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Holocausto brasileiro Daniela Arbex Copyright 2019 by Daniela Arbex revisão André Marinho Laís Curvão projeto gráfico e diagramação Carolina Araújo Ilustrarte Design arte de capa Angelo Bottino foto de capa Luiz Alfredo Fundação Municipal de Cultura de Barbacena CIPBRASIL CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS RJ A694h Arbex Daniela 1973 Holocausto brasileiro Daniela Arbex prefácio de Eliane Brum 1 ed Rio de Janeiro Intrínseca 2019 280 p 23 cm ISBN 9788551004630 1 Hospital Colônia de Barbacena 2 Pacientes de hospitais psiquiátricos Maustratos Barbacena MG 3 Hospitais psiquiátricos Barbacena MG 4 Crime contra a humanidade I Brum Eliane II Título 1854263 CDD 36221098151 CDU 36458058688151 2019 Todos os direitos desta edição reservados à Editora Intrínseca Ltda Rua Marquês de São Vicente 99 3º andar 22451041 Gávea Rio de Janeiro RJ TelFax 21 32067400 wwwintrinsecacombr Este livro é dedicado a milhares de homens mulheres e crianças que perderam a vida num campo de concentração chamado Colônia Ao meu marido Marco por tornar meus sonhos possíveis Ao meu filho Diego a melhor parte de mim Agradecimentos À minha mãe Sônia e meu padrasto Francisco fortale zas em meu caminho Ao meu pai José Arbex meu adorável fã número um À Isabel Salomão de Campos por me ensinar que o bem e o amor ao próximo são passaportes para a verda deira felicidade Ao jornalista Lúcio Vaz por sua generosidade Ao fotógrafo Roberto Fulgêncio por quase duas dé cadas de parceria profissional Ao Juracy Neves diretorpresidente da Tribuna de Minas por ser um dos primeiros a me incentivar a es crever e por ter me dado a oportunidade de publicar no jornal esta e outras grandes histórias Aos jornalistas Marise Baesso Lilian Pace e Paulo Cé sar Magella pela amizade pelo apoio e pela compreensão À Fundação Municipal de Cultura de Barbacena Fundac pela cessão das fotos de Luiz Alfredo Ao médico Ronaldo Simões e ao fotógrafo Luiz Alfre do por terem confiado a mim suas memórias Especialmente à Denise Gonçalves por seu incom parável talento e dedicação a este projeto Sumário Agradecimentos 9 Prefácio Os loucos somos nós 13 O pavilhão Afonso Pena 21 Na roda da loucura 49 O único homem que amou o Colônia 63 A venda de cadáveres 75 Os meninos de Oliveira 91 A mãe dos meninos de Barbacena 107 A filha da menina de Oliveira 121 Sobrevivendo ao holocausto 135 Encontro desencontro reencontro 149 A história por trás da história 175 Turismo com Foucault 203 A luta entre o velho e o novo 233 Tributo às vítimas 247 A herança do Colônia 261 Posfácio 271 Créditos das imagens 279 A man is sitting on a chair while another man in a white coat is cutting his hair The setting looks like a simple room with wooden furniture and some metallic objects in the background Prefácio os loucos somos nós O repórter luta contra o esquecimento Transforma em pa lavra o que era silêncio Faz memória Neste livro Daniela Arbex devolve nome história e identidade àqueles que até então eram registrados como Ignorados de tal Eram um não ser Pela narrativa eles retornam como Maria de Jesus internada porque se sentia triste Antônio da Silva porque era epilético Ou ainda Antônio Gomes da Silva sem diag nóstico que ficou vinte e um dos trinta e quatro anos de internação mudo porque ninguém se lembrou de pergun tar se ele falava São sobreviventes de um holocausto que atravessou a maior parte do século XX vivido no Colônia como é chamado o maior hospício do Brasil na cidade mi neira de Barbacena Como pessoas não mais como corpos sem palavras eles que foram chamados de doidos de nunciam a loucura dos normais As palavras sofrem com a banalização Quando abu sadas pelo nosso despudor são roubadas de sentido 14 Holocausto é uma palavra assim Em geral soa como exagero quando aplicada a algo além do assassinato em massa dos judeus pelos nazistas na Segunda Guer ra Neste livro porém seu uso é preciso Terrivelmen te preciso Pelo menos 60 mil pessoas morreram entre os muros do Colônia Tinham sido a maioria enfiadas nos vagões de um trem internadas à força Quando elas chegaram ao Colônia suas cabeças foram raspadas e as roupas arrancadas Perderam o nome foram rebatiza das pelos funcionários começaram e terminaram ali Cerca de 70 não tinham diagnóstico de doen ça mental Eram epiléticos alcoolistas homossexuais prostitutas gente que se rebelava gente que se tornara incômoda para alguém com mais poder Eram meninas grávidas violentadas por seus patrões eram esposas con finadas para que o marido pudesse morar com a amante eram filhas de fazendeiros as quