacionava o Zyprexa de alguma forma a uma vida saudável e atividade física O estande ao lado que divulgava o remédio Abilify aripiprazol também relacionava os seus brindes a idéia de que antipsicóticos podem ou não causar aumento de peso Passei por este estande em um horário de almoço e uma fila já tinha se formado para ter acesso a um prato com arroz batata palha e carne Como o serviço estava parado para reposição dos alimentos houve certa demora Atrás de mim uma mulher comenta que uma certa demora faz parte da estratégia né ficar de frente pro aripiprazol não tem jeito comentário que gerou risos em outras pessoas na fila Dois dias depois neste mesmo estande estavam distribuindo como brinde uma fita métrica a escolha deste brinde me surpreendeu se antipsicóticos podem gerar aumento de peso por que investir em um presente para os médicos que realça este possível mioloantroppmd 10022010 1444 388 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 389 aumento de medidas O funcionário do estande me esclarece que o Abilily não engorda pelo contrário o Abilify atua de forma agonista e antagonista no sistema dopamimérgico onde diminui ele ajuda a aumentar onde aumenta ele ajuda a reduzir atua como um regulador Eu questiono para que então a fita métrica ao que ele responde com um sorriso porque quando a pessoa perceber que as medidas estão aumentando está na hora de mudar de medicação Os dois estandes vizinhos pareciam estar travando uma pequena guerra silenciosa entre antipsicóticos diferentes Não pude deixar de notar que a alimentação no estande do medicamento que não engorda era mais pesada enquanto o estande que divulgava o Zyprexa investia em estratégias junto aos médicos que visavam gerar uma mudança de estilo de vida incluindo o fornecimento de uma alimentação leve TRABALHO DE CAMPO EM UM CAMPO DIVIDIDO Algumas das cenas descritas neste artigo falam de uma cisão no campo da psiquiatria Refirome ao suposto psiquiatra clínico que teria desenhado por cima da frase viva a psicanálise na pintura coletiva do estande do Rivotril ou mesmo à percepção crítica que minha colega psiquiatra tinha a respeito das técnicas de marketing neste mesmo estande Essa tensão não deveria ser exatamente uma surpresa já que expressa de certa forma uma diferença entre perspectivas clínicas que marca o campo da saúde mentalcerebral Se há alguma novidade trazida pelas situações etnográficas aqui mioloantroppmd 10022010 1444 389 390 descritas é que elas ilustram uma tendência atual que subsume a mente ao cérebro o psicológico ao orgânico abrindo caminho para a ampliação daquilo que podemos chamar uma medicamentalização da subjetividade ou com Maluf 2008 uma racionalização biomédica da vida subjetiva Não há dúvida de que na difusão desta noção cerebralizada de pessoa atores relacionados às neurociências contemporâneas e à chamada psiquiatria biológica têm um papel central com espaço crescente em diversos meios de comunicação de massa e técnicas de marketing e divulgação para especialistas como no caso da área de estandes do congresso de psiquiatria que visitei Mas isso não significa que não haja vozes dissonantes como também fica explícito no relato que faço aqui Como imaginei que chegaria ao congresso às cegas com uma idéia na cabeça por certo mas sem ter grande noção do espaço por onde estaria me movendo busquei ajuda de informantes privilegiados a quem poderia recorrer caso necessário Antes de viajar a Porto Alegre fiz contato mediado muito gentilmente por uma professora minha com um psiquiatra que iria ao congresso e se dispôs a me ajudar Ficou claro que se tratava de um profissional com uma visão crítica da tendência exclusivamente cerebralista e medicamentosa que se convencionou chamar psiquiatria biológica O mesmo vale para alguns colegas seus com quem também tive oportunidade de conversar alguns com diálogo com as ciências sociais ou passagem por esta área mioloantroppmd 10022010 1444 390 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 391 O contato com este grupo não foi constante durante os dias de congresso até porque eu não tinha intenção de atrapalhálos alguns inclusive tinham papers a apresentar mas se mostrou além de agradável útil para que eu entendesse a natureza das diferentes atividades no congresso e no que consiste essa diferença a partir do ponto de vista deles No fim de tarde do primeiro dia de congresso encontrei este grupo fazendo um happyhour nas proximidades do estande do Rivotril onde havia um DJ e se servia bebidas alcoólicas após o final do horário de atividades do congresso Fui apresentado ao grupo pelo meu guia como um antropólogo que estava ali com interesses etnográficos enquanto tomávamos um drink expliquei de forma sintética que o meu trabalho estava relacionado ao corte cerebralista do fisicalismo contemporâneo e a relação direta que o tema possui com neurociências psiquiatria biológica e o papel da indústria farmacêutica Naquele grupo o tema de pesquisa encontrou eco visto que eles não se identificam com a tendência mais fisicalista da psiquiatria Esta diferença era marcante e marcada em vários momentos da conversa por exemplo em certo momento quando uma pessoa do grupo me relatou de seu incômodo ao ouvir um comentário de um conhecido psiquiatra brasileiro que teria dito antes de uma palestra eu sou patrocinado por uma indústria farmacêutica eu carrego esta marca mas quem não carrega alguma marca na vida Ela sorri e comenta comigo que esta marca não é como qualquer mioloantroppmd 10022010 1444 391 392 outra e fica claro a sua posição crítica ao tipo de relação que pode se estabelecer entre médicos e laboratórios Em certo momento eu comento que pretendo prestigiar a fala deles em mesasredondas do congresso O meu guia me questiona se é essa tribo que você quer etnografar e os colegas fazem eco afirmando que eu deveria procurar a produção mais fisicalista de discurso no congresso Um colega dele indica que eu procure comparar os discursos dos mesmos profissionais nos simpósios da indústria palestras feitas por médicos e pesquisadores patrocinados pelas empresas com o objetivo explícito de divulgar um produto determinado e nas mesasredondas nas quais o tom mudaria visto não haver explícito interesse comercial e os profissionais teriam uma outra postura com o objetivo de angariar um certo tipo de respeito entre os pares Outro ponto que o grupo destaca é que eu deveria estar atento ao crescimento da neuroimagem na construção do diagnóstico tema que de fato se espalhava por várias palestras do congresso Foi impossível seguir todos estes conselhos ainda que tenham sido muito pertinentes De qualquer forma os conselhos por si só falavam de uma diferença e tensões naquele espaço para as quais eu deveria estar atento Acompanhei algumas mesasredondas durante o congresso e de fato a possibilidade de que um médico direcione o seu discurso no sentido de valorizar um medicamento específico sem que isso seja explicitado claramente pode ser motivo de discussões acaloradas mioloantroppmd 10022010 1444 392 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 393 Quando havia alguma espécie de vínculo entre o profissional que apresentaria o trabalho e um laboratório farmacêutico apresentavase no início da fala o conflito de interesses ou seja explicitavase o tal vínculo Mas isso não zera a possibilidade de que haja desconfianças quanto à neutralidade do discurso Foi este o caso de uma cena que se passou em uma mesa sobre depressão grave um dos trabalhos discutia inclusive o conflito de interesses em ensaios clínicos durante a qual um dos apresentadores foi questionado no momento do debate se ele não teria privilegiado em sua fala o Citalopram um inibidor seletivo de recaptação de serotonina Ele defendeuse nos seguintes termos por favor numa mesa em que se fala de conflito de interesses não diga que eu privilegio este ou aquele antidepressivo isso se vê caso a caso Fiz uma breve entrevista com o psiquiatra questionado após a mesa Apresenteime como um antropólogo interessado em etnografar o congresso buscando compreender os mecanismos de divulgação da indústria Ele me disse que desenvolve estudos para a indústria mas que explicitou este conflito de interesse na introdução de sua fala e que naquele momento não estava a serviço do laboratório A respeito do hábito de se apresentar o conflito de interesses antes da palestra ele me diz que se trata de um modelo copiado do FDA17 porque a coisa estava ficando avacalhada o profissional estava divulgando uma molécula e não deixava isso claro Conversamos sobre o papel da indústria farmacêutica o que mioloantroppmd 10022010 1444 393 394 ele definiu como uma espécie de mal necessário em um mundo ideal devia ser diferente mas que hoje 95 dos estudos são desenvolvidos pela indústria e 5 por iniciativas particulares ou universidades CONCLUSÃO Ficava claro que havia no ar uma tensão com o papel da indústria no congresso em contraste com estudos não patrocinados apresentados nas mesasredondas mas mesmo nestas podem surgir desconfianças de que a palestra tenha um determinado viés com o objetivo de divulgar um ou outro medicamento Quanto às condições de possibilidade de se realizar este esforço etnográfico vale concluir destacando o lugar que me era atribuído no espaço dos expositores Desde o começo a minha condição explícita de estudante no crachá não foi impedimento para que me fosse entregue ou para que eu pudesse coletar sem ser questionado uma grande quantidade de material publicitário de medicamentos Na primeira manhã de congresso por volta das 11 da manhã eu já tinha mais material impresso do que poderia carregar comigo e mais do que eu já tinha tido acesso em vários anos de interesse no assunto Somente no terceiro dia de congresso um funcionário de um estande obedeceu as regras da ANVISA sem qualquer ambigüidade e não me permitiu acesso aos folders disponíveis Apesar dele estar com toda razão tive a sensação de ter meu espaço invadido já que ele aproximou a mão do meu peito e mioloantroppmd 10022010 1444 394 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 395 virou o meu crachá que nesta altura estava virado ao contrário Em verdade acredito que a condição a se destacar no lugar que me era atribuído naquele espaço era a de nãoprescritor que foi diversas vezes ressaltada em diálogos com funcionários dos estandes Quando decidi participar do Congresso Brasileiro de Psiquiatria fui informado sobre o quão surpreendente pode ser a área dos estandes da indústria para um marinheiro de primeira viagem Antes de partir ouvi falar sobre o congresso em outros anos quando o personagem Zé do Caixão de José Mojica Marins foi utilizado como garoto propaganda em um estande que divulgava uma medicação para um transtorno de ansiedade ou ainda sobre teorias a respeito de mecanismos de controle dos médicos por parte das indústrias os congressistas teriam seus interesses no congresso mapeados através do código de barras no crachá o que permitiria às indústrias saber qual assunto ou medicamento interessa a qual profissional Verdade ou não o que importa aqui é como um pequeno mito se constrói em torno da relação entre indústria e profissionais A área dos expositores era também um espaço de lazer e sociabilidade entre os congressistas Mas cabe ressaltar que qualquer diversão oferecida sempre relacionava química e sentidos de alguma forma Em cada estande era possível vivenciar de alguma maneira o estado no qual supostamente o paciente pode ser colocado através daquela droga uma mioloantroppmd 10022010 1444 395 396 atividade proposta pode se contrapor a um efeito colateral do medicamento os brindes por sua vez podem ir de viagens ao próximo congresso mundial da área passando por carimbos e chegando a uma fita métrica que simboliza a idéia de que um medicamento concorrente engorda mesmo a escolha da alimentação oferecida parece longe de ser gratuita O importante aqui é salientar que as tensões que se desenhavam no congresso nas mesas redondas nos estandes ou em discursos isolados aqui e ali falam sobre a presença como definiu o meu guia e informante privilegiado de diferentes tribos dentro do campo da psiquiatria hoje18 Diferenças eram marcadas especialmente no que diz respeito ao papel da indústria farmacêutica no congresso e ao maior espaço ocupado por um discurso de base neurocêntrica com destaque para a neuroimagem como possível ferramenta diagnóstica de doenças mentaiscerebrais Pensando posteriormente é quase como se o viva a psicanálise pintado na tela coletiva no estande do Rivotril no início do congresso fosse uma pichação feita por um grupo de resistência que logo foi apagada 1 Agradeço os comentários preciosos das professoras Sônia Weidner Maluf e Carmen Susana Tornquist incorporados ao trabalho na medida do possível Devo um duplo agradecimento à minha colega de doutorado Marta Cioccari que além da generosa hospedagem em Porto Alegre fez observações muito pertinentes sobre este texto NOTAS mioloantroppmd 10022010 1444 396 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 397 2 A expressão foi traduzida para o português como meu derrame de sabedoria A sua escolha caminha na direção do lado direito do cérebromente Com base em minha experiência de perder o lado esquerdo da mente acredito inteiramente que o sentimento de paz interior está localizado no circuito neurológico do lado direito do cérebro p169 3 Ver Dumit 2004 para uma discussão a respeito do uso de neuroimagem como uma forma de visualizar estes males no cérebro e do uso destas imagens em contextos como a medicina e o direito 4 Foi Luiz Fernando Dias Duarte quem fez uso da noção de interacionismo para fazer referências a pesquisas e pesquisadores que pensam a relação entre mente e cérebro como sendo de influência mútua em uma palestra proferida na Academia Brasileira de Ciências em 5 de maio de 2009 por ocasião da Reunião Magna desta instituição 5 Ver Serpa Júnior 1998 Bezerra Jr 2000 Aguiar 2004 6 As informações estão disponíveis no edital de concorrência para apresentação de proposta comercial de empresas candidatas a prestadoras de serviços de montagem para o mesmo congresso no ano seguinte 7 Ver Payer 1992 Healy 2004 Moynihan e Cassels 2005 Applbaum 2006 8 Que pode ser traduzido como apregoar ou mesmo vender doenças 9 Ver Nascimento 2005 10 Em outros espaços procurei analisar essas diferentes formas de divulgação por parte da indústria farmacêutica Azize 2002 para uma análise do material de divulgação de doenças do cérebro como a depressão e a ansiedade ver Martin 2007 e Azize 2008b 11 No Brasil este medicamento tem indicação na bula para mioloantroppmd 10022010 1444 397 398 tratamento de transtorno de depressão maior No site wwwcymbaltacom vemos que o medicamento é indicado no mercado americano também para transtorno de ansiedade generalizada fibromialgia e para as dores relacionadas à neuropatia diabética 12 Não possuo dados para avançar nesta discussão A respeito das representações diferenciais da medicina sobre o feminino ver Martin 2006 e Rohden 2001 13 A experiência estética tem como referência uma das atividades no Museu da Língua Portuguesa em São Paulo 14 Na monografia disponível no estande sobre o Cymbalta parte do texto é dedicada a diferenciar a estrutura química de Cymbalta Prozac e Strattera este último um inibidor seletivo de recaptação de noradrenalina todos os três fabricados pelo mesmo laboratório O texto ressalta que não se trata de isômeros apesar de compartilharem algumas características químicas entretanto são moléculas distintas com diferenças estruturais sendo que Cymbalta não foi desenvolvido a partir de Prozac que é um ISRS Essas diferenças estruturais podem ser consideradas em relação aos diferentes efeitos clínicos proporcionados por cada uma das drogas 15 Posteriormente já de volta do congresso entendi do que se tratavam os filmes Tratase de curtas metragens produzidos para a Roche o laboratório fabricante do Rivotril que mostram pessoas que sofrem de síndrome do pânico Imagino que tais filmes sejam utilizados pelos médicos ao menos este seria o objetivo da peça publicitária para mostrar aos pacientes outros indivíduos em situações semelhantes a deles reduzindo assim alguma resistência ao diagnóstico se fosse o caso Um texto no verso do CD termina com a frase A síndrome do pânico pode acontecer com qualquer um e não marca hora para alterar a rotina e prejudicar quem está sofrendo desse mal mioloantroppmd 10022010 1444 398 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 399 16 De fato tive acesso a um volume grande de material de marketing da indústria farmacêutica voltado para os médicos que por uma questão de economia do espaço não será analisado aqui eu já havia analisado em outro artigo Azize 2008b algumas peças voltadas para a divulgação de males psiquiátricos ou doenças mentais se assim se preferir entre o público leigo 17 Sigla para Food and Drug Administration o órgão americano que regulamenta o mercado de remédios entre outras coisas 18 O livro de Tanya Luhrmann 2000 chamado Of two minds the growing disorder in american psychiatry foi esclarecedor da minha experiência de campo ainda que a posteriori Professora da Universidade de Chicago ela realizou uma etnografia entre os residentes de psiquiatria Neste momento de formação os residentes estão de certa forma aprendendo a ver doenças que não podem ser diagnosticadas com marcadores biológicos ao menos não diretamente Ela explora as tensões no processo de aprendizagem em uma área na qual diferentes paradigmas estiveram por muito tempo em debate refirome ao paradigma que se convencionou chamar psiquiatria biológica em tensão com uma linha psicodinâmica Luhrmann preocupase em mostrar que a psiquiatria parece encaminharse para um paradigma de ordem fisicalistareducionista no qual uma das lentes utilizadas pelos psiquiatras para entender os transtornos mentais estaria sendo perdida A autora toma partido e interpreta este movimento como uma perda que levaria os psiquiatras e a sociedade como um todo a ver menos complexidade do que antes Luhrmann 200024 Tal perda fica evidente quando ela analisa unidades psiquiátricas nas quais o modelo de doença segue o paradigma da psiquiatria biológica The patient was telling the doctor about her souls history and he was hearing through it the shape and balance of her brain ibidem135 mioloantroppmd 10022010 1444 399 400 AGUIAR Adriano Amaral de A psiquiatria no divã entre as ciências da vida e a medicalzação da existência Rio de Janeiro Relume Dumará 2004 APPLBAUM Kalman Pharmaceutical marketing and the invention of the medical consumer PLoS Med 34189 2006 AZIZE Rogerio Lopes A química da qualidade de vida um olhar antropológico sobre uso de medicamentos e saúde em classes médias urbanas Dissertação de mestrado Universidade Federal de Santa Catarina 2002 121p Saúde e estilo de vida divulgação e consumo de medicamentos em classes médias urbanas In D K Leitão et alii orgs Antropologia e consumo diálogos entre Brasil e Argentina Porto Alegre Editora AGE 2006 119137 A ordem cerebral e as desordens do cérebro uma etnografia da divulgação neurocientífica e da psiquiatria biológica In 26a Reunião Brasileira de Antropologia 2008 Porto Seguro Bahia Desigualdade na diversidade v 1 Uma Neuro Weltanschauung Fisicalismo e subjetividade na divulgação de doenças e medicamentos do cérebro Mana Rio de Janeiro v 14 2008b 730 BEZERRA JR Benilton 2000 Naturalismo como anti reducionismo notas sobre cérebro mente e subjetividade Cadernos IPUB VI 158177 DUMIT Joseph Picturing personhood brain scans and biomedical identity Princeton Princeton University Press 2004 HEALY David Psychopharmacology at the interface between the market and the new biology In S Rose D Rees orgs The new brain sciences perils and prospects New York Cambridge University Press 2004 232248 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS mioloantroppmd 10022010 1444 400 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 401 JUSTO Luiz Pereira e CALIL Helena Maria Depressão o mesmo acometimento para homens e mulheres Revista de psiquiatria clínica v 33 n2 2006 7479 LUHRMANN Tanya M Of two minds an anthropologist looks at american psychiatry First Vintage Books Edition 2001 MALUF Sônia Weidner Sofrimento saúde mental e medicamentos regimes de subjetivação e tecnologias do gênero Mesa Redonda Saúde corpo e sofrimento Seminário Internacional Fazendo gênero 8 Florianópolis UFSC 2008 MARTIN Emily A mulher no corpo uma análise cultural da reprodução Rio de janeiro Garamond 2006 MARTIN Emily Bipolar expeditions mania and depression in american culture Princeton New Jersey Princeton University Press 2007 MOYNIHAN Ray CASSELS Alan Selling sickness how the worlds biggest pharmaceutical companies are turning us all into patients New York Nation Books 2005 NASCIMENTO Álvaro Ao persistirem os sintomas o médico deverá ser consultado Isso é regulação São Paulo Sociedade brasileira de vigilância de medicamentos 2005 ROHDEN Fabíola Uma ciência da diferença sexo e gênero na medicina da mulher Rio de Janeiro Fiocruz 2001 SERPA JÚNIOR Octavio Domont de Malestar na natureza estudo crítico sobre o reducionismo biológico em psiquiatria Rio de Janeiro Té Cora Editora 1998 TAYLOR Jill Bolte A cientista que curou seu próprio cérebro São Paulo Ediouro 2008 mioloantroppmd 10022010 1444 401 mioloantroppmd 402 10022010 1444 A QUESTÃO Neste artigo discuto a recorrência da tentativa de descrever em bases naturalizantes as diferenças de gênero por parte da ciência Como foco central foi escolhido o cérebro já que as representações em torno desse órgão podem ser vistas como sintetizadoras do empenho em delimitar precisamente o que caracterizaria homens e mulheres distintamente Tomo como objeto o contraste entre trabalhos médicos de meados do século XIX e artigos de divulgação científica contemporâneos A natureza evidentemente distinta em termos formais e cronológicos desses dois tipos de material cumpre a função de reforçar o caráter provocativo da comparação A intenção é oferecer uma interpretação possível que segue a perspectiva dos estudos de gênero e ciência Seguindo a inspiração de autoras como Ludmila Jordanova 1989 e seu tratado sobre as representações dualistas na ciência Nelly Oudshoorn 1994 sobre a criação dos chamados hormônios O QUE SE VÊ NO CÉREBRO A PEQUENA DIFERENÇA ENTRE OS SEXOS OU A GRANDE DIFERENÇA ENTRE OS GÊNEROS Fabíola Rohden mioloantroppmd 10022010 1444 403 404 sexuais Marianne Van Den Wijngaard 1997 quanto ao surgimento da teoria da organização cerebral e Anne Fausto Sterling 2000 sobre o corpo caloso e a diferença cerebral entre homens e mulheres para citar apenas referências mais centrais no tema em questão aqui discuto a intrincada relação entre produção científica e hierarquia de valores baseada em uma concepção dualista de gênero que tem caracterizado a nossa sociedade nos últimos séculos GÊNERO E CÉREBRO NO SÉCULO XIX O tema da diferença entre os sexos aparece de forma insistente na produção científica do século XIX Laqueur 2001 e de modo especial se traduz nos trabalhos médicos No Brasil isso pode ser exemplificado com as teses defendidas no final do curso de graduação da prestigiosa Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro Esse material ilustra o conhecimento científico oficial que se dispunha na época e o que seria traduzido na prática dos consultórios médicos1 A tese A puberdade da mulher de João das Chagas e Andrade defendida em 1839 é exemplar no que se refere à descrição das diferenças entre homens e mulheres Além disso mostra como sexo e gênero eram pensados de forma totalmente imbricada ou como mesmo quando se acreditava estar falando de sexo biológico ou corporal entravam em cena os atributos de gênero O trabalho é dedicado ao que o autor chamou de idéia geral a respeito da mulher e por isso são definidas com mioloantroppmd 10022010 1444 404 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 405 precisão as características que fazem da mulher um ser essencialmente diferente do homem em função do papel que a natureza teria lhe reservado Estas características podem incluir peculiaridades quanto à voz que é mais fraca terna doce e aguda ao sono menos profundo de menor duração e mais perturbado à digestão que exige menor quantidade de alimentos à respiração que produz menos sangue e mesmo à circulação que é mais viva e dota melhor as artérias da bacia para fornecer mais sangue aos genitais O trecho a seguir exemplifica a diferença entre homens e mulheres a partir de uma conformação corporal diferente própria ao destino feminino Estes mesmos ossos variando em suas formas e não guardando as mesmas proporções de grandeza dão ao corpo da mulher uma conformação diferente mas análoga aos destinos que lhes são prescritos assim sua cabeça mais pequena a face mais curta e mais redonda o pescoço mais comprido e mais fino o peito de uma menor capacidade e mais afinado para a parte superior seu diâmetro esternovertebral corresponde à sétima vértebra dorsal como no menino as clavículas são menos curvas para fornecerem um maior espaço ao desenvolvimento dos seios Por causa desta menor capacidade do tórax ela é obrigada a multiplicar os movimentos respiratórios razão porque a respiração é mais ligeira a circulação mais apressada e o pulso mais fraco Andrade 1839 p 2 mioloantroppmd 10022010 1444 405 406 A bacia recebe grandes atenções e é a partir de sua largura que o autor cita a imagem da pirâmide que define o caráter inverso do corpo do homem em relação ao da mulher uma referência que se tornaria comum em outros trabalhos Além disso também aparece a associação entre beleza e a grandeza das cadeiras O abdome é de uma capacidade maior que o do homem e repousa sobre os ossos que formam a bacia É nestes ossos que se notam as maiores diferenças os ilíacos são mais largos o sacro e o cóccix da mesma sorte porém mais curtos e por isso a bacia toma uma maior capacidade em seus diâmetros e como coube à mulher o trabalho da gestação e do parto necessária lhe era tal disposição orgânica em que o feto achasse asilo em seu desenvolvimento e facilidade em seu nascimento Se à finura do tórax aumento do abdome ajuntarmos a largura da bacia veremos que o tronco da mulher representa uma pirâmide cônica que tem por ápice o peito e por base a bacia em sentido oposto ao homem que em razão da amplitude do tórax diminuição do abdome e estreiteza da bacia apresenta esta pirâmide com a base no peito e o ápice na bacia Resulta ainda desta disposição que o tronco da mulher é maior que o do homem e que o meio do corpo em vez de se achar sobre os púbis como no homem se acha entre elas no umbigo Da largura do sacro e dos ilíacos resulta que as articulações femuroilíacas se acham mais distantes e se a esta distância acrescentarmos o maior mioloantroppmd 10022010 1444 406 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 407 desenvolvimento dos músculos grande e pequeno glúteos teremos a razão da grandeza de suas cadeiras conformação a que se liga uma alta idéia de beleza Andrade 1839 p 2 O autor afirma ainda que o sistema muscular na mulher é menos desenvolvido que as próprias fibras dos músculos são mais moles e mais delicadas e que as inserções tendinosas são mais fracas Todos os intervalos são preenchidos por tecido celular gorduroso o que dá à mulher as características formas lisas e arredondadas No homem ao contrário devido à força e ao predomínio muscular essas formas são substituídas por asperidades A referência a um determinado padrão de beleza aparece também a partir dos vasos nervos e mesmo da natureza do sangue feminino Os vasos e os nervos são mais delicados e mais divididos em suas extremidades contendo um sangue mais sutil e penetrando em tecidos mais laxos vão levar à superfície de seu corpo aquele colorido que confundindose com a alvura e delicadeza da pele patenteia com a maior presteza em seus semblantes as alternativas de seus afetos Andrade 1839 p3 A mulher é considerada mais sensível do que o homem devido a uma maior fragilidade Isto significa que os seus sentidos são mais delicados que para ela as sensações são mais vivas Seus olhos não suportam a luz forte por muito tempo e nem seus ouvidos aguentam o barulho de um canhão A suscetibilidade nervosa é a qualidade característica desse sexo2 mioloantroppmd 10022010 1444 407 408 Como consequência a mulher é extremamente impressionável e instável Está sempre e constantemente preocupada com as causas imediatas que produzem as mais diversas sensações o que qualificaria a sua leviandade O autor acrescenta a inevitável evocação ao cérebro feminino De mais já vimos que a cabeça da mulher era mais pequena que a do homem e isto não só de uma maneira absoluta mas até comparandose os cérebros de dois indivíduos de sexo diferente e da mesma estatura Desta inferioridade do cérebro decorre naturalmente que a energia das faculdades intelectuais da mulher consideradas coletivamente será menor que no homem Seu frontal é menor mais coberto segue mais a direção do nariz e deixa ver apenas uma pequena curva disposição que importa menor capacidade da parte craniana que contém os órgãos cerebrais que presidem as faculdades intelectuais Andrade 18394 Em função de diferentes desenvolvimentos nas partes do cérebro em cada sexo seriam desenvolvidas determinadas faculdades sendo o frontal tão pequeno na mulher se observa geralmente em grau muito fraco os órgãos da comparatividade e da causalidade dos quais o primeiro dá a faculdade de discernir com habilidade os traços e semelhanças dos objetos para formar um juízo exato a seu respeito o segundo a de elevarse à origem das coisas e de aprofundar sua natureza Mas em mioloantroppmd 10022010 1444 408 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 409 compensação à estreiteza do frontal a parte posterior do crânio é mais larga e mais saliente e é nesta parte que residem os órgãos correspondentes às qualidades afetivas que por assim dizer constituem a existência moral da mulher Vêse pois que o mau êxito que elas obtêm sempre que se dedicam às altas ciências e à política é antes um efeito de organização que um vício de educação como pretende Condorcet O homem destinado para os grandes trabalhos para com a energia de sua inteligência fazer conquistas nas artes e nas ciências não devia ter uma organização em tudo igual à da mulher porque os fins destinados a ele em grande parte diferem dos destinados à mulher Andrade 1839 p 4 grifos do autor Em virtude de diferenças cerebrais e de correspondentes capacidades tem se claramente desenhada uma justificativa biológica para os papéis sociais diferenciados exercidos por homens e mulheres O autor deixa bem claro que não se trata simplesmente de falta de preparo da mulher mas sim de uma organização corporal diferenciada A natureza já teria definido e qualificado homens e mulheres para o preenchimento de funções específicas A mulher é mais afetiva enquanto o homem é dotado de inteligência No mundo das ciências e da política ou seja no mundo público só há chances para o segundo Essa passagem talvez seja uma das que melhor sintetizem a pretensão e abrangência política que o discurso médico pode ter além de ilustrar com primor a justificativa anatômica da hierarquia de gênero em voga em meados do mioloantroppmd 10022010 1445 409 410 século XIX Essa justificativa também é resumida da seguinte forma Já vimos que em consequência do tamanho e conformação dos ossos pequenez e moleza dos músculos todos os movimentos são morosos e que por isso mesmo a vida sedentária se lhes torna como necessária correspondendo no físico à fraqueza que temos notado no moral Andrade 1839 p6 Além de não ter capacidade mental para o mundo público a mulher também não têm capacidade física só lhe restando permanecer no lar Andrade segue afirmando que ao homem cabe lidar com a natureza e com os entes animados através da força e da inteligência À mulher só resta o poder de sedução em relação ao homem A seguinte frase atribuída a Cabanis corroboraria sua hipótese Se a fraqueza dos músculos da mulher a proíbe de descer ao ginásio e ao hipódromo as qualidades de seu espírito lhe proíbem mais imperiosamente ainda de se apresentar no Liceu ou no Pórtico Andrade 1839 p 5 Certamente há referências a mulheres inteligentes cultas e famosas Mas estas como toda exceção só confirmam a regra Além disso seu principal pecado é terem deslizado dos deveres que a sociedade e a natureza lhes impuseram ou seja a maternidade e o cuidado da família Amar é o grande objetivo de sua existência o que já é prédeterminado pela natureza É por isso que desde cedo a menina se interessa por bonecas desenvolvendo um sentido que aplicará mais tarde ao marido e aos filhos É também a natureza que determina um certo mioloantroppmd 10022010 1445 410 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 411 tipo de qualidades bem particulares A dissimulação a arte de agradar a coquetterie e mesmo o choro a timidez e o pejo são artefatos dos quais a mulher lança mão para atrair o sexo oposto Andrade reprova a atitude de alguns homens que têm sido pouco indulgentes com estas manifestações da natureza feminina agindo como se as mulheres fossem culpadas responsáveis por esse tipo de comportamento Andrade 1839 p 5 Quanto ao aparelho reprodutor feminino Andrade descreve as diferenças em relação ao masculino ao mesmo tempo em que nos dá uma noção das dúvidas que persistiam para a medicina naquele momento O autor afirma que na mulher os órgãos da geração estão dispostos de uma maneira diversa daquela que estão no homem e para a realização de todos os eventos da geração o corpo feminino dispõe de quatro aparelhos germinação gestação copulação e lactação Merece destaque o comentário feito a respeito dos ovários sobre os quais não se sabia grande coisa mas notavase que quando não se desenvolviam adequadamente a mulher assumia uma forma ambígua se aproximando do homem O mesmo aconteceria com o homem que tivesse perdido os testículos Andrade 18393 Percebese um forte enraizamento das diferenças na anatomofisiologia que vai ser mais detalhado a partir da época da puberdade Andrade 1839 referese a essa fase como o momento em que a menina começa a respirar o doce e imperioso sentimento da reprodução Esse sentimento mioloantroppmd 10022010 1445 411 412 traduzido nos gozos do amor e da amizade está relacionado com uma compensação que a natureza oferece aos incômodos implicados na conservação da espécie Durante a puberdade a natureza inaugura essas sensações e dessa forma prepara a economia da mulher para o exercício da função reprodutiva Duas ordens de fenômenos intimamente ligados se desenvolvem fenômenos físicos e fenômenos intelectuais ou cerebrais Estes últimos são os precursores dos outros Referemse a uma mudança nos interesses da menina Mesmo ainda sem ter tido a sua primeira menstruação ela sofre um processo de transformação que se caracteriza pela atenção que passa a dedicar ao sexo oposto e pela necessidade de amar que brota em seu espírito Os jogos de sedução passam a governar seu comportamento Isso nada mais é do que um artifício da natureza A menina aprende a se fazer de difícil para se tornar mais desejada Dos diversos meios que emprega para esse fim resulta uma nova qualidade a dissimulação A dissimulação que não é efeito da educação mas sim inerente à organização feminina revela um estado de perfeição das faculdades intelectuais na mulher No homem ela deve ser reprovada como uma prova de fraqueza e corrupção enquanto que na mulher quando diretamente dirigida deve ser estimada como consequência de sua fraqueza de sua modéstia de seu pejo e dos impulsos do amor qualidades de cujo equilíbrio depende a perfeição de seu sexo Andrade 1839 p 13 mioloantroppmd 10022010 1445 412 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 413 Quanto aos fenômenos físicos tratase do processo através do qual a natureza vai desenhando as formas específicas de cada sexo Na mulher as formas vão se tornando mais salientes e os genitais vão adquirindo maior importância na economia corporal como descreve o parágrafo que segue Tornandose os genitais centro de uma nova excitação e parecendo reunir em si toda a sensibilidade ou como foco das forças vitais de secundários tendem a ocupar agora o primeiro lugar nas operações da economia então os ovários e o útero refletindo o excesso de excitação de que são sede para as partes com quem estão ou direta ou simpaticamente relacionados dãolhes uma nova forma na marcha funcional ao mesmo tempo os órgãos sexuais externamente desenvolvem maior volume Andrade 1839 p 1415 A puberdade é entendida como uma época em que algumas doenças podem aparecer assim como outras podem ser curadas Tudo depende de como essa fase é administrada Perturbações como a clorose a histeria a loucura a ninfomania que dependem da desarmonia de diversos sistemas do organismo podem aparecer É preciso seguir certas regras higiênicas que impeçam estas manifestações Moderar a energia despendida com o sistema nervoso e intelectual é fundamental O colégio pelo convívio que oferece e pela exigência intelectual deve ser preterido em prol da instrução fornecida pela própria mãe da menina Andrade 1839 p 2128 mioloantroppmd 10022010 1445 413 414 A tese de José J Firmino Junior 1840 aprofunda a descrição do sistema das diferenças evidenciando o poder de raciocínio a força física e o movimento para o homem a função reprodutiva o repouso e a quietude no caso da mulher um vive para usar de seu extremo mais elevado no outro parece que tudo é sacrificado ao livre exercício da função da reprodução a natureza indica àquele o poder de raciocínio o emprego das forças físicas e a esta a quietação o repouso mesmo uma razão puramente mecânica esteia esta ordem natural porque sendo o corpo do homem mais longo que o da mulher e estando o centro de gravidade dele mais elevado que o dela deve ela procurar conservarse estacionária e ele entregar se aos trabalhos e atos de movimentos e tanto esta idéia merece consideração quanto a mulher cujo corpo aproximase mais ao daquele imitao e segueo nos seus trabalhos e funções Firmino Junior 1840 p 2 Esse autor também recorre à imagem da pirâmide inversa para ilustrar a comparação entre os corpos de homens e mulheres E faz precisões quanto às diferenças inerentes a todas as partes que compõem o organismo Quanto aos ossos por exemplo afirma que qualquer anatomista seria capaz de discernir os que pertencem à mulher ou ao homem Os músculos na mulher são mais fracos pequenos e delgados e terminam em tendões mais finos Não são próprios a suportar grandes esforços Uma espécie de atrofia fisiológica ataca os músculos do corpo feminino com exceção daqueles que mioloantroppmd 10022010 1445 414 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 415 circundam a bacia e as coxas importantes no processo de reprodução No homem o sistema sanguíneo predomina tornandoo mais bem dotado de grandes forças físicas e morais além de uma constituição rígida e seca Na mulher o sistema linfático tornase preeminente transformandoa em um ser mais mole e úmido Mas é quanto ao sistema nervoso que temos uma noção clara da natureza feminina as mulheres são mais sensíveis mais impressionáveis menos aptas para a meditação volúveis inconstantes extremosas em tudo dadas a coisas de pouca ou nenhuma consideração mais eloquentes mais sujeitas a serem vencidas graciosas em todos os seus atos finalmente é no sistema nervoso que reside toda a vida da mulher Firmino Junior 1840 p 5 O autor ainda afirma que os órgãos as necessidades as faculdades e os tipos de exercícios possíveis são absolutamente distintos para homens e mulheres Da mesma forma não pode haver igualdade em suas funções Em oposição ao homem a vida da mulher converge para um único fim que é a reprodução da espécie A puberdade ilustra bem isso na medida em que consiste na época em que a menina deixa de viver para si e tornase propriedade da espécie da posteridade E é exatamente nessa sua missão que ela ganha ares de divindade Sem dúvida o mais importante ato da vida de uma mulher é o da propagação nela ela emparelha com a Divindade enchendo a superfície da terra de seres que lhe são semelhantes assim como o Criador encheu o mioloantroppmd 10022010 1445 415 416 nosso planeta de entes diversos e o imenso espaço que o separa das mais remotas regiões celestes de corpos que estão em perene movimento Talvez possamos dizer sem temor de errar que a mulher é para a procriação do homem o que o Autor do Universo é para todo o mundo Firmino Junior 1840 p 7 Em função do cumprimento dessa tarefa essencial torna se impossível para a mulher a dedicação a outras atividades especialmente aquelas que exigem esforço intelectual Fica portanto manifesto que as ciências as artes as invenções não devem merecer muito a atenção do belo sexo tendo ele uma parte tão ativa e prolongada na propagação muito pouco tempo restarlheia para a meditação a conjectura e as ciências que demandam um aturado estudo e continuada reflexão a mulher a cada momento interrompida pelos expressivos gritos do recémnascido que reclamam socorros a miúdo perturbaria a todo instante a concatenação de suas idéias e raciocínios uma incompatibilidade manifesta existe entre a abstração matemática e as distrações pueris entre a volubilidade de seus pensamentos e a estabilidade de uma questão física enfim entre as faculdades intelectuais e as diversas funções a que por necessidade de sua organização ela é sujeita Firmino Junior 1840 p 7 Assim como a mulher tem a gratificante mas árdua tarefa da procriação ao homem cabe também cumprir um papel produtivo Não foi criado apenas para desfrutar os gozos do mioloantroppmd 10022010 1445 416 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 417 mundo mas para executar todas as tarefas inerentes à esfera do trabalho Assim foi estabelecido pela natureza e assim deve permanecer Afinal percebese logo que as mulheres que pegaram em armas ou se dedicaram a funções masculinas perderam todos os seus encantos femininos o que é prejudicial para a organização da sociedade Firmino Junior 1840 p 8 adverte que cada sexo não deve transgredir as raias de seus deveres limitandose a fazer aquilo que é compatível com a sua organização corporal Só assim a felicidade será possível e completa Esse tipo de entendimento das diferenças leva esses médicos a exigirem dos pais um sério cuidado com a educação das filhas Essa tarefa fundamental para o trabalho de vigilância e direção moral poderia ser resumido na proibição de uma educação intelectual mais aprimorada João de Oliveira Fausto 1846 p 17 por exemplo incita as mães a ajudar a natureza contribuindo para que todos os seus esforços possam ser concentrados nos órgãos genitais Isso significa que a excitabilidade dos outros órgãos deve ser controlada principalmente do cérebro A dedicação aos estudos pode fazer com que todas as energias que deveriam ser empregadas no amadurecimento do aparelho reprodutor sejam desviadas para o cérebro Isso pode causar tanto o retardo no aparecimento da primeira menstruação como problemas para aquelas já menstruadas que insistem em esforços mentais na época do seu ciclo É o que afirma Fausto 1846 p 19 mioloantroppmd 10022010 1445 417 418 É igualmente muito importante que elas não se entreguem durante o corrimento das regras a trabalhos intelectuais e a estudos muito assíduos que estabelecendo uma superexcitação cerebral determinam uma desigual divisão das forças vitais e fazem afluir o sangue para o cérebro José Tavares de Mello 1841 é ainda mais enfático ao condenar a aplicação intelectual das mulheres Esse autor justifica sua posição pela teoria do desvio das forças ao cérebro mas também em função do lugar que a mulher ocupa na sociedade Tristes exemplos atestam todos os dias a inutilidade e até o perigo de obrigar as meninas à cultura da ciências e demonstram os inconvenientes de uma aplicação muito sustentada e a perniciosa influência que ela exerce sobre a saúde A excitação prolongada do cérebro não se limita só a fazer dele o centro exclusivo de ações e movimentos enfraquecendo a energia dos outros órgãos mas o força também a tornarse a sede de uma suscetibilidade que ocasiona cefalgias doenças nervosas e outras muitas afecções que envenenam os mais belos dias da existência das mulheres A espécie de império que exercem na sociedade exige que elas não sejam ignorantes porém não lhes é devido o mesmo grau de instrução dos homens cujos destinos partilham e embelezam O estudo moderado das artes de recreação é o único que lhes convém porém somente como meio de adoçar as tristezas suavizar o mioloantroppmd 10022010 1445 418 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 419 aborrecimento da solidão lançar sobre o curso de sua vida doces e agradáveis distrações de variar enfim os prazeres distraindoas em seus trabalhos Mello 1841 p 15 Tornase evidente como os médicos vinculam dados biológicos como a maternidade a atividades consideradas femininas Os processos observados no corpo feminino nesse caso a menstruação no contexto da puberdade adquirem um peso de extrema importância3 São utilizados de forma a corroborar as teorias a respeito das relações entre os gêneros A hierarquia de funções que prevê como única possibilidade para a mulher o papel de mãe e esposa está ancorada na definição de um conjunto de dados considerados naturais Essa hierarquia condena a educação feminina a partir dos supostos prejuízos que traria à função primordial da mulher a maternidade Educação aliás desnecessária já que aquela função não exige um grande desenvolvimento das faculdades intelectuais A educação implicaria em uma usurpação das forças destinadas à reprodução A mulher que se entrega ao estudo das ciências estaria se dedicando a um empreendimento que não tem razão de ser e prejudicando a ordem natural das coisas Além de tudo por mais que se esforçasse jamais seria capaz de realizar algo produtivo nesse campo Nessa fase do século os médicos sequer discutem a possibilidade da contribuição feminina no mundo extradoméstico O aprofundamento da educação é visto como algo sem sentido por natureza e potencialmente prejudicial4 mioloantroppmd 10022010 1445 419 420 A produção médica sobre a diferença entre os sexos com ênfase na associação entre conformação corporal diferenciada e ilustrada sobretudo com o cérebro e capacidades intelectuais correspondentes segue aparecendo de forma significativa ao longo do século XIX Entre a década de 1840 até o início da década de 1860 se traduz especialmente na preocupação em torno da puberdade e da menstruação Posteriormente aparecerá atrelada também aos temas da menopausa sexo e casamento em teses produzidas nas últimas décadas do século XIX e primeiras décadas do século XX5 GÊNERO E CÉREBRO NO SÉCULO XXI Certamente temos muita facilidade em estranhar o conteúdo das teses apresentadas acima Embora estivessem refletindo a verdade científica da época traduzida em trabalhos com toda a legitimidade acadêmica o passar dos anos nos permite exotizar aquelas considerações sobretudo em função das profundas modificações sociais ocorridas desde então Especificamente no que se refere às relações de gênero as convicções igualitárias mais arraigadas de uns ou a obrigação com o politicamente correto de outros levam a uma peremptória condenação dos evidentes excessos cometidos em nome da ciência Excessos estes relacionados poderíamos dizer hoje com a enfática influência do gênero na produção do conhecimento científico mioloantroppmd 10022010 1445 420 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 421 Gostaria de sugerir que não conseguimos ter a mesma capacidade de estranhamento em relação ao que vemos publicado hoje Evidentemente é óbvio que um oceano de descobertas nos separa daquele momento e não se pretende negar isso Contudo o que importa aqui é discutir a natureza das conexões em jogo e o modo como o gênero entra em cena nos trabalhos que pretendem tratar da diferença entre homens e mulheres ou mais especificamente do cérebro de cada um Nesse caso vou privilegiar textos de divulgação científica6 É evidente que não são diretamente comparáveis em termos formais a teses produzidas no século XIX Mas exatamente por isso revelam uma grande transformação que precisa ser apontada Atualmente nos constituímos em uma sociedade ávida pelo consumo de informação e de artefatos que são colocados à disposição com a chancela de serem resultados do progresso científico A legitimidade da ciência é utilizada o tempo todo na promoção e aquisição de novos recursos para a administração de nossa vida cotidiana As informações traduzidas pela mídia nos fornecem o arsenal básico por meio do qual orientamos e justificamos inclusive a performance de nossos corpos e nossos comportamentos Não é sem razão que temos assistido a um crescimento no número de publicações de divulgação científica tanto livros quanto revistas e suplementos de jornais sem falar é claro dos programas de televisão e sites na internet Um dos temas mais recorrentes nesses veículos tem sido as supostas diferenças mioloantroppmd 10022010 1445 421 422 entre homens e mulheres com destaque para o cérebro7 Tomarei como foco de análise exemplos de artigos escritos por pesquisadores mas voltados ao grande público que parecem expressar de maneira contundente esse tipo de fenômeno Foram escolhidos porque incidem exatamente sobre o tema em questão ou seja a preocupação em definir as diferenças de gênero em termos biológicos Escolhi para analisar especificamente neste item um volume do periódico Viver Mente e Cérebro8 a edição de março de 2005 número 146 cujo título é Diferenças entre os sexos muito além dos fatores culturais a diversidade entre homens e mulheres é inata Vale acrescentar que a revista publicou também uma Edição Especial número 10 sem data intitulada A trégua dos sexos bases neurais cognitivas e hormonais determinam divergências entre homens e mulheres além deste tema aparecer constantemente no seu quadro de matérias9 Notase já com os títulos a preeminência do inato sobre a cultura e a reafirmação da diferença De um modo geral os artigos tratam do fato de que haveria uma pequena diferença essencial entre homens e mulheres em função de tipos de cérebro diferentes A censura do politicamente correto faz com que se reafirme a idéia de que é apenas uma pequena diferença mas que é o tempo todo qualificada como inata e essencial Além disso temse o cuidado de tentar valorizar as qualidades que seriam específicas de cada sexo Depois das ressalvas vão se opondo uma série de mioloantroppmd 10022010 1445 422 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 423 características como uma maior facilidade para localização espacial dos homens e uma maior capacidade comunicativa por parte das mulheres ou maior capacidade de sistematização para os primeiros e empatia para as segundas10 Tudo isso com base em estudos recentes que estariam conseguindo provar que as diferenças não seriam decorrentes da socialização mas teriam uma origem biológica O artigo de Markus Hausmann doutor em psicologia trabalha no Instituto de Neurociência Cognitiva da Faculdade de Psicologia da Universidade do Ruhr em Bochum Alemanha começa afirmando que se há muito tempo os cientistas cognitivos suspeitavam que homens e mulheres pensam de modo diferente hoje dispõem de dados biológicos que confirmam isso O autor atesta que mais importante do que considerar que o córtex cerebral feminino possui cerca de 35 bilhões de neurônios a menos do que o masculino uma diferença de 16 é tratar das diferenças em regiões cerebrais específicas Como exemplo cita que os núcleos neuronais apresentam grande diferença de tamanho nos hipotálamos masculino e feminino região que participa do controle do sistema hormonal e influencia comportamento sexual e reprodução Acrescenta que Também os feixes de fibras nervosas que ligam os dois hemisférios cerebrais parecem diferir nos dois gêneros São essas comissuras que possibilitam a comunicação entre os hemisférios esquerdo e direito A maior dessas mioloantroppmd 10022010 1445 423 424 conexões o corpo caloso com pelo menos 200 milhões de fibras nervosas parece mais robusta nas mulheres sobretudo em sua porção posterior O mesmo acontece com outras conexões menores entre os hemisférios cerebrais Isso permite supor que no cérebro feminino os dois hemisférios interagem com maior intensidade Além disso nas mulheres os dois hemisférios são mais parecidos do que nos homens Neles a diferenciação entre os hemisférios é mais nítida tanto pelo tamanho de determinadas estruturas como pela forma e pelo curso de muitos sulcos cerebrais Hausmann 200542 43 O autor então se pergunta se essas diferenças estruturais refletiriam na capacidade do cérebro E o interessante é que apesar de toda a preocupação com a correção política e mesmo da sintomática utilização do termo gênero em situações em que parece estar se referindo a sexo ainda perpassa uma hierarquia de valor na comparação entre homens e mulheres É o que aparece quando descreve que a assimetria funcional relação entre a função exigida e o hemisfério cerebral utilizado é mais pronunciada nos homens do que nas mulheres Enquanto elas recorrem a regiões cerebrais de ambos os hemisférios nas tarefas lingüísticas ou relacionadas à orientação espacial os homens tendem a restringir sua atividade neurológica a um dos lados Hausmmann 2005 nesse ponto recorre à dúvida sobre o que seria melhor mas evidentemente acaba privilegiando os detentores da assimetria mioloantroppmd 10022010 1445 424 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 425 É difícil definir qual princípio de organização é melhor a simetria ou assimetria O cérebro assimétrico é capaz de processar informações com rapidez em regiões contíguas sem precisar enviálas para o outro lado Quanto menores as distâncias entre as regiões cerebrais no interior de uma associação neuronal tanto mais rapidamente elas processarão as informações uma clara vantagem da assimetria Hausmann 200543 A vantagem da organização cerebral simétrica estaria reduzida a uma menor propensão a distúrbios em caso de lesão a um único hemisfério Mas é preciso chamar a atenção para que não se trata de uma qualidade constitutiva Na verdade quando entra em jogo o que importa o que é constitutivo faz se referência ao papel dos hormônios11 O autor apesar da ressalva de que os dois sexos dispõem de hormônios masculinos e femininos afirma que a diferença biológica entre homem e mulher se baseia na economia hormonal desde antes no nascimento É o que demonstram exames feitos em bebês antes ou logo após o nascimento expostos a uma alta concentração de hormônios sexuais em razão por exemplo da chamada hiperplasia adrenal congênita HAC Essa enfermidade acarreta um exuberante aumento no nível de hormônios sexuais masculinos Meninas afetadas por essa doença possuem genitália masculinizada o que em geral pode ser corrigido muito cedo com cirurgia A terapia hormonal pode fazer com mioloantroppmd 10022010 1445 425 426 que a secreção de mensageiros químicos masculinos seja atenuada Pessoas que passaram por esse fluxo hormonal intenso até pouco antes do nascimento são o alvo ideal da pesquisa científica nesse caso diferenças posteriores em suas capacidades mentais podem ser atribuídas à influência hormonal precoce e por um período de tempo bastante limitado Os primeiros exames com meninas com HAC relataram inteligência acima da média Hoje se sabe que isso se deve sobretudo às capacidades relacionadas à orientação espacial um dos típicos pontos fortes masculinos Hausmann 2005 p 44 Notamos então uma associação entre hormônios masculinos cérebro masculino e maior inteligência mesmo quando a descrição é feita a partir da exceção de meninas masculinizadas O tema da influência dos hormônios está ganhando cada vez mais espaço e nesse número de Viver Mente e Cérebro que estou analisando consta um artigo especialmente dedicado à influência do estrogênio nas mais diversas capacidades cognitivas de homens e mulheres Ulrich Kraft médico e colaborador da revista GehirnGeist apresenta a questão da seguinte forma o estrogênio influencia diversas esferas cognitivas como aprendizado memória e comportamento Afinal independentemente de estereótipos e clichês não há como ignorar a pequena diferença entre os sexos no tocante à prevalência de certos talentos específicos em homens e mulheres Hormônios sexuais dão aí sua contribuição e disso existe comprovação bastante mioloantroppmd 10022010 1445 426 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 427 convincente nas mulheres determinadas capacidades cognitivas se alteram de acordo com o nível do hormônio Kraft 2005 p 4748 Esta descoberta é exemplificada com um teste de rotação mental por exemplo girar mentalmente uma figura geométrica usado para avaliar a capacidade de visualização espacial realizado pelo biopsicólogo alemão Onor Güntürkün com mulheres em diferentes fases do ciclo menstrual Durante a menstruação quando os hormônios sexuais se encontram em níveis mais baixos as mulheres se saíram tão bem quanto os homens do grupo de controle Mas quando os níveis de estrogênio sobem no final do ciclo o desempenho delas caiu sensivelmente Contudo no teste realizado paralelamente para encontrar palavras apropriadas a performance foi melhor Como conclusão temos que Os resultados comprovam que as habilidades espaciovisuais das mulheres não são em essência inferiores às dos homens o que ocorre com elas é antes uma oscilação mais forte do nível de estrogênio no cérebro deslocando a ênfase de um talento para outro Kraft 2005 p 48 Além dessa oscilação periódica que caracterizaria a capacidade cognitiva das mulheres digase de passagem tão ao gosto dos escritos médicos do século XIX acrescentarse ia uma deficiência mais acentuada a partir da menopausa Nesse caso é feito referência ao trabalho de Bruce McEwn neuroendocrinologista da Universidade Rockefeller mioloantroppmd 10022010 1445 427 428 pesquisador que defende uma espécie de terapia de reposição hormonal para o cérebro da qual se beneficiariam sobretudo as mulheres de mais idade Kraft 200550 Nessa linha da conexão entre as descobertas sobre as diferenças cerebrais e hormonais entre homens e mulheres e a prescrição de recomendações nada supera o artigo de Hartwig Hanser12 intitulado Diferentes desde o nascimento São várias páginas dedicadas a demonstrar que sociólogos pedagogos e psicólogos estariam errados em explicar as diferenças por meio da socialização Desde o final dos anos 60 segundo o autor já teríamos pesquisas comprovando que diferenças comportamentais ligadas ao sexo já se manifestariam desde o nascimento Hanser relata que Aos seis meses de idade já fica evidente que impor a própria vontade é mais relevante para eles do que para as meninas e são eles que mais freqüentemente tomam os brinquedos de outras crianças Com um ano Ana e suas amiguinhas gostam de brincar com ursinhos e bonecas enquanto Félix e seus amiguinhos preferem carrinhos e outras máquinas qualquer coisa que faça algum tipo de movimento Eles também se interessam mais por coisas proibidas têm maior tendência a desobedecer a regras e a fazer coisas arriscadas e a partir dos três anos gostam de lutar Hanser 2005 p 32 33 Ainda segundo o autor essas diferenças estariam no centro das discussões sobre igualdade de oportunidades entre homens e mulheres e têm sido erroneamente abordadas através da mioloantroppmd 10022010 1445 428 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 429 influência do meio social Com o auxílio de referência a padrões evolucionários Hanser propõe que a nossa disposição natural tem um peso bem maior do que tem sido considerado E se certos comportamentos são mais fáceis para os homens e certos objetivos são mais gratificantes para as mulheres agir contra essas inclinações naturais representaria um grande esforço e dispêndio de energia Além disso ao final poderíamos não nos sentir tão contentes quanto o esperado pois nosso mecanismo de gratificação interna não corresponde tão bem à situação criada Hanser 2005 p 39 Como não poderia deixar de ser o tema da educação passa a ser um alvo central e tem destaque sobretudo a discussão em torno do modelo de escola a adotar misturando ou separando meninos e meninas com um preferência do autor por este último padrão e do tipo de habilidades a incentivar Depois de sistematizar dados de pesquisas a respeito pontifica que Uma coisa no entanto está clara o tão propalado tratamento igualitário como remédio para a discriminação contra as mulheres só funcionaria se meninos e meninas não fossem essencialmente diferentes Na realidade eles são por natureza tão distintos que o tratamento igualitário se torna contraproducente Hanser 2005 p 39 Para concluir o artigo Hanser faz uma curiosa oscilação entre defender a adoção de comportamentos masculinos pelas mulheres e femininos pelos homens já que estas exigências mioloantroppmd 10022010 1445 429 430 estão tão difundidas o fundamento das diferenças em um substrato biológico e uma possível flexibilidade que parece mais retórica do que efetivamente considerada As mulheres devem se impor com maior firmeza na competição com os homens e os homens devem empenharse no cuidado das crianças essas exigências estão hoje muito difundidas e se tornaram quase lugar comum Mas para que os indivíduos tenham sucesso nessas empreitadas eles devem estar bem conscientes de que impedimentos internos a essas atividades podem estar fundados em nosso substrato biológico embora não de maneira alguma inflexível Hanser 2005 p 3913 Vale ainda acrescentar que cuidar das crianças para os homens e resistir ao insucesso e ter autoconfiança para as mulheres corresponde a desenvolver conscientemente os aspectos negligenciados pela Mãe Natureza Hanser 2005 p 39 Ou seja reafirmase na última frase do artigo a noção de que uma maior aproximação no cumprimento de tarefas sem falar em luta por igualdade implicaria em ir contra o que afinal a Mãe Natureza havia prescrito AS SURPREENDENTES CONTINUIDADES Espero que com a descrição apresentada acima possa sugerir também um estranhamento em relação ao que hoje em dia costumeiramente nos meios de divulgação científica costumase definir como a pequena diferença entre homens e mulheres Percebese uma reencenação do contraste físico mioloantroppmd 10022010 1445 430 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 431 entre os sexos em virtude do cérebro e da conseqüente assimetria entre os gêneros Mais uma vez para além das possíveis diferenças existentes o que importa aqui é refletir sobre a insistência na descoberta e na explicação naturalizante dessas diferenças Mesmo acreditando que hoje saberíamos muito mais sobre o corpo e o cérebro e a relação com o comportamento do que em meados do século XIX estamos ainda muito longe de chegar a uma verdade definitiva se é que ela seria possível Ou pelo menos estamos distantes do estabelecimento de paradigmas consolidados nesse domínio do conhecimento ainda tão recente que é a neurociência14 Cabe chamar a atenção para o fato de que os próprios cientistas atestam que ainda estariam engatinhando no que se refere ao potencial futuro de descobertas quanto ao cérebro Além disso constantemente reafirmam a flexibilidade desse órgão em adaptarse a novas situações O que é curioso então é que apesar dessas ressalvas e especialmente no que se refere ao gênero mas não só temos uma suposição de que estão sendo traduzidas para o público leigo as grandes verdades científicas sobre as diferenças Surpreendentemente o tom se assemelha muito ao que aparece nas teses de medicina do século XIX A diferença é que aos nossos olhos de hoje parece difícil acreditar que aqueles médicos sabiam o que estavam dizendo principalmente no que diz respeito às variações cerebrais Já no contexto atual embora se admita formalmente a insipiência do conhecimento mioloantroppmd 10022010 1445 431 432 produzido na versão mais difundida observamos o privilégio a um tom de certeza como se de fato soubéssemos como cérebro e diferenças de gênero se associam em relações de causalidade Embora a controvérsia caracterize e seja um dos principais componentes impulsionadores da produção do conhecimento e marque muito fortemente esse campo hoje o que consumimos nas bancas de jornais e revistas são supostas verdades que explicariam e justificariam a assimetria entre homens e mulheres A constatação da permanência dessas idéias e da sua expressão de forma contundente em momentos tão distintos como meados do século XIX e início do século XXI leva a supor que algum tipo de mecanismo muito resistente pode estar em cena embora bastante modificado pela passagem do tempo Sugiro que estamos assistindo a uma nova remodelagem da reafirmação do dualismo de gênero agora repaginado com as cores da neurociência Tratase do que poderíamos chamar de uma substancialização da diferença caracterizada pelo enraizamento constantemente renovado do gênero em determinadas marcas corporais Quando analisamos a produção médica e científica sobre a mulher e sobre a diferença entre os sexos de uma perspectiva de mais longa duração notamos focos importantes desse processo Se no século XIX tínhamos uma insistência nas diferenças anatômicas e fisiológicas atribuídas aos corpos de homens e mulheres com o passar dos anos temos a mioloantroppmd 10022010 1445 432 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 433 transferência do interesse para os hormônios Já nas primeiras décadas do século XX serão esses mensageiros químicos os responsáveis pelas atribuições das características fundamentais aos dois sexos A idéia de que haveria hormônios masculinos e hormônios femininos embora questionada já a partir da década de 1920 permanece até hoje como explicação legítima para distinções inclusive no que se refere ao comportamento e às capacidades cognitivas Como vimos na segunda parte deste artigo aos hormônios é designado um papel imprescindível no processo de diferenciação cerebral ajudando a converter o cérebro no novo foco de substancialização da diferença Para finalizar gostaria de insistir no argumento de que importa menos para o debate em torno do gênero se de fato existem diferenças e muito mais o que se tem feito com elas ou melhor dizendo a partir da suposição de que elas existem Quase sempre que uma gramática naturalizante da diferença é acionada tem sido para falar em nome da imutabilidade É como se atribuir adjetivos como hormonal ou cerebral servisse ao propósito de atestar o caráter natural intrínseco e cristalizado das diferenças Esse processo talvez longe de espelhar um conhecimento último sobre o corpo e suas variações reflete uma verdadeira obsessão com o esquadrinhamento e manutenção das diferenças de gênero Revela também que uma reconsideração sobre a qualidade imutável de certos atributos tende a ser percebida como uma séria ameaça E é justamente porque se suspeita que essas mioloantroppmd 10022010 1445 433 434 diferenças conhecidas não sejam tão substancializáveis ou definitivas que tanto se insiste na procura de novos fatos irredutíveis Em um momento em que tanto no plano acadêmico e científico quanto no plano do ativismo tanto se questiona ou problematiza a naturalização das diferenças assistimos também a tentativas de reembasamento delas na biologia Nada mais apropriado pareceria no contexto atual do que a eleição do cérebro como foco de novas descobertas a este respeito O surpreendente talvez seja o fato de que o cerne desses achados já aparecesse notavelmente descrito em trabalhos do século XIX Além disso não deixa de causar espanto também que a assimetria de valor nas descrições das características atribuídas a cada sexo seja por exemplo no cérebro do século XIX ou no cérebro do século XXI caminhe sempre na mesma direção Tanto naquele momento como agora e apesar de se reconhecer as qualidades de cada um o sinal de mais vantajoso na escala de valores continua sendo insistentemente posicionado no lado masculino Precisamos ainda refletir muito sobre as razões da necessidade de enxergar e prescrever essa pequena diferença essencial 1 Para uma discussão detalhada das teses apresentadas à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro entre 1833 e 1940 considerando as questões relativas ao gênero ver Rohden 2001 NOTAS mioloantroppmd 10022010 1445 434 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 435 2 Sobre a importância dos nervos e da configuração do nervoso com uma descrição pormenorizada deste modelo ver Duarte 1986cap3 3 Russett 19952831 aponta as mesmas características para a produção científica angloamericana 4 Esta discussão é bastante citada pelos autores que estudam a medicina sobre a mulher no século XIX pelo menos desde a década de 1970 quando foi publicado o trabalho de V Bullough e M Voght 1973 Nesse artigo destacase a grande produção de teorias sobre a menstruação elaboradas pelos médicos norteamericanos no final do século XIX que incidiam sobre a impossibilidade natural da mulher se dedicar aos estudos Para os autores esse argumento ganha impulso na medida em que os próprios médicos se vêem diretamente ameaçados pela reivindicação de entrada das mulheres nas faculdades de medicina e na profissão médica 5 A partir de 1890 os temas da puberdade e da menstruação voltam a interessar mais os médicos Temos várias teses artigos e livros sobre esses assuntos Esses trabalhos se dedicam a redefinir as modificações causadas na mulher com a chegada do ciclo menstrual a partir de novas descobertas ou novas teorias centradas por exemplo em uma definição mais precisa seja da relação entre menstruação e ovulação seja da importância dos hormônios Rohden 2001 6 A revista ComCiência Revista eletrônica de jornalismo científico editada pelo LabjorSBPC dedicou a sua edição especial de número 100 em 100708 ao tema da divulgação científica Disponível em wwwcomcienciabr em 270409 7 Em levantamento realizado com a revista Veja encontramos as mioloantroppmd 10022010 1445 435 436 seguintes matérias onde a diferença sobretudo cerebral tem destaque Frisson cerebral a beleza feminina causa sim reações primitivas nos homens Veja 05 de dezembro de 2001 O sexo oprimido Veja 01 de outubro de 2003 O cérebro devassado o cérebro deles e delas Veja 04 de agosto de 2004 Diferentes mas unidos Por que nelas o QI alto atrapalha o casamento e nos homens ajuda Veja 02 de março de 2005 A atração está no cheiro estudo explica como sexos se atraem e reforça a tese da origem biológica do homossexualismo Veja 18 de maio de 2005 Eles vão ficar impossíveis estudo divulgado na Inglaterra mostra que o QI dos homens é em média 5 pontos mais alto do que o das mulheres Veja 31 de agosto de 2005 Enfim a ciência entendeu a mulher Uma revolução muda quase tudo na forma como a medicina trata o corpo feminino Veja 07 de março de 2007 A diferença se vê no cérebro descoberto que os homossexuais são mais parecidos com pessoas do sexo oposto Veja 25 de junho de 2008 Conferir também em outros veículos O sentido das diferenças Ciência mapeia as diferenças fisiológicas e de comportamento para ajudar a medicina e a convivência entre homens e mulheres Caderno Folha Equilíbrio Jornal Folha de São Paulo 18 de março de 2004 Como pensam as mulheres Uma neuropsiquiatra aponta as razões biológicas que tornam o cérebro feminino diferente do masculino Revista Época 29 de janeiro de 2007 e o Sexo dos neurônios caderno Ciência e Vida do O Globo 08 de outubro de 2006 8 De acordo com página da revista na internet Viver Mente e Cérebro é uma publicação mensal que apresenta as mais recentes descobertas de pesquisas de ponta nos diversos ramos das neurociências da psicologia da psicanálise e da psiquiatria Suas reportagens e artigos são assinados por cientistas escritores e jornalistas de vários países e abordam em profundidade temas como mioloantroppmd 10022010 1445 436 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 437 inteligência consciência emoções motivação cognição percepção personalidade e criatividade informação disponível em wwwmultiversocombr em 270409 A revista reproduz conteúdo internacional fornecido pela Gehrin Geist com autorização da Scientific American e é editada pela Ediouro Segmento Duetto Editorial 9 Em 2008 foi lançada uma série especial de quatro volumes intitulada Sexos cujo objetivo era lançar múltiplos olhares para a sexualidade humana em seus aspectos neurobiológico evolutivo subjetivo antropológico e sociocultural informação disponível em wwwlocawebcombrclubeduetto em 270409 10 No caso do cérebro feminino como agente da empatia e do masculino como agente da sistematização a referência constantemente citada é o livro Diferença essencial a verdade sobre o cérebro de homens e mulheres de Simon BaronCohen 2004 11 Sobre a história dos hormônios sexuais desde uma perspectiva crítica ver Oudshoorn 1994 Sinding 2003 Gaudilliére 2003 Löwy 2003 e Rohden 2008 12 Na apresentação do autor temos as seguintes referências é doutor em bioquímica e redator da GehirnGeist Richard seu filho de três anos é fascinado por automóveis não se interessa por bonecas e faz questão de lutar todas as tardes com o papai Hanser 2005 p 36 13 A perspectiva de que precisamos entender melhor nossas diferenças naturais inclusive para dar uma vida mais satisfatória às mulheres é desenvolvida pela neuropsiquiatra norte americana Louann Brizendine no seu livro Como as mulheres pensam 2006 14 Sobre a neurociência e a criação do chamado sujeito cerebral ver Vidal 2005 Quanto à recorrência da imagem do cérebro na mídia e na cultura popular dentro de um contexto de análise mais geral sobre a história da visualização médica do corpo ver Ortega 2008 mioloantroppmd 10022010 1445 437 438 ANDRADE João Chagas e A puberdade na mulher Rio de Janeiro Tese da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1839 BARONCOHEN Simon Diferença essencial a verdade sobre o cérebro de homens e mulheres Rio de Janeiro Objetiva 2004 BRIZENDINE Louann Como as mulheres pensam Rio de Janeiro Elsevier 2006 BULLOUGH Vern e VOGHT Martha Women menstruation and nineteenthcentury medicine Bulletin of the history of medicine XLVII1 1973 6682 DUARTE Luiz Fernando Dias Da vida nervosa nas classes trabalhadoras urbanas Rio de Janeiro Zahar 1986 FAUSTO João de Oliveira Acerca da menstruação seguida de regras higiênicas relativas às mulheres menstruadas Rio de Janeiro Tese da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1846 FAUSTOSTERLING Anne Sexing the body gender politics and the construction of sexuality New York Basic Books 2000 FIRMINO JUNIOR José Joaquim Sobre a menstruação precedida de breves considerações sobre a mulher Rio de Janeiro Tese da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1840 GAUDILLIÈRE JeanPaul La fabrique moléculaire du genre hormones sexuelles industrie et médecine avant la pilule Cahiers du Genre n 34 2003 5781 HANSER Hartwig Diferentes desde o nascimento Revista Viver Mente e Cérebro São Paulo Ediouro n 146 2005 3239 HAUSMANN Markus Questão de simetria Revista Viver Mente e Cérebro São Paulo Ediouro n 146 2005 4045 JORDANOVA Ludmilla J Sexual Visions Images of gender in science and medicine between the Eighteenth and Twentieth centuries The University of Wisconsin Press 1989 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS mioloantroppmd 10022010 1445 438 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 439 KRAFT Ulrich O poder do feminino Revista Viver Mente e Cérebro São Paulo Ediouro n 146 2005 4651 LAQUEUR Thomas Inventando o sexo corpo e gênero dos gregos a Freud Rio de Janeiro Relume Dumará 2001 LOWY Ilana Intersexe et transsexualités les technologies de la medicine et la separation du sexe biologique du sexe social Cahiers du Genre n 34 2003 81105 MELLO José Tavares de A higiene da mulher durante a puberdade e aparecimento periódico do fluxo catamenial Rio de Janeiro Tese da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1841 ORTEGA Francisco O corpo transparente para uma história cultural da visualização médica do corpo In O corpo incerto corporeidade tecnologias médicas e cultura contemporânea Rio de Janeiro Garamond 2008 69184 OUDSHOORN Nelly Beyond the natural body an archeology of sex hormones London Routledge 1994 ROHDEN Fabíola O império dos hormônios e a constituição da diferença entre os sexos História ciências saúde Manguinhos 2008 133152 ROHDEN Fabíola Uma ciência da diferença sexo e gênero na medicina da mulher Rio de Janeiro FIOCRUZ Coleção Antropologia e Saúde 2001 RUSSETT Cynthia E Sexual science The Victorian construction of womanhood Cambridge Harvard Univ Press 1995 1989 SINDING Christiane Le sexe des hormones lambivalence fondatrice des hormones sexuelles Cahiers du Genre n 34 2003 3981 VIDAL Fernando Sujet cerebral In ANDRIEU Bernard org Dictionnaire du corps Paris Eds du CNRS 2005 485486 WIJNGAARD Marianne Van Den Reinventing the sexes the biomedical construction of feminity and masculinity BloomingthonIndianapolis Indiana University Press 1997 mioloantroppmd 10022010 1445 439 mioloantroppmd 440 10022010 1445 O livro O nervo cala o nervo fala A linguagem da doença publicado em 2000 que foi originalmente uma dissertação de mestrado em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina tornouse uma referência nos estudos antropológicos de saúde e especificamente sobre doença dos nervos no Brasil Sua autora a médica sanitarista Maria Lúcia da Silveira é professora aposentada do Departamento de Saúde Comunitária da Universidade Federal do Paraná e doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná Em seu livro Maria Lucia da Silveira aborda a doença dos nervos entre as mulheres moradoras de uma comunidade de origem pesqueira de Florianópolis articulando essa experiência de perturbação com fatores da vida cotidiana e familiar dessas mulheres distanciandose de sua própria formação naturalista e objetivista como ela própria define e buscando compreender as dimensões sociais da experiência NERVOS E NERVOSAS NO CONTEXTO DAS AFLIÇÕES CONTEMPORÂNEAS ENTREVISTA COM MARIA LUCIA DA SILVEIRA Carmen Susana Tornquist Sônia Weidner Maluf mioloantroppmd 10022010 1445 441 442 de adoecimento Maria Lucia mergulha fundo nos relatos e narrativas das mulheres sobre seu drama seus ataques e sensações físicas e emocionais ligadas a essa experiência assim como a suas estratégias de alívio e reorganização da vida cotidiana Sem ter suas queixas acolhidas ou levadas a sério pelos médicos e pelo sistema médico em geral as mulheres nervosas acabam muitas vezes sendo tratadas com calmantes ou mesmo placebos Aquilo que aparece como um idioma que expressa dimensões pessoais e sociais dando visibilidade a dramas relacionais e sociais em que questões de uma configuração hierárquica de gênero vêm à tona ao ser medicalizado domesticado pelas drogas em que pesem ser medicamentosas perde essa visibilidade social tirando de cena não só um dos atores mais destacados mas o próprio drama social1 Nesta entrevista Maria Lucia faz um balanço de seu trabalho quase dez anos após sua publicação buscando articular a questão dos nervos e do nervoso com o contexto atual de disseminação da depressão como a língua social das aflições contemporâneas e do uso de medicamentos psicotrópicos principalmente por mulheres O seu trabalho sobre as nervosas do Campeche foi feito há mais de dez anos mas já naquela época apontava para o crescente uso de remédios controlados requerentes de receita médica por parte das mulheres nervosas Como você vê hoje este trabalho considerando a expansão extraordinária do consumo de psicotrópicos no Brasil mioloantroppmd 10022010 1445 442 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 443 Naquela época não só o meu trabalho mas muitos outros já alertavam para o excesso e a facilidade de obtenção de psicotrópicos e de outros medicamentos cujo uso deveria ser controlado com rigor devido a seus efeitos indesejáveis porém em que pesem as medidas restritivas que os serviços de vigilância sanitária vêm adotando o uso indevido e abusivo continua Enfatizo o uso indevido porque uma das vertentes do abuso medicamentosos é a medicalização da vida e dos sofrimentos corriqueiros da vida cotidiana nem todos qualificáveis como sendo da competência médica Assim é que frustrações ou mesmo meras insatisfações na vida pessoal ou no trabalho dificuldades de relacionamento privações materiais etc vêm sendo tratadas com calmantes soníferos e outros psicotrópicos Qualquer tristeza ou desânimo até mesmo aqueles atribuíveis unicamente ao cansaço tendem a ser diagnosticados por clínicos psicólogos inexperientes ou menos atentos como depressão e as pessoas recebem antidepressivos desnecessários em dosagens e tempo de prescrição inadequados As pílulas da felicidade circulam abundantemente por aí e nem profissionais nem pacientes se dão conta que não resolvem problemas existenciais afetivos ou relacionais Para esses a abordagem pode até contemplar o uso eventual temporário e muito limitado de medicamentos mas exige muito mais do que isso em termos terapêuticos Já problemas de ordem externa ao indivíduo como os socioeconômicos nessa abordagem no máximo terão sujeitos mioloantroppmd 10022010 1445 443 444 dopados se importando pouco com eles ao invés de alertas e ativos com condições psíquicas de agir em busca da resolução dos mesmos O abuso segue facilitado também pelos esquemas ainda em funcionamento montados para burlar a vigilância e a legislação donos de farmácia mantêm e comercializam esquemas de receitas e formulários de controle previamente assinados e carimbados por médicos tão inescrupulosos quanto eles e com isso fornecem com aparência de legal e com uma suposta atitude benevolente pois parecem facilitar a vida de velhinhos principalmente e de outras pessoas que têm dificuldade de acesso a serviços de assistência saúde Isso sem falar do buraco sem fundo que é o comércio ilegal feito através da internet onde um dos principais atrativos é justamente não precisar de receita médica para adquirir qualquer medicamento Nos últimos cinco anos tenho vivido a experiência de ser paciente e passar boa parte de meu tempo em salas de espera ou de tratamento em clínicas oncológicas ou não o que me colocou na escuta de outros pacientes numa posição interessante uma espécie de pesquisa participante e ali pude confirmar todos os esquemas que as pessoas em sofrimento acionam para acessar livremente medicamentos controlados e como a conivência médica participa dos mesmos Portanto muda um pouco a forma mas o problema continua mioloantroppmd 10022010 1445 444 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 445 Sobre os remédios você observou naquela época que eles circulavam entre as casa e farmácias muitas vezes sem a prescrição médica Como era este processo como as pessoas se apropriavam dos medicamentos e das receitas Naquela época havia um esquema que passava por dentro do aparato médicopsiquiátrico de Florianópolis e funcionava assim pacientes eram encaminhados dos postos de saúde para dois serviços de psiquiatria então existentes no município no Hospital universitário da UFSC e outro remanescente do antigo INAMPS e que os pacientes ainda chamavam de INPS Nestes eram avaliados por um especialista e recebiam uma autorização válida por seis meses para receberem medicação psicotrópica nos postos de saúde Com ela bastava chegar ao posto dentro do período de validade da mesma e receber o medicamento nela indicado sem passar por nova consulta Só que não havia restrições nessa autorização nem um controle central de tal forma que aos pacientes bastava fazer um tour pelos postos de saúde da ilha e até do continente pegando medicamento em vários deles formando assim seu estoque particular de substâncias controladas Não tenho informações atualizadas sobre essa questão em Florianópolis porém minhas observações aqui em Curitiba como exposto acima mostram que a necessidade de ter esse estoque em casa ainda hoje é justificado em parte pela precariedade do sistema público de saúde dificuldades várias de acesso e à insegurança que a possível falta do medicamento no momento necessário traz mioloantroppmd 10022010 1445 445 446 Você poderia falar mais sobre o costume das mulheres do Campeche de fazer pequenos estoques de remédios controlados em casa Uma vez formado seu estoque particular a sua detentora se reveste de alguns poderes em primeiro lugar acha que com eles controla seu próprio sofrer depois pode como frequentemente alegado pelas mulheres entrevistadas ajudar pessoas próximas em situações dolorosas luto perdas emocionais ou materiais que impliquem em grande nervosismo etc Finalmente um poder sobre sua própria vida nenhuma das que entrevistei desconhecia os riscos da sobredosagem e manipulavam as pessoas próximas quando as coisas não lhe eram favoráveis com a ameaça velada ou não de tomarem todos os comprimidos de que dispunham e dessa forma acabarem com o sofrimento de todos Interessante que na minha vivência atual observo as mesmas operações de poder ligadas aos medicamentos entre os pacientes oncológicos neste caso ligado aos analgésicos opiáceos Estabelecem entre si redes de troca e vejo por vezes alguns que não receberam prescrição desses produtos de seus médicos porque ainda não precisavam deles ou porque frente ao profissional foram tímidos em suas falas mas recebem de outro paciente generoso o medicamento que pode até ser contraindicado em seu caso Noto como o paciente doador se reveste imediatamente de uma aura de poder parecida com aquela que enxergam nos médicos e em tudo semelhante àquela percebida nas nervosas em posse de tais produtos mioloantroppmd 10022010 1445 446 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 447 Você poderia contar como lidou com as suas várias identidades mulher mãe médica pesquisadora antropóloga que você analisa no livro Como as mulheres com quem realizava a pesquisa a viam e como você lidou com isto E com os homens As várias identidades acho que lidamos com isso constantemente hoje sou uma médica antropóloga aposentada paciente de câncer em tratamento contínuo há cinco anos filha órfã de pai e com a mãe seriamente afetada pela Doença de Alzheimer mãe de filhas que entram em sua idade adulta e se definem profissionalmente Condições essas que muitas vezes me colocam em situação muito delicada como acontece por exemplo em salas de espera de clínicas onde na maior parte do tempo omito a minha condição profissional para evitar que me solicitem opiniões ou interferências no tratamento de outras pessoas Na pesquisa sobre nervos o entrelaçar das várias Marias Lucias foi por vezes trabalhoso mas no meu entender foi um dos aspectos mais ricos do trabalho e percebi depois me acalmou um conflito trazido dos bancos da escola de medicina lá aprendera até onde isso era possível para uma pessoa passional como eu a ser fria ficar o máximo distante dos problemas das pessoas a não me envolver emocionalmente com pacientes a esquecer que eles eram seres humanos em sofrimento e a encarálos como máquinas avariadas Esta era a regra de ouro segundo a maioria esmagadora dos meus professores para ser um bom médico Claro que tentar seguila sempre pôs a mim própria e creio mioloantroppmd 10022010 1445 447 448 que a muitos outros colegas em situação de sofrimento A maioria nunca mais conseguiu se desvencilhar dessa postura e sofre ou deixa que sua clientela sofra com as suas implicações e nem têm consciência disso O trabalho de campo em epidemiologia que eu desenvolvi por alguns anos para a Secretaria Estadual de Saúde do Paraná já me garantira a oportunidade de afrouxar um pouco essa postura uma vez que me colocava frente a frente com as pessoas e suas condições reais de vida e apontava como muito daquilo que eu aprendera como sendo informação insignificante do ponto de vista médico as emoções e idiossincrasias pessoais influenciava profundamente a saúde Portanto a investigação sobre nervos aprofundou o cisma entre a minha formação profundamente naturalista e as minhas percepções enquanto pessoa cisão esta já apontada em minha própria busca pelas ciências sociais particularmente pelo meu encontro com a antropologia Aliás lembro muito bem da emoção ao ler trabalho etnográfico de Malinowski e saborear a diferença entre esse tipo de relato que na época eu qualifiquei com tendo alma e os secos e frios relatos médicos Bem o quero dizer é que embora em alguns momentos ainda tenha sido um choque as percepções de campo no Campeche foram parte de um processo de crescimento e abertura profissional e como todo processo teve seus momentos de confusão de conflitos e de espelhamento Assim algumas vezes como disse no relato da pesquisa mordi minha língua língua de médica pois estive mioloantroppmd 10022010 1445 448 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 449 a ponto de criticar as entrevistadas por um viés puramente biomédico mecanicista ou quase verbalizei aplausos para a conduta de meus colegas e foram as próprias pacientes que corrigiram meu prumo com suas observações e críticas me fazendo perceber a inadequação das mesmas O fato de ser mulher me permitiu num primeiro momento que conhecendo por dentro o papel feminino eu pudesse me despregar da perspectiva meramente profissional e pudesse desenvolver uma empatia de fato compreensiva e não apenas formal daquilo que me era relatado Depois o espelho generosamente apresentado pelas sofredoras de nervos propiciou à cidadã e à pesquisadora Maria Lucia compreeender melhor seu papel pessoal familiar e social suas dores e sobrecargas ou mais ainda como disse o poeta saber a dor e sobretudo a delícia de ser o que é Mas ser tudo isso implicou em usar em alguns momentos a estratégia de realçar uma dessas identidades ora eu era apenas médica ora eu era a mulher disposta a uma escuta amigável e mesmo a trocar confidências relatar minha própria história ora era a antropóloga diligente buscando o entrecruzar de várias narrativas que passavam também por mim Aposto que se os médicos em seus consultórios pudessem ampliar a escuta permitindo o aflorar da pessoa que precede o profissional essa escuta seria mais profícua menos exames precisariam ser solicitados os diagnósticos seriam mais fáceis e precisos a terapêutica que já teria sido iniciada com o diálogo entre iguais dois seres humanos em comunicação muito mais eficaz Mas mioloantroppmd 10022010 1445 449 450 para isso um conceito ampliado de cura teria que ser importado da antropologia rompendo com o circulo estreito da compreensão biomédica de cura apenas como reparo maquínico Inicialmente acho que eu enfatizava uma dessas identidades para facilitar o acesso e obter mais rapidamente a confiança das entrevistadas à medida que estabelecemos certo vínculo acho que tanto eu mostrava quanto elas percebiam a resultante delas que afinal é o que eu realmente sou Falei pouco com os homens do Campeche sobre a pesquisa um deles um líder comunitário se interessou pelo assunto reconhecendolhe relevância social e como um problema de mulheres facilitou os contatos com outras mulheres e acho que para ele a médica pesquisadora era a identidade mais proeminente O mesmo parece ter acontecido em relação aos outros dois entrevistados como pacientes Já para o dono da farmácia local acho que me recebeu apenas como uma médica quem sabe meio chata cuja pesquisa poderia atrapalhar um pouco seu negócio Nas narrativas e relatos que você escutou sobre os nervos e observou naquela época quais eram os recursos terapêuticos procurados pelas pessoas em relação a suas aflições e sofrimentos dos nervos etc Poderia falar um pouco sobre isto As mulheres e suas famílias lançavam mão de vários recursos muitas vezes simultaneamente e por várias razões suas crenças religiosas ou não e suas concepções sobre o adoecimento as mioloantroppmd 10022010 1445 450 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 451 levavam a itinerários religiosos que também eram buscados por causa da ineficiência dos recursos médicos os serviços médicos eram buscados na tentativa de encontrar razões para esse sofrimento e outros concomitantes e também para dar o aval socialmente aceito para a identidade de doente e como via de acesso aos medicamentos controlados muitas ocasiões exclusivamente para esta finalidade recursos e remédios caseiros eram utilizados baseados em indicações cuja origem se perde na história como é o caso da noz moscada ou de outras substâncias de cheiro forte ou desagradável que se faz o paciente inalar e que nos primórdios da medicina ocidental eram referidos como o tratamento da sufocação uterina sofrimento cuja descrição coincide grande parte com a das nervosas Em relação à assistência médica o contundente nessa pesquisa é a queixa repetida da surdez médica em relação ao sofrimento demonstrada na repetida frase não é nada Reclamando dessa atitude as nervosas desnudam a debilidade médica na escuta dos pacientes em geral mazela que hoje as escolas médicas e alguns serviços tentam reparar através dos movimentos de humanização da medicina mas que encontram inúmeras dificuldades uma delas o excesso tecnológico que afasta o profissional do paciente e cria ilusões de competência médica ilimitada Não quero qualificar a tecnologia como inconveniente e sim a atitude que se alastrou entre os médicos de achar que máquinas e aparelhos podem facilitar sua vida desobrigandoos da escuta atenta e compreensiva base da mioloantroppmd 10022010 1445 451 452 relação médico paciente e primordial não apenas para o bom encaminhamento diagnóstico mas sobretudo para a terapêutica Seu estudo é um dos pioneiros em analisar em uma abordagem antropológica a questão dos nervos e perturbação no Brasil considerando a dimensão de gênero Poderia nos contar como foi o processo de construção deste objeto de pesquisa De fato os trabalhos sobre nervos que me antecederam dos quais destaco o do professor Duarte Luiz Fernando Dias Duarte2 e o de Souza Maria Cecília Guerios de Souza 3 abordavam nervos como um sofrimento de trabalhadores e por esta razão à época em que foram realizados o destaque era para a relação entre eles e o universo do trabalho operário na qual predominavam os homens Por isso quando minha orientadora no mestrado a professora doutora E Jean Langdon sugeriu que eu estudasse esse sofrimento já com um recorte de gênero resisti um pouco tanto em relação à relevância do tema quanto a focalizálo como um problema de mulheres Entretanto eu fora fortemente sensibilizada pelas discussões desenvolvidas pela professora Miriam Grossi na disciplina Relações de Gênero e fiquei mais atenta para as questões ligadas a vida e papéis femininos Iniciei com uma prépesquisa entrevistando dois médicos que atuavam em postos de saúde no sul da ilha e informalmente alguns moradores do Campeche e entre eles a questão era mioloantroppmd 10022010 1445 452 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 453 imediatamente situada como um problema das mulheres embora referissem um ou outro caso masculino sendo que posteriormente a investigação mostrou que ali era mesmo um problema feminino diante disso não só pesquisei entre as mulheres locais como prossegui numa revisão bibliográfica a respeito de gênero e saúde e esta mostrou uma quantidade de iniquidades que vão desde a incompreensão do universo e dos papéis femininos a desvalorização dos sintomas de qualquer doença nas mulheres práticas médicas orientadas por posições machistas e preconceituosas entre muitas outras mais Assim inicialmente guiada pela população a ser estudada encontrei reforço para abordagem de gênero na literatura acadêmica O que você pensa da chamada epidemia da depressão Acha que há conexões com os nervos e como neste com o fato de apresentar um maior volume de diagnósticos em mulheres Penso que a vida contemporânea traz tantos benefícios em termos de conforto quanto pressão sobretudo no tocante ao consumo e vai impondo ritmos e estilos de vida altamente estressantes constituindose por si só como um agente patológico que pode desencadear inúmeras doenças entre elas a depressão De forma que entendo que tenha havido de fato um incremento no número de casos Porém acho também que há uma tendência entre pacientes e o que é pior entre médicos e outros profissionais de saúde de rotular apressadamente qualquer tipo de sofrimento psíquico como mioloantroppmd 10022010 1445 453 454 depressão O mesmo se aplica a outra epidemia atual a de síndrome do pânico É evidente que atribuindose um rótulo como o de depressão para um sofrimento físicomoral como é o dos nervos a consequência primeira será a prescrição de um antidepressivo Tenho ouvido com frequência de colegas psiquiatras que os clínicos gerais e outros especialistas como os ginecologistas frequentemente o fazem nesses casos Por isso é que eu disse que os erros de indicação de medicamentos que ocorrem na prescrição médica são uma das causas principais de abuso de medicamentos controlados Pela persistência hoje de nervos como objeto de pesquisa e reflexão tanto em trabalhos antropológicos quanto de saúde vejo que essa problemática provavelmente de mistura com os problemas psiquiátricos propriamente ditos continua na ordem do dia e merecedora de atenção nos espaços de assistência à saúde e que talvez se déssemos mais atenção ao sofrimento de nervos pudéssemos evitar a evolução senão para doenças mentais mais graves pelo menos a cronificação de um sofrimento como estratégia de sobrevivência Acho também que as questões mais gerais de saúde e gênero devem merecer maior atenção de pesquisadores e profissionais de saúde Você poderia falar um pouco da importância da dimensão narrativa que pressupõe uma escuta interessada na possibilidade de se construir um sentido não só à experiência dos nervos mas ao próprio processo de busca de alívio e cura mioloantroppmd 10022010 1445 454 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 455 Não só nervos mas qualquer sofrimento seja ele físico ou psíquico necessita ser contado e recontado em busca de um sentido para esse sofrer Tradicionalmente a consulta médica era um espaço privilegiado para isso porém devido a várias circunstâncias históricas ela perdeu essa característica e a prática mais comum hoje é a aplicação de filtros biomédicos para aquilo que se narra ao médico Melhor do que isso o filtro biomédico já age interferindo e direcionando a conversa determinando o que deve ser abordado porque faz sentido no âmbito da biomedicina e o que deve ser deixado de lado por ser julgado sem importância mesmo que para o paciente represente o cerne da história de seu sofrer e portanto da sua perspectiva e não devesse ser omitido Eu não tenho dúvida que a dimensão narrativa da doença é o primeiro passo na busca da cura e que o trabalho terapêutico de qualquer médico começa justamente na escuta e por ela mesma pelo potencial mobilizador de mecanismos idiopáticos de cura que mesmo que não sejam suficientes de per si são necessários para digamos assim preparar o terreno interno para a atuação de outros recursos terapêuticos Um sintoma da escuta insuficiente é a troca intensa de histórias pessoais nas ante salas de atendimento antes e após a consulta ali pacientes conversam entre si aquilo que queriam ter tido a chance de contar para seus médicos Nestas extensões dos consultórios acontecem não somente as trocas de histórias mas os intercâmbios de interpretações correlações causais que misturam concepções populares de doença com as biomédicas reinterpretadas e a mioloantroppmd 10022010 1445 455 456 de medicamentos ou mesmo a de proibições ou restrições a alguns prescritos pelos médicos mas que são desaconselhados por essa câmara por ali se encontrar alguém que teve uma experiência desagradável ou a seu ver deletéria com algum remédio Em nossa pesquisa percebemos que as políticas de saúde mental em geral reduzem as diferenças entre mulheres à dimensão biológica referente a ciclos de vida provavelmente fiéis à tradição da biomedicina em reduzir as mulheres à diferença centrada na reprodução e na maternidade Você acha que este reducionismo ainda persiste na medicina ou acha que já há mudanças no sentido de problematizar esta tradição na formação e na prática médicas Sem dúvida tem havido esforços para abandonar esse reducionismo que em última instância é uma ampliação do reducionismo fundador da biomedicina que é o de objetivar o ser humano a ponto de desconsiderar no paciente os traços que justamente o afirmam como humano Aliás essa redução como já apontado por autores como por exemplo Clavreaul Jean Clavreaul4 diminui não só o paciente como o seu médico também tirandolhe os traços de humanidade desejáveis para o bom estabelecimento da relação médicopaciente Entretanto os esforços são pontuais uma ou outra disciplina um médico ou outro em meio à esmagadora maioria que acha que essas frescuras só atrapalham a dinâmica dos serviços Outra confusão freqüente nos processos ditos de humanização é achar que o restabelecimento do uso das normas de convivência social mioloantroppmd 10022010 1445 456 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 457 NOTAS e da civilidade que poderíamos agrupar sob o rótulo de boas maneiras seja em si a humanização Claro que isso é imprescindível mas não o suficiente porque em geral falta o requisito principal que é reconhecer no paciente um ser humano com tudo de bom e de indesejável que isso possa representar Tive oportunidade mais de uma vez de puxar a discussão para o que chamo de óbices paradigmáticos da humanização da medicina pois entendo que a biomedicina tal como se firmou nos últimos dois séculos teria que se reconstruir em alguns de seus fundamentos para poder se humanizar Isto sem falar da organização dos serviços de assistência médica altamente desfavorável a gestos mais sensíveis e humanos 1 Maria Lúcia da Silveira O nervo fala o nervo cala a linguagem da doença Rio de Janeiro Ed Fiocruz 2000 p 90 2 Antropólogo professor do Programa de PósGraduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor entre outros de Da vida nervosa nas classes trabalhadoras urbanas Rio de Janeiro Jorge Zahar EditorCNPq 1986 3 Maria Cecilia Guerios de Souza médica psiquiatra do INPS o trabalho Doença de Nervosuma estratégia de sobrevivência foi publicado na revista do Ministério da Saúde A Saúde no Brasil vol1 n3 julhoset de 1983 p131 a139 4 CLAVREUL Jean Ordem médica poder e impotência do discurso médico Tradução Colégio Freudiano do Rio de Janeiro São Paulo Brasiliense 1983 mioloantroppmd 10022010 1445 457 mioloantroppmd 458 10022010 1445 Ana Paula Müller de Andrade Tem graduação em Psicologia pela Universidade Católica de PelotasRS 1994 e Mestrado em Educação Ambiental pela Universidade Federal do Rio GrandeRS 2002 Exerceu a função de psicóloga e coordenadora de um Centro de Atenção Psicossocial 2002 2007 Atualmente é doutoranda em Ciências Humanas no PPGICH UFSC cujo projeto de tese versa sobre saúde mental e gênero Integra o Transes Núcleo de Antropologia do ContemporâneoPPGASUFSC e participa da pesquisa Gênero Subjetividade e Saúde Mental Anahi Guedes de Mello Graduanda em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Catarina UFSC participa de diversas investigações relacionadas aos estudos sobre deficiência Disability Studies Foi bolsista PIBICCNPq do Transes atuando em um projeto de pesquisa que tem como objetivo discutir a deficiência como um modo de subjetivação no contemporâneo articulandoa em torno de temáticas como corpo subjetividade e saúde mental sob a AUTORASAUTORES mioloantroppmd 10022010 1445 459 460 orientação da Profa Dra Sônia Weidner Maluf Também é membro do Núcleo de Acessibilidade e Inclusão da UFSC e do grupo de pesquisa em Acessibilidade e Tecnologias do Laboratório de Experimentação Remota RExLab no Departamento de Engenharia e Gestão do Conhecimento da mesma universidade onde atua em pesquisas sobre acessibilidade às comunicações com ênfase no potencial do uso de tecnologia assistiva para a reabilitação e educação de pessoas com deficiência auditiva Carmen Susana Tornquist Licenciada em História pela UFRGS 1986 mestre em Sociologia Política pela UFSC e doutora em Antropologia social pela UFSC com a tese Parto e Poder análise do movimentos pela humanização do parto na área de estudos de gênero antropologia da saúde e movimentos sociais Trabalha na UDESC desde 1991 com as disciplinas de Sociologia Sociologia da Educação Antropologia da Educação Antropologia Cultural e Sociologia Urbana Coordena a pesquisa Práticas contraceptivas e aborto em grupos populares urbanos junto com a equipe de pesquisadoras do Labgef UDESC e também o projeto de extensão no formato de um cineclube CINEARTH cinema artes e humanidades mioloantroppmd 10022010 1445 460 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 461 Diana Brown Tem graduação em Literatura Inglesa pelo Smith College 1960 e doutorado em Antropologia pela Columbia University 1974 Atualmente é Professora Associada do Bard College e funcionária da Columbia University Tem experiência na área de Antropologia com ênfase em Antropologia da Saúde e do Corpo Atuando principalmente nos seguintes temas religiões afro brasileiras umbanda antropologia da medicina antropologia urbana antropologia do gênero e sexualidade e antropologia do corpo Eliana Elisabeth Diehl Farmacêutica e mestre em Ciências Farmacêuticas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e doutora em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz atuando como professora categoria Associado e pesquisadora no Departamento de Ciências Farmacêuticas e no Programa de PósGraduação em Saúde Pública da Universidade Federal de Santa Catarina UFSC Desde 1994 realiza pesquisas entre grupos indígenas povos de Santa Catarina com foco na saúde indígena articulando antropologia saúde coletiva e ciências farmacêuticas Participou da criação do Núcleo de Estudos de Saúde e Saberes Indígenas NESSI onde atua até hoje e em 2007 inseriuse no Núcleo de mioloantroppmd 10022010 1445 461 462 Antropologia do Contemporâneo ambos do Programa de PósGraduação em Antropologia da UFSC Além de pesquisas em saúde indígena tem se envolvido no controle social representando as Universidades no Conselho Distrital de Saúde Indígena da região sul do Brasil Atua ainda no Programa de Residência Integrada em Saúde da Família da UFSC com ênfase para a educação em serviço na atenção básica Fabíola Rohden É graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Catarina 1992 com mestrado e doutorado em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro 2000 Atualmente é professora adjunta do Departamento de Políticas e Instituições de Saúde do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e pesquisadora do Centro Latino Americano em Sexualidade e Direitos Humanos Realiza pesquisas e assessorias nas áreas de relações de gênero corpo sexualidade saúde gênero e ciência e história da medicina no Brasil Publicou uma série de trabalhos nesses tópicos entre os quais Uma ciência da diferença sexo e gênero na medicina da mulher Fiocruz 2001 e A arte de enganar a natureza contracepção aborto mioloantroppmd 10022010 1445 462 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 463 e infanticídio no início do século XX Fiocruz 2003 livro vencedor do concurso promovido pela ANPOCS de melhor obra científica de Ciências Sociais no ano de 2003 Fernanda Manzini Farmacêutica formada na Universidade Federal de Santa CatarinaUFSC em 2007 Cursa atualmente Residência Multiprofissional em Saúde da Família no Programa de Residência Integrada em Saúde da Família da UFSC Maika Arno Roeder Professora de Educação Física há vinte e cinco anos na Secretaria de Estado da Saúde Fiscal Sanitarista da Diretoria de Vigilância Sanitária do Estado de Santa Catarina e acompanhante terapêutico em saúde mental Responde na Diretoria de Vigilância Sanitária pela áreas destinada às populações mais vulneráveis a estressores psicossociais normatizando e fiscalizando instituições no Estado de Santa Catarina destinadas a atender a população idosa crianças e adolescentes em medida de proteção ou em medida de segurança população carcerária população indígena toda a rede de assistência em saúde mental incluindo a área de dependência química e comunidades terapêuticas Possui Doutorado em Ciências Humanas Mestrado em Atividade Física Relacionada à Saúde e mioloantroppmd 10022010 1445 463 464 especialização na seguintes áreas Saúde Mental Educação Especial e Prevenção e Reabilitação Física para Grupos Especiais Foi Coordenadora Estadual de Saúde Mental em Santa Catarina e publicou os seguintes livros Atividade Física Saúde Mental e Qualidade de Vida Normas Sanitárias para Instituições de Longa Permanência para Idosos Normas Sanitárias para Sistema Carcerário Normas Sanitárias para Comunidades Terapêuticas e escreveu o capítulo Atividade Sensoriomotora no Ambiente da Saúde Mental do Idoso no livro Educação Física O Ambiente e o BemEstar dos Idosos Maria Lucia da Silveira Tem graduação em Medicina pela Universidade Federal do Paraná 1976 especialização em Medicina do trabalho pela Universidade Estadual de Campinas 1977 especialização em Residência Médica pela Universidade Estadual de Campinas 1979 especialização em Capacitação em Saúde da Família pela Universidade Federal do Paraná 1997 e mestrado em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina 1996 Publicou o livro O nervo cala o nervo fala a linguagem da doença Fiocruz 2000 Marina Becker Farmacêutica formada na Universidade Federal de Santa CatarinaUFSC em 2007 mioloantroppmd 10022010 1445 464 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 465 Marina Monteiro Acadêmica do curso de Ciências Sociais na Universidade Federal de Santa Catarina UFSC e bolsista de iniciação científica integrando o projeto intitulado Gênero subjetividade e saúde mental políticas públicas ativismo e experiências sociais coordenado pela profª Sônia Weidner Maluf UFSC e cocoordenado por Carmen Susana Tornquist UDESC Milena Argenta Cursou bacharelado em Ciências Sociais na Universidade Federal de Santa Catarina onde trabalhou com pesquisa na área de etnicidade e relaçoes interétnicas Realizou pesquisas também na área de antropologia gênero e saúde mental Rogério Azize Antropólogo doutorando em Antropologia Social no Programa de PósGraduação do Museu Nacional UFRJ Graduado em Ciências Sociais e mestre em Antropologia Social pela UFSC Foi professor colaborador na UDESC entre 2002 e 2006 e na Faculdade Estácio de Sá entre 2003 e 2004 Suas pesquisas concentramse na sub área pessoa corpo saúde e biotecnologia Publicou artigos sobre a difusão das chamadas drogas do estilo de vida analisando a publicidade dos medicamentos e os sentidos atribuídos pelos consumidores Atualmente desenvolve uma mioloantroppmd 10022010 1445 465 466 tese a respeito da difusão dos saberes das neurociências e do cerebralismo que marca a cultura ocidental contemporânea Sônia Weidner Maluf É professora do Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina e pesquisadora do CNPq É mestre em Antropologia pela UFSC e doutora em Antropologia Social e Etnologia pela École des Hautes Études em Sciences Sociales 1996 Paris França Publicou os livros Encontros Noturnos Bruxas e Bruxarias na Lagoa da Conceição Rio de Janeiro Rosa dos Tempos 1993 Les enfants du Verseau au pays des terreiros lês cultures thérapeutiques et spirituelles alternatives au Sud du Brésil Villeneuf dAscq Presses Universitaires du Septentrion 1998 organizou diversas coletâneas e publicou artigos sobre gênero corpo pessoa indivíduo e sujeito contemporâneo antropologia da narrativa cinema e temas afins Coordena o Transes Núcleo de Antropologia do Contemporâneo do PPGASUFSC mioloantroppmd 10022010 1445 466 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 467 mioloantroppmd 10022010 1445 467 tipografia Myriad Jason text 1116 papel polén suzano impresso em 2010 mioloantroppmd 10022010 1445 468 CONSUMO E PERCEPÇÕES DE ANTIDEPRESSIVOS ENTRE USUÁRIOS DE UM CENTRO DE ATENÇÃO BÁSICA À SAÚDE Após o ano de 1950 os medicamentos para tratar doenças mentais começaram a ser muito utilizados e fabricados e desde esse ano surgem novos tratamentos a cada dia a fim de oferecer novos tratamentos para esses distúrbios Para entender melhor as percepções e usos dos usuários da Fluoxetina antidepressivo foi realizado um estudo para identificar a dispensação de antidepressivos em um Centro de Saúde de atenção básica em Florianópolis com o intuito de caracterizar os medicamentos usuários e seus prescritores além da percepção do uso da Fluoxetina Metodologia Foi quantificado a dispensação desse antidepressivo analisadas as prescrições e realizadas entrevistas usuárias sobre esse medicamento além de observar o participante durante o período da pesquisa A pesquisa foi realizada entre março e junho de 2007 em um Centro de Saúde CS de atenção básica em FlorianópolisSC Para identificar dispensações passadas foi utilizado o livro de registro específico dos medicamentos controlados de janeiro a março de 2007 Foi utilizado o método etnográfico observandose o participante durante a pesquisa no serviço de farmácia com anotações em diário de campo e entrevistas baseadas em roteiro prévio O cenário da pesquisa A rede básica de saúde é a mais utilizada em Florianópolis abrangendo 77 da população Na época existiam 54 unidades de saúde sendo 48 Centros de Saúde 1 ambulatório de especialidades 1 pronto atendimento 1 laboratório de análises clínicas e 3 centros de atenção psicossocial Tais unidades eram divididas em cinco regionais de saúde centro continente leste norte e sul Até outubro de 2006 os medicamentos de controle especial eram distribuídos no CS Centro e na policlínica do estreito Porém após essa data a entrega de medicamentos passou a ser feita em cada regional de saúde Foi averiguado que nos meses de janeiro a março de 2007 em um Centro de Saúde a fluoxetina foi o antidepressivo mais prescrito sendo dispensado para cerca de 15 usuários por dia As receitas de fluoxetina Segundo o livro de registro específico dos medicamentos controlados no CS foram analisadas 855 receitas Porém haviam receitas repetidas pois o paciente ia mais de uma vez na farmácia em um período de 60 dias Então excluindo as repetidas ficou um total de 692 usuários A maioria desses pacientes eram mulheres de faixa etária predominante de 41 a 50 anos já os homens tinham uma faixa etária de 31 a 40 anos e de 51 a 60 anos Foram analisadas também as especialidades dos médicos que prescrevem a fluoxetina e foi observado que as três primeiras especialidades eram medicina de família e comunidade psiquiatria e clínica médica As entrevistas Primeira entrevistada Dilma 43 anos viúva nascida em Florianópolis funcionária pública aposentada com dois filhos sem religião definida diagnosticada com Transtorno Obsessivo Compulsivo TOC e depressão Relatou que fazia acompanhamento com psiquiatra e utilizava psicotrópico A entrevista foi feita em sua própria residência na sua sala havia diversos quadros e trabalhos artesanais que Dilma fabricava e considerava sua terapia A entrevistada foi muito receptiva e mostrou ser uma pessoa extrovertida e alegre A entrevista durou mais de 1 hora e foi bem detalhada Segunda entrevistada Maria 62 anos separada nascida no Rio de Janeiro advogada aposentada católica diagnosticada com depressão relacionada ao falecimento do irmão e problemas de saúde Relatou que fazia acompanhamento com psiquiatra e psicanalista ademais fazia uso de fluoxetina Foi muito receptiva com respostas curtas e objetivas sem muitos detalhes e foi realizada em 10 minutos A dispensação de antidepressivos no Centro de Saúde A indicação de fluoxetina predominantemente para mulheres confirma a relação entre gênero e prescrição de antidepressivos já abordada na literatura As razões pelos quais os médicos prescrevem mais fluoxetina para mulheres do que para homens são por influência da indústria farmacêutica que fala que tal medicamento é uma solução para o estresse e conflitos do papel da mulher descrevendo a depressão como um distúrbio mental feminino dificuldades do médico em lidar com problemas sócio afetivos das mulheres A maior procura por Centro de Saúde por parte das mulheres é explicada pelo seu papel social de cuidadora na família tendo que estar atenta aos sinais e sintomas do seu corpo além de dificuldades socioeconômicas condições de trabalho e as desigualdades a que elas são submetidas O contexto de uso da fluoxetina Dilma relatou que sempre teve sintomas de TOC porém só foi diagnosticada aos 40 anos anos Antes disso achava que o problema era com ela se afastando da vida social do convívio com amigos e família Após o diagnóstico percebeu que o TOC a impedia de realizar muitas atividades na sua vida e que com ele tinha vontade de morrer e de se machucar Dilma relatou que fazia psicoterapia porém abandonou pois não queria admitir que tinha algum problema e nem que tinha que tomar um psicotrópico Ela mesmo controlava a posologia dos medicamentos contrariando o prescritor e tendo uma sensação de autonomia no seu tratamento Porém ao usar o medicamento pela primeira vez Dilma por livre arbítrio tomou 39 cápsulas de fluoxetina de uma só vez e ficou uma semana dormindo Dilma apesar de não gostar do medicamento criou uma dependência sobre ele pois atribuiu a sua melhora ao remédio levando o tratamento com mais seriedade do que no início Maria sofre de depressão devido a problemas de saúde e falecimento do irmão Ela demonstrou conhecer tecnicamente a depressão e a fluoxetina Para Maria temse necessidade de usar a fluoxetina pois a mesma representa um importante recurso para enfrentamento da sua vida e auxiliaria ela a continuar sendo o apoio de outras pessoas Foi analisado que os os médicos não levam em conta a subjetividade das usuárias de fluoxetina nem o meio social que estão inseridos medicalizando os problemas e tendo o poder de mudar toda uma dinâmica tanto da vida da pessoa quanto familiar Ademais a falta de outras assistências no CS contribui para o processo da medicalização já que os serviços ofertados eram basicamente o atendimento individual e a entrega dos medicamentos sendo assim o planejamento e organização dos serviços de atenção básica devem ser reconsiderados Além disso deve ser averiguado se a variedade de especialidades médicas são aptas para diagnosticar e prescrever tratamento como o uso da fluoxetina e se todos os pacientes precisavam mesmo de um tratamento medicamentoso REFERÊNCIA DIEHL Eliana et al A MINHA MELHOR AMIGA SE CHAMA FLUOXETINA CONSUMO E PERCEPÇÕES DE ANTIDEPRESSIVOS ENTRE USUÁRIOS DE UM CENTRO DE ATENÇÃO BÁSICA À SAÚDE In MALUF Sônia Weidner et al Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas Florianópolis Letras Contemporâneas Oficina Editorial Ltda 2010 p 331367

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ANA PAULA MÜLLER DE ANDRADE ANAHI GUEDES DE MELLO CARMEN SUSANA TORNQUIST DIANA BROWN ELIANA DIEHL FABÍOLA ROHDEN FERNANDA MANZINI MAIKA ARNO ROEDER MARIA LUCIA DA SILVEIRA MARINA BECKER MARINA MONTEIRO MILENA ARGENTA ROGÉRIO AZIZE SÔNIA WEIDNER MALUF Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas Sônia Weidner Maluf Carmen Susana Tornquist organização mioloantroppmd 10022010 1439 1 Copyright 2010 by Sônia Weidner Maluf e Carmen Susana Tornquist Capa e projeto gráfico Marina Moros Fotografia da capa Alfred Stieglitz 1918 Georgia OKeeffe Coordenação editorial Fábio Brüggemann Conselho editorial Daniel Mayer Fábio Brüggemann Péricles Prade Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida no todo ou em parte por quaisquer meios sem a autorização expressa dos editores Todos os direitos desta edição reservados a LETRAS CONTEMPORÂNEAS OFICINA EDITORIAL LTDA wwwletrascontemporaneascombr Maluf Sônia Weider e Tornquist Carmen Susana organização Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas Florianópolis Santa Catarina Letras Contemporâneas 2010 p 468 ISBN 9788576620518 mioloantroppmd 10022010 1439 2 05 APRESENTAÇÃO 21 GÊNERO SAÚDE E AFLIÇÃO POLÍTICAS PÚBLICAS ATIVISMO E EXPERIÊNCIAS SOCIAIS Sônia Weidner Maluf 69 VELHAS HISTÓRIAS NOVAS ESPERANÇAS Carmen Susana Tornquist Ana Paula M de Andrade Marina Monteiro 133 A CONSTRUÇÃO DA PESSOA NA EXPERIÊNCIA DA DEFICIÊNCIA CORPO GÊNERO SEXUALIDADE SUBJETIVIDADE E SAÚDE MENTAL Anahi Guedes de Mello 193 ITINERÁRIOS TERAPÊUTICOS E MODELOS DE SOFRIMENTO ENTRE VOLUNTÁRIAS DA PASTORAL DA SAÚDE DO BAIRRO SACO GRANDE II FLORIANÓPOLISSC Milena Argenta 215 A OBRIGAÇÃO DE CUIDAR MULHERES IDOSAS EM UMA COMUNIDADE DE FLORIANÓPOLIS Diana Brown 273 O GÊNERO NO MOVIMENTO DA REFORMA PSIQUIÁTRICA BRASILEIRA Ana Paula Müller de Andrade 295 SERVIÇO RESIDENCIAL TERAPÊUTICO MORADA DO GÊNERO Maika Arno Roeder 331 A MINHA MELHOR AMIGA SE CHAMA FLUOXETINA CONSUMO E PERCEPÇÕES DE ANTIDEPRESSIVOS ENTRE USUÁRIOS DE UM CENTRO DE ATENÇÃO BÁSICA À SAÚDE Eliana Diehl Fernanda Manzini Marina Becker 367 NOTAS DE UM NÃOPRESCRITOR UMA ETNOGRAFIA ENTRE OS ESTANDES DA INDÚSTRIA FARMACÊUTICA NO CONGRESSO BRASILEIRO DE PSIQUIATRIA Rogério Azize 303 O QUE SE VÊ NO CÉREBRO A PEQUENA DIFERENÇA ENTRE OS SEXOS OU A GRANDE DIFERENÇA ENTRE OS GÊNEROS Fabíola Rohden 441 NERVOS E NERVOSAS NO CONTEXTO DAS AFLIÇÕES CONTEMPORÂNEAS ENTREVISTA COM MARIA LUCIA DA SILVEIRA Carmen Susana Tornquist Sônia Weidner Maluf SUMÁRIO mioloantroppmd 10022010 1439 3 4 mioloantroppmd 10022010 1440 4 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 5 Esta coletânea é resultado de uma pesquisa que vem sendo desenvolvida desde 2006 cujo foco são os cruzamentos entre gênero saúde e aflição a partir de uma abordagem do chamado campo da saúde mental nas culturas urbanas brasileiras contemporâneas A pesquisa e as reflexões aqui contidas se desenvolveram principalmente em torno de três linhas de abordagem a análise das políticas públicas do ativismo político e das experiências sociais em torno do tema E uma quarta linha complementar também contemplada por alguns artigos nesta coletânea que é a análise dos discursos e práticas no campo biomedicina Em relação às políticas públicas foi feito levantamento e mapeamento da temática de gênero e saúde mental e suas interseccionalidades como raça classe e geração nos planos nacionais de saúde mental de política de saúde para a mulher e em outros programas governamentais no Brasil no estado de Santa Catarina e no município de Florianópolis Quanto 1 Sônia Weidner Maluf Carmen Susana Tornquist APRESENTAÇÃO mioloantroppmd 10022010 1440 5 6 ao ativismo foi realizado um mapeamento dos projetos ações e pesquisas desenvolvidas pelas organizações feministas movimentos de reforma psiquiátrica e antimanicomiais e ONGs afins nacionais e no estado de Santa Catarina em torno da questão de gênero e saúde mental Em relação às experiências sociais foram realizadas pesquisas de campo em bairros de segmentos populares da grande Florianópolis junto a mulheres usuárias dos serviços públicos de saúde eou que consomem psicotrópicos e antidepressivos e seus itinerários terapêuticos além de observações e entrevistas nos postos de saúde nos serviços públicos de atendimento psicológico centros de atendimento psicossocial associações civis e grupos de ajuda mútua Esses eixos temáticos como os artigos deste livro demonstrarão estão bastante articulados entre si sendo difícil pensálos como autônomos uns em relação aos outros Essas diferentes dimensões estão presentes nos artigos publicados neste livro buscando trazer uma contribuição a partir de uma abordagem antropológica para a compreensão do contexto atual do campo da saúde mental no Brasil Dados sobre alto índice de consumo de psicofármacos no Brasil e particularmente entre mulheres no caso dos medicamentos antidepressivos e os benzodiazepínicos têm sido foco de artigos acadêmicos e de matérias de jornal e revista juntamente com outros temas ligados à medicalização da vida do corpo e da subjetividade como o número mioloantroppmd 10022010 1440 6 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 7 proporcionalmente alto de cirurgias estéticas no Brasil comparativamente a outros países Em nossa pesquisa de caráter qualitativo e etnográfico a falta de informações sistematizadas por parte da rede pública que distribui gratuitamente esse tipo de medicamento nos impossibilitou acesso a dados quantitativos que cruzassem consumo de psicofármacos e marcadores como gênero e geração No entanto a pesquisa de campo realizada em diferentes frentes regiões e bairros de Florianópolis e em algumas outras cidades de Santa Catarina nos evidenciou a relevância de um recorte de gênero para uma análise mais densa dessa extensão do campo de atuação da biomedicina e sobretudo da indústria farmacêutica particularmente a dos psicofármacos no Brasil contemporâneo Além disso pensar essas questões no contexto da reforma psiquiátrica e do movimento de desinstitucionalização da saúde mental no Brasil nos traz elementos para analisar esse processo recente que envolveu associações de profissionais do campo da biomedicina da psicologia e de saúde em geral o movimento antimanicomial associações de usuários do sistema público de atendimento à saúde mental entre outros Alguns dos artigos publicados no livro buscam fazer uma análise dessa experiência recente em termos de política pública em relação à saúde mental no Brasil Além dos capítulos diretamente ou indiretamente relacionados à pesquisa incluímos na coletânea artigos produzidos por convidadas externas que participaram de nossos 2 3 4 mioloantroppmd 10022010 1440 7 8 seminários e apresentaram reflexões bastante enriquecedoras sobre temas articulados com os da pesquisa Além dos artigos das professoras Diana Brown e Fabíola Rohden incluímos uma entrevista com Maria Lúcia da Silveira as três gentilmente se dispuseram a expor suas pesquisas e debatêlas junto ao nosso grupo de pesquisa Também os artigos de Rogério Azize e de Maika Arno Roeder são produto de seus trabalhos individuais de pesquisa de doutoramento Rogério também apresentou e debateu seu trabalho em uma de nossas reuniões A distribuição dos capítulos buscou contemplar as diferentes temáticas e abordagens na seguinte ordem uma contextualização geral as experiências sociais a desinstitucionalização da saúde mental no Brasil a cultura dos medicamentos e a produção científica da diferença e da medicalização O artigo de Sônia Weidner Maluf busca fazer um apanhado geral dos resultados da pesquisa articulando os três eixos em que esta se desenvolveu e confrontando os diferentes discursos sociais em torno de gênero saúde e aflição Contextualiza a situação atual do campo da saúde mental no Brasil sobretudo em relação à expansão do atendimento na atenção básica e na disseminação do uso de psicotrópicos entre mulheres de diferentes camadas sociais O artigo confronta os discursos das políticas públicas centrados na noção de ciclo de vida biológico das mulheres adolescência gravidez puerpério menopausa às falas e relatos de experiências sociais de mulheres de bairros populares 4 mioloantroppmd 10022010 1440 8 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 9 de Florianópolis focados nas dimensões sociais simbólicas e políticas de suas experiências cotidianas e biográficas violência dupla jornada de trabalho desemprego ativismo político Aponta para a necessidade de que as políticas públicas em saúde levem em consideração os sentidos dados pelos sujeitos a suas experiências de sofrimento e aflição percebendoos também como produtores de verdade O artigo de Carmen Susana Tornquist Ana Paula Müller de Andrade e Marina Monteiro relata e discute a pesquisa etnográfica de maior duração desenvolvida no bairro Monte Cristo em Florianópolis O objetivo foi o de buscar compreender como e se a disseminação de diagnóstico de depressão acompanhado de tratamento e medicalização se fazia presente entre os grupos sociais mais pobres e considerados vulneráveis da cidade quais os sentidos que os sujeitos davam a estas situações e como buscavam resolver ou mitigar as perturbações e aflições pelas quais passavam Contextualiza a história do bairro formado a partir de uma ocupação e conquista do lugar em que as mulheres tiveram um papel preponderante e cujos eventos são centrais em seus relatos autobiográficos Trazendo as narrativas destas sobre suas experiências de aflição e adoecimento as autoras analisam os diferentes aspectos que aparecem como contexto e eventualmente causa de suas aflições como a violência no bairro as dificuldades econômicas dupla jornada de trabalho desemprego além de questões de autoimagem e percepção de si mioloantroppmd 10022010 1440 9 10 Anahí Guedes de Mello aborda a relação entre deficiência e saúde mental a partir das narrativas de pessoas com deficiência com histórico de ativismo Parte da ideia de que a deficiência atua como um regime de subjetivação no contemporâneo e busca compreender a especificidade desse processo de subjetivação ao partir do conceito de resiliência definido como a capacidade construir atitudes positivas a partir das adversidades da vida A manifestação de uma deficiência condição esta através da qual se experimenta situações extremas de perdas ou interrupções de determinadas atividades da vida cotidiana em decorrência de restrições físicas sensoriais intelectuais e sociais evidenciaria essa possibilidade de transformação de transcendência do sujeito aos seus próprios limites corporais Para a autora a deficiência sempre inesperada é a demonstração de que a subjetividade nunca é aquele lugar ideal seguro e estável o que coloca as pessoas com deficiência como sujeitos também desejantes A autora aponta também para a produtividade de um diálogo entre os estudos antropológicos e os estudos de deficiência O artigo de Milena Argenta é baseado em uma pesquisa de campo desenvolvida junto às mulheres que participam de uma associação ligada à Pastoral da Saúde em um bairro popular de Florianópolis A autora trabalha com narrativas terapêuticas de quatro mulheres que participam deste grupo já há algum tempo Chama atenção o fato de que embora todas considerem legítimos os veredictos médicos que as mioloantroppmd 10022010 1440 10 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 11 classificaram como tendo doenças de tipo depressivo por outro lado articulam este diagnóstico com outras explicações de cunho espiritual e religioso e com um modelo socialrelacional que acentua a importância da rede de sociabilidade e da ruptura com o modelo ainda dominante de restrição das atividades femininas à esfera doméstica que aparece em outros universos da pesquisa Assim a participação na associação comunitária dedicada a uma espécie de cura popular oferecida a outrem é também um espaço terapêutico no qual estas mulheres sofredoras de depressão atuam como cuidadoras o que sugere a importância deste rede de sociabilidade de compartilhamento de experiências sociais com destaque à experiência de sofrimento Milena Observa também como em outros universos da pesquisa mais ampla a permanência do modelo dos nervos entre estas mulheres mesmo que articuladas com o discurso biomédico Diana Brown faz uma reflexão sobre envelhecimento e aflição a partir de uma pesquisa de campo feita em um grupo de terceira idade em uma praia no norte de Florianópolis tendo como foco as narrativas de mulheres cuidadoras de outras pessoa da família No grupo social pesquisado a maioria de mulheres nativas o cuidado é visto como atividade essencialmente feminina o que é reforçado pela prática de fofocas e de discursos morais sobre mulheres que se dedicam ou não a essa tarefa quando algum parente próximo necessita em geral a mãe mais idosa ou o marido A autora aborda a mioloantroppmd 10022010 1440 11 12 atividade do cuidado como geradora de uma série de aflições que são relatadas pelas mulheres pesquisadas Entre as aflições que ocorrem durante suas atividades de cuidado dos parentes idosos doentes estão ansiedade cansaço extremo dor nas pernas esgotamento preocupação estresse insônia nervos tristeza úlcera dor de barriga depressão Confrontando essas falas com o que elas relatam sobre suas idas ao médico Diana Brown conclui que a apropriação por parte dessas mulheres de um léxico médico para se referir a suas aflições não significa a adoção da tradição individualista racionalizadora de suas experiências O artigo de Ana Paula Müller de Andrade têm como objetivo abordar aspectos relacionados à questão do gênero no movimento da reforma psiquiátrica brasileira no âmbito da assistência militância e política pública A autora traz um breve panorama da Reforma Psiquiátrica descrevendo os três pontos centrais desse projeto a extinção progressiva dos leitos em hospitais psiquiátricos deslocando o hospital psiquiátrico do centro da rede de cuidados em saúde mental a construção de uma rede de serviços de atendimento psicossocial e a superação da cultura manicomial através de práticas que possibilitem outros modos de subjetivação e convivência Apresentando dados que demonstram o quanto as mulheres têm estado presentes no campo da saúde mental mesmo não sendo objeto de uma reflexão sistemática por parte dos gestores e ativistas ligados ao movimento pela desinstitucionalização da saúde mental mioloantroppmd 10022010 1440 12 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 13 O artigo de Maika Arno Roeder traz alguns dos dados trabalhados em sua tese de doutorado acerca do processo de desinstitucionalização dos internos de unidades psiquiátrica com destaque às mulheres A autora analisa um dos primeiros serviços residenciais terapêuticos do sul do Brasil relatando como a equipe composta em sua maioria por mulheres montou a proposta e como a mesma foi sendo implementada com a adesão das internas que após décadas de interação puderam sair do hospital psiquiátrico e voltar a viver em um espaço doméstico Descreve as trajetórias dessas mulheres todas muito pobres e em grande parte migrantes que viveram a maioria um longo período de internação psiquiátrica e que hoje vivem na residência terapêutica Chama atenção o fato de que as residências masculinas tidas como ponto de comparação pela autora apresentam regras distintas daquelas destinadas às mulheres o que evidencia o atendimento desigual a que estão submetidos os pacientesusuários do serviço se tomamos gênero como um operador de hierarquia e desigualdade O artigo de Eliane Diehl Marina Ravazzi e Fernanda Becker analisa o processo de dispensação de medicamentos controlados referentes às doenças de tipo depressivo feito em uma das unidades de saúde de Florianópolis O levantamento das receitas feito durante um período de dois meses permitiu perceber que não apenas os médicos especialistas em saúde mental no caso os psiquiatras têm receitado fluoxetina mas mioloantroppmd 10022010 1440 13 14 também os clínicos gerais tem assumido esta tarefa para si sugerindo que não se pode deixar de analisar a crescente ambulatorização da saúde mental no contexto mais amplo de universalização do sistema de saúde Também chama atenção a maior incidência de mulheres como destinatárias dessas receitas Além de trabalharem com os dados quantitativos e documentais as autoras não puderam deixar de perceber a importância da dimensão qualitativa e junto aos dados quantitativos analisados oportunizam o acesso aos casos de três mulheres usuárias dos medicamentos dispensados na Unidade de Saúde O contato com as usuárias permite perceber a importância da abordagem qualitativa que dá visibilidade à dimensão subjetiva O fato de muitas mulheres usarem a fluoxetina como forma de aliviar sofrimentos dos mais diversos matizes constatado a partir da análise das receitas não permite por si só acessar os significados que as aflições e os medicamentos têm para o sujeitos que as vivenciam expresso por exemplo de maneira eloquente pela fala de uma delas que considera a fluotexina sua melhor amiga O artigo de Rogerio Azize parte de seu trabalho de doutoramento em andamento sobre o tema das neurociências segue na linha de seus estudos anteriores acerca da forte presença da indústria farmacêutica na formação e na prática médica Do ponto de vista de um nãoprescritor traz uma espécie de etnografia do congresso brasileiro de Psiquiatria que foi acompanhado pelo antropólogo com o propósito de mioloantroppmd 10022010 1440 14 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 15 perceber as influências da indústria farmacêutica nos eventos de caráter cientifico que em tese capacitam e atualizam os médicos em relação às doenças e aos procedimentos de alívio e de cura Partindo de um relato extremamente bem humorado no qual o antropólogo não poupa nem a si mesmo de descreverse de forma irônica Rogério descreve a organização e o cotidiano do evento particularmente a parte destinada à sociabilidade e à publicidade dos novos medicamentos produzidos pelas grandes multinacionais não sem chamar atenção para a presença de tensões e dissonâncias entre os congressistas no que se refere à assumida influência dos patrocinadores nas prescrições e propostas dos psiquiatrasconferencistas A presença de críticas à excessiva medicamentalização da saúde mental aparece nas falas de bastidores escutadas no congresso Fabíola Rohden cujos trabalhos sobre a construção da particularidade da mulher pelo discurso biomédico e constituição das assim chamadas medicinas das mulher são referências fundamentais para quem se debruça sobre a interface entre gênero e saúde neste artigo faz uma análise comparativa dos trabalhos produzidos no âmbito das faculdades de Medicina do século XIX no Brasil com os artigos publicados em algumas revistas de divulgação científica atualmente disponíveis em bancas de revistas também no Brasil acerca de temas ligados ao cérebro humano com forte destaque às diferenças de gênero Segundo as revistas 5 mioloantroppmd 10022010 1440 15 16 analisadas a pequena diferença existente entre homens e mulheres é transformada em grandiosa diferença por estar situada no nível do cérebro e mais recentemente nos hormônios É de fato impressionante como estas revistas veiculam a partir de dados e discursos de grande legitimidade científica ideias em sua estrutura muito similares àquelas demonstradas e professadas pelos acadêmicos de medicina do final do século XIX apesar do suposto longo tempo que nos separa deles e mais do que isto apesar das talvez não tão profundas como gostaríamos rupturas que os movimentos feministas e movimentos teóricos teriam provocado nas concepções contemporâneas daqueles que fazem ciência num contexto mais igualitário como o atual De fato o que as revistas analisadas demonstram aponta para a permanência das representações diferencialistas e essencialistas de gênero e para como as neurociências e teoriasideias que em torno delas orbitam cumprem um papel central na reprodução dessas representações sendo hoje o cérebro o novo foco de substancialização da diferença Finalmente publicamos uma entrevista com Maria Lucia da Silveira autora do trabalho pioneiro sobre mulheres e doenças dos nervos em uma comunidade do interior de Florianópolis que foi publicado como livro em 2000 Nessa entrevista feita em julho de 2009 Maria Lucia faz uma espécie de revisitação da etnografia que fez nos anos 90 Ela relata que a partir de sua insatisfação profissional enquanto médica 5 mioloantroppmd 10022010 1440 16 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 17 com os limites da relação médicopaciente seu trabalho naquele momento chamava a atenção com a veemência que lhe é particular para a importância de uma perspectiva antropológica na formação dos profissionais de saúde que levasse em consideração as falas das pacientes que buscam os postos de saúde hospitais e mesmo farmácias em busca de remédios e de escuta para suas aflições Naquele momento anterior ao boom das doenças depressivas que hoje atingiriam diferentes camadas sociais a médicaantropóloga chamava atenção para os detalhes das narrativas de sofrimentos dos nervos das mulheres pesquisadas apontando para as fortes conexões entre os ataques de nervos e os limites dos papéis femininos atribuídos a elas notadamente o confinamento ao espaço doméstico e familiar incluindo a conjugalidade aspecto que não deixa de aparecer nas pesquisas expostas nesta coletânea No seu trabalho de grande pioneirismo ainda hoje ao incorporar a perspectiva de gênero em diálogo com outros no campo das perturbações físicomorais à época notadamente os de Luiz Fernando Dias Duarte a autora chamava atenção para o uso que as mulheres faziam da linguagem dos nervos para chamar atenção sobre seus padecimentos cotidianos em grande parte relacionados ao casamento e às atribuições tidas como femininas de modo que os nervos chancelam uma alteração no cotidiano e uma forma de reconhecimento de si no contexto familiar Maria Lucia chama atenção na entrevista para o costume que encontramos em campo ainda hoje de as 5 mioloantroppmd 10022010 1440 17 18 mulheres fazerem estoques domésticos de medicamentos receita azul ou tarja pretacontrolados que não são disponibilizados de maneira fácil nos serviços de saúde o que em sua opinião seria uma forma de evitar uma possível falta desta companhia segura que o mesmo parece encarnar mas também uma espécie de pretexto para aprofundar redes de troca de informações e compartilhamento de experiências a partir do sofrimento Esperamos com os artigos publicados neste livro contribuir para uma reflexão crítica sobre gênero e saúde no campo das políticas de saúde mental no Brasil e sobretudo para a necessidade de se repensar a forma como os saberes e tecnologias do campo da biomedicina tem servido para construir reproduzir e reforçar as desigualdades e hierarquias de gênero NOTAS Cf Maluf Sônia Weidner Gênero subjetividade e saúde mental políticas públicas ativismo e experiências sociais em torno de gênero e saúde mental Projeto de Pesquisa CNPq Fapesc A pesquisa foi cocoordenada por Carmen Susana Tornquist e contou com uma ampla equipe que envolveu professoras da UFSC e da UDESC doutorandos mestrandos alunos de graduação e bolsistas de Iniciação Científica além de participantes externos voluntários Agradecemos os financiamentos do CNPq Editais Universal e Ciências Humanas e da Fapesc O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da UFSC 1 mioloantroppmd 10022010 1440 18 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 19 n 35506 Sobre questões de ética na pesquisa antropológica em saúde e seus desdobramentos específicos nesta pesquisa ver Langdon Maluf e Tornquist 2008 Falar genericamente de Brasil contemporâneo faz sentido quando levamos em conta que essa disseminação do uso de medicamentos psicotrópicos atinge não apenas populações urbanas mas também indígenas e rurais Neste último caso entram pesquisas sobre o tema desenvolvidas sob nossa orientação Que apesar de estarem formalmente vinculados à equipe de pesquisa não participaram cotidiana e sistematicamente de suas atividades SILVEIRA 2000 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS LANGDON E Jean MALUF Sônia W TORNQUIST Carmen Susana Ética e política na pesquisa os métodos qualitativos e seus resultados In Guerreiro Iara et all Ética nas pesquisas em ciências humanas e sociais na saúde São Paulo Hucitec 2008 p 128147 SILVEIRA Maria Lúcia O nervo cala o nervo fala a linguagem da doença Rio de Janeiro Fiocruz 2000 2 3 4 5 mioloantroppmd 10022010 1440 19 mioloantroppmd 20 10022010 1440 O deslocamento da experiência de sofrimento e aflição para o campo da saúde nas culturas urbanas contemporâneas no Brasil tem sido objeto de estudos e reflexões no campo das ciências sociais dos estudos em saúde coletiva e da antropologia em particular1 Questões como a medicalização e medicamentalização da subjetividade patologização do sofrimento terapeutização das escolhas individuais são tratadas pela literatura antropológica mais recente como sinais de uma expansão dos domínios de atuação da biomedicina e de extensão do campo do patológico para dentro do que tradicionalmente estaria nos domínios do normal2 O alongamento da lista de transtornos de ordem mental nos DSMs III e mais recentemente o IV 3 a multiplicação de escolhas medicamentosas que prometem o alívio do sofrimento psíquico e o crescimento da indústria de medicamentos ocorrem num contexto de expansão do poder da biomedicina em seu sentido amplo No Brasil todas essas questões combinamse com GÊNERO SAÚDE E AFLIÇÃO POLÍTICAS PÚBLICAS ATIVISMO E EXPERIÊNCIAS SOCIAIS Sônia Weidner Maluf mioloantroppmd 10022010 1440 21 22 algumas particularidades entre elas o movimento pela desinstitucionalização da saúde mental através da Reforma Psiquiátrica brasileira 4 e de uma política de acesso ao atendimento público de saúde e na complexa dinâmica em que universalização do acesso a saúde é vista como sinônimo de distribuição massiva de medicamentos pela rede pública Se de um lado os hospitais psiquiátricos estão fechando leitos ou deveriam estar como uma das metas da reforma psiquiátrica por outro a psiquiatria está cada vez mais presente nos ambulatórios e os medicamentos psicotrópicos sendo cada vez mais utilizados para além dos tratamentos psiquiátricos convencionais Essa disseminação do uso de psicofármacos e psicotrópicos de todo tipo com ênfase nos últimos anos nos antidepressivos inclusive entre mulheres de classes populares rurais e mulheres indígenas foi um dos fatores que inspirou a realização da pesquisa cujos resultados estão neste livro 5 Observamos junto com outros estudos sobre o tema que a constituição e o contexto atual do campo da chamada saúde mental 6 no Brasil têm evidenciado três aspectos complementares Em primeiro lugar a mudança nos últimos anos de um modelo manicomial e exclusivamente psiquiátrico de atendimento para um modelo ambulatorial disseminado e onde não só a psiquiatria passa a ser exercida nos espaços de atendimento público7 como as questões ligadas ao cuidado da saúde mental e as terapias medicamentosas nesse campo passam a ser largamente exercidas por outras especialidades mioloantroppmd 10022010 1440 22 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 23 da medicina Alguns autores identificam nessa mudança do modelo manicomial para o ambulatorial um processo de psiquiatrização da medicina8 Em segundo lugar e este também não é um fenômeno específico do Brasil ocorre a partir do final dos anos 70 um processo de remedicalização ou biologização da psiquiatria9 consolidado sobretudo com a publicação do DSM III Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders editado pela Associação Americana de Psiquiatria10 trazendo uma compreensão das doenças mentais como entidades mórbidas distintas e universais Aguiar 2004 22 e uma substituição da relação terapêutica médicopaciente pelo controle farmacológico dos sintomas idem11 Em terceiro lugar e aqui sim falamos especificamente do Brasil e mais especificamente ainda ao estado de Santa Catarina constatamos a alta disseminação do uso de psicofármacos e psicotrópicos de todo tipo com ênfase nos últimos anos nos antidepressivos não apenas pelas suas chamadas consumidoras tradicionais vinculadas às classes médias e altas mas agora cada vez mais entre mulheres de classes populares rurais e mulheres indígenas12 É esse terceiro fenômeno do alto consumo de psicofármacos entre mulheres de camadas populares somado ao uso de um vocabulário e de um quadro semântico para falar de sua perturbação depressão pânico etc que até alguns anos atrás estaria identificado de um lado a uma cultura psicológica ou psicanalítica específica das classes médias e de outro a uma racionalização médica da experiência subjetiva ou seja a uma mioloantroppmd 10022010 1440 23 24 concepção predominantemente individualista de corpo e pessoa que interessou particularmente investigar na pesquisa que deu origem a este livro Uma de nossas questões foi sobre o quanto esse fenômeno relativamente recente mas disseminado de consumo de medicamentos psicotrópicos e de uso de uma linguagem ou dialeto médico também entre mulheres de classes populares caracterizaria uma mudança significativa na percepção dos sofrimentos entre estes setores vistos como tradicionalmente menos afeitos aos discursos psicologizantes e biomédicos13 em relação ao predomínio já discutido em outros trabalhos do chamado paradigma dos nervos Duarte 1986 Silveira 2004 entre outros em que o físico e o moralpsicológico não são vistos como dimensões separadas da experiência Esta questão apesar de sua importância na contemporaneidade ainda tem sido pouco abordada pelos estudos antropológicos tanto na área de gênero quanto na de saúde OS ESTUDOS ANTROPOLÓGICOS DE SAÚDE GÊNERO E DO NERVOSO Os estudos de antropologia da saúde cresceram enormemente nos últimos anos estabelecendose como um campo em pleno processo de consolidação no interior da antropologia brasileira incluindo seus desdobramentos específicos como saúde indígena gênero e saúde religião e processos de cura saúde mental entre outros No caso da temática genérica de saúde mental e aflição incluindo a mioloantroppmd 10022010 1440 24 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 25 questão da doença dos nervos o gênero tem aparecido em sua relevância etnográfica tanto quantitativa ou seja pelo alto índice de mulheres sofredoras desse tipo de perturbação quanto qualitativa pela forma como as representações e ideologias da diferença de gênero conformam as experiências sociais da doença e do sofrimento psicológico físicomoral ou do nervoso14 No entanto poucas são as reflexões no caso brasileiro que dialogam com uma perspectiva de gênero Apesar da relevância etnográfica e fenomenológica do gênero na já grande produção antropológica brasileira sobre doença e perturbação saúde mental cultura psicanalítica e sobretudo doença dos nervos15 as abordagens de gênero são escassas16 No campo dos estudos de gênero as abordagens sobre saúde têm se restringido quase que em sua totalidade às questões de saúde sexual e reprodutiva e às questões cidadania e de acesso ao atendimento e ao cumprimento das políticas públicas de saúde Outros estudos em uma abordagem genealógica foucaultiana situam a medicina e o campo biomédico como discursos e saberes que instituem processos de subjetivação e de diferenciação de gênero Laqueur 2001 e Rohden 2001 e artigo nesta coletânea17 Nesta área têm sido recorrentes as controvérsias entre abordagens que consideram os processos de medicalização da reprodução como propiciadores de uma maior autonomia das mulheres sobre seus corpos e sua sexualidade e num outro extremo estudiosas que consideram este processo um fato de maior dependência mioloantroppmd 10022010 1440 25 26 das mulheres da tecnologia da indústria farmacêutica e portanto de perda de autonomia das mulheres dado os contextos políticos e econômicos mais amplos nos quais estão inseridas Os casos da pílula anticoncepcional das novas tecnologias reprodutivas da assistência ao parto e da cirurgias plásticas são exemplos emblemáticos destas controvérsias e reveladores das complexidades existentes entre os processo de medicalização do corpo e da vida e mais especificamente do corpo e da vida das mulheres18 Os estudos antropológicos sobre perturbação e nervos têm em geral estabelecido uma dicotomia entre dois modos ou modelos distintos de conceber a Pessoa e a subjetividade entre classes médias e classes populares no Brasil19 A configuração dos nervos é o paradigma central de um modelo descrito como predominante entre as camadas populares centrada em uma concepção holística e relacional da Pessoa e oposta a uma configuração psicológica focada na noção de indivíduo interiorizado e autonomizado 20 Na chamada configuração dos nervos o sofrimento e a aflição são descritos através da combinação de sintomas físicos dor nas pernas taquicardia cansaço etc com sintomas de ordem emocional vontade de chorar explosão de raiva vontade de quebrar a casa falta de vontade apontando para o modelo que Luiz Fernando Duarte denominou físicomoral diferente tanto da racionalização biomédica quanto da psicologização que separam a experiência afetiva e emocional da experiência física orgânica ou corporal mioloantroppmd 10022010 1440 26 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 27 Estudos antropológicos referentes aos anos 70 e 80 entre as classes médias urbanas brasileiras apontavam para a emergência de um modelo de subjetividade bastante influenciado pelos discursos psicológicos eou psicanalítico falar de si dar visibilidade ao fato de frequentar um analista utilizar linguagem especializada do jargão psicológico ou psicanalítico21 Esse último seria um modelo mais psicologizado ou individualista específico como ideal de certos segmentos das classes médias urbanas brasileiras22 Nesse caso a psicanálise e as psicoterapias de modo geral são tomadas como formas culturais particulares conformadas dentro de certa configuração de valores do mundo moderno23 Estes seriam ao mesmo tempo valores predominantes englobantes no discurso e nas instituições modernas mas específicos ou próprios a certos segmentos sociais Nos últimos anos no entanto esse chamado paradigma psi de certos setores das classes médias urbanas também nestas deslocouse para ou deu lugar a um paradigma biomédico e fisicalista num processo combinado de patologização da experiência e medicalização do cotidiano Ou seja entre as classes médias mais individualizadas o modelo biomédica viria substituindo o modelo chamado psicológico constatado por estudos antropológicos nos anos 70 e 80 A pergunta que a disseminação do uso dos psicofármacos e do dialeto médicopsiquiátrico entre mulheres de classes populares nos coloca é o quanto esse fenômeno significa um mioloantroppmd 10022010 1440 27 28 deslocamento da linguagem e do paradigma dos nervos para um outro paradigma não exatamente o da configuração psicológica na medida em que não é mais possível falar da psiquiatria hoje remedicalizada e rebiologizada como pertencente ao campo psi mas o de uma racionalização médica da experiência subjetiva e do sofrimento O quanto o idioma social da doença do sofrimento e da aflição teria se deslocado com essa expansão e disseminação não apenas da linguagem médica mas de seus modelos de adoecimento e cura Nesse caso o medicamento passaria a ser uma espécie de língua franca nos discursos sobre a subjetividade o medicamento colocaria ainda o sujeito num patamar de experiência compartilhada com outros sujeitos do mesmo e de outro segmento social Ao mencionar o confronto desses modelos resumidos na matriz dos nervos e na matriz psicologizante ou mesmo fisicalista não estou nem aderindo a uma dicotomização às vezes redutora entre cultura das classes médias e das classes populares por um lado nem considerando que esses modelos não sejam operacionais ou heurísticos24 Uma de nossas hipóteses iniciais foi justamente quanto à existência de um deslocamento ou mudança entre as camadas populares urbanas brasileiras em anos recentes da configuração dos nervos fundamentada em uma concepção que ultrapassa as dicotomias mentalorgânico ou físicopsicológico para um modelo que incorpora parcialmente uma concepção psicológica do sujeito e principalmente uma concepção medicalizada e racionalizada da subjetividade Ou mesmo para uma mioloantroppmd 10022010 1440 28 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 29 reconfiguração e recombinação desses dois modelos para além da perspectiva dicotômica como os estudos de campo realizados no âmbito da pesquisa ver demais artigos desta coletânea parecem demonstrar Um exemplo que reapareceu nas diversas pesquisas de campo empreendidas pela equipe de pesquisa é a fala de mulheres que recorrentemente se referiam a sua perturbação e aos motivos de estarem utilizando anti depressivos através de categorias como depressão de modo geral e mais especificamente síndrome do pânico ou pânico e eventualmente fibromialgia doença descrita como um conjunto de dores corporais que atingiria sobretudo mulheres diagnosticada clinicamente e tratada com anti depressivo Mas até que ponto a utilização de uma categoria médica significa a adoção dos mesmos sentidos dados a esta pelo campo biomédico e científico Essas questões sobre as especificidades das culturas populares em relação às concepções de saúde corpo e pessoa à circularidade dos níveis culturais e em relação ao significado do medicamento serão retomadas mais adiante Antes vou situar o contexto mais amplo das políticas de saúde saúde mental e saúde da mulher no Brasil e como a questão de gênero e saúde mental tem sido articulada na esfera governamental do Estado e das políticas públicas como aparecem no discurso dos movimentos sociais e como se configuram nas falas e narrativas sobre as experiências sociais de mulheres em relação a suas aflições adoecimento e formas de alívio tratamento ou cura Um confronto entre esses discursos e práticas sociais pode nos dar uma idéia das diferentes mioloantroppmd 10022010 1440 29 30 configurações em torno de gênero saúde e aflição que emergem no contexto mais amplo da saúde mental no Brasil DIFERENÇA E MEDICALIZAÇÃO COMO POLÍTICA PÚBLICA Como uma tendência contemporânea para uma racionalização biomédica da vida subjetiva se desdobra e se reflete no plano de políticas e programas governamentais nas áreas de saúde mental e gênero25 O contexto das políticas de saúde mental no Brasil hoje é o da Reforma Psiquiátrica levada a cabo a partir de um amplo programa de desinstitucionalização dos pacientes que busca romper com o modelo manicomial26 Esses programas governamentais propõem também a criação de uma ampla e disseminada rede pública de atendimento ambulatorial e clínico tanto nas unidades básicas de atenção à saúde já existentes quanto na criação de outros espaços como os CAPS Centros de Atendimento Psicossocial espaços mais especializados destinados aos chamados casos considerados pelos profissionais como de maior complexidade ou a alguns transtornos específicos como adição a álcool ou drogas os CAPSad É também necessário reconhecer que política pública não é apenas o documento público institucional como os planos nacional estaduais e municipais de saúde mental ou de saúde da mulher e os diversos programas terapêuticos mas também tudo aquilo que os profissionais e agentes de saúde que atuam no atendimento básico à saúde fazem no cotidiano de seu trabalho sobretudo no que diz respeito à relação com os mioloantroppmd 10022010 1440 30 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 31 pacientes e usuários27 desses serviços Nesse sentido para analisar as políticas públicas foi feita durante a pesquisa uma leitura atenta dos diversos planos e políticas de saúde mental em nível nacional estadual e municipal assim como de alguns programas terapêuticos de unidades básicas de saúde para chegar finalmente às práticas e discursos dos profissionais e agentes sociais que lidam cotidianamente e diretamente com as pessoas denominadas usuárias do sistema e dos serviços públicos de saúde28 No que diz respeito às políticas públicas e governamentais em relação a saúde mental as mulheres são mencionadas a partir do que seriam suas situações de vulnerabilidade ligadas à noção de ciclo de vida conforme veremos adiante As Diretrizes Nacionais de Saúde Mental de 1977 definiam entre outras coisas a necessidade de ações de prevenção primária visando os grupos de maior risco gestantes mães adolescentes e geriátricos no intuito de reduzir nesta população o surgimento de alterações e a promoção sic de níveis de saúde mental satisfatórios apud Cardoso 199936 As mesmas Diretrizes previam a formação de grupos de mães e gestantes Cardoso 199937 definindo os seguintes objetivos No caso das gestantes a finalidade é conscientizar a futura mãe do processo vivenciado desfazendo fantasias reduzindo ansiedade e orientandoa nos cuidados necessários para o desenvolvimento satisfatório do concepto promover o adequado relacionamento mãefilho evitando a conhecida síndrome de privação mioloantroppmd 10022010 1440 31 32 e ensejando o bom relacionamento físico mental e emocional da criança Brasil Ministério da Saúde Diretrizes Programáticas de Saúde Mental In Conferência Nacional de Saúde6 Brasília 1977 apud Cardoso 1999 p 37 No caso específico das políticas de saúde voltadas para as mulheres a quase totalidade dessas políticas expressa por exemplo no Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher PAISM de 1984 é ocupada com as questões de saúde reprodutiva e prevenção Como veremos adiante esse quadro não mudou substancialmente e foi apenas muito recentemente após a II Conferência Nacional de Políticas para Mulheres em 2007 que a necessidade de uma política de saúde mental também na perspectiva de gênero começou a ser discutida O II Plano Nacional de Políticas para Mulheres aprovado a partir da II Conferência prevê entre as prioridades em relação ao item Saúde das mulheres direitos sexuais e direitos reprodutivos Promover a implantação de um modelo de atenção à saúde mental das mulheres na perspectiva de gênero considerando as especificidades étnicoraciais Brasil Secretaria Especial de Políticas para Mulheres II Plano Nacional de Políticas para Mulheres Brasília 2007 p15 E entre as metas para o período Implantar cinco experiênciaspiloto uma por região de um modelo de atenção à saúde mental das mulheres na perspectiva de gênero Idem p16 mioloantroppmd 10022010 1440 32 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 33 No mesmo item sobre saúde do documento reforçase a ênfase aos direitos reprodutivos e à noção de ciclo vital e de ciclo de vida das mulheres definido pelas diversas fases de seu ciclo biológico como mulheres no climatério jovens e adolescentes A depressão pósparto tem aparecido de forma mais detalhada nas preocupações do Ministério da Saúde É citada em diversos documentos do Ministério O Manual Técnico sobre prénatal e puerpério de 2006 dedica um item inteiro aos Aspectos emocionais da gravidez e do puerpério introduzido da seguinte maneira as condutas baseadas somente nos aspectos físicos não são suficientes Elas necessitam ser potencializadas especialmente pela compreensão dos processos psicológicos que permeiam o período grávido puerperal notadamente no caso de gestantes adolescentes que pelas especificidades psicossociais da etapa evolutiva vivenciam sobrecarga emocional trazida pela gravidez Brasil Ministério da Saúde Manual Técnico Prénatal e puerpério Atenção qualificada e humanizada Brasília 2006 p35 Definindo uma série de procedimentos na relação do médico ou profissional com a paciente o documento também descreve o que seriam reações ou sintomas típicos para cada etapa da gravidez culminando com os sintomas do puerpério O documento também cita a redução dos casos de depressão pósparto como um dos efeitos de uma política de mioloantroppmd 10022010 1440 33 34 acolhimento da mulher nas unidades de saúde e principalmente na aceitação de um acompanhante de sua escolha idem p 15 A necessidade de uma política de saúde mental numa perspectiva de gênero foi também objeto de uma reunião no Ministério da Saúde em que foram levantados diversos aspectos de uma política específica voltada para as mulheres29 Na dimensão local da aplicação das políticas públicas as especificidades e cada contexto evidenciam um quadro bastante heterogêneo No caso dos programas terapêuticos de algumas unidades básicas de saúde e principalmente nas práticas dos profissionais que ali atuam percebemos em primeiro lugar em muitos casos um desconhecimento dos planos de saúde mental tanto nacionais quanto estaduais assim como dos planos de saúde das mulheres 30 Em segundo lugar há uma heterogeneidade muito grande nas práticas de atendimento que vão da distribuição de medicamentos psicotrópicos à implantação de outras formas de tratamento ou apoio como grupos terapêuticos grupos de idosos grupos de mulheres em tratamento de depressão e outros transtornos passando por aulas de alongamento e ginástica acupuntura homeopatia fitoterapia e arteterapia entre outros Mas mesmo constatando que as práticas não são homogêneas não se pode negar o peso que a distribuição generalizada de medicamentos como benzodiazepínicos e antidepressivos tem hoje no atendimento público não apenas nos CAPS especializados em saúde mental mioloantroppmd 10022010 1440 34 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 35 ou psicossocial mas também e sobretudo nas unidades básicas de saúde Temos muitos exemplos da pesquisa de campo realizada relatados tanto por pacientes quanto por profissionais que atuam nessas unidades além dos números relativos à distribuição e consumo desses medicamentos em que salta aos olhos o fato de que a maioria esmagadora de consumidores desses medicamentos na rede pública são mulheres31 Esses dados nos fazem questionar apesar de não haver uma política explícita e consolidada de gênero de saúde mental nos programas oficiais percebese que na aplicação da política de saúde no cotidiano das unidades de saúde e dos Centros de Atendimento Psicossocial uma política da diferença e a evidência de um discurso da diferença de gênero se faz presente na prática há uma política sendo implantada ou reproduzida uma política que implica na medicalização e medicamentalização de mulheres usuárias do serviço público A pesquisa feita nos documentos governamentais e junto aos agentes e profissionais de atenção básica à saúde nos apontou para alguns pontos que consideramos importantes na discussão de uma política sobre gênero e saúde mental sobretudo no que diz respeito ao atendimento básico e público entre eles 1 a necessidade de se fazer um balanço crítico de algumas práticas institucionais que acabam reforçando a desigualdade de gênero 2 a constatação de uma realidade de hipermedicalização e hipermedicamentalização das mulheres com o uso de psicofármacos 3 a confusão entre mioloantroppmd 10022010 1440 35 36 democratização e universalização do acesso à saúde e a distribuição massificada de medicamentos o que implicaria em repensar o atendimento básico em saúde mental em relação à necessidade de uma política terapêutica e psicoterapêutica menos medicamentosa ou seja 4 necessidade de uma política de saúde mental que ofereça outros tratamentos além da medicamentalização como acompanhamento terapêutico sistemático entre outros 5 a necessidade de se repensar os modelos de cuidado saúde doença sofrimento e cura também nas políticas oficiais de saúde da mulher e de saúde mental 6 a ruptura com um modelo de saúde da mulher assentado na visão biologicista do ciclo de vida e das fases da vida reprodutiva das mulheres como determinantes de maior ou menos vulnerabilidade destas a problemas de saúde mental Além destes pontos especificamente voltados à questão de gênero e saúde mental é preciso uma reflexão sobre o processo de desinstitucionalização dos pacientes internos trazido pela Reforma Psiquiátrica e o que parece ser o seu contraponto no plano da política pública a crescente medicamentalização e patologização dos pacientes na atenção básica Essas questões se evidenciam não apenas pela leitura das políticas governamentais ou pelas falas dos profissionais de saúde É sobretudo através do confronto entre os discursos das políticas de governo em torno de saúde mental e de saúde da mulher as plataformas políticas dos movimentos sociais e as experiências sociais de mulheres de camadas populares em mioloantroppmd 10022010 1440 36 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 37 seus cotidianos que somos levadas a questionar sobre o que seria então essa perspectiva de gênero vista como necessária nas políticas de saúde mental O que constatamos é que nos diferentes discursos de quem elabora as políticas públicas da indústria farmacêutica e dos próprios movimentos como veremos a seguir a perspectiva de gênero se reduz à definição do que seriam especificidades femininas quanto à aflição e ao sofrimento especificidades em geral ligadas à noção de ciclo de vida biológico que remeteria a uma maior vulnerabilidade das mulheres em situações como adolescência gravidez pósparto e menopausa prevalecendo um modelo físicalista e de racionalização médica da diferença de gênero Um argumento a ser desenvolvido é de que uma perspectiva crítica de gênero nas políticas de saúde da mulher incluindo saúde mental deveria ter o sentido exatamente inverso ao constatado deveria ter como objetivo rever as práticas que reforçam concepções reificadoras e reprodutoras da diferença sexual Isso implicaria não apenas em mudanças no texto dos planos governamentais mas também na formação dos profissionais de saúde e no questionamento dos próprios paradigmas do discurso e dos saberes biomédicos historicamente comprometidos com a reprodução da diferença e da desigualdade GÊNERO E SAÚDE NOS MOVIMENTOS SOCIAIS Particularmente em relação ao tema gênero e saúde grande parte das pesquisas acadêmicas fontes de mioloantroppmd 10022010 1440 37 38 financiamento políticas institucionais e governamentais discursos e práticas militantes têm se dado em torno especificamente da questão da saúde sexual e reprodutiva com ênfase em prevenção de DSTsAids contracepção aborto e saúde materna Essa tem sido a agenda comum não explícita das diferentes esferas governamentais e militantes em grande parte determinada pelas políticas de financiamento e pelos órgãos de fomento à pesquisa mas também pelas ações estratégias e políticas de intervenção social vinculadas aos movimentos sociais e às ONGs No caso específico dos movimentos e organizações feministas incluindo as ONGs que trabalham com a temática do gênero em um levantamento preliminar realizado junto a esses grupos e ONGs os projetos desenvolvidos por estes e nos encontros feministas como o 10º Encontro Feminista LatinoAmericano e do Caribe constatamos que a ênfase na saúde reprodutiva tem relegado a um segundo plano a própria questão da sexualidade32 Mesmo quando os diferentes discursos apontam para a saúde como um tema central e estratégico para o movimento feminista no que concerne particularmente ao campo da saúde mental o ativismo político feminista e as ações da ONGs se resumem a alguns trabalhos na área de assistência psicológica e a alguns projetos incipientes em torno dos vínculos entre violência e saúde mental33 O desenvolvimento da pesquisa junto aos movimentos redes e grupos pela igualdade de gênero apenas reforçou e nos deu mioloantroppmd 10022010 1440 38 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 39 evidências mais concretas dessa constatação Mas além disso constatamos que grande parte da política dos movimentos sociais em relação a saúde e saúde mental estão voltadas para uma demanda por mais acesso ao atendimento e aos medicamentos dentro de uma agenda política de universalização dos direitos e de equidade no acesso aos recursos de última geração oferecidos pela biomedicina mais notadamente aos medicamentos Ou seja predomina nos grupos ativistas e movimentos sociais em geral uma visão que confunde universalização democratização e acesso à saúde com distribuição de medicamentos A indústria farmacêutica é denunciada pelo monopólio das patentes dos medicamentos pelos altos preços mas muito pouco ou nada questionada pelas concepções de adoecimento cura e saúde ou pela própria lógica que predomina na produção e pesquisa de novos medicamentos o que implicaria num questionamento das noções mesmo de desenvolvimento e progresso da ciência34 Por outro lado assim como nas políticas governamentais grande parte dos discursos ligados ao ativismo e aos movimentos sociais incluindo os feministas acaba também por reduzir a discussão sobre gênero e saúde mental ao ciclo biológico das mulheres o que remete a uma noção de pessoa e de sujeito no que diz respeito a estas que mesmo em suas experiências de aflição as nos reduz a um corpo O questionamento dessa perspectiva não se dá apenas pela referência a uma abordagem teórica proporcionada pelos mioloantroppmd 10022010 1440 39 40 estudos de gênero que combate a redução da diferença ao biológico e constrói a crítica dos saberes médicos e científicos como discursos e saberes que reproduzem a diferença e a desigualdade de gênero35 mas no caso desta pesquisa é provocado pelo confronto dos discursos oficiais com o das próprias mulheres que são objeto dessas políticas como veremos a seguir AS EXPERIÊNCIAS SOCIAIS É justamente a partir dos diferentes discursos e experiências sociais que esses modelos fisicalistas e racionalizadores da experiência da aflição entre mulheres são confrontados de forma mais evidente na pesquisa Esse ao lado das políticas públicas e do ativismo constituiuse na terceira vertente de nossa abordagem Por experiências sociais estamos designando a dimensão da vivência e produção de saberes e discursos por parte daquelas que são justamente o público alvo das políticas públicas e da atuação dos profissionais e agentes de saúde as mulheres das classes populares Essa perspectiva não implica de forma alguma na reificação da dicotomia entre fato e valor representada nos estudos antropológicos de saúde por uma abordagem fenomenológica da experiência de sujeitos individuais de um lado e na abordagem das representações sociais da doença do corpo e da pessoa Nosso entendimento teórico e reflexivo sobre questões como doença aflição e sofrimento e das estratégias de ação e significação dadas pelos diferentes atores mioloantroppmd 10022010 1440 40 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 41 sociais tem como ponto de partida a ideia de que experiência e seus sentidos sociais são duas dimensões complementares em uma abordagem antropológica da saúde As falas relatos e narrativas das mulheres sobre sua experiência de aflição sofrimento e adoecimento e sobre seus itinerários e estratégias de cura alívio etc em geral articulamse com outras dimensões da experiência e da existência e enunciam mais do que interpretações do vivido no campo do adoecimento e da cura Além de veicularem visões de mundo valores e concepções de corpo pessoa família etc também a situação da pesquisa e a oportunidade de contar narrar suas experiências são apropriadas por elas como um momento de autorreflexão e de autoconstrução36 Na abordagem das experiências sociais a pesquisa desdobrouse em diversos trabalhos de campo específicos feitos junto a comunidades e bairros populares de Florianópolis entre eles os bairros Rio Vermelho Rio Tavares e Monte Cristo este último sendo aquele em que a pesquisa durou mais tempo e implicou em uma imersão mais densa na comunidade37 sendo também o bairro com característica mais marcada de bairro popular urbano que congrega populações de classes trabalhadoras em emprego formal ou informal Percebemos mais fortemente no bairro Monte Cristo mas também nos demais algumas mudanças no perfil sóciocultural e nos valores predominantes em estudos anteriores38 Quando empreendi em meados dos anos 80 uma pesquisa sobre mioloantroppmd 10022010 1440 41 42 narrativas de bruxaria gênero e poder em localidades em torno da Lagoa da Conceição em Florianópolis39 predominava nessas localidades uma dinâmica de bairro rural ou comunidade em que as redes de apoio parentela e vizinhança predominavam Mesmo com muitas mulheres trabalhando na prestação de serviços nas casas mais abastadas da comunidade ou no comércio na cidade grande parte de suas atividades e preocupações girava em torno do espaço doméstico e familiar e da vida na comunidade Na pesquisa sobre mulheres e doenças dos nervos no bairro Campeche de Maria Lúcia Silveira realizada no final dos anos 90 as queixas das mulheres estavam ligadas principalmente a questões que envolviam família e espaço doméstico ou seja ao espaço da casa ao trabalho doméstico à relação com marido e filhos Esse quadro mesmo nas comunidades tradicionais de Florianópolis tem mudado nos últimos anos os antigos nativos descendentes de colonos açorianos ou de exescravos passando a constituir uma população mais próxima às classes populares urbanas de cidades de médio e grande porte40 Na pesquisa de campo desenvolvida no bairro Monte Cristo bairro que tem como origem um movimento de ocupação e conquista constatase que as queixas mais fortes por parte das mulheres não se referem exclusivamente a conflitos na esfera doméstica e familiar mas estão ligadas ao contexto de violência no bairro a relatos sobre tiroteios no meio da madrugada acertos de conta filhos na prisão etc e a mioloantroppmd 10022010 1440 42 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 43 questões relativas a trabalho e dinheiro sugerindo um outro perfil para essas mulheres que se autodefinem agora menos como donas de casa e mais como mulheres trabalhadoras urbanas muitas delas provedoras do lar e mantenedoras dos laços familiares Além disso conforme apontam Tornquist Andrade e Monteiro no artigo nesta coletânea para muitas dessas mulheres a luta de ocupação e conquista do espaço para morar no bairro é uma referência constante nas falas das moradoras que ressignificam sua experiência atual a partir do fato passado da luta política e pela sobrevivência Nossas pesquisas junto a essas mulheres moradoras de bairro periféricos de Florianópolis nos têm ao contrário do discurso hegemônico tanto nas políticas de governo quanto nas plataformas de parte dos movimentos sociais apontado para outras questões que pontuam o discurso e as narrativas delas sobre suas aflições em geral ligados a experiências sociais vistas como perturbadoras articuladas em geral a suas vivências cotidianas e ao seu contexto social cultural e econômico e não a uma percepção de fases em seu ciclo de vida tal como colocam as políticas públicas em saúde mental e saúde da mulher Contrapondo um universo discursivo e simbólico a outro o das políticas públicas e o das experiências sociais evidenciamse dois modelos de compreensão da aflição um modelo fisicalista ou fisiológico que enfatiza uma concepção biológica da diferença de gênero e dos processos de sofrimento e adoecimento e uma concepção ou modelo que poderia se mioloantroppmd 10022010 1440 43 44 chamar de sociológico de sua perturbação centrado nas suas diferentes experiências cotidianas e nas próprias histórias e narrativas de vida dessas mulheres Isso expande a discussão antropológica feita em torno da questão da doença dos nervos em que ao modelo fisicalista biomédico se contrapunha um modelo físicomoral da perturbação no qual as concepções de saúde corpo e pessoa são fundamentalmente opostos ao modelo racionalizador moderno O que estou denominando de uma sociológica da narrativa das mulheres pesquisadas é sua dimensão que vai além de concepções de corpo pessoa e doença abrangendo dimensões sociais e históricas de sua aflição e seu malestar Como exposto elas relacionam seus sentimentos de aflição ao contexto de sua vida cotidiana no bairro problemas econômicos dupla jornada de trabalho e a sua percepção da passagem do tempo da ocupação e da luta política ao tempo presente em que o contexto do bairro é outro Uma sociológica que não deixa de incorporar ou englobar a dimensão fisicalista dos discursos e práticas biomédicas aceitando os diagnósticos realizando os tratamentos ingerindo os medicamentos mas ressignificandoos a partir de suas vivências cotidianas e valores compartilhados e eventualmente incorporandoos ou combinandoos a concepções físicomorais do sofrimento e da doença41 Em resumo o que estou chamando aqui de modelo sociológico para falar sobre suas aflições amplia a percepção e os discursos sobre a doença e o sofrimento para além das concepções de corpo mioloantroppmd 10022010 1440 44 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 45 saúde e doença incorporando as dimensões sociais e políticas do vivido a violência no bairro as dificuldades econômicas as desigualdades de gênero a história política de ocupação e conquista do lugar42 GÊNERO AFLIÇÃO E BIOPODER As frentes de pesquisa de campo junto às mulheres moradoras de bairros periféricos de Florianópolis com trajetória de diagnóstico e tratamento de depressão e com os profissionais e agentes de saúde que atuam no atendimento básico nos evidenciaram alguns aspectos da relação entre experiências sociais e políticas públicas em relação a saúde mental Esses diferentes aspectos só poderiam ser apreendidos mediante uma abordagem qualitativa método que orientou todos os trabalhos publicados nesta coletânea e etnográfica privilegiando as falas dos sujeitos sobre suas diferentes e singulares experiências e os sentidos sociais dados a estas por uma leitura etnográfica dos documentos e textos oficiais buscando apreender as categorias empregadas as redes de significado e a configuração de valores veiculada nesses textos pela apreensão das complexidades da dinâmica cultural em que esses valores são ressignificados e também apreendidos pelos diferentes setores sociais envolvidos Esse é um aspecto que vale a pena desenvolver um pouco mais ao mesmo tempo em que os sujeitos e grupos sociais que são alvo de uma política de saúde pública universalizadora e parcialmente distributiva mioloantroppmd 10022010 1440 45 46 acesso a médicos e outros profissionais de saúde a exames e a medicamentos são capazes de ressignificar os valores e sentidos embutidos nessas políticas também aderem aos regimes do biopoder e da biopolítica43 de diferentes maneiras Uma das faces dessa dinâmica é a constatação exposta acima de que mesmo com toda a crítica acadêmica à medicalização e à dimensão política do uso das tecnologias médicas como regimes de assujeitamento e controle percebe se nos diversos movimentos sociais ligados a saúde nas políticas públicas e nos discursos dos chamados usuários do sistema público de saúde um certo consenso em torno de uma demanda por medicalização Ou seja a idéia de uma política democrática de saúde está bastante ligada não apenas ao chamado acesso à saúde e sua universalização mas é traduzida nos discursos públicos ao acesso a medicamentos sobretudo às chamadas últimas gerações de medicamentos A demanda por medicalização aparece fortemente nas falas de muitos profissionais de saúde que se queixam das estratégias e formas de pressão utilizadas pelos pacientes para obterem uma receita44 e também nas falas das mulheres diagnosticadas como sofredoras de depressão e consumidoras de medicamentos quando relatam os efeitos do medicamento e as mudanças que esse uso provocou em suas vidas45 Isso nos coloca a questão do significado do medicamento que nos diferentes universos sociais simbólicos e retóricos passa a adquirir um estatuto de agente dotado de capacidade de mioloantroppmd 10022010 1440 46 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 47 ação A potência e capacidade transformadora do medicamento aparece em várias dimensões dos diferentes discursos sociais Da indústria farmacêutica aos profissionais de saúde aos mentores e gestores de políticas públicas aos ativistas no campo da saúde mental aos pacientes e usuários do sistema de saúde o medicamento é dotado de um poder de ação e de transformação do sujeito que dele faz uso46 A própria possibilidade de realização da Reforma Psiquiátrica e de desinstitucionalização da saúde mental no Brasil é remetida muitas vezes ao desenvolvimento de medicamentos que controlam a loucura possibilitando a saída dos manicômios47 Mas se para a indústria farmacêutica essa retórica está muito mais ligada a uma estratégia de divulgação e venda do medicamento nas falas de pacientes e usuárias o medicamento se torna a definição mesmo de tratamento médico de modo geral se não sair com a receita na mão a consulta não tem valor símbolo de cuidado de si moeda de troca e de status em comunidades pequenas e em relações de vizinhança48 O modelo biomédico da depressão fornece uma explicação bioquímica para o sofrimento ou seja imprime à depressão e a qualquer tipo de sofrimento e malestar um modelo explicativo racionalizado e biologizado Se no caso dos nervos e das nervosas havia uma desconsideração por parte do campo médico em relação mesmo a estabelecer um diagnóstico49 quanto mais a tratar nessa nova configuração da perturbação ocorre de um lado o reconhecimento e a medicalização até mioloantroppmd 10022010 1440 47 48 excessiva e de outro a incorporação de um discurso racionalizador sobre a experiência do sofrimento e da doença juntamente a um processo crescente de medicalização da vida e da subjetividade50 Maria Lúcia da Silveira relata que os médicos em geral não reconheciam o o nervoso como doença e raramente se propunham tratála a não ser com receitas de calmante barbitúricos e o uso de placebos51 O diagnóstico de depressão tem hoje atingido em alguns casos uma população de mulheres muito semelhante à das doenças dos nervos para além das mulheres das classes médias ou das elites urbanas mulheres de zona rural indígenas mulheres de classes e bairros populares que se tratam pela rede pública Percebese uma mudança de prática e de discurso tanto por parte dos profissionais de saúde em relação a esse novo mal quanto por parte das pacientes Os profissionais não apenas passam a acolher as pacientes sofredoras como possuem hoje todo um dispositivo de tratamento fornecido pela política de saúde pública e pelos programas terapêuticos cujo foco está na distribuição gratuita de medicamentos pela rede Os usuários do sistema público e pacientes passam a utilizar uma nova linguagem para falar de seu sofrimento agora mimetizando o dialeto médico que muitas vezes aparece combinado com o idioma dos nervos em outras passa a ser o idioma exclusivo para falar da aflição e inserindo posto de saúde visitas ao médico consumo de psicofármacos receitados por médicos como foco de seus itinerários terapêuticos52 mioloantroppmd 10022010 1440 48 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 49 De um sujeito irracional movido por emoções e afecções em base orgânica ou física as histéricas e as nervosas o novo discurso fisicalista sobre o sofrimento feminino não apenas reconhece o sofrimento mas o diagnostica e trata Nessa nova intervenção fisicalista emerge um sujeito também racionalizado e individualizado capaz de se manter na cadeia produtiva doméstica ou do trabalho assalariado e potencializado enquanto sujeito produtor e produtivo Joel Birman professor da UFRJ discute os efeitos do processo de medicalização do social realizado pela biopolítica remetendo sua origem à longa passagem da salvação para a cura53 Se na tradição grecoromana a relação do sujeito com o mal e com o sofrimento era de ordem ética na expansão do cristianismo passou a ser de ordem religiosa através da ideia de salvação e no mundo modernocontemporâneo essa relação passa a ser mediada pela ciência através da problemática da cura enunciada na própria emergência da modernidade idem p531 No entanto se a partir do século XIX a diferença entre o normal e o patológico deixa de ser uma diferença de essência e passa a ser quantificável mensurável etc54 o que marcaria a forma atual dessa diferença e o que definiria hoje o normal Se na história da loucura estudada por Foucault eram a anormalidade e a degeneração os objetos do enclausuramento talvez uma diferença que podemos perceber no contemporâneo é que o alvo da intervenção biomédica ou o foco da mioloantroppmd 10022010 1440 49 50 medicalização é a própria normalidade ou dito de outro modo no continuum entre o Normal e o Patológico ocorre um processo crescente de patologização do normal Não apenas a fronteira entre um e outro se torna mais tênue mas ela também se desloca estendendo o território do patológico ou seja estendendo a esfera sobre a qual atuam os chamados imperativos de normalidade Assim como a medicina e os discursos e saberes biopsicomédicos se constituem como regimes de subjetivação já analisados por Foucault eles atuam também como tecnologias do gênero ou ciências da diferença conforme a discussão de Fabíola Rohden 2001 Até que ponto essa medicalização da diferença e da subjetividade levaria a uma perda da capacidade de agência e de autonomia das mulheres e das pessoas em geral envolvidas nesses processos até que ponto indicariam novos regimes de subjetivação sobretudo no sentido do assujeitamento a um conjunto de normas e valores sociais estéticos e existenciais que passam a constituir esses sujeitos O quanto estamos mais uma vez diante da biomedicina e do sistema médico como tecnologias do gênero não pelas suas expressões específicas da saúde da mulher como a ginecologia e a obstetrícia mas em sua expressão que mais fortemente atingiu o coração da construção do sujeito no contemporâneo a psiquiatria e as medicinas do mental São questões que merecem um debate maior Um último ponto a ponderar são as experiências sociais em torno das questões aqui descritas ou seja o dos já mioloantroppmd 10022010 1440 50 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 51 mencionados itinerários escolhas agenciamentos e transgressões protagonizados pelos sujeitos diretamente envolvidos nesse processo de medicalização da vida e controle da experiência subjetiva das mulheres Se por um lado podemos perceber no uso massificado de psicofármacos na aceitação e legitimação dos diagnósticos médicos formas de medicalização da subjetividade por outro nenhum dispositivo disciplinador de controle ou de vigilância atua sem a participação adesão dos sujeitos envolvidos Da mesma forma e numa outra perspectiva complementar a incorporação de ideologias e valores advindos do campo científico e dos saberes médicos não acontece sem a reinvenção dos usos desses dispositivos e dos sentidos dados a esses usos Como foi colocado acima se de um lado existe um uso bastante disseminado para não dizer massivo de medicamentos psicotrópicos ou de psicofármacos em grande parte com receitas e medicamentos fornecidos na própria rede pública de outro lado é bastante comum que as pessoas incluam em seu itinerário terapêutico junto com o consumo desses medicamentos outras formas de tratamento como o recurso às chamadas medicinas alternativas ou não convencionais chás fitoterápicos práticas corporais meditação etc55 e às curas rituais ou religiosas Sem necessariamente confrontarem um modelo com o outro o que novamente nos faz questionar que não é exatamente a lógica intrínseca a esta ou àquela técnica terapêutica que define os sentidos desta mas são seus usos mioloantroppmd 10022010 1440 51 52 sociais que definem seus significados e sentidos articulados com uma experiência social e histórica mais abrangente 56 A abordagem etnográfica das experiências sociais desses sujeitos introduz essa dimensão muitas vezes não reconhecida e não levada em consideração nos espaços em que políticas públicas e programas governamentais são elaborados Para muito além por exemplo do que alguns programas de saúde definem como momentos de maior vulnerabilidade das mulheres ligados ao ciclo biológico reprodutivo o que temos ouvido na pesquisa de campo são relatos e narrativas de experiências de outra ordem social política simbólica ligadas a contextos tanto locais quanto sóciohistóricoculturais mais amplos que podem nos dizer muito sobre as aflições contemporâneas e suas configurações de gênero Levar essas vivências em consideração fazer um esforço para compreender ou ao menos ouvir as explicações e interpretações dos sujeitos que são alvo dos programas governamentais perceber os discursos e as experiências sociais como também produtores de verdade pode ser o começo de uma outra política pública não apenas em saúde NOTASia Social UF Algumas reflexões feitas neste artigo já foram expostas em trabalhos apresentados em congressos palestras e mesas redondas e parcialmente em Maluf 2009 Minha escolha por recolocar essas reflexões eventualmente repetindo algumas já contidas no artigo se dá pelo caráter deste livro cujo objetivo é reunir o conjunto dos resultados de uma pesquisa empreendida ao longo de três anos 1 mioloantroppmd 10022010 1440 52 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 53 Maluf 2007 Estou me referindo aqui à discussão de Georges Canguilhem sobre o normal e o patológico e o caráter de sua diferenciação inaugurada pelo discurso e pelos saberes biomédicos modernos que passa de uma diferença de qualidade e de essência para uma diferença de grau quantificável mensurável entre o estado de normalidade e o estado de patologia Russo 2004 e Aguiar 2004 4 Sobre a Reforma Psiquiátrica a Reforma Psiquiátrica Brasileira e o processo de desinstitucionalização da saúde mental ver Amarante Paulo 1994 1996 e 2000 Desviat Manuel 1999 Fonseca Tânia Galli Engelman Selda Perrone Claucia Maria 2007 entre outros Cf Maluf Sônia Weidner Gênero subjetividade e saúde mental políticas públicas ativismo e experiências sociais em torno de gênero e saúde mental Projeto de Pesquisa CNPq Fapesc A pesquisa foi cocoordenada por Carmen Susana Tornquist e contou com uma ampla equipe que envolveu professoras da UFSC e da UDESC doutorandos mestrandos alunos de graduação e bolsistas de Iniciação Científica além de participantes externos voluntários O conceito de saúde mental tem sido objeto de diversas reflexões no campo das ciências sociais e da antropologia em particular Ao utilizarmos durante a pesquisa e em alguns artigos deste livro o conceito de saúde mental temos claro que não se trata de uma categoria da análise antropológica e reconhecemos seus limites como categoria descritiva das diferentes representações modelos e experiências sociais em torno da questão do sofrimento e da aflição ver Duarte 1994 O termo saúde mental é utilizado aqui para contextualizar o universo empírico da pesquisa que vai 2 3 5 6 mioloantroppmd 10022010 1440 53 54 além do fenômeno dos nervos ou do nervoso cuja abordagem pode ser perfeitamente contida no conceito de perturbação físicomoral sugerido por Duarte Referese também ao contexto institucional das experiências e discursos sociais pesquisados principalmente aquele ligado às políticas públicas e programas governamentais todos eles englobados sob a idéia de uma política de saúde mental Para nos referirmos no entanto à dimensão da experiência dos sujeitos pesquisados utilizamos a noção mais ampla e abrangente de aflição ou aflições buscando abarcar os significados dados por estes em suas narrativas que além de modelos de saúde doença corpo e pessoa trazem concepções bastante articuladas com as dimensões sociais e históricas de suas vivências 7 Aguiar 2004 e para uma descrição mais detalhada do atendimento psiquiátrico comunitário ver Cardoso 1999 entre outros 8 Cardoso 1999 e Birman apud Cardoso 1999 Aguiar 2004 entre outros Evidentemente que esse é um processo bastante desigual e heterogêneo se formos pensar no Brasil como um todo e na forma bastante distinta como a Reforma Psiquiátrica e a desinstitucionalização da saúde mental no Brasil vem sendo realizada em cada região e estado do país Há que se pensar também na heterogeneidade do atendimento primário em saúde em relação às várias regiões 9 Falar em remedicalização da psiquiatria não significa que as psiquiatrias exercidas antes estivessem fora do campo médico ou não tivessem uma orientação biofísicoorgânica No entanto o conceito de medicalização utilizado está ligado a uma dupla tendência de um lado a redução dos fenômenos de sofrimento e aflição a desequilíbrios e distúrbios de ordem orgânica ou físico mioloantroppmd 10022010 1440 54 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 55 química de outro uma extensão da amplitude da ação e da intervenção médicas 10 Os DSMs organizados pelos psiquiatras da Associação de Psiquiatria dos Estados Unidos estabelecem orientações para a prática psiquiátrica incluindo a definição das doenças e transtornos mentais ou psicológicos e os procedimentos terapêuticos Os DSM I 1952 e II 1968 seguiam uma orientação influenciada pela psicanálise e por uma visão dinâmica e processual da saúde mental O DSM III significou uma ruptura com a visão psicossocial presente nos DSM anteriores e a reintrodução de uma visão biologizada e remedicalizada da doença e da perturbação mental Cf Aguiar 2004 e Russo 2004 O DSM IV atualmente em vigor foi publicado em 1994 com uma versão revisada em 2000 Atualmente encontrase em discussão a publicação do DSM V que deveria sair em 2012 Principalmente a partir do DSM III é notável a influência destes sobre a CID Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados da Organização Mundial de Saúde 11 Sobre esse processo de patologização a partir dos DSMs no que tange à sexualidade ver Russo 2004 12 Não estamos aqui colocando em questão o fato do sofrimento ou da aflição dessas mulheres ou tomandoas como simples vítimas da indústria farmacêutica Se existe um alargamento das aflições nas sociedades contemporâneas e vários teóricos e críticos da cultura contemporânea têm discutido essa questão é a linguagem biomédica da doença orgânica e da ação da tecnologia incluindo os medicamentos que aparece como a resposta mais potente dentre os diferentes dispositivos sociais simbólicos e mioloantroppmd 10022010 1440 55 56 cosmológicos disponíveis Outra questão a ser desenvolvida é o quanto afecções que antes eram tomadas como normais hoje são vistas como patologias a serem tratadas 13 Psicologia e medicina colocadas aqui no mesmo campo discursivo pelo sentido racionalizador de seus saberes um psicológico outro fisicalista cujo fundamento é a divisão entre corpo e mente ou entre físicoorgânico e psicológicomental 14 Na literatura antropológica nos campos da antropologia médica ver Helman 2003 e da antropologia da saúde a doença dos nervos ocupou um lugar importante ao ser comparada com outras chamadas síndromes culturais como o susto no México e na América Central Rubel Onell Ardón 1995 vistas em geral como manifestações populares de perturbações e transtornos ligados ao contexto social e cultural Helman 2003 p 242243 15 Ver Duarte 1986 e 1994 Silveira 2004 Rabelo Alves e Souza 1999 Figueira 1985 1988 Ropa e Duarte 1985 entre outros 16 Sendo exceção o trabalho de Maria Lúcia Silveira 2000 com a qual publicamos uma entrevista nesta coletânea Ainda sobre gênero e nervos ver também Rabelo Souza 2000 17 Não entram nesta referência os estudos especificamente nas áreas de psicologia ou de psicanálise e das correntes críticas como as teorias feministas cujo diálogo tenso com a psicanálise tem trazido à uma reflexão crítica questões como a subjetividade feminina o conceito de histeria as concepções em torno da sexualidade Para um mapa inicial dessa discussão e dessa crítica ver a coletânea Para além do falo uma crítica a Lacan do ponto de vista da mulher organizada por Tereza Brenan 18 Na maioria dos textos sobre a eclosão da chamada segunda onda mioloantroppmd 10022010 1440 56 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 57 do feminismo nos anos 70 a pílula anticoncepcional é tratada como um dos agentes centrais Teria sido graças à invenção da pílula que mulheres puderam se liberar das gravidezes compulsórias e finalmente desvincular sexo de procriação Além de estabelecer uma relação de causalidade entre um fenômeno e outro a invenção da pílula e a emergência do feminismo esse argumento dá um estatuto de agência à tecnologia aderindo a uma concepção de progresso científico linear Talvez seja interessante pensar no inverso o quanto a invenção da pílula não veio preencher um conjunto de questões colocadas já pelos diferentes discursos sociais quanto à liberação das mulheres e à liberdade sexual Além disso tanto no caso das sociedades ocidentais modernas antes do advento da pílula quanto em outras sociedades outros métodos anticonceptivos já eram e ainda são conhecidos e usados 19 Ver para esse enfoque os estudos de Duarte 1986 1998 2003 e sua apreensão dos diferentes modelos de Pessoa a partir da discussão de Dumont sobre o individualismo moderno e a oposição entre ideologias holistas e individualistas 20 Ver Duarte 1986 Cardoso 1999 Silveira 2004 Freire Costa 1989 entre outros 21 Ver Figueira 1985 e 1988 22 Figueira 1985 1988 Salem 1992 entre outros 23 Tania Salem 1992 questiona essa redução da psicanálise a uma das vertentes da configuração psicológica do indivíduo moderno Para ela a concepção de sujeito da psicanálise a partir da ideia de inconsciente e de uma despossessão subjetiva estabeleceria uma distância entre esta e a noção central de indivíduo moderno a partir do individualismo possessivo Stuart Hall 2000 ao discutir as mioloantroppmd 10022010 1440 57 58 formas de descentramento do sujeito moderno estabelece a psicanálise ao lado do marxismo de Foucault do feminismo e da filosofia da linguagem como um desses descentramentos Para outra crítica da abordagem antropológica da psicanálise ver Tenório 2000 24 Essa questão tem sido objeto de estudos antropológicos e historiográficos sobre as classes populares É possível detectar nesses estudos três tipos de abordagem das classes populares como portadoras de valores opostos aos das classes médias e de elite e aos valores hegemônicos do individualismo moderno das classes populares como permeadas pelos valores individualistas seja como vulneráveis a estes seja como demandantes de processos de modernização também no sentido simbólico e cultural e uma terceira vertente que ao mesmo tempo em que considera as especificidades dos diferentes grupos sociais e particularmente das classes populares urbanas brasileiras busca evitar uma dicotomização entre nós e eles levando em consideração as dinâmicas complexas da circulação dos valores e símbolos culturais e as transformações históricas e cotidianas pelas quais esses grupos e camadas sociais têm passado 25 Foucault 1979 já havia descrito esse processo de surgimento da medicina social como adoção pelo Estado de práticas de esquadrinhamento e racionalização do conhecimento sobre a população e seus malestares doenças etc constituindo uma das facetas do que ele denominou de biopoder um dos regimes centrais de subjetivação na modernidade 26 Ver o artigo de Ana Paula Muller de Andrade nesta coletânea 27 É dessa forma que pacientes freqüentadores e consumidores dos mioloantroppmd 10022010 1440 58 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 59 serviços públicos de saúde são denominados nos textos que definem as políticas públicas e nos estudos sobre o tema também 28 Ver o Trabalho de Conclusão de Curso de Rosana Schmidt 2007 que dedica uma parte da monografia a essa leitura 29 Tendo sido convidadas para participar dessa reunião fomos representadas por uma integrante da equipe de pesquisa Ana Paula Müller de Andrade 30 Ver a pesquisa de Schmidt 2007 junto a profissionais da rede de atenção básica à saúde em Florianópolis 31 Ver o artigo de Diehl Mazzini Becker nesta coletânea 32 Questão a ser examinada com maior detalhamento em outro momento 33 Um projeto de maior fôlego sobre o tema foi desenvolvido pela ONG Papai Recife junto com o Núcleo de Pesquisas Margens do Programa de PósGraduação em Psicologia da UFSC sobre gênero e violência com foco na pesquisa com homens agentes de violência 34 Ver para uma perspectiva crítica Boaventura de Sousa Santos 2004 35 Ver FaustoSterling 2000 Laqueur 2001 Rohden 2001 entre outros 36 Como descrevem Tornquist Andrade e Monteiro em artigo nesta coletânea 37 idem 38 Ver Maluf 1993 Silveira 2002 reforçando o que Motta 2002 já havia identificado em seu estudo sobre gênero e reciprocidade em um bairro do município 39 Maluf 1993 mioloantroppmd 10022010 1440 59 60 40 Ver Motta 2002 41 É possível ainda constatar o quanto a lógica racionalizadora da relação entre causa e efeito presente no uso do medicamento por exemplo está presente e se dissemina por outras práticas como a busca de alívio ou cura espiritual muitas vezes frustrada pela impossibilidade de resolução imediata ou alívio instantâneo do sofrimento da dor ou da aflição que um medicamento pode proporcionar ao menos temporariamente 42 No caso do bairro Monte Cristo 43 Ver Foucault 1979 1990 44 Conforme comentamos em Maluf 2009 esse fenômeno é comparável ao relatado por Rohden 2001 em relação a como no século XIX muitas mulheres se referiam a si mesmas como insanas nervosas histéricas e ninfomaníacas e buscavam os consultórios médicos a partir dessa autopercepção 45 Ver Diehl Manzini e Becker nesta coletânea Os exemplos que apareceram em campo são numerosos e algumas vezes chegam a atingir um tom quase anedótico como o diálogo que observei em uma clínica pediátrica entre duas mães comentando sobre as maravilhas da Ritalina utilizado entre outros em crianças para o chamado Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade Uma delas comentava que só estava esperando seu filho completar sete anos para começar a tomar o medicamento não entendendo porque o médico não havia autorizado o seu uso antes 46 Sobre os usos e sentidos sociais dos medicamentos ver Pignarré 1999 Lefevre 1991 Azize 2002 entre outros 47 Uma lógica semelhante aos discursos em torno da pílula anticoncepcional como liberadora das mulheres conforme exposto acima na nota 18 mioloantroppmd 10022010 1440 60 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 61 48 O que significa que nem sempre o medicamento recebido no posto de saúde será utilizado muitas vezes ele é armazenado em casa esperando o momento mais adequado para seu uso pelo paciente ou por algum outro destinatário vizinho parente por este escolhido Langdon idem e Silveira 2004 Essas estratégias e manipulações em relação aos medicamentos sugerem que a aceitação e mesmo a expectativa que assimila tratamento médico à ingestão de medicamentos não significa automaticamente a incorporação de uma ideologia racionalizadora da experiência de aflição ou mesmo de adoecimento 49 Ver Silveira 2000 e minha discussão sobre a questão em Maluf 2009 50 As expressões utilizadas no discurso farmacológico para descrever como agem alguns desses medicamentos dão o que pensar nesse campo Descritos como moduladores eles agiriam retirando os excessos e introduzindo uma visão da felicidade e do bemestar como eliminação dos excessos emocionais e consequentemente um maior controle das emoções É como se o comportamento blasé ao qual se refere Georg Simmel como dispositivo necessário para a sobrevivência do sujeito na metrópole fosse agora induzido quimicamente Uma comparação ainda com os tratamentos dados às histéricas no final do século XIX e início do XX é instigante pois estes também são focados em uma redução dos estímulos externos através do isolamento social destas evitação de espaços públicos e situações de aglomeração humana e mesmo de convívio social excessivo 51 A questão da subnotificação expressão utilizada pelos gestores de políticas públicas em saúde para se referir à falta de dados efetivos mioloantroppmd 10022010 1440 61 62 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGUIAR Adriano Amaral de A psiquiatria no divã entre as ciências da vida e a medicalização da existência Rio de Janeiro Relume Dumará 2004 sobre transtornos e enfermidades de todo tipo é o outro lado da hipermedicalização Estudos já apontaram as diferenças de tratamento por parte de profissionais de saúde em relação às queixas de homens e de mulheres O tempo de diagnóstico de uma mulher vítima de um enfarto por exemplo é maior do que o que se leva para diagnosticar um homem com a mesma afecção Essa diferença devese provavelmente à falta de acolhimento da queixa feminina como sintoma de um problema real e à demora no reconhecimento por parte do corpo médico de que se trata mesmo de um sintoma 52 Sobre o uso popular do jargão médico pelas classes populares ver o instigante artigo de Porter 1993 53 Birman 2007 54 Canguilhem 2000 55 Aquilo que a OMS passou a chamar de medicinas complementares denominação que deve ser utilizada com cuidado pois nem sempre aquilo que é chamado de complementar é apenas o complemento do tratamento médico convencional 56 Essa última questão se articula com outra constatação a de que a aceitação do diagnóstico e do tratamento médico não necessariamente exclui outros diagnósticos e tratamentos a busca por cura espiritual por tratamentos alternativos na base de fitoterápicos exercícios corporais e outros que será melhor desenvolvida em outro momento mioloantroppmd 10022010 1440 62 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 63 AGUIAR Adriano Amaral de A psiquiatria no divã entre as ciências da vida e a medicalização da existência Rio de Janeiro Relume Dumará 2004 AMARANTE Paulo org Psiquiatria social e Reforma Psiquiátrica Rio de Janeiro Ed Fiocruz 1994 AMARANTE Paulo org Ensaios Subjetividade saúde mental e sociedade Rio de Janeiro Ed Fiocruz 2000 AMARANTE Paulo O homem e a serpente Outras histórias para a loucura e a psiquiatria Rio de Janeiro Ed Fiocruz 1996 AZIZE Rogerio Lopes A química da qualidade de vida um olhar antropológico sobre uso de medicamentos e saúde em classes médias urbanas Dissertação de Mestrado em Antropologia Social Universidade Federal de Santa Catarina 2002 BIRMAN Joel A biopolítica na genealogia da psicanálise da salvação à cura História Ciências Saúde Manguinhos Rio de Janeiro v 4 n2 529542 abrjun 2007 CANESQUI Ana Maria Notas sobre a produção acadêmica de antropologia e saúde na década de 80 in Alves PC Minayo MCS org Saúde Doença um olhar antropológico Rio de Janeiro Ed FIOCRUZ 1994 1332 CANESQUI Ana Maria Antropologia da Saúde e Doença no Brasil na década de 1990 Ciência Saúde Coletiva Rio de Janeiro v 8 n 1 109124 2003 CANGUILHEM Georges O normal e o patológico Rio de Janeiro Forense Universitário 2000 CARDOSO Marina Médicos e clientela da assistência psiquiátrica à comunidade São Carlos FAPESPEd UFSCar 1999 mioloantroppmd 10022010 1440 63 64 DUARTE Luiz Fernando Dias Indivíduo e pessoa na experiência da saúde e da doença Ciências Saúde Coletiva 8 1 173183 2003 DUARTE Luiz Fernando Dias A outra saúde mental psicossocial físicomoral In ALVES Paulo Cesar MINAYO Maria Cecilia de S Saúde e doença um olhar antropológico Rio de Janeiro Ed Fiocruz 1994 DUARTE Luiz Fernando Dias Da vida nervosa nas classes trabalhadoras urbanas brasileiras Rio de Janeiro JZECNPq 1986 DUARTE Luiz Fernando Dias Da vida nervosa nas classes trabalhadoras urbanas brasileiras Rio de Janeiro JZECNPq 1986 DUARTE Luiz Fernando Dias Três ensaios sobre pessoa e modernidade Parte 1 O culto do Eu no templo da Razão Boletim do Museu Nacional Rio de Janeiro n41 N Série Antropologia 1983 FAUSTOSTERLING Anne Sexing the body gender politics and the construction of sexuality New York Basic Books 2000 FIGUEIRA Sérvulo A Introdução psicologismo psicanálise e ciências sociais in FIGUEIRA SA org A cultura da psicanálise São Paulo Brasiliense 1985 713 FIGUEIRA Sérvulo A Psicanalistas e pacientes na cultura COSTA Jurandir Freire Psicanálise e contexto social imaginário psicanalítico grupos e psicoterapias Rio de Janeiro Ed Campus 1989 COSTA Jurandir Freire Psicanálise e contexto social imaginário psicanalítico grupos e psicoterapias Rio de Janeiro Ed Campus 1989 DESVIAT Manuel A Reforma Psiquiátrica Rio de Janeiro Fiocruz 1999 mioloantroppmd 10022010 1440 64 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 65 psicanalítica in Figueira SA org Efeito Psi A influência da psicanálise Rio de Janeiro Campus 1988 131149 FONSECA Tânia Galli ENGELMAN Selda PERRONE Claucia Maria orgs Rizomas da Reforma Psiquiátrica Porto Alegre Ed UFRGS 2007 FOUCAULT Michel Microfísica do poder Rio de Janeiro Graal 1979 FOUCAULT Michel Tecnologias del Yo y otros textos afines Barcelona Paidós 1990 HALL Stuart A identidade cultural na pósmodernidade Rio de Janeiro DPA Editora 2000 HELMAN Cecil G Cultura saúde doença Porto Alegre Artmed 2003 LANGDON EstherJean A construção sociocultural da doença e seu desafio para a prática médica mimeog sd LAQUEUR Thomas W Inventando o sexo corpo e gênero dos gregos a Freud Rio de Janeiro RelumeDumará 2001 LEFEVRE Fernando A função simbólica dos medicamentos São Paulo Cortez Editora 1991 MALUF Sônia Weidner Encontros noturnos bruxas e bruxarias da Lagoa da Conceição Rio de Janeiro Rosa dos Tempos 1993 MALUF Sônia Weidner Sofrimento saúde mental e medicamentos regimes de subjetivação e tecnologias do gênero In TORNQUIST Carmen Susana COELHO Clair Castilhos LAGO Mara Coelho de Souza LISBOA Teresa Kleba Orgs Leituras de resistência corpo violência e poder Florianópolis Ed Mulheres 2009 vol II 145161 mioloantroppmd 10022010 1440 65 66 MARX Karl Sobre o suicídio São paulo Boitempo Editorial 2006 MOTTA Flavia de Matos Gênero e Reciprocidade uma Ilha ao Sul do Brasil Tese de Doutorado Ciências Sociais Unicamp 2002 PIGNARRE Philippe O que é o medicamento Um objeto estranho entre ciência mercado e sociedade Rio de Janeiro Editora 34 1999 PORTER Roy Expressando sua enfermidade a linguagem da doença na Inglaterra georgiana In BURKE Peter PORTER Roy Orgs Linguagem indivíduo e sociedade São Paulo Ed Unesp 1993 365394 RABELO Miriam Cristina ALVES Paulo César SOUZA Iara Maria Experiência de doença e narrativa Rio de Janeiro FIOCRUZ 1999 ROHDEN Fabíola Uma ciência da diferença sexo e gênero na medicina da mulher Rio de Janeiro EdFiocruz 2001 ROPA Daniela DUARTE Luis Fernando Dias Considerações teóricas sobre a questão do atendimento psicológico às classes trabalhadoras In FIGUEIRA SA org A cultura da psicanálise Sao Paulo Brasiliense 1985 178201 RUBEL Artur ONELL Carl W ARDÓN Rolando Collado Susto Una enfermedad popular Mexico EFE 1995 RUSSO Jane Do desvio ao transtorno a medicalização da sexualidade na nosografia psiquiátrica contemporânea In PISCITELLI Adriana GREGORI Maria Filomena CARRARA Sérgio Sexualidade e saberes convenções e fronteiras Rio de Janeiro Ed Garamond 2004 95114 SALEM Tania 1992 A despossessão subjetiva dos paradoxos do individualismo Revista Brasileira de Ciências Sociais ano 7 no 18 6277 mioloantroppmd 10022010 1440 66 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 67 SANTOS Boaventura de Sousa Org Conhecimento prudente para uma vida decente Um discurso sobre as ciências revisitado São Paulo Cortez Editora 2004 SILVEIRA Maria Lúcia O nervo cala o nervo fala a linguagem da doença Rio de Janeiro Ed Fiocruz 2004 SIMMEL Georg A metrópole e a vida mental in Velho Otavio G O fenômeno urbano Rio de Janeiro Zahar 1979 TENÓRIO Fernando Psicanálise configuração individualista de valores e ética do social História Ciências Saúde Manguinhos Vol 7 n1 Rio de Janeiro marçojunho 2000 117134 mioloantroppmd 10022010 1440 67 mioloantroppmd 68 10022010 1440 Este artigo busca desenvolver algumas análises em torno da pesquisa de campo realizada em um bairro de camadas populares da cidade de Florianópolis cujo objetivo foi o de buscar compreender como e se a disseminação de diagnóstico de depressão acompanhado de tratamento e medicalização se fazia presente entre os grupos sociais mais pobres e considerados vulneráveis1 da cidade quais os sentidos que os sujeitos davam a estas situações e como buscavam resolver ou mitigar as perturbações e aflições pelas quais passavam De uma perspectiva inicial de buscar compreender uma dimensão das experiências sociais ligadas ao diagnóstico de depressão seu tratamento e como os próprios sujeitos dão significado a essa experiência em suas vidas cotidianas nos depararamos com outros discursos sociais sobre a experiência de sofrimento e É uma bela loucura falar Com isso o homem dança em e por cima de todas as coisas Niezstche VELHAS HISTÓRIAS NOVAS ESPERANÇAS Carmen Susana Tornquist Ana Paula Muller de Andrade Marina Monteiro mioloantroppmd 10022010 1440 69 70 aflição que articulavam vivências pessoais singulares com a vivência política coletiva de um histórico de ocupação e conquista de um teto para morar A abordagem das experiências sociais era um dos objetivos do projeto de pesquisa Gênero subjetividade e saúde mental a ser desenvolvida a partir do contato com sujeitos que se dispusessem a contar suas trajetórias de vida considerando as formas peculiares com que vivenciavam dificuldades sofrimentos e aflições que nas últimas décadas têm sido tratados com medicamentos e que acabam integrando esse quadro mais geral de disseminação do diagnóstico de depressão Observamos também na pesquisa desenvolvida em outras frentes que nos serviços públicos de saúde e na atenção básica as mulheres estão entre as principais pacientes atendidas por problemas desta ordem bem como são as principais consumidoras desse tipo de medicamentos2 As mulheres são também a grande maioria das participantes de sessões coletivas de psicoterapia oferecidas crescentemente nos postos de saúde de Florianópolis Iniciamos o trabalho no bairro Monte Cristo tendo em vista a busca de narrativas individuais a partir da noção de itinerários terapêuticos3 centradas que estávamos em um primeiro momento em uma abordagem da perturbação do sofrimento e dos tratamentos utilizados No entanto ao longo do trabalho adotamos a perspectiva de deixar que o próprio campo fizesse emergir as questões e desta forma mioloantroppmd 10022010 1440 70 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 71 modificamos os caminhos inicialmente planejados A partir da insistência de nossas principais interlocutoras secundarizamos esta perspectiva e nos rendemos às formas coletivas de narração das quais se destacaram muito mais do que narrativas centradas em processos de saúde e de doença as narrativas coletivas que falavam dos modos de subjetivação das mulheres e de formas particulares de dar sentido a suas trajetórias no que elas têm em comum Em campo observamos alguns tipos de relatos orais com características diferenciadas conversas informais itinerários terapêuticos coletados em entrevistas individuais narrativas individuais narrativas coletivas ritualizadas e ainda entrevistas com profissionais de saúde4 Percebemos que as narrativas produzidas nos momentos coletivos de narração enfocavam não apenas as histórias de vida pessoais mas também os contextos em que tais histórias foram experimentadas A articulação dos domínios da vida pública o contexto e da vida privada a casa estava evidente talvez por se tratarem de narrativas que tinham como contexto uma experiência social coletiva e marcante extremamente politizada que foi a participação das interlocutoras no Movimento dos Sem Teto no início da década de 90 em Florianópolis apesar de viverem atualmente um contexto mais marcado pela despolitização e privatização das ações coletivas conforme analisa Francisco Canella5 Assim nosso foco esteve voltado para os diferentes discursos produzidos pelas mulheres mioloantroppmd 10022010 1440 71 72 nossas principais interlocutoras e em função disto dedicamos uma boa parte deste texto à descrição do bairro e dos sentidos que as pessoas atribuem aos processos que vivenciam como observamos em suas falas cotidianas que chamamos de crônicas orais do dia a dia Além de ser um bairro popular o Monte Cristo tem outras características que justificam sua escolha tratase de um bairro periférico da cidade situado fora da parte insular da capital catarinense e marcado por uma situação sócioeconômica mais precária do que os outros bairros populares situados no interior da ilha outrora vilarejos de pescadoreslavradores nos quais a heterogeneidade social é muito maior e os moradores mais pobres são em geral nativos do local e não padecem do problema do acesso a terra entre outras especificidades6 No Monte Cristo além de uma maior homogeneidade sócio econômica o acesso a serviços e equipamentos coletivos e à moradia é muito mais grave associado à presença ostensiva de redes de tráfico e ao estigma que pesa sobre a região Ao iniciarmos o trabalho de campo nos deparamos com a necessidade de delimitar nosso trabalho à dimensão da pesquisa propriamente dita diferenciado dos projetos sócioeducativos comuns em todo o bairro Monte Cristo desafio bastante comum à antropologia desenvolvida em nosso país em função das urgências e desigualdades de direitos sociais7 e da forma com que os pesquisadores costumam ser vistos pelos grupos populares mais especificamente como aponta Alba Zaluar mioloantroppmd 10022010 1440 72 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 73 em seu clássico estudo sobre Cidade de Deus8 Como evitar que fôssemos vistas como psicólogas que poderiam ajudar as pessoas a aliviar suas dores uma vez que a pesquisa tratava de temática comumente associada à psicologia profissão conhecida e prestigiada também neste contexto popular ainda mais levando em conta que uma de nós era psicóloga A propósito como veremos adiante os sentidos que o ofício da psicologia adquire no grupo são curiosos e apareceram em várias situações E mais como manternos no papel de pesquisadoras sem confundir as atividades de pesquisa com as de assessoria ou de filantropia mais corriqueiras e valorizadas na comunidade9 Nos sentimos sempre no fio do equilibrista entre os limites da atividade de pesquisa com sua dinâmica e compromissos intrínsecos e o desejo de participar de forma mais efetiva e afetiva dos dilemas e crises que envolviam as pessoas particularmente quando uma espécie de crise abalou em nosso entender o grupo de mulheres da Santo Expedito 10 As entrevistas formais11 com os devidos termos de consentimentos informados aprovados pelo Comitê de Ética da UFSC no qual a pesquisa foi aprovada pareciam nos proteger da impressão de que o grupo nos desviava dos nossos objetivos no entanto nem sempre foram bem sucedidas seja pelo formalismo introduzido pelo termo entrevista pelo constrangimento gerado pelo gravador ou ainda pela dinâmica particular deste universo mioloantroppmd 10022010 1440 73 74 Diante da receptividade e do interesse do grupo da Santo Expedito quando do primeiro contato e apresentação da pesquisa optouse por priorizar a realização da observação participante nas reuniões encontros das mulheres e visitas a comunidade realizando entrevistas apenas em alguns casos Dos diversos dados que pudemos obter ao longo de nosso trabalho destacaremos o contexto em que tais narrativas são constituídas e seus conteúdos propriamente ditos compondo uma interpretação com a qual pretendemos contribuir para o refinamento do debate acerca dos processos de subjetivação de grupos populares na contemporaneidade ACERCA DO ACERCAMENTO O CONTEXTO DA CONSTRUÇÃO E RECONSTRUÇÃO DAS NARRATIVAS Nossa entrada na Santo Expedito se deu através de professores da UDESC que desenvolviam projetos na comunidade e possibilitaram certa confiança e simpatia já no primeiro contato etapa em geral tão demorada do trabalho etnográfico clássico solitário e laborioso com olhares e conversas milimetricamente conquistados Esta porta de acesso facilitada no entanto não apenas marcou decisivamente o material etnográfico que conseguimos acessar durante os quase 18 meses em que ficamos no bairro mas impôs obviamente algumas limitações o limite de certo tipo de rede social muito marcada pelos tempos da ocupação e pelo viés igrejeiro como chamaremos aqui de onde surge inclusive a noção de comunidade12 bastante comum entre moradores de bairros mioloantroppmd 10022010 1440 74 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 75 populares e que em geral denota a presença de mediadores sociais ligados as igrejas ao Estado à universidade ou a partidos políticos Essa noção de comunidade não é necessariamente compartilhada por todos não apenas porque alguns dos moradores originais venderam ou alugaram suas casas e foram viver em outro local mas também porque muitos teriam se afastado daquele espírito de grupo e de luta que marcara os anos 90 quando o Movimento dos Sem Teto era forte na cidade e quando esta população migrante em sua maioria participou da luta pelo acesso a moradia que deu origem a esta comunidade Portanto partilhamos estes fragmentos do cotidiano com uma das várias redes que atravessam o que hoje sobreviveu dos tempos da ocupação quando o direito à moradia foi adquirido pelas quase cinquenta famílias que participaram do movimento13 Paralelamente a esta outra entrada em campo foi realizada através da unidade de saúde do bairro onde foram realizadas entrevistas com algumas profissionais e usuárias dos serviços de saúde de forma mais sistemática Lisanda agente comunitária de saúde da unidade se propôs a acompanhar a andança pelo bairro e casas principalmente pela comunidade Santa Cecília permitindo assim o trânsito por algumas regiões uma vez que a maior parte das residências visitadas estavam localizadas em áreas onde os traficantes locais controlam a entrada Estar com Lisanda significava também estar acompanhada de alguém da comunidade investido da mioloantroppmd 10022010 1440 75 76 legitimidade que o jaleco branco confere a quem o usa e ter mais facilidade para obter permissão para circular pela comunidade Permissão que no nosso caso tinha um porém a cada ida era necessário que Lisanda avisasse antecipadamente os comércios14 sobre a presença de uma pessoa externa A partir deste acesso marcadamente ligado à unidade de saúde foram feitas cinco entrevistas individuais com usuárias da unidade de saúde Assim não apenas as narrativas das duas comunidades se deram de formas diferentes como trouxeram conteúdos muitos diversos Se na Santo Expedito havia uma grande valorização da dimensão coletiva comunitária enquanto forma de se organizar e narrar os eventos ligados ao processo de ocupação da terra na Santa Cecília as entrevistas estiveram focadas nos itinerários terapêuticos e centradas no que as interlocutoras denominavam em geral como depressão Duas comunidades duas abordagens diferentes interações diversas mas com um mesmo eixo que além de conectálas de alguma maneira surgia como central em suas histórias o bairro Seja por sua violência tantas vezes ressaltada quanto pelos aspectos cotidianos que remetiam a idéia de familiaridade e comunidade através da percepção do bairro como uma extensão da casa para onde a vida pública se dirige com aspectos familiares e através do qual as redes sociais se consolidam No entanto se é verdade que várias entrevistas puderam ser analisadas a partir desta concepção na Santa Cecília já no mioloantroppmd 10022010 1440 76 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 77 universo específico da Santo Expedito e pela forma como o campo foi se desenhando para nós o que se impôs foi a emergência de um espaço de narração compartilhada Uma verdadeira comunidade de ouvintes15 se impôs à nossa volta a partir da proposta inicial de Miranda e com a presença de narradoras reconhecidas enquanto tais pelo grupo de mulheres Atualmente o bairro conta com várias associações de moradores nas comunidades organizadas em um conselho de todo o bairro e vários projetos sociais sendo alguns ligados a universidades16 ongs e grupos de tipo assistencialista mais clássico desenvolvendo trabalhos pesquisas e estágios17 Também são evidentes as relações de lideranças ou moradores locais com os vários partidos políticos que atuam na cidade e que sobretudo nos períodos eleitorais mas não só se fazem presentes através de eventos festas ou atividades de cunho social como por exemplo os cursos mantidos por uma deputada da bancada evangélica que compõe uma espécie de lista de apoiadores que em determinadas situações é acionada pelas lideranças Muito embora o cotidiano dos bairros populares esteja absolutamente vinculado à cidade formal18 de cuja dinâmica faz parte pelo trabalho pelo consumo pelos meios de comunicação pela mobilidade não conformando de modo algum uma espécie de gueto as fronteiras territoriais e simbólicas estão presentes no discurso dos de fora e dos da comunidade Por outro lado há fronteiras internas criadas mioloantroppmd 10022010 1440 77 78 por um sistema de classificação que não conseguimos senão vislumbrar entre as nove comunidades que compõem o bairro Monte Cristo A comunidade Santo Agostinho é considerada a mais temida e muitas vezes obscurecida pelos moradores que situam seus endereços no bairro Monte Cristo por outro lado a mesma pode ser referida em situações nas quais ao contrário de se invisibilizarem os moradores querem proteger se ou ameaçar alguém recorrendo ao próprio estigma que recai sobre eles Mario conta que um menino da Santo Expedito foi ameaçado em outro bairro ao que teria respondido não te mete comigo que eu sou da Santo Agostinho Este tipo de situação não é incomum e parece revelar o quanto a questão do território no caso o local de moradia é fundamental na conformação das identidades dos sujeitos e como estes lidam com estas identidades de formas diferenciadas Se para abrir um crediário numa loja comercial do centro da cidade ou obter um emprego os moradoresas costumam dizer que o bairro a que pertencem é Capoeiras bairro vizinho de classe média para resistir a provocações de que são alvo na rua ou na escola a referência ao Santa Cecília a Santo Agostinho ou a Santo Expedito pode ser acionada mesmo que não corresponda aos fatos É comum os moradores sublinharem os perigos existentes no local os meninos envolvidos com drogas as balas perdidas as investidas súbitas e sempre violentas da polícia os mortos e feridos desta guerra que povoa sites da internet19 falas de mioloantroppmd 10022010 1440 78 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 79 motoristas comentários de professores queixas de profissionais fotos e chamadas diárias nos jornais Os moradores também enfatizam o fato de ralharem e xingarem os meninos que passavam a fazer o que não deviam e a andar com quem não presta embora cientes do pouco efeito destas preleções diante desta irresistível escolha pelo dito mundo da criminalidade por jovens pobres urbanos Neste contexto a via sedutora do tráfico e da criminalidade parece se apresentar como uma opção possível e viável que permite acesso a lugares de poder e de reconhecimento embora marcada pela fugacidade Cabe destacar que também aqui as relações entre criminalidade e masculinidade são muito fortes20 embora as conseqüências e as marcas da violência sejam democráticas elas parecem envolver a todos sejam os que têm algum tipo de relação mais direta com o tráfico seja os que não compartilham senão o mesmo espaço de moradia uma memória de experiências vividas como ameaça permanente seja ela a perpretada pela polícia seja a praticada pelos próprios traficantes Também são referidas as batidas e correrias provocadas pela polícia e a luta demorada pela conquista de pedaços de uma área de lazer há anos prometida pela prefeitura Nestas crônicas ordinárias que destacam a violência policial e aquela promovida pelos traficantes também são referidas as grandes dificuldades de obtenção de trabalho de permanência nas escolas e em programas educacionais de acesso aos equipamentos coletivos dos percalços da mobilidade mioloantroppmd 10022010 1440 79 80 urbana de escassez de recursos entre outras expressões da condição de subalternidade que os pobres ocupam na sociedade e na cidade de Florianópolis em particular Percebemos mais tarde que nós também partilhávamos de certa dose de temor ao adentrar pelas ruelas da Santo Expedito Íamos para o Monte Cristo em grupo às vezes em três às vezes em duas imbuídas de certa cautela que o imaginário local suscita em torno da região Nossos familiares preocupavamse com nossas saídas diurnas e noturnas à Santo Agostinho cuja fama de perigosa e violenta é diariamente alimentada pela mídia local A propósito desta experiência Alba Zaluar se pergunta pode um antropólogo vivendo em cidades tomadas pelo medo de uma criminalidade violenta que afeta a todos mas particularmente ao segmento social ao qual pertence estudar aqueles que são a razão do medo21 Mesmo que temas como tráfico violência e criminalidade não fossem alvos de nossa pesquisa nos foi impossível analisar as narrativas acerca de sofrimento e aflição entre estes grupos sem atentar para o contexto social fortemente marcado por estes temas Neste sentido destacamos a mágoa e a raiva que os moradores sentiam por terem seu espaço transformado em depósito de lixo por pessoas de classe média alta que costumavam descartar em terreno em frente à comunidade coisas que não queriam mais em suas casas desde móveis e aparelhos estragados sem nenhuma serventia até restos de comidas coisas deterioradas e animais domésticos mortos de mioloantroppmd 10022010 1440 80 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 81 dentro de seus automóveis novos com vidros fumês e alta velocidade provavelmente por considerarem aquelas pessoas como abjetos22 de uma sociedade que de seu trabalho e de seus votos depende A maioria dos moradores do Monte Cristo são migrantes do interior do estado de Santa Catarina mas há quem tenha vindo do Maranhão como uma das lideranças comunitárias da Santo Agostinho da Paraíba como a moça que revende produtos de beleza a domicílio do Rio de Janeiro mas sobretudo do Rio Grande do Sul Paraná e São Paulo regiões que nas últimas décadas têm provocado a vinda de toda uma população migrante para a região metropolitana de Florianópolis23 Dentre as cinco interlocutoras da comunidade Santo Expedito a maior parte é migrante oriundas do interior do estado de Santa Catarina e cujas trajetórias revelam a recorrência de uma trajetória comum às classes populares no Brasil24 marcada pela migração constante de um lugar a outro em busca de trabalho e de moradia em geral através de redes sociais e sempre envolvidos em situações familiares Este é o caso de Antônia que relata ter vindo para Florianópolis após ter se separado do marido que era alcoólatra e que a ameaçava numa trajetória de migração que já começara antes gaúcha veio com a família para o oeste do estado tendo vivido em Blumenau quando casada Já Miranda conta que veio de Lages para a capital quando tinha dezessete anos diante do pedido mioloantroppmd 10022010 1440 81 82 de sua irmã biológica por ocasião da morte do pai biológico uma vez que vivia com uma família que até então a criara Anita veio de um município vizinho da Grande Florianópolis ao qual ainda retorna em visita de vez em quando Maria Dite veio sozinha de interior do estado para morar com parentes que já residiam na cidade em busca de um trabalho melhor Tereza era a única do grupo que era daqui mesmo tendo sido criada em outro bairro situado na ilha A grande maioria dos moradores vive esta instabilidade também no mundo do trabalho e as mulheres de forma particular muitas já trabalharam em vários locais desde empresas até casas particulares na qualidade de empregadas babás faxineiras ou cuidadoras em geral como Neusa cuja casa abriga uma espécie de creche comunitária25 necessária para as mulheres que trabalham fora e um dos objetivos sonhados para a Casa da Comunidade quando de sua construção Estes trabalhos tidos como femininos de certa forma são uma ampliação do trabalho invisível desenvolvido dia após dia década após década no espaço doméstico O abandono de trabalhos formais muitas vezes vistos como prazerosos bons e até vantajosos do ponto de vista econômico não raro devese à necessidade de cuidar de um neto de um filho de um parente consangüíneo de um companheiro doente ou que necessite de cuidados e vigilância caso dos adolescentes homens que podem cair em atividades ruins Tal abandono não parece de modo algum ser mal visto pelas pessoas da família e da comunidade ao contrário um forte sentimento de dever e de obrigação familiar a ser cumprido está aí presente mioloantroppmd 10022010 1440 82 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 83 Como sabemos os trabalhos desempenhados historicamente pelas mulheres ligados ao mundo chamado privado ou doméstico são fundamentais na reprodução da vida social na unidade familiar são desempenhados uma série de serviços diários sem feriado nem fimdesemana necessários à reprodução da força de trabalho Como apontam várias autoras feministas o trabalho remunerado depende em grande medida do trabalho nãoremunerado26 Em geral correspondendo a uma divisão sexual do trabalho mas nos casos de famílias chefiadas por mulheres como muitas das que compõem o universo social do Monte Cristo pudemos perceber claramente a importância que estes trabalhos não remunerados adquirem na vida das famílias bem como a concomitância dos dois tipos de atividades a famosa dupla jornada desempenhadas por várias das nossas interlocutoras mulheres que ocupam o papel de provedoras mais permanentes de suas famílias MUITAS FORMAS DE NARRAR RELATOS DE BASTIDORES CRÔNICAS DO COTIDIANO TRAJETÓRIAS INDIVIDUAIS E NARRATIVAS COLETIVAS As palavras formam os fios com os quais tecemos nossas experiências Aldous Huxley Foi neste contexto e no momento em que se desenrolava uma assembléia da comunidade na qual ninguém parecia estranhar a nossa presença que falamos sobre nossa pesquisa e de nosso interesse em saber se elaseles conheciam pessoas mioloantroppmd 10022010 1440 83 84 que estivessem padecendo de algum tipo de sofrimento de ordem psicológica mental nervosismo depressão ou algo deste tipo A repercussão foi imediata Maria Dite logo falou que era o caso da Julia e que não seria difícil uma vez que isto tem muito por aqui Com seu estilo discreto porém firme Miranda aproximouse de nós e falou com certo orgulho Eu posso ajudar sim porque eu sou a psicóloga da comunidade Pedro um dos poucos homens ali presentes fez um discurso contundente e muito articulado sobre o estigma da comunidade a dureza de ser pobre na cidade e sobre as diferenças entre as comunidades do bairro Após a reunião e nossa apresentação aproximouse de uma de nós e num depoimento em tese sobre outrem disse que poderia ajudar sim a que nós encontrássemos outras pessoas que estivessem passando por problemas já que isso referência aos problemas como os que tínhamos apresentado era novamente muito comum aqui Inaugurando a narrativa que chamamos paralela à narrativa coletiva oficial com que passamos a lidar diuturnamente neste universo Pedro falou de sua falta de vontade de sair de casa vontade de só dormir das dificuldades da vida nestas condições o fato de estar na perícia27 desta fase difícil em que se encontrava Assim a escolha das narrativas como aporte teórico e metodológico decorrente da concepção mais geral da pesquisa encontrou um campo fértil no contexto do Monte Cristo tanto na sua forma mais individualizada através das entrevistas e mioloantroppmd 10022010 1440 84 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 85 na forma coletiva e ritualizada as narrativas coletivas quanto nas conversas informais As pessoas falam muito e gostam de ser ouvidas e compreendidas neste sentido contrariam a previsão de Walter Benjamim acerca da decadência de arte de contar histórias na modernidade28 Num universo onde o letramento não se coloca como hegemônico a oralidade desponta como dimensão fundamental do cotidiano Trabalhamos com três tipos de narrativas o relato coletado em entrevistas na forma de itinerário terapêutico a narrativa coletiva feita em grupo sobre as origens da comunidade uma espécie de narrativa oficial do grupo e as narrativas paralelas conversas que ocorriam antes e após o momento de narrativa coletiva e que sempre aconteciam de forma individualizada Entendemos aqui narrativa como um processo de construção da linearidade histórica que compõe o indivíduo indivíduo este que emerge enquanto tal no ato mesmo de narrar o sujeito que narra não é o mesmo sujeito narrado a não ser como um resultado temporário deste É esse trabalho de transformação que reunirá todas as experiências e práticas narradas que lhes dará um sentido e colocará o sujeito que conta em uma posição diferente do sujeito que é objeto de sua narrativa29 Pudemos a partir desta noção refletir sobre as implicações que o ato de narrar tem na vida dos sujeitos bem como analisar os conteúdos destas narrativas e perceber as especificidades dos sofrimentos e perturbações neste contexto social mioloantroppmd 10022010 1440 85 86 ITINERÁRIOS TERAPÊUTICOS AS NARRATIVAS INDIVIDUAIS Na comunidade Santa Cecília como dito anteriormente os contatos ocorreram de maneira diferente utilizandose de uma espécie de escolta a agente comunitária residente do local foram realizadas as ditas entrevistas formais onde as trajetórias terapêuticas individuais formaram o centro das narrativas Aqui a narrativa enquanto possibilitadora de reatribuição de significados e propiciadora de compreensão a partir do tempo espaço em que as pessoas se encontram aparece como pano de fundo e suas narrativas por vezes emocionadas são vistas à luz de um sentido dado no momento em que se encontravam e de onde seria impossível desvincular suas trajetórias terapêuticas com suas histórias surgindo possíveis causas e explicações de fatos do passado que lhes eram imperceptíveis na época em que viviam tais experiências conforme as próprias interlocutoras afirmaram Nos relatos acerca das experiência de adoecimento apareceram com frequência alguns temas que destacamos como a experiência com médicos remédios e algumas situações de internação psiquiátrica a experiência com a violência que se estende como pano de fundo do bairro e os problemas envolvendo casa trabalho e gênero nos quais aparecem alguns impasses entre as esferas pública e privada30 Entre trocas constantes de remédios controlados e buscas por religiões diferentes encontramse a maior parte dos relatos sobre as trajetórias terapêuticas narradas individualmente pelas mioloantroppmd 10022010 1440 86 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 87 interlocutoras Se em alguns casos uma conversa resolve em outros casos a ida à igreja pode ser uma outra opção de alívio ou cura neste sentido Miranda enfatiza a dimensão da sociabilidade presente no espaço religioso Idas recorrentes a médicos também são relatadas e em quase todos os casos a figura do médico é criticada no geral eles são associados ao ato de prescrever receitas e vistos como pessoas inacessíveis que não escutam e portanto não entendem imaginário muito diferente daquele que é construído em relação ao psicólogo Os remédios são relatados ora como propiciadores de amenização dos males sentidos e ora como causadores de efeitos colaterais Falta de memória dor do estômago dor de cabeça insônia micções involuntárias levam a trocas constantes dos remédios ora por não fazerem mais efeitos ora pelos efeitos colaterais serem maiores que os supostos benefícios um campo de experimentação onde o remédio aparece como uma salvação um suporte ou um descaminho Joana às vezes os deixa de lado mas logo o médico a convence de voltar a tomálos Fiquei bem ruim daí não queria mais tomar os remédios Porque pra mim isso aí Eu não acredito eu não acredito nos remédios pra mim eu não acredito é a mesma coisa eu não sei tudo o mesmo eu sinto Eu sinto um monte de coisa ruim Como é que os remédios vão fazer Vão fazer efeito Joana 31 anos afastada do trabalho Amanda diz que houve época que tomava treze tipos de remédio parecia uma galinha comendo milho diz mioloantroppmd 10022010 1440 87 88 Entretanto teve que voltar a usálos Até um tempo atrás eu tentei fui parando aos poucos o médico me ensinou a ir parando eu tentei mas não consegui daí o corpo começou a pedir de novo enfrentei suadouros enfrentei assim dores horríveis pra tentar ficar sem que daí começou o psicológico a pedir muito a pensar muito só em morrer morrer morrer a ter crise de choro de choro daíAmanda 29 anos afastada do trabalho Três das interlocutoras passaram pela experiência de internação psiquiátrica das quais duas foram internadas por passarem a ter atitudes consideradas nocivas e agressivas por seus familiares Joana foi internada duas vezes por surtos psicóticos Vivian 31 anos não trabalha foi internada durante um mês por ficar agressiva Joana dá detalhes sobre os tempos em que ficou internada conta que deixou de tomar o remédio após a sugestão de um amigo para sair do regime de internação já que os remédios a deixavam dopada ao ponto de não conseguir conversar coerentemente com o médico Narra também os momentos de loucura dos quais lembra vagamente quando tentou envenenar seu marido com água sanitária e punhase a rir na janela enquanto ele tomava a sopa Se em tempos normais ela geralmente teme a tudo e a todos em seus surtos ela passa a representar a ameaça Internadas longe do olhar da família longe dos perigos e principalmente longe de causar perigos a narrativa de Joana que em seus surtos tornase violenta assemelhase nos relatos mioloantroppmd 10022010 1440 88 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 89 sobre a reação agressiva de Vivian ao ser confrontada com uma situação de grande impacto fúria essa que entra em contraste com a costumeira calma A violência dos atos das narradoras é considerada patológica anormal e pertubadora da ordem do lar e através da internação essa ordem é reestabelecida Sobre esta questão da internação um episódio vivenciado na Santo Expedito se mostrou ilustrativo em uma conversa descontraída sobre dietas Antônia diante de uma proposta que lhe parecia absurda replica em tom de brincadeira Está louca Se estiver não há mais o que fazer não aceitam mais ninguém na Colônia Santana31 Diante da surpresa das demais Anita reafirma que atualmente a Colônia Santana não aceita mais loucos revelando o conhecimento que tem do processo de desinstitucionalização trazido pela Reforma Psiquiátrica Sério diz Miranda Nossa mas como fica então ao que Anita responde Ah tem que ficar em casa mesmo reiterando a ideia apontada pelos familiares de Vivian acerca dos benefícios do recurso ao internamento em caso de crise Joana apresenta um discurso duplo sobre os remédios se por um lado afirma por vezes só ter conseguido sair do hospital psiquiátrico quando deixou de tomar os remédios e conseguiu ter uma conversa lúcida com o médico o convencendo a lhe dar alta médica por outro lado no decorrer de sua narrativa atribui seu estado atual às negligências passadas com os remédios ao mesmo tempo em que duvida da capacidade destes para solucionar seus problemas mioloantroppmd 10022010 1440 89 90 Daí foi indo foi indo se agravando e daí se agravou mais porque eu não tomava os remédios do jeito que era pra ter tomado Joana Interessante notar que nos casos considerados o medicamento não apareceu como propiciador de uma suposta cura entre suprimir sintomas e fazer sentirse melhor por um lado e trazer inúmeros efeitos colaterais por outro o recurso aos remédios parece simbolizar que a pessoa está vivendo um processo indesejado do qual pretende sair Além disso Joana assim como muitas outras usuárias das unidades de saúde mostram um agenciamento próprio quanto ao uso dos medicamentos diminuindo ou aumentando doses recorrendo a autopercepção acerca dos efeitos destes sobre si mesmas e compartilhando estas experiências com outras pessoas Esta apropriação do uso dos remédios envolve o costume de recomendar e aceitar sugestões de pessoas amigos vizinhos parentes que padecem de males similares Se por um lado a família aparece por vezes no lugar de acolhimento quando em casos de adoecimento por outro aparece como desencadeadora de alguns processos dessas doenças principalmente no que se refere a problemas com o marido e sobrecarga de cuidados com a casa e os filhos É em relação ao segundo argumento que se baseiam algumas das justificativas para a afirmação quase unânime de ser a mulher mais comumente afetada por casos de depressões mioloantroppmd 10022010 1441 90 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 91 Acho que na verdade nós mulheres que a gente quis ter as mesmas igualdades que o homem só que a gente esqueceu que a gente além de trabalhar e tudo A gente quer ter a igualdade só que a gente esqueceu que tem filhos Amanda Aqui se percebe a idéia de que uma das causas apontadas por elas como fonte de sua aflição seria a entrada das mulheres em um universo que seria mais propriamente masculino no caso o trabalho remunerado acarretando o que descrevem como uma certa negligência com os afazeres ligados à maternidade percebida como um fator importante de diferença em relação aos homens Os profissionais da unidade de saúde quando interrogados sobre qual seria a parcela mais atingida pela depressão e seus correlatos apontam em sua maioria para o público feminino resposta essa que segue ao lado da argumentação de que as mulheres buscam ajuda quando começam a sentir os primeiros sintomas enquanto os homens a procurariam quando o sofrimento está muito grave Também aparece nos seus discursos relações entre o fato de serem mulheres e as doenças em função de certas características que as tornariam mais passíveis de serem acometidas por sofrimentos psíquicos Esta ideia parece cara também a Miranda uma das interlocutoras para quem as mulheres são mais propensas a esse tipo de sofrimento devido às preocupações com a casa filhos e trabalho associando o fato de que a esfera doméstica é segundo ela um espaço estressante mioloantroppmd 10022010 1441 91 92 É a mulher A mulher sempre fica mais deprimida sabe Porque é a casa é filho então o trabalho né E o homem não sabe que o homem né não Ele não demonstra pode estar mesmo lá e eles nãoné E a mulher não a mulher é muito É por isso que tem que ter ter cabeça porque senão 32 Se Amanda por vezes atribui sua doença ao trabalho também a relaciona ao marido pois trabalhava por ambos e é comum em sua fala definir o trabalho como uma esfera masculina como se sua doença lhe tivesse acontecido por ter ultrapassado uma barreira que não lhe era possível atravessar Mas acho que é isso a gente querer Querer e ter que mesmo que não queira a mulher está assumindo todas as situações Os maridos os homens na grande maioria eles estão bem Não tem mais aquela cultura de antes de ter o alicerce da família isso mudou muito eu vejo assim Faltou ter a proteção que eu precisava e ainda quero Eu não desisti de ter a minha família mesmo tendo dois filhos de achar um companheiro que cuide de mim E não querer ser tão sabe Tão independente Porque eu acho que a mulher não tá preparada assim pra essa independência porque a gente querendo ou não a gente é muito mais sensível então a gente tá indo por um lado assim que querendo ou não a sociedade ta fazendo a gente ir mas que eu acho que a gente não tem capacidade psicológica pra isso Amanda grifos nossos mioloantroppmd 10022010 1441 92 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 93 Lisanda a agente comunitária de saúde que afirma que em sua microárea33 não há nenhum caso de depressão em homens associando os casos mais frequentes às mulheres acaba novamente construindo explicações para isso a partir de um entendimento da esfera pública como masculina Geralmente é mais com mulheres que acontecem elas começam a ficar agressivas com as crianças e acaba que as que perdem mais com isso né Porque infelizmente os maridos saem de casa né a mulher tá nervosa por qualquer motivo eles simplesmente saem ou brigam com a mulher faz qualquer coisa e as crianças ficam ali né todos os dias Eu acho que quem perde mais com isso são as crianças infelizmente são Porque a mãe se torna mais agressiva ou mais desleixada Lisanda grifos nossos Joana uma das interlocutoras conta um pouco de sua trajetória depressiva seus dribles ao excesso de medicamentos suas questões acerca do sentido da vida e da existência Tomei tantos remédios tanto Porque daí eu sou tão neurótica que pra mim nada nada é Mas não é que faz bem é que eu sou tão neurótica que nada é bom pra mim Nada Tomava paroxetina34 tomava fluoxetina35 tomava tudo Haldol36 Tomei tudo quanto foi remédio acho pra depressão eu já tomei Porque eu eu não tomava também eles trocavam e não adiantava porque daí eu não tomava Eu via tomava dois dias e aí dava dor no estômago ai não quero mais porque dá dor no estômago dor de cabeça ai não quero mais porque dá dor de cabeça Daí agora não quero mais viver Pra mioloantroppmd 10022010 1441 93 94 mim não tem mais né Não tem mais graça pra mim Não quero mais viver Porque não tenho Não tenho mais não tenho mais o que fazer Daqui a pouco a gente vai morrer mesmo Aí a gente tava até em pensando em arrumar a casa tava pensando Ai meu Deus que a gente vai construir né Pra que Pra que construir Sabe A minha vida Eu vivo assim eu não tenho sabe tu não tem esperança tu não tem sabe Não tem assim um Vejo um futuro assim pra mim sabe Que eu sofro muito Muito mesmo E não tem na minha cabeça não tem nada assim nada de positivo assim Não tem nada de positivo não vem nada assim Nada Que tipo assim os médicos não me dizem do que é ao certo né Não sei assim do quê que é Pra mim só pode ser assim porque meu marido é muito bom pra mim ele tem muita paciência comigo Porque já vai fazer 3 anos que eu tô doente assim e ele tem muita paciência comigo sabe Porque eu sofro demais assim é muito ruim é uma coisa assim eu É um sentimento assim muito ruim Porque no começo eu tinha muita assim eu chorava muito era mais de chorar e de ficar triste Aí como eu não me tratava eu achava que não Que não ia melhorar tipo um dia eu ia na igreja outro dia eu ia no centro espírita Outro dia eu ia sabe Tudo lugar eu ia e daí nunca E parava com os remédios Nesses tipo uns 2 anos eu fiquei nesse nesse Eu tomava remédio parava eu tomava remédio parava grifos nossos Vemos aqui a busca de várias formas de alívio por parte de Joana que procura uma explicação acerca das causas de sua mioloantroppmd 10022010 1441 94 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 95 doença e insatisfeita com a falta de respostas pretende ela mesmo avaliar os efeitos dos remédios Das cinco entrevistadas três contam casos parecidos de mulheres que se dedicavam muito ao trabalho e que passado um tempo passaram a desenvolver algum tipo de sintoma como fobia do local de trabalho muitas delas estando inclusive afastadas destes Observase aqui uma contraposição do que observou Maria Lúcia da Silveira com as mulheres nervosas entre as quais a esfera de sua perturbação estaria relacionada muito mais à casa ao âmbito privado do que à esfera do trabalho ao passo que os homens adoeceriam por problemas relativos à esfera pública37 Eu sempre lutei eu nunca quis ficar aqui no bairro sabe Daí por isso que eu trabalhava tanto guerreava tanto tanto tanto Tinha dias que ia trabalhar as sete e meia da manhã e voltava Passava a madrugada trabalhando voltava só no outro dia duas horas pra casa porque tinha que mudar a loja tinha quesabe Mas eu ia trabalhava sabe Pensava não eu tenho que tirar meus filhos daqui meus filhos não podem viver no meio do tiroteio essa era a minha luta Então agora com tudo isso eu tive que voltar a morar aqui na comunidade Amanda Trabalhava sempre desde os 15 anos eu trabalhei Sempre desde os quinze anos sempre trabalhei No super sempre trabalhei ótimo ótimo foi muito bom assim sabe Mas foi depois que eu fui lá pra esse lugar mioloantroppmd 10022010 1441 95 96 ali que começou Porque daí deu o estresse do o estresse do serviço que eu trabalhava o dia todosaía de lá cinco Entrava lá às sete e saía de lá às cinco seis horas tem vez que dez horas da noite mas aí eu já chegava em casa já o estresse de ver tiroteio ver morte ver um monte de coisa aquilo ali foi Foi vindo foi vindo aí depois eu comecei a ficar assim Joana grifos nossos Mirian Cristina Rabelo et all 1999 aponta que conforme sua pesquisa de campo os signos de normalidade são basicamente três desempenho de papéis sociais aparência e relação com os outros Sendo o primeiro associado frequentemente ao trabalho este aparece como a força em oposição a fraqueza estado de doença Na família como relação de reciprocidade relação essa que a doença acaba quebrando Amanda lamenta que antes da sua doença era ela a propiciadora de favores familiares e atualmente é ela quem depende de ajuda O fato de não trabalhar a incapacidade de prover seu sustento para ela também parecem ser sinônimo de fraqueza Ela relata que sempre almejava deixar o bairro por considerálo ruim para educar seus filhos Tendo desenvolvido fobia de trabalho viu seus esforços se desfazerem e por motivos de ordem financeira teve que voltar a morar na comunidade em que a mãe e o irmão moravam No caso aqui relatado as doenças aparecem não apenas como opositoras do trabalho como também acarretadas por esse mesmo quando ele é referido como fonte de prazer ou símbolo de independência Impossibilitadas de trabalharem por mioloantroppmd 10022010 1441 96 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 97 estarem doentes desenvolvendo as doenças por trabalharem muito a doença se mostra como uma opositora mas também como uma evasão do mundo do trabalho ANALISANDO ALGUMAS CATEGORIAS Diante da complexidade dos dados que foram observados em campo julgamos apropriado fragmentar os itinerários para fins de comparação e de análise buscamos a partir dos itinerários e das demais narrativas e observações compreender como a experiência social em torno do gênero e da saúde mental se estabelece BALAS DE CHUMBO NERVOS DE AÇO Um primeiro aspecto que parece ser elucidativo é a relação da violência com experiências de sofrimento Foi comum já nos primeiros contatos com a rede de pessoas indicadas por Miranda nos defrontarmos com relatos acerca da violência que atravessa o bairro e as próprias casas das pessoas que nele vivem Nos relatos das moradoras eou das profissionais da unidade de saúde que atende a região as histórias de doenças de tipo depressivo como ficar na cama o tempo todo não sair na rua não conseguir dormir ter pesadelos estão ligadas diretamente as cenas dantescas vividas pelos moradores em função do envolvimento dos filhos e parentes com a violência com o tráfico ou com o uso de drogas Ao elaborar uma explicação sobre sua depressão Joana encontra três causas sua negligência com o uso dos remédios mioloantroppmd 10022010 1441 97 98 excesso da rotina de trabalho e principalmente a violência presente na comunidade em que foi morar depois de casada Não sei a causa da depressãode repente pode ser do lugar que eu morei Eu tipo assim eu morava com a minha mãe e nunca tinha visto morte nunca tinha visto assalto nunca tinha visto briga E depois que eu fui morar lá eu vi muito disso né Eu vi muito tiroteio muita morte Eu achei que Daí a minha doença pode ter sido disso Daí eu fiquei assim né Sentia muita coisa ruim muita coisa de ruindade Fiquei no super tá 4 anos aí comecei a sentir essas coisas daí achei que era do super supermercado aí mas aí não não acho Fui pro médico perguntei pro médico e o doutor disse ai não Silvana não tens que ver do que é que é grifos nossos Não apenas as moradoras como também as profissionais de saúde fazem uma referência uma associação quanto ao fato do bairro ter um contexto violento que parece permear algumas experiências de sofrimento como narrado a seguir Então assim a questão da violência é uma questão importante aqui Presente sem dúvida Eu atendi uma vez uma mulher aqui na frente O filho dela morreu aqui na frente do Posto Uma dessas casas aqui às quatro da tarde quatro e meia com três tiros na frente dela na sala dela O cara entrou e matou o filhoDe 18 anos Ela estava Estava tomando café na mesa com o filho o cara entrou e matou Lili médica residente da unidade de saúde do Monte Cristo grifos nossos mioloantroppmd 10022010 1441 98 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 99 Embora os moradores demonstrem certo incômodo com a presença tão constante dos traficantes as maiores críticas locais se referem à polícia Aos policiais é atribuída a desordem a exposição das crianças ao perigo a tirar a comunidade de seu cotidiano pacífico Cláudia Fonseca38 aponta para essa mudança de perspectiva entre bem e mal onde o elemento policial é o elemento estranho aquele que traz o perigo e a desordem Vemos aqui como em vários outros contextos brasileiros uma situação na qual o Estado a quem caberia o dever de promover a ordem inclusive através do monopólio da violência39 assume outro significado percebe se haver uma dissociação entre a polícia e a ordem havendo também uma tentativa de deslegitimar as atividades policiais uma vez que os policiais são aqueles que já chegam com as armas em punho ao lado das crianças brincando na rua enquanto os traficantes mesmo invasivos acabam por adotar uma postura mais respeitosa com os moradores garantindo certa ordem do que a polícia uma inversão pois do que se entenderia costumeiramente por ordem O relato de outra moradora ilustra um pouco mais a influência do cotidiano marcado pela polícia nas experiências dos moradores Segundo conta é constante a invasão da sua casa e a ameaça com armas pela polícia em várias ocasiões o que diz lhe deixava muito nervosa e amedrontada Conta ainda que tem dificuldades para dormir para comer e está sempre ansiosa pois depois que seu filho começou a se mioloantroppmd 10022010 1441 99 100 envolver com o tráfico a polícia entra em sua casa sem pedir licença sem mandato judicial tendo sua casa assim invadida algumas vezes Relata que numa manhã dormia com a janela aberta em função do calor e acordou com uma pistola apontada para sua cabeça Parece claro que o contexto no qual as pessoas vivem interfere na constituição de suas subjetividades Como sugere Rosária Peruzzo Nós nos tornamos no que somos ou seja constituímos nossa subjetividade interagindo diariamente com uma heterogeneidade de processos individuais e coletivos os quais estão em constante movimento de construção e desconstrução E desta forma passamos a constituir sempre novas composições subjetivas40 É neste sentido que entendemos que os processos de subjetivação se constituem mediante uma infinidade de movimentos atravessamentos e desdobramentos que a vida cotidiana situada no espaçotempo de seu desenvolvimento apresenta CORPO E ESTÉTICA Entre as mulheres do grupo da Santo Expedito percebe se uma forte preocupação com a aparência peso corporal cabelos unhas e pele por exemplo e com a indumentária muitas delas pintando os cabelos com frequência bem como trocando informações sobre produtos de beleza Na ocasião mioloantroppmd 10022010 1441 100 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 101 de um dia das mães participamos de uma reunião na casa de Maria Dite que contou com a presença de uma representante de produtos cosméticos que segundo ela também apresentavam diversas funções terapêuticas conforme demonstrava enquanto nos mostrava seus produtos suas formas de uso e possíveis benefícios Nesta reunião também pudemos perceber o compartilhamento por parte das mulheres de saberes que fazem parte deste universo da cosméticaestética feminina e a importância em deter estes conhecimentos e adquirir os produtos muitas delas fazendo pequenas prestações para poder adquirilos Por outro lado são muitas as queixas relativas ao excesso de peso das dietas que não se cumprem de alimentos que não devem se ingeridos e de roupas que apertam mostrando um apreço por silhuetas mais magras Este último aspecto foi apontado também pelos profissionais de saúde com os quais conversamos como uma das queixas freqüentes apresentadas pelas mulheres que chegam ao posto de saúde em busca de ajuda um detalhe que nunca deixa de ser mencionado quando as pacientes solicitam alguma medicação ou quando o médico a prescreve revelando o peso que o mandato da beleza feminina nos moldes contemporâneos assume também entre mulheres de classes populares41 É interessante notar como para estas mulheres o corpo registra a experiência de vida e guarda ou evoca uma memória mioloantroppmd 10022010 1441 101 102 em um de nossos encontros Tereza mostra a enorme cicatriz que atravessa seu abdômen e que carrega a lembrança de uma cirurgia feita somente após seu marido consentir pois conforme nos conta ele não queria que eu fizesse pois não tinha quem fizesse as coisas em casa diz ela Antônia também conta em detalhes o processo de implante de um rim doado por sua filha descrevendo com riqueza de detalhes os processos pelos quais o mesmo fora retirado do corpo da filha e colocado em seu corpo numa narrativa que acentua a importância da consangüinidade e da relação mãe e filha elaa filha dizia se tu me deste a vida como eu que posso te ajudar a viver não vou fazer isto Ao falar da sociedade disciplinar Foucault vê o corpo enquanto materialidade do poder poder esse que se exerce sobre o corpo de muitas maneiras No caso em questão gostaríamos de enfatizar as estratégias de poder que por um lado constitui o corpo enquanto órgão de trabalho e por outro impõe um corpomodelo a ser seguido ou seja aquilo que Foucault entende como controleestimulação surgido historicamente em uma espécie de oposição às investidas por uma liberação do corpo42 O corpo ideal o corpo que trabalha o corpo que consome aparecem enquanto corpos que permeiam as práticas e as relações cotidianas propiciando formas de subjetivação próprias43 mioloantroppmd 10022010 1441 102 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 103 O SEGREDO DO PSICÓLOGO É cada vez mais freqüente espalharse em volta o embaraço quando se anuncia o desejo de ouvir uma história Walter Benjamin Chamounos atenção o uso corrente de termos como depressão estresse e neurótico que fazem parte do vocabulário cotidiano dos moradores de forma heterogênea e articulada as categorias de nervos estar ruim e não estar boa como vimos anteriormente e também o reconhecimento da psicologia como uma profissão dedicada a atuar nos casos de sofrimento e aflição Encontramos várias referências ao trabalho doa psicólogoa no Monte Cristo profissão conhecida das mulheres da Santo Expedito e dosas usuáriosas da unidade de saúde local que oferece serviço de atendimento psicológico reconhecida por Miranda que se orgulha de seu papel de psicóloga da comunidade buscada como apoio a um momento difícil como o caso de Maria Dite recomendado e custeado pelos seus atuais patrões Oa psicólogoa aparece como um personagem dedicado a ajudar as pessoas que estão passando por momentos difíceis escutando o que o sujeito tem a dizer e buscando razões para o sofrimento aspecto no qual se diferenciaria dos médicos cujo trabalho também valorizado se resumiria à prescrição de remédios Marília moradora do bairro nos conta ter atravessado vários períodos depressivos e que buscou ajuda nos remédios mioloantroppmd 10022010 1441 103 104 na terapia e nas conversas com amigasvizinhas Segundo ela tais depressões tiveram início após ela ter presenciado seu filho ter sido vítima de uma bala em uma briga que envolveu seu exmarido Ela conta que conversa muito com suas amigas a quem ajuda e com quem também compartilha suas angústias Na sua reflexão acerca deste processo Marília cita o trabalho do psicólogo que consultou refletindo acerca da particularidade de sua escuta ela conta que já fez tratamento com um psicólogo e diz ter entendido qual era o segredo dele de sua profissão quando ele a fez contar a cena do filho por umas quatro horas O segredo desta conversa seria que oa psicólogoa escutava a história inteira permitindo que a narrativa se desenvolvesse até o final pela narradora ao contrário das conversas com suas amigas as quais apesar de a escutarem interrompiamna muitas vezes interceptando sua fala com outras perguntas opiniões demandas e sobretudo aligeirando sua narrativa Se por um lado a experiência compartilhada pelas amigas permite a conversa e esta é importante no alivio da angústia por outro lado esta se coloca em geral como truncada diferenciandose da escuta psicológica Podese perceber neste sentido que ao lado da capacidade de narrarcontarcompartilhar com outras pessoas as próprias angústias está a capacidade de ouvir e acolher a angústia alheia por parte das mulheres O desejo de contarnarrarcompartilhar parece relacionarse com a plurificação da capacidade do mioloantroppmd 10022010 1441 104 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 105 sujeito de ordenação de práticas sociais e psíquicas ambas permeadas pelas noções e teorias sobre a angústia e suas terapêuticas por parte da comunidade44 Neste sentido Miranda conta como diversas mulheres vêm lhe procurar para conversar quando estão tristes deprimidas ou quando têm algum problema Ah Miranda preciso falar contigo preciso Aí começamos a conversar assim Foi Deus que mandou aqui porque tô indo me jogar debaixo do trânsito da Via Expressa agora Aí eu disse não não tu não vai fazer isso é uma mulher nova é bonita não tens como fazer isso Aí eu saí e conversei com ela larguei a louça tudo né e fomos dar voltas daí porque fiquei das 200 até as 600 horas foi sincromáticosic mesmo Dando volta né conversando conversando Aí depois ela assim ai foi bem melhor Aí ela foi pra casa né foi pra casa foi aí eu disse assim ó quando tu quiser me procura que né Ela assim ai não quero nem imaginar se não fosse tu hoje mesmo eu eu me eu ia morrer Eu ia morrer hoje né Aí eu assim quando tu quiser tu me procura tu pode vimvoltar que eu vou estar sempre disponível pra te ajudar E assim ó essa semana também veio um Às vezes eu preciso mais do que elas também grifos nossos É importante observar que Miranda recorre a tal terapêutica ela mesma nos momentos em que atravessa períodos em que está mais pra baixo mais triste fato esse que pôde ser observado durante nosso campo quando sua mioloantroppmd 10022010 1441 105 106 sobrinha foi alvo de uma bala perdida no bairro Observamos que esta interpretação que chamamos de terapêutica local aparece em outros relatos como o de Marília que acentua a importância da conversa com as amigas Os lugares de fala e de escuta que configuram a conversa são circulares e compartilhados referindose a experiências sociais comuns nas quais um dia o sujeito pode estar mal precisando ser escutado e no outro pode assumir a função do escutador A conversa tão cara a quem dela necessita pode possibilitar o alívio da angústia tendo assim um valor terapêutico Esta dinâmica que denominamos de terapêutica está presente na fala de um educador da Santo Agostinho ele afirma que muitas das participantes do grupo de mulheres da sua comunidade autodesignadas como depressivas e medicalizadas via unidade de saúde encontraram suporte e alívio nas rodas de conversa encorajando muitas delas a abandonar os remédios CAPTURADAS PELAS INTERLOCUTORAS AS NARRATIVAS COLETIVAS O mérito da informação reduzse ao instante em que era nova Com a narrativa é diferente ela não se exaure Conserva sua força e é capaz de desdobramento mesmo depois de passado muito tempo Walter Benjamin Chegamos ao espaço público que a Casa da Comunidade representa na Santo Expedito em função da veemência de nossa principal interlocutora Miranda que desde o início de nossas conversas incluindo as telefônicas reiterava seu desejo de mioloantroppmd 10022010 1441 106 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 107 organizar um chá da tarde no qual pudessem participar várias pessoas que estariam segundo ela precisando de apoio Ela reiterava sempre a importância da fala e da conversa nos seus trabalhos como psicóloga da comunidade frisando que a conversa com as pessoas com aflições que a procuram tinha efeitos terapêuticos e se queixava da falta de conversas desse tipo dentre as pessoas da comunidade A gente devia fazer um tipo de um chá e convidar essas pessoas que a gente vê assim né Aí faz uma roda e fica conversando Que é que a pessoa cada um na sua casa assim elas não tem aquele sabe Eu acho que tinha que ter assim pelo menos um encontro uma vez por mês Eu acho que tinha que ter um encontro assim de mulher né Eu acho legal Que muitas pessoas precisam muitas né Que trabalham a semana toda e precisa daquilo Só Muitas não trabalham e aídepois ficam só ali na casa é aquela coisa né Esse negócio de casa estressa muito né Então é bom pelo menos ter um encontro alguma coisa né assim uma vez por mês Eu acho legal Aí a gente faz um encontro daí começa a conversar É bom pra pessoa Começa a rir um monte né ri conversa eE a pessoa já sai bem diferente daí também né já é outra pessoa quando sai dali Vai ser bom para vocês também Miranda Para Miranda um encontro para conversa ou desabafo entre amigas aparece como uma maneira potencial de auxílio nos problemas enfrentados ou seja a conversa aparece como mioloantroppmd 10022010 1441 107 108 um fim terapêutico ideia que é compartilhada por outras pessoas do bairro A sua interpretação acerca de como resolver problemas psicológicos envolve uma dimensão religiosa e social postulava que quando ela mesma estava mal tinha que dar uma volta ir a igreja sair de casa encontrar pessoas e conversar Muita gente tem problemas que podem ser auxiliados com a conversa referindose a problemas como desemprego trabalho família maridosaúde Miranda ocupava um lugar peculiar no grupo de mulheres não era uma das lideranças do grupo de mulheres organizados na comunidade e sua relação com o processo de ocupação parecia um tanto obscuro Observamos que ao contrário das demais mulheres ela era a única que não possuía casa própria e que mudanças de endereço e de telefone eram bem mais frequentes com ela do que com as demais Assim deixamos de lado nossa busca de itinerários terapêuticos individuais e passamos a marcar novos encontros conversas ritualizadas mediadas por comidas e bebidas preparadas por todas Estes encontros permitiram a vivência de um tempo a parte fora das experiências cotidianas Nestas conversas o passado surgia como mediador de um tempo out por diversas vezes como o tempo da glória vivida tempos da ocupação da felicidade agora perdida com o distanciamento das relações de outrora vistas como muito estreitas próximas permeadas pela dimensão do prazer de viver que hoje parece distante e marcadas por muitas esperanças Entendemos isso mioloantroppmd 10022010 1441 108 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 109 não como um desvio ao assunto proposto mas que narrar a ocupação era também uma forma de falar de si e que através das narrativas das experiências passadas muito do que elas vivem hoje também estava sendo revelado A roda de conversas passou a ter um lugar privilegiado na nossa pesquisa por entender que se tratava da forma como estas mulheres haviam optado para falar de si e que tínhamos de fato levado a sério a proposta de ouvir o que queriam dizer Antônia sempre era chamada para estas ocasiões parecendo depender dela e de Miranda o início das conversas embora Anita ocupasse também um lugar fundamental e legítimo no momento de relatar os vários e complexos eventos que compuseram o processo da ocupação45 Tanto Antônia quanto Miranda partilhavam da idéia de que os encontros seriam produtivos para todas as mulheres sublinhando que nós estávamos incluídas nestes benefícios Antônia lembrava que nós também teríamos que contar alguma coisa já que queríamos ouvilas com tanto afinco Tratavase a nosso ver de um convite para participar daquilo que Benjamin chama de comunidade de ouvintes e que parece fazer parte da terapêutica local Assim passamos a freqüentar a casa comunitária local onde as mulheres se reúnem para realizar as atividades de trabalho espaço próprio do lazerlabor e as sessões de trabalho manual nas máquinas de costura e teares foram substituídas diversas vezes por uma roda na frente de comes e bebes mioloantroppmd 10022010 1441 109 110 A comida apareceu aqui como também observou Soraia Simões46 em seu trabalho como uma mediadora importante para a conversa talvez apontando para uma situação de maior igualdade ou de cumplicidade condições que nos faz mulheres com uma provável atribuição de gênero nestas artes do cozinhar que se manifestam nas conversas suscitadas pelas diferentes comidas Neste momento éramos iguais apesar das diferenças sociais marcadas pelo papel que forçosamente ocupamos como pesquisadoras professoras eou psicólogas47 Muitas vezes concorrendo com outras atividades pré agendadas supostamente mais importantes os nossos chás da tarde pareciam ter certa popularidade as mulheres nos cobravam inclusive porque havíamos sumido no período das férias Nesse espaçotempo à parte nossos encontros foram focados nos relatos coletivos havendo narradoras oficiais do grupo no entanto houve espaço também para as conversas individuais Quando em grupo de certa maneira todos os assuntos podiam ser discutidos mas não de maneira pessoal as referências à sexualidade de Maria Dite por exemplo costumava aparecer com freqüência mas sempre com tom jocoso Quando em conversa paralela o clima mudava o momento de uma conversa particular se mostrava como abertura para confidências acerca dos nervos de estar mal de não estar boa ou estar ruim naquele momento de estar estressada ou de precisar de uma psicóloga mioloantroppmd 10022010 1441 110 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 111 Porém se estes relatos mais confidenciais ocupavam os bastidores as narrativas que acabaram ocupando o lugar central destas rodas de conversa de modo algum podiam ser confundidas com desabafos previstos inicialmente Eram relatos dos tempos da ocupação os tempos em que como anunciou Maria Dite sob a aquiescência de todas elas eram felizes e não sabiam Através da fala de Antônia que compartilha com Anita o lugar de narradora no grupo ficamos sabendo então de como a comunidade se formou a partir da ocupação no dia que antecedeu o Dia das Almas Finados em 1990 Ela conta como chegaram a ter a coragem necessária para entrar no movimento encenando com o apoio da mesa de um copo e do silêncio absoluto de todas a sua volta como se convenceram a participar da luta Se tem um copo de leite aqui que ninguém vai beber e que vai estragar e você está do outro lado da mesa você não vai vir pegar Se não tomar ele vai estragar A mesma coisa é da terra é pra ser de todo mundo não só de alguns Tu vai dizer que isto é um roubo Não é Antônia encenando a fala de um dos principais assessores do movimento Antônia reportase à noção de justiça social que marcou boa parte dos movimentos sociais na época e que foi decisiva na sua adesão à luta pela terra naquele momento em que todas enfrentavam enormes dificuldades para pagar aluguel ou viver de favor e de forma inconstante com parentes mioloantroppmd 10022010 1441 111 112 A gente achava que tinha que ter habitação para baixa renda em Florianópolis A primeira ocupação foi a Novo Horizonte e felizmente a segunda foi a nossa Nós nos conhecemos na preparação da ocupação éramos 70 famílias e ficamos em 48 Depois faltou muita gente muitos desistiram Mas nós fomos preparados pra ocupar bonitinho com arquiteto medindo terreno com cordão com piquete com tudo grifo nosso Anita Assim contrariando parentes e patrões escondendo seu envolvimento com o Movimento usando nomes clandestinos e desafiando autoridades e leis as mulheres emergem como heroínas deste tempo em parte já olvidado que de certa forma nossa busca parecia revivificar Anita reitera a importância que elas tiveram na vinda das demais famílias que iriam participar da ocupação num complexo e silencioso processo de organização que não podia ser visibilizado sob pena de prejudicar a luta Também destacam a importância de manteremse firmes na ocupação mesmo assim muitos haviam desistido diante do medo que a luta evocava Na noite da ocupação quando eu vi tinha oito carros da polícia E o Moisés estava lá na frente de mãos abertas na frente da polícia que veio para bater e o pessoal falou agora vocês vão pro terreno agora ou esquece a ocupação Uns lotes estavam marcados outros não era um salvese quem puder Aí a gente descobriu mesmo o que era uma ocupaçãoAnita mioloantroppmd 10022010 1441 112 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 113 Os homens aparecem nas narrativas ora como coadjuvantes ora como irresponsáveis são maridos de algumas namorados e filhos que apoiavam a decisão das mulheres em participar e depois em permanecer na ocupação outras vezes a eles eram atribuídas falhas como a de Mário que teria dado bolo já no momento da vinda dos caminhões para o local Marcamos um encontro e ele não veio depois ligou de outro lugar e tivemos que ir atrás dele de novo Já naquele momento segunda estas narrativas são as mulheres que aparecem coordenando o tráfego dos caminhões que traziam as mudanças dos ocupantes O meu caminhão teve que dar uma volta e ir buscar a mudança do Mário que tinha se perdido por aí Maria Dite Relatam o caso de um incêndio que ocorreu num barraco durante os primeiros meses de ocupação em que um dos homens alcoolizado nem percebera que o local estava incendiando Elas o teriam salvado salvando também o seu filho ainda bebê de um berço quase em chamas Os homens aparecem também como objetos de desejo como o caso de alguns policiais que apesar de seu papel repressivo no acampamento teriam sido facilmente seduzidos pela conversa e pelo café quentinho oferecido pelas mulheres ficando assim amigos da ocupação e interessados por algumas delas Esta aí quase que arrumou um marido contam entre risos e relatos detalhados sobre Maria Dite que não nega seu papel naqueles fatos nem esconde sua satisfação em ter sido simpática e atenciosa com aqueles homens policiais que coitados passavam a noite sozinhos na ocupação mioloantroppmd 10022010 1441 113 114 Os relatos detalhados do processo de ocupação destacam a atuação das mulheres a coragem necessária para ocupar a persistência fundamental para permanecer na ocupação em função das condições precárias do esforço e do jogo de cintura que o acampamento exigia seja para acessar a água proteger se de intempéries como para negociar com os vizinhos geralmente hostis às suas presenças aprender a participar das reuniões aprender a falar com as autoridades e com a imprensa Sublinham também as dificuldades de conciliar estas atividades com as atividades costumeiras como cuidar de crianças da casa trabalhar fora Quando da obtenção da área da comunidade foi necessário trabalhar nos mutirões e acompanhar a construção das casas Éramos muito unidas foi uma expressão que escutamos várias vezes nos tempos iniciais da ocupação onde todos se ajudavam onde exerciam mais o papel de comunidade do que de famílias depois que mudaram enfim para as casas novas as vidas se distanciaram afirmando que tal união acabou se desfazendo com o passar dos anos A ocupação aparece assim não apenas como um processo político mas também como uma época onde o coletivo foi prioritariamente vivenciado uma época não apenas heróica mas de vivências compartilhadas significando não apenas a luta pelas casas enquanto materialidade mas da construção de lares interconectados ou seja de redes sociais Este parece ser o significado maior da ocupação e da criação da comunidade Na mioloantroppmd 10022010 1441 114 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 115 narrativa de Anita destacase não apenas a presença das assessorias desde irmãs padres e pastores até militantes ligados a partidos de esquerda e sindicatos mas o desafio que as conversas com as autoridades lançavam e que implicava num aprendizado em termos de fala e de representação O que foi dito de besteira naquela reunião falava todo mundo junto foi aqui que o subprefeito disse nós vamos mandar colocar a polícia em cima de tudo pois são tudo bandidos gente que tá num ginásio é tudo de fora bandido que tava ali nem nome têm porque a gente não podia dizer o nome Eu disse um nome de uma prima que me veio na cabeça na hora do nervoso não podíamos revelar nosso verdadeiro nome e ele pediu para soletrar direitinho Eu disse como o senhor viu nos somos organizados e vamos nos reunir e depois a gente vai pra comunidade fazer uma reunião e conversar com o pessoal Ele disse então vão e voltem em dez minutos Pois nós fomos lá e só voltamos quatro horas mais tarde Ele tava bufando E disse eu não falei pra voltarem logo Agora são quatro da manhã Eu olhei e disse a gente não gostaria de falar eu tava chorando mas escolhemos um representante o advogado do MST que vai falar em nosso nome Anita destaca a importância dos assessores neste processo e de como uma narrativa que fosse compreendida pelas autoridades se mostrava muito importante para a conquista da terra e a construção de um sujeito político o que mioloantroppmd 10022010 1441 115 116 reitera a idéia de que a constituição do sujeito seja ele individual seja ele coletivo como aqui apresentado passa necessariamente pelo uso da palavra e pelo plano discursivo e narrativo SENTIDOS DA NARRATIVA SENTIDOS DA OCUPAÇÃO A narrativa da ocupação voltou à tona diversas vezes inclusive durante uma das crises que envolvia o grupo nas suas tentativas de dar conta dos trabalhos coletivos desenvolvidos pelo mesmo A propósito do desejo incansável de contar a mesma história acreditamos que o desejo de narrar os tempos da ocupação justamente no momento desta crise nos trabalhos comunitários mais importantes bem como a violência cruel e desorganizadora está relacionado com o lugar que ocupa na dramaticidade da vida da qual fazem parte os momentos de crise e desânimo e o papel das narrativas neste processo As narrativas podem ser entendidas como ordenadoras da experiência e como processo que lhe concede um sentido mas também fazem parte do processo de situar o sujeito no mundo nesse duplo de construir e ser construído por determinadas experiências Assim escolher e narrar um determinado evento já pressupõe que a narradora o faça sobre os significados que isso tem para ela Não que a importância desta narrativa esteja em representar o que aconteceu ou o que foi experimentado mas em ressignificálo através de uma ação o narrar Também não trata apenas de uma interpretação mioloantroppmd 10022010 1441 116 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 117 mas também de sua constituição Como observou Langdon entre o povo Siona a narrativa com um papel análogo ao rito Nas narrações de sua literatura oral ou em suas narrativas pessoais os siona criam e recriam seus modelos de realidade e também fornecem modelos para a ação48 Se a história da ocupação tomou conta por um tempo da agenda já apertada das mulheres os encontros não aconteceram para falar de assuntos tradicionalmente tidos como femininos como família saúde gravidez e partos nos quais se observam processos de aprendizagem troca de segredos e compartilhamento de experiências como observam estudos feitos por Cláudia Fonseca Sônia Maluf entre outras49 mas sim para contar da ocupação narrativa central que versava sobre política poder justiça e lutas coletivas incorporando dimensões ligadas à família aos trabalhos domésticos à sexualidade ao corpo O esforço de comparar os tempos de hoje com os tempos da ocupação parece corresponder ao que observou Francisco Canella50 de um momento altamente politizado dinâmico e rico em expectativas que marcou os primeiros anos que se seguiram à ocupação seguiuse um processo de desmobilização generalizada no qual a privatização da vida e o refluxo dos projetos coletivos passaram a predominar Certa nostalgia também se relaciona com um tempo em que todas eram jovens tinham filhos pequenos ou ainda eram solteiras A memória cerne das narrativas de outrora é uma reconstrução fortemente seletiva desde o mioloantroppmd 10022010 1441 117 118 presente de um tempo passado e nos trabalhos da memória a tendência à nostalgia se coloca como quase inevitável51 A possibilidade de contar suas histórias de vida neste caso uma história de vida coletiva e politizada lhes confere um lugar de protagonismo um estatuto de sujeitos políticos sujeitos coletivos que atuaram no espaço público de forma corajosa e ousada A expressão éramos felizes e não sabíamos sinaliza para a percepção que as mulheres parecem ter deste sujeito coletivo que se diluiu ou enfraqueceu tanto por suas peculiaridades comuns às ações coletivas que tendem a ser fluidas e instáveis quanto em função do contexto social contemporâneo CONSIDERAÇÕES FINAIS As narrativas das mulheres do Monte Cristo sobre suas experiências de aflição e sofrimento localizam essas vivências muito mais nas suas experiências individuais e sociais do que em explicações de tipo essencialista presentes em várias políticas públicas como relacionadas ao ciclo de vida biológico ou ainda com heranças genéticas ou predisposições naturais para os sofrimentos52 Nas explicações dadas por essas mulheres para suas depressões angústias desejo de dormir o tempo todo ou morrer logo destacamse aquelas que apontam para o contexto social em que estão inseridas Embora a categoria depressão seja conhecida e usada eventualmente pelas mulheres cabe destacar que ela aparece mioloantroppmd 10022010 1441 118 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 119 junto de outras expressões como nervos não estar bem da cabeça estar ruim estar passando por dificuldades esta última parecendo indicar um estado comum que qualquer pessoa pode atravessar em algum momento da vida pois deve se a situações de difícil solução e para cuja mitigação a conversa e o desabafo com uma vizinha ou amiga podem contribuir Observouse a valorização dos espaços de conversa coletiva por parte das mulheres que são a ampla maioria nos trabalhos de tipo comunitário mas também a valorização da presença dos profissionais ou mediadores externos em espaços coletivos sejam eles profissionais de saúde ou educadoresas que atuam em vários projetos nesta região que parece contrastar com a medicalização mais volumosa nos bairros do interior da ilha onde grupos comunitários parecem não ter tanta centralidade na vida cotidiana das pessoas É visível que os processos de subjetivação dos e das moradorasmoradores do Monte Cristo estão marcados por circunstâncias drásticas e trágicas e parece que a tentativa de falar destas situações que se repetem nos relatos individuais e coletivos expressam a importância do falar e de colocar em palavras o que apesar de corriqueiro não se configura como normal Não nos parece normal ver o filho sendo baleado na mesa da cozinha nem é normal ser acordado com um revólver na cabeça Acreditamos que neste caso a forma repetida e recorrente com que as dimensões mais sórdidas da contemporaneidade são narradas pelas pessoas é além de uma mioloantroppmd 10022010 1441 119 120 história que merece ser recontada também uma tentativa de ordenar uma realidade trágica e fortemente desorganizadora com que um cotidiano já marcado pela precariedade se depara na medida em que é alvo de suspeita escárnio e estigma Por outro lado as narrativas coletivas que versam sobre o tempo da ocupação são narrativas heróicas que falam dos poderes das mulheres e de sua constituição enquanto sujeitos coletivos e políticos algo que nos últimos anos parece ter se perdido no emaranhado da vida cotidiana e no contexto mais geral de despolitização e refluxo das lutas populares urbanas Talvez por isso o desejo de contar esta história tenha se sobrepujado as outras atividades comunitárias pois a partir deste presente talvez mais dificultoso recontar esta história era uma forma de falar do tempo em que elas eram felizes e não sabiam NOTAS 1 Expressão que tem se popularizado entre profissionais de saúde e de educação observáveis em documentos e programas sociais mas que aqui não será problematizado 2 O que não significa que todas consumam esses medicamentos pois tal como observou Maria Lúcia da Silveira em sua pesquisa em muitas situações observase o costume do estocamento domiciliar de medicamentos Silveira observou um fenômeno similar ao que vimos em vários contextos etnográficos desta pesquisa o fato de que as pessoas guardam em casa várias caixas de remédios controlados cuja aquisição só pode ser feita através de mioloantroppmd 10022010 1441 120 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 121 prescrição médica Estes pequenos estoques parecem ora ter um efeito tranqüilizador para os sujeitos em vista da dificuldade de obtêlos ora como objeto de troca entre vizinhas e pessoas que padeceriam do mesmo malidentificado pelo consumo do mesmo medicamento Silveira 2000 3 Itinerário terapêutico entendido como o resultado de um determinado curso de ações uma ação realizada ou o estado de coisas provocado por ela Estabelecido por atos distintos que se sucedem e sobrepõem o itinerário terapêutico é um nome que designa um conjunto de planos estratégias e projetos voltados para um objeto preconcebido o tratamento da aflição Rabelo 1999 4 Os itinerários terapêuticos e as entrevistas foram gravados individualmente ao passo que as narrativas coletivas e as conversas informais foram anotadas em diário de campo e num segundo momento as narrativas coletivas sobre a ocupação também foram gravadas 5 Canella 2007 Essa questão será retomada adiante 6 A cidade de Florianópolis situase fundamentalmente em uma ilha mas tem uma parte continental O acesso atualmente se dá via aérea e via terrestre nas duas pontes de concreto que ligam o continente e a Grande Florianópolis a parte insular na qual se situam as famosas 42 belas e paradisíacas praias bem como o núcleo urbano da cidade 7 Tornquist 2003 8 No primeiro capítulo de A máquina e a Revolta Alba Zaluar relata detalhadamente como lidou com as demandas de cunho mais clientelista e pessoal dos grupos com que se envolveu com uma consciência muito clara e atual a nosso ver dos limites de seu trabalho naquele contexto 2001 mioloantroppmd 10022010 1441 121 122 9 Não entraremos aqui na discussão acerca das relações entre pesquisa e ativismo que se colocaram ao longo do trabalho de campo dada a complexidade que tal tema envolve porém salientamos que nos parecia fundamental não confundir as dimensões da pesquisa mesmo com seus elementos intrínsecos de reciprocidade com outras formas de apoio à comunidade num sentido mais local ou no sentido político mais amplo Uma reflexão instigante sobre os desafios destas atividades na região pode ser ver em Canella 2007 10 Adotamos nomes fictícios para as pessoas e também para as nove comunidades que compõem o bairro Monte Cristo por razões éticas 11 Entendemos que a dimensão ética não se restringe a interlocução formalizada entre pesquisadora entrevistadoas que pode servir como um cheque em branco como diz Luiz Roberto Cardoso de Oliveira que liberaria o pesquisadora de uma vigilância permanente em termos da dimensão ética Langdon Maluf e Tornquist 2008 12 Utilizamos aqui o termo comunidade no sentido êmico mas sabendo da polissemia do mesmo conforme analisou Canella os sentidos locais desta categoria em geral pretendem indicar uma diferença com o termo favela pelo qual vistos de fora costumam ser designados chamando atenção para o sentido mais corrente que implicaria na idéia de coabitação de um mesmo espaço e em vivenciar um cotidiano comum marcado por problemas e dificuldades embora também possa indicar noção de comunidade presente entre as lideranças e assessores ressaltase a idéia de união o sentido político a união em torno de um objetivo e a negação mioloantroppmd 10022010 1441 122 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 123 do Estado em um primeiro momento marcado pela forte presença de setores da Igreja Católica Canella 2007 13 O movimento dos semteto surgiu em Florianópolis no final dos anos 80 e início dos 90 a partir de uma onda migratória de pessoas de baixa renda que se depararam com dificuldades ligadas à moradia Em torno desta situação se articularam vários setores da sociedade entre eles facções da igreja católica que passaram a organizar entre outras coisas algumas ocupações urbanas Ver Franzoni 1993 e Canella 2007 14 Sinônimo de traficante de drogas termo retirado de uma novela da Globo e utilizado pela interlocutora em tom jocoso 15 Benjamin 1986 16 Miguel e Fortes 2007 17 Esta situação não raro leva a um congestionamento de mediadores ou pesquisadores no bairro sendo comum portanto que em muitas reuniões e grupos estes estejam presentes em maior número do que os próprios moradoresas situação que merece uma reflexão a parte 18 Chamamos aqui cidade formal no sentido daquela parte do território urbano que é visibilizada urbanizada contando com equipamentos coletivos em melhor estado do que os que encontramos nas áreas ditas periféricas e empobrecidas 19 Monte Cristo é um bairro periférico localizado na região continental de Florianópolis Os índices de violência são considerados os maiores de Santa Catarina Ou ainda Bairro que abriga diversos grupos de Pagode e Rap como Código Negro Sistema Urbano entre outros Wikipedia acesso em 26112008 ou É uma realidade caracterizada por sinais de degradação da condição humana Portal Social acesso em 26112008 mioloantroppmd 10022010 1441 123 124 20 Zaluar 2004 21 Zaluar 1993 p 137 22 Abjeto é um processo discursivo que relacionase a todo tipo de corpos cujas vidas não são consideradas vidas e cuja materialidade é entendida como não importante Butler 1996 ou seja corpos aos quais não são conferidas importância ontológica ou política 23 Baeninger Rosana 2007 24 Durham Eunice 1984 25 Creches que funcionam em bairros nos quais o poder público não chegou e que funcionam na casa de mulheres que se propõem a cuidar das crianças com certo subsídio do Estado e que caracteriza as políticas neo liberais de desresponsabilização com direitos sociais universais relativos a educação infantil nas últimas décadas no Brasil Campos 2007 26 Mathieu 1991 Sorj 2004 Paulilo 1984 entre outras 27 Estar na perícia e ou estar encostado significa estar afastado do trabalho por motivos de saúde e recebendo benefício do INSS 28 A arte de narrar caminha para o fim Tornase cada vez mais raro o encontro com pessoas que sabem narrar alguma coisa direito É cada vez mais freqüente espalharse em volta o embaraço quando se anuncia o desejo de ouvir uma história É como se uma faculdade que nos parecia inalienável a mais garantida entre as coisas seguras nos fosse retirada Ou seja a arte de trocar experiências Benjamin 1983 p 57 29 Maluf 1999 p8 30 Cf também relatório de PIBIC de Monteiro 2009 31 Colônia Santana é uma das principais instituições psiquiátricas de Santa Catarina situada próxima de Florianópolis e muito conhecida da população como uma casa de loucos mioloantroppmd 10022010 1441 124 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 125 32 Este aspecto aparece também em Silveira 2000 quando argumenta que na visão das próprias pacientes o nervoso aparece indistintamente entre homens e mulheres e que no entanto as mulheres têm mais facilidade para exteriorizar seu sofrimento por ser socialmente aceitalegitimada para isso enquanto os homens tem a sua disposição um arsenal maior de válvulas de escape para as suas tensões cotidianas 33 Segundo o Programa de Saúde da Família PSF as equipes de saúde da família organizam seu trabalho tendo como base o distrito sanitário compreendido por microáreas que o compõem 34 Antidepressivo inibidor seletivo da recaptação de serotonina Kaplan et all 1997 35 Antidepressivo da classe dos inibidores seletivos da recaptação da serotonina IDEM 36 Nome comercial O princípio ativo é o haloperidol um antipsicótico IBIDEM 37 Silveira 2000 38 Fonseca 1993 procura discutir as concepções de violência em classes populares ao mostrar como esta é uma noção que acaba sendo flexível assim como as de bem e mal e atribui à classe média a tentativa de fazer valer um discurso moral que negligencia como fruto de ignorância as experiências e simbolismos das classes populares 39 De acordo com Max Weber o Estado reclama para si o monopólio legítimo do uso da violência física ou seja cabe ao Estado tanto o exercício exclusivo da violência quanto o monopólio da prescrição e interdição desta Mas isso não significa que toda e qualquer violência cometida pelo Estado seja legítima estando o Estado mioloantroppmd 10022010 1441 125 126 nas sociedades modernas vinculado nos preceitos do sistema legal A violência é empregada pelo Estado visando promover a ordem Weber 1997 Aqueles que estão autorizados ao uso da violência o fazem em circunstâncias determinadas em obediência ao império da lei Adorno 2002 p274 40 Peruzzo 1999 p56 41 Este aspecto aliás aparece nas entrevistas com profissionais e conversas com usuárias em outros bairros e unidades de saúde nos quais a pesquisa Gênero saúde mental e subjetividades foi desenvolvida 42 Convém enfatizar que o poder entendido como relação de forças não é aceito passivamente mas incorporado pelos indivíduos Foucault1986 43 Para Focault o controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia mas começa no corpo com o corpo Foi no biológico no somático no corporal que antes de tudo investiu a sociedade capitalista O corpo é uma realidade biopolítica Foucault1986 p80 e enquanto tal passível às normatizações que a medicina passou a imputarlhe a medicina é uma estratégia biopolítica idem 44 Como sugere Bezerra 2001 45 A ocupação que chamamos aqui de processo ocorreu em algumas etapas preparação e organização dos interessados em participar a ocupação propriamente dita que iniciou no feriado de Finados de 1990 e se estendeu por cerca de um ano e mudança para as residências próprias numa área próxima Durante o período de assentamento as pessoas moraram em barracos moradias provisórias erguidos na área conhecida como Coloninha e foi mioloantroppmd 10022010 1441 126 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 127 neste período que se deram as negociações relativas a terra e moradia e o período dos mutirões no qual as casas foram construídas 46 Simões 2008 47 Uma tarde a psicóloga do grupo de pesquisadoras foi alvo de várias chacotas e risadas logo ela que sempre suscitara curiosidade e certa reverência da parte do grupo diante de um prato de canjica gentil e improvisadamente trazido por Miranda na única vez em que nosso chá da tarde fora olimpicamente esquecido a psicóloga serviuse de um porção muito pequena com cautela e cuidado tão grandes que todas as mulheres da cooperativa ficaram a olhar cada detalhe do gesto e puseramse a rir e comentar sua ignorância diante de uma simples canjica 48 Langdon 1999 p242 49 Fonseca 2000 Maluf 1993 Tornquist 2007 50 Canella 2007 51 Bosi 1996 52 Conforme artigo de Sônia W Maluf neste livro ADORNO Sérgio Monopólio Estatal da Violência na Sociedade Brasileira Contemporânea In Miceli S e outros Org O que ler na ciência social brasileira 19702002 São Paulo Sumaré 2002 v IV p 267307 BAENINGER Rosana e ALVES Pedro Região Metropolitana de Florianópolis migração e dinâmica da expansão urbana XVI Encontro Nacional de Estudos Populacionais ABEP Caxambu 2008 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS mioloantroppmd 10022010 1441 127 128 HORKHEIMERADORNO São PauloAbril CulturalColeção Os pensadores 1983 BEZERRA JR Benilton A clínica e a reabilitação psicossocial In PITTA Ana Reabilitação psicossocial no Brasil Hucitec São Paulo 2001 p 137 142 BOSI Eclea Memória e sociedade lembranças de velhos Cia das Letras São Paulo 1996 BUTLER Judith Como os corpos se tornam matéria Disponível em httpwwwscielobrpdfrefv10n111634pdf Acesso em 27 de junho de 2008 CANELLA F Disputas simbólicas e sentidos de comunidade a memória de moradores da periferia urbana de Florianópolis 1989 2005 In V Encontro Regional Sul de História Oral Culturas Identidades e Memórias 2007 Florianópolis IV Encontro Regional Sul de História Oral anais eletrônicos Nº 01 2007 Florianópolis Universidade Federal de Santa Catarina 2007 DUARTE Luiz Fernando Dias Da vida nervosa nas classes trabalhadoras urbanas Rio de Janeiro Zahar 2006 A outra saúde mental psicossocial físicomoral In ALVES P C e MINAYO M C org Saúde e doença um olhar antropológico Rio de Janeiro FIOCRUZ 1994 p 83 90 Indivíduo e pessoa na experiência da doença Ciência e Saúde Coletiva v 8 n 1Rio de Janeiro RJ 2003 DURHAM Eunice A caminho da cidade São Paulo Perspectiva 1984 FONSECA ClaudiaFamília fofoca e honra Editora da UFRGS Porto Alegre 2004 mioloantroppmd 10022010 1441 128 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 129 FOUCAULT Michel Microfísica do poder Rio de Janeiro Graal 1986 FRANZONI Tereza Mara BASTOS Rafael Jose de Menezes As perigosas relações entre movimento popularcomunitario e administração publica municipal na Ilha de Santa Catarina 252f Dissertação Mestrado Universidade Federal de Santa Catarina Florianópolis 1993 GOLDMAN Marcio Os tambores dos mortos e os tambores dos vivos Etnografia antropologia e política em Ilhéus Bahia Revista de Antropologia São Paulo USP v 46 n2 p 423444 2003 KAPLAN Harold et all Compêndio de psiquiatriaciências do comportamento epsiquiatria clínica 7ªed Porto Alegre Artes Médicas 1997 LANGDON Esther Jean MALUF Sônia TORNQUIST Carmen Susana Ética e política na pesquisa os métodos qualitativos e seus resultados In GUERREIRO Iara SCHMIDT Maria Luisa S ZICKER Fabio Ética nas pesquisas em ciências humanas e sociais na saúde São Paulo Hucitec 2008 128147 LANGDON Esther Jean A fixação da narrativa do mito para a poética de literatura oral Revista Horizontes Antroplógicos Porto Alegre ano 5 n12 p1335 1999 MALUF Sônia Encontros noturnos bruxas e bruxarias na Lagoa da Conceição Rio de Janeiro Rosa dos tempos 2000 Antropologia narrativas e a busca de sentido Revista Horizontes Antroplógicos Porto Alegre ano 5 n12 p 69 82 1999 mioloantroppmd 10022010 1441 129 130 Mitos Coletivos Narrativas pessoais cura ritual trabalho terapêutico e emergência do sujeito nas culturas da Nova Era ManaRio de Janeiro v 11 n2 p 499 528 2005 MANZINI Fernanda e BECKER Marina A mulher e a pílula da felicidade uma abordagem sobre o uso de fluoxetina Trabalho de Conclusão de Estágio Universidade Federal de Santa Catarina 2007 MATHIEU NicoleClaude Anatomie politique catégorisations et idéologies du sexe Paris CôtéFemmes 1991 MIGUEL Denise Soares e FORTES Priscila Rodrigues Tecnologia e Educação transformando informação em conhecimento Revista Udesc em Ação Florianópolis v 1 n 1 p 1 9 2007 PAULILO Maria Ignez O peso do trabalho leve São PauloSBPC Ciência Hoje 58 1986 6470 V5n8 p6470 1986 PERUZZO Rosária Metamorfoses na constituição de Si Expressão PsiPelotas v3n2 p5564 1999 RABELO Miriam et all Experiência de doença e narrativa Rio de Janeiro Fiocruz 1999 ROHDEN Fabiola Uma ciência da diferença sexo e gênero na medicina da mulher Rio de Janeiro Editora Fiocruz 2001 SILVEIRA Maria Lúcia O nervo cala o nervo fala a linguagem da doença Rio de Janeiro Fiocruz 2000 SIMÕES Soraia Conversas na cozinha sociabilidade feminina e hermenêutica em um conjunto habitacional da Zona Sul do Rio de JaneiroLille Rio de Janeiro 2008 mimeo mioloantroppmd 10022010 1441 130 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 131 SINGER Paul Economia Política da urbanização São Paulo Contexto 2002 SORJ Bila Trabalho remunerado e nãoremunerado In VENTURI Gustavo e RECAMÁN Marisolorg A mulher brasileira nos espaços público e privado São Paulo Fundação Perseu Abramo 2004 TORNQUIST Carmen Susana Salvar o dito honrar a dádiva Revista Impulso Piracicaba v14 n 35 p6374 2003 Gerar parir narrar narrativas de parto e o poder relativo das mulheres In HARTMANN Luciana e FISCHMANFernando orgs Donos da Palavra autoria experiência e performance em narrativas orais na América do Sul Santa Maria Editora da UFSM 2007 WEBER Max COHN Gabriel Sociologia 6 ed São Paulo Atica 1997 Grandes cientistas sociais 13 ZALUAR Alba Relativismo cultural na cidade Rio de Janeiro Brasília Tempo BrasileiroUNB Anuário Antropológico n 90 1993 Introdução afetiva e metodológica In A Máquina e a Revolta São Paulo Brasiliense 2001 Integração perversa pobreza e tráfico de drogas Rio de Janeiro Fundação Getúlio Vargas 2000 mioloantroppmd 10022010 1441 131 mioloantroppmd 132 10022010 1441 O objetivo deste trabalho1 é abordar algumas questões relativas à constituição social da experiência da deficiência2 a partir da análise de narrativas de pessoas com deficiência Essa abordagem tem como foco de análise as questões de construção da pessoa do corpo do gênero da sexualidade da subjetividade e da saúde mental no sentido de compreender como essas categorias se articulam na manifestação da deficiência como identidade política Para este propósito foi feita uma pesquisa de campo baseada na observação participante entrevistas e conversas com pessoas com deficiência com histórico de ativismo inspirandome nas orientações de Cardoso de Oliveira 2006 para quem as entrevistas mescladas com observação participante complementamse dialogicamente permitindo o verdadeiro encontro etnográfico na Antropologia Interpretativa de Geertz 1989 quando sustenta que a cultura ou realidade social do grupo a ser estudado deve ser interpretada como um texto um manuscrito estranho A CONSTRUÇÃO DA PESSOA NA EXPERIÊNCIA DA DEFICIÊNCIA CORPO GÊNERO SEXUALIDADE SUBJETIVIDADE E SAÚDE MENTAL Anahi Guedes de Mello mioloantroppmd 10022010 1441 133 134 desbotado cheio de elipses incoerências emendas suspeitas e comentários tendenciosos idem ibidem p 7 onde constróise uma leitura através de uma descrição densa de uma hierarquia estratificada de estruturas significantes em termos dos quais gestos são produzidos percebidos e interpretados idem ibidem p 5 atribuindolhes significados e no conceito crítico de autoridade etnográfica de Clifford 2002 quando propõe um modelo dialógico ou polifônico de etnografia aquela que represente distintas vozes e perspectivas Para esse autor a cultura é algo relacional formada por processos comunicativos e de empatia em que etnógrafo e nativo estão em relações de poder Os sujeitos envolvidos nesta pesquisa3 são pessoas com deficiência compondo um total de cinco sendo três com deficiência física e dois com deficiência visual Vinícius 23 anos homem com amputação das duas pernas Marisa 38 anos mulher com baixa visão Débora 43 anos mulher com cegueira Laura 69 anos mulher com deficiência física em consequência de poliomielite e Rita 50 anos mulher com deficiência física tetraplegia em decorrência de acidente automobilístico aos 29 anos Todos os sujeitos vivem uma vida independente4 pertencem à classe média de Florianópolis Vinícius Marisa e Débora e Rio de Janeiro Laura e Rita Apenas os que residem na primeira são casadosas e têm filhosas Com exceção de Vinícius e Rita todos têm deficiência congênita5 ou a adquiriram em tenra idade mioloantroppmd 10022010 1441 134 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 135 Ocasionalmente utilizarei alguns relatos de uma colega do Movimento de Vida Independente6 MVI um deles Sabrina mulher com deficiência física devido à poliomielite autorizados e extraídos de uma lista de discussão A pesquisa iniciouse no segundo semestre de 2007 e foi parcialmente concluída no segundo semestre de 2009 Durante a primeira etapa foi feito um extenso levantamento bibliográfico e leituras sobre a produção intelectual acerca do tema da deficiência tanto em Antropologia quanto em outras áreas do conhecimento que o perpassam como a Educação a Medicina e a Psicologia Na segunda etapa o do trabalho de campo propriamente dito contatei sujeitos que tivessem um histórico de ativismo na área da deficiência com atuação em Organizações NãoGovernamentais ONGs de pessoas com deficiência7 Os contatos e entrevistas se deram primeiro com os sujeitos de Florianópolis entre abril e maio de 2008 na sede de duas entidades a Associação dos Deficientes Físicos de Florianópolis Aflodef e a Associação Catarinense para a Integração do Cego ACIC A primeira se localiza no centro da cidade a segunda no bairro Saco Grande As duas têm como missão principal promover respectivamente a inclusão e reintegração de pessoas com deficiência física e visual em vários setores da sociedade8 porquanto parecem assumir dois papéis distintos que frequentemente se confundem entre si a de prestadoras de serviços9 e de defesa de direitos humanos 10 mioloantroppmd 10022010 1441 135 136 Para desenvolverem a maioria de seus projetos as duas entidades mantêm várias parcerias eou convênios com órgãos governamentais tanto os da esfera municipal quanto os da estadual e outras organizações nãogovernamentais Essas entidades têm a característica de serem espaços de marcante sociabilidade entre seus membros o que remonta àquilo que Magnani 1998 definiu como pedaço ou seja uma categoria que designa aquele espaço intermediário entre o privado a casa e o público onde se desenvolve uma sociabilidade básica mais ampla que a fundada nos laços familiares porém mais densa significativa e estável que as relações formais e individualizadas impostas pela sociedade Magnani 1998 p 116 Em relação às duas pessoas do Rio de Janeiro os contatos iniciais foram feitos através de trocas de emails onde combinamos um encontro aproveitando a oportunidade de minha estada naquela cidade por uma semana em julho de 2008 As entrevistas se deram em seus respectivos apartamentos Importante esclarecer aqui que ao contrário dos entrevistados de Florianópolis tanto Laura quanto Rita me conheciam de outra época por militarmos no mesmo movimento o MVI11 As entrevistas gravadas sem objeções em todos os casos foram baseadas em técnicas narrativas ou seja métodos que mioloantroppmd 10022010 1441 136 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 137 pretenden describir la experiencia subjetiva de las personas de una forma que sea fiel al sentido que éstas dan a sus proprias vidas Booth 1998 p 253 O foco da análise das narrativas sobre as experiências com a deficiência é o de como esta se constitui em um modo de subjetivação ou seja de constituição de sujeitos A escolha desta perspectiva teórica devese ao fato de que a configuração sóciocultural da deficiência como fenômeno com frequência se dá na presença de um eixo onde práticas eminentemente medicalizadas individualizadas e de cariz marcadamente assistencialista se ligam à narrativa da tragédia pessoal Martins 2004 p 212 Por isso fazse necessária a crítica a esse dito discurso através da incorporação das vozes de quem entende melhor que ninguém e a partir de sua experiência vital e de sua concreta capacidade de sentido o que é a deficiência Em outras palavras em vez da perpetuada reiteração de narrativas de tragédia pessoal teríamos narrativas de transformação social sem itálico no original idem ibidem p 17 onde a experiência da deficiência passa a ser bastante reveladora em termos de mudança ou transformação pessoal As narrativas autobiográficas são também narrativas de transformação e mudança pessoal Maluf 1999 perspectiva que vai ao encontro da abordagem de busca de sentido ou seja a necessidade de o antropólogo ir além da literalidade idem ibidem p 70 mioloantroppmd 10022010 1441 137 138 A TRÍADE PESSOA CORPO E SUBJETIVIDADE INTERFACES ENTRE DEFICIÊNCIA E SAÚDE DOENÇA O recorte teórico de minha análise se baseia no pressuposto de que a deficiência atua como um regime de subjetivação Foucault 1984 no contemporâneo articulando se também com o campo da reflexão antropológica sobre a pessoa Mauss 2003 Dumont 198513 Regimes ou modos de subjetivação são os diferentes modos pelos quais em nossa cultura os seres humanos se tornaram sujeitos Foucault 1995 Neste sentido podese dizer que o corpo seria um arcabouço para os processos de subjetivação a trajetória para se chegar ao ser e também prisioneiro deste A constituição do ser humano como um tipo específico de sujeito ou seja subjetivado de determinada maneira só é possível pelo caminho do corpo Mendes 2006 p 168 Em seu artigo Uma Categoria do Espírito Humano a noção de pessoa a de eu Mauss demonstra que a noção de pessoa é uma categoria construída histórica e socialmente ao longo dos séculos de uma simples mascarada à máscara até uma forma fundamental do pensamento e da ação Mauss 2003 p 397 Para os propósitos deste trabalho interessame especificamente dois tipos de pessoa definidos por Mauss a pessoa moral e a pessoa ser psicológico Segundo Mauss o cristianismo retomou o conceito de pessoa moral e a converteu em entidade metafísica a pessoa é consciente independente autônoma livre mioloantroppmd 10022010 1441 138 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 139 responsável idem ibidem p 390391 Em seguida a definição de pessoa como ser psicológico trouxe sua importância quando apareceu a categoria do eu com a qual o homem tem consciência psicológica de si mesmo e é capaz de se transformar Para Foucault 2004 não há um sujeito soberano universal O sujeito se constrói sempre em relação aos jogos de verdade presentes na cultura da sociedade em que vive Normas disciplinas e práticas históricas de sujeição se aplicam sobre o indivíduo com a pretensão de dizer verdades normalizar atos comportamentos costumes e desejos O sujeito não está confinado a uma única forma de subjetividade Nisso radica precisamente a dimensão política dos processos de subjetivação entendidos como a possibilidade de que a relação consigo mesmo se constitua em uma prática de resistência contra o saberpoder estabelecido buscando produzir novos modos de existência a partir de outras experiências de assujeitamento É a experiência que é a racionalização de um processo ele mesmo provisório que redunda em um sujeito ou melhor em sujeitos Eu chamaria de subjetivação o processo pelo qual se obtém a constituição de um sujeito mais precisamente de uma subjetividade que não é evidentemente mais que uma das possibilidades dadas de organização de uma consciência de si sem itálico no original Foucault 2004 p 262 Interesseime por essa concepção foucaultiana influenciada pela leitura em setembro de 2004 de uma mioloantroppmd 10022010 1441 139 140 reportagem ampla no jornal Diário Catarinense sobre as paraolímpiadas Nada relevante se não fosse o estranhamento que me causou a leitura de um pequeno trecho do artigo do jornalista Mauricio Xavier14 Tratavase da entrevista da atleta Roseane dos Santos vencedora de duas medalhas de ouro nas Paraolímpiadas de 2000 uma em arremesso de peso e outra em lançamento de disco afirmando a melhor coisa que aconteceu na minha vida foi perder a perna em um acidente Minha primeira reação ao lêla foi um misto de incredulidade e repugnância No prólogo do livro de Carolyn Vash 1988 George W Hohmann seu orientador afirma que a mais valiosa contribuição dessa autora é a noção de acolhida da deficiência e de sua transcendência Não era a primeira vez que eu ouvia falar disso Trinta anos antes um amigo meu paraplégico antigo estivador e de pouca instrução me dissera Por nada no mundo eu perderia a chance de ser um desgraçado de paraplégico Na época pensei que ele estava completamente louco Levei muitos anos para compreender o que esse homem simples e sábio tinha descoberto em dois anos que uma deficiência pode ser um aspecto especial da própria pessoa que oferece novas oportunidades para experiência crescimento maturação e autorealização Eu havia sido totalmente treinado pelo processo de reabilitação na idéia de que minha deficiência era o inimigo a ser derrotado controlado minimizado compensado e sim negado Não era nunca nunca certo gostar de ser o que eu era entre outras coisas deficiente Vash 1988 p XIII mioloantroppmd 10022010 1441 140 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 141 Enaltecer uma condição intrinsecamente adversa a experiência da deficiência fazendo dela motivo de orgulho era novidade para mim não só como pessoa com deficiência e ativista da deficiência mas também como pesquisadora Tinha experimentado anos atrás um movimento semelhante porém mais fortemente demarcado entre as pessoas surdas o Deaf Pride15 Mello 2006 Que alteridade é esta que faz da deficiência um poderoso artifício de subjetividade Qual seria o limite entre ser uma pessoa e ter uma deficiência Qual é o seu lugar no mundo ou melhor como as pessoas com deficiência se colocam no mundo Nos primeiros tempos do movimento de reabilitação existia muita conversa sobre a importância de aceitar se a deficiência de alguém Isso algumas vezes significava a ausência do mecanismo de defesa da negação Outras vezes significava simplesmente reconhecer uma perda sem se sentir péssimo por causa disso A aceitação era boa Não se esperava entretanto que as pessoas gostassem de suas deficiências isso era considerado pior que a negação Isso exigia que a pessoa deficiente soubesse exatamente onde estava a linha demarcatória entre a aceitação e o regozijo e ficasse eternamente vigilante para não cruzála Aceitação era morder o projétil e sorrir ao mesmo tempo e com a mesma facilidade Vash 1988 p XXIV Partindo dessa reflexão percebi que a deficiência poderia ser a investigação da razão do investimento Goldman 1999 mioloantroppmd 10022010 1441 141 142 p 36 ou seja o modo de subjetivação 16 Assim a deficiência pode ser também pensada na perspectiva da genealogia do sujeito modernocontemporâneo da centralidade do corpo deficiente como idioma simbólico e político da identidade e seu impacto na subjetividade da pessoa contrapondose às ideias hegemônicas de tratála tão somente como um fardo desvio aberração perturbação ou anormalidade A existência do corpo parece estar sujeita a um peso assustador que os rituais devem conjurar tornar imperceptível sob a familiaridade das ações Prova disso é a discrição normal nos elevadores nos transportes em comum ou nas salas de espera quando os atores face a face esforçamse para mutuamente e com certo desconforto tornarse transparentes uns para os outros a simbólica corporal perde momentaneamente o poder de conjuração O corpo tornase um incômodo um peso As esperas respectivas dos atores não são mais simétricas e deixam ao contrário transparecer falhas Os corpos deixam de corresponderse na imagem fiel do outro nessa espécie de bloco mágico onde os atores apagam sua corporeidade na familiaridade dos sinais e símbolos ao mesmo tempo em que a colocam adequadamente em cena Um desconforto emerge a cada ruptura das convenções de apagamento A esse respeito podese chamar a atenção para as dificuldades relacionadas com as pessoas que possuem alguma deficiência física ou sensorial ou catalogadas como trissômicas débeis ou doentes mentais Nesses atores o corpo não passa despercebido como manda a norma mioloantroppmd 10022010 1441 142 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 143 de discrição e quando esses limites de identificação somáticos com o outro não mais ocorrem o desconforto se instala O corpo estranho se torna corpo estrangeiro e o estigma social funciona então com maior ou menor evidência conforme o grau de visibilidade da deficiência O corpo deve ser apagado diluído na familiaridade dos sinais funcionais Mas com a simples presença física o deficiente físico ou o louco perturbam a regularidade fluida da comunicação Proibindo o próprio corpo eles suscitam o afastamento bastante revelador da atitude de nossas sociedades para com a corporeidade Le Breton 2006 p 4950 O culto ao belo inibe as pessoas com deficiência e constrange os normais Assim devido à promoção da beleza harmônica que herdamos dos gregos até nossos dias a manifestação da deficiência lesiona o conceito e a idealização de corporeidade grega que eugenicamente temos tão enraizados dentro de nós Silva 1986 Amaral 1995 Carvalho 2001 Bianchetti 2001 A imagem corporal desviante afeta a relação com o outro e com o próprio corpo naquele que se sente diferente adquirindo um protagonismo superlativo que se soma à exigência de encaixar o outro dentro de padrões inalcançáveis O desvio é criado pela sociedade isto é tal pessoa é desviante porque o rótulo do desvio foi a ela sobreposto com êxito O desvio não é uma característica que seja encontrada no indivíduo mas um veredicto enunciado acerca desse indivíduo por um grupo social Scheneider 1999 p 60 mioloantroppmd 10022010 1441 143 144 Aliás foi em nome desse rótulo que os estudos e movimentos eugênicos na História foram responsáveis por grandes genocídios atentando contra os direitos humanos sobretudo contra todos aqueles que fossem diferentes dos padrões antropométricos fisiométricos e psicométricos sendo eles exterminados ou segregados a modernidade inaugurou para as pessoas portadoras de deficiência novas formas de exclusão e dominação Em primeiro lugar trouxe o poder regulador e por vezes mesmo fascizante da biomedicina apoiado pela instauração da ciência que os estudos sobre a deficiência questionam em toda a linha Basta lembrar neste contexto o movimento da eugenia e a institucionalização das pessoas portadoras de deficiências no Ocidente Pereira 2006 p 67 Neste sentido as pessoas com deficiência também eram um prato cheio Silva 1986 ao lado dos negros índios homossexuais judeus ciganos dentre outros instaurandose as artimanhas do biopoder sobre elas conforme prenuncia Foucault 1982 é o corpo da sociedade que se torna no decorrer do século XIX o novo princípio É este corpo que será preciso proteger de um modo quase médico em lugar dos rituais através dos quais se restaurava a integridade do corpo do monarca serão aplicadas receitas terapêuticas como a eliminação dos doentes o controle mioloantroppmd 10022010 1441 144 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 145 dos contagiosos a exclusão dos delinqüentes A eliminação pelo suplício é assim substituída por métodos de assepsia a criminologia a eugenia a exclusão dos degenerados Foucault 1982 p 145 Estes ideais eugênicos persistem até os dias atuais sob a roupagem da Nova Genética ou Novagenia termos estes cunhados por Black 2003 para se referir às novas formas ou práticas eugênicas17 que têm surgido no mundo contemporâneo e nas chocantes declarações de alguns de nossos políticos divulgadas pela mídia provocando uma onda de protestos inclusive dos próprios movimentos pelos direitos das pessoas com deficiência18 Sociedades de enfermos físicos morais ou mentais além de por natureza serem infelizes e viverem em constantes tragédias decorrentes da ação negativa e danosa desses componentes infelizes não acompanham o progresso dos povos mais sadios melhor dotados e em conseqüência cada vez mais deles se tornam dependentes Wilson Passos então vereador do Rio de Janeiro ao justificar um projeto de sua autoria o PL nº 10442007 que visa a beneficiar família saudável que tenha filho sadio19 As pessoas poderão se valer da ciência para evitar que seus filhos nasçam feios deformados deficientes ou idiotas Luiz Henrique Silveira governador do Estado de Santa Catarina em O DNA Espartano artigo de sua autoria publicado no jornal A Notícia em 28 de agosto de 200520 mioloantroppmd 10022010 1441 145 146 A repulsa à doença é instintiva no ser humano Poucas pessoas sentem prazer em apertar a mão de uma pessoa portadora de lepra ou de AIDS De um modo geral as pessoas não se sentem confortáveis na companhia de pessoas doentes ainda mais quando se trata de doença letal ou deformadora A discriminação é válida quando se trata de doença contagiosa ou de epidemia que coloca em risco a vida e a saúde da comunidade A deformidade física fere o senso estético do ser humano A exposição em público de chagas e aleijões produz asco no espírito dos outros uma rejeição natural ao que é disforme e repugnante ainda que o suporte seja uma criatura humana Portadores de doenças e deformidades costumam freqüentar locais públicos exibindo as partes afetadas do corpo não só com o intuito de provocar comiseração como também com o propósito de afrontar a sensibilidade dos outros para o que é normal saudável e simétrico Denise Frossard juíza e até então deputada federal ao justificar como relatora os motivos de sua rejeição ao PL nº 5488 de 2001 que previa a criminalização de ato discriminatório em razão de doença ou deficiência de qualquer natureza21 Em Foucault 2001a podemos perceber que os conceitos de anomalia e anormal começam a tomar forma no século XIX com a influência da Medicina e do Direito no Ocidente a partir de três figuras o monstro humano o indivíduo a ser corrigido e a criança masturbadora dos quais me interessa definir as duas primeiras posto que as pessoas com deficiência se encaixam nessas O monstro se define em sua existência mioloantroppmd 10022010 1441 146 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 147 mesma e em sua forma não apenas uma violação das leis da sociedade mas uma violação das leis da natureza o que combina o impossível com o proibido idem ibidem p 69 70 O indivíduo a ser corrigido se refere a todo aquele que apresentam dificuldades para seguir as regras sociais Esse indivíduo está sob o domínio da família mesma no exercício de seu poder interno ou na gestão de sua economia ou no máximo é a família em relação com as instituições que lhe são vizinhas ou que a apóiam idem ibidem p 72 O monstro e o indivíduo a ser corrigido representam pois o veredicto final do corpo deficiente que fere a ordem social e demarca a linha proibida entre o sagrado e o profano A possessão do demônio relaciona à deficiência o resultado do pecado e da condição impura a própria idéia da sujeira que ofende a ordem Douglas 1976 p 1112 Barnes 1998 p 65 por sua vez critica a visão essencialmente fenomenológica de Douglas assentada na idéia de que o preconceito contra as pessoas com deficiência é de uma forma ou de outra inevitável e universal porquanto sempre negativas Esta teoria tiene al menos dos problemas Primero existen muchas probas antropológicas de que todas las sociedades no responden a la insuficiência exactamente de la misma forma Segundo reduce las explicaciones de fenómenos culturales como las percepciones de la diferencia física sensorial e intelectual al nivel de procesos de pensamiento con lo que desatende las consideraciones económicas y sociales mioloantroppmd 10022010 1441 147 148 Desde la era de Neanderthal en adelante al menos los arqueólogos han documentado la aparición regular de individuos que en actualidad serían considerados discapacitados existen pruebas sustanciales en América del Norte Europa Egipto China y Perú que abarcan miles de años de historia y que demuestran que la incidencia de la insuficiencia era algo común entre nuestros antepasados existen muchos ejemplos de comunidades en donde a supervivencia económica es extremamente inestable y a pesar de ello las personas con insuficiencias siguen siendo miembros valorados de la comunidad Dos ejemplos son los dalegura una tribu de aborígenes australianos y los palute una tribu de indígenas americanos En ambas sociedades el infanticidio estaba prohibido se consideraba la edad como signo de autoridade y de respecto y los individuos con insuficiencias no eran abandonados Barnes 1998 p 6566 A discussão sobre os modelos médico e social da deficiência22 muito se assemelha aos debates potencialmente presentes na Antropologia sobre os modelos racionais de saúde e doença23 uma vez que a deficiência muitas vezes é confundida com doença conforme sugere Pereira 2006 ao se referir à forma como a Sociologia tem estudado a questão da deficiência24 A tendência da Sociologia tem sido de facto em centrar se muito mais na questão do corpo e da doença o que constitui outro motivo para uma certa ala dos estudos mioloantroppmd 10022010 1441 148 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 149 da deficiência particularmente a que é influenciada pelo modelo social se distanciar desta perspectiva pois não considera que seja produtivo a associação da doença com a deficiência e o enfoque na experienciação da incapacidade Pereira 2006 p 22 Essa mesma autora ao apoiarse nas argumentações de Wendell 1996 sobre o caso das pessoas com doenças crônicas considera pertinente o argumento da associação da deficiência à doença mas também alerta que os estudos sobre deficiência deixam de fora as doenças crônicas que também podem gerar deficiências Para eles25 esta associação é perigosa pois toda a mudança de perspectiva que os estudos sobre a deficiência têm vindo a propor passa exactamente pela viragem do olhar em relação à Deficiência da tragédia pessoal e da pena e vitimização trazida pela modernidade para uma perspectiva outra Por outro lado sempre foi objectivo dos estudos sobre a deficiência e do modelo social em particular questionar e colocar em causa a associação que o senso comum e a biomedicina fazem da Deficiência com doença Na realidade isto é importante pois nem todas as pessoas que têm incapacidades são doentes ou necessitam de cuidados médicos pelo contrário as pessoas podem ter uma incapacidade específica serem invisuais não terem um membro mas podem ser perfeitamente saudáveis Outras no entanto podem ter doenças que causaram a incapacidade como é o caso das doenças mioloantroppmd 10022010 1441 149 150 crónicas e outras ainda podem ter conseqüências graves de saúde devido à sua incapacidade embora esta não tenha sido causada por uma doença Todas estas cargas negativas da doença a possível associação ao modelo médico e a resistência dos activistas e dos estudos sobre a deficiência não tornam fácil a discussão da doença crónica dentro da questão da Deficiência A verdade no entanto é que ela é pertinente Wendell coloca na outra categoria as pessoas com doenças crónicas Esta divisão é na minha opinião útil para esta discussão pois permite desmistificar vários aspectos a doença PODE e é em alguns casos incapacitante no entanto como já foi referido nem todas as incapacidades estão relacionadas com a doença ou são causadas por ela Pereira 2006 p 3436 Por outro lado as noções de doença e de deficiência assim como os modos de se lidar com elas mudam não só de acordo com os tempos e as culturas mas também de acordo com os saberes que se propõem a estudálas Berger 1999 p 19 Assim na perspectiva antropológica a manifestação de deficiências e doenças deve ser interpretada no contexto sociocultural Um debate que corrobora com a ideia dos processos de patologização da deficiência se refere ao uso em diferentes épocas e culturas de diversas terminologias para se referir às pessoas com deficiência Sassaki 200326 mostrando como os discursos e práticas sociais atribuem significados ao conceito de deficiência O discurso sobre a deficiência é pois um mioloantroppmd 10022010 1441 150 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 151 discurso sobre a pessoa porquanto o uso de distintos termos para um mesmo segmento também reflete toda uma discussão teórica sobre as noções de pessoa enquanto categorias de pensamento nativas explícitas ou implícitas enquanto portanto construções culturalmente variáveis Seeger DaMatta e Viveiros de Castro apud Goldman 1999 p 24 e mesmo sobre as questões em torno do conceito de experiência de saúdedoença Rodrigues Caroso 1998 Caroso Rodrigues AlmeidaFilho 2004 Alves Rabelo 1999 Langdon 2001 Duarte 2003 Outro exemplo dessa abordagem entre deficiência e doença parte do entendimento de que é possível se fazer articulações entre a experiência da deficiência com a questão denominada pelo sistema biopsicomédico de saúde mental27 Duarte 1994 isso porque ambas primeiro estiveram sob o domínio do paradigma biomédico historicamente ligado ao surgimento de uma concepção de normalização do corpo proposta esta que Foucault 2001b chamou de biopolítica que transforma o saberpoder em um agente de transformação da vida humana por meio da administração e controle de corpos Creio que é fazendo a história das relações entre o corpo e os mecanismos de poder que o investem que podemos chegar a compreender como e por que nessa época esses novos fenômenos da possessão apareceram tomando o lugar dos fenômenos um pouco anteriores da feitiçaria A possessão faz parte em seu aparecimento em seu desenvolvimento e nos mecanismos que a suportam da história política do corpo Foucault 2001b p 271 mioloantroppmd 10022010 1441 151 152 Em relação à presença de uma deficiência conforme apontado por Vash 1988 as reações emocionais em relação à deficiência são diversificadas e variam de pessoa para pessoa Para algumas a manifestação de uma deficiência pode ser potencialmente fragilizadora à sua saúde mental28 uma vez que a experiência do corpo deficiente e muitas vezes rejeitado pode chegar a privar a pessoa de usufruir de muitas atividades dependendo da severidade da sua deficiência e portanto pode contribuir decisiva e subjetivamente para o processo de terapeutização29 da pessoa frente à sua deficiência em diferentes etapas da vida Por isso estou particularmente interessada nos processos de negociação do sujeito com os limites corporais que experimenta em função de viver com uma deficiência A noção de limite descrita por Sontag 1984 como uma cidadania mais onerosa é particularmente útil para se pensar esse processo de retransformação da identidade devido à presença ou manifestação de uma deficiência Neste sentido perguntei à Paula se a falta de próteses influenciaria no aspecto psicológico das pessoas que dela necessitam Com certeza É o seu meio de locomoção então imagina uma pessoa que fica totalmente digamos voltada só para aquele mundo da família e também sempre visando só a questão da deficiência porque se a pessoa não tem condição se ela não tem uma prótese ela não sai de dentro de casa ela não tem condição de caminhar e isso gera uma série de dificuldades seja em qualquer área da vida educação trabalho a pessoa quer voltar a mioloantroppmd 10022010 1441 152 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 153 uma vida ativa geralmente ela o objetivo é esse Então a questão digamos do acesso é importantíssimo tanto não só ao equipamento mas como também as barreiras arquitetônicas que é por isso que a gente briga tanto com essa questão Paula Todavia as pessoas não são apenas receptoras passivas dos valores culturais Ocorre uma negociação onde há um poder opressivo normativo de controle social e um contrapoder que são as resistências a esse poder Eis o que afirma Foucault 1982 Mas a partir do momento em que o poder produziu este efeito como consequência direta de suas conquistas emerge inevitavelmente a reivindicação de seu próprio corpo contra o poder E assim o que tornava forte o poder passa a ser aquilo por que ele é atacado Foucault 1982 p 146 No caso das pessoas com deficiência observase que as resistências a esse poder estimulam a formação de bioidentidades sociais construídas a partir de uma doença e deficiência determinada Ortega 2004 p 16 conforme expresso na fala de Sílvia ao se referir a Vinícius o Vinícius é uma pessoa que se assume muito ele usa bermuda mesmo com a prótese dele ele não tem vergonha É diferente de outras pessoas que tentam esconder Sabes que eu atendo pessoas com deficiência aqui né Às vezes as pessoas vêm pra mim e eu não consigo ver a deficiência eu sou obrigada a perguntar mioloantroppmd 10022010 1441 153 154 para a pessoa porque eu fico atendendo eu tenho que anotar tudo ali eles escondem a mão escondem a perna eles dão um jeito eu acho detá mas qual é a tua deficiência porque eu não estou vendo E muita gente que trabalha e esconde mesmo para não mostrar botam a mão para dentro da blusa quando não tem o braço Que eles se assumam enquanto deficiente e não tenham vergonha disso Porque muitas pessoas a gente sabe eu trabalho aqui faço visita sei de quanto existe deficientes que ficam em casa trancados chorando porque ficou deficiente e não se assume E o Vinícius é um exemplo de tudo isso que a gente prega O Vinícius é uma pessoa que ele está sempre correndo atrás ele não se acomoda ele viaja sozinho ele vai para todos os lugares sozinho Ele é independente ele é o nosso atleta E ele está sempre aqui conosco ajudando a gente Então assim ele é uma pessoa que ele serve de exemplo para os outros por isso que ele está sempre aqui conosco porque a gente sabe que as pessoas reclamam muito da vida Ah porque depois que aconteceu isso isso isso só que ele é um exemplo para mostrar que tudo é possível na vida da gente quando a pessoa quer que tem força de vontade quando a pessoa decidiu que vai mudar que vai aceitar Porque eu digo que é difícil é eu digo que é difícil você aceitar a sua deficiência Sílvia Há uma série de questões que essa fala levanta que estão relacionadas às discussões sobre a forma como pessoa e deficiência são articuladas no discurso dos sujeitos vergonha visibilidade independência autonomia capacidade de ação entre outras mioloantroppmd 10022010 1441 154 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 155 Vinícius adquiriu a deficiência física aos 18 anos vítima de um choque elétrico de alta tensão que lhe custou a amputação das duas pernas Ficou internado no hospital por cerca de 2 meses sendo que 1 mês e 12 dias esteve em coma Perguntei lhe como se sentiu quando recebeu a primeira notícia de sua nova condição corporal A primeira foi que eu fiquei em coma na verdade A primeira foi meio constrangedora quando eu deixei de correr risco de vida 72 horas eles me deram de vida depois que eu me acidentei Vinícius A resposta de Vinícius foi bastante direta e curta O importante foi sobreviver ao acidente quiçá também à deficiência Sempre que eu lhe insistia sobre a primeira reação perante a amputação de seu corpo percebi em seus gestos que talvez não fosse de seu interesse tocar no assunto A experiência do corpo deficiente nesse caso parece se deslocar para a esfera do privado As narrativas sobre a experiência de viver em um corpo lesado ou doente reservavamse à vida privada pois eram indícios contrários à negociação pública de que a deficiência estava na sociedade e não no indivíduo Reconhecer que o corpo lesado impunha dor ou sofrimento era abrir uma porta perigosa para a essencialização da deficiência um receio que não foi atenuado nem mesmo pelo fato de os primeiros teóricos do modelo social da deficiência experimentarem a deficiência Ser deficiente era antes o passaporte de mioloantroppmd 10022010 1441 155 156 entrada na comunidade de teóricos do modelo social um argumento de autoridade que uma estratégia de considerar o privado também político como viam as feministas Diniz 2007 p 64 Já o relato de Rita se aproxima da dor e do sofrimento logo que percebeu a gravidade da lesão de seu corpo Bom a primeira impressão meu Deus Bom eu fiquei quase seis meses no hospital depois do meu acidente de início eu não tava entendendo o que estava acontecendo eu demorei dois meses não eu fiquei três meses no hospital no primeiro mês eu tinha muita visita muita visita eu não consegui me dar conta que não consegui mexer a perna Aí de repente eu comecei nesse dia eu expulsei todo mundo do quarto tinha muita gente não parava de entrar gente eu não consegui ficar sozinha comigo mesmo ai teve um momento que eu falei assim saí todo mundo expulsei todo mundo Eu chorei quase uma hora chorando direto aí depois disso o meu médico foi a única pessoa que ele entrou no meu quarto a gente ficou mais de uma hora conversando e me contando tudo o que aconteceu comigo daí que caiu a ficha né Aí a primeira impressão foi assim aí que eu me dei conta Rita Aqui é possível se falar em ruptura em relação a um momento anterior a narrativa de alguma forma enuncia sobre o momento em que ela percebe a sua nova condição a partir da autopercepção em relação ao corpo e à impossibilidade de mexer a perna mioloantroppmd 10022010 1441 156 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 157 Em relação à Laura as lembranças são esparsas como ela mesma define em função de ter adquirido a deficiência em tenra idade aos dois anos Bom no meu caso como foi uma coisa muito remota muito precoce na minha história de vida eu não tenho lembrança nítida só que fatos que cercaram a época em que eu tive a pólio só que são lembranças muito esparsas Olha mesmo nessa idade eu me lembro do dia que eu comecei a sentir sintomas da pólio e lembro também de fato mais recente por exemplo quando eu comecei a fazer tratamento de reabilitação Quando fui pra São Paulo fazer um programa cirúrgico isso eu tinha três anos Eu me lembro nitidamente dessa parte Era muito impactante porque têm pessoas que não se lembram nada da infância são muitos fatos assim que eu guardo Laura Para Laura essa ruptura não aparece em seu relato talvez se o entrevistado tivesse sido um parente próximo essa percepção fosse outra A forma de narrar a deficiência sua aceitação ou negação depende de quando e como aconteceu a deficiência Nas palavras de Berger 1999 São profundas as diferenças na percepção de si e da deficiência no que diz respeito à deficiência ser congênita ou adquirida só posteriormente No caso de pessoas que já nascem com algum tipo de deficiência ou a adquirem enquanto ainda são crianças toda a experiência do mundo e de si mesmo terá a deficiência como um referencial a mais o que não acontece se a pessoa cresce mioloantroppmd 10022010 1441 157 158 e se relaciona com um mundo segundo estratégias formadas desde a tenra idade e depois tem que reelaborar sua percepção de si e do mundo por ocasião da aquisição de uma deficiência Berger 1999 p 07 Débora e Marisa me relataram sobre o processo de aceitação da deficiência seus aspectos positivos e negativos Ah eu assim quando era criança Não tem para mim não foi muito ruim porque a criança não tem muita noção de perda para mim eu acho que eu não sofri não eu acho que não Eu não lembro assim de sofrimento nada Quem sofre mais é quando perde em adulto adolescente adulto mas criança não tem muita noção quando era criança eu não tinha aquela noção se enxergava pouco se não enxergava depois que eu fiquei cega no começo é claro foi meio difícil mas depois isso ali passou e agora assim eu como é que eu vou dizer pra ti eu encaro de maneira normal eu sei que eu não enxergo mas eu consigo fazer bastante coisa então não é que eu aceite eu convivo com ela Sei conviver bem Tem que conviver né ficar parada não dá como é que eu vou te falar Não é assim um peso para mim ser cega e também não é assim uma coisa boa mas também não é uma coisa ruim é uma coisa assim que ficou natural até minha família todo mundo que convive comigo a nossa experiência é assim a pessoa fica sabendo da ACIC ela perdeu a visão ela vem aqui pra conhecer e às vezes ela não retorna depois de um ano dois anos ela faz outro contato e retorna porque ela teve que ter aquele tempo pra ela digerir aquilo ela não mioloantroppmd 10022010 1441 158 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 159 consegue aceitar que está sendo atendida por uma associação de cegos ela ainda está chorando a perda daí a gente faz a visita domiciliar conversa e dá um tempo pra ela não fica em cima a gente dá um tempo Débora Aqui também o fato de ter adquirido a deficiência em tenra idade determina uma forma de narrar sua experiência com a cegueira A comparação é feita com pessoas que adquiriram a deficiência já adultas identificada por elas como uma perda e que estas sim teriam dificuldades em aceitar ou incorporar essa situação Quando eu era pequena eu não sentia diferença nenhuma até porque eu não me dava conta dessa deficiência A partir do momento em que eu fui crescendo e me deparando com essa deficiência até os 12 anos de idade foi muito tranqüilo até 12 anos Quando eu entrei na adolescência e aí eu mudei de colégio de um colégio pequeno para um colégio muito grande interrompe Quando eu entrei na adolescência eu mudei de colégio na 7a série de um colégio muito pequeno para o Instituto Estadual de Educação Aí é que eu me deparei com a discriminação eu me coloquei numa concha eu tentava me esconder eu não me relacionava bem com os meus amigos na verdade eu acho que eu fugia muito deles às vezes eles até tentavam conversar comigo queriam me fazer participar das mesmas atividades que eles mas naquela época eu acho que eu me excluía em função da vergonha da deficiência mioloantroppmd 10022010 1441 159 160 mesmo pelo fato de ser diferente enfim e eu passei de 12 vamos dizer até uns 20 anos até uns 18 anos quando eu terminei o meu segundo grau muito excluída excluída por mim mesma e quando eu fiz o vestibular e eu passei para fazer faculdade foi aonde eu comecei a me relacionar um pouco melhor com as pessoas porque daí eu já era adulta embora eu ainda não falasse muito sobre a minha deficiência eu só comecei a aceitar e a me dar muito bem com essa deficiência em 96 quando eu já tinha terminado a faculdade e aí eu procurei uma oftalmologista especialista em baixa visão que foi quem me encaminhou para a ACIC aí eu entrei como aluna me identifiquei percebi que tinham outras pessoas também com a mesma deficiência e dali pra frente eu comecei a me relacionar muito bem com essa deficiência não só aqui dentro mas também lá fora Quando eu tenho que falar sobre essa deficiência quando eu tenho que fazer algum curso hoje é muito tranqüilo Olha eu acho que a deficiência ela é positiva quando eu falo em relação a amadurecimento tu és obrigada a amadurecer e a conviver com aquilo ali mas não dá para dizer que ela em si traga alguma coisa de muito positiva Eu acho que querendo ou não a deficiência é uma coisa muito negativa sim que atrapalha muito a sua vida sim e que tu tem que conviver com ela Então eu considero ela muito mais negativa muito mais negativa do que positiva Traz alguns aprendizados sim a gente até aprende pelo fato de ter essa deficiência a lidar talvez um pouco melhor com as pessoas a talvez até ser um pouco mais humana nesse sentido mas não é bom para ninguém Marisa mioloantroppmd 10022010 1441 160 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 161 Nessa longa narrativa é apenas no final que ela se refere ao tipo de deficiência visual Questões como vergonha e dificuldades de construir uma rede de sociabilidade na escola marcam esse segundo momento da experiência com a deficiência a partir da saída do espaço familiar e um contato cotidiano mais sistemático com redes sociais mais amplas Muitas vezes é nesse momento que experiências ligadas a questões de estigma e preconceito são vividas Outra questão interessante nessa fala é a apreensão da experiência da deficiência como experiência de crescimento amadurecimento apreensão que aproxima a deficiência de algumas experiências de adoecimento relatadas pela literatura específica do campo da Antropologia da Saúde30 Por outro lado essas narrativas revelam também que há uma linha tênue que separa a deficiência da doença ou seja não são experiências de mesmo teor ou sentido Percebese que em sua totalidade talvez pela tenra idade em que a deficiência se manifestou inexiste para esses sujeitos a experiência do sofrimento da perda e da tragédia enfim de uma ruptura fenomenológica associada à cegueira Martins 2005 esta evasão ao idealismo não se oferece a uma reinstauração da narrativa da tragédia pessoal longe disso Na verdade em muitas histórias de vida com que tomei contacto os sofrimentos mais directamente associados à dimensão física da cegueira estão ausentes Assim é numa primeira instância porque na vida de mioloantroppmd 10022010 1441 161 162 pessoas que nascerem cegas não existe uma experiência de perda não há um mundo empobrecido naquilo que nele se pode apreender não há um constrangimento em relação aos modos de realizar nem tão pouco sic um confronto com as coisas que se tornaram impossíveis de fazer Não há portanto a experiência de uma ruptura fenomenológica nem a submissão a uma imperativa metamorfose no modus vivendi É óbvio que as pessoas que já nasceram cegas têm uma noção do lapso que as separa de quem vê um lapso que é actualizado quotidianamente na comparação com os outros e na percepção das facilidades que a visão permite na apreensão de elementos da realidade e na execução de algumas tarefas idem ibidem p 0607 Justamente por isso que os significados atribuídos à experiência da deficiência não se assemelham à experiência de doença encontrados na literatura antropológica No entanto considero que a inexistência dessa ruptura é relacional uma vez que depende também do contexto social em que se vive e das características pessoais da pessoa Pinheiro 2004 p 70 se baseia no conceito de resiliência para explicar por que pessoas com trajetórias semelhantes diferenciamse pelo fato de algumas conseguirem superar as crises e outras não Entendo por resiliência Barlach 2005 como a capacidade do ser humano em se superar adaptarse e construir atitudes positivas a partir das adversidades da vida Mas para desenvolver atitudes resilientes a pessoa com deficiência precisa estar inserida num ambiente propício ao desenvolvimento de sua autoestima mioloantroppmd 10022010 1441 162 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 163 adquirindo a habilidade necessária para enfrentar de forma aberta e construtiva os seus conflitos existenciais de maneira que não a impeça de construir um projeto de vida a capacidade de amar trabalhar ter expectativas e projeto de vida consequentemente de dar um sentido a nossa existência humana denota ser a base onde as habilidades humanas se apóiam para serem utilizadas diante das adversidades da vida que certamente todos em menor ou maior intensidade teremos que enfrentar enquanto estivermos vivos Pinheiro 2004 p 75 Assim todas as pessoas experimentam as expectativas de um projeto de vida no sentido de uma abertura a algo além que transcende e consegue romper as barreiras da dor e do sofrimento No caso das pessoas com deficiência a resiliência demandada pelo corpo deficiente pode abrir espaço para o assujeitamento Ainda sobre a experiência da deficiência é Vinícius quem traz o relato mais surpreendente ENTREVISTADORA Se você pudesse tirar a sua deficiência você a tiraria VINÍCIUS Agora eu gosto de ser com deficiência porque eu viajo muito conheci muita coisa depois da deficiência Fiz muita viagem Na viagem muitas coisas boas aconteceram porque a minha vida também era muito ruim e não teria a cabeça que eu tenho hoje também eu fazia muita coisa errada quando eu era sem deficiência mioloantroppmd 10022010 1441 163 164 ENTREVISTADORA Você ficou mais consciente da sua responsabilidade é isso VINÍCIUS Isso dos limites né ENTREVISTADORA Você tem orgulho de ter a deficiência VINÍCIUS Orgulho não viu Tenho uma satisfação do jeito que eu sou tenho uma lesão leve Mais importante que a leve lesão isto é a falta das duas pernas é estar vivo Nesse processo de consciência de si ao negociar com seus limites corporais impostos a deficiência vai se configurando num poderoso artifício de subjetividade expressa inclusive em piadas eou apelidos relacionados à sua própria condição de deficiência Falo que economizo meus sapatos que duram muito porque não ando Quando faço depilação agradeço por não sentir aquela dor insuportável A cadeira de rodas faz parte do meu corpo e quando ela às vezes fica um pouco afastada fico desesperada Rita É uma catarse gostosa e sempre rimos muito de nossas próprias piadas Por exemplo dois amigos nossos paraplégicos na época jogadores de basquete em um torneio pelo nordeste ouviram de pessoas que estavam próximas a eles mas um é a mesma carinha e focinho do outro Como se a cadeira de ambos os igualassem no físico E por aí vai temos um anedotário sobre isto Minha cadeira de rodas é algo que já me pertence e faz parte de meu espaço interno e externo Tive dificuldades em me sentar definitivamente na cadeira mioloantroppmd 10022010 1441 164 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 165 Em meus sonhos eu me via sempre caminhando Foi preciso um trabalho interno para sentarme simbolicamente na cadeira Tanto que a coisa que mais temo numa viagem aérea por exemplo é que a cadeira não tenha sido embarcada no porão do avião E já aconteceu isto de fato numa de minhas viagens Cheguei a São Paulo e minha cadeira tinha ficado no Rio Foi uma sensação horrível como se eu tivesse ficado sem as pernas A cadeira é minha perna Laura As ajudas técnicas 31 são colaboradoras parceiras com as quais preciso estabelecer uma relação de companheirismo eu cuido delas de sua manutenção e elas de mim Minhas muletas se chamam Ana Paula e Fernandinha É que sempre as chamei de minhas meninas um dia um amigo perguntou se elas não tinham nomes Respondi que não e ele prontamente batizou Gostei dos nomes e deixei Sempre que perguntam quem é quem argumento que são gêmeas e por isso não sei Sabrina Essas narrativas apontam para o estatuto de quase pessoa dado às próteses a ideia das próteses como fetiches na medida em que esses objetos são cultuados corporificados e nomeados como pessoas pelos sujeitos São histórias marcadas por discursos de resistência à patologização da deficiência em que meus interlocutores ressignificam a experiência da deficiência pela incorporação desses objetos no seu corpo e pelo uso resiliente do humor ou seja encontrar o cômico nas suas próprias desgraças Elas revelam a ressignificação da mioloantroppmd 10022010 1441 165 166 deficiência a partir do momento em que os sujeitos tomam consciência de si através de um processo simbólico de auto aceitação da realidade do corpo deficiente como um outro modo de existência corporal Também usam como estratégias de subjetivação as piadas os apelidos carinhosos as próteses como extensão de seu corpo sem as quais sentiriam angústias e as práticas de ativismo político Tudo isso desencadeia num ativismo 32 denotando infinitas possibilidades de transformação e mudança pessoal Isso significa sobretudo a incorporação da deficiência como parte de sua constituição de pessoa no sentido de compreender que o corpo deficiente também tem desejos sente dores prazer e fome No meu entender é justamente esta concepção de consciência de si o que aproxima a noção de pessoa de Mauss à ideia de sujeito em Foucault O sujeito pode ser assujeitado pela experiência do corpo deficiente constituindo uma identidade política positiva que se dá pela consciência de si mesmo Nas palavras de Ortega 2004 o conceito de deficiência releva o de doença referindose à déficit a serem compensados socialmente e não a doenças a serem tratadas Rabinow 1999 Esse conceito usado oficialmente pela primeira vez na Inglaterra durante a II Guerra Mundial como uma forma de avaliação da força de trabalho disponível com o objetivo de incorporar o maior número de pessoas está na base da biopolítica cujos grupos se distinguem precisamente pelas deficiências a serem compensadas mioloantroppmd 10022010 1441 166 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 167 deficiência da mulher frente ao homem do negro frente ao branco do gay frente ao heterossexual do portador de deficiência frente ao indivíduo fisicamente normal dos idosos frente aos jovens etc A política se dissolve em políticas particulares que aspiram compensar as deficiências de um grupo biopolítico determinado cuja uma das conseqüências é o esquecimento de ideais sociais mais abrangentes Ortega 2004 p 16 Mais do que autoafirmação do sujeito esse processo de subjetivação em torno da experiência da deficiência está intimamente relacionado com o conceito de resiliência Assim as respostas de meus interlocutores evidenciam essa possibilidade de transformação social de transcendência do sujeito aos seus próprios limites corporais Tratase pois conforme prenuncia o título de um livro de Vasconcelos 2003 do poder que brota da dor e da opressão33 SOBRE O ENFOQUE DE GÊNERO E SEXUALIDADE NA DEFICIÊNCIA ALGUMAS NOTAS DE CAMPO Neste tópico eu gostaria de apontar brevemente para algumas perspectivas de investigação antropológica a partir de minhas observações de campo O impacto causado pelos Estudos Culturais Scheer 199534 e pelas teorias feministas Diniz 2003 2007 Ortega 2009 queer Sherry 2004 e pós modernas Corker Shakespeare 2002 também se refletiu nos Estudos sobre Deficiência35 especialmente em relação às discussões teóricas sobre os modelos da deficiência e à deficiência como uma condição de vulnerabilidade para a mioloantroppmd 10022010 1441 167 168 violência de gênero36 Williams 2003 Mays 2006 Trabalhos de feministas como Fine Asch 1988 Finger 1992 Ferri Gregg 1998 e Asch 2001 dentre outras merecem destaque tanto por problematizarem implícita ou explicitamente a relação entre deficiência e gênero quanto por apontarem para uma total falta de preocupação dos movimentos feministas para a questão da deficiência e dos movimentos da deficiência em relação à importância de outras categorias identitárias em especial a de gênero igualmente significativas para a formação da identidade das pessoas com deficiência No caso brasileiro grande parte das políticas públicas transversais para a promoção das igualdades mencionam apenas a raça o gênero a classe a geração e a orientação sexual sem se incluir a deficiência nos debates e cruzamentos com todas essas categorias que convivem com a experiência da opressão e da discriminação37 Essa constatação corrobora com autores como Pereira 2006 quando enfatiza que Se outras perspectivas como questões de gênero de raça de orientação sexual já se encontram mais presentes a questão da Deficiência continua ainda muito nas margens das margens Penso no entanto que problematizar e tornar mais presente a questão da Deficiência é fulcral para pensar uma sociedade mais emancipada e livre de formas de opressão e nesse sentido é de extrema relevância trazer a discussão sobre a Deficiência para o âmago da teoria sociológica Pereira 2006 p 01 mioloantroppmd 10022010 1441 168 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 169 Especialmente em relação ao enfoque de gênero e sexualidade gostaria de tecer algumas considerações quanto à sua pertinência observada durante o campo que se deu primeiro na Aflodef Cheguei lá e minutos após me apresentar na recepção e conversado com alguns associados sobre meu objetivo de pesquisa aguardei na sala de espera a Paula sentada numa das cadeiras e tentando adivinhar as conversas por leitura labial sem sucesso Só consegui captar os gestos de animosidade entre sorrisos e gargalhadas Nesse momento notei a presença de homens com deficiência física na sala Não havia nenhuma mulher nessa mesma condição com exceção da secretária que ficava na mesa de recepção Pensei que fosse mero acaso que elas não estivessem ali Depois soube pela Paula que a Aflodef tem até então cerca de dois mil e oitocentos associados mas apenas cerca de 42 pessoas frequentam assiduamente aquele espaço e geralmente só aquelas que praticam esporte exatamente homens com deficiência física em sua maioria que é aonde a gente consegue ter um convívio maior Paula Quanto às mulheres poucas praticam natação atletismo e tênis de mesa A maior parte de seus associados procuram a entidade para demandas de reabilitação e trabalho No entanto a pergunta que gerou parte da narrativa de Sílvia sobre Vinícius mostrada anteriormente quando comenta sobre a pessoa ter vergonha de sua deficiência foi baseada nesse contexto de gênero Recorrendo à literatura antropológica deparome novamente com Berger 1999 quando afirma que mioloantroppmd 10022010 1441 169 170 O envolvimento afetivo é um dos momentos da vida de um portador de deficiência em que não há como camuflar a deficiência O que se espera e se busca num relacionamento afetivo é a aceitação total da pessoa e isto significa inclusive aceitar a deficiência que a pessoa porta Ambos precisam estar inteiros na relação e o que se descobre nesta hora de nudez e de entrega total é que o corpo em seu sentido mais físico é o suporte do indivíduo constitutivo mesmo da identidade da pessoa Aceitar o outro significa aceitálo sem ressalvas considerandose a deficiência da pessoa mas também indo além dela Berger 1999 p 101 Noutros termos se é possível camuflar a deficiência em várias situações cotidianas mesmo durante as práticas esportivas o mesmo não se pode esperar das relações afetivo sexuais Em agosto de 2008 tive a oportunidade de participar durante três semanas e conjuntamente com outras 24 mulheres com deficiência de diferentes nacionalidades do 4th International Womens Institute on Leadership and Disability em Eugene EUA onde tomei conhecimento de perspectivas globais da deficiência na atualidade inclusive no campo do feminismo No dia 26 desse mês tivemos uma programação ou melhor uma reunião íntima o Womens Interest Day em que entre dezenove e vinte horas da noite todas as mulheres com deficiência de cada país poderiam se quisessem falar dos seus problemas mais íntimos relativos à deficiência Um dos relatos in loco que escutei presenciando em seguida mioloantroppmd 10022010 1441 170 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 171 uma comoção geral foi o de uma mulher com deficiência física em decorrência de poliomielite filipina e usuária de cadeira de rodas Em seu relato ela nos narrou que no momento das relações sexuais pedia para seu até então marido apagar as luzes pois não queria que ele olhasse nem tocasse nessa parte de seu corpo Relataranos sentir vergonha de uma de suas pernas mais larga que a outra A autoimagem do corpo deficiente parece representar o limite do tabu de si mesmo em que a deficiência é camuflada mesmo durante os atos sexuais o que nos remete à idéia do corpo como uma espécie de máscara que impede tais indivíduos de revelarem o seu eu verdadeiro38 Antonio 2008 p 78 O mesmo estudo antropológico de Antonio sobre a cirurgia plástica demonstrou a recorrência feminina quanto às queixas e sentimentos de vergonha em relação ao próprio corpo e devido a isso evitar expor o corpo nas relações sexuais mesmo com o marido ou namorado de anos de relacionamento idem ibidem p 77 Esse ocorrido me fez pensar que o estatuto de pessoa das pessoas com deficiência será plenamente conquistado somente quando o tema da sexualidade for contemplado nas políticas públicas39 uma vez que sua condição de pessoa comum será assim reconhecida Os temas que já estão bem discutidos nos movimentos e políticas sociais da deficiência Educação Trabalho Acessibilidade etc ainda pertencem à esfera pública São os temas da esfera privada que irão garantir a conquista desse estatuto de pessoa Neste sentido as pessoas com mioloantroppmd 10022010 1441 171 172 deficiência têm muito a aprender com os movimentos feministas e de lésbicas gays bissexuais e transgêneros LGBT em suas atuais demandas em matérias de direitos sexuais e reprodutivos que se concentram em questões do campo privado CONSIDERAÇÕES FINAIS Diniz 2007 referese na introdução de seu livro O Que É Deficiência à inspiração literária dada pela cegueira do renomado escritor argentino Jorge Luis Borges para justificar que ser cego é um modo de vida Concordo plenamente que a deficiência é um dos componentes da diversidade humana A cegueira é um modo de vida mas penso que devemos ir mais além ao considerarmos a diversidade numa mesma deficiência Torres Mazzoni Mello 2007 Em uma mesma sociedade há vários modos de ser cego ser surdo ou mesmo ser tetraplégico A experiência da deficiência não é a mesma nem foi tratada de forma negativa em todas as épocas e sociedades Barnes 1998 Assim compartilho com a proposta de Maluf 2001 de que o conceito de embodiment de Csordas 1990 ao focar nas experiências individuais e subjetivas dos sujeitos envolvidos Maluf 2001 p 97 pode trazer uma contribuição à análise antropológica do corpo e da corporeidade neste caso da deficiência para além das discussões sobre os significados da deficiência em culturas distintas A deficiência faz parte do rol dos entrelugares que fornecem terreno para a elaboração de estratégias de mioloantroppmd 10022010 1441 172 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 173 subjetivação singular ou coletiva de que decorrem novos signos de identidade e postos inovadores de colaboração e contestação Bhabha 1998 p 20 Sempre inesperada a deficiência é a demonstração de que a subjetividade nunca é aquele lugar ideal seguro e estável Justamente por isso que as pessoas com deficiência são também sujeitos desejantes40 A pessoa com deficiência tenha a deficiência que tenha sempre é diferente da deficiência em si e essa diferença se joga em sua subjetividade A Antropologia tem muito a ganhar ao se dedicar ao tema da deficiência uma vez que os dispositivos e as significações sociais tem grande potencial de fazer esse campo científico avançar em seus temas mais fundamentais Ou seja estudar a deficiência antropologicamente é tão importante para a Antropologia quanto para os Estudos sobre Deficiência A contribuição da Antropologia aos Estudos sobre Deficiência está presente e tem um valor inestimável Enfoques antropológicos baseados em conceitos como cultura estigma desvio e liminaridade foram apropriados pelos Estudos sobre Deficiência para explicar o fenômeno da deficiência e são várias as disciplinas da Antropologia que se sobrepõem aos Estudos sobre Deficiência ainda que o uso do método etnográfico seja relativamente recente nestes Kasnitz Shuttleworth 2001 ReidCunningham 2009 Conforme sustenta Gardou 2006 a experiência do corpo deficiente já vinha revelando dimensões novas para a abordagem antropológica do corpo e da mioloantroppmd 10022010 1441 173 174 corporalidade A corporificação da experiência da deficiência ao subverter o estigma do corpo deficiente releva a condição de pessoa ou seja a deficiência é também uma forma de se constituir como um determinado tipo de sujeito nesse caso é o corpo ou mais especificamente uma determinada corporalidade que constrói uma determinada pessoa Maluf 2001 p 96 NOTAS 1 Este trabalho faz parte de uma pesquisa mais abrangente denominada Gênero Subjetividade e Saúde Mental políticas públicas ativismo e experiências sociais em torno de gênero e saúde mental Maluf 2006 coordenada pela Profª Drª Sônia Weidner Maluf envolvendo uma equipe maior de pesquisadores 2 Concebo deficiência como uma condição através da qual se experimenta situações extremas de perdas ou interrupções de determinadas atividades da vida cotidiana em decorrência de restrições físicas sensoriais cognitivas e sociais Esta definição está de acordo com a letra e do preâmbulo da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência quando afirma que a deficiência é um conceito em evolução e que a deficiência resulta da interação entre pessoas com deficiência e as barreiras devidas às atitudes e ao ambiente que impedem a plena e efetiva participação dessas pessoas na sociedade em igualdade de oportunidades com as demais pessoas BRASIL 2008 p 21 Do ponto de vista antropológico deficiência englobaria os diferentes sentidos ou modos de defini la percebêla tratála etc o que nos remonta às categorias nativas em torno da experiência da deficiência mioloantroppmd 10022010 1441 174 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 175 3 Ressalto que embora se priorize as narrativas de pessoas com deficiência destacarei algumas falas de duas profissionais atuantes na área da deficiência que convivem com um dos sujeitos da pesquisa Uma é do setor de recursos humanos Paula e outra é assistente social Sílvia A fim de preservar a identidade dos informantes esclareço que todos os nomes são fictícios 4 Tratase de uma categoria nativa que tem origem no Movimento de Vida Independente MVI Porém aqui tomo vida independente no sentido de que os sujeitos são capazes de exercer todos os atos da vida civil 5 Significa que a deficiência é de nascença 6 O Movimento de Vida Independente MVI começou oficialmente em 1972 com a fundação do Centro de Vida Independente de Berkeley CVIBerkeley o primeiro CVI dos Estados Unidos e do mundo Há mais de 600 Centros de Vida Independente CVIs espalhados por diversos lugares do mundo No Brasil em 1988 foi fundado o Centro de Vida Independente do Rio de Janeiro CVI Rio o primeiro do país e da América Latina Atualmente há 20 CVIs espalhados por todos os cantos do país Para os ativistas desse movimento vida independente significa que as pessoas com deficiência têm o direito de fazerem suas próprias escolhas sem as interferências institucionais e familiares O conceito de vida independente parte do princípio de que apenas as pessoas com deficiência sabem o que é melhor para si mesmas Entendese que a pessoa com deficiência dependendo do tipo e grau ou severidade da deficiência pode não realizar sozinha determinadas atividades dependendo por isso mesmo de terceiros Mas a elas devese ser creditado o poder de tomar decisões sobre essas atividades mioloantroppmd 10022010 1441 175 176 respeitando suas opiniões e desejos Uma pessoa com tetraplegia severa pode não ser por exemplo capaz de se vestir sozinha por restrição de autonomia mas ela tem independência para decidir e escolher que tipo de roupa quer vestir A autonomia controle sobre o próprio corpo e sobre o ambiente mais próximo e a independência faculdade de decidir por si mesma são os dois lados da mesma moeda fundamentalmente importantes na vida das pessoas com deficiência 7 É importante diferenciar ONGs de pessoas com deficiência das ONGs para pessoas com deficiência No primeiro caso as ONGs são geridas pelas próprias pessoas com deficiência por exemplo os CVIs no segundo pelos profissionais da deficiência eou os pais e mães de pessoas com deficiência Um exemplo de ONGs para pessoas com deficiência são as conhecidas Apaes Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais 8 Por exemplo encaminhamento para o mercado de trabalho prática de esportes aulas de informática e de locomoção e mobilidade para pessoas com deficiência visual este último parte essencial do serviço de reabilitação oferecido pela ACIC A ACIC inclusive oferece às pessoas de outros municípios do estado a possibilidade de morarem temporariamente em sua sede visando à sua readaptação Neste caso a ACIC também funciona como uma espécie de colégiointernato 9 Em termos de infraestrutura de espaço e de atendimento ao público a ACIC está melhor equipada do que a Aflodef a primeira oferece serviços emergenciais mais completos justamente por contar com uma ampla equipe de profissionais da saúde tais como psicólogos e oftalmologistas contrariamente à Aflodef que não mioloantroppmd 10022010 1441 176 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 177 possui em seu quadro de funcionários profissionais psicólogos e fisioterapeutas muito embora se reconheça essa necessidade A Aflodef prioriza as práticas esportivas entre seus associados mas também oferece serviços de atendimento sócioemergencial por exemplo doações de materiais ortopédicos muletas cadeiras de rodas e próteses a quem não tem condições financeiras de adquiri las 10 Ambas ocupam cargos eou posições de destaque em conselhos de direitos das pessoas com deficiência eou em eventos que tenham alguma relação com a área da deficiência 11 Laura faz parte de um CVI enquanto Rita já foi 12 Ver a crítica de Oliver 1986 à teoria da tragédia pessoal 13 Em Dumont 1985 encontramos uma reflexão a partir do paradigma maussiano de pessoa sobre o indivíduo e o individualismo moderno articulada com a concepção iluminista de sujeito universal Para Mauss a forma moderna da pessoa é o indivíduo 14 Xavier Mauricio Esqueça o Olhar Piedoso Jornal Diário Catarinense Florianópolis 21 set 2004 p 05 15 Tradução de Orgulho Surdo 16 Segundo Goldman 1999 p 35 as formas de subjetivação estudadas por Foucault poderiam ser chamadas a grosso modo de noção de pessoa em referência a Mauss 2003 17 A eugenia é a seleção das pessoas que supostamente teriam as melhores características físicas e mentais e a eliminação das doentes e as consideradas fracas Na Nova Genética ou Novagenia denunciada por Black 2003 o discurso eugênico tem assumido outras configurações através de práticas de discriminação genética mioloantroppmd 10022010 1442 177 178 em que a liberdade de ser e ter da pessoa é violada em nome do confisco e uso indevido de seu material genético Por exemplo nos EUA muitas pessoas por terem predisposição genética a determinadas doenças têm ou tiveram seu direito ao seguro de vida negado pelas seguradoras 18 O Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência Conade com sede em Brasília chegou a divulgar em 15 de dezembro de 2005 uma moção de repúdio Moção nº 05 2005 contra o parecer de Denise Frossard Tal moção pode ser acessada no seguinte endereço eletrônico httpwwwmjgovbr conadearquivosdocsmocoes20055doc 19 Moreira Gabriela Vereador apresenta projeto para beneficiar família saudável que tenha filho sadio O Globo On Line Rio de Janeiro 01 abr 2007 Disponível em httpogloboglobocom riomat20070401295175547asp Acesso em 26 jul 2009 20 Ver repercussão do artigo do governador no site do Jornal da Ciência mantido pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência SBPC httpwwwjornaldacienciaorgbr Detalhejspid31160 21 Após a violenta reação de diversos setores da sociedade brasileira principalmente das pessoas com deficiência e suas organizações representativas Denise Frossard apresentou um pedido público de desculpas disponível em httpwwwandreibastosnombr artigos17htm 22 Ambos os modelos são conhecidos como os modelos clássicos da deficiência levando em consideração por exemplo que Pfeiffer 2002 distingue dez modelos ou paradigmas da deficiência Um é o modelo do déficit que tem três variantes o modelo médico o mioloantroppmd 10022010 1442 178 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 179 modelo da reabilitação e o modelo da educação especial frente ao qual distingue outros nove Em linhas gerais no modelo médico o foco se centraliza na deficiência da pessoa objetivandose a cura ou medicalização do corpo deficiente No modelo social a deficiência é vista como o resultado das interações pessoais ambientais e sociais da pessoa com seu entorno Por isso para o modelo social da deficiência as experiências de opressão vivenciadas pelas pessoas com deficiência não estão na lesão corporal mas na estrutura social incapaz de responder à diversidade Entretanto é importante ressaltar que o que se questiona no modelo social é a idéia de que a deficiência é somente uma questão médica Ou melhor em um ponto os modelos social e médico coincidiam ambos concordavam que a lesão era um tema da alçada dos cuidados médicos Diniz 2007 p 23 23 Há uma grande produção antropológica sobre doença e perturbação saúde mental cultura psicanalítica e doença dos nervos onde autores como Duarte 1986 1994 e Langdon 2005 têm questionado sobre o caráter biologizante desses modelos 24 Refirome especialmente à Sociologia americana e britânica e isso somente quando trata da deficiência como objeto de estudo uma vez que em muitas partes do mundo a questão da deficiência está ainda bastante ausente da teoria sociológica Pereira 2006 p 02 25 Ou seja para os teóricos dos estudos sobre deficiência 26 Sassaki em mensagem endereçada ao meu email em abril de 2009 escreve A expressão pessoa com diversidade funcional como substituto do termo pessoa com deficiência traz no seu bojo um eufemismo na mesma linha de expressões que já foram mioloantroppmd 10022010 1442 179 180 superadas tais como pessoa com capacidades especiais pessoa com eficiências diferentes pessoa com habilidades diferenciadas pessoa especial pessoa dEficiente portador de necessidades especiais portador de direitos especiais pessoa mentalmente diferente e pessoa verticalmente prejudicada Todas as propostas eufemísticas constituem uma tentativa de se empregar expressões que substituam as palavras tidas como grosseiras ou desagradáveis Historicamente a primeira proposta eufemística foi feita nos EUA na década de 80 com a expressão pessoa fisicamente desafiada physically challenged person que logo desapareceu quando por coerência deveriam surgir os termos pessoa visualmente desafiada pessoa auditivamente desafiada pessoa mentalmente desafiada na época ainda não se utilizava o termo deficiência intelectual e pessoa multiplamente desafiada além do termo genérico pessoas desafiadas para designar pessoas com qualquer um daqueles advérbios que acabou ficando sem sentido Fonte Berkeley Center for Independent Living How do you say Guidelines on appropriate ways to describe people with disabilities BerkeleyCA EUA 1989 No Brasil por exemplo o termo pessoa verticalmente prejudicada já constava em 2005 na cartilha intitulada Politicamente Correto com um enunciado um pouco diferente pessoa verticalmente comprometida Esse termo foi recomendado em substituição às palavras anão e nanismo A cartilha foi organizada pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos SEDH da Presidência da República A distribuição dos 5000 exemplares começou em 30405 mas já nos primeiros dias a cartilha causou tanta polêmica que Nilmário Miranda então ministrochefe da SEDH mandou abortar a mioloantroppmd 10022010 1442 180 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 181 distribuição e recolher os exemplares que já tinham sido distribuídos Fonte Folha de SPaulo 1505 6505 e 15505 27 Sobre a noção de saúde mental Maluf 2006 argumenta que não se trata de uma categoria da análise antropológica e dos seus limites como categoria descritiva ou que dê conta das diferentes representações modelos físicomorais e experiências sociais em torno da questão ver Duarte 1994 28 Ver também Olkin 1999 29 Recorro novamente a Vash 1988 para quem a deficiência é uma experiência de crescimento de transcendência e tal abordagem remonta à noção de acolhida da deficiência de Vash em que temse a expectativa de que muitas pessoas com deficiência podem com o passar do tempo acolher a deficiência e ao acolhêla as energias do processo de reabilitação podem ser dirigidas para treinar a pessoa da forma mais eficiente de lidar com os percalços do viver com uma deficiência A energia pode ser liberada da função de compensar a deficiência da tentativa de ser normal do ódio pela deficiência ou da negação dela e ser encaminhada para aspectos mais alegres da vida como por exemplo o experienciar o aprender o produzir o amar e o conhecer transcendendo assim os efeitos da deficiência 30 Por exemplo ver a coletânea de artigos organizados por Duarte Leal 1998 31 Ajudas técnicas são qualquer produto instrumento equipamento ou sistema técnico utilizado por uma pessoa com limitações oriundas de deficiência fabricado especificamente ou disponível no mercado criado para prevenir compensar mitigar ou neutralizar a deficiência incapacidade ou minusvalia dessa mioloantroppmd 10022010 1442 181 182 pessoa Torres et al 2002 No âmbito da legislação federal o tema das ajudas técnicas é ampliado recebendo tratamento mais aprofundado pelo Decreto Federal nº 529604 Ademais no Brasil o termo ajudas técnicas costuma aparecer como sinônimo de tecnologia assistiva no sentido de recursos tecnológicos que promovam a funcionalidade de pessoas com deficiência 32 Em Santos 2005 há uma diferença entre o ativismo político geral e o ativismo Segundo esse autor o ativismo é uma categoria nativa que denota a a possibilidade de ressignificação da vida idem ibidem p 52 33 Refirome a empowerment por vezes traduzido como empoderamento Em minha opinião o conceito de empoderamento é o cerne da filosofia de vida independente Cf Charlton 1998 34 Em Mello 2006 podese perceber os desdobramentos causados pelo impacto dos Estudos Culturais no movimento do Orgulho Surdo marcado pelo campo dos Estudos Surdos cujo referencial teórico principal é Stuart Hall No campo dos Estudos sobre Deficiência podemos perceber essa influência no trabalho de Scheer 1995 já citado a partir da proposta de uma cultura da deficiência Disability Culture 35 Os Estudos sobre Deficiência são um sólido campo acadêmico interdisciplinar que pretende refletir em suas mais variadas vertentes sobre o fenômeno da deficiência a partir do uso de metodologias e ferramentas analíticas próprias das Ciências Sociais Vários são os programas de graduação eou pós graduação que já esboçam esta proposta em muitos países mas mioloantroppmd 10022010 1442 182 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 183 ainda não têm significativa presença nas Ciências Sociais brasileiras permanecendo restrita a outras áreas do conhecimento como a Psicologia a Educação e a Medicina A principal referência neste campo é o Centro de Estudos sobre Deficiência da Universidade de Leeds na Inglaterra http wwwleedsacukdisabilitystudies 36 A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência faz menção ao gênero sete vezes e ainda inclui em seu texto um artigo específico sobre as mulheres com deficiência em razão de sua dupla condição de vulnerabilidade por gênero e deficiência 37 Diniz Squinca e Medeiros 2007 p 04 afirmam que O Estado brasileiro incorporou a transversalidade de gênero e raça em grande parte das políticas sociais mas é ainda rara à referência à deficiência 38 A meu ver a expressão eu verdadeiro tem uma conotação essencialista o que não diminui o interesse pela discussão do autor sobre o corpo como máscara 39 Finger 1992 p 09 fez o mesmo questionamento muitas vezes a sexualidade é a causa de nossa opressão mais grave também muitas vezes é a causa de nossa mais profunda dor Resultanos mais fácil falar e formular estratégias para a mudança sobre a discriminação no trabalho na educação na moradia que falar sobre nossa exclusão da sexualidade e da reprodução 40 Ou sujeitos de desejo Foucault 1984 mioloantroppmd 10022010 1442 183 184 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVES Paulo C RABELO Miriam C Significação e Metáforas na Experiência da Enfermidade In ALVES Paulo C RABELO Miriam C Orgs Experiência de Doença e Narrativa Rio de Janeiro Ed Fiocruz 1999 AMARAL Lígia A Conhecendo a Deficiência em Companhia de Hércules São Paulo Robe Editorial 1995 ANTONIO Andrea T Corpo e Estética um 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184 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 185 BIANCHETTI Lucídio Os Trabalhos e os Dias dos Deuses e dos Homens a mitologia como fonte para refletir sobre normalidade e deficiência Revista Brasileira de Educação Especial v 7 nº 1 2001 p 6175 BLACK Edwin A Guerra Contra os Fracos a eugenia e a campanha norteamericana para criar uma raça superior São Paulo A Girafa 2003 BOOTH Tim El Sonido de las Voces Acalladas cuestiones acerca del uso de los métodos narrativos con personas con dificultades de aprendizaje In BARTON Len Comp Discapacidad y Sociedad Madrid Ediciones Morata La Coruña Fundación Paideia 1998 BRASIL Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência Tradução Oficial Brasil Brasília Secretaria Especial de Direitos Humanos SEDH Coordenadoria Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência Corde 2008 CARDOSO DE OLIVEIRA Roberto O Trabalho do Antropólogo Brasília 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Saúde criou a associação Vida Verde que mantém um horto medicinal uma oficina de fitoterapia e uma farmácia de produtos fitoterápicos O Saco Grande II fica entre o centro da cidade e as praias do norte da ilha frequentadas por turistas de diversas regiões do Brasil e do exterior Além da população de origem local este bairro tem recebido nos últimos anos o afluxo de populações migrantes vindas tanto do interior do estado de Santa Catarina quanto de bairros submetidos a processos de reurbanização por parte do poder público A Pastoral da Saúde se insere em um grupo de entidades ligadas à igreja católica que desenvolvem diversas modalidades de ação social1 chamadas Pastorais Sociais Estas entidades são organizadas e coordenadas pela igreja em seus diversos ITINERÁRIOS TERAPÊUTICOS E MODELOS DE SOFRIMENTO ENTRE VOLUNTÁRIAS DA PASTORAL DA SAÚDE DO BAIRRO SACO GRANDE II FLORIANÓPOLISSC Milena Argenta mioloantroppmd 10022010 1442 193 194 níveis mundial continental nacional regional estadual e municipal Além de produzirem e venderem produtos fitoterápicos como tinturas cremes sabonetes xaropes xampus etc as voluntárias da Associaçao Vida Verde recebem pessoas que sofrem de perturbações diversas e prezam pelo que denominam um atendimento mais humanizado em relação à prática biomédica o que na concepção delas significa dar atenção ao doente e acima de tudo ouvir suas queixas ainda que não estejam diretamente relacionadas à doença em questão O ouvir dedicado e paciente encontrado na Pastoral estendese também às próprias voluntárias que estabelecem entre si uma rede de solidariedade e apoio mútuo Neste sentido o trabalho na pastoral é concebido pelas voluntárias como uma atividade de cunho terapêutico que contribui no tratamento de doenças de ordem emocional psíquica ou moral2 Muitas das voluntárias que atuam na associação Vida Verde inseriramse no grupo após terem sido diagnosticadas com depressão dentro do sistema médico e receberem recomendações médicas para se envolverem com alguma atividade ocupacional Os dados analisados neste trabalho integram as narrativas de quatro mulheres que trabalhavam como voluntárias da Pastoral da Saúde do bairro Saco Grande II de Fevereiro a abril de 20083 Dentre as quatro entrevistadas três apresentam idades entre 50 e 65 anos e uma delas é mais jovem com 30 mioloantroppmd 10022010 1442 194 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 195 anos Esta é solteira mora com a mae duas irmãs e um sobrinho Trabalhava como ajudante de cozinha mas parou de trabalhar devido à doença As demais sao trabalhadoras do lar e uma delas também interrompeu seu trabalho como empregada doméstica após a doença Apenas uma das entrevistadas é casada e as duas outras sao divorciadas Uma entre as quatro terminou o ensino médio enquanto as outras possuem ensino fundamental incompleto Todas as entrevistadas frequentam a igreja católica e duas entre elas frequentam também o espiritismo e a umbanda Cada uma das mulheres que participaram da pesquisa apresentou uma trajetória terapêutica particular vinculada às suas próprias histórias de vida o que procurei considerar e valorizar em minhas reflexões Entretanto este trabalho se concentra nas recorrências presentes na fala das quatro voluntárias em questão e procura analisar a dimensão social e compartilhada do sofrimento A análise que pretendo desenvolver neste trabalho baseia se em algumas abordagens recentes de antropólogos brasileiros em relação à saúde e à chamada saúde mental as quais tentarei expor brevemente para em seguida partir para a análise Pesquisas antropológicas recentes no campo da saúde têm valorizado a abordagem de processos narrativos pelos quais os indivíduos reconstituem experiências de aflição e têm chamado a atenção para o fato de que a doença não pode ser tratada como uma associação mecânica entre signos e sintomas mioloantroppmd 10022010 1442 195 196 No contexto desta pesquisa as narrativas assumem uma importância primordial pois foi através delas que foi possível se ter acesso à forma como as voluntárias conseguiram organizar os eventos vividos e dar sentido à própria experiência De acordo com Rabelo e Alves 1999 p 201 as narrativas refletem uma experiência individual mas ao mesmo tempo revelam as imagens e metáforas de um campo intersubjetivo através do qual os indivíduos dão forma e comunicam suas experiências singulares Ao narrar um problema caracterizandoo como doença os indivíduos não estão apenas apontando fatos consumados eles estão tecendo em torno de si os fios de uma realidade em que buscam habilmente envolver os outros Rabelo 1999 p 85 Os relatos das minhas entrevistadas revelaram um entrelaçamento entre a experiência do sofrimento e uma interpretação acerca de suas causas Ao relatarem o modo como reconheceram suas sensações de malestar como possíveis sinais de que algo não vai bem elas sempre faziam referência a acontecimentos do passado ou a atributos reconhecidos por elas como característicos de sua personalidade a separação do marido em um caso e uma personalidade introspectiva em outro por exemplo Definir e explicar uma doença de acordo com Souza 1998 envolve interpretação e distanciamento o que significa que os sujeitos ao voltaremse para a própria experiência com o intuito de explicar o sofrimento afastamse de seu fluxo de mioloantroppmd 10022010 1442 196 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 197 vivências e estas quando em retrospectiva aparecem dotadas de sentido Desse modo o problema diante do qual o sujeito se encontra passa a definir o que é relevante ou não o que merece ser revisto com maior clareza e o que pode permanecer inquestionado em sua trajetória de vida Portanto o olhar que se volta para o passado é feito à luz de um projeto a cura e desse modo comandado por uma visão de futuro Souza 1998 p 151 As narrativas acerca de uma doença revelam o itinerário percorrido pelos sujeitos na tentativa de atribuir sentido à experiência e aliviar o sofrimento4 O itinerário terapêutico consiste em um conjunto de processos de busca de tratamento que se inicia com a constatação de uma enfermidade e passa por diversas etapas nas quais podem se atualizar diferentes interpretações para o sofrimento e possibilidades de cura Buchillet 1991 Contudo este itinerário não é necessariamente produto de um plano organizado e pré determinado Alves e Souza 1999 apontam que os processos de busca de tratamento e cura só constituem uma unidade quando o sujeito olha para suas próprias experiências passadas na tentativa de interpretálas com o seu conhecimento presente a partir das circunstâncias atuais Ao abordar os itinerários terapêuticos das voluntárias da Pastoral da Saúde diagnosticadas com depressão procuro apresentálas como sujeitos que compartilham com outros sujeitos envolvidos no processo de interpretação da doença mioloantroppmd 10022010 1442 197 198 uma gama de crenças e receitas práticas para lidar com o sofrimento e aliviálo Os itinerários retratam a singularidade absoluta do percurso de cada um o modo como os sujeitos interpretam e atribuem significado às suas escolhas mas ao mesmo tempo em que são únicos não falam de um indivíduo apenas mostram as dimensões sociais da experiência Maluf 2003 TRAJETÓRIAS SINGULARES UMA PESSOA COLETIVA As narrativas das entrevistadas sobre o sofrimento e a busca de cura ilustram muito bem o caráter amplo e processual da doença em constante interpretação para os sujeitos que a vivenciam Com a intervenção de outros sujeitos parentes amigos médicos e outros terapeutas de transformações ocorridas no cotidiano com o passar do tempo com a adoção e o abandono de determinados tratamentos a ocorrência de novas crises ou a percepção de melhoras a doença ganha novos significados e o doente reconstitui sua trajetória e a própria experiência de sofrimento atribuindolhes novos sentidos Nesta lógica o modo como cada uma das entrevistadas reconstitui sua experiência de sofrimento e trajetória terapêutica é fortemente influenciado pelas condições atuais em que se encontram Assim o olhar de uma pessoa que afirma ter se curado para o próprio sofrimento é diferente do de outra que já seguiu diversos tratamentos e não conseguiu se curar No primeiro caso a ênfase está na cura no fato de ter mioloantroppmd 10022010 1442 198 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 199 se livrado das coisas ruins que causavam a doença e retomado suas atividades cotidianas O tratamento o médico e o remédio nesse caso são vistos como positivos já que seu percurso é revisto a partir do fato de ter atingido seu objetivo principal a cura No segundo a entrevistada enfatiza o sofrimento as sensações que ela não consegue aliviar e sua frustração por mobilizar tantos recursos terapêuticos e não atingir os resultados esperados Sua trajetória é reconstituída a partir de um olhar orientado por essa sensação de angústia e frustração por não conseguir se curar Entretanto é possível identificar diversos elementos comuns nas narrativas Na experiência das quatro entrevistadas o sofrimento se inicia com uma crise Em alguns casos essa crise consiste em um evento dramático na trajetória de vida dessas mulheres separação adoecimento e morte da mãe por exemplo entendido por elas como causador do sofrimento Em outros a crise é vivenciada no próprio corpo surto psicótico infarto são algumas das vivências citadas e serve como principal indicador de uma situação de enfermidade Em ambas as situações a identificação de uma crise aparece como um marcador narrativo de ruptura nos termos de Maluf 1999 ela é provocada por uma ou mais situações de aflição e ao mesmo tempo reveladora dessa aflição A doença aparece nos relatos enquanto uma disrupção na biografia que divide suas vidas em antes e depois Antes elas se dedicavam a diversas atividades que foram interrompidas mioloantroppmd 10022010 1442 199 200 ou passaram a ser realizadas com menor vontade depois da doença Dentre elas destacamse as atividades domésticas como cozinhar lavar passar e organizar a casa além de sair de casa para visitar parentes e amigos fazer compras freqüentar salões de beleza etc Os principais sintomas identificados como característicos do sofrimento são tristeza vontade de se isolar indisposição para desempenhar as atividades cotidianas ausência de vontade de viver sensação de morte sensação de estar presa sono falta de apetite variações de humor vontade de acabar com a própria vida etc além de sensações físicas como dor de cabeça dor nas costas falta de ar dor no peito agitação e nervosismo Uma característica marcante na experiência de sofrimento das entrevistadas é a identificação do espaço doméstico a casa com o sofrimento Os discursos de duas das entrevistadas revelaram o cansaço de uma vida dedicada ao trabalho doméstico em conjunto com as preocupações com a família e os problemas de relacionamento com o marido No caso de uma delas o cansaço é acentuado com o trabalho como diarista pois além da própria casa ela ressalta que passou a vida toda cuidando da casa dos outros Neste aspecto a experiência de sofrimento das entrevistadas aparece como um idioma nos termos de Silveira 200088 que permite que se destaquem da vida social alguns papéis que dele se utilizam com frequência sobretudo aos ligados ao que é esperado mioloantroppmd 10022010 1442 200 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 201 tradicionalmente como atribuição feminina Esse idioma de acordo com a autora tem usos e finalidades e pode demonstrar opressão na ou da vida diária questões ligadas à sexualidade dificuldades de relacionamento social etc Outra entrevistada mais jovem e solteira tem outra relação com o ambiente doméstico que aparece em sua fala como um lugar de introspecção e solidão A depressão que se manifesta para ela como a perda da vontade de viver leva à reclusão em casa vontade de ficar só deitada na cama sozinha em um canto escuro sem ver ninguém etc Neste sentido a casa aparece não somente como o lugar onde essas mulheres sofrem mas onde não há vida A vida enquanto vontade disposição para fazer as coisas está fora de casa em atividades desvinculadas do ambiente doméstico e que ocupem a mente enquanto em casa a cabeça se preenche com besteiras ou coisas ruins como idéias suicidas por exemplo Por isso esforçarse para melhorar significa sair de casa e tentar viver Outra recorrência no discurso das entrevistadas é a valorização do diagnóstico e do tratamento médico Quando falam do sofrimento elas falam de uma doença específica e muito séria a depressão Do mesmo modo o tratamento que vai curar essa doença é o tratamento médico com medicamentos Os fitoterápicos da Pastoral da Saúde assim como as atividades ocupacionais com as quais elas procuram se envolver são considerados muito bons ou eficientes mioloantroppmd 10022010 1442 201 202 como se ajudassem a diminuir o sofrimento de uma maneira mais ampla Mas quando falam em tratamento para a doença depressão elas se referem ao tratamento médico com medicamentos Porém a adesão a determinado tratamento não exclui os outros Ao contrário as voluntárias fazem uso de uma grande quantidade de recursos terapêuticos simultaneamente e acreditam que todos contribuem em alguma medida para sua recuperação mas percebem os diferentes tratamentos como atuantes em diferentes dimensões do sofrimento A ênfase no diagnóstico médico e no tratamento com medicamentos retrata a inarredável legitimidade do discurso médicocientífico sobre o processo de adoecimento tratamento e cura entre elas Diagnosticado como depressão o sofrimento passa a ter um nome científico reconhecido nas sociedades urbanas modernocontemporâneas como uma doença séria Nesta lógica o diagnóstico confere validade e legitimidade ao sofrimento dessas mulheres e a medicalização constitui uma forma de objetiválo Contudo a relação estabelecida com os médicos não é de passividade e isenta de conflitos Em geral elas aceitam o diagnóstico mas tentam negociar o tratamento avaliandoo segundo suas percepções de crises ou melhoras e conciliando o com outros tratamentos que também consideram importantes Uma das entrevistadas relatou uma relação extremamente conflituosa com o médico a ponto de lhe causar mioloantroppmd 10022010 1442 202 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 203 um trauma relacionado ao tratamento com medicamentos Esse conflito se manifesta por ser a relação médicopaciente essencialmente uma relação de poder na qual o poder do médico se garante e se justifica nos privilégios do conhecimento Como afirma Foucault 1979123 o médico é competente o médico conhece as doenças e os doentes detém um saber científico que é do mesmo tipo que o do químico ou do biólogo eis o que permite a sua intervenção e a sua decisão As quatro voluntárias conferem grande importância ao que chamam de lado espiritual no processo de tratamento e cura Entretanto a influência da espiritualidade é percebida por elas de duas maneiras distintas Algumas acreditam que o sofrimento pode ter causas espirituais ou seja pode estar relacionado a uma experiência do sobrenatural como mediunidade não desenvolvida castigo ou coisa ruim enviada por outra pessoa Neste sentido um tratamento espiritual significa uma mediação com esse sobrenatural que estaria causando a doença De outro modo as demais não concebem uma intervenção direta de algo sobrenatural como causa de seu sofrimento Este é entendido apenas como decorrente de um desequilíbrio emocional ou psíquico e desse modo trabalhar a dimensão espiritual através de rezas retiros espirituais ou simplesmente freqüentando a missa seria uma forma de se reequilibrar lavar a alma libertarse de qualquer mágoa rancor ou raiva que possa estar causando esse desequilíbrio mioloantroppmd 10022010 1442 203 204 O trabalho como voluntária da Pastoral da Saúde é evidenciado pelas entrevistadas como uma atividade que contribui em grande parte para sua recuperação por dois motivos principais O primeiro está relacionado ao caráter ocupacional dessa atividade já que o trabalho voluntário lhes permite sair de casa e ocupar a mente com coisas boas O segundo referese à rede de amizade e solidariedade que as voluntárias estabelecem entre si Na Pastoral elas encontram outras mulheres que se não estão passando ou já passaram pelo mesmo sofrimento compreendemno e estão dispostas a ouvir suas queixas Com exceção de uma delas cujo percurso é percebido como tendo atingido seu fim último a cura as narrativas das voluntárias revelam uma trajetória ainda incompleta em busca de cura que se desenrola de maneira não linear e em constante ressignificação propiciada por novos acontecimentos e pela aquisição de novos conhecimentos na interação com outros sujeitos envolvidos nesse processo MODELOS DE PESSOA E MODELOS DE SOFRIMENTO NA EXPERIÊNCIA DAS VOLUNTÁRIAS Pesquisas recentes sobre saúde mental têm apontado uma dicotomia entre dois modelos distintos de conceber pessoa e subjetividade entre classes médias e classes populares no Brasil um modelo relacional de pessoa e o modelo do indivíduo ocidental moderno Essa diferença cultural influenciaria o modo como saúde e doença são concebidas e experimentadas por sujeitos diferentes entre as classes mioloantroppmd 10022010 1442 204 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 205 populares e os segmentos dominantes eruditos e oficiais das sociedades nacionais modernas Para Duarte 1986 os indivíduos das classes populares concebem a pessoa de forma holista inserida em relações sociais mais amplas e indissociáveis de sua concepção do Eu Esta visão contrasta segundo o autor com a concepção individualista da pessoa moderna predominante nas classes médias na qual o indivíduo é concebido como um ente psicológico autônomo constituindose enquanto categoria com valor e sentido moral Entre as classes médias predominaria um modelo individualistaracionalista com ênfase na dimensão psicológica dos indivíduos centrado na racionalização médica e medicalização da subjetividade no qual o termo mais apropriado para tratar do sofrimento seria distúrbio psicológico ou psíquico Entre as classes populares o autor aponta a predominância do modelo dos nervos no qual o discurso e a experiência da doença freqüentemente questionam a dicotomia corpomente presente na biomedicina relacionando em um único episódio de doença elementos de ordem biológica social espiritual e moral Observando as teorias sobre pessoa desde a Antiguidade Clássica Duarte 1994 demonstra que os saberes antigos dos nervos contribuíram para as especulações sobre a constituição humana como as teorias sobre a relação entre o coração e o cérebro mas mantiveramse subordinados às teorias da alma e à configuração dos humores e temperamentos até mioloantroppmd 10022010 1442 205 206 o século XVIII Com as transformações sociais e culturais que culminam na chamada cultura ocidental moderna os nervos são reapropriados em um sistema mecanicista integrado o sistema nervoso servindo de suporte para o surgimento do novo sujeito moderno autônomo e universalmente idêntico Em finais do século XIX surge uma nova configuração da pessoa em decorrência da força das idéias individualizantes a concepção dos saberes psicologizados Isso se dá de acordo com o autor a partir da influência da psicanálise e em oposição ao saber considerado antiquado dos nervos No entanto Duarte 199487 argumenta que as classes populares em geral no ocidente continuaram a dispor de um modelo de pessoa condizente ou solidário com suas próprias resistências à individualização no sentido de conversão à ideologia culta do individualismo Para abordar as experiências de sofrimento neste grupo social o autor propõe então o uso do termo perturbação físicomoral que evoca as condições situações ou eventos de vida considerados irregulares ou anormais pelos sujeitos sociais e que envolvam ou afetem não apenas sua mais imediata corporalidade mas também sua vida moral seus sentimentos e sua autorepresentação Duarte 2003 p 177 As perturbações físicomorais de acordo com o autor compreendem um núcleo de sintomas físicos mais ou menos constantes como dores de cabeça tremura aflição ou insônia mas paralelamente observase uma rica expressão de sintomas mioloantroppmd 10022010 1442 206 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 207 morais como tristeza preocupação aborrecimento ou fúria que acionam as metáforas mecânicas e orgânicas associadas ao nervoso A lógica do nervoso admite que um evento físico possa acarretar reações morais ou uma experiência moral ter implicações físicas sem que no entanto se deixe de distinguir entre os dois planos Duarte 1986 Ao longo deste trabalho procurei analisar as experiências de sofrimento e os itinerários terapêuticos de voluntárias da Pastoral da Saúde do bairro Saco Grande II que foram diagnosticadas pelos médicos como tendo depressão As narrativas de sofrimento e busca de tratamento e cura revelaram alguns aspectos compartilhados na experiência das voluntárias a identificação de uma crise como desencadeadora e ao mesmo tempo reveladora do sofrimento valorização do diagnóstico e do tratamento médicos identificação do espaço doméstico a casa com o sofrimento influência da dimensão espiritual no processo de tratamento e cura e uma grande importância concedida ao trabalho voluntário na Pastoral da Saúde enquanto uma atividade com sentido terapêutico que contribui em grande parte na recuperação Os relatos das voluntárias apontam diversas questões que nos ajudam a refletir sobre suas percepções e experiências de sofrimento relacionadas às concepções de pessoa e subjetividade presentes no grupo pesquisado que a meu ver poderiam ser agrupadas em três modelos de sofrimento mioloantroppmd 10022010 1442 207 208 A ênfase e a valorização do diagnóstico e tratamento médicos evidenciada nas narrativas das voluntárias diagnosticadas com depressão sugerem a predominância de um modelo biomédico centrado na racionalização médica da experiência subjetiva e do sofrimento e na medicalização O discurso das outras voluntárias da Pastoral também aparece vinculado a um modelo biomédico na medida em que valoriza a racionalidade científica e revela concepções sobre o corpo saúde e doença baseadas no dualismo corpomente característico da medicina ocidental moderna Por outro lado revelouse também no discurso de todas as voluntárias entrevistadas um modelo espiritual que valoriza a influência da religiosidade e da dimensão espiritual na experiência do sofrimento e busca de cura É claro que essa influência aparece com algumas particularidades na experiência de cada uma das entrevistadas mas é concebida por todas como um fator de fundamental importância no processo de adoecimento tratamento e cura É possível falar ainda em um modelo socialrelacional que se expressa na importância atribuída ao papel da rede social na qual se inserem enquanto um recurso terapêutico Nos relatos das quatro voluntárias diagnosticadas com depressão a doença aparece como resultante e ao mesmo tempo um indicador de situações problemáticas em seu grupo social mais próximo e o tratamento deve em grande parte proporcionar o reestabelecimento de vínculos sociais e redes de amizade e mioloantroppmd 10022010 1442 208 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 209 solidariedade a partir do envolvimento com atividades que as tiram de dentro de casa do isolamento e aproximamnas de outras pessoas O modelo dos nervos proposto por Duarte pode ser percebido em diversos momentos na fala das voluntárias seja nas interpretações e explicações para o processo de adoecimento na percepção e avaliação dos tratamentos e da cura ou na própria experiência de um sofrimento que envolve e afeta não somente a experiência sensível como também a vida moral e as relações estabelecidas com os outros Quando descrevem suas sensações sintomas físicos como aflição dor no peito sono agitação dor de cabeça etc aparecem paralelamente a sintomas morais como tristeza vontade de morrer e vontade de se isolar aproximandose ao que Duarte denomina de perturbação físicomoral Do mesmo modo como coloquei acima o modelo individualistaracionalista também se faz presente no discurso das voluntárias que incorpora em alguns aspectos as explicações biomédicas ligadas à interiorização e psicologização dos sujeitos bem como a primazia de uma realidade reificada da doença e da medicalização sobretudo na centralidade dada ao diagnóstico médico da depressão É interessante perceber que as experiências de sofrimento e as percepções das voluntárias sobre o processo de adoecimento e busca de tratamento e cura expressam uma interação entre os saberes ditos leigos ou ordinários que mioloantroppmd 10022010 1442 209 210 fundamentam as representações das classes populares sobre o corpo saúde e doença com os eruditos ou científicos formadores das concepções dos segmentos dominantes Isso nos leva a refletir sobre as nuances desses modelos de conceber pessoa e subjetividade propostos por Duarte que a meu ver não constituem quadros de referência fechados estáticos e determinantes diretos das concepções e da experiência dos sujeitos em um mesmo segmento social São ao contrário dinâmicos e se atualizam na experiência vivida e compartilhada entre os sujeitos que interagem com outros no mesmo e também em distintos segmentos sociais O próprio Duarte chama a atenção para a dimensão dinâmica dessa oposição entre saberes eruditos e ordinários O autor ressalta que desde o século XVIII as fórmulas da biomedicina não têm cessado de influir nas representações gerais concernentes ao adoecimento e de modificar os patamares de tolerância e demanda das instituições médicas Duarte sugere que algo porém de uma reinvenção parece envolver a forma dessa difusão tornando permanentemente fluidas e complexas as fronteiras delineadas por esse modelo de diferença Duarte 199814 O fato de aderirem e valorizarem o diagnóstico e o tratamento médicos e de muitas vezes fazerem uso de elementos de uma linguagem médicopsiquiátrica para falar do sofrimento não invalida as interpretações e suas perspectivas de tratamento e cura vinculadas à dimensão espiritual ou à mioloantroppmd 10022010 1442 210 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 211 rede de sociabilidade na qual as voluntárias se inserem e não significa que a experiência sensível de uma perturbação nomeada com uma categoria biomédica se restrinja ao que a biomedicina associa à depressão Ao contrário as voluntárias conciliam interpretações e tratamentos diversos para o sofrimento que é percebido e vivenciado ao longo uma trajetória biográfica singular em constante interação com os outros sujeitos que participam desse processo Ao analisar as narrativas de sofrimento e trajetórias terapêuticas destas quatro mulheres em suas buscas por tratamento e cura tive a intenção de demonstrar que os sujeitos são ativos na interpretação de suas perturbações e nas tentativas de amenizálas Elas vivenciam situações de aflição e constroem significados relacionados a estas através de processos que envolvem não somente a experiência sensível mas também uma interação dinâmica com familiares curadores e demais pessoas próximas NOTAS 1A CNBB define ação social como um serviço que multiplica atividades de conscientização organização e transformação as quais levam à conversão pessoal por um lado e a mudanças concretas de ordem social econômica e política por outro CNBB REGIONAL SUL IV 2000 2 Sobre noções como saúde mental psicossocial físicomoral ver Duarte 1994 3 Este artigo baseiase em meu trabalho de conclusão do curso de mioloantroppmd 10022010 1442 211 212 BUCHILLET Dominique org A antropologia da doença e os sistemas oficiais de saúde In Medicinas tradicionais e Medicina Ocidental na Amazônia Belém MPEB Cnpq SET PR CEJUP UEP 1991 CNBB REGIONAL SUL IV Manual da Pastoral da Saúde Florianópolis CNBB Regional Sul IV 2000 DUARTE Luiz Fernando Dias A outra saúde mental psicossocial físicomoral In ALVES Paulo Cesar MINAYO Maria Cecília de Souza orgs Saúde e doença um olhar antropológico Rio de Janeiro Ed Fiocruz 1994 P 8390 Da vida nervosa nas classes trabalhadoras urbanas brasileiras Rio de Janeiro JZECNPq 1986 Indivíduo e pessoa na experiência da saúde e da doença Ciências Saúde Coletiva v 8 n1 pp 173183 2003 Investigação antropológica sobre doença sofrimento e perturbação uma introdução In LEAL Ondina F DUARTE Luiz Fernando D orgs Doença sofrimento perturbação perspectivas etnográficas Rio de Janeiro FIOCRUZ 1998 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ciências sociais na Universidade Federal de Santa Catarina defendido em Agosto de 2008 e vinculado ao projeto de pesquisa Gênero subjetividade e saúde mental Políticas públicas ativismo e experiências sociais em torno de gênero e saúde mental coordenado pela professora Sônia Weidner Maluf aprovado e financiado pelo CNPq Edital Universal 4 Para uma abordagem sobre as noções de doença sofrimento e perturbação sob uma perspectiva diferente da abordagem da experiência ver Duarte 1998 mioloantroppmd 10022010 1442 212 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 213 FOUCAULT Michel A casa dos loucos In Microfísica do poder Rio de Janeiro Edições Graal 1979 P 113128 MALUF Sônia Weidner Antropologia narrativas e a busca de sentido Horizontes Antropológicos Porto Alegre v 5 n12 Dezembro de 1999 6982 Peregrinos da Nova Era itinerários espirituais e terapêuticos no Brasil dos anos 90 Antropologia em Primeira Mão Florianópolis PPGASD UFSC 2007 526 RABELO Miriam C Narrando a doença mental no Nordeste de Amaralina relatos como realizações práticas In RABELO Miriam C ALVES P C SOUZA I M orgs Experiência de doença e narrativa Rio de Janeiro Editora Fiocruz 1999 ALVES Paulo Cesar Tecendo o Self e Emoção nas Narrativas de Nervoso In RABELO Miriam C ALVES Paulo Cesar SOUZA I M orgs Experiência de doença e narrativa Rio de Janeiro Editora Fiocruz 1999 SILVEIRA Maria Lúcia O Nervo Cala o nervo fala A linguagem da doença Rio de Janeiro Editora Fiocruz 2004 SOUZA I M Um retrato de Rose Considerações sobre processos interpretativos e elaboração de história de vida In LEAL O F DUARTE L F D orgs Doença sofrimento perturbação perspectivas etnográficas Rio de Janeiro FIOCRUZ 1998 mioloantroppmd 10022010 1442 213 mioloantroppmd 214 10022010 1442 Eu dava banho na minha mãe ela sempre gostava disso e eu tratava ela com muito carinho Ela morreu nos meus braços quando dava banho nela E depois que ela morreu eu fui ao medico e disse a ele que estava muito nervosa e tinha dor de barriga porque tinha cuidado durante sete anos da minha mãe com Alzheimer E ele fez exames e disse Isto não é nervos é uma ulcera de falta de alimentação Ainda bem que sua mãe morreu agora porque se tivesse resistido mais um pouquinho ela teria levado você junto Estávamos sentadas à mesa da cozinha de Eulália conversando sobre sua vida e sua família Eu tinha perguntado se seus pais ainda viviam e ela explicou que depois da morte do seu pai sua mãe tinha vindo viver com ela e quando Eulália tinha 60 anos sua mãe que então estava no começo dos 80 foi diagnosticada com a Doença de Alzheimer e por sete anos Eulália cuidou dela em sua casa Naquela época Eulália ainda estava trabalhando como camareira e contou que cuidava da mãe de manhã fazia o café para ela dava banho lavava sua A OBRIGAÇÃO DE CUIDAR MULHERES IDOSAS EM UMA COMUNIDADE DE FLORIANÓPOLIS Diana Brown mioloantroppmd 10022010 1442 215 216 roupa a roupa de cama e lhe preparava e dava o almoço Depois saia para trabalhar pegava o ônibus muitas vezes sem comer o próprio almoço Seu marido aposentado por invalidez cuidava da mãe de Eulália durante a tarde e ela ao voltar à noite do trabalho cuidada da mãe de novo Nos fins de semana os seus filhos e esposas ajudavam na cozinha e com a limpeza da casa Esta narrativa sobre cuidados com uma idosa doente emergiu cedo durante minha atual pesquisa sobre envelhecimento saúde e beleza numa vizinhança no norte da Ilha de Santa Catarina Florianópolis formada principalmente por classes populares que inclui uma concentração de pessoas nativas da Ilha que até muito recentemente eram agricultores camponeses e que remetem sua ancestralidade aos imigrantes das ilhas dos Açores que chegaram ali no século XVIII Ela me alertou para o que descobri ser uma situação comum no Grupo de Terceira Idade com o qual venho trabalhando nos últimos quatro anos tanto como participante quanto como pesquisadora1 que mulheres nos seus 6070 e até 80 anos idosas de acordo com o Censo que agora define o início da velhice aos 60 anos cuidam de parentes idosos doentes e incapacitados em casa A narrativa de Eulália captura os temas principais que vou desenvolver aqui a predominância de mulheres como cuidadoras principais de idosos doentes e a imbricação deste cuidado com redes de cuidado mais amplos dentro da rede mioloantroppmd 10022010 1442 216 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 217 familiar a intimidade corporal envolvida no cuidado com parentes idosos aflições que resultam deste cuidado e os encontros que estas situações geram entre as linguagens local e biomédica sobre a aflição finalmente idosos como cuidadores de idosos a Terceira Idade cuidando da Quarta Idade Vou explorar estes tópicos de uma perspectiva etnográfica enfatizando a importância da especificidade contextual de fatores e relacionamentos a partir dos quais estas práticas e significados emergem Heck e Langdon 2002 Silveira 2000 bem como localizandoos no contexto de uma comunidade nativa coesa que se esforça para não perder seus valores e tradições ao mesmo tempo em que é insistentemente parte do mundo contemporâneo Este estudo também contribui para o conhecimento do multifacetado e complexo panorama das relações sociais e familiares envolvendo pessoas idosas no Brasil hoje Alves 2008 p 238 Este estudo contribui também para o conhecimento do complexo e multifacetado panorama das relações e familiares envolvendo pessoas idosas hoje no Brasil Alves 2008 p 38 Meu foco sobre as cuidadoras femininas é uma conseqüência não antecipada de dois aspectos da minha pesquisa primeiro que as mulheres são a grande maioria dos participantes tanto deste quanto de outros Grupos de Terceira Idade Britto da Motta 1999 p 219 Alves 2008 p 132 por isto figuram aqui proeminentemente como sujeitos da pesquisa segundo que o cuidado dos doentes é feito predominantemente mioloantroppmd 10022010 1442 217 218 por mulheres e é visto pelos membros deste grupo e nesta vizinhança como trabalho de mulher como é o caso em geral no Brasil e em grande parte do mundo Caldas 2002 Neriv 2006 Silveira 2000 É importante notar no entanto que gênero é relacional Scott 1988 Di Leonardo 1991 isto é que as práticas e valores de um gênero não podem ser analisadas sem se levar em conta outros na sociedade Assim nesta situação também os cuidados prestados por mulheres e seus problemas de saúde derivados deste seu papel de cuidadoras devem ser vistos no contexto de um panorama local mais amplo e das relações de gênero nas famílias Meu trabalho aqui se aproxima da recente literatura sobre cuidadores de idosos no Brasil no âmbito das ciências da saúde em especial da psicologia da gerontologia e da enfermagem que tem aumentado com a constatação de que a população brasileira está envelhecendo como resultado da transformação demográfica envolvendo maior longevidade e taxas mais baixas de fertilidade Esta literatura que tem sido fortemente influenciada pela extensa literatura vinda dos Estados Unidos e da Europa oferece modelos úteis para a categorização de cuidadores e para o exame de redes de cuidadores Reconhece a diversidade das situações de cuidado e inclui estudos locais de cuidadores em diversos setores de classe e étnicos da população No entanto de uma perspectiva etnográfica estes estudos tem duas insuficiências primeiro com poucas exceções Caldas 2002 Santos 2006 eles tendem a caracterizar os mioloantroppmd 10022010 1442 218 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 219 cuidadores primariamente através de entrevistas e negligenciam a importância dos contextos locais para a configuração de valores e significados nos quais o ato de cuidar está imerso bem como a dimensão experiencial das atividades relacionadas ao cuidado Neste trabalho eu situo as atividades relativas ao cuidado nas relações sociais que são praticadas e valoradas dentro desta comunidade e dou atenção à dimensão de experiência que estes cuidadores têm enquanto cuidadores Em segundo lugar estes estudos tem sido feitos a partir de preocupações e de um quadro de referências biomédicas e tendem a trazer consigo a bagagem cultural associada a estas perspectivas orientadas pela biomedicina a aceitação acrítica e o uso de categorias biomédicas e da linguagem derivada especificamente da sua especialidade médica e mais geralmente a partir de uma visão de mundo científica ocidental Quero problematizar esta visão de mundo científica e explorar os resultados dos encontros entre membros de uma população local que usa linguagens locais de aflição e as linguagens dos especialistas biomédicos A VIZINHANÇA Florianópolis é hoje uma cidade de aproximadamente 408000 mil pessoas muito procurada pelas classes medias por sua qualidade de vida e um destino preferido de turistas em busca de suas praias e beleza natural A vizinhança na qual tenho trabalhado se localiza no que é agora uma comunidade praieira no norte da ilha Até os anos 1950 estava isolada e mioloantroppmd 10022010 1442 219 220 esparsamente habitada por uma população em grande parte descendente da imigração açoriana Seus habitantes viviam em comunidades camponesas isoladas da lavoura e da pesca coletavam madeira para seus engenhos de farinha e criavam vacas em campos comunais Não havia estradas nem transporte público por vários quilômetros e as viagens eram feitas a pé ou de canoa A escola local só chegava ao segundo ano primário a Igreja Católica estava a vários quilômetros de caminhada e não havia posto de saúde A penetração desta área por especuladores de terra começou lentamente nos anos 1920 aumentou durante os 1950 fazendo com que parte da população nativa se mudasse Mas não foi até a década de 1970 que esta área de praia começou a se desenvolver como um balneário ocupado por pessoas de fora e se tornou parte do que Lago 1998 260 chamou de processo galopante de urbanização das praias envolvendo a expansão de equipamentos turísticos novas habitações hotéis e empreendimentos comerciais Motta 2002 Fantin 2000 A vizinhança é agora um dos muitos enclaves nativos que pontilham a área costeira da ilha Os nativos como os antigos residentes da área referemse a si mesmos são chamados de Manezinhos pelos de fora2 vivem agora num dos cantos da praia agrupados ao longo de uma estrada interiorana secundária e das servidões que se estendem para cima das colinas3 Eles vivem nas margens e nos interstícios dos novos estabelecimentos comerciais e apartamentos de luxo associados mioloantroppmd 10022010 1442 220 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 221 com o turismo em expansão Novos residentes que são tratados pelos nativos como os de fora ou forasteiros ou invasores são principalmente de classe média alguns de outras cidades de Santa Catarina muitos do Rio Grande do Sul Diferente dos padrões de moradia intercalado comuns em outros locais da ilha Rial 1988 Motta 2002 há uma tendência de segregação residencial os nativos tendem a viver em áreas longe da praia e os novos moradores perto dela Durante a temporada a população incha com visitantes da Argentina Uruguai e outras partes do Brasil Com todas estas mudanças há uma comunidade nativa muito vital ainda que pequena cujos residentes ainda vivem nas propriedades dos seus ancestrais lineares a maioria com títulos de posse Tendem a viver em segmentos familiares residências ver Rial 1988 Motta 2002 em terrenos e propriedades vizinhas que agora contem várias casas e pode incluir parentes lineares de três quatro e até cinco gerações numa só propriedade Os laços de parentesco são extraordinariamente densos e importantes Maluf 1993 Motta 2002 eles estruturam muito da vida diária das relações e atividades e são onipresentes nas conversas Falar de um membro específico desta comunidade para uma pessoa de outra provavelmente evocará uma recitação espontânea das relações de parentesco entre eles grau e geração incluindo as relações afins Numa conversa com uma mulher que escolhi ao acaso dentre os membros do Grupo de Terceira Idade ela não mediu mioloantroppmd 10022010 1442 221 222 esforços para se conectar com todas as outras mulheres nativas do grupo Os freqüentes casamentos entre famílias e as densas relações de parentesco na vizinhança e com outras comunidades de vizinhanças nativas por muitas gerações produziu uma comunidade muito coesa pelo parentesco residência comum e pela estabilidade resultante das gerações de parentes que vivem nas mesmas propriedades Assim apesar da enormidade das mudanças que ocorreram nos últimos 40 anos nas quais a comunidade passou de uma comunidade de agricultura e pesca de subsistência a fazer parte do mundo urbano contemporâneo da dependência da escrita do trabalho assalariado do consumismo membros desta comunidade não estão vivendo em pobreza eles possuem suas casas têm pequenas rendas de aposentadoria e continuam a fazer trabalhos para os mais ricos que vieram de fora trabalhando como empregadas faxineiras zeladores jardineiros trabalhadores da construção e no pequeno comércio Eles se tornaram parte da classe popular enquanto alguns de seus filhos tiveram mobilidade ascendente e são agora classe média Eles se acomodaram e até se beneficiaram deste novo mundo mas continuam a manter valores comuns embebidos nas memórias de seu mundo anterior de ter crescido e criado seus filhos nele da terra e de quem viveu nela valores que eles mantêm e lutam por transmitir aos filhos e netos Alguns aspectos desta identidade nativa são significativas na moldagem da natureza do ato de cuidar e serão tratadas adiante mioloantroppmd 10022010 1442 222 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 223 Estes valores são frequentemente reforçados pela fofoca uma realidade central dos encontros diários A fofoca é muito intensa nesta comunidade todos são muito curiosos sobre a vida dos outros e preocupados em manterse atualizados sobre o que estão fazendo Grande parte desta fofoca ocorre nos encontros da comunidade tais como as atividades do Grupo de Terceira Idade do Grupo do Apostolado da Igreja Católica local e na rua Muito poucos desta geração dirigem carros ainda que seus filhos geralmente o façam por isto podem ser encontrados caminhando na rua fazendo compras parando para fofocar com os vizinhos esperando no ponto de ônibus Aprendi logo no começo de minha pesquisa que quando eu oferecia carona para uma destas pessoas era provável que recusassem explicando Não eu prefiro caminhar Assim posso dar um oi pra todo o mundo e ficar sabendo as novidades A fofoca é intensa e constante e inclui não só os da comunidade mas se estende para os de fora como eu que participam de sua vida Um dos tópicos centrais da fofoca é saúde e doença As pessoas fofocam sobre sua própria saúde seus sintomas seus remédios detémse em descrições detalhadas trocam novas receitas e novas fontes de uma pletora de remédios caseiros Também conversam sobre quem está doente nas suas famílias na comunidade demorando em descrições detalhadas de suas condições seus tratamentos e de quem está cuidando deles As conversas quase sempre incluem longas ladainhas de mioloantroppmd 10022010 1442 223 224 condições sintomas doenças tratamentos e comentários sobre como os doentes estão sendo cuidados quem cuida deles qual a qualidade do cuidado Todos os tópicos relacionados à saúde são matéria para uma boa fofoca As mulheres com quem tenho trabalhado são idosas em seus 60 70 80 várias nos 90 e ao menos duas com mais de 100 anos Cresceram juntas casaram dentro da comunidade ou com pessoas de comunidades nativas vizinhas e criaram seus filhos na condição de agricultores e pescadores camponeses antes do advento da eletricidade das estradas ou qualquer escolaridade além do segundo ano primário Entre as grandes e até muito chocantes mudanças dos últimos 40 anos elas mantiveram muitas das práticas e valores da juventude incluindo o sentido de importância da família A maioria casou com outros nativos O GRUPO DE TERCEIRA IDADE Três manhãs por semana às 8h30 os participantes se reúnem para a ginástica Chegam a pé de bicicleta raramente de carro ao prédio de cimento que pertence à Associação de Moradores e por uma hora fazem exercícios dançam jogam resmungam de exaustão e compartilham novidades num ambiente de muito deboche amistoso que inclui comentários e piadas sobre o envelhecimento dos seus corpos A ginástica tem mais ou menos 22 membros as idades indo dos 60 aos 86 principalmente mulheres algumas viúvas e algumas casadas com alguns maridos participando também A ginástica é a mioloantroppmd 10022010 1442 224 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 225 atividade principal deste Grupo de Terceira idade a maioria de seus membros também participam dos encontros semanais freqüentados exclusivamente por mulheres em passeios ocasionais muito esperados a lugares de interesse e mais raramente em atividades mais inclusivas atividades e festas organizadas pela Prefeitura e que se destinam a todos os grupos da cidade O grupo tem 45 integrantes cujas idades vão dos 60 aos 95 a maioria de mulheres ainda que alguns homens especialmente maridos das mulheres membros frequentemente vão aos passeios e às festas Façanhas como dançar no corredor do ônibus em alguns dos passeios já se tornaram lendárias Esse é um dos mais de 100 Grupos de Convivência de Florianópolis patrocinados pela Prefeitura que os apoia através de pequenas doações periódicas de mantimentos para a preparação de lanches materiais como pano e linhas para trabalhos manuais ocasionais fornecimentos de ônibus para os passeios um estagiário de Educação Física de uma universidade local para conduzir o grupo de ginástica convites para ocasionais eventos de âmbito municipal ou regional com a convocação de Grupos de Terceira Idade para almoços e bailes shows de talentos e atividades carnavalescas No entanto a liderança das atividades regulares deste e de outros grupos se origina totalmente dentro do próprio grupo Sua composição social é genericamente similar àquela de outros Grupos de Convivência de Terceira Idade mioloantroppmd 10022010 1442 225 226 principalmente da classe popular em contraste com os demais participantes da classe média como nas Universidades da Terceira Idade Brito da Motta 1999 p 22021 Alves 2008 p 132 No entanto seu perfil reflete a composição social mista da vizinhança na qual se localiza ainda que principalmente de classe popular e principalmente de nativos também inclui alguns poucos participantes não nativos da classe média As relações entre nativos e não nativos no grupo são geralmente cordiais apesar das nativas tenderem a manter certa distância e de vez em quando se desenvolvem algumas tensões Nas vezes em que os líderes do grupo coordenadores eleitos pelos membros foram nãonativos rapidamente se enfrentaram com a dificuldade de tentar impor suas idéias para o grupo e aprenderam que as nativas tem opiniões fortes Apesar deste conflitos menores este Grupo de Terceira Idade tanto quanto a capela católica local é fonte de coesão tanto dentro da comunidade nativa quanto na vizinhança mais ampliada CUIDADORES E REDE DE CUIDADOS Um dia depois da reunião semanal do Grupo de Terceira idade eu estava conversando com DLuiza viúva de 78 anos e pilar da comunidade nativa que vive circundada pelos filhos suas esposas e esposos netos e bisnetos Estávamos falando sobre sua grande família e ela comentou para mim Sim eu posso morrer feliz Se eu caísse doente aqui nessa grama na frente do lugar de encontro do Grupo de Terceira Idade agora mesmo dentro de minutos minha mioloantroppmd 10022010 1442 226 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 227 família estaria aqui para cuidar de mim Graças a Deus estão todos muito perto de mim muito preocupados comigo e eu sei que vão cuidar muito bem de mim Ela expressava ali a verdade de sua própria situação o ideal de cuidado de um idoso doente nesta comunidade cercada por familiares próximos de várias gerações que estarão totalmente disponíveis para tomar conta dela com muito carinho Perguntei lhe quem assumiria o principal peso do cuidado dela e ela disse Ah Minhas filhas e quando perguntei por que as filhas e não os filhos ela me olhou como se eu fosse um tanto retardada Por que são mulheres e sabem fazer estas coisas de casa e de cuidar da gente porque já cuidaram das crianças né Os meus filhos ah eles ajudam também E aqui ela enunciou o esquema da divisão de trabalho por gênero e da complementaridade de gênero que deles resulta nesta em outras comunidades nativas da ilha ver Motta 1998 em outros lugares do Brasil Brito da Motta 1999 e 2002 em especial entre gerações mais idosas Mulheres estão a cargo da casa da cozinha da lavação de roupa do cuidado com as crianças pequenas enquanto os homens trabalham em atividades fora da casa antes na lavoura e em especial na pesca um domínio masculino hoje no trabalho assalariado Esta divisão do trabalho dita que sobre as mulheres recai a expectativa de serem cuidadoras principais dos idosos doentes esposas para seus maridos que normalmente morrem antes delas e filhas para seus pais mioloantroppmd 10022010 1442 227 228 Os exemplos de cuidados apresentados abaixo mostram que este ideal não é sempre alcançado e que a flexibilidade dentro das redes de parentesco e nos papéis de gênero garante que os cuidadores possam mobilizar um amplo espectro de membros da família para diferentes tarefas para que o trabalho de cuidar possa ser bem feito Cuidadores principais aquele que tem total ou a maior responsabilidade pelos cuidados prestados ao idoso dependente no domicílio Caldas 2002 p 51 são geralmente mulheres mais velhas ainda que uma violação controversa desta regra esteja apresentada abaixo mas os cuidadores secundários os familiares voluntários e profissionais que realizam cuidados complementares idemibidem incluem tanto homens quanto mulheres parentes e afins de várias gerações Juntos estes cuidadores constituem as redes de cuidadores que se formam para o cuidado de qualquer idoso Eles ilustram o amálgama do cuidado com as relações familiares e de parentes e a habilidade de mobilizar um largo espectro de membros da família para desempenharem tarefas diferenciadas que garantam um cuidado bem feito O MARIDO DE NILDA Um exemplo que corresponde a todos estes imperativos revezavamse nessa atividade Ela chegava em casa pelas oito ou nove da noite muito cansada exausta nervosa e com dor mioloantroppmd 10022010 1442 228 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 229 nas pernas de ficar sentada o dia todo tendo comido na rua e ia para a cama mas normalmente não dormia Nos fins de semana suas noras e uma sobrinha de seu marido vizinhas que trabalhavam durante a semana vinham para ajudar limpando a casa fazendo faxina fazendo comida lavando roupa As despesas do hospital estavam cobertas por seu plano de saúde mas não os exames nem a medicação que ela pagou com dinheiro que seu marido tinha poupado para emergências e com a ajuda dos filhos Este exemplo de cuidado de um idoso doente obedece a todas as regras locais do cuidado com os doentes o cuidador principal é uma mulher a esposa os cuidadores secundários são membros da família incluindo os filhos e as noras as cunhadas e sobrinhas Cuidar envolve parentes consangüíneos e afins igualmente todos morando muito próximos e juntos formam a rede de cuidadores cuidadosamente orquestrada para garantir cuidado 24 horas ou como diz Santos um corpo de bailarinos de um grande baile de cuidadores Santos 2006 p 100 A divisão por gênero das tarefas de cuidado segue a divisão de trabalho por gênero observada nesta comunidade e em outras ver Neri 2006 p 25 Nilda fornece o cuidado doméstico íntimo para seu marido em casa e apoio emocional a ele quando está no hospital enquanto seus filhos que também fornecem este apoio de noite assumem as atividades extradomésticas Esta divisão de tarefas por gênero expressa as idéias da comunidade sobre os papéis adequados para mioloantroppmd 10022010 1442 229 230 mulheres e homens cuidadores Também mostra o envolvimento de uma geração mais jovem de filhos e suas mulheres participando no cuidado dos idosos aprendendo no processo os fortes valores de cuidar de seus velhos DONA JOANA Um exemplo de cuidado de uma idosa doente na ausência de um esposo ou filha demonstra como outras mulheres parentes irmãs e netas podem ser trazidas para estas redes de cuidado A doente idosa era uma viúva sem filhos e por isto sua irmã de 83 anos e divorciada assumiu o papel de cuidadora principal trouxe sua irmã para viver numa casa no fundo do quintal de sua propriedade levoua ao hospital para sua operação de câncer do intestino e organizou os parentes para ficarem com ela no hospital Trouxea para casa já muito fraca e com a bolsa de rectocolostomia e Joana que estava também cuidando de outra irmã doente em sua casa no principio pagou uma vizinha para ficar com a irmã Mas quando isto não deu certo Joana acionou sua própria filha e sua neta que vivem num bairro vizinho Sua neta disponível porque desempregada naquele momento chegava às oito da manhã para preparar as refeições lavála trocar suas fraldas e fazerlhe companhia durante o dia e foi me dito eu ela fazia tudo isto com muito carinho Ela ia embora à noite quando sua mãe a filha de Joana chegava para passar a noite Outro filho de Joana que tampouco era vizinho ajudava com seu carro e com a compra de medicamentos Joana estava a cargo de organizar e passou o papel de cuidadora para sua filha e neta mioloantroppmd 10022010 1442 230 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 231 Desta forma quanto os parentes mais próximos e os primeiros a serem definidos como cuidadores não existem ou não estão disponíveis a rede de cuidadores se constitui de outros membros femininos da rede de parentesco e utiliza duas gerações descendentes a filha de Joana e sua neta trazendo membros ainda mais jovens da família e da comunidade indivíduos agora nos seus 30 anos para a experiência as obrigações e o conhecimento prático do cuidado Já mencionei que as conversas sobre os doentes e seus cuidados são um tópico preferido da fofoca Quero agora explorar um exemplo atual muito controvertido que é assunto de muita conversa É controvertido porque gerou descontentamento com a forma como o cuidado está sendo dado e sobre a quem a responsabilidade do cuidado foi alocada não por estar prejudicando a saúde do idoso doente mas por causa de quem cuida Assim além de ilustrar o forte senso da comunidade sobre a obrigação da família de cuidar de idosos doentes mesmo na presença de conflitos familiares este exemplo mostra o peso moral que a comunidade coloca na obrigação de parentes específicos cuidarem adequadamente de seus familiares doentes Ao sublinhar o que é visto como uma quebra no cuidado familiar apropriado este exemplo encerra as regras não escritas que governam as expectativas da comunidade em relação a quem deve adequadamente servir como cuidador principal mioloantroppmd 10022010 1442 231 232 DONA EDI Dona Edi tem 95 anos viúva nativa e até o ano passado era uma vigorosa participante do Grupo de Terceira Idade presente em quase todas suas atividades Ela caminhava para os encontros para as aulas de alfabetização de adultos que este grupo tinha naquela época e ia a todos os passeios Frequentemente a vi descendo sozinha do ônibus que vinha do centro a uma hora de distância com pacotes nas duas mãos caminhando firme até sua casa Mas no inicio deste ano ela desenvolveu um câncer no intestino foi operada fez uma rectocolostomia e voltou para casa fraca e tendo que ficar na cama com a bolsa presa ao abdome Ela teve três filhos dois homens já mortos e uma mulher agora com 63 anos Sabese em toda a vizinhança que Dona Edi e sua filha não se dão bem e há muitas histórias conflitantes sobre porque isto acontece dando a culpa a uma ou outra ou às duas Quando conheci Dona Edi ela vivia num apartamento úmido parte de um conjunto de apartamentos de alvenaria no fundo da propriedade da sua filha atrás da casa grande e confortável desta Mesmo então muitos acreditavam que a filha devia trazer sua mãe para viver na casa Mas a filha não o fez e a sua mãe então mudouse para outro apartamento mais cômodo na mesma rua Mas depois da operação ela voltou ao apartamento no fundo do terreno de sua filha agora no entanto como uma idosa dependente e acamada incapacitada de cuidar de si mesma mioloantroppmd 10022010 1442 232 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 233 Seu cuidador principal é seu neto José agora pelos 40 anos que vive na casa ao lado com sua família Logo que D Edi saiu do hospital este neto estava de férias de seu emprego e passava bastante tempo com ela não só fazendolhe companhia mas também trocando suas fraldas e esvaziando sua bolsa o que como ambos comentaram para mim em separado achavam inapropriado e muitíssimo embaraçoso Quando ele teve de voltar ao trabalho suas tarefas foram divididas com relutância entre sua esposa seu irmão e a esposa dele que assumiu a tarefa de dar banho e trocála mas recentemente no meio da noite quando a bolsa se desconectou e derramou seu conteúdo sobre D Edi e sua cama José foi de novo chamado para limpar tudo Ele contratou uma vizinha membro do Grupo de Terceira Idade a quem paga uma pequena soma para vir quatro dias por semana fazer almoço limpar o apartamento e fazer companhia durante a tarde Ele seu irmão e suas esposas se alternam dormindo no apartamento para o caso de D Edi precisar qualquer coisa durante a noite Quanto a sua filha a pessoa que de acordo com virtualmente todos os membros da comunidade nativa deveria ter assumido o cuidado primário ela aparece de vez em quando para fazer almoço e dormir no apartamento Mas apesar de estar aposentada permanece na periferia do cuidado de sua mãe A opinião da vizinhança é muito vocal neste caso como fica claro nos comentários a seguir mioloantroppmd 10022010 1442 233 234 Helena devia ter se responsabilizado pelo cuidado mãe imagine um homem trocando as fraldas dela tratando da bolsa Que vergonha que Helena não pegou o cuidado da mãe Como pode fazer assim com a própria mãe Helena devia ter levado a mãe para viver junto com ela é uma vergonha Mas se ela tivesse feito isso ela teria que assumir mais do cuidado da mãe em vez de ter os filhos dela cuidando dela e ela não queria isto Contam que perguntaram para a irmã de D Edi por que ela que mora num bairro vizinho não assumiu o cuidado da irmã ao que ela teria respondido Olha se minha irmã tem uma filha que mora ao lado dela e pode cuidar dela porque é que eu que tenho 93 anos e moro num outro bairro deveria fazer isto D Edi lamenta que não tenha realmente uma filha que Helena não faça nada do que uma filha deveria fazer por sua mãe quando ela está doente Há os que dizem que a filha é nervosa Mas há outros que discordam e dizem que ela é uma pessoa muito difícil Por outro lado um defensor da filha me disse que esta filha tentou várias vezes ajudar mais mas que nada do que ela faz agrada sua mãe nem sua comida nem seu cuidado E que isto é verdade desde que ela era adolescente E Helena protestou Eu não estou bem não posso cuidar da minha mãe mioloantroppmd 10022010 1442 234 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 235 A partir deste exemplo do que é amplamente percebido como uma violação das expectativas da comunidade é possível elaborar sobre o que são essas expectativas de cuidado Como já mencionei a carga do cuidado de D Edi na ausência de um esposo deveria recair sobre sua filha que é a cuidadora principal apropriada por ser filha mulher e morar perto A irmã de D Edi também concorda e usa este argumento para justificar sua recusa de cuidar de sua irmã em vez de dizer que ela é muito velha e vive longe No entanto a escolha apropriada do cuidador não se realiza por causa da animosidade nos sentimentos o que Mendes baseada num estudo de cuidadores em Campinas refere como o critério de proximidade afetiva esperado das relações entres esposos e entre pais e filhosMendes19984 Neste exemplo a historia da má relação entre mãe e filha é suficientemente forte para desbancar todas as regras prévias A rede de cuidado fica então constituída sob a direção da segunda geração descendente e uma vez que não há netas mulheres recai sobre um neto e sobre as mulheres afins realizar as tarefas íntimas para a avó de seus maridos Este exemplo de cuidado e a quebra que opera fornece uma expressão clara das regras locais relativas às obrigações de parentes específicos para cuidar dos idosos de sua família Ainda que superficialmente estas regras se coadunem com imperativos genéricos do cuidado derivados da literatura internacional que coloca as relações da família nuclear de esposoa e filhos no mioloantroppmd 10022010 1442 235 236 coração da responsabilidade do cuidado primário Neri 2006 p 25 fica claro a partir dos exemplos acima que os arranjos do cuidado nesta comunidade se estendem muito além da família nuclear Enquanto uma pressão considerável é feita sobre os membros femininos da família nuclear para assumir o cuidado principal as redes de parentesco desta comunidade são grandes e flexíveis o bastante para na ausência do cuidador principal apropriado ainda poderem demandar outros parentes para as atividades de cuidado incluindo aqueles da segunda geração descendente Com base na necessidade e disponibilidade parentes masculinos também podem ser trazidos para as redes de cuidado mesmo a papéis centrais Mas quando este cuidado envolve intimidade corporal entre os cuidadores e os doentes como o cuidado do corpo de uma mulher mais velha por um homem jovem mesmo sendo um parente não se considera apropriado Pareceria que o cuidado dos parentes doentes recai principalmente sobre as mulheres por que envolve uma extensão do tipo de assistência íntima esperada delas no cuidado das crianças Estas mesmas habilidades domésticas estão disponíveis para uso no cuidado de outra categoria de dependente um idoso doente Mães seriam inofensivas delas se esperaria serem capazes de dessexualizar os corpos enquanto isto não seria esperado de parentes masculinos sempre ameaças potenciais Observei alguma flexibilidade de gênero nestes casos quando as esposas estão doentes os maridos assumem estas tarefas se ninguém mioloantroppmd 10022010 1442 236 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 237 mais está disponível e frequentemente observai homens de gerações mais jovens cujas mulheres também trabalham fora de casa cozinhar e fazer outros trabalhos de casa Mas há limites na flexibilidade de gênero no cuidado dos idosos foi considerado altamente inapropriado que um neto devesse assumir qualquer destas tarefas especialmente as íntimas de lavar seu corpo mudar a fralda e trocar e limpar a bolsa quando havia uma filha que poderia fazer isto Isto levanta a questão da materialidade física do cuidado com um idoso dependente tem a ver com corpos e requer uma intimidade corporal entre cuidadores e doentes que em várias destas narrativas é aludida particularmente em relação aos atos do banho Estas alusões ao banho em especial às de filhas banhando suas mães deixam ver as dimensões prazerosas da intimidade e do contato físico entre os cuidadores e aqueles de quem cuidam o que como nota Twigg 2003 é frequentemente remetido ao domínio da higiene As narrativas que eu cito aqui mencionam muitas vezes os prazeres de dar banho Mas tais intimidades também podem produzir desconforto e embaraço especialmente quando os corpos velhos são submetidos ao olhar fixo da juventude idem154 e mais ainda quando este olhar é masculino e a intimidade envolve as áreas genital e anal É isto exatamente o que ocorre no cuidado intimo de Dona Edi por seu neto Twigg nos adverte que este tipo de intimidade corporal entre as pessoas com quem se está em contato diário próximo ameaça a identidade e o mioloantroppmd 10022010 1442 237 238 status daqueles a quem se olha e que portanto não deveríamos make any easy assumptions about kinship closeness translating unproblematically into bodily closeness5 Portanto o cuidado de D Edi feito por seu neto violou regras cruzadas de gênero geração e talvez de parentesco também O cuidado íntimo que ele lhe dá não é apropriado mesmo sendo ele um parente e talvez exatamente por ser DONA LULI O exemplo final é de uma idosa doente que não é nativa e que apresenta um contraste extremo com aqueles da comunidade nativa que acabo de descrever Ainda que este caso único não possa ser tomado como representativo da comunidade não nativa de classe média ilustra o que encontrei como uma situação bastante comum nesta população Luli tem 84 anos viúva aposentada oriunda da serra de Santa Catarina Até dois anos atrás era uma participante influente e respeitada do Grupo de Terceira Idade Mas ela teve um ataque cardíaco varias quedas graves e está agora confinada ao primeiro andar da casa grande e bem cuidada que sua filha construiu para ela há uns seis anos atrás Ela mora ali com sua filha solteira agora com 60 anos que trabalha no centro da cidade Seu filho que vive numa cidade distante vem visitá la com os filhos e netos várias vezes ao ano A filha é a cuidadora principal da mãe uma vez que organiza toma as decisões e supervisiona esse cuidado mas mioloantroppmd 10022010 1442 238 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 239 participa muito pouco no cuidado direto desta Este cuidado foi dividido entre quatro cuidadores secundários nenhum deles membro da família todos pagos Eles são um atendente em tempo integral que trabalha de segunda a sábado das oito da manhã às oito da noite outro que trabalha seis noites por semana das oito às oito outro que vem passar o sábado e o domingo dormindo na noite de sábado e uma cozinheira faxineira que trabalha de segunda a sábado das oito às 14 horas preparando comidas e cuidando da casa DLuli diz que sua filha cuida muito bem dela mas que raramente está em casa e não lhe dá muita atenção nem muito carinho Fica claro que este exemplo apresenta um padrão de cuidado muito diferente dos anteriores Aqui ainda que a filha supervisione o cuidado os cuidadores diretos são nãomembros da família e o resto da sua pequena família está disponível somente para apoio econômico uma vez que vivem em outras partes do país Enquanto esta situação particular está relacionada com diferenças no padrão de residência e no menor tamanho da família extensa também está baseada na disponibilidade maior de recursos do que na maioria dos grupos familiares da comunidade nativa É cuidado do idoso em casa mas também é um cuidado de qualidade afetiva diferente do que aquele dos exemplos já dados Este caso sugere as complexidades e as variações no cuidar de idosos em casa Outro exemplo de maiores dificuldades da população não nativa para recorrer às redes de cuidado é o de outra mulher mioloantroppmd 10022010 1442 239 240 casada com sessenta e poucos anos Seus dois filhos vivem em bairros vizinhos mas ela não é muito chegada às suas esposas e comentou comigo recentemente depois de falar com uma certa inveja sobre uma idosa nativa que estava sendo cuidado por sua família em casa Quando eu ficar doente eu vou me por numa Casa de Repouso porque sei que meus filhos não vão querer cuidar de mim Ainda que eu não possa tirar quaisquer conclusões firmes com base em tão poucos exemplos o contraste estridente entre estas duas situações e os exemplos anteriores sugere que os valores comunitários de reciprocidade entre gerações e a obrigação de cuidar dos parentes idosos reforçados por pressões coletivas da comunidade sobre aqueles que os violam são eficientes na perpetuação do sentido de obrigação nas gerações seguintes tanto dos filhos quanto dos netos É muito claro que os padrões de residência que mantêm as gerações de parentes próximos é também crucial da mesma forma que é a dificuldade de juntar recursos financeiros suficientes para soluções alternativas Assim ainda que os padrões de cuidado dos idosos doentes nesta comunidade se pareçam superficialmente com aqueles da literatura mais ampla estes exemplos sugerem que estes padrões podem ser distintos em sua densidade sua extensão no grau dos cuidados diretos feitos pelos parentes mesmos e nas pressões locais exercidas pela comunidade mioloantroppmd 10022010 1442 240 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 241 AFLIÇÕES DOS CUIDADORES PRINCIPAIS Estas mulheres cuidadoras relatam uma grande variedade de aflições que ocorrem durante suas atividades de cuidado dos parentes idosos doentes ansiedade extremo cansaço dor nas pernas esgotamento preocupação estresse insônia nervos tristeza úlcera dor de barriga depressão Ao escutar seus relatos seguidos de detalhes dos cuidados que prestam e ir me dando conta de quão duro trabalhavam da sua pesada carga de incessante e repetitivo trabalho físico junto com a responsabilidade por outras atividades de casa com o peso da responsabilidade em dar atenção e conforto aos doentes que carregavam sobre seus ombros com o fardo emocional de ver os seres amados adoecer e morrer maravilheime com sua resistência Não só achei perfeitamente compreensível que se queixassem da experiência das aflições relativas aos cuidados fiquei surpresa que não passassem por mais aflições Estas mulheres enfrentam fortes pressões da família e da comunidade para cuidar dos doentes idosos em casa em circunstâncias nas quais pouca assistência e poucos recursos são oferecidos pelo Estado Elas enfrentam uma situação que tem sido identificada tanto no Brasil Alves 2002 p161 como em outras culturas Brown e Harris 1978 Miles 1988 como a atividade que é a maior produtora de ansiedade Quero iniciar minha discussão das aflições dos cuidadores desta comunidade com outra narrativa de uma cuidadora sobre sua experiência e suas aflições enquanto cuidava de sua mãe mioloantroppmd 10022010 1442 241 242 com Alzheimer por um período de mais de seis anos Citoa mais extensivamente por que esta narrativa oferece um detalhado relato do processo e da rotulação da doença que sua mãe desenvolvia sobre suas próprias atividades de cuidado dela e suas próprias aflições bem como sobre a linguagem em que são expressas que usa termos de uso comum nesta comunidade Coloquei em itálico os termos em que ela descreve as aflições de sua mãe e suas próprias Celeste é uma nativa de 79 anos casada e com muitos filhos e irmãs morando em casas vizinhas Quando ela estava com quase 70 anos sua mãe que morava na casa ao lado foi diagnosticada com Alzheimer Ela tinha estado doente por muitos anos tinha sofrido um AVC depois tinha tido câncer e começou a ficar esquecida depois muito depressiva e tinha crises nervosas A esta altura Celeste trouxe a mãe para casa e a levou ao médico que a diagnosticou com Alzheimer E então por seis anos como ela descreveu C eu cuidei dela direto Os últimos três anos e meio ela estava muito ruim Eu fazia tudo dava banho nela lavava ela trocava a roupa trocava a fralda e quando ela colocava as mãos por dentro da fralda e se cobria de fezes eu limpava tudo Eu lavava a roupa dela a roupa de cama e fazia comida e dava pra ela E ela fugia fugia ia na rua e eu tinha que fechar tudo todas as portas todas as janelas Eu fiz tudo sozinha tinha parentes que ajudaram mas foi coisa do momento Eu perguntava à filha ao lado à irmã na frente para ajudar mioloantroppmd 10022010 1442 242 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 243 a dar banho nela e ao marido se fosse necessário levar ela de um lugar para outro mas eu tinha força tinha saúde e fiz tudo A única coisa que não podia fazer era levar a mãe no colo fiquei triste por não poder fazer isto A sogra do irmão me chamou de heroína por ter cuidada sozinha da mãe Mas eu senti a maior satisfação que tive na vida de cuidar dela D E a Sra sentia só satisfação mais nada Celeste Eu me sentia muito nervosa estressada cansada porque a mãe fugia de casa e eu ficava acordada a noite toda e depois tive que enfrentar o dia Me senti esgotada cansada e até dava dor na barriga e eu achava que era nervos mas os filhos insistiram em me levar ao médico E eu disse a ele que estava nervosa porque estava tomando conta da minha mãe com Alzheimer E ele me examinou e me disse que não era nervos que eu estava com uma úlcera muito grande e precisava operar logo E eu não quis operar eu queria continuar tomando conta da minha mãe Mas o médico insistiu E aí o problema o que fazer com a minha mãe E sem eu saber o filho a filha o irmão e o filho dele se reuniram para resolver o problema Nenhum deles podia cuidar dela porque todos tinham empregos e famílias e crianças em casa E eles resolveram juntos colocar a minha mãe numa Casa de Repouso Cada um deu um dinheiro e juntaram isso com a aposentadoria da minha mãe A Casa de Repouso custava mil reais por mês mas a mulher lá viu que era gente pobre e só cobrou a metade do preço Eu fiz a operação e depois fiquei tão magra tão fraca que não podia nem andar sozinha Não pude mais cuidar mioloantroppmd 10022010 1442 243 244 da mãe E ela ficou lá na Casa de Repouso mas teve convulsão já tinha tido isso comigo e eu cuidava disso mas o pessoal lá não quis e mandaram ela internar no hospital E eu fui lá visitála todo dia E ela ficou lá e morreu lá no hospital Nunca mais voltou pra minha casa D E depois de sua mãe morrer como foi para a senhora C Aí Diana a morte dela me deixou mal senti muita tristeza porque eu gostava muito dela A filha insistiu em me levar a uma psicóloga eu disse a ela que estava sentindo muita tristeza por causa da morte da minha mãe e ela me disse que foi depressão e deu comprimidos para mim Mas não ajudou muito O que me ajudou foi o grupo da igreja Elas vieram me visitar em casa fizeram orações para mim e aos poucos eu melhorei Mas sabe que eu senti a maior satisfação que eu tive na vida cuidando dela Me sentia muito bem cuidando dela Tinha muito carinho por ela Com quase setenta anos à época da doença de sua mãe Celeste se descreve como forte e saudável As aflições que relata aparecem como resultado da natureza e do peso das atividades do cuidado e do progresso da doença da mãe mais do que em razão de problemas de saúde dela mesma Ela descreve ter cuidado de sua mãe praticamente sozinha Admirada por outros membros da família como heroína pelo seu autosacrifício e pela qualidade do cuidado que prestou ao mesmo tempo ela se sente obrigada a assumir o cuidado da mãe pelo seu amor por ela por ser obrigação das filhas e porque ninguém mais mioloantroppmd 10022010 1442 244 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 245 estava disponível Mendes se refere a tais mulheres como as heroínas do cotidiano Mendes 1998 Mas fica claro que Celeste está atuando no seio da coletividade de sua rede de parentesco que por sua vez cuida dela levaa ao médico quando percebe que ficou doente e coopera no cuidado com sua mãe quando Celeste tem de ir para o hospital6 A necessidade que estes parentes sentiram de arcar com a difícil obrigação financeira de enviar sua mãe para a Casa de Repouso quando Celeste ficou doente realça papel crucial dela no cuidado de sua mãe nesta rede ninguém mais se dispõe a tomar o seu papel de cuidadora porque não podem devotar a mesma qualidade de tempo e cuidado que ela como uma mulher mais velha que recebe aposentadoria pode fazer Quando ela adoece eles precisam recorrer ao cuidado institucional do setor formal Celeste é um exemplo do outro extremo dos valores comunitários sobre cuidados diferente da filha de D Edi que é acusada de fazer muito pouco Celeste é louvada como a heroína por fazer mais do que a comunidade espera destes cuidadores Este exemplo também ilustra as dificuldades e os custos para a saúde pessoal para os que cuidam de uma parente com a doença de Alzheimer Ainda que eu não tenha classificado as atividades e experiências dos cuidadores de acordo com doenças particulares do idoso de quem cuidam como é comum em estudos das ciências da saúde Caldas 2002 Santos 2006 meus exemplos aqui confirmam suas conclusões de que o cuidado mioloantroppmd 10022010 1442 245 246 de parentes com Alzheimer e outras demências apresentam dificuldades especiais e acarretam um custo especialmente angustiante A outra mulher que cuida da mãe com esta doença cuja história citei acima também se descreve neste período como muito nervosa tendo também desenvolvido uma úlcera Uma das mulheres com úlcera fez várias declarações apaixonadas durante nossa conversa sobre as alegrias e os sacrifícios pelos quais tinha passado durante o cuidado de sua mãe Muitos dos cuidadores também manifestaram seu prazer e satisfação com essas atividades especialmente quando cuidavam das mães e dos pais mesmo que todos os cuidadores mencionados declarem ter passado por aflições resultantes das suas responsabilidades e atividades como cuidadores diretos Isto levanta a questão discutida por Neri 2006 p 10 de que as responsabilidades e atividades do cuidado podem ser positivas ainda que sejam vistas na literatura mais ampla como negativas onde relatos de aspectos positivos deste cuidado são vistos como racionalizações de uma situação inevitável e não são levados a sério A LINGUAGEM DAS AFLIÇÕES Para iniciar a discussão sobre a linguagem das aflições eu gostaria de retornar ao exemplo de Celeste e sua descrição de suas aflições e das de sua mãe e salientar novamente que os termos usados por ela são todos termos usados comumente nesta comunidades Estes termos derivam de várias categorias mioloantroppmd 10022010 1442 246 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 247 incluem termos biomédicos termos descritivos leigos alguns com conteúdo particularmente emocional tal como tristeza o termo estresse que perpassa estas duas categorias e referências à popular doença dos nervos e nervoso Os termos biomédicos que ela usa são aqueles que foram oferecidos a ela por especialistas médicos para identificar as condições que eles diagnosticaram como biomédicas o AVC e o câncer de sua mãe sua própria úlcera ou como desordens mentais a doença de Alzheimer de sua mãe sua própria depressão Celeste expressa sua própria compreensão de suas aflições em termos descritivos que acompanham de perto o fardo das atividades diárias que conta realizar ela se sente cansadaesgotada nervosa tem dor de barriga e depois da morte da mãe sente tristeza Estes termos expressam tanto sua exaustão física e seu estado mental de tensão e angústia enquanto cuidava da mãe Em outras palavras são termos que expressam sua experiência incorporada os aspectos físicos e mentais do sobretrabalho e da preocupação coadunados em linguagem comum cotidiana Num contexto biomédico estes termos são considerados sintomas apresentando queixas que descrevem uma condição médica subjacente mais do que a condição em si mesma são os sintomas de apresentação a partir dos quais o diagnóstico é parcialmente derivado Este é o padrão nas consultas médicas Kleinman 1980 A linguagem das queixas de Celeste se modifica durante suas interações com a linguagem usada pelos médicos Seus mioloantroppmd 10022010 1442 247 248 encontros com a biomedicina produzem para ela uma reescrita da linguagem da doença Várias vezes durante este relato ela vai aos médicos levando os sintomas descritivos de sua aflição eles reinterpretam o diagnóstico dela traduzindoo da linguagem popular para a biomédica tratando suas queixas como sintomas e ressignificandoas em linguagem médica sua mãe não está esquecida tem Alzheimer Celeste não está nervosa ela tem uma úlcera Celeste diz à psicóloga que sofre de tristeza e a psicóloga lhe diz que não é tristeza é depressão Mas há mais nesta ressignificacao no processo de reinterpretar os médicos também desconectam a aflição da narrativa do sofrimento na qual está socialmente enraizada e na qual Celeste a expressou Os médicos ressignificam sua aflição como uma condição individual uma desordem orgânica ou mental enquanto descartam como irrelevante o enraizamento dela na doença e morte da mãe Taussig1992 No entanto é importante reconhecer também que nem todos aqueles que praticam a biomedicina necessariamente fazem isto Uma mulher cujo pai se viu preso à cama e esquecido depois de uma queda levouo várias vezes ao médico Quando perguntei se ele lhe tinha dado algum diagnóstico como doença de Alzheimer ela respondeu Não o médico nunca falou isto Pelo contrário ele sempre dizia que meu pai não tinha doença que era a idade mesmo Ao contrário do exemplo acima no qual os médicos medicalizaram a condição da mãe de Celeste este não medicalizou a idade avançada de seu pai mas encaroua como uma condição natural da vida mioloantroppmd 10022010 1442 248 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 249 Uma vez que os médicos fazem o diagnóstico biomédico Celeste tende a aceitar e usar os termos deles minha mãe tinha Alzheimer eu tinha uma úlcera eu sofria de depressão Mas ela continua a associar suas aflições mesmo em sua nova terminologia com o cuidado que prestou à mãe em outras palavras ela aceita a nova terminologia mas não aceita plenamente a separação da aflição da situação moral e social na qual se enraíza Continua a pensar estas aflições como emergentes do e vinculadas ao contexto da doença de sua mãe E sua visita ao psicólogo é significativa porque implicitamente enquanto Celeste pode ter aceito a linguagem do diagnóstico ela não abraça o tratamento e no fim rejeita sua eficácia em favor de benefícios maiores derivados das visitas e orações dos membros de sua igreja ela sente que são estes os restauradores de sua saúde As instituições religiosas são mencionadas na literatura sobre cuidado como fontes de ajuda para cuidadores em sofrimento ver Santos 2006 mas o que é significativo em termos de mima analise é que a ajuda que ela recebe dos membros da igreja local oferece um exemplo do enraizamento social da cura tanto quanto da aflição e da reafirmação dos valores comunitários O relato de Celeste sobre suas experiências com os médicos apresenta um exemplo bem claro do encontro entre o que Duarte 2003 chamou de forças individualizantes da biomedicina que interpreta as aflições de Celeste em termos biomédicos como isoladas do seu ambiente social e que mioloantroppmd 10022010 1442 249 250 mantém uma distinção cartesiana entre doenças físicas do corpo úlcera e doenças mentais depressão e as noções de Celeste sobre suas aflições mergulhadas nas relações sociais e abarcando tanto a dimensão física quanto mental da aflição Na sua afirmação estava nervosa porque estava cuidando da minha mãe com Alzheimer ela expressa o que é o cerne do que Duarte 19861994 2003 rotula de perturbações físico morais Perturbações físicomorais antes de tudo são relacionais isto é são concebidas como imersas nas relações sociais e elas emergem e oferecem expressões de situações sociais relacionais Mais ainda são físicomorais elas podem expressar doenças mentais e físicas como partes de uma mesma entidade Duarte2003177 Celeste expressa sua aflição em termos relacionais como decorrentes de seu papel como cuidadora da sua mãe enquanto que seu uso do termo nervosa compreende tanto sua dor de barriga quanto suas preocupações e ansiedades de cuidadora Duarte cuja conceituação deste termo advém de seu trabalho com a popular doença dos nervos vê nervos como representando e expressando a ordem relacional das classes populares no Brasil e mais amplamente das populações marginalizadas em outros lugares do mundo e como expressão da noção social relacional de pessoa em oposição à ideologia hegemônica do mundo moderno ocidental representada especialmente pela biomedicina que apresenta o modelo moderno do indivíduo Esta visão relacional da pessoa parece apropriada para as mioloantroppmd 10022010 1442 250 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 251 cuidadoras mulheres aqui apresentadas e para as vidas de outros membros mais velhos desta comunidade que de forma semelhante veem a si mesmos sobretudo como imersos nas redes de família e nas de comunidade que são constituídas e se cruzam com os laços de parentesco Eles vêem suas obrigações para com suas famílias e seus recursos como estando à disposição de suas famílias Eu sugeriria até que a situação de cuidado dos idosos doentes em casa é o espaço adequado para explorar as aflições relacionadas como perturbações físico morais ainda que esta estratégia mais do que explorar estas perturbações enquanto relacionadas a uma doença popular específica as exploraria como emergindo em situações sociais específicas situações que como esta análise sugeriu são capazes de gerar uma variedade de aflições NERVOS E NERVOSOS Os termos crise de nervos e nervosa ambos presentes na narrativa de Celeste e nas outras merecem discussão tanto porque aparecem frequentemente nestas narrativas como linguagem da aflição quanto porque eles têm um peso forte nos estudos antropológicos de saúde no Brasil especialmente através do trabalho de Duarte 1986 1994 O estudo etnográfico de Silveira 2000 sobre nervos é particularmente relevante para minha pesquisa uma vez que foi feito em outra comunidade nativa de Florianópolis Os informantes de Silveira a auxiliam a deixar claro uma importante distinção que também aparece no relato de Celeste mioloantroppmd 10022010 1442 251 252 entre sofrer dos nervos ou ter crises de nervos e estar nervosoa Estas duas condições foram um tanto confundidas na literatura antropológica porque ambas podem ser aludidas através do termo nervosoa Com base em seu trabalho de campo Silveira define nervos quando usado no sentido de sofrer dos nervos como um fenômeno polissêmico 2000 p 12 que pode abranger quase todo o corpo e as funções orgânicas inclusive as mentais indo desde a ansiedade ou um malestar indefinido até crises convulsivaspassando por formas variadas de agressividade ou apatia idem p11 À insistência de Duarte de que as perturbações tais como nervos tendem a ser condições de longo prazo com crises de perda de controle e explosões emocionais deve ser somada às constatações de Silveira bem como a constatação de que as pessoas que sofrem estas crises são consideradas pelos membros da comunidade como estando fora dos limites do comportamento normal da comunidade 2003 p117 ver também Alves 2002 p 162 Nervos pode também ter um componente de gênero Silveira menciona que nervos é definida em geral como uma doença de mulheres que quando estas manifestações aparecem entre mulheres são consideradas casos de nervos enquanto que os homens que têm os mesmos sintomas podem ser considerados dentro dos limites normais do compartamento masculino Silveira 200036 O uso que Celeste faz do termo crise de nervos para descrever o estado de sua mãe que precedeu ao diagnóstico médico de doença de mioloantroppmd 10022010 1442 252 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 253 Alzheimer seus acessos de agressividade perda de controle e convulsões estão de acordo com esta definição Como descobri em outras conversas o termo nervos neste sentido é usado na comunidade em que trabalho no mesmo sentido proposto por Duarte para se referir a mulheres que sofrem do que agora se rotula geralmente de problemas psiquiátricos 1994 e são estigmatizadas por esta condição dos nervos Silveira 200046 Doença dos nervos não se encontra entre as aflições destes cuidadores Longe de serem considerados como extrapolando os limites do comportamento normal são considerados modelos de comportamento correto heroínas Estar nervoso por outro lado é considerado como muito diferente de nervoso ou nervos atribuído àqueles que sofrem dos nervos ou que têm crises de nervos Silveira explica que pessoas na comunidade que estudou com freqüência são nervosas mas não sofrem dos nervos Como acentuam os nativos nervosoa isto qualquer um pode ser tanto faz se é homem ou mulher e por qualquer coisa que não vá bem já sofrer mesmo dos nervos felizmente são poucos os que sofrem de nervos 2000 p 14 Em outras palavras estar nervosoa é uma aflição mais comum e relativamente menos séria que pode atingir qualquer um e aqueles atingidos permanecem nos limites de normalidade da comunidade idemÉ neste sentido de estar nervosoa que Celeste e outros cuidadores com quem trabalhei e pessoas na comunidade falam É o termo que Celeste usa com maior freqüência no mioloantroppmd 10022010 1442 253 254 seu relato para descrever as aflições por que passa no cuidado com a mãe Seu uso aqui sugere que o termo nervosa compartilha a mesma qualidade polissêmica de doença dos nervos e abrange muitos aspectos de sua aflição tanto mental quanto física suas sensações de estar estressada esgotada e sua dor de estômago é este termo nervosa que ela tal como Dona Nilda usa para descrever sua aflição para o médico Eu disse pra ele que eu estava nervosa de cuidar da mãe com Alzheimer e é só quando ele a corrige para dizer que ela não está nervosa mas tem uma úlcera que ela aceita ter também um mal especificamente orgânico Significativamente até que a úlcera seja diagnosticada pelos médicos ambas as mulheres consideram seu estômago dolorido como sendo parte de seu estado de nervosa Ambas mostram que assim como doença dos nervos nervosa é um estado polissêmico que tanto pode se referir às aflições físicas quando mentais Ao se identificarem como nervosas Celeste e Nilda se viram em termos corporificados elas tinham reações corporais ao cuidado com suas mães cujos efeitos eram expressos sobre seus corpos e mentes inseparavelmente No entanto ainda que Celeste como outros dos sujeitos pesquisados continue a descrever a si mesma e a outros em sua família como estando nervosos esta situação pode estar mudando Celeste usa outro termo estresse que eu ouço também bastante entre as outras mulheres Ah hoje eu estou muito estressada tenho demais pra fazer e minha irmã vem mioloantroppmd 10022010 1442 254 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 255 hoje com a família para almoçar Assim como os termos nervosa estressada expressam as ansiedades e pressões criadas pelas demandas de situações sociais especificas Uma mulher a quem perguntei sobre estar nervosa responde Ah hoje ninguém mais usa o termo nervosa é tudo estresse depressão até esquizofrenia Ela colocava assim o termo estresse junto com outros da linguagem psicológica alegando que a linguagem popular dos nervos está sendo substituída por termos biomédicos científicos modernos Em seguida a este comentário ela fez referência a uma novela de televisão que estava passando na qual um dos personagens sofre de esquizofrenia observando que a apresentação da doença estava fornecendo ao publico uma compreensão dela melhor do que se tinha antes7 DISCUSSÃO Quero agora situar minhas informações sobre prestação de cuidados e a Terceira Idade no contexto mais amplo das transformações contemporâneas na família e na sociedade O cuidado de idosos doentes em casa aparece como crucial em relação a três desenvolvimentos importantes O alarme sobre os crescentes índices do envelhecimento da população brasileira e a proporção crescente de idosos na população e sua aumentada longevidade junto com o declínio da fertilidade e da mortalidade infantil da taxa de fecundidade da taxa de natalidade e conseqüente decréscimo do numero de crianças Franca e Soares 1997 p 146149 levanta novas questões sobre mioloantroppmd 10022010 1442 255 256 quem vai cuidar destes idosos O governo brasileiro não está equipado para fazêlo e tem emitido diretivas para que as famílias cuidem de seus parentes doentes e velhos em casa Santos 2006 Debert 1999 chamou a isto de privatização do envelhecimento Mais ainda as famílias brasileiras que devem arcar com o peso deste cuidado são vistas como em processo de desestruturação redução no tamanho de famílias extensas a famílias nucleares com menor número de crianças crescente instabilidade em virtude do divórcio perda de coesão e aumento dos conflitos de gênero e gerações Costa lamenta que o lar moderno deixou de cumprir suas antigas funções Em vez de propiciar carinho e proteção estaria fomentando a Guerra entre os sexos e as gerações Costa 198711 citado por Franca e Soares 1997 ver também Lins de Barros 1987 Muitos temem o impacto devastador destes fatores sobre a habilidade das famílias de cuidar de parentes idosos em casa Chaimowitz 1998 apesar de que pesquisadores também dizem que esta visão sinistra de uma família brasileira crescentemente disfuncional tem sido contestada e está dando lugar a uma noção mais matizada e complexa da pluralidade das composições familiares Alves 208 p 126 Enquanto isso as famílias num amplo espectro de localidades e classes sociais continuam a cuidar de seus idosos doentes em casa na verdade Santos 2006 p 10 sugere num paradoxo que tal cuidado aumentou nos últimos 10 anos mioloantroppmd 10022010 1442 256 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 257 Em minha pesquisa com idosos cuidando de idosos doentes em casa tive poucas evidencias destes processos de desestruturação mas preciso dizer que tenho trabalhado principalmente com mulheres de uma geração mais velha entre as quais tais mudanças são menos evidentes Mesmo nas meus questionamentos sobre as gerações mais jovens ainda encontro relativamente pouca evidência de tais rupturas familiares Ao contrário o que chama a atenção é a estabilidade das unidades residenciais muitos filhos e netos continuam a viver nos terrenos de seus pais na comunidade e encontrei também a cooperação e solidariedade intergeracional continuada nas redes de cuidadores que são mobilizados para atender os idosos doentes Este fato é um argumento contrário ao da dissolução familiar E ainda que a interface de gênero geração classe social e etnicidade que produziu as obrigações assumidas por estes cuidadores mais velhos esteja certamente mudando pareceme provável que as obrigações continuem a motivar atitudes ainda que talvez sejam constituídas de novas formas Meu estudo nesta comunidade sugere que ao menos por agora os valores comunitários continuam a exercer pressão sobre as mulheres para que cuidem dos idosos de sua família sem que haja pressão ou coerção aparente das políticas públicas Em outras palavras este grupo produz imperativos para o cuidado dos idosos doentes por si mesmo e assim reproduz as diretivas do Estado sem a intervenção deste O Estado se mioloantroppmd 10022010 1442 257 258 beneficia dos valores da comunidade geradores dos imperativos morais que orientam estes cuidadores da terceira idade Uma segunda questão se relaciona às minhas observações que as cuidadoras de idosos neste estudo são elas mesmas membros do Grupo de Terceira Idade Ainda que este grupo seja autoseletivo de idosas e eu certamente não quero dizer que todos os cuidadores sejam idosos sua visibilidade nesta comunidade levame a duas observações Uma di respeito às questões de gênero e envelhecimento e a outra às relações entre a terceira e a quarta idade Em relação a gênero e envelhecimento as mulheres mais velhas e as de gerações mais velhas especialmente viúvas tem sido descritas na literatura sobre comunidades nativas Motta 1998 Silva 2006 e outras Brito da Motta 2002 p 45 Faircloth 1998 p 8 como pessoas com maior liberdade sendo mais livres das restrições de gênero e de responsabilidades domésticas para com suas famílias do que em períodos anteriores de sua vida A pressão doméstica continuada sobre os idosos enquanto avós para que cuidem de seus netos tem sido discutida não só em termos da importância de seus laços afetivos com seus netos mas também como cargas impostas a eles pelos filhos às vezes encaradas pelos idosos com relutância e mesmo hostilidade como fica evidenciado na nomenclatura vovós babás Lins de Barros 1987 p 68 ou serviços de avós como auxiliares domésticas Brito da Motta 1999 p 214 No entanto não conheço discussões que abordem a maior mioloantroppmd 10022010 1442 258 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 259 liberdade declarada das idosas em relação aos deveres domésticos na idade avançada e no contexto de das obrigações familiares de cuidar de idosos doentes da sua geração ou de uma anterior Minha pesquisa sugere que nesta geração de idosas desta comunidade tais liberdades das mulheres mais velhas podem ser exageradas no discurso ao menos são condicionais à saúde dos outros idosos na família Suas responsabilidades de gênero para o cuidado dos dependentes em casa pode continuar à medida que envelhecem e pode ser invocada a qualquer momento impondolhes uma carga pesada e em geral por longo período Estas são obrigações como mostrei difíceis de evitar e que significam que a liberdade aparente pode ser súbita e drasticamente abreviada Se a participação no Grupo de Terceira Idade for vista na medida das novas liberdades para as mulheres mais velhas a necessidade destas mulheres de se ausentarem destas atividades durante os períodos de cuidados com os idosos oferece evidência poderosa de suas possibilidades restritas de aproveitar estas liberdades Elas podem ganhar muito respeito tornaremse heroínas em suas famílias e na comunidade um heroísmo que celebra não só suas realizações pessoais mas as coletivas uma heroína reforçando o papel modelo Elas podem manter laços afetivos próximos com parentes idosos e doentes e ter prazer no cuidado e querer prestálo mas ao mesmo tempo na realidade tem pouca escolha é um heroísmo forçado Como sugeri as mulheres que resistem a cumprir este papel de cuidadoras mioloantroppmd 10022010 1442 259 260 perdem o respeito tanto da família quanto da comunidade Além de circunscrever suas liberdades tais atividades de cuidadoras têm custos de saúde reais como mostrei na discussão da linguagem das aflições Estresse ansiedade angústia e outros sintomas psicológicos e físicos ou físico morais são produzidos neste cuidado e o impacto na saúde destas mulheres pode ser maior por causa de sua idade mais avançada no momento em que assumem os encargos do cuidado Como as experiências destas cuidadoras se relacionam com as discussões sobre a terceira e quarta idades Argumento que elas oferecem evidência de que a terceira idade é que cuida da quarta idade As mulheres cuidadoras que tenho discutido aqui estão todas acima dos sessenta anos encaixandose assim no critério de participação nos Grupos de Terceira Idade ainda que como a maioria nestes grupos não se considerem velhas Alves 2008 p132 Debert 1999 Leibing 2005 Elas são idosas cuidando de outros idoso ainda que sejam em geral mais moças de 61 a 75 do que os idosos de quem cuidam cuja idade está entre os 80 e os 95 No entanto na terminologia atual são membros da terceira idade cuidando da quarta idade uma vez que a distinção entre estas idades não está marcada pela idade cronológica mas por diferenças nas condições físicas e no estilo de vida A terceira idade é definida como a idade do período após a aposentadoria entre idade adulta e a velhice Leibing 2005 p 18 e está baseada na idéia de prolongamento mioloantroppmd 10022010 1442 260 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 261 da meia idade promovendo um compromisso com o envelhecimento positivo e o prolongamento da alegria de viver através de atividades que mantenham a saúde física ofereçam prazer e lazer e mantenham a independência e a autonomia A quarta idade por contraste é uma contra categoria negativa em relação à terceira idade na qual são projetados todos os aspectos negativos do envelhecimento associados com o declínio físico e a dependência de outras pessoas Leibing 2005 p 18 A linha entre estas categorias é frágil a transição de uma a outra ocorre com o declínio físico e isto tem sido visível no Grupo de Terceira Idade com que tenho trabalhado nos últimos quatro anos na medida em que os membros adoecem súbita ou gradualmente e deixam o grupo para serem cuidados em casa perdendo sua independência Alguns pesquisadores enfatizam a interdependência entre estas categorias alegando que os relatos otimistas sobre a terceira idade só resultam possíveis por que se projeta na escura quarta idade todos os aspectos negativos do envelhecimento Twigg 2003 p 146 Leibing 2005 Outros sugeriram ou afirmaram diretamente que a onda atual de atenção à terceira idade com a promoção de atividades para velhos saudáveis tem tirado a atenção e os recursos das necessidades dos velhos da quarta idade dependentes e doentes e levado a negligenciá los ver por exemplo Debert1999 Esta acusação pode ter alguma verdade no entanto deve ser qualificada pela minha evidência de que as mulheres da mioloantroppmd 10022010 1442 261 262 terceira idade estão ajudando a cuidar dos indivíduos da quarta Cohen 1055 p 319 adverte que um etnógrafo deve prestar muita atenção à relação entre aquele que fala e o corpo em processo de envelhecimento De um ponto de vista institucional aquilo que ele designa como conhecimento sobre o corpo em processo de envelhecimento em abstrato pode ser verdadeiro que a atenção às atividades da terceira idade tenha levado à negligência das necessidades dos idosos dependentes da quarta idade No entanto os casos estudados aqui a que Cohen se referiria como conhecimento sobre um corpo particular em processo de envelhecimento sugerem que longe de retirar atenção e recursos do cuidado com idosos dependentes da quarta idade os membros da terceira idade nesta comunidade estão ativamente engajados no provimento de cuidado para os idosos dependentes e são decisivos ao fazê lo Outro estudo em Florianópolis também mostra que a maioria dos cuidadores de idosos doentes em casa são eles mesmos idosos Santos 2006 p 102 Seguindo a lógica desta evidência as atividades oferecidas aos membros deste Grupo de Terceira idade a ginástica a vida social os passeios ajudam nos a permanecer saudáveis e ativos tornandoos disponíveis para cuidar dos idosos da quarta idade em suas próprias famílias e também a retardar o tempo em que eles se tornarão idosos doentes em suas casas Este cuidado de uma idade por outra idade acontece dentro da família longe da visão pública de forma que esta importante contribuição das atividades da mioloantroppmd 10022010 1442 262 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 263 terceira idade no cuidado dos idosos dependentes deixou de ser notada A conexão entre tais atividades cuidadoras e a participação nos Grupos de Terceira Idade em comunidades tais como esta só se tornam visíveis quando ambos são vistos juntos no contexto das práticas e valores das comunidades locais Estes dão o sentido da interdependência ou melhor da dependência da terceira e quarta idades entre si Cuidadores da terceira idade cuidam dos parentes da quarta os da terceira idade se tornam parte da quarta necessitando deste cuidado e tendo a esperança de que serão cuidados para reproduzir desta vez do outro lado o drama cíclico da necessidade e do cuidado Isto me conduz a outra questão relativa à importante distinção entre o conceito de Terceira Idade como uma ideologia e como é vivido e praticado pelos membros de uma comunidade em particular Terceira Idade apresenta uma imagem nova de envelhecimento bem sucedido associada à ambição ao aprimoramento de si e à independência focada na competência e no esforço individuais que não leva em conta a importância da interdependência social na idade avançada Luborsky 1995 p 278 Leibing 2005 Terceira Idade é concebida como uma ideologia de comprometimento com a saúde individual autonomia e prazer que traz consigo os valores da classe média associados à sua origem francesa e influência americana Leibing 2005 Apresentase como outro exemplo do que Duarte chama de ideologia individualizante hegemônica do mundo moderno ocidental No entanto na mioloantroppmd 10022010 1442 263 264 comunidade na qual tenho trabalhado a ideologia da Terceira Idade tem sito ressignificada pelos membros do grupo que veem o grupo como um lugar de apoio e que reforça seus valores relacionais e seu sentido de conexão social Eles preservam sua saúde não só para satisfação e prazer individuais para gozar a vida mas de forma condizente com os parâmetros da responsabilidade familiar Assim me comentou uma pessoa eu fico muito triste tenho muita pena de faltar na ginástica eu preciso dela para ficar forte e saudável de jeito que eu possa cuidar de minha família Minha família precisa de mim Estas mulheres mais velhas conhecem e aceitam seu papel crucial de cuidar de seus lares As ideologias que produzem instituições tais como os Grupos de Terceira Idade podem ser individualizantes mas de novo nesta dimensão vivida são moldadas pelas práticas de uma comunidade particular Este ponto de que a vida social começa nas relações sociais elas mesmas e pode ter um efeito transformador das ideologias confirma o argumento de Duarte discutido acima Continuando esta discussão Duarte argumentou persuasivamente que as doenças nas classes populares estão imersas em redes de relações e que as conceitualizações de doença especialmente como são representadas na doença dos nervos imersas nestas relações são em grande parte independentes de ou resistentes à hegemonia ideológica e conceitual do pensamento científico ocidental com seus dualismos como mente e corpo e sua linguagem científica mioloantroppmd 10022010 1442 264 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 265 individualizante A questão colocada por minha pesquisa é o que acontece nas classes populares quando pessoas como estas cujas narrativas apresentei aqui começam a usar a linguagem da medicina científica As mulheres cuidadoras que mostrei são membros de uma vizinhança que pertence às classes populares de fato estas mulheres mais velhas muitas das quais são quase analfabetas que foram criadas e criaram seus filhas no que ainda era uma comunidade camponesa podem ser consideradas como estando especialmente distantes do mundo urbano contemporâneo A vizinhança na qual suas vidas se alicerçam é caracterizada por relações de parentesco densas e sustenta uma comunidade moral poderosa que se manifesta nas redes de cuidadores e na ética do cuidado dos mais velhos por parentes em suas casas No entanto os modos de expressão destas mulheres utilizam a linguagem da ciência moderna Citei uma opinião vinda do seio da comunidade que sugere que a linguagem dos nervos está sendo suplantada pela linguagem da ciência médica e observei isto eu mesma nas conversas com outros na comunidade Encontrei relativamente poucas evidências das muitas categorias folk ou populares que encontrei em meados dos anos 1970 entre membros das classes populares na periferia da cidade de Campinas São Paulo onde discussões elucidavam rotineiramente miríades de doenças incluindo nervos de adultos tanto quanto de crianças como também era o caso da elite local com quem também trabalhei Brown 1980 1992 mioloantroppmd 10022010 1442 265 266 Ao contrario surpreendime nesta comunidade de Florianópolis com a adoção e uso cuidadosos da linguagem biomédica pelas pessoas Ao discutirem problemas de saúde estas mulheres fazem questão de usar a terminologia médica própria e se orgulham de poder fazêlo não só as pessoas mais jovens da comunidade mas também aquelas com 60 70 e 80 anos Por exemplo elas falam rotineiramente e com confiança de radioterapias quimioterapias operações de aneurisma no abdômen sobre aqueles que sofrem isquemia cerebral um AVC uma hérnia inguinal tireoidismo Mais ainda estas mulheres estão muito ansiosas por aprender a usar computadores e se inscrevem no curso básico oferecido pela igreja local Elas querem ser capazes de se comunicar com seus filhos e parentes em outros lugares mas também querem a satisfação de serem capazes de compreender e participar do mundo moderno É isto que parece também motiválas no domínio das complexas linguagens da biomedicina e da psicologia Pareceme que as mulheres de idade mais do que os homens talvez avaliam bem os benefícios da modernidade Quando perguntei aos homens de idade que tinham sido principalmente pescadores sobre os velhos tempos e se eles achavam que estavam melhor ou pior agora eles tipicamente respondiam que preferiam o passado quando tudo era sossegado e eles podiam realizar sem interferências a atividade que mais mioloantroppmd 10022010 1442 266 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 267 identificam com sua identidade masculina pescar As mulheres tendem a responder de outra forma que elas acham a vida agora muito melhor do que era no passado Citam as vantagens da eletricidade da água corrente das estradas dos supermercados tudo que fez suas atividades domésticas ficarem mais fáceis Esta reação de gênero às mudanças modernas talvez também influencie o interesse que elas manifestam pela terminologia biomédica e pelos computadores A linguagem científica e as categorias de doença parecem estar tomando o lugar do léxico das doenças populares ao mesmo tempo em que estas mulheres mais velhas se mantém socialmente imersas nas suas famílias e comunidades Elas estão encontrando e se apropriando claramente da terminologia da biomedicina na verdade elas estão saboreando este processo Ao mesmo tempo a aceitação da nova linguagem biomédica não parece ter trazido com ela as tendências individualizantes da separação dualista de corpomente da tradição hegemônica moderna de onde deriva É até possível que as classes populares estejam se apropriando da linguagem médica para situála no seu próprio campo social para suas próprias finalidades usandoa na mediação de situações de obrigação social ao mesmo tempo em que retêm a natureza relacional e físico moral de sua compreensão e aplicação destes termos mioloantroppmd 10022010 1442 267 268 Agradecimentos Quero agradecer ao CNPq pela bolsa de Pesquisador Visitante na UFSC no período 20052007 Agradeço também a Sônia Maluf pela paciência a Jean Langdon e Cleide Albuquerque pelas sugestões e comentários durante a pesquisa de campo e a Maria Amélia Dickie por toda a ajuda apoio e pela tradução do inglês NOTAS 1 Tenho acompanhado as atividades de seus membros a cada ano entre os meses de junho a agosto 2 Rial 1994 mostrou que em anos recentes esta designação negativa significando algo como caipira foi ressignificada para expressar exotismo e o ser pitoresco 3 Este padrão residencial reflete os padrões de ocupação da terra que datam do século XVIII quando a Coroa Portuguesa deu posse de terra para estas famílias imigrantes na forma de estreitas faixas de terra que iam do mar até o topo das colinas circundantes Campos 1991 Ainda que tenham perdido ou vendido parte desta terra para os de fora a lei ainda reconhece seus direitos de usufruto sobre quantidades significativas de terra 4 Mendes 1998 ver também Neri 200626 propõe uma serie de imperativos que definem as determinações de quem será o cuidador principal de um parente doente Estes incluem parentesco com frequência maior para os cônjuges antecedendo sempre a presença de algum filho gênero com mioloantroppmd 10022010 1443 268 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 269 predominância para a mulher proximidade física considerando quem vive mais perto da pessoa que requer os cuidados e proximidade afetiva destacando a relação conjugal e a relação entre pais e filhos 5 Não deveríamos assumir que a proximidade de parentesco se traduza sem problemas em proximidade corporal 6 Tal arranjo em que parentes juntam dinheiro é às vezes chamado de monte Rial 1988 Silva 2006 7 O termo estresse é um substituto interessante para nervos Na medida em que tem sido popularizado e agora é um termo leigo tendo se tornado parte do léxico nativo sob a influencia dos termos biomédicos usados pelos agentes de saúde e pela media sua origem está na ciência médica De fato também é considerado pelos médicos como m termo de diagnostico biomédico suficientemente amplo e vago para aqueles que dizem que estão sofrendo dos nervos Silveira 2000 p 66 Por isto é um termo eu faz a ponte entre termos leigos usados na comunidade e as terminologias medicas modernas BUCHILLET Dominique org A antropologia da doença e os sistemas oficiais de saúde In Medicinas tradicionais e Medicina Ocidental na Amazônia Belém MPEB Cnpq SET PR CEJUP UEP 1991 CNBB REGIONAL SUL IV Manual da Pastoral da Saúde Florianópolis CNBB Regional Sul IV 2000 DUARTE Luiz Fernando Dias A outra saúde mental psicossocial físicomoral In ALVES Paulo Cesar MINAYO REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS mioloantroppmd 10022010 1443 269 Maria Cecília de Souza orgs Saúde e doença um olhar antropológico Rio de Janeiro Ed Fiocruz 1994 P 8390 Da vida nervosa nas classes trabalhadoras urbanas brasileiras Rio de Janeiro JZECNPq 1986 Indivíduo e pessoa na experiência da saúde e da doença Ciências Saúde Coletiva v 8 n1 pp 173183 2003 Investigação antropológica sobre doença sofrimento e perturbação uma introdução In LEAL Ondina F DUARTE Luiz Fernando D orgs Doença sofrimento perturbação perspectivas etnográficas Rio de Janeiro FIOCRUZ 1998 FOUCAULT Michel A casa dos loucos In Microfísica do poder Rio de Janeiro Edições Graal 1979 P 113128 MALUF Sônia Weidner Antropologia narrativas e a busca de sentido Horizontes Antropológicos Porto Alegre v 5 n12 Dezembro de 1999 6982 Peregrinos da Nova Era itinerários espirituais e terapêuticos no Brasil dos anos 90 Antropologia em Primeira Mão Florianópolis PPGASD UFSC 2007 526 RABELO Miriam C Narrando a doença mental no Nordeste de Amaralina relatos como realizações práticas In RABELO Miriam C ALVES P C SOUZA I M orgs Experiência de doença e narrativa Rio de Janeiro Editora Fiocruz 1999 ALVES Paulo Cesar Tecendo o Self e Emoção nas Narrativas de Nervoso In RABELO Miriam C ALVES Paulo Cesar SOUZA I M orgs Experiência de doença e narrativa Rio de Janeiro Editora Fiocruz 1999 mioloantroppmd 10022010 1443 270 SILVEIRA Maria Lúcia O Nervo Cala o nervo fala A linguagem da doença Rio de Janeiro Editora Fiocruz 2004 SOUZA I M Um retrato de Rose Considerações sobre processos interpretativos e elaboração de história de vida In LEAL O F DUARTE L F D orgs Doença sofrimento perturbação perspectivas etnográficas Rio de Janeiro FIOCRUZ 1998 mioloantroppmd 10022010 1443 271 mioloantroppmd 272 10022010 1443 O campo da saúde mental e da reforma dos modos de cuidar em saúde mental especificamente o processo da reforma psiquiátrica brasileira tem se mostrado um terreno profícuo para a construção de entendimentos acerca dos processos que atravessam tanto a prática cotidiana da assistência e a militância política como a produção teórica necessária para a superação de práticas asilares que tendem a reforçar o estigma e o preconceito para com a loucura e o louco este último entendido segundo Pelbart 1990 como o personagem social produzido com o encargo simbólico de corporificar a loucura As reflexões trazidas no decorrer deste trabalho têm como objetivo discutir aspectos relacionados à questão do gênero no âmbito da assistência militância e política pública no movimento1 da reforma psiquiátrica brasileira iniciado na década de 70 a partir do questionamento dos saberes e práticas psiquiátricos e o espaço do hospital psiquiátrico como local de tratamento É importante entender que a emergência deste O GÊNERO NO MOVIMENTO DA REFORMA PSIQUIÁTRICA BRASILEIRA Ana Paula Müller de Andrade mioloantroppmd 10022010 1443 273 274 movimento foi fruto de um momento histórico no qual os movimentos sociais exerceram um papel fundamental na conquista de direitos e também espaços de abertura e discussões sobre a realidade sóciopolítica e de algumas verdades tomadas até então como absolutas Em sua análise sobre os diferentes movimentos de Reforma Psiquiátrica no mundo Itália França Estados Unidos dentre outros países Desviat 1999 mostra como o contexto pósSegunda Guerra aliado a outros fatores como o advento dos psicotrópicos e da psicanálise foram elementos propulsores destes que aconteceram de maneiras distintas nos diferentes países em que ocorreram O processo da reforma psiquiátrica brasileira teve seu início e foi desencadeado tendo como contexto o país em processo de democratização e especificamente um diálogo estreito com a experiência italiana2 que já iniciara seu processo de reforma psiquiátrica aprovara a Lei 180 e já fechara os hospitais psiquiátricos Iniciado por trabalhadores da saúde e sustentado até os dias de hoje por diversos atores tais como usuários dos serviços familiares trabalhadores da saúde e também de outros campos do conhecimento tal processo ganhou força em um encontro na cidade de Bauru em 1988 reunindo todos os envolvidos e que com a criação do lema Por uma sociedade sem manicômios impulsionaram o movimento da reforma psiquiátrica no país e reforçaram a necessidade de transformações no campo da saúde mental mioloantroppmd 10022010 1443 274 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 275 Em 2001 após vários anos de tramitação no Congresso Nacional e de mobilizações da sociedade civil organizada o país aprovou a Lei 10216 Brasil 2004 que estabelece direitos para os portadores de transtornos mentais e redireciona a assistência psiquiátrica no país indicando a criação de uma rede de serviços comunitários que substitua o hospital psiquiátrico Desde a aprovação da lei muitos serviços de saúde mental baseados nos pressupostos do modelo psicossocial3 de cuidado CAPS NAPS Serviços Residenciais Terapêuticos além da articulação com a Atenção Básica através da Estratégia de Saúde da Família vêm sendo implantados de forma heterogênea em todo o país A proposta de assistência nestes serviços prevê a formulação de um projeto terapêutico que contenha propostas capazes de superar a simples assistência e incorporar uma nova forma de cuidar contribuindo para a invenção de novas perspectivas de vida e de subjetivação para os sujeitos Estes serviços deveriam estar orientados dentro de uma proposta territorial para permitir a organização da rede de cuidados em saúde mental na comunidade o mais próximo possível da população a ser atendida A construção destes espaços tem produzido novos sentidos e despertado inúmeras inquietações acerca dos avanços e retrocessos do movimento da reforma psiquiátrica por se tratar de um processo bastante inovador original e prolífero permeado por inúmeras iniciativas práticas e de transformação com o surgimento de novos atores e protagonistas e uma emergente produção mioloantroppmd 10022010 1443 275 276 teórica na qual novas questões surgem no cenário do campo da saúde mental Amarante 1996 p14 Ao propor uma transformação no âmbito das relações da sociedade com as questões da saúde mental dentre as inúmeras questões que o movimento de reforma psiquiátrica no Brasil despertou na busca pela desinstitucionalização4 da loucura podemos reconhecer no mínimo três pontos estabelecidos para que tal reforma pudesse avançar e alcançar seus objetivos Eles serão apresentados aqui em separado mas são completamente interligados Um deles estaria situado no âmbito da extinção progressiva dos leitos em hospitais psiquiátricos que pragmaticamente deslocaria o hospital da pessoa que sofre Com a tentativa de superação do entendimento tanto da loucura como do louco o cuidado exercido nos serviços de saúde mental criados a partir do processo de desinstitucionalização diferentemente do hospital psiquiátrico pressupõe espaços para a produção de outros modos de subjetivação não só para as pessoas que sofrem mas também para os profissionais e os familiares espaços estes que superem aqueles impostos pela cultura manicomial uma vez que o hospital psiquiátricoasilo e o isolamento através de suas práticas asilares acabam com as possibilidades de significação pelos sujeitos sendo também como sugeriram Rotelli Leonardis e Mauri 2001 um lugar zero dos intercâmbios sociais mioloantroppmd 10022010 1443 276 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 277 Neste sentido no desenvolvimento da pesquisa Gênero subjetividade e saúde mental pudemos perceber o quanto o gênero tem estado presente no cenário da saúde mental e tem se constituído num outro regime de subjetivação revelando uma importante interface gênero e saúde mental Percebemos também que ainda que a categoria gênero não esteja presente nas políticas de saúde mental nas diferentes esferas de governo bem como no discurso dos trabalhadores e militantes e nos projetos terapêuticos dos serviços sua presença no campo assistência se inscreve de forma significativa exigindo esforços para a compreensão desta interface com a qual este trabalho pretende contribuir PARTICULARIDADES DO PROCESSO GÊNERO E SAÚDE MENTAL Com base no exposto anteriormente e a partir dos dados da pesquisa em suas diferentes dimensões podemos perceber que tanto a saúde mental quanto o gênero vem se constituindo como regimes de subjetivação que se desdobram não apenas nas políticas públicas como também nos modos de cuidar e buscar cuidados nos serviços de saúde mental O gênero conforme apontam Rohden 2001 e Laqueur 2001 tem estado presente nas concepções da medicina de forma significativa a partir do século XIX e o conjunto de concepções que advém desse saber tem instituído uma série de concepções ligadas em especial as questões reprodutivas e às assimetrias de gênero historicamente construídas Tais concepções se inscrevem também no campo das representações mioloantroppmd 10022010 1443 277 278 quanto ao sofrimento psíquico entendido tanto no modelo dos nervos como no modelo da saúdedoença mental6 e atravessam as concepções quanto a sua etiologia e terapêuticas Em sua análise sobre a construção da ginecologia como uma ciência da diferença Rohden argumenta que é possível dizer que as teorias da insanidade e das doenças dos nervos nas mulheres baseada no predomínio da função reprodutiva foi predominante no século XIX porque as mulheres também experimentavam suas vidas reprodutivas como problemáticas 2001 p30 É possível perceber que as teorias da insanidade atualizadas nos dias de hoje marcam o campo da saúde mental seja na assistência militância ou política pública e se encontram permeadas por uma racionalidade biomédica e psicologizante Nesse sentido diante das mudanças produzidas pelo movimento da reforma psiquiátrica brasileira bem como pela disseminação de uma cultura psicanalítica tal como apontado por Figueira 1988 ou então como apontou Maluf 2006 de um possível deslocamento entre as camadas populares urbanas brasileiras em anos recentes da configuração dos nervos para um modelo que combina psicologização e medicalização da subjetividade percebese que há um alargamento do campo do que é considerado patológico mais precisamente sobre a experiência do sofrimento mental Um ícone deste processo pode ser reconhecido na intensificação do diagnóstico da depressão a partir do modelo mioloantroppmd 10022010 1443 278 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 279 biomédico em especial entre as mulheres Esta intensificação diagnóstica combinada com a sua hipermedicalização apontaria para uma contradição do que foi sugerido por CostaRosa 2000 no que diz respeito ao estreitamento da faixa do tratável na perspectiva do modelo psicossocial em que não se pretenderia tratar todas as experiências como problemas de saúde mental dada a complexidade das mesmas Tal contradição aponta para uma possível limitação ou dificuldade enfrentada pelo movimento da reforma psiquiátrica na consolidação de um de seus pressupostos onde ao invés de se atentar para a convivência com a diferença e a pluralidade de experiências há uma atenção voltada predominantemente para o diagnóstico a categorização a ordenação e a classificação das experiências de vida O gênero tal como exemplificado neste processo tem marcado assim as concepções e teorias acerca do sofrimento insanidade bem como as políticas públicas a militância e a prática assistencial tal como apontou Silveira Além disso gênero tem motivado o atendimento diferenciado na assistência médica seja pela especificidade de características médico fisiológicas seja pelos preconceitos e estereótipos médicos a ele ligados 2000 p84 Estas marcas ainda que não estejam presentes explicitamente no rol de preocupações dos envolvidos no movimento da reforma psiquiátrica são reconhecidas pela maioria destes Quando se questiona sobre qual é o público mioloantroppmd 10022010 1443 279 280 que recorre aos serviços de saúde mental de alta média ou baixa complexidade seja entre gestorases eou trabalhadoras es a resposta é sempre a mesma as mulheres Tal fato faz pressupor que a pouca preocupação com uma particularidade tão marcante neste campo possa ser entendida como fruto de um entendimento de uma natureza feminina do sofrimento afetivo Como foi apontado por Rohden quanto a uma concepção de natureza feminina ligada a questões biológicas o útero Daí derivaria a idéia de que as doenças das mulheres nada mais seriam do que a expressão mesma de sua natureza Na medida em que são mulheres são também doentes e são doentes porque são mulheres 2001 p16 E por isso não se envidaria esforços para um entendimento maior disso Outros estudos7 têm apontado para o fato de que as práticas assistenciais apresentam uma significativa presença da dimensão do gênero tanto pela busca de alívio do sofrimento pelas mulheres nas unidades de saúde quanto pelo relacionamento que as mesmas estabelecem com seus pares no seu cotidiano nos seus lugares de convivência e sociabilidade Como sugeriu Maluf 2006 7 Nos estudos antropológicos sobre saúde mental distúrbios psicológicos eou perturbações nervosas o gênero tem aparecido em sua relevância etnográfica tanto quantitativa pelo alto índice de mulheres sofredoras desse tipo de perturbação quanto qualitativa pelas especificidades da experiência social feminina da doença e do sofrimento psicológico físico moral ou do nervoso mioloantroppmd 10022010 1443 280 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 281 De toda maneira falar da superação de práticas asilares em relação ao gênero é também falar da experiência de mulheres acometidas pelo sofrimento psíquico que por não terem sido asiladas em função de suas diferenças eou sofrimentos podem produzir novos significados para sua experiência de sofrimento e que procuram atendimento nas unidades de saúde para alívio do mesmo traçando itinerários terapêuticos diversos Nestes itinerários e mais especialmente nas unidades de saúde é possível perceber que o gênero se produz por uma complexidade de fazeres onde os saberes e os poderes se inscrevem Especialmente quanto às mulheres esses são visivelmente marcados em seus corpos e subjetivamente experimentados pela intensa medicalização de seus sofrimentos Assim as transformações produzidas pelo movimento da reforma psiquiátrica brasileira têm gerado transformações na vida de inúmeras pessoas que passaram a compor o cenário da saúde mental no país e que tem experimentado diferentes modalidades de atenção Destaco aqui uma consideração importante de Rotelli quanto a estas transformações Estamos sempre mais convencidos de que o trabalho terapêutico seja este trabalho de desinstitucionalização voltado para reconstruir as pessoas como atores sociais para impedirlhes o sufocamento sob o papel o comportamento a identidade estereotipada e introjetada que é a máscara que se sobrepõe à dos doentes e também à das mulheres8 Que tratar signifique mioloantroppmd 10022010 1443 281 282 ocuparse aqui e agora para que se transformem os modos de viver e sentir esse sofrimento do paciente e que ao mesmo tempo se transforme sua vida concreta quotidiana 2001 p94 Por isso é importante compreender como o movimento da reforma psiquiátrica e o modelo psicossocial por ele proposto tem conseguido considerar as relações estabelecidas pelas mulheres nos seus espaços de cuidado convivência e sociabilidade Além de pensar nestas relações também é necessário entender os objetivos para os quais estes serviços foram criados e como pensar sobre os mesmos na perspectiva apontada por Bezerra de que qualquer dispositivo de cuidado CAPS ou outros visa não apenas evitar o sofrimento desnecessário mas também criar espaços de tolerância e modos de acolhimento e convivência com aquilo que na vida subjetiva é da ordem do intratável do inevitavelmente doloroso do que não tem remédio nem nunca terá 2004 p 27 O sofrimento é entendido aqui não apenas como uma categoria nosográfica mas como uma experiência subjetiva e elemento mediador das mulheres nas suas relações cotidianas Silveira em sua pesquisa sobre a questão dos nervos numa comunidade do Campeche demonstrou como a questão dos nervos é traduzida na sua dimensão relacional e sociocultural no sentido de que se apresenta como um mediador das relações naquela comunidade argumentando que mioloantroppmd 10022010 1443 282 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 283 Na sua multiplicidade de apresentações usos e finalidades pude compreender os casos dos nervos entre as mulheres do Campeche como atos ou cenas representativas de crises dentro dos dramas sociais que se desenvolvem a custa de situações relacionais as quais demandam formas coletivas de resolver ou de reequilibrar o grupo social envolvido 2000 p89 Entendo ser importante destacar que a questão relacional não diz respeito apenas à relação profissional usuária mas das demais relações travadas pelas pessoas nas suas experiências de vida social familiar profissional dentre outras Retomar esta discussão em conjunto com o entendimento de sujeito que está por trás da proposta da reforma psiquiátrica e por dentro do movimento social que lhe deu origem é indicar que ao que se pode perceber apesar dos avanços representados pela transformação dos modos de cuidar em saúde ainda é possível reconhecer a manutenção de uma lógica manicomial que persiste nos modos de subjetivação A reforma da concepção cultural hegemônica que é reproduzida nos saberes e fazeres no comportamento das pessoas nos modos de subjetivação precisa ser compreendida a partir de concepções fundamentais tais como a de louco e a de loucura para que se possam construir de fato práticas inovadoras Nesse sentido uma provocação quanto ao papel dos atores desse processo e das concepções de loucura terapêutica e o louco é feita por Pelbart que ao discutir tais concepções diz mioloantroppmd 10022010 1443 283 284 Por louco entendo esse personagem social discriminado excluído e recluso Por loucura que para facilitar chamarei aqui de desrazão entendo uma dimensão essencial de nossa cultura a estranheza a ameaça a alteridade radical tudo aquilo que a civilização enxerga como o seu limite o seu contrário o seu outro o seu além 1990 p133 Este personagem objetivado desconstituído de sua subjetividade porque entendido como destituído de razão passa a ser foco de intervenções como por exemplo a hiper medicalização de sua existência e de seu sofrimento e o fato deste sofrimento ser apreendido como uma categoria diagnóstica previamente estabelecida Discutindo o processo de reabilitação psicossocial e a clínica exercida nos serviços de saúde mental criados na lógica do modelo psicossocial Bezerra sugere pensar o sujeito a partir da psicanálise como sendo esta rede de crenças e desejos que em cada organismo singular é chamado a produzir pelo fato de que nós ao contrário das outras espécies só nos relacionamos com os outros e com nós mesmos com nossa sexualidade com nossos desejos com a alteridade dos outros e da natureza através da mediação do sentido 2001 p142 Ainda que tal sujeito possa ser pensado como essa rede de crenças singular que inspirou todo o movimento de reforma psiquiátrica brasileira percebemos que no que se refere ao gênero entendido como um marcador social de diferenças para mioloantroppmd 10022010 1443 284 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 285 esses sujeitos este vem sendo pouco reconhecido ainda que muito presente nas práticas assistenciais bem como na formulação e execução das políticas de saúde mental9 Uma concepção importante de sujeito a ser considerada neste trabalho foi apresentada por Foucault10 Este autor sugere que o sujeito não pode ser reduzido à razão e em especial com o surgimento da psicanálise há um deslocamento da razão e a negação de qualquer essência humana Nas palavras do autor Há dois significados para a palavra sujeito sujeito a alguém pelo controle ou dependência e preso à sua própria identidade por uma consciência ou autoconhecimento Ambos sugerem uma forma de poder que subjuga e torna sujeito a 1995 p235 Desta forma quando falamos dos sujeitos tal como discutido aqui estamos tratando das relações por eles travadas e a partir das quais podem se reconhecer como tal e por isso parece que as transformações destas relações se constituem no maior desafio a ser enfrentado Acredito que considerar o gênero enquanto um modo de constituição de subjetividades e de sujeitos que se apresenta na mesma medida da complexidade destas relações e da experiência do sofrimento psíquico que aparece com freqüência na experiência feminina é outro desafio Um conjunto de dados apresentado no relatório da pesquisa de avaliação dos Centros de Atenção Psicossocial da Região Sul do país CAPS Sul coordenada por Kantorski mioloantroppmd 10022010 1443 285 286 2007 demonstra o quanto as mulheres têm estado presentes no campo da saúde mental seja como usuárias dos serviços de saúde familiares ou como trabalhadoras e gestoras revelando seu protagonismo nas transformações Os dados demonstram que dos 30 coordenadores de CAPS da região sul do país 28 são mulheres dos trabalhadores nestes serviços 78 são mulheres e dos familiares que freqüentam os mesmos 717 são mulheres e revelam outra dimensão em que o gênero tem estado presente neste processo de forma significativa e que não parece inviabilizar ações e políticas que reforcem as diferenças e assimetrias O fato das questões de gênero não comporem as discussões e preocupações no campo da saúde mental diante dos dados apresentados nesta pesquisa por exemplo parecem indicar para a reprodução de uma cultura fortemente marcada pelas desigualdades de gênero É neste sentido que entendemos a importância de discutir como estas mulheres que tem protagonizado o movimento da reforma psiquiátrica brasileira e tem se constituído subjetivamente nestes processos percebem a questão do adoecimento no seu diaadia nos lugares de uso comum bem como de que forma se relacionam entre si e com as demais pessoas acometidas ou não de algum tipo de sofrimento Como diz Silveira mioloantroppmd 10022010 1443 286 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 287 Portanto para pensar as causas das doenças é preciso pensar necessariamente a cultura e a sociedade e estendendo a compreensão da doença como experiência analisar seu significado para o próprio doente e para os que o cercam buscando as implicações clínicas da relação entre a doença e a cura e entre a sociedade e a cultura 2000 p19 No que se refere à Política Nacional de Saúde Mental cumpre salientar que a ausência do gênero enquanto categoria importante neste processo não condiz com a presença significativa das mulheres nos espaços em que tal política é gestada e executada Isto pode estar relacionado aos poucos esforços que tem se empenhado na compreensão desta interface mas também ao fato de que ainda que exista uma proposta de superação do modelo manicomial de alguma maneira ainda se incorra na repetição de algumas características deste Assim a interface gênero e saúde mental se evidencia na presença feminina no campo da assistência em saúde mental como usuárias familiares trabalhadoras e gestoras dos serviços de saúde na hipermedicalização da experiência feminina e sua articulação às assimetrias de gênero e por fim no modo de consideração da categoria gênero tanto nas políticas públicas como nas formas de assistência e militância política E o que se pode perceber é que conforme sugeriu Maluf 2008 se não existe uma política ou programas oficiais de gênero e saúde mental na prática há uma política sendo implantada ou mioloantroppmd 10022010 1443 287 288 reproduzida uma política que implica na medicalização e medicamentalização de mulheres usuárias do serviço público Entendo que o gênero enquanto um regime de subjetivação tem exercido implicitamente uma grande influência nas formas de pensar e intervir no campo da saúde mental seja na assistência na militância bem como nas políticas públicas de saúde mental e que o pouco reconhecimento de sua complexidade pesa sobre as mulheres que buscam nos serviços de saúde mental alívio para seus sofrimentos ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS Considerando a complexidade que a interface gênero e saúde mental introduz tanto no campo da saúde mental como nos estudos de gênero as considerações trazidas aqui traduzem esforços preliminares para pensar na mesma Como um primeiro aspecto particularmente importante nesta discussão é a possibilidade de entendermos tanto o gênero quanto a saúde mental como construções sociais historicamente implicadas na configuração dos saberes e fazeres e nos modos de subjetivação O gênero tal como discutimos até aqui e a ser considerado como uma categoria importante no campo da saúde mental pressupõe o entendimento de que a questão do sofrimento psíquico ou doença mental está diretamente relacionada com aspectos sociais culturais e de poder Além disso também é necessário ressaltar que tais sofrimentos advêm de relações mioloantroppmd 10022010 1443 288 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 289 assimétricas de gênero e de papéis sociais e identidades historicamente assumidas pelas mulheres Ainda que a loucura tenha sido entendida historicamente sob diferentes aspectos mas especialmente pela psiquiatria como uma doença mental e por isso incorporada pelo saber médico tratase sobretudo de uma construção social como argumentou Pelbart mas também Laqueur quanto ao sexo e Silveira quanto as nervosas do Campeche Desta forma a consideração do gênero enquanto uma categoria presente de forma implícita e significativa no movimento de reforma psiquiátrica no Brasil constituise em mais um desafio colocado ao mesmo A pesquisa e a prática enquanto processos necessários à manutenção deste movimento e à reforma da assistência em saúde mental remetem à reflexão acerca de seus desdobramentos dos espaços onde vivem e se relacionam pessoas singulares portadoras de subjetividades marcadas socialmente pelo gênero e que também têm sonhos histórias e projetos de vida reais Acredito que a consolidação do modelo psicossocial exige a utilização de múltiplos recursos da diversidade e ampliação de saberes capazes de elevar a capacidade de análise e de intervenção Os aspectos discutidos no corpo deste trabalho fazem parte de um conjunto maior de saberes e fazeres que estão sempre por ser reformulados transformados para responderem às demandas que o movimento da reforma psiquiátrica possa gerar mioloantroppmd 10022010 1443 289 290 NOTAS 1 Movimento em dois sentidos tanto por tratarse do movimento social como por fazer parte do processo complexo da reforma psiquiátrica brasileira com avanços e retrocessos transformações e estagnações que produz inúmeros sentidos e inquietações e que precisa ser inventado cotidianamente 2 Foram importantes interlocutores deste diálogo autores como Franco Rotelli Franco Basaglia Benedetto Saraceno dentre outros Cabe destacar que este diálogo se mantém nos dias de hoje através de intercâmbio de experiências participação em eventos convênios universitários dentre outros 3 Abílio da CostaRosa 2000 propõe a designação de dois modos básicos das práticas em saúde mental no modo tal como se apresentam no contexto atual modo asilar e modo psicossocial p142 Para tanto traça um paralelo entre estes dois modos no que diz respeito às concepções de paradigma instituição objeto e dos meios de trabalho dentre outros e diz Por oposição ao modo asilar como paradigma das práticas dominantes proponho designar modo psicossocial ao paradigma que vai se configurando tendo por base as práticas da reforma psiquiátricap151 4 A desinstitucionalização é entendida aqui tal como discutida por Rotelli 2001 p 29 e 30 como um trabalho prático de transformação que a começar pelo manicômio desmonta a solução institucional existente para desmontar e remontar o problema Além disso ao tratar da solução institucional este autor discute o objeto desta instituição e argumenta Mas se o objeto ao invés de ser a doença tornase a existência sofrimento dos pacientes e a sua relação com o corpo social então desinstitucionalização será mioloantroppmd 10022010 1443 290 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 291 AMARANTE Paulo O homem e a serpente outras histórias para a loucura e a psiquiatria Rio de Janeiro Editora Fiocruz 1996 BEZERRA Benilton A clínica e a reabilitação psicossocial In PITTA Ana org Reabilitação psicossocial no Brasil São Paulo SP HUCITEC 2001 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS o processo críticoprático para a reorientação de todos os elementos constitutivos da instituição para este objeto bastante diferente do anterior 5Tais modos entendidos como a produção de modos de existência ou estilos de vida Deleuze 1992 142 6 Tais modelos são discutidos em Duarte 1988 Neste mesmo livro o autor mostra como o nervoso foi associado a mulher e a cabeça ambos implicados numa relação entre uma avaliação moral e um estado físico 7 Diehl Manzini e Becker neste volume e Silveira 2000 8 Grifo da autora 9 Para uma abordagem mais ampla dessa questão nas políticas públicas em saúde mental no Brasil ver artigo de Maluf nesta coletânea 10 Foucault deu uma enorme contribuição para o campo dos estudos sobre a saúde mental especialmente e dentre outras questões para o entendimento da loucura Em seu clássico livro História da Loucura na Idade Clássica abordou como esta foi tratada ao longo de diferentes períodos históricos e dos inúmeros desdobramentos que tais diferenças de entendimento desencadearam situando a mesma no âmbito social político e cultural para além do individual mioloantroppmd 10022010 1443 291 292 BEZERRA Benilton O cuidado nos Caps os novos desafios In ALBUQUERQUE PLIBÉRIO MOrgsO cuidado em saúde mental ética clínica e política Rio de Janeiro Coordenação de Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro 2004 BRASIL Ministério da Saúde Legislação em saúde mental 1990 2004 Brasília Ministério da Saúde 2004 5ª Edição Ampliada COSTA ROSA Abílio da O modo psicossocial um paradigma das práticas substitutivas ao modo asilar In AMARANTE Paulo org Ensaios subjetividade saúde mental e sociedade Rio de Janeiro Editora Fiocruz 2000 DELEUZE Gilles Conversações 19721990 Rio de Janeiro Ed 34 1992 DESVIAT Manuel A reforma psiquiátrica Rio de Janeiro Editora Fiocruz 1999 DUARTE Luiz Fernando Dias Da vida nervosa nas classes trabalhadoras urbanas Rio de Janeiro Zahar 1988 FIGUEIRA Sérvulo Psicanalistas e pacientes na cultura psicanalítica In FIGUEIRA Sérvulo Efeito Psi a Influência da Psicanálise Rio de Janeiro Campus 1988 FOUCAULT Michel Vigiar e punir nascimento da prisão Petrópolis Vozes 1987 FOUCAULT Michel O sujeito e o poder In DREYFUS Hubert e RABINOW Paul Michel Foucault uma trajetória filosófica para além do estruturalismo e da hermenêutica Rio de janeiro Forense Universitária 1995 FOUCAULT Michel História da loucura 5ªed São Paulo Editora Perspectiva 1997 FOUCAULT Michel O nascimento da clínica 5ªed Rio de Janeiro Forense Universitária 2001 mioloantroppmd 10022010 1443 292 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 293 KANTORSKI Luciane Prado coordenadora CAPSUL Avaliação dos CAPS da região sul do Brasil Relatório Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico CNPq Ministério da Saúde Pelotas 2007 LAQUEUR Thomas Inventando o sexo Corpo e gênero dos gregos a Freud Rio de Janeiro Relume Dumará 2001 MALUF Sônia W Mesa A medicalização do sofrimento e a perda da tristeza II Congresso Catarinense de Saúde Coletiva UFSC Florianópolis 2008 MALUF Sônia W Gênero subjetividades e saúde mental Práticas e representações sobre saúde mental através de uma abordagem de gênero Projeto de Pesquisa UFSC 2006 MANZINI Fernanda e BECKER Marina A mulher e a pílula da felicidade uma abordagem sobre o uso de fluoxetina Trabalho de Conclusão de Estágio orientado pela profª Eliana Diehl Curso de Graduação em Farmácia UFSC 2007 PELBART Peter Pal Manicômio mental a outra face da clausura In Lancetti Antonio org SaúdeLoucura 2 São Paulo Hucitec p 130138 1990 ROHDEN Fabíola Uma ciência da diferença sexo e gênero na medicina da mulher Rio de Janeiro Editora Fiocruz 2001 ROTELLI Franco et al Desinstitucionalização São Paulo Hucitec 2001a 2ªed ROTELLI Franco et al Desinstitucionalização uma outra via A reforma Psiquiátrica Italiana no contexto da Europa Ocidental e dos Países Avançados In ROTELLI et al Desinstitucionalização São Paulo Hucitec 2001b 2ª Ed SILVEIRA Maria Lucia da O nervo cala o nervo fala a linguagem da doença Rio de Janeiro Editora Fiocruz 2000 mioloantroppmd 10022010 1443 293 mioloantroppmd 294 10022010 1443 O trabalho de vinte e cinco anos com saúde mental permitiume vislumbrar inúmeras possibilidades de escolhas ao adentrar neste campo de conhecimento na busca por um tema cuja reflexão pudesse dedicar muitas horas de minha vida Resolvi então voltar minha atenção à vida de seis mulheres que viveram mais de trinta anos num hospital psiquiátrico e que por circunstâncias da vida em face da Reforma Psiquiátrica foram transferidas para um Serviço Residencial Terapêutico SRT analisando de que maneira o gênero estaria imbricado neste contexto Sendo assim procuro nestas linhas compartilhar com os leitores alguns pontos desta experiência etnográfica que rendeu parte de uma tese intitulada Gênero e Saúde Mental nos Serviços Residenciais Terapêuticos1 permitindome conhecer e aprofundar um pouco mais sobre o significado deste dispositivo de atenção à saúde para as personagens desta história situandoo na paisagem da Reforma Psiquiátrica RP brasileira SERVIÇO RESIDENCIAL TERAPÊUTICO MORADA DO GÊNERO Maika Arno Roeder mioloantroppmd 10022010 1443 295 296 A consideração de abordar a RP fazse necessária uma vez que ela se baseia na construção de outro lugar social para o sofrimento psíquico podendo o projeto terapêutico do SRT servir como uma importante ferramenta de transformação ao se vincular à proposta de se levar em conta a subjetividade e a cidadania Se por um lado o SRT pode assumir uma função mediadora na construção deste outro espaço para o sofrimento psíquico ele também pode funcionar como morada de estratégias utilizadas como dispositivo de controle do poder impondo uma série de desafios à pessoa com sofrimento psíquico sua equipe terapêutica ou à própria comunidade O acesso à possibilidade de cura bem como a própria vivência relacionada à cidadania nem sempre se configura como processo democrático pois envolvem disputas a serem constantemente negociadas Os próprios atos da vida civil neste caso ficam a cargo de um determinado perito cuja atribuição é a de sugerir ao juiz sua opinião técnica a respeito da capacidade de discernimento sobre a própria vida uma vez que o processo de desinstitucionalização da pessoa está associado ao seu grau de dependência Certamente esta constatação corrobora com Marsiglia et al 1990 quando alerta para o fato de que as garantias constitucionais parecem ainda não ser suficientes para promover as condições necessárias ao exercício da cidadania plena com liberdade igualdade e garantia dos direitos humanos mioloantroppmd 10022010 1443 296 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 297 a todos os cidadãos sendo este processo mais complexo no que se refere às pessoas com sofrimento psíquico devido ao maior número de obstáculos que necessitam ser transpostos Ademais a possibilidade de reprodução nos serviços substitutivos2 das características negativas do hospital psiquiátrico descaracterização do indivíduo sua institucionalização segregação e abandono alerta para a necessidade de se acompanhar de perto a qualidade da assistência prestada Tal problemática social num panorama mais abrangente reafirma que não se trata de transpor um simples desafio e que existem inúmeras intersecções de fatores que se entrelaçam e se cruzam na dinâmica da social e política No âmbito das pesquisas científicas embora diversos estudos tenham demonstrado os avanços e as dificuldades relacionados à implantação de residências em saúde mental assim como o impacto das transformações ligadas à desinstitucionalização na vida de seus moradores estudos que se fundamentem sob a ótica de gênero ainda parecem escassos Scatena 2000 Roeder 2001 e 2005 Santos Riveiro e Marchese 2006 Vidal e Guljor 2006 Mendonça 2006 Santos 2006 Desta forma ao pesquisar sobre a saúde mental sob a ótica de gênero busco contribuir com algumas informações sobre o significado do SRT para a vida de mulheres que transcenderam da condição de pacientes para a de moradoras pois a compreensão do que é ser cidadã no Brasil mioloantroppmd 10022010 1443 297 298 sendo moradora de um SRT só adquire sentido pleno quando confrontada às transformações ocorridas nas últimas décadas em relação às condições sociais que as mulheres com sofrimento psíquico ocupam na ordem mundial Sabese que a exclusão social da pessoa alienada através do asilamento era recomendada há pouco mais de vinte anos como uma medida necessária para reconstituir o direcionamento de sua vontade com o intuito de devolvêla à razão Longe do meio e da família entendiase que esta poderia recomporse moralmente retomando o próprio controle Ao se curar o louco poderia resgatar seu status de cidadão pois mesmo alienado não perderia sua condição humana Vasconcelos 2000 Os resultados históricos produziram no entanto a cronicidade uma incurabilidade de fato e a violação dos direitos de cidadania A segregação a violência e a iatrogenia contribuíram para a necessidade de se investir em dispositivos assistenciais mais humanitários cujo comprometimento com as necessidades prementes da população que fora institucionalizada segundo Vasconcelos 2000 vem se constituindo como primeiro impulso para reverter os comprometimentos gerados àqueles que passaram por anos de reclusão No Brasil as iniciativas críticas em relação à psiquiatrização se intensificaram em meados da década de 1980 no bojo do processo de redemocratização da sociedade mioloantroppmd 10022010 1443 298 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 299 brasileira momento em que a cidadania ocupa lugar privilegiado de discussão Para Leone 2000 p123 é em torno da cidadania como um dos valores fundamentais que um conjunto de iniciativas teóricas políticas culturais metodológicas se articula e dá curso a um processo irreversível de transformação no campo da saúde mental no Brasil Este processo tem sido frequentemente designado de Reforma Psiquiátrica Com base na necessidade de suprir a carência de moradia e ao mesmo tempo contemplar aspectos relativos à continuidade de um acompanhamento psiquiátrico é que foram criados dispositivos assistenciais no Brasil com a finalidade de servirem de lares abrigados MS 2004 2005 regulamentados pelas Portarias GMMS 1062000 e 1220 2000 Esta estratégia política da RP tem contribuído para a redução significativa do número de leitos no país e o consequente fechamento de vários hospitais psiquiátricos especializados Os SRTs residenciais em saúde mental residências terapêuticas lares abrigados ou simplesmente casas ou moradias são casas localizadas no espaço urbano constituídas para responder às necessidades de moradia desta população de atendimento contínuo como as pessoas egressas de hospitais psiquiátricos Representam um esforço para que seus moradores possam ressignificar seu lugar no social enquanto cidadãos requerendo seus direitos e assumindo obrigações mioloantroppmd 10022010 1443 299 300 A legislação vigente recomenda que o programa terapêutico destes dispositivos seja centrado na construção progressiva da autonomia para as atividades da vida cotidiana como também na ampliação da reinserção social Este dispositivo passa a se constituir então em um espaço de mudança que envolve um conjunto complexo de fatores sendo permitido aos moradores ocupar diferentes lugares além daqueles tradicionalmente autorizados durante a estadia nos hospitais especializados Com base nas considerações acima resolvi neste momento me dedicar às seguintes questões a como foi criado e como funciona o SRT b quem são as suas moradoras e quais são seus itinerários terapêuticos c como se percebem e como fazem distinção entre a situação de vida atual e a pregressa e d qual o significado do SRT para as residentes compreendendo os sentidos da experiência cotidiana subjetiva e analisando em que medida as questões de gênero fundamentam estas histórias Parto da premissa que estes são temas antropológica e sociologicamente relevantes onde os significados são construídos com base na experiência social vivenciada na esfera micropolítica PERCURSO METODOLÓGICO Privilegiei nesta pesquisa as narrativas e os conteúdos de falas manifestos os pontos de vista as experiências e as trajetórias de vida das residentes por entender que estes se mioloantroppmd 10022010 1443 300 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 301 constituem em importantes recursos para a apreensão dos significados dos atos e das formas de relação dessas pessoas frente ao contexto sociocultural que compõe suas estruturas de vida Cabe salientar que as transcrições das falas das interlocutoras estão destacadas entre aspas e para preservar o anonimato das mesmas adotouse o nome de flores com a finalidade de identificálas A idéia de aplicar esta pesquisa no Residencial do Pomar foi motivada pelo fato deste ter sido o primeiro residencial em saúde mental a ser criado em Santa Catarina e sobretudo destinado às mulheres Este quando da sua criação constituiu se em um projeto piloto que se tornou referência no estado de Santa Catarina Na oportunidade esclareço que para me referir aos chamados problemas mentais ou sofrimento psíquico transitei por outras denominações com as quais me deparei na literatura com a finalidade de buscar uma aproximação com os próprios termos utilizados pelas residentes um desafio metodológico a ser partilhado com os leitores O trabalho de campo foi realizado em sua maior parte dentro do Serviço Residencial Terapêutico feminino que integra a rede de assistência em saúde mental do Sistema Único de Saúde SUS e foi criado a partir dos esforços do Instituto de Psiquiatria de Santa Catarina IPQ anteriormente denominado Hospital Colônia Santana HCS3 em encontros que duraram em média de duas a três horas por dia entre duas e três vezes por semana durante três meses mioloantroppmd 10022010 1443 301 302 A coleta de dados também se estendeu aos Serviços Residenciais Masculinos para a Unidade de Gestão Participativa4 localizada no IPQ e nas praças e mediações destes locais visitados devido à permanência temporária de algumas das residentes nestes espaços ou em virtude da necessidade de ampliar o conhecimento sobre o funcionamento destes serviços e as variações possíveis A observação participante a análise documental a coleta de narrativas e a elaboração de histórias de vida de moradoras integrantes do primeiro SRT de Santa Catarina assim como a participação em grupos terapêuticos e visitas a todos os SRT do estado foram as técnicas empregadas A análise do discurso serviu de aliado ao estudo deste universo simbólico assim como do ponto de vista analítico foi dada ênfase às teorias pós estruturalistas Para pensar sobre o lugar social da mulher louca no campo da saúde mental utilizeime das contribuições dos estudos de gênero tratando das formas de subjetivação destas mulheres diante das mudanças que ocorreram em suas vidas advindas da criação do SRT sinalizando com isso o potencial de metamorfose das residentes que evidencia a passagem da condição social de pessoa sujeitada e institucionalizada para o de uma pessoa que luta por seus direitos de cidadania Antes de apresentar as principais personagens desta pesquisa aproveito a oportunidade para discorrer sobre a criação implantação e funcionamento da casa onde vivem mioloantroppmd 10022010 1443 302 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 303 atualmente e que serviu de palco para as grandes mudanças ocorridas em suas vidas Criação Implantação e Funcionamento do primeiro SRT em Santa Catarina Há em Santa Catarina três Serviços Residenciais em Saúde Mental sendo um destinado ao público feminino e dois ao masculino Apesar de funcionarem há alguns anos somente em 2008 é que conseguiram ser efetivamente cadastrados no SUS Segundo uma das profissionais entrevistadas a idéia da fundação do primeiro SRT no Estado o Residencial do Pomar objeto deste estudo surgiu por volta de 1986 a 1987 estimulado por um Congresso de Psiquiatria que aconteceu na cidade de Camboriú que alertava para o fato de que era possível investir no tratamento da doença mental em regime de maior liberdade pois até então o que se tinha disponível era a internação em hospital psiquiátrico A Residência foi concebida como uma Unidade de Internação da Segunda Enfermaria Feminina5 a partir daquela equipe composta por uma psicóloga uma assistente social e uma enfermeira e principalmente de um grupo de pacientes que vinham sinalizando pedindo e mostrando que tinham alguma condição de se tornarem moradoras e que queriam sair do hospital Tratase de pessoas que moravam no hospital há muito tempo e que diziam eu podia fazer minha comida passear e sair Elas verbalizavam isto segundo a funcionária de forma diferente das outras pacientes mioloantroppmd 10022010 1443 303 304 A idéia da Residência começou a tomar corpo O projeto do Residencial do Pomar levou três anos para ser escrito pois na época de sua criação não havia bibliografia sobre o assunto não havia internet e nos congressos e outros encontros de psiquiatria ainda não se falava a respeito de um modelo a ser seguido A referida residência foi idealizada com base na concepção da equipe e transpõe uma série de desafios como a falta de recursos humanos ou a própria imagem social da loucura dentre outros A esse respeito afirma uma das profissionais entrevistadas Na época esta idéia era um absurdo pois não se concebia tirar o doente mental de dentro do hospital Isto mexia com o imaginário das pessoas da comunidade hospitalar Fulana de tal com uma faca na mão vai degolar todo mundo Além disso as pacientes transferidas eram consideradas as melhores pacientes do Hospital pois ajudavam na limpeza e nos cuidados com as outras pacientes atuando como se fossem funcionárias daquele local Isto para a os profissionais que trabalhavam na época era considerado um escândalo As residentes levaram quase um ano no processo de adaptação Conforme seus relatos primeiro foram conhecer a casa fizeram a limpeza da mesma prepararam café da tarde onde tudo parecia ser muito novo Da mesma forma a equipe de profissionais que temia o fracasso do Projeto também teve que lidar com seus desafios Mas somente após três anos residindo no Residencial é que a equipe percebeu no mioloantroppmd 10022010 1443 304 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 305 comportamento das moradoras o resgate das suas habilidades pessoais e sociais bem como os avanços no processo de reabilitação sobretudo naquele ligado ao resgate do domínio do cotidiano autônomas para cozinhar cuidar das coisas da casa sentiremse seguras manterem um relacionamento social adequado e resgatarem o autocuidado fortalecendo ao mesmo tempo o cuidado entre elas Tempo que foi também necessário para que se conquistasse a aceitação das residentes pelas pessoas que residiam na comunidade local O processo de adaptação também contou com episódios de rejeição por parte dos moradores da redondeza sendo este problema parcialmente contornado com a ajuda do padre da comunidade CONHECENDO SUAS MORADORAS Na época em que as residentes foram entrevistadas mais precisamente em meados de 2008 a faixa etária das residentes variava entre 43 e 71 anos sendo que somente uma delas se encontrava na faixa etária considerada adulta sendo as demais definidas como idosas Com exceção de uma das residentes que nasceu no Paraná todas as outras são provenientes do interior de Santa Catarina muitas vindas da zona rural onde seus pais trabalhavam na lavoura ou com serviços domésticos Todas são brancas solteiras e de baixo nível sócio econômico Somente uma das residentes frequentou o ensino do primeiro grau e não conseguiu completálo As demais não mioloantroppmd 10022010 1443 305 306 são alfabetizadas e atribuem o fato da interrupção dos estudos ao aparecimento do problema dos nervos Outras sequer tiveram a oportunidade de estudar Criadas por estranhos cujo nível de instrução era extremamente baixo nunca chegaram a freqüentar a escola Quando eu fiquei doente fui internada e não pude mais estudar Lírio Eu dava ataque dava crise eu não podia estudar Violeta Eu nunca estudei Não tinha família nem nada Era tudo muito pobre e depois logo eu vim para o hospital Margarida As residentes tiveram a oportunidade de participar de alguns cursos profissionalizantes dentre os quais panificação corte e costura horticultura entre outros realizados com a parceria da Secretaria de Estado da Saúde SES com o Sistema Nacional de Empregos do Ministério do Trabalho SINE e a Fundação de Ensino Técnico de Santa Catarina FETESC Todas essas mulheres são devotas da religião católica sendo que somente duas delas atualmente se consideram praticantes e a outra está afastada das cerimônias religiosas por dificuldade de locomoção até a Igreja Com relação à maternidade três das residentes engravidaram sendo que duas antes da internação psiquiátrica e uma durante o período da hospitalização Os filhos foram encaminhados para adoção por familiares ou por desconhecidos mioloantroppmd 10022010 1443 306 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 307 A manifestação dos sintomas advindos segundo elas do problema dos nervos se deu por volta da infância e da adolescência Com o aparecimento dos primeiros sintomas foram internadas por imposição de terceiros sendo algumas encaminhadas por familiares outras trazidas ao Hospital Colônia Santana pela Prefeitura do local em que viviam uma vez que perambulavam pelas ruas da cidade na condição de moradoras de rua Problemas de desemprego carência de recursos financeiros dificuldades no controle dos sintomas da doença e compreensão do que estava acontecendo com sua saúde exemplificam as dificuldades que estas mulheres encontravam contribuindo para o abandono das mesmas por familiares por patrões ou mesmo pela comunidade na qual pertenciam assim que afloraram os seus sintomas Na época em que as residentes foram internadas a cultura da atenção à saúde ainda era fortemente hospitalocêntrica mesmo porque não havia sido criado no Brasil pelo menos oficialmente qualquer outro tipo de serviço como Centros de Atenção Psicossocial por exemplo sendo a internação no Hospital Colônia Santana o único recurso oferecido Além do mais a dificuldade de comprar remédios para tratar a doença bem como outros problemas de ordem socioeconômica e cultural contribuiram para dar início à carreira de longas internações em hospital psiquiátrico culminando com a ruptura dos laços sociais de outrora mioloantroppmd 10022010 1443 307 308 Estas mulheres permaneceram desta maneira anos de suas vidas confinadas em uma instituição psiquiátrica até que fosse criado o SRT para abrigálas conforme demonstra a tabela abaixo Itinerário Terapêutico Tempo de Internação e de Moradia no Serviço Residencial Terapêutico Tabela 1 Distribuição Conjunta do Ano da Primeira Internação no Instituto de Psiquiatria Ano de Entrada no Serviço Residencial Terapêutico Tempo de Permanência no Instituto de Psiquiatria e Tempo de Permanência no Serviço Residencial Terapêutico Até o Ano de 2008 Ano primeira internação Data entrada Tempo Permanência Tempo permanência no SRT Internadas IPQ no SRT 1952 1990 38 anos 18 anos 1955 1990 35 anos 18 anos 1969 1990 21 anos 18 anos 1981 1991 10 anos 17 anos 1997 2002 5 anos 6 anos Não discriminado 1991 média média 17 anos no prontuário aproximadamente 20 anos Os dados da Tabela 1 revelam que a permanência das residentes internadas em hospital psiquiátrico variava de cinco a trinta e oitos anos sendo que a grande maioria permaneceu institucionalizada por mais de vinte anos duas destas por mais de 35 anos mioloantroppmd 10022010 1443 308 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 309 Cabe ressaltar que não consta num dos prontuários o tempo de internação de uma das residentes É possível observar então que o tempo de hospitalização é ainda maior do que o tempo em que permanecem na condição de moradoras que para um maior número de moradoras varia de dezessete a dezoito anos Somente uma delas chegou mais recentemente ao Residencial do Pomar cerca de seis anos atrás Após traçar um breve panorama sobre o SRT onde vivem e o itinerário de internação das residentes passo a discorrer sobre quem são elas O Processo saúdedoença o que é ser paciente O que é ser moradora A visão das residentes com relação a como se percebem e como fazem distinção entre a situação de vida atual e a pregressa está intimamente relacionada com o estado de saúde doença A noção de saúde e de melhora da vida pessoal das mesmas está associada ao controle de crises que se dá através do uso continuado de medicamentos sendo a boa saúde também percebida como algo espiritual e portanto atribuído a um poder superior A utilização de termos diversos como doença mental loucura dentre outros que não foram pensados de maneira uniforme nem ao longo da história nem no mesmo espaço temporal contribuiu para a compreensão de como elas atribuem significados ao processo saúdedoença mioloantroppmd 10022010 1443 309 310 Para chegar a esta conclusão baseeime nas contribuições de autores clássicos da área cujas concepções revolucionaram a compreensão desse processo a relativização da dicotomia saúdedoença proposta pelo filósofo Georges Canguilhem 2000 a desconstrução do conceito de loucura de acordo com a análise filosóficohistórica de Michel Foucault 1989 1989b e a crítica do sociólogo Erving Goffmann 1982 à concepção de doença mental Em seguida me utilizarei da visão de outras os autorases como Silveira 2000 e Duarte 1986 1994 dentre outros para tratar do tema As considerações de Alves 1993 Kleinman 1991 Caprara 1998 e Langdon 2005 também foram empregadas para a compreensão do processo de adoecimento e cura Posteriormente tais contribuições serão articuladas ao pensamento de Butler 2003 para dar conta dos aspectos pertinentes ao gênero Inspirada pelas contribuições dos autores acima busquei associar o projeto de cura das moradoras do Residencial do Pomar ao processo de resgate das suas cidadanias ampliando a compreensão da própria definição do que seja moradora e paciente Neste sentido ser moradora na visão das residentes marca uma diferença de um passado em que foram submetidas à situação de pacientes de um hospital psiquiátrico e que tiveram seus vínculos com a sua rede familiar rompidos sendo consideradas pacientes crônicas6 de um hospital psiquiátrico mioloantroppmd 10022010 1443 310 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 311 A cosmologia das residentes apoiada na definição de saúdedoença parece se guiar pela lógica binária que só pode situálas numa determinada posição que deve ser definida entre duas possibilidades uma relacionada à condição de moradora e a outra relacionada à condição de paciente Embora os diagnósticos das residentes sejam os mais distintos como transtornos mentais orgânicos esquizofrenia e oligofrenia todas as residentes foram encaminhadas para a hospitalização e devido a problemas de ordem psicossocial como abandono familiar ou dificuldade dos familiares conviverem com a doença por exemplo colaborando para que permanecessem internadas por muitos anos Além de carregarem consigo o peso do estigma e do preconceito relacionado à doença mental somavam às suas vidas toda uma problemática advinda do processo de institucionalização deflagrado através do diagnóstico Desde o instante em que a marca da loucura lhes foi imputada é como se a doença mental tivesse ocupado o lugar de sujeito O discurso e as ações expressas por estas mulheres então eram vistos como sintomas da doença e suas vidas colocadas à mercê dos médicos Ademais uma vez recebida a marca da loucura tornavase difícil para elas conviver com o peso da discriminação advinda do preconceito Como relatou Rosa É muito difícil ser doente dos nervos Agora eu sou moradora e não sou mais doente mioloantroppmd 10022010 1443 311 312 A avaliação da loucura na história se baseava historicamente no grau de sanidade observado através das afeições morais associando a psiquiatria a uma disciplina moral Se as pessoas demonstrassem ser desordenadas e pervertidas isso era considerado um sinal de alienação Já a cura por sua vez significa a volta às afeições morais dentro dos seus justos limites Foucault 1979 p121 A observação de Foucault pode ser percebida na fala de Violeta que atesta que o comportamento moral tem uma relação direta com o estado de saúde A mulher que fala palavrão por exemplo e cujo comportamento não parece ser condizente com os padrões sociais determinados para uma dama pode se constituir em um sinal de estar apresentando doença Segundo depoimento de Violeta Lá no hospital as pessoas estão ruins das idéias falam mal e chamam nome de morfética7 e isto muito esquisito sic Deve ser uma doença muito feita Para morar aqui a pessoa tem que estar bem das idéias Estar doente na visão de todas as residentes é estar ruim das idéias O problema dos nervos estaria vinculado à noção de doença sendo associado a vários sentimentos como confusão agitação violência perdas familiares e de amigos privação opressão reclusão dor isolamento dependência sujeição perda de produtividade falta de envolvimento indisciplina ou a um comportamento moralmente impróprio às mulheres Os significados que definem o termo problemas mioloantroppmd 10022010 1443 312 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 313 dos nervos são assim segundo elas muito parecidos ao descrito por Silveira 2000 em seu estudo sobre doença dos nervos entre as mulheres do bairro Campeche em Florianópolis Para ser moradora é preciso estar bem das idéias com a cabeça em ordem Estar bem das idéias significa na visão das residentes não dizer palavrão não brigar não discutir com os outros não prejudicar ou depreciar a imagem do outro não depreciar a autoimagem através de comportamento moralmente incorreto e não responder a provocações Além do mais é imprescindível para a condição de moradora ajudar nos serviços da Casa incluindo as atividades domésticas e até mesmo as atividades de conservação do lar como o conserto de coisas quebradas por exemplo A moradora também pode passear ter liberdade para defender as suas coisas ter amigos e namorar desde que seja com respeito não envolvendo sexo e mediante a aprovação e a supervisão das outras residentes O casamento e a maternidade por outro lado são contra indicados à condição de moradoras sob a visão das mesmas Não existe consenso sobre a necessidade de ter que tomar remédio para ser moradora eis que uma das residentes associa a sua cura à condição de moradora e portanto não vê sentido em se submeter ao tratamento medicamentoso já que se considera curada Outras no entanto acreditam que permanecem no SRT porque além de não terem para onde ir pois não têm mais laços familiares nem condição financeira mioloantroppmd 10022010 1443 313 314 necessitam do remédio para evitar os episódios de crise Além disso precisa ser crônica isto é ter permanecido por muito tempo internada A palavra crise por sua vez está associada a um desequilíbrio provisório do estado de saúde sendo possível que a moradora volte a apresentar uma crise sendo portanto segundo elas próprias necessário controlar os fatores de risco desencadeadores da mesma através do uso correto e continuado de medicamentos A crise parece estar relacionada a episódios breves que no entanto podem se tornar recorrentes se transformando em problemas dos nervos nas quais a pessoa fica mole esquece de tudo não sabe onde está cai no chão e até se perde A crise está também relacionada à fraqueza na cabeça ao nervosismo tremedeira vontade de quebrar as coisas e derrubar tudo não conseguir segurar nada sentir pensamentos estranhos e provocar sofrimento A crise pode se materializar com manchas roxas no braço e também pode causar machucados provenientes de ferimentos causados por acidentes advindos da perda de consciência momentânea como queimaduras batidas na cabeça e cortes nas mãos As cicatrizes em três das residentes revelam alguns acidentes sofridos servindo de prova material das perdas ocasionadas pelas crises A crise também é considerada por elas como um fator de risco para a permanência da condição de moradora assim como a presença dos sinais relacionados ao problema dos nervos também denominado de variação dos nervos pois tudo isso recoloca a ameaça do retorno à hospitalização mioloantroppmd 10022010 1443 314 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 315 A transferência das residentes para o SRT não significa que elas não retornarão ao Hospital quando for definido que é necessário Episódios relacionados a problemas de saúde seja de ordem clínica ou psiquiátrica são tratados ainda no Hospital Segundo entrevista realizada com uma das funcionárias do SRT isto se dá em função do Hospital ter todo o aparato necessário para efetivar um atendimento de qualidade que demande quase todos os níveis de complexidade assistencial Um atendimento que se encontra disponível por 24 horas e sem burocracia Além do mais os exames são rápidos e é possível fazer desde os de baixo custo aos de maior custo a medicação é facilitada e a equipe de saúde já é conhecida Além de tudo é muito mais cômodo para a equipe terapêutica responsável Desta forma parece que nenhuma das residentes participa das ações de saúde da rede básica demonstrando a forte centralização do atendimento à saúde destas Estas por sua vez colocam resistência rejeitam a internação no IPQ e querem ser tratadas em seu ambiente seu espaço reivindicando segundo a informante suas subjetividades seus modos de ser Aqui é minha casa não quero ir embora quando ficar doente Jasmim As afirmações da profissional citada acima sobre a centralização das atividades de saúde podem ser evidenciadas na fala de Hortência Eu já fui lá ao posto de saúde da comunidade Eu conheço Eu já fui buscar muitas vezes remédio para a Margarida no Posto de Saúde mas eu nunca precisei Se precisar eu sei onde fica mioloantroppmd 10022010 1443 315 316 O tratamento associado à hospitalização pode ser compreendido em função das residentes não conhecerem dispositivos comunitários de atenção à saúde mental como Centros de Atenção Psicossocial ou mesmo Programas de Saúde Mental da Rede Básica o que se reforça pelo fato de a rede de assistência em saúde local não dispor ainda destes recursos O tratamento que conhecem e que vivenciaram por tantos anos para curar o problema dos nervos e prevenir as crises é somente o da hospitalização no Instituto de Psiquiatria em função da comodidade do processo de encaminhamento para o IPQ para a realização de consultas e exames necessários por parte da equipe terapêutica do SRT e por parte das residentes por serem estimuladas a serem atendidas no IPQ pela comodidade da própria Equipe Terapêutica Da mesma forma que o tratamento dos problemas dos nervos e das crises parece estar associado à hospitalização no hospital psiquiátrico os problemas de ordem clínica também podem ser considerados um impeditivo para a condição de moradora considerando a gravidade e o tempo de hospitalização A lógica binária da posição de residentes versus paciente do Hospital revelaria que ainda não houve a oportunidade da assunção do papel de pacientes subordinado à condição de cidadãs o que significaria por exemplo passar a frequentar os centros de atenção básica à saúde entre outros mioloantroppmd 10022010 1443 316 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 317 A condição de ser moradora além de requerer uma boa aptidão relacionada à disposição autonomia e eficiência para o cumprimento das tarefas necessárias ao bom funcionamento do lar e ao auto cuidado e à preservação do Grupo deve ser reservada somente àquelas cujos laços familiares já foram rompidos e cuja problemática da ordem psicossocial impeça o retorno da vida pregressa à hospitalização Talvez o rompimento com os laços familiares seja o que faz com que as residentes prezem tanto uma organização que leve em consideração o fortalecimento de uma nova identidade familiar cujos laços se firmam a partir da habitação compartilhada O comportamento moralmente questionável de qualquer uma das residentes também pode ser prejudicial ao Grupo e portanto na visão das mesmas pode colocar em cheque todo o esforço que demanda o fortalecimento da imagem de uma pessoa mentalmente saudável cuidadosamente cultivada por elas e portanto moralmente correta O almejado padrão moralmente correto do comportamento das residentes também parece estar associado ao padrão imposto pela Igreja Católica Sendo assim além de terem que controlar os sinais de uma possível crise é necessário corresponder à imagem ideal da mulher cristã Imagem esta fortalecida no ambiente hospitalar que ficou por muitos anos sob a responsabilidade das Irmãs de Caridade e atualmente nas missas das quais participam Além do que infringir o código comportamental previsto para elas poderia ser confundido mioloantroppmd 10022010 1443 317 318 com problemas dos nervos podendo ocasionar a perda da posição de moradora Não é a toa que o itinerário das residentes envolve como as principais atividades de lazer aquelas que se dão no âmbito doméstico e que são consideradas as mais apropriadas a um bom comportamento feminino como assistir TV sobretudo as novelas e os programas de auditório além da participação em atividades sociais do bairro como missas bingos enterros batizados casamentos e bailes São poucas as ocasiões em que participam de eventos noturnos Algumas já são até madrinhas de filhos da comunidade onde residem Passeios a pontos turísticos passeios à praia ao Shopping ida ao circo ou outros lugares também foram relatados e são os mais apreciados embora aconteçam em menor frequência As visitas tradicionais às lojas das redondezas da Casa também fazem parte do itinerário deste grupo assim como a ida ao salão de beleza por parte de algumas das residentes A ampliação da oferta de tantas experiências nem sempre foi constante na vida das residentes Da vida no hospital para a Casa ocorreram profundas mudanças que vêm se operando no dia a dia e portanto são repletas de desafios e significados diversos que remetem à apropriação da vida sob outra perspectiva que será tratada a seguir DE VOLTA AO MUNDO DA VIDA DO HOSPITAL PARA CASA Ao se submeterem à hospitalização com o consequente afastamento das suas moradias dos seus pertences da rede social enfim das referências que as ligavam a um determinando mioloantroppmd 10022010 1443 318 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 319 mundo as residentes deixaram para trás seu nome suas roupas seus bens materiais seus amores suas redes de relações e tantas outras coisas como um rito de passagem que para Goffman 2005 pode vir a representar uma despedida e um novo começo A volta ao mundo da vida de uma outra forma remete a uma ideia da retomada de valores deixados para trás num esforço de restituição das cidadanias destas mulheres que passaram anos de suas vidas hospitalizadas Neste caso a metáfora retorno para casa pode ser considerada como a primeira referência simbólica de um novo rito de passagem que sinaliza uma nova vida uma nova identidade uma nova referência O significado de se habitar o SRT não significaria portanto somente o uso da casa mas um processo de reapropriação da própria vida pelas residentes Significa a passagem do lugar de pacientes para o de residentes Com base nos depoimentos abaixo é possível perceber as mudanças ocorridas na vida das moradoras do Residencial do Pomar neste percurso No tempo de hospital eles não deixavam agente fazer nada Por isso eu gostei de vir morar aqui Margarida Era difícil a vida na rua Não tinha onde tomar banho o que comer suja cabelo sem pentear Daí me pegaram na rua e comecei a morar no hospital Lírio Aqui na casa nós escolhemos o que queremos marcamos no papel e compramos Aqui fazemos de tudo Lírio mioloantroppmd 10022010 1443 319 320 Aqui na casa é tudo arrumadinho É tudo com amor Agora essa é a minha família e se eu precisar de ajuda elas tomam conta de mim Rosa A melhor coisa da minha vida foi morar aqui Estou muito feliz Nunca mais quero sair daqui nem voltar para a minha casa sic Aqui cada uma faz o que gosta Lírio De uma posição de abjeção conceito formulado por Butler 2003 para se referir à situação de exclusão dos papéis de sujeito as residentes buscaram caminhos para afirmar sua subjetividade para contrapor o lugar social que ocupavam anteriormente Do tempo de moradia antes e durante a hospitalização algumas das poucas lembranças parecem aflorar sentimentos que muitas vezes as conduzem ao silêncio O rompimento de Violeta com a carreira hospitalar exemplifica o quanto neste momento é importante investir no papel de moradora e não mais de paciente Como ela relatou Já faz tanto tempo que nem lembro mais da vida no hospital Antes nós éramos de uma enfermaria Hoje não somos mais Nós quase não temos mais amigas lá Mesmo com todo o sofrimento advindo do período da internação demonstraram que longe de parecerem cansadas de si mesmas ainda possuíam forças para se tornarem proprietárias de si Como símbolo maior de civilidade elas transformaramse aos olhos do Outro em pessoas mais dignas mioloantroppmd 10022010 1443 320 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 321 socialmente com toda a discrição que um bom estrategista requer em sua conduta a ponto de gerar certo estranhamento por sua sutileza Como sujeitos dotados de potencial de metamorfose que seria já uma posição política que evidenciaria este certo estranhamento à condição de pacientes socialmente destinadas a elas des constroem a imagem de pessoa doente a partir então da tomada de consciência sobre as suas diferenças Essas transformações passaram a ser tão costumeiras quanto possíveis servindo para realçar a percepção da dignidade necessária às modificações presentes É o que poderia ser denominado de período de adaptação à nova situação Esta performance talvez passa a ser considerada o primeiro passo do processo de autonomia das residentes Tratase de uma posição frágil pois caso não correspondam às demandas previstas para o lugar de residentes restalhes somente a de pacientes de um hospital psiquiátrico retroagindo à hospitalização com toda a carga advinda desta situação cujo rótulo diagnóstico é apenas o início de uma jornada marcada pela mortificação do eu O retorno às afeições morais dentro dos padrões permitidos pode ser considerada a performance que assinala a aprovação de um comportamento moralmente próprio às mulheres que se encontram bem das idéias pois não dizem palavrão não brigam não contestam não prejudicam ou depreciam ninguém Ao contrário se envolvem com esmero nas tarefas mioloantroppmd 10022010 1443 321 322 domésticas que lhes são delegadas participam na administração do lar cuidam das outras residentes e se responsabilizam por si e pelo lar contribuindo com a prevenção de qualquer episódio de crise o que evidencia a aptidão necessária para a manutenção da condição de residente A demonstração de que estas mulheres contribuíram para o êxito dos papéis previstos parece repartir a responsabilidade por seu estado de saúde como um dos indicativos de que vêm realizando tudo o que estava ao alcance incluindo a própria medicalização o controle sobre a saúde e o comportamento moralmente correto A ameaça do retorno das mesmas para o hospital entretanto pode estar sendo sutilmente utilizada como estratégia de controle de poder O comportamento reprovado pode sinalizar doença e a consequente hospitalização Não é para menos que poderiam estar se esforçando para demonstrar disposição autonomia e eficiência com base no referencial que possuem de boas cidadãs que neste caso se fundamenta nos estereótipos do papel tradicional de mulher engendrados neste caso pela equipe terapêutica pela Igreja Católica pela comunidade local por seus pares e familiares De maneira geral considerando os diferentes graus de envolvimento posso ousar afirmar com base nas impressões obtidas que as residentes constroem a imagem que têm de si mesmas como mulheres moralmente corretas e socialmente desejáveis cuja saúde se caracteriza pelo fato de serem ativas mioloantroppmd 10022010 1443 322 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 323 trabalhadoras responsáveis por suas vidas capazes de decidirem sobre seus corpos dotadas de maior liberdade de ir e vir com potencial para opinarem sobre o próprio tratamento com a cabeça em ordem respeitosas disciplinadas e colaboradoras para com as demais São capazes de cuidar de si e das outras residentes de desfrutar dos mesmos privilégios e costumes da comunidade além de se considerarem boas domésticas A identidade grupal por sua vez parece estar associada à organização familiar que deve ser vivenciada sob as bases da cumplicidade do respeito da lealdade do envolvimento e da vigilância de todas CONSIDERAÇÕES FINAIS Mesmo com todos os avanços conquistados observase que uma moralidade tradicional e hierárquica também em relação a questões de gênero e sexualidade parece embasar os parâmetros científicos que engendram a percepção sobre estas mulheres e a própria visão sobre seu estado de saúde O SRT parece carregar consigo a ambigüidade de pretender tratar e proteger suas residentes ao mesmo tempo em que lhes incentiva e limita os direitos de cidadania A própria denominação configurada na legislação atual é ambígua no sentido de se pretender ser tanto um serviço que se propõe a determinadas terapias quanto um residencial com a finalidade de garantir os direitos de moradia mioloantroppmd 10022010 1443 323 324 Foi possível verificar na visão das residentes e membros da equipe terapêutica que o Residencial do Pomar tem colaborado para uma visão comunitária contribuindo para o acolhimento e a reintegração das residentes Supre também a carência de moradia ao mesmo tempo em que dá suporte ao acompanhamento psiquiátrico e clínico Ao habitarem a Casa as mulheres iniciam o seu processo de transição do papel de institucionalizadas para o de moradoras revelando o quanto são dotadas de potencial de metamorfose O retorno ao zelo pelas coisas do lar a possibilidade de poder juntar objetos que contenham suas histórias e armazenálos num espaço cuidadosamente arranjado o cultivo da privacidade a possibilidade de comer algo diferente saber que tem onde receber amigos ou ainda a possibilidade de poder decidir sobre a própria beleza exemplificam como se deu o processo de adaptação e de apropriação da vida das residentes O trânsito entre províncias e mundos pode ser considerado então como uma das questões cruciais para a compreensão sócioantropológica dessas residentes que passaram a transitar em distintos planos e níveis de realidade socialmente construídos ao irem morar numa Residência O desempenho das residentes parece talhado então para demonstrar sua capacidade de adequação de autonomia seu perfeito estado de saúde em consonância com a política necessária à solicitação da condição de moradora um histórico mioloantroppmd 10022010 1443 324 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 325 de bons antecedentes evidenciando o quanto essas mulheres longe de serem incapazes e inferiores sabem fazer política no cotidiano A própria imposição de normas aos corpos das residentes como o controle sobre a sexualidade sobre o direito de ir e vir sem restrições ou a obrigatoriedade do uso da medicação dentre outras medidas exemplificam que nem sempre a própria negociação sobre o estado de saúde é algo tão democrático quanto aparenta funcionando como dispositivo biopolítico de poder Há de se considerar que alterações no comportamento previsto podem ser desencadeadoras de uma ação que as faça perder a condição de moradoras com o consequente retorno à hospitalização psiquiátrica pois não dispõem de outros serviços de saúde mental ou de uma rede de assistência capaz de satisfazer integralmente as suas necessidades Mas conforme mencionei anteriormente a luta pela superação da posição de pacientes tem seu preço pois a construção de sujeitos singulares neste caso parece ser feita com base em essências naturalizadas e fundamentadas na imagem tradicional de mulher Neste caso passividade desdobramento disponibilidade capacidade para o trabalho doméstico e demais tarefas consideradas femininas correspondem então ao ideal de saúde mental para as residentes Já a sexualidade e a maternidade tornamse algo impróprio ao lugar que ocupam socialmente mioloantroppmd 10022010 1443 325 326 Por meio do SRT elas conquistam maior privacidade adquirem a noção de propriedade constroem um universo simbólico através dos objetos que adquirem e trabalham formas próprias de autodeterminação de suas vidas demonstrando que mesmo se vestindo com uma roupagem essencializada nos moldes do feminino tradicional são dotadas de potencial de metamorfose e são capazes de contribuir com um projeto coletivo com vistas à colaboração da gestão de problemas sociais Mesmo com toda a restrição presente ressaltase que a liberdade para escolherem e controlarem suas vidas foi ampliada mas o controle sobre a mesma impõe limites ao próprio livre arbítrio pois a todo o momento existe um campo de possibilidades que precisa ser negociado a fim de se ampliar os direitos as trocas e a circulação das diferenças Se por um lado isto dificulta a cidadania por outro parece estimulálas no sentido de resolver seus problemas Se ainda são vistas através das lentes dos papéis tradicionais femininos é mediante o reforço a esta mesma imagem que intensificam a sua performance diária através da demonstração das suas habilidades femininas tão necessárias à presença da imagem de boa saúde NOTAS 1 Tese defendida em setembro de 2008 no Centro de Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina sob a orientação de Luzinete Simões Minella e Sônia Weidner Maluf 2 Serviços substitutivos são dispositivos assistenciais criados a partir da política da RP brasileira como os Centros de Atenção Psicossocial e os Serviços Residenciais Terapêuticos em Saúde Mental por exemplo com a finalidade de se evitar ao máximo o tratamento em mioloantroppmd 10022010 1443 326 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 327 situação de confinamento como o atendimento prestado nos hospitais especializados em psiquiatria ou nos leitos psiquiátricos de hospitais gerais destinada somente para os casos em que a internação se faça necessária depois de esgotadas todas as possibilidades de atendimento em unidades extrahospitalares e de urgência conforme o recomendados na PT SNAS nº 2241992 3 Hospital Colônia Santana foi inaugurado em 10 de novembro de 1941 no Salto do Maroim no município de São José com a missão de ser o primeiro grande empreendimento destinado ao tratamento dos doentes mentais em Santa Catarina 4 UGP Unidade de Gestão Participativa é uma unidade do Centro de Convivência Santana CCS destinada a abrigar mulheres internas em condição asilar que possuem internação prolongada mas com possibilidade de autodeterminação Esta Unidade com 20 vagas é indicada para pacientes internas agudas e subagudas que estejam com o quadro psiquiátrico compensado embora pouco produtivo e com remota possibilidade de alta não oferecendo risco evidente de fuga Tem por objetivo o resgate das habilidades sociais e da cidadania assim como a melhoria da qualidade de vida visando o retorno gradativo das mesmas ao convívio sóciofamiliar Projeto Terapêutico da Unidade de Gestão Participativa 2002 5 A Segunda Enfermaria Feminina era uma das unidades do Hospital Colônia Santana destinada a abrigar mulheres adultas e mais idosas sem prognóstico de saírem do Hospital devido a problemas de ordem clínica eou psicossocial 6 Paciente crônica significa na visão das residentes aquela que permanece internada por muitos anos 7 Morfética é o termo utilizado pelas Residentes como uma pessoa sonsa meio desligada do mundo meio retardada mioloantroppmd 10022010 1443 327 328 AMARANTE Paulo O homem e a serpente outras histórias para a loucura e a psiquiatria Rio de Janeiro Editora Fiocruz 1996 BEZERRA Benilton A clínica e a reabilitação psicossocial In PITTA Ana org Reabilitação psicossocial no Brasil São Paulo SP HUCITEC 2001 BEZERRA Benilton O cuidado nos Caps os novos desafios In ALBUQUERQUE PLIBÉRIO MOrgsO cuidado em saúde mental ética clínica e política Rio de Janeiro Coordenação de Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro 2004 BRASIL Ministério da Saúde Legislação em saúde mental 19902004 Brasília Ministério da Saúde 2004 5ª Edição Ampliada COSTA ROSA Abílio da O modo psicossocial um paradigma das práticas substitutivas ao modo asilar In AMARANTE Paulo org Ensaios subjetividade saúde mental e sociedade Rio de Janeiro Editora Fiocruz 2000 DELEUZE Gilles Conversações 19721990 Rio de Janeiro Ed 34 1992 DESVIAT Manuel A reforma psiquiátrica Rio de Janeiro Editora Fiocruz 1999 DUARTE Luiz Fernando Dias Da vida nervosa nas classes trabalhadoras urbanas Rio de Janeiro Zahar 1988 FIGUEIRA Sérvulo Psicanalistas e pacientes na cultura psicanalítica In FIGUEIRA Sérvulo Efeito Psi a Influência da Psicanálise Rio de Janeiro Campus 1988 FOUCAULT Michel Vigiar e punir nascimento da prisão Petrópolis Vozes 1987 FOUCAULT Michel O sujeito e o poder In DREYFUS Hubert e RABINOW Paul Michel Foucault uma trajetória filosófica para além do estruturalismo e da hermenêutica Rio de janeiro Forense Universitária 1995 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS mioloantroppmd 10022010 1443 328 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 329 FOUCAULT Michel História da loucura 5ªed São Paulo Editora Perspectiva 1997 FOUCAULT Michel O nascimento da clínica 5ªed Rio de Janeiro Forense Universitária 2001 KANTORSKI Luciane Prado coordenadora CAPSUL Avaliação dos CAPS da região sul do Brasil Relatório Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico CNPq Ministério da Saúde Pelotas 2007 LAQUEUR Thomas Inventando o sexo Corpo e gênero dos gregos a Freud Rio de Janeiro Relume Dumará 2001 MALUF Sônia W Mesa A medicalização do sofrimento e a perda da tristeza II Congresso Catarinense de Saúde Coletiva UFSC Florianópolis 2008 MALUF Sônia W Gênero subjetividades e saúde mental Práticas e representações sobre saúde mental através de uma abordagem de gênero Projeto de Pesquisa UFSC 2006 MANZINI Fernanda e BECKER Marina A mulher e a pílula da felicidade uma abordagem sobre o uso de fluoxetina Trabalho de Conclusão de Estágio orientado pela profª Eliana Diehl Curso de Graduação em Farmácia UFSC 2007 PELBART Peter Pal Manicômio mental a outra face da clausura In Lancetti Antonio org SaúdeLoucura 2 São Paulo Hucitec p 130138 1990 ROHDEN Fabíola Uma ciência da diferença sexo e gênero na medicina da mulher Rio de Janeiro Editora Fiocruz 2001 ROTELLI Franco et al Desinstitucionalização São Paulo Hucitec 2001a 2ªed ROTELLI Franco et al Desinstitucionalização uma outra via A reforma Psiquiátrica Italiana no contexto da Europa Ocidental e dos Países Avançados In ROTELLI et al Desinstitucionalização São Paulo Hucitec 2001b 2ª Ed SILVEIRA Maria Lucia da O nervo cala o nervo fala a linguagem da doença Rio de Janeiro Editora Fiocruz 2000 mioloantroppmd 10022010 1443 329 mioloantroppmd 330 10022010 1443 A partir de 1950 os medicamentos psicotrópicos1 modificaram a paisagem da loucura paulatinamente esvaziando os manicômios e substituindo a camisadeforça e os tratamentos de choque pela redoma medicamentosa Roudinesco 2000 Também é fato que emoções e sentimentos que eram considerados como parte da vida por exemplo tristeza culpa raiva entre outros atualmente são objeto de intervenção com medicamentos sendo a indústria farmacêutica um dos principais promotores dessa tendência A depressão antigamente definida como melancolia entre outras denominações domina a subjetividade contemporânea Segundo Roudinesco 2000 a depressão tornouse a epidemia psíquica das sociedades democráticas e é neste cenário que surgem novos tratamentos a cada dia oferecendo a tão esperada solução na forma de comprimidos ou cápsulas Segundo Azize 2002 para ilustrar a idéia de que A MINHA MELHOR AMIGA SE CHAMA FLUOXETINA CONSUMO E PERCEPÇÕES DE ANTIDEPRESSIVOS ENTRE USUÁRIOS DE UM CENTRO DE ATENÇÃO BÁSICA À SAÚDE Eliana Diehl Fernanda Manzini Marina Becker mioloantroppmd 10022010 1443 331 332 a depressão é uma doença comum da qual qualquer pessoa pode ser acometida e que por isso não deveria ser causa de nenhuma espécie de estigma o texto do sítio eletrônico oficial do Prozac cuja substância ativa é a fluoxetina2 traz nomes de alguns personagens conhecidos que sofrem ou teriam sofrido de depressão O subtexto parece dizer Se expoentes da cultura mundial podem desenvolver depressão por que não eu ou você A fluoxetina tem papel de destaque na medicalização crescente da sociedade contemporânea O Prozac atingiu uma sociedade que estava no clima certo para ele Campanhas apoiadas pelo laboratório Eli Lilly fabricante do Prozac alertaram os médicos e o público para os perigos da depressão O Prozac foi lançado como totalmente seguro podendo ser receitado para qualquer um Era a droga maravilhosa a resposta fácil o reanimador instantâneo o eldorado neurológico Moore 2007 Quando chegou o dia do lançamento os pacientes já o pediam pelo nome Em 1999 o medicamento respondia por mais de 25 do faturamento de 10 bilhões de dólares do laboratório Moore 2007 correspondendo a aproximadamente US 261 bilhões WHO 2004 Em que pese a importância de dados mais amplos sobre medicamentos abordagens macropolíticas e macroeconômicas não têm sido suficientes para explicar por que por exemplo o consumo de medicamentos é prática relevante mesmo onde mioloantroppmd 10022010 1443 332 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 333 os serviços de saúde são deficientes os medicamentos de venda sob prescrição são disponíveis livremente e a automedicação é importante recurso de cuidado Para melhor compreender esses fenômenos alguns autores como Van der Geest 1987 Etkin et al 1990 e Van der Geest et al 1996 propuseram estudos em contextos locais de distribuição e uso dos medicamentos na perspectiva de uma antropologia dos medicamentos que pressupõe a coexistência de medicamentos e de remédios e a questão de como as percepções e usos de um afeta o outro Whyte Van der Geest 1988 Para esses autores não basta rotular os medicamentos como substâncias com propriedades bioquímicas e farmacológicas mas sim pesquisar as situações dinâmicas nas quais os mesmos são percebidos e utilizados pois o significado dos medicamentos é apreendido em termos da experiência e concepção da doença Van der Geest Whyte 1989 Essa pesquisa buscou identificar a dispensação de antidepressivos em um Centro de Saúde de atenção básica em Florianópolis caracterizando os medicamentos os usuários e os prescritores bem como a percepção do uso de fluoxetina entre usuários METODOLOGIA A pesquisa foi realizada entre março e junho de 2007 em um Centro de Saúde CS de atenção básica especialmente no serviço de farmácia no município de Florianópolis Santa Catarina como parte do projeto Gênero Subjetividade e Saúde mioloantroppmd 10022010 1443 333 334 Mental práticas e representações sobre saúde mental através de uma abordagem de gênero realizado e coordenado pelo Grupo de Estudos de Gênero Subjetividade e Saúde Mental do Programa de PósGraduação em Antropologia Social da UFSC Para fornecer elementos que facilitassem a compreensão da elevada frequência de dispensação de antidepressivos no CS em especial de fluoxetina optouse por quantificar a dispensação de antidepressivos analisar as prescrições de fluoxetina entrevistar usuárias deste medicamento e realizar observação participante durante todo o período da pesquisa Para obter a série histórica do consumo dos antidepressivos escolheramse os meses de janeiro a março de 2007 Os dados do consumo mensal dos antidepressivos constantes na Relação Municipal de Medicamentos Essenciais REMUME amitriptilina fluoxetina e imipramina dispensados no CS foram obtidos consultandose o livro de registro específico dos medicamentos controlados3 BRASIL 1998 Partindose dos dados desse livro de registro buscaram se as receitas de fluoxetina referentes aos meses de janeiro a março de 2007 que se encontravam armazenadas na farmácia do Centro Os dados de gênero e idade foram obtidos consultandose o cadastro do usuário no InfoSaúde sistema de informatização de dados da atenção à saúde utilizado pela Secretaria Municipal de Saúde a especialidade do médico mioloantroppmd 10022010 1443 334 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 335 prescritor a Denominação Comum Brasileira DCB ou nome comercial a quantidade e a posologia foram obtidas analisando se as receitas Quando da ausência da especialidade do prescritor na receita realizouse pesquisa via Internet acessandose o sítio eletrônico do Conselho Regional de Medicina de Santa Catarina4 Para a compreensão do contexto de uso da fluoxetina foi utilizado o método etnográfico usando como técnicas a observação participante durante a pesquisa no serviço de farmácia com anotações em diário de campo e as entrevistas baseadas em roteiro prévio Para a entrevista selecionaramse dois usuários através de abordagem no momento da entrega da fluoxetina O projeto Gênero Subjetividade e Saúde Mental no qual essa pesquisa está inserida recebeu o Parecer favorável n 355 06 do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Santa Catarina e também foi aprovado pela Secretaria Municipal de Saúde de Florianópolis O CENÁRIO DA PESQUISA Em 2007 Florianópolis possuía aproximadamente 396 mil habitantes e a cobertura dos serviços básicos de saúde através da estratégia Saúde da Família atingia em torno de 77 da população Florianópolis 2007a A rede básica era e ainda é a mais utilizada na prestação dos serviços públicos de saúde Sartor 2004 sendo a porta de entrada para os usuários Florianópolis 20022005 mioloantroppmd 10022010 1443 335 336 A Secretaria Municipal de Saúde de Florianópolis encontravase na época da pesquisa na Gestão Plena de Atenção Básica Ampliada5 e gerenciava uma rede composta por 54 unidades de saúde sendo 48 Centros de Saúde CS um ambulatório de especialidades Policlínica II um pronto atendimento no Norte da Ilha um laboratório de análises clínicas e três Centros de Atenção Psicossocial CAPs As unidades de saúde do Município encontravamse divididas em cinco Regionais de Saúde Centro Continente Leste Norte e Sul sendo cada Regional gerenciada por uma equipe composta de um coordenador regional um enfermeiro um técnico de enfermagem e um auxiliar administrativo Estas foram implantadas em junho de 2002 com o propósito de promover o gerenciamento da rede em nível regional Florianópolis 2007b A Regional de Saúde Norte contava com 10 CS entre eles o Centro desse estudo e um Pronto Atendimento Possuía uma população de aproximadamente 65000 habitantes Florianópolis 2007b Os medicamentos sujeitos a controle especial psicotrópicos até outubro de 2006 eram distribuídos no CS Centro e na Policlínica do Estreito Após esta data a entrega de tais medicamentos foi descentralizada e no momento da pesquisa cada Regional de Saúde tinha um CS destinado a esta distribuição O CS deste estudo prestava os serviços de clínica geral mioloantroppmd 10022010 1443 336 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 337 enfermagem odontologia programa Capital Criança vacinação teste do pezinho pediatria ginecologia psiquiatria e farmácia e funcionava das 7h às 19h Havia um farmacêutico responsável pela distribuição dos psicotrópicos que era feita de segundafeira a sextafeira das 8h às 13h A psiquiatra atendia de segundafeira à sextafeira no período da tarde OS ANTIDEPRESSIVOS A dispensação dos medicamentos antidepressivos foi quantificada para os meses de janeiro fevereiro e março de 2007 no CS Tabela 1 Tabela 1 Dispensação de antidepressivos nos meses de janeiro a março de 2007 em um Centro de Saúde Florianópolis Medicamento Janeiro Fevereiro Março Total unidade unidade unidade Amitriptilina 6750 14220 15690 36660 Fluoxetina 24391 11429 29790 65610 Imipramina 5510 5300 6900 17710 Total 36651 30949 52380 119980 Comprimido Cápsula mioloantroppmd 10022010 1443 337 338 Os baixos números na dispensação quando comparados entre si de amitriptilina no mês de janeiro e de fluoxetina no mês de fevereiro justificamse pela falta destes medicamentos nos referidos períodos Esta falta não interferiu na média obtida pois houve um aumento na distribuição assim que a situação se regularizou A fluoxetina foi o antidepressivo mais prescrito 547 no período analisado observandose também significativa diferença com o segundo colocado a amitriptilina 306 e o terceiro colocado a imipramina 148 Considerando os dias de funcionamento do CS por mês foi possível obter uma média diária da distribuição destes medicamentos Tabela 2 Tabela 2 Média mensal e diária da dispensação de antidepressivos nos meses de janeiro a março de 2007 em um Centro de Saúde Florianópolis Medicamento Dispensação média mensal Dispensação média diária unidade unidade Amitriptilina 12220 632 Fluoxetina 21870 1131 Imipramina 5903 305 Comprimido Cápsula mioloantroppmd 10022010 1443 338 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 339 Em um levantamento feito pelo farmacêutico do Centro eram atendidos em média 100 usuários de medicamentos sujeitos a controle especial por dia Segundo os dados obtidos dispensavase fluoxetina para cerca de 15 usuários por dia Comparando a média de usuários destes medicamentos à média obtida dos usuários de fluoxetina é possível observar o quão elevada era a demanda deste antidepressivo AS RECEITAS DE FLUOXETINA Partindose dos dados do livro de registro específico dos medicamentos controlados no CS buscaramse as receitas primeira via de fluoxetina referentes aos meses de janeiro a março de 2007 que se encontravam armazenadas no serviço de farmácia Foram analisadas 855 receitas sendo 330 do mês de janeiro 140 de fevereiro e 385 de março Após a análise das 855 receitas buscouse no InfoSaúde os dados dos usuários Como a análise foi feita para um período de três meses e a fluoxetina era dispensada para no máximo 60 dias de tratamento os usuários poderiam vir mais de uma vez na farmácia neste período Foi preciso então avaliar se os registros dos usuários não se repetiam para então começar a buscar esses dados Obtevese um total de 692 usuários sendo 564 mulheres 815 e 128 homens 185 Desde total 111 mulheres e 30 homens retornaram à farmácia no referido período mioloantroppmd 10022010 1443 339 340 Para a identificação da idade dos usuários de fluoxetina considerouse a data na qual a medicação foi dispensada organizandose por faixa etária Tabela 3 Tabela 3 Distribuição por faixa etária dos usuários de fluoxetina em um Centro de Saúde Florianópolis janeiro março de 2007 Entre as mulheres a faixa etária predominante foi de 41 a 50 anos Já entre os homens as faixas etárias predominantes foram de 31 a 40 anos e de 51 a 60 anos Chamou a atenção o número de usuários abaixo de 20 anos 12 mulheres e 6 homens Obtiveramse ainda os dados estado civil e ocupação mas uma vez que os cadastros no InfoSaúde não eram atualizados com frequência pelos usuários esses dados podiam não expressar a realidade e por isso as autoras optaram por não divulgar os mesmos Faixa etária anos Mulheres n Homens n 10 20 12 21 6 46 21 30 58 103 13 102 31 40 114 202 33 258 41 50 181 321 23 180 51 60 134 238 31 242 61 70 45 80 15 117 71 e mais 20 35 7 55 Total 564 1000 128 1000 mioloantroppmd 10022010 1444 340 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 341 Na análise das prescrições a especialidade do prescritor foi obtida através do carimbo aposto à mesma ou em consulta ao sítio eletrônico do Conselho Regional da categoria CRM SC o dado requerido foi obtido através do número do registro do profissional no referido órgão Entre 30 especialidades médicas que geraram receitas de fluoxetina as principais estão descritas na Tabela 4 Tabela 4 Principais especialidades do prescritor das receitas de fluoxetina em um Centro de Saúde Florianópolis janeiromarço de 2007 Entre as outras especialidades identificadas de acordo com a classificação do órgão regulador médico foram observadas alergia e imunologia anestesiologia cancerologia cirurgia geral cirurgia torácica dermatologia endocrinologia Especialidade do prescritor Receitas n Medicina de família e comunidade 255 298 Psiquiatria 254 297 Clínica médica 62 73 Cardiologia 26 30 Neurologia 26 30 Outras 121 142 Não identificada 108 126 CRM ilegível no carimbo 3 04 Total 855 1000 mioloantroppmd 10022010 1444 341 342 gastroenterologia geriatria ginecologia e obstetrícia hematologia e hemoterapia homeopatia infectologia medicina do trabalho medicina física e reabilitação nefrologia neurocirurgia neurologia pediátrica nutrologia oftalmologia ortopedia e traumatologia pediatria pneumologia reumatologia e urologia Para 108 receitas não foi possível identificar as especialidades porque o dado não estava disponível no sítio eletrônico do CRMSC Segundo a legislação vigente no município à época Instrução Normativa n 012006 Florianópolis 2006 as prescrições médicas odontológicas e de enfermagem no âmbito do Sistema Único de Saúde SUS deviam adotar obrigatoriamente a Denominação Comum Brasileira DCB e todo o medicamento somente seria fornecido mediante apresentação de receita médica odontológica e de enfermagem originais segundo a dosagem e apresentação existente na lista da REMUME Florianópolis 2006 Entre as 855 receitas analisadas 850 adotavam a DCB 994 e 5 06 apresentavam nome comercial sendo que nenhuma delas apresentava o nome de referência Quanto à quantidade de cápsulas 49 57 receitas indicavam tratamento superior a 60 dias sendo que em 32 delas era solicitada uma cápsula ao dia para 90 dias de uso contrariando a Portaria n 34498 Brasil 1998 Verificouse também que a posologia estava ausente em duas receitas 02 e que em 13 receitas 15 ela estava ilegível mioloantroppmd 10022010 1444 342 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 343 AS ENTREVISTADAS A primeira entrevistada foi Dilma 6 43 anos viúva funcionária pública aposentada Tinha dois filhos e nasceu em Florianópolis Não tinha religião definida mas frequentava cultos evangélicos Segundo ela foi diagnosticada com Transtorno Obsessivo Compulsivo TOC e depressão Relatou que sempre apresentou os sintomas e não associava a doença a nenhum fator desencadeante Fazia acompanhamento com psiquiatra e utilizava psicotrópico A entrevista foi realizada em um dia frio de maio em sua própria residência situada em um bairro próximo ao CS Dilma morava com seus dois filhos um deles dependente químico que estava para ser internado Na sala havia quadros e trabalhos artesanais que Dilma confeccionava os quais como comentou considerava sua terapia Dilma foi muito receptiva mostrou ser uma pessoa extrovertida e alegre O resultado foi uma entrevista de mais de uma hora de duração e relatos com riqueza de detalhes A segunda entrevistada foi Maria 62 anos separada advogada aposentada Tinha três filhos e nasceu no município do Rio de Janeiro Era católica Tinha depressão atribuindo a patologia ao falecimento do irmão e a problemas de saúde Fazia acompanhamento com psiquiatra e psicanalista e utilizava fluoxetina Maria foi muito receptiva e a entrevista foi realizada imediatamente após o convite em uma sala do CS Suas mioloantroppmd 10022010 1444 343 344 respostas foram curtas e objetivas sem muitos detalhes A entrevista foi realizada em 10 minutos Essa situação entrevista no próprio Centro e pouco tempo de conversa pode ter enviesado algumas das respostas especialmente aquelas referentes à relação com os médicos embora o único vínculo dela com o CS fosse o recebimento da fluoxetina como veremos abaixo A DISPENSAÇÃO DE ANTIDEPRESSIVOS NO CENTRO DE SAÚDE O presente estudo mostrou que a quantidade expressiva de unidades de antidepressivos dispensada em três meses no CS bem como a indicação de fluoxetina predominantemente para mulheres 815 do total de usuários sendo a maioria delas entre 31 e 60 anos confirmam a importante relação entre gênero e prescrição de antidepressivos já assinalada pela literatura Andrade et al 2004 estudando o cumprimento da legislação quanto à prescrição e dispensação dos medicamentos psicotrópicos das Listas B e C17 definidas pela Portaria n 34498 Brasil 1998 no município de Ribeirão Preto São Paulo analisaram receitas e notificações dos medicamentos retidas em farmácias particulares com manipulação referentes ao mês de novembro de 2000 Foram coletadas 753 receitas sendo 527 701 de substâncias da Lista B e 226 299 da Lista C1 Nesse trabalho as autoras observaram que da Lista C1 o medicamento mais prescrito foi a fluoxetina 688 sendo significativa a diferença para o segundo fármaco mais mioloantroppmd 10022010 1444 344 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 345 prescrito a amitriptilina 125 Os dados observados por Andrade et al 2004 assemelharamse aos encontrados nesta análise a fluoxetina foi o antidepressivo mais prescrito 547 no período analisado também com significativa diferença em relação à amitriptilina 306 e à imipramina 148 Outros trabalhos no Brasil que corroboram tendências semelhantes em outros países ocidentais têm demonstrado que a receita médica de psicotrópicos especialmente antidepressivos e ansiolíticos para mulheres é mais frequente do que para homens Silveira 2000 Diehl 2001 Rodrigues et al 2006 Lima et al 2008 As razões pelas quais os médicos prescrevem esses medicamentos mais frequentemente para as mulheres do que para os homens são complexas Dentre elas autores apontam para a influência da propaganda da indústria farmacêutica que promove os medicamentos como solução para os estresses e os conflitos próprios do papel da mulher descrevendo a depressão como um distúrbio mental feminino Mastroianni et al 2008 as dificuldades do médico para lidar com os problemas socioafetivos das mulheres não vendo alternativas a não ser medicalizálos Whyte et al 2002 a maneira que as mulheres manipulam seus problemas de modo a receberem receitas dos medicamentos que desejam Whyte et al 2002 Em contraste o álcool e o fumo drogas lícitas e não os psicotrópicos parecem ser o principal consolo químico usado pelos homens em diversas sociedades mioloantroppmd 10022010 1444 345 346 Para TraversoYepéz e Medeiros 2004 um dos fatores de maior procura das mulheres pelos serviços de saúde deve se ao fato de que ao assumir o papel de cuidadora na família a mulher tende a prestar uma atenção maior às sensações corporais bem como se preocupar com os sinais e sintomas da doença Observase que as diferenças de gênero relacionadas ao processo saúdedoença referemse muito mais ao papel social às dificuldades socioeconômicas às condições de trabalho e às desigualdades a que as mulheres são submetidas criando uma imagem de fragilidade e submissão Chamou a atenção o número expressivo de receitas emitidas por médicos de família e comunidade Segundo o modelo da Estratégia de Saúde da Família que preconiza vínculo com a população é esse o profissional que acompanha o usuário o que justificaria o dado encontrado Outros estudos Rozemberg 1994 Silveira 2000 Diehl 2001 Rodrigues et al 2006 apontaram que os psiquiatras fornecem menos receitas de psicotrópicos do que os clínicos gerais e outros especialistas pois de maneira geral o usuário consulta uma primeira vez com o psiquiatra e após mantém as receitas com outros médicos que estão mais acessíveis nas comunidades e nos serviços de saúde No caso desse Centro a presença de atendimento psiquiátrico todas as tardes de segundafeira à sextafeira contribuiu para o número significativo de receitas dessa especialidade 3 mioloantroppmd 10022010 1444 346 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 347 Andrade et al 2004 verificaram que quanto à relação entre a especialidade do prescritor e o perfil de prescrição as especialidades foram muito variáveis sendo que em 124 receitas 328 não foi possível identificálas pois não constava o número do CRMSP ou nas que constavam o profissional não estava incluso na listagem que o órgão disponibilizava em sua página eletrônica Entre as prescrições com especialidade identificada a maioria foi emitida por clínicos gerais 251 seguida por psiquiatras 139 neurologistas 121 endocrinologistas 99 e ginecologistas 45 Outras observações sobre as receitas aviadas no CS que mereceram destaque das 13 receitas assinadas por ginecologistas uma foi emitida para um homem as 12 receitas aviadas por pediatras eram de usuários adultos com a faixa de idade variando de 25 a 78 anos Esses dados confirmam que para muitos usuários de psicotrópicos o mais importante é a manutenção da emissão das receitas permitindo muito provavelmente o manejo fora do controle médico Comparando o dado DCB desse trabalho 994 das receitas traziam essa informação com aqueles encontrados por Andrade et al 2004 que observaram que em 782 das receitas os medicamentos não foram prescritos de acordo com a DCB podemos sugerir que em Florianópolis os médicos aderiam melhor a essa exigência legal Segundo o artigo 59 da Portaria n 34498 Brasil 1998 a quantidade prescrita de cada medicamento constante da Lista C1 está limitada a cinco 3 mioloantroppmd 10022010 1444 347 348 ampolas e para as demais formas farmacêuticas a quantidade corresponde a no máximo 60 dias de tratamento As 49 57 receitas que indicavam quantidades superiores ao tratamento de 60 dias geravam problemas na dispensação pois o usuário por desconhecer a legislação exigia a entrega da quantidade prescrita pelo médico o que demandava explicações sobre o motivo para dispensar somente a quantidade permitida pela legislação A ausência da posologia em duas receitas e a ilegibilidade8 em 13 delas podiam também causar problemas já que o número de unidades dispensadas era calculado com base na posologia Além disso a dificuldade de leitura da letra do prescritor tem sido responsável por graves problemas de saúde pois pode induzir a erros no uso O CONTEXTO DE USO DA FLUOXETINA Dilma relatou sofrer de TOC Dizia sempre ter tido os sintomas mas só descobriu que estava doente em setembro de 2006 infelizmente eu fui me dar conta disso aos 40 anos Como não sabia que estava doente Dilma sofreu achando que o problema era com ela Isso a afastou da vida social do convívio com amigos e família Segundo ela Eu perdi alguns amigos alguns colegas eu fiz algumas inimizades no meu local de trabalho casamento eu passei por três Eu atribuo tudo isso ao TOC Dilma Após perceberse doente imputou à doença dificuldades de sua vida Para ela o TOC a impediu de realizar muitas coisas mioloantroppmd 10022010 1444 348 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 349 Quando eu olho pra trás eu vejo que tudo na vida que eu não consegui realizar foi por causa do TOC Aquelas coisas que eu não consegui realizar eu não conseguir realizar por causa do TOC e as coisas que eu perdi eu também perdi por causa do TOC Dilma Ela teve câncer na mandíbula fez tratamento e no momento da entrevista fazia acompanhamento Como já mencionado também tinha problemas com o filho mais novo que era dependente químico Nenhum desses problemas era comparado ao TOC Apesar de todo sofrimento que eu tive com o câncer tudo eu não considero nada pior do que o TOC Considero porque o TOC faz com que eu sinta vontade de morrer eu tenho vontade de me machucar Dilma Maria sofria de depressão Problemas de saúde e o falecimento do irmão desencadearam sua doença Em seu relato Meu irmão um cara novo e tudo teve linfoma Podem ter sido todos esses problemas Porque todo mundo tem problema mas de repente a gente tem um pouco mais do que os outros e você segurar como eu sempre segurei nunca procurei ninguém pra me servir de bengala fui superando as coisas da vida Claro você vai crescendo Tudo tem um preço Maria Quando perguntada se conhecia as causas de sua doença Maria soube informar a possível causa orgânica de sua mioloantroppmd 10022010 1444 349 350 depressão Demonstrou ter conhecimentos mais técnicos sobre a doença e sobre a ação do medicamento Dilma fazia acompanhamento mensal com um médico psiquiatra Chegou a fazer terapia mas Fui a várias terapias Eu parei de ir pra psicoterapia porque eu já tava com vontade de pegar a psicóloga e de socar sabe Eu sentia raiva Eu não queria admitir de jeito nenhum que eu tinha algum problema não queria admitir que eu tivesse que tomar um psicotrópico sabe Dilma Usuária de fluoxetina desde setembro de 2006 começou a terapia com uma cápsula ao dia e chegou a tomar quatro cápsulas Ela era a grande responsável pelo manejo de sua terapia como relatou Ele o médico acha que eu tô tomando quatro cápsulas Já faz um tempão que eu tomo três Como eu não quero ficar sem medicação eu deixo ele pensar que eu to tomando quatro aí eu nunca fico sem Dilma Para não ficar sem a medicação ela não contou ao médico que diminuiu a dosagem e assim continuava obtendo prescrições de quatro cápsulas diárias Para Dilma o médico era um instrumento para conseguir a prescrição Whyte et al 2002 descrevendo um estudo realizado entre mulheres holandesas usuárias de benzodiazepínicos medicamentos ansiolíticos enfatizaram o papel ambíguo dos medicamentos na vida delas pois assim como aumentavam a dependência de mioloantroppmd 10022010 1444 350 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 351 consultas e eram agentes de controle médico eles eram importantes recursos de poder dando às usuárias controle sobre suas vidas isto é nas interações entre mulheres com problemas de saúde mental9 e tranqüilizantes pode ser dito que mulheres e medicamentos têm agência Whyte et al 2002 p 61 Segundo esses autores inicialmente os médicos exercem poder pois prescrevem os medicamentos ainda que as mulheres possam manipular esse momento representando seus problemas de tal maneira a obter os medicamentos que desejam com o uso contínuo as mulheres passam a ter o controle decidindo quando e como tomam seus medicamentos e certificandose de que conseguirão os mesmos através dos médicos o uso contínuo não é questionado pelos profissionais pela família ou pelos amigos e esse silêncio dá autonomia às mulheres para algumas mulheres que se tratam por muito tempo com aumento das doses há um sentimento de perda do controle e nesse estágio o medicamento é que tem mais poder No caso de Dilma encontravase há poucos meses usando a fluoxetina conferindolhe autonomia sobre seu tratamento Além disso a manipulação do tratamento e da relação com o médico tinha motivos práticos pois Dilma já havia enfrentado o desabastecimento do antidepressivo na rede pública e para ela fazer um estoque minimizava o problema de uma possível falta do mesmo Foi observado durante a pesquisa que muitos usuários chegavam com receitas do Dr X que fazia prescrições mioloantroppmd 10022010 1444 351 352 de por exemplo quatro tipos de antiinflamatórios para a mesma pessoa O farmacêutico da unidade relatou que a comunidade gostava do Dr X pois com suas receitas se podia armazenar medicamentos em casa já que a falta destes era recorrente nos Centros de Saúde Portanto essa estratégia dos usuários compensava o receio de ficar sem medicamentos Dilma usou fluoxetina pela primeira vez quando um de seus filhos sofreu um acidente Segundo seu relato ela foi bem orientada para tomar uma cápsula por vez mas por livre arbítrio tomou 30 de uma só vez e ficou cerca de uma semana praticamente dormindo Ela não contou ao médico que tomou esta quantidade de cápsulas mas questionou o papel do prescritor Meu Deus como esses médicos são irresponsável né Dá um monte de remédio desses pra uma pessoa que estava no estado que eu tava Por pouco eu não morri né Dilma Eu acho pra te falar a verdade que esses psiquiatras são uns irresponsáveis eu acho Porque se eu chegar lá pra ele e contar uma historinha pra ele e pedir um monte de remédio pra dormir com certeza ele vai dar Dilma Maria fazia acompanhamento com endocrinologista e foi este médico que indicou o uso da fluoxetina Meu médico quis que eu tomasse porque eu tava com problema de ficar assim Um pouco parada e tive uma fase né de vontade de não sair de casa Maria Após a indicação do endocrinologista Maria procurou mioloantroppmd 10022010 1444 352 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 353 um psiquiatra com quem fazia acompanhamento no período da entrevista Ela possuía uma boa relação de confiança com seu médico Eu tenho um grande médico me tratando então a gente tem aquela certeza de ter um suporte bom Maria As relações estabelecidas com os médicos diferiam entre Maria e Dilma Maria tinha confiança em seu médico e atribuía a ele a decisão de iniciar e cessar o uso da medicação já Dilma questionava o papel do médico e era a responsável pela sua terapia utilizando desta relação para obter o que necessitava isto é a prescrição Para Carvalho e Dimenstein 2003 o medicamento representa na relação médicousuária o poder que esse profissional exerce na medida em que é ele que sabe o que é bom para a paciente Segundo as autoras nessa relação existe geralmente uma submissão ao saber e à figura do médico como autoridade que não pode ser colocada em dúvida principalmente se o profissional é aquele que a acompanha há muito tempo Por outro lado existe uma linha tênue entre medicamento prescrito a automedicação pois não se tem a certeza de que os medicamentos serão utilizados corretamente conforme a posologia médica Van Der Geest et al 1996 Dilma mesmo relatando não gostar de usar medicamentos criou uma relação de dependência com a fluoxetina Em seus relatos o medicamento aparecia como o principal responsável pela sua melhora mioloantroppmd 10022010 1444 353 354 Eu atribuo a minha melhora ao remédio Não à psicoterapia não à consulta com o psiquiatra Dilma grifo das autoras Mas eu tenho percebido que depois que eu comecei a tomar a fluoxetina eu tô mais tranquila pra cuidar dos outros problemas Dilma Ela condicionava seu dia ao medicamento à fluoxetina levantar da cama fazer suas atividades sair de casa Fica sempre em cima do armário Eu nunca deixo de tomar é a primeira coisa que eu faço quando eu acordo Nem tomo café nada A primeira coisa que eu faço é tomar a fluoxetina Dilma Eu já sinto de manhã como é que eu tô Todo dia Eu não me esqueço um dia só de tomar o comprimido nenhum dia porque pra mim é a coisa mais séria da minha vida Dilma grifo das autoras É uma coisa assim bem engraçada porque o comprimido na realidade ele tem me ajudado muito assim ele tornou pra mim meu melhor amigo Se eu vou pro centro eu levo o comprimido se eu vou viajar eu levo o comprimido Qualquer lugar eu vá eu levo o comprimido porque eu não sei né se eu vou ficar ou se eu vou voltar Eu não posso deixar acontecer Dilma grifo das autoras A entrevistada deixou claro que não pretendia abandonar o tratamento mioloantroppmd 10022010 1444 354 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 355 Nunca abandonei o medicamento não vou abandonar Posso abandonar marido filho colega porque eu tenho a impressão de que se eu parar a fluoxetina agora eu vou ter uma crise redobrada de TOC Dilma O medicamento aparecia personificado como um melhor amigo Representava a solução para um grande problema em sua vida o TOC e por isso ganhava lugar de destaque em sua vida Era atribuído a ele um poder extraordinário com um sentido que extrapolava as indicações terapêuticas desse recurso Maria utilizava outros medicamentos devido a outras comorbidades Dizia não gostar de tomar medicamentos mas que aderia ao tratamento por ser necessário Em suas palavras Eu não gosto de tomar remédio mas a fluoxetina eu fui realmente compelida a tomar porque bom Eu não vou entrar em parafuso pra amanhã ou depois tá morrendo cedo sem necessidade e tem muita gente precisando de mim tambéme eu também tenho que achar alguma coisa de que gostar na minha vida Maria Para Maria a fluoxetina representava um importante recurso para enfrentar a sua vida e poder continuar sendo apoio de outras pessoas Segundo ela o tratamento com a fluoxetina não seria contínuo Assim que o médico diagnosticasse a cura de sua doença ela pretendia descontinuar o uso Em suas palavras era possível identificar a importância do papel do médico no manejo da terapia Segundo ela mioloantroppmd 10022010 1444 355 356 Com certeza melhorei Curar ainda não me sinto curada ainda não me sinto com o pique necessário pra poder parar de tomar Quem vai dizer isso talvez junto com aquilo que eu conversar com ele vai ser meu próprio médico né Maria Quando questionada sobre sua religião Dilma dizia não acreditar em mais nada Frequentava alguns cultos evangélicos em uma igreja próxima de sua casa A fluoxetina assumia papel em sua vida que a religião não alcançou o da cura Segundo ela Tem hora que eu faço umas coisas que não sou eu não sou eu Parece que me baixa uma coisa um troço sabe Eu acreditei em tanta coisa Em nome de Jesus eu fiz tanta coisa pra me livrar disso e acabei na fluoxetina e com a fluoxetina eu não sinto mais isso A minha melhor amiga chamase fluoxetina Dilma grifo das autoras Não precisei comprar vela não precisei comprar coração de boi nada risos Não precisei trocar de religião Foi tão simples resolver Dilma Segundo Whyte et al 2002 nas sociedades modernas o medicamento tem substituído a religião como ideologia moral dominante e instituição de controle tornando mais e mais o dia adia sob o domínio influência e supervisão médica As críticas à medicalização indicam que o processo tem efeitos negativos que diminuem a autonomia transformam o indivíduo em paciente e aumentam sua dependência na profissão médica e indiretamente na indústria farmacêutica mioloantroppmd 10022010 1444 356 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 357 Carvalho e Dimenstein 2003 citando Barros relataram que o medicamento assume uma conotação de mercadoria e também um duplo papel ao satisfazer ao mesmo tempo os interesses do capital e do modelo hegemônico que orienta a prática médica A partir desta idéia generalizada de solução ele satisfaz as expectativas do paciente e do profissional quando da prescrição momento que se transformou na parte mais importante da consulta Na relação médicousuária o profissional até consegue ampliar a visão sobre os problemas da mulher usuária dos medicamentos psicotrópicos na medida em que os reporta a aspectos sociais e econômicos Porém esse olhar escapa da possibilidade de atuação dos profissionais já que as questões sociais não lhes dizem respeito O social aparece de uma maneira totalmente naturalizada como se todas as mulheres vivenciassem esses eventos da mesma forma e por não levarem em conta a subjetividade das usuárias eles acabam por atuar de forma reducionista medicalizando os problemas Diehl 2001 Carvalho Dimenstein 2003 A alta medicalização dos processos de doença pode estar encobrindo questões de mudanças sociais e culturais mais profundas semelhante ao que Rozemberg 1994 encontrou entre uma população rural no Espírito Santo em relação ao uso de ansiolíticos onde as dificuldades em manter os modos tradicionais de agricultura de subsistência têm sido silenciadas pelo uso de calmantes Rozemberg 1994 p 307 Da mesma maneira Silveira 2000 observou que entre moradoras de um mioloantroppmd 10022010 1444 357 358 bairro de Florianópolis Santa Catarina o uso de medicamentos através da receita azul significou a medicalização de problemas socioafetivos econômicos e outros não passíveis de melhora com calmantes erros na dosagem e uso prolongado de agentes psicoativos com graus de dependência e iatrogênese variáveis Silveira 2000 p 76 Para essa autora na perspectiva das pacientes e de sua família a medicalização dos problemas sociais funcionava somente como uma solução para o médico já que mesmo usando tais medicamentos as crises permaneciam É necessário ainda compreender que a prática da medicalização na saúde mental e em todos os outros âmbitos de atenção à saúde é reflexo de um modelo de formação médico centrado especialista curativista focado no medicamento e que incentiva o uso abusivo de tecnologias É preciso levar em consideração também o papel da indústria farmacêutica na manutenção deste modelo Dilma e Maria relataram que mantinham o vínculo com o CS apenas em função da possibilidade de obter o medicamento Ao longo da pesquisa foi possível perceber que essa era uma prática constante entre os usuários dos antidepressivos Outros autores Rodrigues et al 2006 Lima et al 2008 encontraram associação significativa entre o alto consumo de psicotrópicos e a utilização de serviços públicos de saúde Embora os dados indiquem melhor acesso aos antidepressivos e outros fármacos psicoativos no caso de mioloantroppmd 10022010 1444 358 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 359 Florianópolis com a descentralização da dispensação dos medicamentos controlados em cinco CS de atenção básica o fato de não haver outros vínculos com o CS restringia e dificultava o trabalho dos profissionais envolvidos pois não conhecendo e acompanhando o usuário o trabalho destes limitavase a somente fornecer o medicamento Além disso podese sugerir que a organização do serviço estava contribuindo para a medicalização pois os serviços ofertados eram basicamente o atendimento individual e a entrega dos medicamentos Essa situação indica que no planejamento e organização dos serviços de atenção básica devem ser considerados participação comunitária controle social saberes populares eou tradicionais sobre saúde e doença redes sociais grupos de autoajuda abordagem de patologias crônicodegenerativas envelhecimento adolescência dependência química violência relações de gênero e educação para a saúde fazendose necessário o entendimento dos sentidos atribuídos pelos sujeitos aos eventos patológicos às políticas públicas e aos serviços de saúde que lhe são acessíveis Garnelo Langdon 2005 p 135 Os dados desta pesquisa lançam algumas questões a ampla variedade de especialidades médicas identificadas nesse estudo está apta para diagnosticar e tratar comorbidades que requeiram o uso de fluoxetina Será que todos os casos demandam tratamento com terapia medicamentosa Sabese que há a mioloantroppmd 10022010 1444 359 360 sobrevalorização do medicamento e a não consideração de outros fatores no processo saúdedoença As visões divergentes entre as duas usuárias por exemplo na relação com o medicamento e com o prescritor reforçam que o processo saúdedoença não é um evento biológico universal como propõe a biomedicina e suas intervenções mas que as concepções e experiências individuais sobre o mesmo marcadas por um contexto sociocultural e político específico afetam as formas ou padrões de consumo e as percepções dos medicamentos da parte dosas usuáriosas 1 Segundo a Portaria n 34498 Brasil 1998 psicotrópico é a substância que pode determinar dependência física ou psíquica e relacionada como tal nas listas aprovadas pela Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas reproduzidas nos anexos da Portaria 2 A fluoxetina um inibidor seletivo da recaptação de serotonina ISRS é um agente psicotrópico cujas propriedades antidepressiva antiobsessivacompulsiva e antibulímica são atribuídas à inibição da captação da serotonina nos neurônios do sistema nervoso central A ligação aos receptores muscarínicos histaminérgicos alfa1 adrenérgicos e outros receptores no cérebro é muito menor quando comparada com os antidepressivos tricíclicos clássicos As indicações classificadas pelo órgão regulador dos Estados Unidos da América FDA Food and Drug Administration são depressão transtorno obsessivocompulsivo TOC bulimia nervosa transtorno do pânico síndrome de tensão prémenstrual 3 No Brasil a legislação que aprova o regulamento técnico sobre NOTAS mioloantroppmd 10022010 1444 360 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 361 substância e medicamentos sujeitos a controle especial é a Portaria n 34498 SVSMS de 12 de maio de 1998 Brasil 1998 4 Portal Médico CRMSC Disponível em http w w w p o r t a l m e d i c o o r g b r indexaspopcaopesqmedcrmportalSC Acesso em 19 maio 2007 5 A Gestão Plena da Atenção Básica Ampliada foi definida pela Norma Operacional da Assistência à Saúde do SUS em 2001 Brasil 2001 conhecida como NOASSUS 0101 sendo que os municípios habilitados deveriam incluir como áreas estratégicas mínimas de atuação o controle da tuberculose a eliminação da hanseníase o controle da hipertensão arterial o controle da diabetes mellitus a saúde da criança a saúde da mulher e a saúde bucal O processo de habilitação dos municípios para a gestão do sistema de saúde conforme a NOASSUS 0101 foi extinto em 2006 pelo Pacto pela Saúde Brasil 2006 mas o município de Florianópolis na época da pesquisa ainda não havia aderido integralmente às novas regras 6 Os nomes foram alterados para preservar a identidade das entrevistadas 7 Os antidepressivos fluoxetina amitriptilina e imipramina fazem parte da Lista C1 sujeitos a Receita de Controle Especial em duas vias 8 A ilegibilidade de uma receita para qualquer classe terapêutica é classificada como falta ética pelo artigo 39 do Código de Ética Médica CFM 1988 9 No original em inglês female distress foi identificado como problemas de saúde mental incluindo ansiedade e insônia Whyte et al 2002 p 52 mioloantroppmd 10022010 1444 361 362 ANDRADE Márcia F ANDRADE Regina C G SANTOS Vânia Prescrição de psicotrópicos avaliação das Informações contidas em receitas e notificações Revista Brasileira de Ciências Farmacêuticas v 40 n 4 p 471479 outdez 2004 AZIZE Rogério L A química da qualidade de vida um olhar antropológico sobre o uso de medicamentos e saúde em classes médias urbanas brasileiras 2002 118 f Dissertação Mestrado em Antropologia Programa de PósGraduação em Antropologia Social Universidade Federal de Santa Catarina Florianópolis 2002 BRASIL Ministério da Saúde Portaria n 344 de 12 de maio de 1998 Aprova o Regulamento Técnico sobre substâncias e medicamentos sujeitos a controle especial Republicada no Diário Oficial da União de 31 de dezembro de 1998 Seção I p 5064 BRASIL Ministério da Saúde Portaria n 95 de 26 de janeiro de 2001 Aprova na forma do Anexo desta Portaria a Norma Operacional da Assistência à Saúde NOASSUS 012001 Disponível em httpelegisanvisagovbrleisrefpublic showActphpid696wordnoas Acesso em 03 agosto 2009 BRASIL Ministério da Saúde Portaria n 399 de 22 de fevereiro de 2006 Divulga o Pacto pela Saúde 2006 Consolidação do SUS e aprova as Diretrizes Operacionais do Referido Pacto Disponível em httpelegisanvisagovbrleisrefpublic showActphpid21812wordPacto pela Saude Acesso em 03 agosto 2009 CARVALHO Lúcia F DIMENSTEIN Magda A mulher seu médico e o psicotrópico redes de interfaces e a produção de REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS mioloantroppmd 10022010 1444 362 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 363 subjetividade nos serviços de saúde Revista Interações v 8 n 15 p 3764 janjun 2003 CFM Conselho Federal de Medicina Resolução CFM n 1246 Código de Ética Médica de 08 de janeiro de 1988 Disponível em h t t p w w w p o r t a l m e d i c o o r g b r indexaspopcaocodigoeticaportal Acesso em 28 maio 2007 DIEHL Eliana E Entendimentos Práticas e Contextos Sociopolíticos do Uso de Medicamentos entre os Kaingáng Terra Indígena Xapecó Santa Catarina Brasil 2001 230 f Tese Doutorado em Saúde Escola Nacional de Saúde Pública Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro 2001 ETKIN Nina L ROSS Paul J MUAZZAMU Ibrahim The indigenization of pharmaceuticals therapeutic transitions in rural hausaland Social Science and Medicine v 30 n 8 p 919928 1990 FLORIANÓPOLIS Secretaria Municipal de Saúde Plano Municipal de Saúde Gestão 20022005 20022005 Disponível em httpwwwpmfscgovbrsaude Acesso em 03 agosto 2009 FLORIANÓPOLIS Secretaria Municipal de Saúde Instrução Normativa n 1 2006 Disponível em httpwwwpmfscgovbr saude Acesso em 28 maio 2007 FLORIANÓPOLIS Secretaria Municipal de Saúde Plano Municipal de Saúde de Florianópolis 20072010 2007a Disponível em httpwwwpmfscgovbrsaude Acesso em 03 agosto 2009 FLORIANÓPOLIS Secretaria Municipal de Saúde Unidades Locais de Saúde com Medicamentos Controlados 2007b Disponível em httpwwwpmfscgovbrsaude Acesso em 11 abril 2007 LANGDON Esther Jean GARNELO Luiza A antropologia e a mioloantroppmd 10022010 1444 363 364 reformulação das práticas sanitárias na atenção básica à saúde In MINAYO MCS COIMBRA JR CEA org Críticas e Atuantes Ciências Sociais e Humanas em Saúde na América Latina Rio de Janeiro FIOCRUZ 2005 p 133156 LIMA Maria Cristina Pereira MENEZES Paulo Rossi CARANDINA Luana CESAR Chester LG BARROS Marilisa BA GOLDBAUM Moisés Transtornos mentais comuns e uso de psicofármacos impacto das condições socioeconômicas Revista de Saúde Pública v 42 n 4 p 717723 ago 2008 MASTROIANNI Patrícia C VAZ Amanda CR NOTO Ana R GALDURÓZ José CF Análise do conteúdo de propagandas de medicamentos psicoativos Revista de Saúde Pública v 42 n 5 p 968971 out 2008 MOORE Anna Felicidade na dose certa Carta Capital São Paulo 23 mai 2007 Especial ano XIII n 455 p 813 RODRIGUES Maria Aparecida P FACCHINI Luiz A LIMA Maurício S Modificações nos padrões de consumo de psicofármacos em localidade do Sul do Brasil Revista de Saúde Pública v 40 n 1 p 107114 janfev 2006 ROUDINESCO Elisabeth Porque a psicanálise Rio de Janeiro Jorge Zahar 2000 p 1352 ROZEMBERG Brani O consumo de calmantes e o problema de nervos entre lavradores Revista de Saúde Pública v 28 n 4 p 300308 1994 SARTOR Vanessa de B A assistência farmacêutica e a estratégia saúde da família em busca da integralidade da atenção à saúde no Curso de Especialização em Saúde da FamíliaModalidade Residência 2004 Trabalho de Conclusão Especialização em Saúde da Família mioloantroppmd 10022010 1444 364 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 365 Curso de Especialização Multiprofissional em Saúde da Família Modalidade Residência Universidade Federal de Santa Catarina Florianópolis 2004 SILVEIRA Maria Lúcia O Nervo Cala O Nervo Fala A Linguagem da Doença Rio de Janeiro FIOCRUZ 2000 123 p TRAVERSOYÉPEZ Marta MEDEIROS Luciana F Tremendo diante da vida um estudo de caso sobre a doença dos nervos Revista Interações v 9 n 18 p 87108 juldez 2004 VAN DER GEEST Sjaak Pharmaceutical in the Third World the local perspective Social Science and Medicine v 25 n 3 p 273 76 1987 VAN DER GEEST Sjaak WHYTE Susan R The charm of medicines metaphors end metonyms Medical Anthropology Quarterly v 3 n 4 p 345367 1989 VAN DER GEEST Sjaak WHYTE Susan R HARDON Anita The anthropology of pharmaceuticals a biographical approach Annual Review of Anthropology v 25 p 15378 1996 WHO World Health Organization The World Medicines Situation Geneve WHO 2004 WHYTE Susan VAN DER GEEST Sjaak Medicines in Context an Introduction In VAN DER GEEST Sjaak WHYTE Susan ed The Context of Medicines in Developing Countries Studies in Pharmaceutical Anthropology Dordrecht Kluwer Acad Publ 1988 p 311 WHYTE Susan R VAN DER GEEST Sjaak HARDON Anita Woman in distress medicines for control In WHYTE Susan R VAN DER GEEST Sjaak HARDON Anita org Social lives of medicines Cambridge Cambridge University Press 2002 p 5063 mioloantroppmd 10022010 1444 365 mioloantroppmd 366 10022010 1444 INTRODUÇÃO No livro A cientista que curou o seu próprio cérebro a neurocientista Jill Bolte Taylor relata como se recuperou de um derrame no lado esquerdo do seu cérebro partindo do momento em que percebeu que estava tendo um AVC até o que ela chama de my stroke of insight uma tomada de consciência de que ela poderia em parte assumir o comando do que se passa no seu cérebro escolhendo reativar ou não determinados neurocircuitos em seu processo de recuperação2 Não se trata aqui de apresentar o livro mas apenas tomar de empréstimo uma frase curta porém paradigmática para introduzir o debate que proponho aqui A saúde mental de nossa sociedade é estabelecida pela saúde mental dos cérebros que a formam Taylor 2008 p 190 Duas questões relacionadas entre si surgem de imediato a partir deste excerto A primeira seria o que significa saúde mental no contexto da frase de Taylor a segunda seria a NOTAS DE UM NÃOPRESCRITOR UMA ETNOGRAFIA ENTRE OS ESTANDES DA INDÚSTRIA FARMACÊUTICA NO CONGRESSO BRASILEIRO DE PSIQUIATRIA1 Rogerio Azize mioloantroppmd 10022010 1444 367 368 propósito da relação que a frase estabelece entre mente e cérebro Não precisamos ir muito longe para perceber que mente no trecho apresentado é uma espécie de fenômeno de segunda ordem do cérebro uma consequência da atividade em rede de nossos bilhões de neurônios o mesmo valendo para a idéia de saúde ou doença mental Esta é a perspectiva que as neurociências contemporâneas assim como a corrente que se convencionou chamar psiquiatria biológica nos apresentam hoje uma visão fisicalista da idéia de mente que trabalha com a possibilidade de uma base biológica para as doenças mentais em suas mais variadas formas Assim cérebro mente e sujeito se confundem saúde mental parece ser um sinônimo para saúde cerebral e males como a esquizofrenia e as variantes da depressão e da ansiedade possuiriam uma materialidade equivalente a um acidente vascular cerebral3 Mais um ponto merece destaque no trecho acima destacado A noção de que a saúde mental de uma sociedade é estabelecida pela saúde mental dos cérebros que a formam traz embutido o pressuposto nada óbvio de que uma sociedade é formada por cérebros Temos aqui uma pista etnográfica importante um acento no cerebralismo face específica da idéia mais ampla de um fisicalismo marca a noção de pessoa que perfaz tais discursos e marca mesmo uma noção de sociedade A difusão destas idéias é um processo complexo que se dá em inúmeros espaços mas não sem encontrar opositores ou pesquisadores que trabalham com uma perspectiva mioloantroppmd 10022010 1444 368 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 369 interacionista entre mente e cérebro4 Ainda que uma visão de mundo cerebralista tenha hoje larga difusão não se trata de um ponto de vista unívoco mesmo internamente à psiquiatria como aponta uma já razoável bibliografia produzida por profissionais da área5 Este artigo apresenta dados de uma etnografia realizada em um espaço onde essa tensão entre diferentes paradigmas a respeito da saúde mentalcerebral se mostra bastante evidente o Congresso Brasileiro de Psiquiatria que no de 2007 estava em sua 25ª edição em Porto Alegre Participei deste congresso movido especialmente por um interesse no marketing dos psiconeurofármacos já informado de que parte do espaço físico do evento é ocupada por estandes de laboratórios farmacêuticos agentes importantes na difusão de uma perspectiva fisicalista das doenças mentais tanto para o público leigo quanto para os profissionais da biomedicina Minha intenção era etnografar este espaço do evento ainda sem muita clareza de como isso poderia ser feito e coletar material publicitário para posterior análise O evento assim eu soube posteriormente recebeu 5038 congressistas inscritos em atividades científicas e o público total presente foi de 7000 pessoas o que faz desta reunião a terceira maior em sua especialidade conforme informa a própria Associação Brasileira de Psiquiatria ABP organizadora e promotora do evento6 Tanto as atividades científicas quanto a área de exposições ocupavam o centro de eventos e exposições mioloantroppmd 10022010 1444 369 370 da Federação das Indústrias do Estado do Rio Grande do Sul FIERGS Em síntese tratase de um evento de grandes proporções cuja programação se espalha por mesas redondas sobre os mais diversos temas 67 ao todo conferências especiais simpósios fóruns sessões de casos clínicos e sessões de vídeos Alguns simpósios chamados justamente de Simpósios da Indústria são organizados pelos laboratórios farmacêuticos com objetivos específicos de divulgação Em alguns casos é possível encontrar o mesmo profissional apresentando trabalhos em atividades diversas como por exemplo em uma conferência especial e em um simpósio da indústria o que demonstrava haver trânsito entre as áreas científica e comercial do congresso Os limites deste texto vão pouco além da área dos expositores apesar da programação do congresso ir muito além disso Por vezes farei menção a outros espaços e atividades do congresso mas somente quando isso for essencial e especialmente quando estas atividades estiverem em relação de identidade ou oposição ao que vi nos estandes da indústria Isso não significa que as outras atividades do congresso não sejam dignas de nota mas um relato ainda mais extenso vai além das possibilidades deste artigo No Brasil lembremos é vetada a publicidade de medicamentos controlados caso de grande parte dos medicamentos que atuam no sistema nervoso central diretamente ao público consumidor sendo assim a publicidade mioloantroppmd 10022010 1444 370 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 371 de laboratórios voltada aos profissionais de saúde aptos a prescrever cresce ainda mais em importância no processo de divulgação de medicamentos A relação que se estabelece a partir daí entre indústria e médicos vem sendo alvo de críticas que denunciam desde uma possível criação e difusão de diagnósticos7 favorecendo os interesses comerciais da indústria o que já foi chamado de disease mongering8 até uma desobediência às regras que limitam a publicidade aberta ao consumidor9 Aliás vale dizer que mesmo seguidas à risca tais limitações não significam que a indústria farmacêutica não tenha formas de acesso ao público leigo se atentarmos às inúmeras campanhas de sensibilização criadas pela indústria farmacêutica que não divulgam determinados medicamentos mas sim determinadas doenças mas que podem funcionar como um mecanismo poderoso de divulgação indireta de um ou outro produto10 Fazse necessário ainda sublinhar a seriedade com a qual um tema como a saúde mental deve ser encarado seja qual for o front de pesquisa Mas por que ocupar algumas linhas com essa observação redundante No caso da área de estandes do Congresso Brasileiro de Psiquiatria parte do relato pode soar engraçada e até irônica se algo soar assim é preciso lembrar que este espaço é dedicado à divulgação de medicamentos mas também acaba por funcionar como uma área de lazer dos congressistas alimentação sorteios distribuição de brindes diversos sociabilidade o que pode gerar cenas de fato peculiares A pretensão deste artigo é muito mais etnográfica mioloantroppmd 10022010 1444 371 372 do que teórica assim sendo serei econômico nas citações mas procuro fazer justiça nas breves notas de rodapé a autores que me são de grande inspiração ENTRE OS ESTANDES Minha intenção ao chegar ao local da reunião era permanecer na área destinada aos estandes da indústria farmacêutica o que de fato fiz na maior parte do tempo durante os quatro dias de congresso Mas ao analisar melhor o programa oficial outros eventos chamaram a minha atenção como os simpósios da indústria palestras e mesasredondas Ainda assim procurei me concentrar na chamada área dos expositores Ao fazer a inscrição recebi um crachá com uma tarja azul bebê a cor é assim identificada no Programa Oficial do Congresso que identificava a categoria estudante Outras cores eram destinadas aos membros da organização vermelho associados da Associação Brasileira de Psiquiatria verde escuro médicos amarelo escuro profissionais da saúde azul etc Logo no espaço de recepção aos congressistas depareime com uma placa na qual se lia AVISO é permitido o acesso de congressistas não médicos na área de exposição da indústria desde que sejam respeitadas as normas da ANVISA Os participantes do evento têm sua categoria profissional facilmente identificada de acordo com as cores da tarja do crachá É proibida a distribuição de materiais publicitários de medicamentos a profissionais de saúde não habilitados a prescrever mioloantroppmd 10022010 1444 372 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 373 Como uma de minhas intenções era colher material publicitário fiquei preocupado com a restrição legal de distribuição do material A cor azul bebê em meu crachá explicitava minha condição de estudante e poderia dificultar assim eu acreditava meu acesso a alguma atividade dos estandes e ao material distribuído É claro que eu não tinha a intenção de me fazer passar por médico ou mesmo estudante de medicina mas como veremos logo adiante a minha condição de estudante pouco me atrapalhou devido à forma como as regras da agência reguladora parecem ser interpretadas naquele espaço No mesmo prédio contíguo ao espaço de inscrição e recepção abriase um amplo salão ocupado pelos expositores Uma linha imaginária dividia este salão em dois lados um deles ocupado pelos estandes da indústria farmacêutica e o outro ocupado por estandes de livrarias grupos de ajuda mútua chapelaria e venda de produtos identificados com a região como chocolates e doces Não foi sem alguma angústia que dei os primeiros passos no que me parecia ser uma espécie de Shopping Center voltado exclusivamente para o marketing de psiconeurofármacos e comecei a me aproximar dos estandesA comparação com um centro de compras pode soar estranha visto que eu estava em um congresso científico mas de fato é a imagem mais próxima que me vem à cabeça em termos comparativos Visto de cima a partir de um andar mais alto ficava evidente uma diferença mioloantroppmd 10022010 1444 373 374 entre os dois lados do amplo salão o estímulo visual iluminação e concentração de congressistas circulando era claramente maior no lado ocupado pela indústria Quanto à minha ansiedade ficava por conta de uma estréia em um novo campo com regras que teriam que ser decodificadas em pouco tempo já que se tratava de uma experiência curta de 4 dias ainda que bastante concentrada em um espaço físico relativamente pequeno mas não por isso menos complexo e denso de significados O relato da minha experiência neste espaço não é linear no tempo ou no espaço já que voltei várias vezes aos mesmos estandes em momentos e dias diferentes do congresso Procurei visitálos com atenção a todos mas sem dúvida alguns deles pelo seu tamanho decoração ou pelas atividades que propunham aos congressistas chamavam de imediato mais atenção do que outros Por vezes um estande de apresentação menos espetacular poderá concentrar a presença de congressistas incluindo a mim mesmo devido a algum brinde distribuído à presença de uma celebridade ou uma alimentação específica A dinâmica da minha circulação pela área dos estandes variava ao sabor das atividades que chamavam mais atenção a cada momento Optei então por uma apresentação não linear que toma como ponto de partida cada estande em separado seriam vários os exemplos possíveis então me concentrarei em alguns que considero mais significativos no que diz respeito à densidade das experiências etnográficas e mesmo ao fato de ter havido alguma interação com os funcionários dos estandes e com os congressistas mioloantroppmd 10022010 1444 374 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 375 CYMBALTA QUÍMICA E SENTIDOS Quando comecei a circular pela área dos expositores as atividades do congresso estavam apenas começando impressos ainda estavam sendo arrumados para distribuição e algumas equipes pareciam estar tendo os primeiros contatos com ações de marketing dos estandes O primeiro expositor que prendeu minha atenção na verdade o primeiro estande no lado da indústria para quem adentrava o salão vindo da área de recepção divulgava o medicamento Cymbalta cloridrato de duloxetina11 do Laboratório Lilly BoehingerIngelheim Ao me aproximar do estande recebi alguns brindes um biscoito da sorte cuja mensagem era preparado para ver as coisas de forma diferente e um pequeno brinquedo plástico com uma lente que aumenta um pequeno impresso interno uma espécie de óculo no qual se lia PR3P4RADO P4R4 V3R A5 CO1545 D3 UM J3170 D1F3R3N73 Visite o estande do Cymbalta Conforme anunciado em um pequeno folheto que me foi entregue as ações de marketing neste espaço estavam baseadas no conceito trata além do óbvio O promotor que trabalhava no estande me explica a idéia além de tratar a depressão o remédio trata sintomas associados à doença como dores e problemas sexuais e aí estaria a conexão com ver as coisas de forma diferente ou com o além do óbvio O foco da ação de marketing mais visível estaria nos sintomas físicos da depressão dividindo a atenção com os sintomas emocionais mioloantroppmd 10022010 1444 375 376 As atividades estavam voltadas de diferentes formas para o estímulo dos sentidos No interior do estande três espaços principais chamavam atenção o planetário de palavras a parede dos sentidos e um balcão com serviço de café e alimentação Além disso no chão do estande estavam impressas as frases a depressão fez de mim uma pessoa solitária meu sonho é voltar à vida que eu tinha antes vivo preocupada e não consigo resolver nada minha vida não é mais como era antes Já nas paredes principais impressos maiores contrapunham problemas e soluções um deles mostra uma mulher com as mãos na cabeça e destaque para a frase estou me sentindo desanimada o tempo todo a partir da palavra desanimada saem traços que indicam outros termos perda de prazer tristeza ansiedade queixas dolorosas tensão muscular e alteração do apetite Em contraposição o impresso central do estande destaca uma mulher sorrindo e a frase eu posso ter a minha vida de volta e a partir da palavra vida indicavase os termos tempo com a família voltar a trabalhar ter confiança sorrir reencontrar amigos e caminhar É digno de nota um certo recorte de gênero neste estande já que as imagens em destaque são sempre de mulheres o mesmo valendo para o material impresso distribuído Fica mais do que evidente ao menos no que diz respeito a este estande a relação entre a depressão e uma imagem feminina Isso não deveria ser surpresa já que no caso da depressão maior uma das indicações do medicamento dados epidemiológicos mioloantroppmd 10022010 1444 376 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 377 indicariam uma prevalência na proporção de 21 entre mulheres e homens Justo e Calil 2006 O dado epidemiológico justifica o porquê da prevalência de imagens femininas mas é aconselhável desconfiar um pouco dos números já que a própria produção do dado científico pode ser generificado influenciado pela representação da biomedicina acerca do feminino12 Entrei por uma porta convidado pelos funcionários onde se lia planetário de palavras onde eles disseram que eu teria uma experiência visual A sala estava já escura quando entrei Em alguns segundos cercado por quatro paredes teve início a projeção de uma série de poemas e letras de músicas que giravam em torno do grupo presente Trechos de João Cabral de Melo Neto Chico Buarque Nelson Sargento e outros poetas e compositores são projetados nas paredes circulando por elas e ao mesmo tempo são declamados no áudio13 Os primeiros trechos em destaque falam de tristeza angústia e desesperança em seguida outros trechos falam de dar a volta por cima e felicidade A contraposição dos poemas claramente nos leva da doença à cura da depressão à redescoberta do prazer com a vida e conclui com um tom otimista No escuro e cercado por mais sete pessoas não tenho condições de tomar notas dos trechos de poesias e letras de músicas Em seguida à projeçãoleitura dos poemas divulgase o medicamento indicado para transtorno depressivo maior e para tratamento das dores relacionadas à neuropatia diabética chamase atenção mioloantroppmd 10022010 1444 377 378 ainda para as possíveis novas indicações de Cymbalta como o transtorno de ansiedade Ainda neste mesmo estande o laboratório traz um móvel com 48 gavetas uma estrutura de madeira denominada parede dos sentidos Entre uma maioria de gavetas brancas algumas coloridas azuis e verdes trazem o nome dos cinco sentidos humanos A idéia é que ao abrir as gavetas indicadas o congressista tenha uma experiência sensorial a partir de um sentido a visão trazia fotos a audição um fone e o dizer aperte no play mas que não emitia qualquer som a gaveta do olfato trazia um sachet perfumado o tato apresentava uma substância gelatinosa mas que não grudava nos dedos e o paladar oferecia pequenas balinhas A estratégia era estabelecer uma relação entre a perda de prazer acarretada pelos estados depressivos e o estímulo dos sentidos dos congressistas A escolha de marketing fica mais clara quando folheio uma monografia do medicamento disponível no estande a qual tive acesso sem qualquer impedimento Na introdução desta monografia apresentase a teoria bioquímica da depressão baseada no papel dos neurotransmissores serotonina e noradrenalina o texto confere destaque aos sintomas físicos que são fortemente reconhecidos como parte da síndrome depressiva e sublinha que os principais sintomas da depressão que incluem humor depressivo dores e queixas físicas perda de energia e prejuízo da função cognitiva não estão claramente mioloantroppmd 10022010 1444 378 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 379 identificados com um ou outro neurotransmissor Dessa forma vemos que há uma grande sobreposição dos sintomas mediados por estes dois neurotransmissores tornado impossível determinar clinicamente se um paciente deprimido responderá melhor a um inibidor de recaptação de serotonina ou de noradrenalina Além disso pelo fato de muitos pacientes se apresentarem tanto com sintomas emocionais quanto físicos da depressão usar um antidepressivo que atue tanto na serotonina como na noradrenalina pode aumentar a chance de melhorar todos os sintomas do paciente Sendo o Cymbalta um inibidor de recaptação dos dois neurotransmissores a estratégia de destacar os sintomas físicos da depressão no estande indo além do óbvio que seria tratar os sintomas emocionais ficava agora mais clara para um leigo como eu Como não se conhece conforme se afirma na monografia qual a relação exata de cada neurotransmissor com os sintomas destacados no estande o Cymbalta traria vantagens sobre por exemplo os inibidores seletivos de recaptação de serotonina como o conhecido Prozac por exemplo14 Percebi nas experiências neste estande que eu deveria estar atento a uma relação fina entre os medicamentos e as ações de marketing relação esta que nem sempre é tão óbvia para alguém não versado em psicofarmacologia e deveria atentar também a um possível diálogo surdo entre os estandes visto que eu estava em meio a empresas concorrentes divulgando mioloantroppmd 10022010 1444 379 380 argumentos para convencer os prescritores Em dias seguintes do congresso passei a me apresentar mais diretamente aos promotores como um estudante com interesse em fazer um trabalho sobre esta relação RIVOTRIL DRINKS E ARTE NO ESTANDE DO PÂNICO O estande que divulgava o Rivotril Clonazepam do laboratório Roche pareciame um dos mais peculiares Talvez por isso durante os quatro dias de congresso presenciei e participei de algumas cenas que se relacionam especificamente com este espaço ao qual voltava ciclicamente As atividades oferecidas pelo estande combinavam artes plásticas e um clima de lounge com serviço de bar e um DJ O formato do espaço pode remeter a várias imagens um discovoador uma flor ou mesmo uma taça de champagne talvez inspirado na arquitetura do Museu de Arte Contemporânea em NiteróiRJ um dos conhecidos projetos de Niemeyer em torno desta estrutura funcionava o bar onde eram servidos coquetéis não alcoólicos no horário comercial do congresso e alcoólicos no momento do happyhour no início da noite quando um clima de festa tomava conta da área próxima a este estande Uma vez terminadas as atividades era nesta região onde se concentravam os congressistas Das diversas indicações previstas na bula do medicamento o estande destacava o distúrbio do pânico um dos transtornos de ansiedade Um grande cartaz no centro do estande mostra um corpo que parece ser masculino em corrida e traz a palavra pânico impressa sobre ele mioloantroppmd 10022010 1444 380 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 381 Dj barman e os promotores do estande vestiam uma camiseta preta na qual as letras RIV se multiplicavam de forma irregular Em uma primeira aproximação tomei um drink não alcoólico As 3 opções de drinks disponíveis eram adjetivos rápido eficaz e barato este último por exemplo era feito com suco de laranja suco de maracujá mix de limão e sprite adjetivos estes que obviamente são características atribuídas ao medicamento pelo laboratório No bar tive acesso ao cardápio completo de coquetéis nãoalcoolicos criados sob encomenda para este estande por uma empresa especializada em serviços de barman que incluía ainda as opções eficaz acessível seguro e controle a receita deste último contem monin blue Curaçao groselha mix de limão e sprite Duas situações no espaço da RocheRivotril são especialmente dignas de nota No primeiro dia de congresso chamou minha atenção uma grande tela para pintura em um dos cantos deste estande com várias pequenas latas de tinta próximas a ela Além de outras formas mais ou menos irregulares um duende um gato olhos uma estrela um coração a palavra Rivotril em destaque liase na parte de baixo da tela a frase viva a psicanálise Tive o reflexo de fotografar esta imagem porque achei interessante a valoração da psicanálise no estande de um medicamento Quando voltei algumas horas mais tarde a este mesmo ponto a tela continuava lá mas o conteúdo dos desenhos tinha se modificado As intervenções haviam se multiplicado a tela tinha menos espaços mioloantroppmd 10022010 1444 381 382 vazios e da frase viva a psicanálise havia sobrado somente o viva O resto da frase estava coberto por novas pinturas Perguntei a um dos promotores se eles haviam trocado a tela Ele me disse que não e explicou que se tratava de uma obra conjunta que qualquer pessoa poderia fazer uso das tintas e pintar alguma coisa Comentei sobre a frase que havia sumido e ele me disse é só ficou o viva deve ter sido algum psiquiatra clínico que passou por aqui e esse rivotril não fomos nós porque a ANVISA não permite Uma resposta curta mas na qual se entrevê tensões a suposta figura de um psiquiatra clínico cuja intervenção na pintura coletiva insere uma diferença entre o medicamento e a psicanálise e também mais uma vez a ANVISA órgão cujos olhos estariam supostamente atentos em busca de alguma irregularidade Uma segunda situação ocorreu após mais uma volta pelos estandes e um retorno ao espaço do pânico Desta vez estava acompanhado de uma amiga com quem encontrei por acaso uma médicapsiquiatra com formação também em antropologia como eu A companhia desta colega ajudoume a perceber uma tensão nem sempre explícita naquele espaço entre diferentes paradigmas que convivem nas áreas Psi Quando nos aproximamos do estande ela se mostrou surpresa por uma das atividades organizadas pelo laboratório ser de artes plásticas com tintas e mesas disponíveis para quem quisesse dispor do material A surpresa dela estava relacionada à sua opinião de que o Rivotril seria um medicamento que chapa mioloantroppmd 10022010 1444 382 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 383 o usuário efeito colateral que estaria em tensão com atividades artísticas De qualquer forma nos aproximamos do bar para tomar um coquetel ainda nãoalcoolico presenciei então um diálogo curioso um congressista deixava o balcão com o seu drink que era servido com uma espécie de gelo especial que faz com que o drink solte fumaça ao passar por mim e minha amiga ele comenta só que o Rivotril não solta fumaça ao que minha amiga contrapôs com e o coquetel não chapa como o Rivotril O estande disponibiliza um grande volume de material de marketing entre pequenos impressos monografias do produto e sobre doenças por ele tratadas além de uma série de CDs que continham filmes promocionais que seriam parte de um Festival de Curtas chamado Pânico em cena 200715 Como já disse os laboratórios estavam proibidos por ordem da ANVISA de entregar material de marketing para um não prescritor como eu Mas nesta passagem pelo estande descrita acima acompanhado da colega psiquiatra percebi que essa regra era tratada com ambigüidade Quando nos aproximamos fomos atendidos por uma promotora do estande a quem perguntamos a respeito do acesso ao material publicitário Ela nos questionou se alguém nos visita uma frase que eu ouviria com freqüência em vários estandes durante o congresso Ela se refere aos representantes dos laboratórios que circulam por consultórios médicos divulgando os produtos A médica que me acompanhava disse que ninguém a visita e a promotora mioloantroppmd 10022010 1444 383 384 informou que se ela o quisesse seria necessário cadastrar o endereço do consultório Eu acusei de imediato minha condição de nãoprescritor e foi então que percebi como os laboratórios expositores ou ao menos os promotores destes espaços interpretavam as regras da ANVISA Ela disse que não poderia me entregar alguns materiais porque os fiscais da ANVISA estavam de olho mas que os folhetos estão em exposição e eu poderia pegálos por conta própria Por um segundo refleti se eu estaria ferindo algum critério ético de pesquisa antropológica mas conclui que se havia algum mal entendido seria entre os laboratórios e a agência reguladora O fato é que em todos os dias do congresso eu tive que fazer uso do serviço de chapelaria tal o volume de material impresso que me era disponibilizado o que gerava um peso considerável Eu voltava para casa com algumas sacolas de material publicitário dos laboratórios peças que me foram entregues pelos promotores ou que estavam disponíveis nos estandes mesmo para um nãoprescritor16 UM RELAX COM LORAX No caso do medicamento Lorax Lorazepam o estande disponibilizava massagens de diversos estilos para os congressistas em cadeiras especiais uma atividade bastante concorrida Em destaque na estrutura do estande lêse a chamada proporcione um relax com lorax e mais abaixo rápido e eficaz alívio da ansiedade Considerei eu mesmo que uma massagem não faria mal já nesta altura no terceiro mioloantroppmd 10022010 1444 384 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 385 dia de congresso O massagista por quem fui atendido era na verdade um fisioterapeuta pergunto a ele sobre a relação entre as massagens e o medicamento lorax ao que ele responde olha eu não tenho conhecimento farmacológico mas lendo ali na estrutura do estande ansiedade acho que a idéia é relacionar o relaxamento gerado pela massagem com o remédio Eu trabalho em outra linha Ele começa a me explicar os efeitos positivos da massagem como ela mexe com os meridianos como comprovado pelos orientais mas essa coisa dos meridianos e a nossa explicação hormonal na verdade é a mesma coisa né e segue explicando como a massagem pode atuar no nível dos neurotransmissores dopamina e endorfina A forma como ele equipara a lógica dos meridianos à explicação hormonal da biomedicina Ocidental pode ter um caráter pedagógico mas não deixa de mostrar como diferentes sistemas de crença circulam naquele espaço ainda que submetidos ou equiparados à lógica dos neurotransmissores DEPAKOTE E O DIAGNÓSTICO DE VAN GOGH Este estande contava com um garotopropaganda bastante conhecido o pintor Van Gogh imagem que prendeu minha atenção Por experiência própria de pesquisa e também pelo relato de outros pesquisadores Martin 2007 sei ser comum atribuir diagnósticos psiquiátricos a personagens conhecidos da história universal Van Gogh pode ser bipolar assim como Abraham Lincoln ou Mark Twain são indicados como tendo mioloantroppmd 10022010 1444 385 386 tido depressão o subtexto visa diminuir o estigma em torno destas doenças explicitamente mas também fala das pretensões universalizantes das categorias nosológicas psiquiátricas que viajam entre culturas e também no tempo O pintor especialmente tem sido citado quando se discute caso de um documentário da BBC chamado Brain Story apresentado pela neurocientista Susan Greenfield as relações entre cérebro e criatividade de como uma doença cerebral poderia influenciar a visão e as técnicas de um artista Perguntei a um dos expositores neste estande o porquê de se utilizar imagens do pintor Ele me explicou que Van Gogh era bipolar e sofria de crises convulsivas A idéia é que se o Depakote existisse na época ele não teria se matado cortado a orelha ou casado com uma prostituta Imediatamente me veio à cabeça um complemento para a frase pensei que ele também não teria pintado o que pintou e da forma como pintou se pensarmos o sujeito em sua totalidade mais um segundo e percebi que o meu incômodo falava das minhas crenças e acusava um algo que eu poderia chamar etnocentrismo uma postura que seria aconselhável ter sob controle Questionei ainda por que a coluna do estande trazia um impresso com a palavra EvoluiR com a 1ª e última letra destacadas em maiúsculas o mesmo funcionário me explicou que eles estavam divulgando uma nova apresentação extended release o que explicava o ER mioloantroppmd 10022010 1444 386 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 387 ZYPREXA E ABILIFY ANTIPSICÓTICOS ENGORDAM Dois estandes que divulgavam antipsicóticos estavam lado a lado na área dos expositores o dos medicamentos Zyprexa olanzapina do laboratório Lilly e o Abilify aripiprazol do laboratório Bristol O mesmo motivo movia as escolhas de marketing dos dois estandes a relação entre uso de antipsicóticos e aumento de peso mas as soluções encontradas foram diferentes O estande do Zyprexa era maior em tamanho e recebia um maior movimento de congressistas quem passava por ali poderia tirar uma foto de recordação do congresso eu fiz isso na qual o fotografado ficava logo abaixo da frase Zyprexa 10 anos Obrigado por fazer parte dessa história Outra atividade neste espaço era uma espécie de competição em bicicletas ergométricas cujo vencedor levava como prêmio uma garrafa squeeze do gênero utilizado por ciclistas e outros atletas Enquanto observo três congressistas competindo eu tiro uma foto minha no sistema instantâneo disponível e aproveito para fazer um pequeno lanche oferecido pelo laboratório composto por iogurte natural sem açúcar flocos de milho sem açúcar e pequenos pedaços de melão A alimentação leve e o exercício físico no estande estavam relacionados ao programa que o laboratório Lilly fabricante do Zyprexa divulgava chamado bem estar voltado segundo um folheto distribuído para promover a atenção à saúde dos portadores de transtornos mentais levando em conta a integração entre corpo e mente saudáveis em convênio com mioloantroppmd 10022010 1444 387 388 o Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo Quando questionei o funcionário sobre a relação entre o medicamento e as atividades do estande ele me explicou que o Zyprexa é um antipsicótico o uso de antidepressivos e antipsicóticos muitas vezes acarreta um aumento de peso Então a gente faz isso para que os médicos digam aos seus pacientes façam exercício comam melhor Em uma tarde uma extensa fila se formou rumo a este estande porque o ex jogador de vôlei Giovane Gávio contratado pelo laboratório distribuía aos profissionais prescritores bolas de vôlei autografadas em mais uma atividade que relacionava o Zyprexa de alguma forma a uma vida saudável e atividade física O estande ao lado que divulgava o remédio Abilify aripiprazol também relacionava os seus brindes a idéia de que antipsicóticos podem ou não causar aumento de peso Passei por este estande em um horário de almoço e uma fila já tinha se formado para ter acesso a um prato com arroz batata palha e carne Como o serviço estava parado para reposição dos alimentos houve certa demora Atrás de mim uma mulher comenta que uma certa demora faz parte da estratégia né ficar de frente pro aripiprazol não tem jeito comentário que gerou risos em outras pessoas na fila Dois dias depois neste mesmo estande estavam distribuindo como brinde uma fita métrica a escolha deste brinde me surpreendeu se antipsicóticos podem gerar aumento de peso por que investir em um presente para os médicos que realça este possível mioloantroppmd 10022010 1444 388 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 389 aumento de medidas O funcionário do estande me esclarece que o Abilily não engorda pelo contrário o Abilify atua de forma agonista e antagonista no sistema dopamimérgico onde diminui ele ajuda a aumentar onde aumenta ele ajuda a reduzir atua como um regulador Eu questiono para que então a fita métrica ao que ele responde com um sorriso porque quando a pessoa perceber que as medidas estão aumentando está na hora de mudar de medicação Os dois estandes vizinhos pareciam estar travando uma pequena guerra silenciosa entre antipsicóticos diferentes Não pude deixar de notar que a alimentação no estande do medicamento que não engorda era mais pesada enquanto o estande que divulgava o Zyprexa investia em estratégias junto aos médicos que visavam gerar uma mudança de estilo de vida incluindo o fornecimento de uma alimentação leve TRABALHO DE CAMPO EM UM CAMPO DIVIDIDO Algumas das cenas descritas neste artigo falam de uma cisão no campo da psiquiatria Refirome ao suposto psiquiatra clínico que teria desenhado por cima da frase viva a psicanálise na pintura coletiva do estande do Rivotril ou mesmo à percepção crítica que minha colega psiquiatra tinha a respeito das técnicas de marketing neste mesmo estande Essa tensão não deveria ser exatamente uma surpresa já que expressa de certa forma uma diferença entre perspectivas clínicas que marca o campo da saúde mentalcerebral Se há alguma novidade trazida pelas situações etnográficas aqui mioloantroppmd 10022010 1444 389 390 descritas é que elas ilustram uma tendência atual que subsume a mente ao cérebro o psicológico ao orgânico abrindo caminho para a ampliação daquilo que podemos chamar uma medicamentalização da subjetividade ou com Maluf 2008 uma racionalização biomédica da vida subjetiva Não há dúvida de que na difusão desta noção cerebralizada de pessoa atores relacionados às neurociências contemporâneas e à chamada psiquiatria biológica têm um papel central com espaço crescente em diversos meios de comunicação de massa e técnicas de marketing e divulgação para especialistas como no caso da área de estandes do congresso de psiquiatria que visitei Mas isso não significa que não haja vozes dissonantes como também fica explícito no relato que faço aqui Como imaginei que chegaria ao congresso às cegas com uma idéia na cabeça por certo mas sem ter grande noção do espaço por onde estaria me movendo busquei ajuda de informantes privilegiados a quem poderia recorrer caso necessário Antes de viajar a Porto Alegre fiz contato mediado muito gentilmente por uma professora minha com um psiquiatra que iria ao congresso e se dispôs a me ajudar Ficou claro que se tratava de um profissional com uma visão crítica da tendência exclusivamente cerebralista e medicamentosa que se convencionou chamar psiquiatria biológica O mesmo vale para alguns colegas seus com quem também tive oportunidade de conversar alguns com diálogo com as ciências sociais ou passagem por esta área mioloantroppmd 10022010 1444 390 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 391 O contato com este grupo não foi constante durante os dias de congresso até porque eu não tinha intenção de atrapalhálos alguns inclusive tinham papers a apresentar mas se mostrou além de agradável útil para que eu entendesse a natureza das diferentes atividades no congresso e no que consiste essa diferença a partir do ponto de vista deles No fim de tarde do primeiro dia de congresso encontrei este grupo fazendo um happyhour nas proximidades do estande do Rivotril onde havia um DJ e se servia bebidas alcoólicas após o final do horário de atividades do congresso Fui apresentado ao grupo pelo meu guia como um antropólogo que estava ali com interesses etnográficos enquanto tomávamos um drink expliquei de forma sintética que o meu trabalho estava relacionado ao corte cerebralista do fisicalismo contemporâneo e a relação direta que o tema possui com neurociências psiquiatria biológica e o papel da indústria farmacêutica Naquele grupo o tema de pesquisa encontrou eco visto que eles não se identificam com a tendência mais fisicalista da psiquiatria Esta diferença era marcante e marcada em vários momentos da conversa por exemplo em certo momento quando uma pessoa do grupo me relatou de seu incômodo ao ouvir um comentário de um conhecido psiquiatra brasileiro que teria dito antes de uma palestra eu sou patrocinado por uma indústria farmacêutica eu carrego esta marca mas quem não carrega alguma marca na vida Ela sorri e comenta comigo que esta marca não é como qualquer mioloantroppmd 10022010 1444 391 392 outra e fica claro a sua posição crítica ao tipo de relação que pode se estabelecer entre médicos e laboratórios Em certo momento eu comento que pretendo prestigiar a fala deles em mesasredondas do congresso O meu guia me questiona se é essa tribo que você quer etnografar e os colegas fazem eco afirmando que eu deveria procurar a produção mais fisicalista de discurso no congresso Um colega dele indica que eu procure comparar os discursos dos mesmos profissionais nos simpósios da indústria palestras feitas por médicos e pesquisadores patrocinados pelas empresas com o objetivo explícito de divulgar um produto determinado e nas mesasredondas nas quais o tom mudaria visto não haver explícito interesse comercial e os profissionais teriam uma outra postura com o objetivo de angariar um certo tipo de respeito entre os pares Outro ponto que o grupo destaca é que eu deveria estar atento ao crescimento da neuroimagem na construção do diagnóstico tema que de fato se espalhava por várias palestras do congresso Foi impossível seguir todos estes conselhos ainda que tenham sido muito pertinentes De qualquer forma os conselhos por si só falavam de uma diferença e tensões naquele espaço para as quais eu deveria estar atento Acompanhei algumas mesasredondas durante o congresso e de fato a possibilidade de que um médico direcione o seu discurso no sentido de valorizar um medicamento específico sem que isso seja explicitado claramente pode ser motivo de discussões acaloradas mioloantroppmd 10022010 1444 392 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 393 Quando havia alguma espécie de vínculo entre o profissional que apresentaria o trabalho e um laboratório farmacêutico apresentavase no início da fala o conflito de interesses ou seja explicitavase o tal vínculo Mas isso não zera a possibilidade de que haja desconfianças quanto à neutralidade do discurso Foi este o caso de uma cena que se passou em uma mesa sobre depressão grave um dos trabalhos discutia inclusive o conflito de interesses em ensaios clínicos durante a qual um dos apresentadores foi questionado no momento do debate se ele não teria privilegiado em sua fala o Citalopram um inibidor seletivo de recaptação de serotonina Ele defendeuse nos seguintes termos por favor numa mesa em que se fala de conflito de interesses não diga que eu privilegio este ou aquele antidepressivo isso se vê caso a caso Fiz uma breve entrevista com o psiquiatra questionado após a mesa Apresenteime como um antropólogo interessado em etnografar o congresso buscando compreender os mecanismos de divulgação da indústria Ele me disse que desenvolve estudos para a indústria mas que explicitou este conflito de interesse na introdução de sua fala e que naquele momento não estava a serviço do laboratório A respeito do hábito de se apresentar o conflito de interesses antes da palestra ele me diz que se trata de um modelo copiado do FDA17 porque a coisa estava ficando avacalhada o profissional estava divulgando uma molécula e não deixava isso claro Conversamos sobre o papel da indústria farmacêutica o que mioloantroppmd 10022010 1444 393 394 ele definiu como uma espécie de mal necessário em um mundo ideal devia ser diferente mas que hoje 95 dos estudos são desenvolvidos pela indústria e 5 por iniciativas particulares ou universidades CONCLUSÃO Ficava claro que havia no ar uma tensão com o papel da indústria no congresso em contraste com estudos não patrocinados apresentados nas mesasredondas mas mesmo nestas podem surgir desconfianças de que a palestra tenha um determinado viés com o objetivo de divulgar um ou outro medicamento Quanto às condições de possibilidade de se realizar este esforço etnográfico vale concluir destacando o lugar que me era atribuído no espaço dos expositores Desde o começo a minha condição explícita de estudante no crachá não foi impedimento para que me fosse entregue ou para que eu pudesse coletar sem ser questionado uma grande quantidade de material publicitário de medicamentos Na primeira manhã de congresso por volta das 11 da manhã eu já tinha mais material impresso do que poderia carregar comigo e mais do que eu já tinha tido acesso em vários anos de interesse no assunto Somente no terceiro dia de congresso um funcionário de um estande obedeceu as regras da ANVISA sem qualquer ambigüidade e não me permitiu acesso aos folders disponíveis Apesar dele estar com toda razão tive a sensação de ter meu espaço invadido já que ele aproximou a mão do meu peito e mioloantroppmd 10022010 1444 394 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 395 virou o meu crachá que nesta altura estava virado ao contrário Em verdade acredito que a condição a se destacar no lugar que me era atribuído naquele espaço era a de nãoprescritor que foi diversas vezes ressaltada em diálogos com funcionários dos estandes Quando decidi participar do Congresso Brasileiro de Psiquiatria fui informado sobre o quão surpreendente pode ser a área dos estandes da indústria para um marinheiro de primeira viagem Antes de partir ouvi falar sobre o congresso em outros anos quando o personagem Zé do Caixão de José Mojica Marins foi utilizado como garoto propaganda em um estande que divulgava uma medicação para um transtorno de ansiedade ou ainda sobre teorias a respeito de mecanismos de controle dos médicos por parte das indústrias os congressistas teriam seus interesses no congresso mapeados através do código de barras no crachá o que permitiria às indústrias saber qual assunto ou medicamento interessa a qual profissional Verdade ou não o que importa aqui é como um pequeno mito se constrói em torno da relação entre indústria e profissionais A área dos expositores era também um espaço de lazer e sociabilidade entre os congressistas Mas cabe ressaltar que qualquer diversão oferecida sempre relacionava química e sentidos de alguma forma Em cada estande era possível vivenciar de alguma maneira o estado no qual supostamente o paciente pode ser colocado através daquela droga uma mioloantroppmd 10022010 1444 395 396 atividade proposta pode se contrapor a um efeito colateral do medicamento os brindes por sua vez podem ir de viagens ao próximo congresso mundial da área passando por carimbos e chegando a uma fita métrica que simboliza a idéia de que um medicamento concorrente engorda mesmo a escolha da alimentação oferecida parece longe de ser gratuita O importante aqui é salientar que as tensões que se desenhavam no congresso nas mesas redondas nos estandes ou em discursos isolados aqui e ali falam sobre a presença como definiu o meu guia e informante privilegiado de diferentes tribos dentro do campo da psiquiatria hoje18 Diferenças eram marcadas especialmente no que diz respeito ao papel da indústria farmacêutica no congresso e ao maior espaço ocupado por um discurso de base neurocêntrica com destaque para a neuroimagem como possível ferramenta diagnóstica de doenças mentaiscerebrais Pensando posteriormente é quase como se o viva a psicanálise pintado na tela coletiva no estande do Rivotril no início do congresso fosse uma pichação feita por um grupo de resistência que logo foi apagada 1 Agradeço os comentários preciosos das professoras Sônia Weidner Maluf e Carmen Susana Tornquist incorporados ao trabalho na medida do possível Devo um duplo agradecimento à minha colega de doutorado Marta Cioccari que além da generosa hospedagem em Porto Alegre fez observações muito pertinentes sobre este texto NOTAS mioloantroppmd 10022010 1444 396 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 397 2 A expressão foi traduzida para o português como meu derrame de sabedoria A sua escolha caminha na direção do lado direito do cérebromente Com base em minha experiência de perder o lado esquerdo da mente acredito inteiramente que o sentimento de paz interior está localizado no circuito neurológico do lado direito do cérebro p169 3 Ver Dumit 2004 para uma discussão a respeito do uso de neuroimagem como uma forma de visualizar estes males no cérebro e do uso destas imagens em contextos como a medicina e o direito 4 Foi Luiz Fernando Dias Duarte quem fez uso da noção de interacionismo para fazer referências a pesquisas e pesquisadores que pensam a relação entre mente e cérebro como sendo de influência mútua em uma palestra proferida na Academia Brasileira de Ciências em 5 de maio de 2009 por ocasião da Reunião Magna desta instituição 5 Ver Serpa Júnior 1998 Bezerra Jr 2000 Aguiar 2004 6 As informações estão disponíveis no edital de concorrência para apresentação de proposta comercial de empresas candidatas a prestadoras de serviços de montagem para o mesmo congresso no ano seguinte 7 Ver Payer 1992 Healy 2004 Moynihan e Cassels 2005 Applbaum 2006 8 Que pode ser traduzido como apregoar ou mesmo vender doenças 9 Ver Nascimento 2005 10 Em outros espaços procurei analisar essas diferentes formas de divulgação por parte da indústria farmacêutica Azize 2002 para uma análise do material de divulgação de doenças do cérebro como a depressão e a ansiedade ver Martin 2007 e Azize 2008b 11 No Brasil este medicamento tem indicação na bula para mioloantroppmd 10022010 1444 397 398 tratamento de transtorno de depressão maior No site wwwcymbaltacom vemos que o medicamento é indicado no mercado americano também para transtorno de ansiedade generalizada fibromialgia e para as dores relacionadas à neuropatia diabética 12 Não possuo dados para avançar nesta discussão A respeito das representações diferenciais da medicina sobre o feminino ver Martin 2006 e Rohden 2001 13 A experiência estética tem como referência uma das atividades no Museu da Língua Portuguesa em São Paulo 14 Na monografia disponível no estande sobre o Cymbalta parte do texto é dedicada a diferenciar a estrutura química de Cymbalta Prozac e Strattera este último um inibidor seletivo de recaptação de noradrenalina todos os três fabricados pelo mesmo laboratório O texto ressalta que não se trata de isômeros apesar de compartilharem algumas características químicas entretanto são moléculas distintas com diferenças estruturais sendo que Cymbalta não foi desenvolvido a partir de Prozac que é um ISRS Essas diferenças estruturais podem ser consideradas em relação aos diferentes efeitos clínicos proporcionados por cada uma das drogas 15 Posteriormente já de volta do congresso entendi do que se tratavam os filmes Tratase de curtas metragens produzidos para a Roche o laboratório fabricante do Rivotril que mostram pessoas que sofrem de síndrome do pânico Imagino que tais filmes sejam utilizados pelos médicos ao menos este seria o objetivo da peça publicitária para mostrar aos pacientes outros indivíduos em situações semelhantes a deles reduzindo assim alguma resistência ao diagnóstico se fosse o caso Um texto no verso do CD termina com a frase A síndrome do pânico pode acontecer com qualquer um e não marca hora para alterar a rotina e prejudicar quem está sofrendo desse mal mioloantroppmd 10022010 1444 398 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 399 16 De fato tive acesso a um volume grande de material de marketing da indústria farmacêutica voltado para os médicos que por uma questão de economia do espaço não será analisado aqui eu já havia analisado em outro artigo Azize 2008b algumas peças voltadas para a divulgação de males psiquiátricos ou doenças mentais se assim se preferir entre o público leigo 17 Sigla para Food and Drug Administration o órgão americano que regulamenta o mercado de remédios entre outras coisas 18 O livro de Tanya Luhrmann 2000 chamado Of two minds the growing disorder in american psychiatry foi esclarecedor da minha experiência de campo ainda que a posteriori Professora da Universidade de Chicago ela realizou uma etnografia entre os residentes de psiquiatria Neste momento de formação os residentes estão de certa forma aprendendo a ver doenças que não podem ser diagnosticadas com marcadores biológicos ao menos não diretamente Ela explora as tensões no processo de aprendizagem em uma área na qual diferentes paradigmas estiveram por muito tempo em debate refirome ao paradigma que se convencionou chamar psiquiatria biológica em tensão com uma linha psicodinâmica Luhrmann preocupase em mostrar que a psiquiatria parece encaminharse para um paradigma de ordem fisicalistareducionista no qual uma das lentes utilizadas pelos psiquiatras para entender os transtornos mentais estaria sendo perdida A autora toma partido e interpreta este movimento como uma perda que levaria os psiquiatras e a sociedade como um todo a ver menos complexidade do que antes Luhrmann 200024 Tal perda fica evidente quando ela analisa unidades psiquiátricas nas quais o modelo de doença segue o paradigma da psiquiatria biológica The patient was telling the doctor about her souls history and he was hearing through it the shape and balance of her brain ibidem135 mioloantroppmd 10022010 1444 399 400 AGUIAR Adriano Amaral de A psiquiatria no divã entre as ciências da vida e a medicalzação da existência Rio de Janeiro Relume Dumará 2004 APPLBAUM Kalman Pharmaceutical marketing and the invention of the medical consumer PLoS Med 34189 2006 AZIZE Rogerio Lopes A química da qualidade de vida um olhar antropológico sobre uso de medicamentos e saúde em classes médias urbanas Dissertação de mestrado Universidade Federal de Santa Catarina 2002 121p Saúde e estilo de vida divulgação e consumo de medicamentos em classes médias urbanas In D K Leitão et alii orgs Antropologia e consumo diálogos entre Brasil e Argentina Porto Alegre Editora AGE 2006 119137 A ordem cerebral e as desordens do cérebro uma etnografia da divulgação neurocientífica e da psiquiatria biológica In 26a Reunião Brasileira de Antropologia 2008 Porto Seguro Bahia Desigualdade na diversidade v 1 Uma Neuro Weltanschauung Fisicalismo e subjetividade na divulgação de doenças e medicamentos do cérebro Mana Rio de Janeiro v 14 2008b 730 BEZERRA JR Benilton 2000 Naturalismo como anti reducionismo notas sobre cérebro mente e subjetividade Cadernos IPUB VI 158177 DUMIT Joseph Picturing personhood brain scans and biomedical identity Princeton Princeton University Press 2004 HEALY David Psychopharmacology at the interface between the market and the new biology In S Rose D Rees orgs The new brain sciences perils and prospects New York Cambridge University Press 2004 232248 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS mioloantroppmd 10022010 1444 400 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 401 JUSTO Luiz Pereira e CALIL Helena Maria Depressão o mesmo acometimento para homens e mulheres Revista de psiquiatria clínica v 33 n2 2006 7479 LUHRMANN Tanya M Of two minds an anthropologist looks at american psychiatry First Vintage Books Edition 2001 MALUF Sônia Weidner Sofrimento saúde mental e medicamentos regimes de subjetivação e tecnologias do gênero Mesa Redonda Saúde corpo e sofrimento Seminário Internacional Fazendo gênero 8 Florianópolis UFSC 2008 MARTIN Emily A mulher no corpo uma análise cultural da reprodução Rio de janeiro Garamond 2006 MARTIN Emily Bipolar expeditions mania and depression in american culture Princeton New Jersey Princeton University Press 2007 MOYNIHAN Ray CASSELS Alan Selling sickness how the worlds biggest pharmaceutical companies are turning us all into patients New York Nation Books 2005 NASCIMENTO Álvaro Ao persistirem os sintomas o médico deverá ser consultado Isso é regulação São Paulo Sociedade brasileira de vigilância de medicamentos 2005 ROHDEN Fabíola Uma ciência da diferença sexo e gênero na medicina da mulher Rio de Janeiro Fiocruz 2001 SERPA JÚNIOR Octavio Domont de Malestar na natureza estudo crítico sobre o reducionismo biológico em psiquiatria Rio de Janeiro Té Cora Editora 1998 TAYLOR Jill Bolte A cientista que curou seu próprio cérebro São Paulo Ediouro 2008 mioloantroppmd 10022010 1444 401 mioloantroppmd 402 10022010 1444 A QUESTÃO Neste artigo discuto a recorrência da tentativa de descrever em bases naturalizantes as diferenças de gênero por parte da ciência Como foco central foi escolhido o cérebro já que as representações em torno desse órgão podem ser vistas como sintetizadoras do empenho em delimitar precisamente o que caracterizaria homens e mulheres distintamente Tomo como objeto o contraste entre trabalhos médicos de meados do século XIX e artigos de divulgação científica contemporâneos A natureza evidentemente distinta em termos formais e cronológicos desses dois tipos de material cumpre a função de reforçar o caráter provocativo da comparação A intenção é oferecer uma interpretação possível que segue a perspectiva dos estudos de gênero e ciência Seguindo a inspiração de autoras como Ludmila Jordanova 1989 e seu tratado sobre as representações dualistas na ciência Nelly Oudshoorn 1994 sobre a criação dos chamados hormônios O QUE SE VÊ NO CÉREBRO A PEQUENA DIFERENÇA ENTRE OS SEXOS OU A GRANDE DIFERENÇA ENTRE OS GÊNEROS Fabíola Rohden mioloantroppmd 10022010 1444 403 404 sexuais Marianne Van Den Wijngaard 1997 quanto ao surgimento da teoria da organização cerebral e Anne Fausto Sterling 2000 sobre o corpo caloso e a diferença cerebral entre homens e mulheres para citar apenas referências mais centrais no tema em questão aqui discuto a intrincada relação entre produção científica e hierarquia de valores baseada em uma concepção dualista de gênero que tem caracterizado a nossa sociedade nos últimos séculos GÊNERO E CÉREBRO NO SÉCULO XIX O tema da diferença entre os sexos aparece de forma insistente na produção científica do século XIX Laqueur 2001 e de modo especial se traduz nos trabalhos médicos No Brasil isso pode ser exemplificado com as teses defendidas no final do curso de graduação da prestigiosa Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro Esse material ilustra o conhecimento científico oficial que se dispunha na época e o que seria traduzido na prática dos consultórios médicos1 A tese A puberdade da mulher de João das Chagas e Andrade defendida em 1839 é exemplar no que se refere à descrição das diferenças entre homens e mulheres Além disso mostra como sexo e gênero eram pensados de forma totalmente imbricada ou como mesmo quando se acreditava estar falando de sexo biológico ou corporal entravam em cena os atributos de gênero O trabalho é dedicado ao que o autor chamou de idéia geral a respeito da mulher e por isso são definidas com mioloantroppmd 10022010 1444 404 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 405 precisão as características que fazem da mulher um ser essencialmente diferente do homem em função do papel que a natureza teria lhe reservado Estas características podem incluir peculiaridades quanto à voz que é mais fraca terna doce e aguda ao sono menos profundo de menor duração e mais perturbado à digestão que exige menor quantidade de alimentos à respiração que produz menos sangue e mesmo à circulação que é mais viva e dota melhor as artérias da bacia para fornecer mais sangue aos genitais O trecho a seguir exemplifica a diferença entre homens e mulheres a partir de uma conformação corporal diferente própria ao destino feminino Estes mesmos ossos variando em suas formas e não guardando as mesmas proporções de grandeza dão ao corpo da mulher uma conformação diferente mas análoga aos destinos que lhes são prescritos assim sua cabeça mais pequena a face mais curta e mais redonda o pescoço mais comprido e mais fino o peito de uma menor capacidade e mais afinado para a parte superior seu diâmetro esternovertebral corresponde à sétima vértebra dorsal como no menino as clavículas são menos curvas para fornecerem um maior espaço ao desenvolvimento dos seios Por causa desta menor capacidade do tórax ela é obrigada a multiplicar os movimentos respiratórios razão porque a respiração é mais ligeira a circulação mais apressada e o pulso mais fraco Andrade 1839 p 2 mioloantroppmd 10022010 1444 405 406 A bacia recebe grandes atenções e é a partir de sua largura que o autor cita a imagem da pirâmide que define o caráter inverso do corpo do homem em relação ao da mulher uma referência que se tornaria comum em outros trabalhos Além disso também aparece a associação entre beleza e a grandeza das cadeiras O abdome é de uma capacidade maior que o do homem e repousa sobre os ossos que formam a bacia É nestes ossos que se notam as maiores diferenças os ilíacos são mais largos o sacro e o cóccix da mesma sorte porém mais curtos e por isso a bacia toma uma maior capacidade em seus diâmetros e como coube à mulher o trabalho da gestação e do parto necessária lhe era tal disposição orgânica em que o feto achasse asilo em seu desenvolvimento e facilidade em seu nascimento Se à finura do tórax aumento do abdome ajuntarmos a largura da bacia veremos que o tronco da mulher representa uma pirâmide cônica que tem por ápice o peito e por base a bacia em sentido oposto ao homem que em razão da amplitude do tórax diminuição do abdome e estreiteza da bacia apresenta esta pirâmide com a base no peito e o ápice na bacia Resulta ainda desta disposição que o tronco da mulher é maior que o do homem e que o meio do corpo em vez de se achar sobre os púbis como no homem se acha entre elas no umbigo Da largura do sacro e dos ilíacos resulta que as articulações femuroilíacas se acham mais distantes e se a esta distância acrescentarmos o maior mioloantroppmd 10022010 1444 406 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 407 desenvolvimento dos músculos grande e pequeno glúteos teremos a razão da grandeza de suas cadeiras conformação a que se liga uma alta idéia de beleza Andrade 1839 p 2 O autor afirma ainda que o sistema muscular na mulher é menos desenvolvido que as próprias fibras dos músculos são mais moles e mais delicadas e que as inserções tendinosas são mais fracas Todos os intervalos são preenchidos por tecido celular gorduroso o que dá à mulher as características formas lisas e arredondadas No homem ao contrário devido à força e ao predomínio muscular essas formas são substituídas por asperidades A referência a um determinado padrão de beleza aparece também a partir dos vasos nervos e mesmo da natureza do sangue feminino Os vasos e os nervos são mais delicados e mais divididos em suas extremidades contendo um sangue mais sutil e penetrando em tecidos mais laxos vão levar à superfície de seu corpo aquele colorido que confundindose com a alvura e delicadeza da pele patenteia com a maior presteza em seus semblantes as alternativas de seus afetos Andrade 1839 p3 A mulher é considerada mais sensível do que o homem devido a uma maior fragilidade Isto significa que os seus sentidos são mais delicados que para ela as sensações são mais vivas Seus olhos não suportam a luz forte por muito tempo e nem seus ouvidos aguentam o barulho de um canhão A suscetibilidade nervosa é a qualidade característica desse sexo2 mioloantroppmd 10022010 1444 407 408 Como consequência a mulher é extremamente impressionável e instável Está sempre e constantemente preocupada com as causas imediatas que produzem as mais diversas sensações o que qualificaria a sua leviandade O autor acrescenta a inevitável evocação ao cérebro feminino De mais já vimos que a cabeça da mulher era mais pequena que a do homem e isto não só de uma maneira absoluta mas até comparandose os cérebros de dois indivíduos de sexo diferente e da mesma estatura Desta inferioridade do cérebro decorre naturalmente que a energia das faculdades intelectuais da mulher consideradas coletivamente será menor que no homem Seu frontal é menor mais coberto segue mais a direção do nariz e deixa ver apenas uma pequena curva disposição que importa menor capacidade da parte craniana que contém os órgãos cerebrais que presidem as faculdades intelectuais Andrade 18394 Em função de diferentes desenvolvimentos nas partes do cérebro em cada sexo seriam desenvolvidas determinadas faculdades sendo o frontal tão pequeno na mulher se observa geralmente em grau muito fraco os órgãos da comparatividade e da causalidade dos quais o primeiro dá a faculdade de discernir com habilidade os traços e semelhanças dos objetos para formar um juízo exato a seu respeito o segundo a de elevarse à origem das coisas e de aprofundar sua natureza Mas em mioloantroppmd 10022010 1444 408 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 409 compensação à estreiteza do frontal a parte posterior do crânio é mais larga e mais saliente e é nesta parte que residem os órgãos correspondentes às qualidades afetivas que por assim dizer constituem a existência moral da mulher Vêse pois que o mau êxito que elas obtêm sempre que se dedicam às altas ciências e à política é antes um efeito de organização que um vício de educação como pretende Condorcet O homem destinado para os grandes trabalhos para com a energia de sua inteligência fazer conquistas nas artes e nas ciências não devia ter uma organização em tudo igual à da mulher porque os fins destinados a ele em grande parte diferem dos destinados à mulher Andrade 1839 p 4 grifos do autor Em virtude de diferenças cerebrais e de correspondentes capacidades tem se claramente desenhada uma justificativa biológica para os papéis sociais diferenciados exercidos por homens e mulheres O autor deixa bem claro que não se trata simplesmente de falta de preparo da mulher mas sim de uma organização corporal diferenciada A natureza já teria definido e qualificado homens e mulheres para o preenchimento de funções específicas A mulher é mais afetiva enquanto o homem é dotado de inteligência No mundo das ciências e da política ou seja no mundo público só há chances para o segundo Essa passagem talvez seja uma das que melhor sintetizem a pretensão e abrangência política que o discurso médico pode ter além de ilustrar com primor a justificativa anatômica da hierarquia de gênero em voga em meados do mioloantroppmd 10022010 1445 409 410 século XIX Essa justificativa também é resumida da seguinte forma Já vimos que em consequência do tamanho e conformação dos ossos pequenez e moleza dos músculos todos os movimentos são morosos e que por isso mesmo a vida sedentária se lhes torna como necessária correspondendo no físico à fraqueza que temos notado no moral Andrade 1839 p6 Além de não ter capacidade mental para o mundo público a mulher também não têm capacidade física só lhe restando permanecer no lar Andrade segue afirmando que ao homem cabe lidar com a natureza e com os entes animados através da força e da inteligência À mulher só resta o poder de sedução em relação ao homem A seguinte frase atribuída a Cabanis corroboraria sua hipótese Se a fraqueza dos músculos da mulher a proíbe de descer ao ginásio e ao hipódromo as qualidades de seu espírito lhe proíbem mais imperiosamente ainda de se apresentar no Liceu ou no Pórtico Andrade 1839 p 5 Certamente há referências a mulheres inteligentes cultas e famosas Mas estas como toda exceção só confirmam a regra Além disso seu principal pecado é terem deslizado dos deveres que a sociedade e a natureza lhes impuseram ou seja a maternidade e o cuidado da família Amar é o grande objetivo de sua existência o que já é prédeterminado pela natureza É por isso que desde cedo a menina se interessa por bonecas desenvolvendo um sentido que aplicará mais tarde ao marido e aos filhos É também a natureza que determina um certo mioloantroppmd 10022010 1445 410 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 411 tipo de qualidades bem particulares A dissimulação a arte de agradar a coquetterie e mesmo o choro a timidez e o pejo são artefatos dos quais a mulher lança mão para atrair o sexo oposto Andrade reprova a atitude de alguns homens que têm sido pouco indulgentes com estas manifestações da natureza feminina agindo como se as mulheres fossem culpadas responsáveis por esse tipo de comportamento Andrade 1839 p 5 Quanto ao aparelho reprodutor feminino Andrade descreve as diferenças em relação ao masculino ao mesmo tempo em que nos dá uma noção das dúvidas que persistiam para a medicina naquele momento O autor afirma que na mulher os órgãos da geração estão dispostos de uma maneira diversa daquela que estão no homem e para a realização de todos os eventos da geração o corpo feminino dispõe de quatro aparelhos germinação gestação copulação e lactação Merece destaque o comentário feito a respeito dos ovários sobre os quais não se sabia grande coisa mas notavase que quando não se desenvolviam adequadamente a mulher assumia uma forma ambígua se aproximando do homem O mesmo aconteceria com o homem que tivesse perdido os testículos Andrade 18393 Percebese um forte enraizamento das diferenças na anatomofisiologia que vai ser mais detalhado a partir da época da puberdade Andrade 1839 referese a essa fase como o momento em que a menina começa a respirar o doce e imperioso sentimento da reprodução Esse sentimento mioloantroppmd 10022010 1445 411 412 traduzido nos gozos do amor e da amizade está relacionado com uma compensação que a natureza oferece aos incômodos implicados na conservação da espécie Durante a puberdade a natureza inaugura essas sensações e dessa forma prepara a economia da mulher para o exercício da função reprodutiva Duas ordens de fenômenos intimamente ligados se desenvolvem fenômenos físicos e fenômenos intelectuais ou cerebrais Estes últimos são os precursores dos outros Referemse a uma mudança nos interesses da menina Mesmo ainda sem ter tido a sua primeira menstruação ela sofre um processo de transformação que se caracteriza pela atenção que passa a dedicar ao sexo oposto e pela necessidade de amar que brota em seu espírito Os jogos de sedução passam a governar seu comportamento Isso nada mais é do que um artifício da natureza A menina aprende a se fazer de difícil para se tornar mais desejada Dos diversos meios que emprega para esse fim resulta uma nova qualidade a dissimulação A dissimulação que não é efeito da educação mas sim inerente à organização feminina revela um estado de perfeição das faculdades intelectuais na mulher No homem ela deve ser reprovada como uma prova de fraqueza e corrupção enquanto que na mulher quando diretamente dirigida deve ser estimada como consequência de sua fraqueza de sua modéstia de seu pejo e dos impulsos do amor qualidades de cujo equilíbrio depende a perfeição de seu sexo Andrade 1839 p 13 mioloantroppmd 10022010 1445 412 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 413 Quanto aos fenômenos físicos tratase do processo através do qual a natureza vai desenhando as formas específicas de cada sexo Na mulher as formas vão se tornando mais salientes e os genitais vão adquirindo maior importância na economia corporal como descreve o parágrafo que segue Tornandose os genitais centro de uma nova excitação e parecendo reunir em si toda a sensibilidade ou como foco das forças vitais de secundários tendem a ocupar agora o primeiro lugar nas operações da economia então os ovários e o útero refletindo o excesso de excitação de que são sede para as partes com quem estão ou direta ou simpaticamente relacionados dãolhes uma nova forma na marcha funcional ao mesmo tempo os órgãos sexuais externamente desenvolvem maior volume Andrade 1839 p 1415 A puberdade é entendida como uma época em que algumas doenças podem aparecer assim como outras podem ser curadas Tudo depende de como essa fase é administrada Perturbações como a clorose a histeria a loucura a ninfomania que dependem da desarmonia de diversos sistemas do organismo podem aparecer É preciso seguir certas regras higiênicas que impeçam estas manifestações Moderar a energia despendida com o sistema nervoso e intelectual é fundamental O colégio pelo convívio que oferece e pela exigência intelectual deve ser preterido em prol da instrução fornecida pela própria mãe da menina Andrade 1839 p 2128 mioloantroppmd 10022010 1445 413 414 A tese de José J Firmino Junior 1840 aprofunda a descrição do sistema das diferenças evidenciando o poder de raciocínio a força física e o movimento para o homem a função reprodutiva o repouso e a quietude no caso da mulher um vive para usar de seu extremo mais elevado no outro parece que tudo é sacrificado ao livre exercício da função da reprodução a natureza indica àquele o poder de raciocínio o emprego das forças físicas e a esta a quietação o repouso mesmo uma razão puramente mecânica esteia esta ordem natural porque sendo o corpo do homem mais longo que o da mulher e estando o centro de gravidade dele mais elevado que o dela deve ela procurar conservarse estacionária e ele entregar se aos trabalhos e atos de movimentos e tanto esta idéia merece consideração quanto a mulher cujo corpo aproximase mais ao daquele imitao e segueo nos seus trabalhos e funções Firmino Junior 1840 p 2 Esse autor também recorre à imagem da pirâmide inversa para ilustrar a comparação entre os corpos de homens e mulheres E faz precisões quanto às diferenças inerentes a todas as partes que compõem o organismo Quanto aos ossos por exemplo afirma que qualquer anatomista seria capaz de discernir os que pertencem à mulher ou ao homem Os músculos na mulher são mais fracos pequenos e delgados e terminam em tendões mais finos Não são próprios a suportar grandes esforços Uma espécie de atrofia fisiológica ataca os músculos do corpo feminino com exceção daqueles que mioloantroppmd 10022010 1445 414 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 415 circundam a bacia e as coxas importantes no processo de reprodução No homem o sistema sanguíneo predomina tornandoo mais bem dotado de grandes forças físicas e morais além de uma constituição rígida e seca Na mulher o sistema linfático tornase preeminente transformandoa em um ser mais mole e úmido Mas é quanto ao sistema nervoso que temos uma noção clara da natureza feminina as mulheres são mais sensíveis mais impressionáveis menos aptas para a meditação volúveis inconstantes extremosas em tudo dadas a coisas de pouca ou nenhuma consideração mais eloquentes mais sujeitas a serem vencidas graciosas em todos os seus atos finalmente é no sistema nervoso que reside toda a vida da mulher Firmino Junior 1840 p 5 O autor ainda afirma que os órgãos as necessidades as faculdades e os tipos de exercícios possíveis são absolutamente distintos para homens e mulheres Da mesma forma não pode haver igualdade em suas funções Em oposição ao homem a vida da mulher converge para um único fim que é a reprodução da espécie A puberdade ilustra bem isso na medida em que consiste na época em que a menina deixa de viver para si e tornase propriedade da espécie da posteridade E é exatamente nessa sua missão que ela ganha ares de divindade Sem dúvida o mais importante ato da vida de uma mulher é o da propagação nela ela emparelha com a Divindade enchendo a superfície da terra de seres que lhe são semelhantes assim como o Criador encheu o mioloantroppmd 10022010 1445 415 416 nosso planeta de entes diversos e o imenso espaço que o separa das mais remotas regiões celestes de corpos que estão em perene movimento Talvez possamos dizer sem temor de errar que a mulher é para a procriação do homem o que o Autor do Universo é para todo o mundo Firmino Junior 1840 p 7 Em função do cumprimento dessa tarefa essencial torna se impossível para a mulher a dedicação a outras atividades especialmente aquelas que exigem esforço intelectual Fica portanto manifesto que as ciências as artes as invenções não devem merecer muito a atenção do belo sexo tendo ele uma parte tão ativa e prolongada na propagação muito pouco tempo restarlheia para a meditação a conjectura e as ciências que demandam um aturado estudo e continuada reflexão a mulher a cada momento interrompida pelos expressivos gritos do recémnascido que reclamam socorros a miúdo perturbaria a todo instante a concatenação de suas idéias e raciocínios uma incompatibilidade manifesta existe entre a abstração matemática e as distrações pueris entre a volubilidade de seus pensamentos e a estabilidade de uma questão física enfim entre as faculdades intelectuais e as diversas funções a que por necessidade de sua organização ela é sujeita Firmino Junior 1840 p 7 Assim como a mulher tem a gratificante mas árdua tarefa da procriação ao homem cabe também cumprir um papel produtivo Não foi criado apenas para desfrutar os gozos do mioloantroppmd 10022010 1445 416 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 417 mundo mas para executar todas as tarefas inerentes à esfera do trabalho Assim foi estabelecido pela natureza e assim deve permanecer Afinal percebese logo que as mulheres que pegaram em armas ou se dedicaram a funções masculinas perderam todos os seus encantos femininos o que é prejudicial para a organização da sociedade Firmino Junior 1840 p 8 adverte que cada sexo não deve transgredir as raias de seus deveres limitandose a fazer aquilo que é compatível com a sua organização corporal Só assim a felicidade será possível e completa Esse tipo de entendimento das diferenças leva esses médicos a exigirem dos pais um sério cuidado com a educação das filhas Essa tarefa fundamental para o trabalho de vigilância e direção moral poderia ser resumido na proibição de uma educação intelectual mais aprimorada João de Oliveira Fausto 1846 p 17 por exemplo incita as mães a ajudar a natureza contribuindo para que todos os seus esforços possam ser concentrados nos órgãos genitais Isso significa que a excitabilidade dos outros órgãos deve ser controlada principalmente do cérebro A dedicação aos estudos pode fazer com que todas as energias que deveriam ser empregadas no amadurecimento do aparelho reprodutor sejam desviadas para o cérebro Isso pode causar tanto o retardo no aparecimento da primeira menstruação como problemas para aquelas já menstruadas que insistem em esforços mentais na época do seu ciclo É o que afirma Fausto 1846 p 19 mioloantroppmd 10022010 1445 417 418 É igualmente muito importante que elas não se entreguem durante o corrimento das regras a trabalhos intelectuais e a estudos muito assíduos que estabelecendo uma superexcitação cerebral determinam uma desigual divisão das forças vitais e fazem afluir o sangue para o cérebro José Tavares de Mello 1841 é ainda mais enfático ao condenar a aplicação intelectual das mulheres Esse autor justifica sua posição pela teoria do desvio das forças ao cérebro mas também em função do lugar que a mulher ocupa na sociedade Tristes exemplos atestam todos os dias a inutilidade e até o perigo de obrigar as meninas à cultura da ciências e demonstram os inconvenientes de uma aplicação muito sustentada e a perniciosa influência que ela exerce sobre a saúde A excitação prolongada do cérebro não se limita só a fazer dele o centro exclusivo de ações e movimentos enfraquecendo a energia dos outros órgãos mas o força também a tornarse a sede de uma suscetibilidade que ocasiona cefalgias doenças nervosas e outras muitas afecções que envenenam os mais belos dias da existência das mulheres A espécie de império que exercem na sociedade exige que elas não sejam ignorantes porém não lhes é devido o mesmo grau de instrução dos homens cujos destinos partilham e embelezam O estudo moderado das artes de recreação é o único que lhes convém porém somente como meio de adoçar as tristezas suavizar o mioloantroppmd 10022010 1445 418 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 419 aborrecimento da solidão lançar sobre o curso de sua vida doces e agradáveis distrações de variar enfim os prazeres distraindoas em seus trabalhos Mello 1841 p 15 Tornase evidente como os médicos vinculam dados biológicos como a maternidade a atividades consideradas femininas Os processos observados no corpo feminino nesse caso a menstruação no contexto da puberdade adquirem um peso de extrema importância3 São utilizados de forma a corroborar as teorias a respeito das relações entre os gêneros A hierarquia de funções que prevê como única possibilidade para a mulher o papel de mãe e esposa está ancorada na definição de um conjunto de dados considerados naturais Essa hierarquia condena a educação feminina a partir dos supostos prejuízos que traria à função primordial da mulher a maternidade Educação aliás desnecessária já que aquela função não exige um grande desenvolvimento das faculdades intelectuais A educação implicaria em uma usurpação das forças destinadas à reprodução A mulher que se entrega ao estudo das ciências estaria se dedicando a um empreendimento que não tem razão de ser e prejudicando a ordem natural das coisas Além de tudo por mais que se esforçasse jamais seria capaz de realizar algo produtivo nesse campo Nessa fase do século os médicos sequer discutem a possibilidade da contribuição feminina no mundo extradoméstico O aprofundamento da educação é visto como algo sem sentido por natureza e potencialmente prejudicial4 mioloantroppmd 10022010 1445 419 420 A produção médica sobre a diferença entre os sexos com ênfase na associação entre conformação corporal diferenciada e ilustrada sobretudo com o cérebro e capacidades intelectuais correspondentes segue aparecendo de forma significativa ao longo do século XIX Entre a década de 1840 até o início da década de 1860 se traduz especialmente na preocupação em torno da puberdade e da menstruação Posteriormente aparecerá atrelada também aos temas da menopausa sexo e casamento em teses produzidas nas últimas décadas do século XIX e primeiras décadas do século XX5 GÊNERO E CÉREBRO NO SÉCULO XXI Certamente temos muita facilidade em estranhar o conteúdo das teses apresentadas acima Embora estivessem refletindo a verdade científica da época traduzida em trabalhos com toda a legitimidade acadêmica o passar dos anos nos permite exotizar aquelas considerações sobretudo em função das profundas modificações sociais ocorridas desde então Especificamente no que se refere às relações de gênero as convicções igualitárias mais arraigadas de uns ou a obrigação com o politicamente correto de outros levam a uma peremptória condenação dos evidentes excessos cometidos em nome da ciência Excessos estes relacionados poderíamos dizer hoje com a enfática influência do gênero na produção do conhecimento científico mioloantroppmd 10022010 1445 420 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 421 Gostaria de sugerir que não conseguimos ter a mesma capacidade de estranhamento em relação ao que vemos publicado hoje Evidentemente é óbvio que um oceano de descobertas nos separa daquele momento e não se pretende negar isso Contudo o que importa aqui é discutir a natureza das conexões em jogo e o modo como o gênero entra em cena nos trabalhos que pretendem tratar da diferença entre homens e mulheres ou mais especificamente do cérebro de cada um Nesse caso vou privilegiar textos de divulgação científica6 É evidente que não são diretamente comparáveis em termos formais a teses produzidas no século XIX Mas exatamente por isso revelam uma grande transformação que precisa ser apontada Atualmente nos constituímos em uma sociedade ávida pelo consumo de informação e de artefatos que são colocados à disposição com a chancela de serem resultados do progresso científico A legitimidade da ciência é utilizada o tempo todo na promoção e aquisição de novos recursos para a administração de nossa vida cotidiana As informações traduzidas pela mídia nos fornecem o arsenal básico por meio do qual orientamos e justificamos inclusive a performance de nossos corpos e nossos comportamentos Não é sem razão que temos assistido a um crescimento no número de publicações de divulgação científica tanto livros quanto revistas e suplementos de jornais sem falar é claro dos programas de televisão e sites na internet Um dos temas mais recorrentes nesses veículos tem sido as supostas diferenças mioloantroppmd 10022010 1445 421 422 entre homens e mulheres com destaque para o cérebro7 Tomarei como foco de análise exemplos de artigos escritos por pesquisadores mas voltados ao grande público que parecem expressar de maneira contundente esse tipo de fenômeno Foram escolhidos porque incidem exatamente sobre o tema em questão ou seja a preocupação em definir as diferenças de gênero em termos biológicos Escolhi para analisar especificamente neste item um volume do periódico Viver Mente e Cérebro8 a edição de março de 2005 número 146 cujo título é Diferenças entre os sexos muito além dos fatores culturais a diversidade entre homens e mulheres é inata Vale acrescentar que a revista publicou também uma Edição Especial número 10 sem data intitulada A trégua dos sexos bases neurais cognitivas e hormonais determinam divergências entre homens e mulheres além deste tema aparecer constantemente no seu quadro de matérias9 Notase já com os títulos a preeminência do inato sobre a cultura e a reafirmação da diferença De um modo geral os artigos tratam do fato de que haveria uma pequena diferença essencial entre homens e mulheres em função de tipos de cérebro diferentes A censura do politicamente correto faz com que se reafirme a idéia de que é apenas uma pequena diferença mas que é o tempo todo qualificada como inata e essencial Além disso temse o cuidado de tentar valorizar as qualidades que seriam específicas de cada sexo Depois das ressalvas vão se opondo uma série de mioloantroppmd 10022010 1445 422 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 423 características como uma maior facilidade para localização espacial dos homens e uma maior capacidade comunicativa por parte das mulheres ou maior capacidade de sistematização para os primeiros e empatia para as segundas10 Tudo isso com base em estudos recentes que estariam conseguindo provar que as diferenças não seriam decorrentes da socialização mas teriam uma origem biológica O artigo de Markus Hausmann doutor em psicologia trabalha no Instituto de Neurociência Cognitiva da Faculdade de Psicologia da Universidade do Ruhr em Bochum Alemanha começa afirmando que se há muito tempo os cientistas cognitivos suspeitavam que homens e mulheres pensam de modo diferente hoje dispõem de dados biológicos que confirmam isso O autor atesta que mais importante do que considerar que o córtex cerebral feminino possui cerca de 35 bilhões de neurônios a menos do que o masculino uma diferença de 16 é tratar das diferenças em regiões cerebrais específicas Como exemplo cita que os núcleos neuronais apresentam grande diferença de tamanho nos hipotálamos masculino e feminino região que participa do controle do sistema hormonal e influencia comportamento sexual e reprodução Acrescenta que Também os feixes de fibras nervosas que ligam os dois hemisférios cerebrais parecem diferir nos dois gêneros São essas comissuras que possibilitam a comunicação entre os hemisférios esquerdo e direito A maior dessas mioloantroppmd 10022010 1445 423 424 conexões o corpo caloso com pelo menos 200 milhões de fibras nervosas parece mais robusta nas mulheres sobretudo em sua porção posterior O mesmo acontece com outras conexões menores entre os hemisférios cerebrais Isso permite supor que no cérebro feminino os dois hemisférios interagem com maior intensidade Além disso nas mulheres os dois hemisférios são mais parecidos do que nos homens Neles a diferenciação entre os hemisférios é mais nítida tanto pelo tamanho de determinadas estruturas como pela forma e pelo curso de muitos sulcos cerebrais Hausmann 200542 43 O autor então se pergunta se essas diferenças estruturais refletiriam na capacidade do cérebro E o interessante é que apesar de toda a preocupação com a correção política e mesmo da sintomática utilização do termo gênero em situações em que parece estar se referindo a sexo ainda perpassa uma hierarquia de valor na comparação entre homens e mulheres É o que aparece quando descreve que a assimetria funcional relação entre a função exigida e o hemisfério cerebral utilizado é mais pronunciada nos homens do que nas mulheres Enquanto elas recorrem a regiões cerebrais de ambos os hemisférios nas tarefas lingüísticas ou relacionadas à orientação espacial os homens tendem a restringir sua atividade neurológica a um dos lados Hausmmann 2005 nesse ponto recorre à dúvida sobre o que seria melhor mas evidentemente acaba privilegiando os detentores da assimetria mioloantroppmd 10022010 1445 424 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 425 É difícil definir qual princípio de organização é melhor a simetria ou assimetria O cérebro assimétrico é capaz de processar informações com rapidez em regiões contíguas sem precisar enviálas para o outro lado Quanto menores as distâncias entre as regiões cerebrais no interior de uma associação neuronal tanto mais rapidamente elas processarão as informações uma clara vantagem da assimetria Hausmann 200543 A vantagem da organização cerebral simétrica estaria reduzida a uma menor propensão a distúrbios em caso de lesão a um único hemisfério Mas é preciso chamar a atenção para que não se trata de uma qualidade constitutiva Na verdade quando entra em jogo o que importa o que é constitutivo faz se referência ao papel dos hormônios11 O autor apesar da ressalva de que os dois sexos dispõem de hormônios masculinos e femininos afirma que a diferença biológica entre homem e mulher se baseia na economia hormonal desde antes no nascimento É o que demonstram exames feitos em bebês antes ou logo após o nascimento expostos a uma alta concentração de hormônios sexuais em razão por exemplo da chamada hiperplasia adrenal congênita HAC Essa enfermidade acarreta um exuberante aumento no nível de hormônios sexuais masculinos Meninas afetadas por essa doença possuem genitália masculinizada o que em geral pode ser corrigido muito cedo com cirurgia A terapia hormonal pode fazer com mioloantroppmd 10022010 1445 425 426 que a secreção de mensageiros químicos masculinos seja atenuada Pessoas que passaram por esse fluxo hormonal intenso até pouco antes do nascimento são o alvo ideal da pesquisa científica nesse caso diferenças posteriores em suas capacidades mentais podem ser atribuídas à influência hormonal precoce e por um período de tempo bastante limitado Os primeiros exames com meninas com HAC relataram inteligência acima da média Hoje se sabe que isso se deve sobretudo às capacidades relacionadas à orientação espacial um dos típicos pontos fortes masculinos Hausmann 2005 p 44 Notamos então uma associação entre hormônios masculinos cérebro masculino e maior inteligência mesmo quando a descrição é feita a partir da exceção de meninas masculinizadas O tema da influência dos hormônios está ganhando cada vez mais espaço e nesse número de Viver Mente e Cérebro que estou analisando consta um artigo especialmente dedicado à influência do estrogênio nas mais diversas capacidades cognitivas de homens e mulheres Ulrich Kraft médico e colaborador da revista GehirnGeist apresenta a questão da seguinte forma o estrogênio influencia diversas esferas cognitivas como aprendizado memória e comportamento Afinal independentemente de estereótipos e clichês não há como ignorar a pequena diferença entre os sexos no tocante à prevalência de certos talentos específicos em homens e mulheres Hormônios sexuais dão aí sua contribuição e disso existe comprovação bastante mioloantroppmd 10022010 1445 426 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 427 convincente nas mulheres determinadas capacidades cognitivas se alteram de acordo com o nível do hormônio Kraft 2005 p 4748 Esta descoberta é exemplificada com um teste de rotação mental por exemplo girar mentalmente uma figura geométrica usado para avaliar a capacidade de visualização espacial realizado pelo biopsicólogo alemão Onor Güntürkün com mulheres em diferentes fases do ciclo menstrual Durante a menstruação quando os hormônios sexuais se encontram em níveis mais baixos as mulheres se saíram tão bem quanto os homens do grupo de controle Mas quando os níveis de estrogênio sobem no final do ciclo o desempenho delas caiu sensivelmente Contudo no teste realizado paralelamente para encontrar palavras apropriadas a performance foi melhor Como conclusão temos que Os resultados comprovam que as habilidades espaciovisuais das mulheres não são em essência inferiores às dos homens o que ocorre com elas é antes uma oscilação mais forte do nível de estrogênio no cérebro deslocando a ênfase de um talento para outro Kraft 2005 p 48 Além dessa oscilação periódica que caracterizaria a capacidade cognitiva das mulheres digase de passagem tão ao gosto dos escritos médicos do século XIX acrescentarse ia uma deficiência mais acentuada a partir da menopausa Nesse caso é feito referência ao trabalho de Bruce McEwn neuroendocrinologista da Universidade Rockefeller mioloantroppmd 10022010 1445 427 428 pesquisador que defende uma espécie de terapia de reposição hormonal para o cérebro da qual se beneficiariam sobretudo as mulheres de mais idade Kraft 200550 Nessa linha da conexão entre as descobertas sobre as diferenças cerebrais e hormonais entre homens e mulheres e a prescrição de recomendações nada supera o artigo de Hartwig Hanser12 intitulado Diferentes desde o nascimento São várias páginas dedicadas a demonstrar que sociólogos pedagogos e psicólogos estariam errados em explicar as diferenças por meio da socialização Desde o final dos anos 60 segundo o autor já teríamos pesquisas comprovando que diferenças comportamentais ligadas ao sexo já se manifestariam desde o nascimento Hanser relata que Aos seis meses de idade já fica evidente que impor a própria vontade é mais relevante para eles do que para as meninas e são eles que mais freqüentemente tomam os brinquedos de outras crianças Com um ano Ana e suas amiguinhas gostam de brincar com ursinhos e bonecas enquanto Félix e seus amiguinhos preferem carrinhos e outras máquinas qualquer coisa que faça algum tipo de movimento Eles também se interessam mais por coisas proibidas têm maior tendência a desobedecer a regras e a fazer coisas arriscadas e a partir dos três anos gostam de lutar Hanser 2005 p 32 33 Ainda segundo o autor essas diferenças estariam no centro das discussões sobre igualdade de oportunidades entre homens e mulheres e têm sido erroneamente abordadas através da mioloantroppmd 10022010 1445 428 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 429 influência do meio social Com o auxílio de referência a padrões evolucionários Hanser propõe que a nossa disposição natural tem um peso bem maior do que tem sido considerado E se certos comportamentos são mais fáceis para os homens e certos objetivos são mais gratificantes para as mulheres agir contra essas inclinações naturais representaria um grande esforço e dispêndio de energia Além disso ao final poderíamos não nos sentir tão contentes quanto o esperado pois nosso mecanismo de gratificação interna não corresponde tão bem à situação criada Hanser 2005 p 39 Como não poderia deixar de ser o tema da educação passa a ser um alvo central e tem destaque sobretudo a discussão em torno do modelo de escola a adotar misturando ou separando meninos e meninas com um preferência do autor por este último padrão e do tipo de habilidades a incentivar Depois de sistematizar dados de pesquisas a respeito pontifica que Uma coisa no entanto está clara o tão propalado tratamento igualitário como remédio para a discriminação contra as mulheres só funcionaria se meninos e meninas não fossem essencialmente diferentes Na realidade eles são por natureza tão distintos que o tratamento igualitário se torna contraproducente Hanser 2005 p 39 Para concluir o artigo Hanser faz uma curiosa oscilação entre defender a adoção de comportamentos masculinos pelas mulheres e femininos pelos homens já que estas exigências mioloantroppmd 10022010 1445 429 430 estão tão difundidas o fundamento das diferenças em um substrato biológico e uma possível flexibilidade que parece mais retórica do que efetivamente considerada As mulheres devem se impor com maior firmeza na competição com os homens e os homens devem empenharse no cuidado das crianças essas exigências estão hoje muito difundidas e se tornaram quase lugar comum Mas para que os indivíduos tenham sucesso nessas empreitadas eles devem estar bem conscientes de que impedimentos internos a essas atividades podem estar fundados em nosso substrato biológico embora não de maneira alguma inflexível Hanser 2005 p 3913 Vale ainda acrescentar que cuidar das crianças para os homens e resistir ao insucesso e ter autoconfiança para as mulheres corresponde a desenvolver conscientemente os aspectos negligenciados pela Mãe Natureza Hanser 2005 p 39 Ou seja reafirmase na última frase do artigo a noção de que uma maior aproximação no cumprimento de tarefas sem falar em luta por igualdade implicaria em ir contra o que afinal a Mãe Natureza havia prescrito AS SURPREENDENTES CONTINUIDADES Espero que com a descrição apresentada acima possa sugerir também um estranhamento em relação ao que hoje em dia costumeiramente nos meios de divulgação científica costumase definir como a pequena diferença entre homens e mulheres Percebese uma reencenação do contraste físico mioloantroppmd 10022010 1445 430 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 431 entre os sexos em virtude do cérebro e da conseqüente assimetria entre os gêneros Mais uma vez para além das possíveis diferenças existentes o que importa aqui é refletir sobre a insistência na descoberta e na explicação naturalizante dessas diferenças Mesmo acreditando que hoje saberíamos muito mais sobre o corpo e o cérebro e a relação com o comportamento do que em meados do século XIX estamos ainda muito longe de chegar a uma verdade definitiva se é que ela seria possível Ou pelo menos estamos distantes do estabelecimento de paradigmas consolidados nesse domínio do conhecimento ainda tão recente que é a neurociência14 Cabe chamar a atenção para o fato de que os próprios cientistas atestam que ainda estariam engatinhando no que se refere ao potencial futuro de descobertas quanto ao cérebro Além disso constantemente reafirmam a flexibilidade desse órgão em adaptarse a novas situações O que é curioso então é que apesar dessas ressalvas e especialmente no que se refere ao gênero mas não só temos uma suposição de que estão sendo traduzidas para o público leigo as grandes verdades científicas sobre as diferenças Surpreendentemente o tom se assemelha muito ao que aparece nas teses de medicina do século XIX A diferença é que aos nossos olhos de hoje parece difícil acreditar que aqueles médicos sabiam o que estavam dizendo principalmente no que diz respeito às variações cerebrais Já no contexto atual embora se admita formalmente a insipiência do conhecimento mioloantroppmd 10022010 1445 431 432 produzido na versão mais difundida observamos o privilégio a um tom de certeza como se de fato soubéssemos como cérebro e diferenças de gênero se associam em relações de causalidade Embora a controvérsia caracterize e seja um dos principais componentes impulsionadores da produção do conhecimento e marque muito fortemente esse campo hoje o que consumimos nas bancas de jornais e revistas são supostas verdades que explicariam e justificariam a assimetria entre homens e mulheres A constatação da permanência dessas idéias e da sua expressão de forma contundente em momentos tão distintos como meados do século XIX e início do século XXI leva a supor que algum tipo de mecanismo muito resistente pode estar em cena embora bastante modificado pela passagem do tempo Sugiro que estamos assistindo a uma nova remodelagem da reafirmação do dualismo de gênero agora repaginado com as cores da neurociência Tratase do que poderíamos chamar de uma substancialização da diferença caracterizada pelo enraizamento constantemente renovado do gênero em determinadas marcas corporais Quando analisamos a produção médica e científica sobre a mulher e sobre a diferença entre os sexos de uma perspectiva de mais longa duração notamos focos importantes desse processo Se no século XIX tínhamos uma insistência nas diferenças anatômicas e fisiológicas atribuídas aos corpos de homens e mulheres com o passar dos anos temos a mioloantroppmd 10022010 1445 432 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 433 transferência do interesse para os hormônios Já nas primeiras décadas do século XX serão esses mensageiros químicos os responsáveis pelas atribuições das características fundamentais aos dois sexos A idéia de que haveria hormônios masculinos e hormônios femininos embora questionada já a partir da década de 1920 permanece até hoje como explicação legítima para distinções inclusive no que se refere ao comportamento e às capacidades cognitivas Como vimos na segunda parte deste artigo aos hormônios é designado um papel imprescindível no processo de diferenciação cerebral ajudando a converter o cérebro no novo foco de substancialização da diferença Para finalizar gostaria de insistir no argumento de que importa menos para o debate em torno do gênero se de fato existem diferenças e muito mais o que se tem feito com elas ou melhor dizendo a partir da suposição de que elas existem Quase sempre que uma gramática naturalizante da diferença é acionada tem sido para falar em nome da imutabilidade É como se atribuir adjetivos como hormonal ou cerebral servisse ao propósito de atestar o caráter natural intrínseco e cristalizado das diferenças Esse processo talvez longe de espelhar um conhecimento último sobre o corpo e suas variações reflete uma verdadeira obsessão com o esquadrinhamento e manutenção das diferenças de gênero Revela também que uma reconsideração sobre a qualidade imutável de certos atributos tende a ser percebida como uma séria ameaça E é justamente porque se suspeita que essas mioloantroppmd 10022010 1445 433 434 diferenças conhecidas não sejam tão substancializáveis ou definitivas que tanto se insiste na procura de novos fatos irredutíveis Em um momento em que tanto no plano acadêmico e científico quanto no plano do ativismo tanto se questiona ou problematiza a naturalização das diferenças assistimos também a tentativas de reembasamento delas na biologia Nada mais apropriado pareceria no contexto atual do que a eleição do cérebro como foco de novas descobertas a este respeito O surpreendente talvez seja o fato de que o cerne desses achados já aparecesse notavelmente descrito em trabalhos do século XIX Além disso não deixa de causar espanto também que a assimetria de valor nas descrições das características atribuídas a cada sexo seja por exemplo no cérebro do século XIX ou no cérebro do século XXI caminhe sempre na mesma direção Tanto naquele momento como agora e apesar de se reconhecer as qualidades de cada um o sinal de mais vantajoso na escala de valores continua sendo insistentemente posicionado no lado masculino Precisamos ainda refletir muito sobre as razões da necessidade de enxergar e prescrever essa pequena diferença essencial 1 Para uma discussão detalhada das teses apresentadas à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro entre 1833 e 1940 considerando as questões relativas ao gênero ver Rohden 2001 NOTAS mioloantroppmd 10022010 1445 434 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 435 2 Sobre a importância dos nervos e da configuração do nervoso com uma descrição pormenorizada deste modelo ver Duarte 1986cap3 3 Russett 19952831 aponta as mesmas características para a produção científica angloamericana 4 Esta discussão é bastante citada pelos autores que estudam a medicina sobre a mulher no século XIX pelo menos desde a década de 1970 quando foi publicado o trabalho de V Bullough e M Voght 1973 Nesse artigo destacase a grande produção de teorias sobre a menstruação elaboradas pelos médicos norteamericanos no final do século XIX que incidiam sobre a impossibilidade natural da mulher se dedicar aos estudos Para os autores esse argumento ganha impulso na medida em que os próprios médicos se vêem diretamente ameaçados pela reivindicação de entrada das mulheres nas faculdades de medicina e na profissão médica 5 A partir de 1890 os temas da puberdade e da menstruação voltam a interessar mais os médicos Temos várias teses artigos e livros sobre esses assuntos Esses trabalhos se dedicam a redefinir as modificações causadas na mulher com a chegada do ciclo menstrual a partir de novas descobertas ou novas teorias centradas por exemplo em uma definição mais precisa seja da relação entre menstruação e ovulação seja da importância dos hormônios Rohden 2001 6 A revista ComCiência Revista eletrônica de jornalismo científico editada pelo LabjorSBPC dedicou a sua edição especial de número 100 em 100708 ao tema da divulgação científica Disponível em wwwcomcienciabr em 270409 7 Em levantamento realizado com a revista Veja encontramos as mioloantroppmd 10022010 1445 435 436 seguintes matérias onde a diferença sobretudo cerebral tem destaque Frisson cerebral a beleza feminina causa sim reações primitivas nos homens Veja 05 de dezembro de 2001 O sexo oprimido Veja 01 de outubro de 2003 O cérebro devassado o cérebro deles e delas Veja 04 de agosto de 2004 Diferentes mas unidos Por que nelas o QI alto atrapalha o casamento e nos homens ajuda Veja 02 de março de 2005 A atração está no cheiro estudo explica como sexos se atraem e reforça a tese da origem biológica do homossexualismo Veja 18 de maio de 2005 Eles vão ficar impossíveis estudo divulgado na Inglaterra mostra que o QI dos homens é em média 5 pontos mais alto do que o das mulheres Veja 31 de agosto de 2005 Enfim a ciência entendeu a mulher Uma revolução muda quase tudo na forma como a medicina trata o corpo feminino Veja 07 de março de 2007 A diferença se vê no cérebro descoberto que os homossexuais são mais parecidos com pessoas do sexo oposto Veja 25 de junho de 2008 Conferir também em outros veículos O sentido das diferenças Ciência mapeia as diferenças fisiológicas e de comportamento para ajudar a medicina e a convivência entre homens e mulheres Caderno Folha Equilíbrio Jornal Folha de São Paulo 18 de março de 2004 Como pensam as mulheres Uma neuropsiquiatra aponta as razões biológicas que tornam o cérebro feminino diferente do masculino Revista Época 29 de janeiro de 2007 e o Sexo dos neurônios caderno Ciência e Vida do O Globo 08 de outubro de 2006 8 De acordo com página da revista na internet Viver Mente e Cérebro é uma publicação mensal que apresenta as mais recentes descobertas de pesquisas de ponta nos diversos ramos das neurociências da psicologia da psicanálise e da psiquiatria Suas reportagens e artigos são assinados por cientistas escritores e jornalistas de vários países e abordam em profundidade temas como mioloantroppmd 10022010 1445 436 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 437 inteligência consciência emoções motivação cognição percepção personalidade e criatividade informação disponível em wwwmultiversocombr em 270409 A revista reproduz conteúdo internacional fornecido pela Gehrin Geist com autorização da Scientific American e é editada pela Ediouro Segmento Duetto Editorial 9 Em 2008 foi lançada uma série especial de quatro volumes intitulada Sexos cujo objetivo era lançar múltiplos olhares para a sexualidade humana em seus aspectos neurobiológico evolutivo subjetivo antropológico e sociocultural informação disponível em wwwlocawebcombrclubeduetto em 270409 10 No caso do cérebro feminino como agente da empatia e do masculino como agente da sistematização a referência constantemente citada é o livro Diferença essencial a verdade sobre o cérebro de homens e mulheres de Simon BaronCohen 2004 11 Sobre a história dos hormônios sexuais desde uma perspectiva crítica ver Oudshoorn 1994 Sinding 2003 Gaudilliére 2003 Löwy 2003 e Rohden 2008 12 Na apresentação do autor temos as seguintes referências é doutor em bioquímica e redator da GehirnGeist Richard seu filho de três anos é fascinado por automóveis não se interessa por bonecas e faz questão de lutar todas as tardes com o papai Hanser 2005 p 36 13 A perspectiva de que precisamos entender melhor nossas diferenças naturais inclusive para dar uma vida mais satisfatória às mulheres é desenvolvida pela neuropsiquiatra norte americana Louann Brizendine no seu livro Como as mulheres pensam 2006 14 Sobre a neurociência e a criação do chamado sujeito cerebral ver Vidal 2005 Quanto à recorrência da imagem do cérebro na mídia e na cultura popular dentro de um contexto de análise mais geral sobre a história da visualização médica do corpo ver Ortega 2008 mioloantroppmd 10022010 1445 437 438 ANDRADE João Chagas e A puberdade na mulher Rio de Janeiro Tese da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1839 BARONCOHEN Simon Diferença essencial a verdade sobre o cérebro de homens e mulheres Rio de Janeiro Objetiva 2004 BRIZENDINE Louann Como as mulheres pensam Rio de Janeiro Elsevier 2006 BULLOUGH Vern e VOGHT Martha Women menstruation and nineteenthcentury medicine Bulletin of the history of medicine XLVII1 1973 6682 DUARTE Luiz Fernando Dias Da vida nervosa nas classes trabalhadoras urbanas Rio de Janeiro Zahar 1986 FAUSTO João de Oliveira Acerca da menstruação seguida de regras higiênicas relativas às mulheres menstruadas Rio de Janeiro Tese da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1846 FAUSTOSTERLING Anne Sexing the body gender politics and the construction of sexuality New York Basic Books 2000 FIRMINO JUNIOR José Joaquim Sobre a menstruação precedida de breves considerações sobre a mulher Rio de Janeiro Tese da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1840 GAUDILLIÈRE JeanPaul La fabrique moléculaire du genre hormones sexuelles industrie et médecine avant la pilule Cahiers du Genre n 34 2003 5781 HANSER Hartwig Diferentes desde o nascimento Revista Viver Mente e Cérebro São Paulo Ediouro n 146 2005 3239 HAUSMANN Markus Questão de simetria Revista Viver Mente e Cérebro São Paulo Ediouro n 146 2005 4045 JORDANOVA Ludmilla J Sexual Visions Images of gender in science and medicine between the Eighteenth and Twentieth centuries The University of Wisconsin Press 1989 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS mioloantroppmd 10022010 1445 438 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 439 KRAFT Ulrich O poder do feminino Revista Viver Mente e Cérebro São Paulo Ediouro n 146 2005 4651 LAQUEUR Thomas Inventando o sexo corpo e gênero dos gregos a Freud Rio de Janeiro Relume Dumará 2001 LOWY Ilana Intersexe et transsexualités les technologies de la medicine et la separation du sexe biologique du sexe social Cahiers du Genre n 34 2003 81105 MELLO José Tavares de A higiene da mulher durante a puberdade e aparecimento periódico do fluxo catamenial Rio de Janeiro Tese da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1841 ORTEGA Francisco O corpo transparente para uma história cultural da visualização médica do corpo In O corpo incerto corporeidade tecnologias médicas e cultura contemporânea Rio de Janeiro Garamond 2008 69184 OUDSHOORN Nelly Beyond the natural body an archeology of sex hormones London Routledge 1994 ROHDEN Fabíola O império dos hormônios e a constituição da diferença entre os sexos História ciências saúde Manguinhos 2008 133152 ROHDEN Fabíola Uma ciência da diferença sexo e gênero na medicina da mulher Rio de Janeiro FIOCRUZ Coleção Antropologia e Saúde 2001 RUSSETT Cynthia E Sexual science The Victorian construction of womanhood Cambridge Harvard Univ Press 1995 1989 SINDING Christiane Le sexe des hormones lambivalence fondatrice des hormones sexuelles Cahiers du Genre n 34 2003 3981 VIDAL Fernando Sujet cerebral In ANDRIEU Bernard org Dictionnaire du corps Paris Eds du CNRS 2005 485486 WIJNGAARD Marianne Van Den Reinventing the sexes the biomedical construction of feminity and masculinity BloomingthonIndianapolis Indiana University Press 1997 mioloantroppmd 10022010 1445 439 mioloantroppmd 440 10022010 1445 O livro O nervo cala o nervo fala A linguagem da doença publicado em 2000 que foi originalmente uma dissertação de mestrado em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina tornouse uma referência nos estudos antropológicos de saúde e especificamente sobre doença dos nervos no Brasil Sua autora a médica sanitarista Maria Lúcia da Silveira é professora aposentada do Departamento de Saúde Comunitária da Universidade Federal do Paraná e doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná Em seu livro Maria Lucia da Silveira aborda a doença dos nervos entre as mulheres moradoras de uma comunidade de origem pesqueira de Florianópolis articulando essa experiência de perturbação com fatores da vida cotidiana e familiar dessas mulheres distanciandose de sua própria formação naturalista e objetivista como ela própria define e buscando compreender as dimensões sociais da experiência NERVOS E NERVOSAS NO CONTEXTO DAS AFLIÇÕES CONTEMPORÂNEAS ENTREVISTA COM MARIA LUCIA DA SILVEIRA Carmen Susana Tornquist Sônia Weidner Maluf mioloantroppmd 10022010 1445 441 442 de adoecimento Maria Lucia mergulha fundo nos relatos e narrativas das mulheres sobre seu drama seus ataques e sensações físicas e emocionais ligadas a essa experiência assim como a suas estratégias de alívio e reorganização da vida cotidiana Sem ter suas queixas acolhidas ou levadas a sério pelos médicos e pelo sistema médico em geral as mulheres nervosas acabam muitas vezes sendo tratadas com calmantes ou mesmo placebos Aquilo que aparece como um idioma que expressa dimensões pessoais e sociais dando visibilidade a dramas relacionais e sociais em que questões de uma configuração hierárquica de gênero vêm à tona ao ser medicalizado domesticado pelas drogas em que pesem ser medicamentosas perde essa visibilidade social tirando de cena não só um dos atores mais destacados mas o próprio drama social1 Nesta entrevista Maria Lucia faz um balanço de seu trabalho quase dez anos após sua publicação buscando articular a questão dos nervos e do nervoso com o contexto atual de disseminação da depressão como a língua social das aflições contemporâneas e do uso de medicamentos psicotrópicos principalmente por mulheres O seu trabalho sobre as nervosas do Campeche foi feito há mais de dez anos mas já naquela época apontava para o crescente uso de remédios controlados requerentes de receita médica por parte das mulheres nervosas Como você vê hoje este trabalho considerando a expansão extraordinária do consumo de psicotrópicos no Brasil mioloantroppmd 10022010 1445 442 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 443 Naquela época não só o meu trabalho mas muitos outros já alertavam para o excesso e a facilidade de obtenção de psicotrópicos e de outros medicamentos cujo uso deveria ser controlado com rigor devido a seus efeitos indesejáveis porém em que pesem as medidas restritivas que os serviços de vigilância sanitária vêm adotando o uso indevido e abusivo continua Enfatizo o uso indevido porque uma das vertentes do abuso medicamentosos é a medicalização da vida e dos sofrimentos corriqueiros da vida cotidiana nem todos qualificáveis como sendo da competência médica Assim é que frustrações ou mesmo meras insatisfações na vida pessoal ou no trabalho dificuldades de relacionamento privações materiais etc vêm sendo tratadas com calmantes soníferos e outros psicotrópicos Qualquer tristeza ou desânimo até mesmo aqueles atribuíveis unicamente ao cansaço tendem a ser diagnosticados por clínicos psicólogos inexperientes ou menos atentos como depressão e as pessoas recebem antidepressivos desnecessários em dosagens e tempo de prescrição inadequados As pílulas da felicidade circulam abundantemente por aí e nem profissionais nem pacientes se dão conta que não resolvem problemas existenciais afetivos ou relacionais Para esses a abordagem pode até contemplar o uso eventual temporário e muito limitado de medicamentos mas exige muito mais do que isso em termos terapêuticos Já problemas de ordem externa ao indivíduo como os socioeconômicos nessa abordagem no máximo terão sujeitos mioloantroppmd 10022010 1445 443 444 dopados se importando pouco com eles ao invés de alertas e ativos com condições psíquicas de agir em busca da resolução dos mesmos O abuso segue facilitado também pelos esquemas ainda em funcionamento montados para burlar a vigilância e a legislação donos de farmácia mantêm e comercializam esquemas de receitas e formulários de controle previamente assinados e carimbados por médicos tão inescrupulosos quanto eles e com isso fornecem com aparência de legal e com uma suposta atitude benevolente pois parecem facilitar a vida de velhinhos principalmente e de outras pessoas que têm dificuldade de acesso a serviços de assistência saúde Isso sem falar do buraco sem fundo que é o comércio ilegal feito através da internet onde um dos principais atrativos é justamente não precisar de receita médica para adquirir qualquer medicamento Nos últimos cinco anos tenho vivido a experiência de ser paciente e passar boa parte de meu tempo em salas de espera ou de tratamento em clínicas oncológicas ou não o que me colocou na escuta de outros pacientes numa posição interessante uma espécie de pesquisa participante e ali pude confirmar todos os esquemas que as pessoas em sofrimento acionam para acessar livremente medicamentos controlados e como a conivência médica participa dos mesmos Portanto muda um pouco a forma mas o problema continua mioloantroppmd 10022010 1445 444 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 445 Sobre os remédios você observou naquela época que eles circulavam entre as casa e farmácias muitas vezes sem a prescrição médica Como era este processo como as pessoas se apropriavam dos medicamentos e das receitas Naquela época havia um esquema que passava por dentro do aparato médicopsiquiátrico de Florianópolis e funcionava assim pacientes eram encaminhados dos postos de saúde para dois serviços de psiquiatria então existentes no município no Hospital universitário da UFSC e outro remanescente do antigo INAMPS e que os pacientes ainda chamavam de INPS Nestes eram avaliados por um especialista e recebiam uma autorização válida por seis meses para receberem medicação psicotrópica nos postos de saúde Com ela bastava chegar ao posto dentro do período de validade da mesma e receber o medicamento nela indicado sem passar por nova consulta Só que não havia restrições nessa autorização nem um controle central de tal forma que aos pacientes bastava fazer um tour pelos postos de saúde da ilha e até do continente pegando medicamento em vários deles formando assim seu estoque particular de substâncias controladas Não tenho informações atualizadas sobre essa questão em Florianópolis porém minhas observações aqui em Curitiba como exposto acima mostram que a necessidade de ter esse estoque em casa ainda hoje é justificado em parte pela precariedade do sistema público de saúde dificuldades várias de acesso e à insegurança que a possível falta do medicamento no momento necessário traz mioloantroppmd 10022010 1445 445 446 Você poderia falar mais sobre o costume das mulheres do Campeche de fazer pequenos estoques de remédios controlados em casa Uma vez formado seu estoque particular a sua detentora se reveste de alguns poderes em primeiro lugar acha que com eles controla seu próprio sofrer depois pode como frequentemente alegado pelas mulheres entrevistadas ajudar pessoas próximas em situações dolorosas luto perdas emocionais ou materiais que impliquem em grande nervosismo etc Finalmente um poder sobre sua própria vida nenhuma das que entrevistei desconhecia os riscos da sobredosagem e manipulavam as pessoas próximas quando as coisas não lhe eram favoráveis com a ameaça velada ou não de tomarem todos os comprimidos de que dispunham e dessa forma acabarem com o sofrimento de todos Interessante que na minha vivência atual observo as mesmas operações de poder ligadas aos medicamentos entre os pacientes oncológicos neste caso ligado aos analgésicos opiáceos Estabelecem entre si redes de troca e vejo por vezes alguns que não receberam prescrição desses produtos de seus médicos porque ainda não precisavam deles ou porque frente ao profissional foram tímidos em suas falas mas recebem de outro paciente generoso o medicamento que pode até ser contraindicado em seu caso Noto como o paciente doador se reveste imediatamente de uma aura de poder parecida com aquela que enxergam nos médicos e em tudo semelhante àquela percebida nas nervosas em posse de tais produtos mioloantroppmd 10022010 1445 446 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 447 Você poderia contar como lidou com as suas várias identidades mulher mãe médica pesquisadora antropóloga que você analisa no livro Como as mulheres com quem realizava a pesquisa a viam e como você lidou com isto E com os homens As várias identidades acho que lidamos com isso constantemente hoje sou uma médica antropóloga aposentada paciente de câncer em tratamento contínuo há cinco anos filha órfã de pai e com a mãe seriamente afetada pela Doença de Alzheimer mãe de filhas que entram em sua idade adulta e se definem profissionalmente Condições essas que muitas vezes me colocam em situação muito delicada como acontece por exemplo em salas de espera de clínicas onde na maior parte do tempo omito a minha condição profissional para evitar que me solicitem opiniões ou interferências no tratamento de outras pessoas Na pesquisa sobre nervos o entrelaçar das várias Marias Lucias foi por vezes trabalhoso mas no meu entender foi um dos aspectos mais ricos do trabalho e percebi depois me acalmou um conflito trazido dos bancos da escola de medicina lá aprendera até onde isso era possível para uma pessoa passional como eu a ser fria ficar o máximo distante dos problemas das pessoas a não me envolver emocionalmente com pacientes a esquecer que eles eram seres humanos em sofrimento e a encarálos como máquinas avariadas Esta era a regra de ouro segundo a maioria esmagadora dos meus professores para ser um bom médico Claro que tentar seguila sempre pôs a mim própria e creio mioloantroppmd 10022010 1445 447 448 que a muitos outros colegas em situação de sofrimento A maioria nunca mais conseguiu se desvencilhar dessa postura e sofre ou deixa que sua clientela sofra com as suas implicações e nem têm consciência disso O trabalho de campo em epidemiologia que eu desenvolvi por alguns anos para a Secretaria Estadual de Saúde do Paraná já me garantira a oportunidade de afrouxar um pouco essa postura uma vez que me colocava frente a frente com as pessoas e suas condições reais de vida e apontava como muito daquilo que eu aprendera como sendo informação insignificante do ponto de vista médico as emoções e idiossincrasias pessoais influenciava profundamente a saúde Portanto a investigação sobre nervos aprofundou o cisma entre a minha formação profundamente naturalista e as minhas percepções enquanto pessoa cisão esta já apontada em minha própria busca pelas ciências sociais particularmente pelo meu encontro com a antropologia Aliás lembro muito bem da emoção ao ler trabalho etnográfico de Malinowski e saborear a diferença entre esse tipo de relato que na época eu qualifiquei com tendo alma e os secos e frios relatos médicos Bem o quero dizer é que embora em alguns momentos ainda tenha sido um choque as percepções de campo no Campeche foram parte de um processo de crescimento e abertura profissional e como todo processo teve seus momentos de confusão de conflitos e de espelhamento Assim algumas vezes como disse no relato da pesquisa mordi minha língua língua de médica pois estive mioloantroppmd 10022010 1445 448 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 449 a ponto de criticar as entrevistadas por um viés puramente biomédico mecanicista ou quase verbalizei aplausos para a conduta de meus colegas e foram as próprias pacientes que corrigiram meu prumo com suas observações e críticas me fazendo perceber a inadequação das mesmas O fato de ser mulher me permitiu num primeiro momento que conhecendo por dentro o papel feminino eu pudesse me despregar da perspectiva meramente profissional e pudesse desenvolver uma empatia de fato compreensiva e não apenas formal daquilo que me era relatado Depois o espelho generosamente apresentado pelas sofredoras de nervos propiciou à cidadã e à pesquisadora Maria Lucia compreeender melhor seu papel pessoal familiar e social suas dores e sobrecargas ou mais ainda como disse o poeta saber a dor e sobretudo a delícia de ser o que é Mas ser tudo isso implicou em usar em alguns momentos a estratégia de realçar uma dessas identidades ora eu era apenas médica ora eu era a mulher disposta a uma escuta amigável e mesmo a trocar confidências relatar minha própria história ora era a antropóloga diligente buscando o entrecruzar de várias narrativas que passavam também por mim Aposto que se os médicos em seus consultórios pudessem ampliar a escuta permitindo o aflorar da pessoa que precede o profissional essa escuta seria mais profícua menos exames precisariam ser solicitados os diagnósticos seriam mais fáceis e precisos a terapêutica que já teria sido iniciada com o diálogo entre iguais dois seres humanos em comunicação muito mais eficaz Mas mioloantroppmd 10022010 1445 449 450 para isso um conceito ampliado de cura teria que ser importado da antropologia rompendo com o circulo estreito da compreensão biomédica de cura apenas como reparo maquínico Inicialmente acho que eu enfatizava uma dessas identidades para facilitar o acesso e obter mais rapidamente a confiança das entrevistadas à medida que estabelecemos certo vínculo acho que tanto eu mostrava quanto elas percebiam a resultante delas que afinal é o que eu realmente sou Falei pouco com os homens do Campeche sobre a pesquisa um deles um líder comunitário se interessou pelo assunto reconhecendolhe relevância social e como um problema de mulheres facilitou os contatos com outras mulheres e acho que para ele a médica pesquisadora era a identidade mais proeminente O mesmo parece ter acontecido em relação aos outros dois entrevistados como pacientes Já para o dono da farmácia local acho que me recebeu apenas como uma médica quem sabe meio chata cuja pesquisa poderia atrapalhar um pouco seu negócio Nas narrativas e relatos que você escutou sobre os nervos e observou naquela época quais eram os recursos terapêuticos procurados pelas pessoas em relação a suas aflições e sofrimentos dos nervos etc Poderia falar um pouco sobre isto As mulheres e suas famílias lançavam mão de vários recursos muitas vezes simultaneamente e por várias razões suas crenças religiosas ou não e suas concepções sobre o adoecimento as mioloantroppmd 10022010 1445 450 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 451 levavam a itinerários religiosos que também eram buscados por causa da ineficiência dos recursos médicos os serviços médicos eram buscados na tentativa de encontrar razões para esse sofrimento e outros concomitantes e também para dar o aval socialmente aceito para a identidade de doente e como via de acesso aos medicamentos controlados muitas ocasiões exclusivamente para esta finalidade recursos e remédios caseiros eram utilizados baseados em indicações cuja origem se perde na história como é o caso da noz moscada ou de outras substâncias de cheiro forte ou desagradável que se faz o paciente inalar e que nos primórdios da medicina ocidental eram referidos como o tratamento da sufocação uterina sofrimento cuja descrição coincide grande parte com a das nervosas Em relação à assistência médica o contundente nessa pesquisa é a queixa repetida da surdez médica em relação ao sofrimento demonstrada na repetida frase não é nada Reclamando dessa atitude as nervosas desnudam a debilidade médica na escuta dos pacientes em geral mazela que hoje as escolas médicas e alguns serviços tentam reparar através dos movimentos de humanização da medicina mas que encontram inúmeras dificuldades uma delas o excesso tecnológico que afasta o profissional do paciente e cria ilusões de competência médica ilimitada Não quero qualificar a tecnologia como inconveniente e sim a atitude que se alastrou entre os médicos de achar que máquinas e aparelhos podem facilitar sua vida desobrigandoos da escuta atenta e compreensiva base da mioloantroppmd 10022010 1445 451 452 relação médico paciente e primordial não apenas para o bom encaminhamento diagnóstico mas sobretudo para a terapêutica Seu estudo é um dos pioneiros em analisar em uma abordagem antropológica a questão dos nervos e perturbação no Brasil considerando a dimensão de gênero Poderia nos contar como foi o processo de construção deste objeto de pesquisa De fato os trabalhos sobre nervos que me antecederam dos quais destaco o do professor Duarte Luiz Fernando Dias Duarte2 e o de Souza Maria Cecília Guerios de Souza 3 abordavam nervos como um sofrimento de trabalhadores e por esta razão à época em que foram realizados o destaque era para a relação entre eles e o universo do trabalho operário na qual predominavam os homens Por isso quando minha orientadora no mestrado a professora doutora E Jean Langdon sugeriu que eu estudasse esse sofrimento já com um recorte de gênero resisti um pouco tanto em relação à relevância do tema quanto a focalizálo como um problema de mulheres Entretanto eu fora fortemente sensibilizada pelas discussões desenvolvidas pela professora Miriam Grossi na disciplina Relações de Gênero e fiquei mais atenta para as questões ligadas a vida e papéis femininos Iniciei com uma prépesquisa entrevistando dois médicos que atuavam em postos de saúde no sul da ilha e informalmente alguns moradores do Campeche e entre eles a questão era mioloantroppmd 10022010 1445 452 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 453 imediatamente situada como um problema das mulheres embora referissem um ou outro caso masculino sendo que posteriormente a investigação mostrou que ali era mesmo um problema feminino diante disso não só pesquisei entre as mulheres locais como prossegui numa revisão bibliográfica a respeito de gênero e saúde e esta mostrou uma quantidade de iniquidades que vão desde a incompreensão do universo e dos papéis femininos a desvalorização dos sintomas de qualquer doença nas mulheres práticas médicas orientadas por posições machistas e preconceituosas entre muitas outras mais Assim inicialmente guiada pela população a ser estudada encontrei reforço para abordagem de gênero na literatura acadêmica O que você pensa da chamada epidemia da depressão Acha que há conexões com os nervos e como neste com o fato de apresentar um maior volume de diagnósticos em mulheres Penso que a vida contemporânea traz tantos benefícios em termos de conforto quanto pressão sobretudo no tocante ao consumo e vai impondo ritmos e estilos de vida altamente estressantes constituindose por si só como um agente patológico que pode desencadear inúmeras doenças entre elas a depressão De forma que entendo que tenha havido de fato um incremento no número de casos Porém acho também que há uma tendência entre pacientes e o que é pior entre médicos e outros profissionais de saúde de rotular apressadamente qualquer tipo de sofrimento psíquico como mioloantroppmd 10022010 1445 453 454 depressão O mesmo se aplica a outra epidemia atual a de síndrome do pânico É evidente que atribuindose um rótulo como o de depressão para um sofrimento físicomoral como é o dos nervos a consequência primeira será a prescrição de um antidepressivo Tenho ouvido com frequência de colegas psiquiatras que os clínicos gerais e outros especialistas como os ginecologistas frequentemente o fazem nesses casos Por isso é que eu disse que os erros de indicação de medicamentos que ocorrem na prescrição médica são uma das causas principais de abuso de medicamentos controlados Pela persistência hoje de nervos como objeto de pesquisa e reflexão tanto em trabalhos antropológicos quanto de saúde vejo que essa problemática provavelmente de mistura com os problemas psiquiátricos propriamente ditos continua na ordem do dia e merecedora de atenção nos espaços de assistência à saúde e que talvez se déssemos mais atenção ao sofrimento de nervos pudéssemos evitar a evolução senão para doenças mentais mais graves pelo menos a cronificação de um sofrimento como estratégia de sobrevivência Acho também que as questões mais gerais de saúde e gênero devem merecer maior atenção de pesquisadores e profissionais de saúde Você poderia falar um pouco da importância da dimensão narrativa que pressupõe uma escuta interessada na possibilidade de se construir um sentido não só à experiência dos nervos mas ao próprio processo de busca de alívio e cura mioloantroppmd 10022010 1445 454 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 455 Não só nervos mas qualquer sofrimento seja ele físico ou psíquico necessita ser contado e recontado em busca de um sentido para esse sofrer Tradicionalmente a consulta médica era um espaço privilegiado para isso porém devido a várias circunstâncias históricas ela perdeu essa característica e a prática mais comum hoje é a aplicação de filtros biomédicos para aquilo que se narra ao médico Melhor do que isso o filtro biomédico já age interferindo e direcionando a conversa determinando o que deve ser abordado porque faz sentido no âmbito da biomedicina e o que deve ser deixado de lado por ser julgado sem importância mesmo que para o paciente represente o cerne da história de seu sofrer e portanto da sua perspectiva e não devesse ser omitido Eu não tenho dúvida que a dimensão narrativa da doença é o primeiro passo na busca da cura e que o trabalho terapêutico de qualquer médico começa justamente na escuta e por ela mesma pelo potencial mobilizador de mecanismos idiopáticos de cura que mesmo que não sejam suficientes de per si são necessários para digamos assim preparar o terreno interno para a atuação de outros recursos terapêuticos Um sintoma da escuta insuficiente é a troca intensa de histórias pessoais nas ante salas de atendimento antes e após a consulta ali pacientes conversam entre si aquilo que queriam ter tido a chance de contar para seus médicos Nestas extensões dos consultórios acontecem não somente as trocas de histórias mas os intercâmbios de interpretações correlações causais que misturam concepções populares de doença com as biomédicas reinterpretadas e a mioloantroppmd 10022010 1445 455 456 de medicamentos ou mesmo a de proibições ou restrições a alguns prescritos pelos médicos mas que são desaconselhados por essa câmara por ali se encontrar alguém que teve uma experiência desagradável ou a seu ver deletéria com algum remédio Em nossa pesquisa percebemos que as políticas de saúde mental em geral reduzem as diferenças entre mulheres à dimensão biológica referente a ciclos de vida provavelmente fiéis à tradição da biomedicina em reduzir as mulheres à diferença centrada na reprodução e na maternidade Você acha que este reducionismo ainda persiste na medicina ou acha que já há mudanças no sentido de problematizar esta tradição na formação e na prática médicas Sem dúvida tem havido esforços para abandonar esse reducionismo que em última instância é uma ampliação do reducionismo fundador da biomedicina que é o de objetivar o ser humano a ponto de desconsiderar no paciente os traços que justamente o afirmam como humano Aliás essa redução como já apontado por autores como por exemplo Clavreaul Jean Clavreaul4 diminui não só o paciente como o seu médico também tirandolhe os traços de humanidade desejáveis para o bom estabelecimento da relação médicopaciente Entretanto os esforços são pontuais uma ou outra disciplina um médico ou outro em meio à esmagadora maioria que acha que essas frescuras só atrapalham a dinâmica dos serviços Outra confusão freqüente nos processos ditos de humanização é achar que o restabelecimento do uso das normas de convivência social mioloantroppmd 10022010 1445 456 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 457 NOTAS e da civilidade que poderíamos agrupar sob o rótulo de boas maneiras seja em si a humanização Claro que isso é imprescindível mas não o suficiente porque em geral falta o requisito principal que é reconhecer no paciente um ser humano com tudo de bom e de indesejável que isso possa representar Tive oportunidade mais de uma vez de puxar a discussão para o que chamo de óbices paradigmáticos da humanização da medicina pois entendo que a biomedicina tal como se firmou nos últimos dois séculos teria que se reconstruir em alguns de seus fundamentos para poder se humanizar Isto sem falar da organização dos serviços de assistência médica altamente desfavorável a gestos mais sensíveis e humanos 1 Maria Lúcia da Silveira O nervo fala o nervo cala a linguagem da doença Rio de Janeiro Ed Fiocruz 2000 p 90 2 Antropólogo professor do Programa de PósGraduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor entre outros de Da vida nervosa nas classes trabalhadoras urbanas Rio de Janeiro Jorge Zahar EditorCNPq 1986 3 Maria Cecilia Guerios de Souza médica psiquiatra do INPS o trabalho Doença de Nervosuma estratégia de sobrevivência foi publicado na revista do Ministério da Saúde A Saúde no Brasil vol1 n3 julhoset de 1983 p131 a139 4 CLAVREUL Jean Ordem médica poder e impotência do discurso médico Tradução Colégio Freudiano do Rio de Janeiro São Paulo Brasiliense 1983 mioloantroppmd 10022010 1445 457 mioloantroppmd 458 10022010 1445 Ana Paula Müller de Andrade Tem graduação em Psicologia pela Universidade Católica de PelotasRS 1994 e Mestrado em Educação Ambiental pela Universidade Federal do Rio GrandeRS 2002 Exerceu a função de psicóloga e coordenadora de um Centro de Atenção Psicossocial 2002 2007 Atualmente é doutoranda em Ciências Humanas no PPGICH UFSC cujo projeto de tese versa sobre saúde mental e gênero Integra o Transes Núcleo de Antropologia do ContemporâneoPPGASUFSC e participa da pesquisa Gênero Subjetividade e Saúde Mental Anahi Guedes de Mello Graduanda em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Catarina UFSC participa de diversas investigações relacionadas aos estudos sobre deficiência Disability Studies Foi bolsista PIBICCNPq do Transes atuando em um projeto de pesquisa que tem como objetivo discutir a deficiência como um modo de subjetivação no contemporâneo articulandoa em torno de temáticas como corpo subjetividade e saúde mental sob a AUTORASAUTORES mioloantroppmd 10022010 1445 459 460 orientação da Profa Dra Sônia Weidner Maluf Também é membro do Núcleo de Acessibilidade e Inclusão da UFSC e do grupo de pesquisa em Acessibilidade e Tecnologias do Laboratório de Experimentação Remota RExLab no Departamento de Engenharia e Gestão do Conhecimento da mesma universidade onde atua em pesquisas sobre acessibilidade às comunicações com ênfase no potencial do uso de tecnologia assistiva para a reabilitação e educação de pessoas com deficiência auditiva Carmen Susana Tornquist Licenciada em História pela UFRGS 1986 mestre em Sociologia Política pela UFSC e doutora em Antropologia social pela UFSC com a tese Parto e Poder análise do movimentos pela humanização do parto na área de estudos de gênero antropologia da saúde e movimentos sociais Trabalha na UDESC desde 1991 com as disciplinas de Sociologia Sociologia da Educação Antropologia da Educação Antropologia Cultural e Sociologia Urbana Coordena a pesquisa Práticas contraceptivas e aborto em grupos populares urbanos junto com a equipe de pesquisadoras do Labgef UDESC e também o projeto de extensão no formato de um cineclube CINEARTH cinema artes e humanidades mioloantroppmd 10022010 1445 460 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 461 Diana Brown Tem graduação em Literatura Inglesa pelo Smith College 1960 e doutorado em Antropologia pela Columbia University 1974 Atualmente é Professora Associada do Bard College e funcionária da Columbia University Tem experiência na área de Antropologia com ênfase em Antropologia da Saúde e do Corpo Atuando principalmente nos seguintes temas religiões afro brasileiras umbanda antropologia da medicina antropologia urbana antropologia do gênero e sexualidade e antropologia do corpo Eliana Elisabeth Diehl Farmacêutica e mestre em Ciências Farmacêuticas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e doutora em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz atuando como professora categoria Associado e pesquisadora no Departamento de Ciências Farmacêuticas e no Programa de PósGraduação em Saúde Pública da Universidade Federal de Santa Catarina UFSC Desde 1994 realiza pesquisas entre grupos indígenas povos de Santa Catarina com foco na saúde indígena articulando antropologia saúde coletiva e ciências farmacêuticas Participou da criação do Núcleo de Estudos de Saúde e Saberes Indígenas NESSI onde atua até hoje e em 2007 inseriuse no Núcleo de mioloantroppmd 10022010 1445 461 462 Antropologia do Contemporâneo ambos do Programa de PósGraduação em Antropologia da UFSC Além de pesquisas em saúde indígena tem se envolvido no controle social representando as Universidades no Conselho Distrital de Saúde Indígena da região sul do Brasil Atua ainda no Programa de Residência Integrada em Saúde da Família da UFSC com ênfase para a educação em serviço na atenção básica Fabíola Rohden É graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Catarina 1992 com mestrado e doutorado em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro 2000 Atualmente é professora adjunta do Departamento de Políticas e Instituições de Saúde do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e pesquisadora do Centro Latino Americano em Sexualidade e Direitos Humanos Realiza pesquisas e assessorias nas áreas de relações de gênero corpo sexualidade saúde gênero e ciência e história da medicina no Brasil Publicou uma série de trabalhos nesses tópicos entre os quais Uma ciência da diferença sexo e gênero na medicina da mulher Fiocruz 2001 e A arte de enganar a natureza contracepção aborto mioloantroppmd 10022010 1445 462 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 463 e infanticídio no início do século XX Fiocruz 2003 livro vencedor do concurso promovido pela ANPOCS de melhor obra científica de Ciências Sociais no ano de 2003 Fernanda Manzini Farmacêutica formada na Universidade Federal de Santa CatarinaUFSC em 2007 Cursa atualmente Residência Multiprofissional em Saúde da Família no Programa de Residência Integrada em Saúde da Família da UFSC Maika Arno Roeder Professora de Educação Física há vinte e cinco anos na Secretaria de Estado da Saúde Fiscal Sanitarista da Diretoria de Vigilância Sanitária do Estado de Santa Catarina e acompanhante terapêutico em saúde mental Responde na Diretoria de Vigilância Sanitária pela áreas destinada às populações mais vulneráveis a estressores psicossociais normatizando e fiscalizando instituições no Estado de Santa Catarina destinadas a atender a população idosa crianças e adolescentes em medida de proteção ou em medida de segurança população carcerária população indígena toda a rede de assistência em saúde mental incluindo a área de dependência química e comunidades terapêuticas Possui Doutorado em Ciências Humanas Mestrado em Atividade Física Relacionada à Saúde e mioloantroppmd 10022010 1445 463 464 especialização na seguintes áreas Saúde Mental Educação Especial e Prevenção e Reabilitação Física para Grupos Especiais Foi Coordenadora Estadual de Saúde Mental em Santa Catarina e publicou os seguintes livros Atividade Física Saúde Mental e Qualidade de Vida Normas Sanitárias para Instituições de Longa Permanência para Idosos Normas Sanitárias para Sistema Carcerário Normas Sanitárias para Comunidades Terapêuticas e escreveu o capítulo Atividade Sensoriomotora no Ambiente da Saúde Mental do Idoso no livro Educação Física O Ambiente e o BemEstar dos Idosos Maria Lucia da Silveira Tem graduação em Medicina pela Universidade Federal do Paraná 1976 especialização em Medicina do trabalho pela Universidade Estadual de Campinas 1977 especialização em Residência Médica pela Universidade Estadual de Campinas 1979 especialização em Capacitação em Saúde da Família pela Universidade Federal do Paraná 1997 e mestrado em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina 1996 Publicou o livro O nervo cala o nervo fala a linguagem da doença Fiocruz 2000 Marina Becker Farmacêutica formada na Universidade Federal de Santa CatarinaUFSC em 2007 mioloantroppmd 10022010 1445 464 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 465 Marina Monteiro Acadêmica do curso de Ciências Sociais na Universidade Federal de Santa Catarina UFSC e bolsista de iniciação científica integrando o projeto intitulado Gênero subjetividade e saúde mental políticas públicas ativismo e experiências sociais coordenado pela profª Sônia Weidner Maluf UFSC e cocoordenado por Carmen Susana Tornquist UDESC Milena Argenta Cursou bacharelado em Ciências Sociais na Universidade Federal de Santa Catarina onde trabalhou com pesquisa na área de etnicidade e relaçoes interétnicas Realizou pesquisas também na área de antropologia gênero e saúde mental Rogério Azize Antropólogo doutorando em Antropologia Social no Programa de PósGraduação do Museu Nacional UFRJ Graduado em Ciências Sociais e mestre em Antropologia Social pela UFSC Foi professor colaborador na UDESC entre 2002 e 2006 e na Faculdade Estácio de Sá entre 2003 e 2004 Suas pesquisas concentramse na sub área pessoa corpo saúde e biotecnologia Publicou artigos sobre a difusão das chamadas drogas do estilo de vida analisando a publicidade dos medicamentos e os sentidos atribuídos pelos consumidores Atualmente desenvolve uma mioloantroppmd 10022010 1445 465 466 tese a respeito da difusão dos saberes das neurociências e do cerebralismo que marca a cultura ocidental contemporânea Sônia Weidner Maluf É professora do Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina e pesquisadora do CNPq É mestre em Antropologia pela UFSC e doutora em Antropologia Social e Etnologia pela École des Hautes Études em Sciences Sociales 1996 Paris França Publicou os livros Encontros Noturnos Bruxas e Bruxarias na Lagoa da Conceição Rio de Janeiro Rosa dos Tempos 1993 Les enfants du Verseau au pays des terreiros lês cultures thérapeutiques et spirituelles alternatives au Sud du Brésil Villeneuf dAscq Presses Universitaires du Septentrion 1998 organizou diversas coletâneas e publicou artigos sobre gênero corpo pessoa indivíduo e sujeito contemporâneo antropologia da narrativa cinema e temas afins Coordena o Transes Núcleo de Antropologia do Contemporâneo do PPGASUFSC mioloantroppmd 10022010 1445 466 Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas 467 mioloantroppmd 10022010 1445 467 tipografia Myriad Jason text 1116 papel polén suzano impresso em 2010 mioloantroppmd 10022010 1445 468 CONSUMO E PERCEPÇÕES DE ANTIDEPRESSIVOS ENTRE USUÁRIOS DE UM CENTRO DE ATENÇÃO BÁSICA À SAÚDE Após o ano de 1950 os medicamentos para tratar doenças mentais começaram a ser muito utilizados e fabricados e desde esse ano surgem novos tratamentos a cada dia a fim de oferecer novos tratamentos para esses distúrbios Para entender melhor as percepções e usos dos usuários da Fluoxetina antidepressivo foi realizado um estudo para identificar a dispensação de antidepressivos em um Centro de Saúde de atenção básica em Florianópolis com o intuito de caracterizar os medicamentos usuários e seus prescritores além da percepção do uso da Fluoxetina Metodologia Foi quantificado a dispensação desse antidepressivo analisadas as prescrições e realizadas entrevistas usuárias sobre esse medicamento além de observar o participante durante o período da pesquisa A pesquisa foi realizada entre março e junho de 2007 em um Centro de Saúde CS de atenção básica em FlorianópolisSC Para identificar dispensações passadas foi utilizado o livro de registro específico dos medicamentos controlados de janeiro a março de 2007 Foi utilizado o método etnográfico observandose o participante durante a pesquisa no serviço de farmácia com anotações em diário de campo e entrevistas baseadas em roteiro prévio O cenário da pesquisa A rede básica de saúde é a mais utilizada em Florianópolis abrangendo 77 da população Na época existiam 54 unidades de saúde sendo 48 Centros de Saúde 1 ambulatório de especialidades 1 pronto atendimento 1 laboratório de análises clínicas e 3 centros de atenção psicossocial Tais unidades eram divididas em cinco regionais de saúde centro continente leste norte e sul Até outubro de 2006 os medicamentos de controle especial eram distribuídos no CS Centro e na policlínica do estreito Porém após essa data a entrega de medicamentos passou a ser feita em cada regional de saúde Foi averiguado que nos meses de janeiro a março de 2007 em um Centro de Saúde a fluoxetina foi o antidepressivo mais prescrito sendo dispensado para cerca de 15 usuários por dia As receitas de fluoxetina Segundo o livro de registro específico dos medicamentos controlados no CS foram analisadas 855 receitas Porém haviam receitas repetidas pois o paciente ia mais de uma vez na farmácia em um período de 60 dias Então excluindo as repetidas ficou um total de 692 usuários A maioria desses pacientes eram mulheres de faixa etária predominante de 41 a 50 anos já os homens tinham uma faixa etária de 31 a 40 anos e de 51 a 60 anos Foram analisadas também as especialidades dos médicos que prescrevem a fluoxetina e foi observado que as três primeiras especialidades eram medicina de família e comunidade psiquiatria e clínica médica As entrevistas Primeira entrevistada Dilma 43 anos viúva nascida em Florianópolis funcionária pública aposentada com dois filhos sem religião definida diagnosticada com Transtorno Obsessivo Compulsivo TOC e depressão Relatou que fazia acompanhamento com psiquiatra e utilizava psicotrópico A entrevista foi feita em sua própria residência na sua sala havia diversos quadros e trabalhos artesanais que Dilma fabricava e considerava sua terapia A entrevistada foi muito receptiva e mostrou ser uma pessoa extrovertida e alegre A entrevista durou mais de 1 hora e foi bem detalhada Segunda entrevistada Maria 62 anos separada nascida no Rio de Janeiro advogada aposentada católica diagnosticada com depressão relacionada ao falecimento do irmão e problemas de saúde Relatou que fazia acompanhamento com psiquiatra e psicanalista ademais fazia uso de fluoxetina Foi muito receptiva com respostas curtas e objetivas sem muitos detalhes e foi realizada em 10 minutos A dispensação de antidepressivos no Centro de Saúde A indicação de fluoxetina predominantemente para mulheres confirma a relação entre gênero e prescrição de antidepressivos já abordada na literatura As razões pelos quais os médicos prescrevem mais fluoxetina para mulheres do que para homens são por influência da indústria farmacêutica que fala que tal medicamento é uma solução para o estresse e conflitos do papel da mulher descrevendo a depressão como um distúrbio mental feminino dificuldades do médico em lidar com problemas sócio afetivos das mulheres A maior procura por Centro de Saúde por parte das mulheres é explicada pelo seu papel social de cuidadora na família tendo que estar atenta aos sinais e sintomas do seu corpo além de dificuldades socioeconômicas condições de trabalho e as desigualdades a que elas são submetidas O contexto de uso da fluoxetina Dilma relatou que sempre teve sintomas de TOC porém só foi diagnosticada aos 40 anos anos Antes disso achava que o problema era com ela se afastando da vida social do convívio com amigos e família Após o diagnóstico percebeu que o TOC a impedia de realizar muitas atividades na sua vida e que com ele tinha vontade de morrer e de se machucar Dilma relatou que fazia psicoterapia porém abandonou pois não queria admitir que tinha algum problema e nem que tinha que tomar um psicotrópico Ela mesmo controlava a posologia dos medicamentos contrariando o prescritor e tendo uma sensação de autonomia no seu tratamento Porém ao usar o medicamento pela primeira vez Dilma por livre arbítrio tomou 39 cápsulas de fluoxetina de uma só vez e ficou uma semana dormindo Dilma apesar de não gostar do medicamento criou uma dependência sobre ele pois atribuiu a sua melhora ao remédio levando o tratamento com mais seriedade do que no início Maria sofre de depressão devido a problemas de saúde e falecimento do irmão Ela demonstrou conhecer tecnicamente a depressão e a fluoxetina Para Maria temse necessidade de usar a fluoxetina pois a mesma representa um importante recurso para enfrentamento da sua vida e auxiliaria ela a continuar sendo o apoio de outras pessoas Foi analisado que os os médicos não levam em conta a subjetividade das usuárias de fluoxetina nem o meio social que estão inseridos medicalizando os problemas e tendo o poder de mudar toda uma dinâmica tanto da vida da pessoa quanto familiar Ademais a falta de outras assistências no CS contribui para o processo da medicalização já que os serviços ofertados eram basicamente o atendimento individual e a entrega dos medicamentos sendo assim o planejamento e organização dos serviços de atenção básica devem ser reconsiderados Além disso deve ser averiguado se a variedade de especialidades médicas são aptas para diagnosticar e prescrever tratamento como o uso da fluoxetina e se todos os pacientes precisavam mesmo de um tratamento medicamentoso REFERÊNCIA DIEHL Eliana et al A MINHA MELHOR AMIGA SE CHAMA FLUOXETINA CONSUMO E PERCEPÇÕES DE ANTIDEPRESSIVOS ENTRE USUÁRIOS DE UM CENTRO DE ATENÇÃO BÁSICA À SAÚDE In MALUF Sônia Weidner et al Gênero saúde e aflição abordagens antropológicas Florianópolis Letras Contemporâneas Oficina Editorial Ltda 2010 p 331367

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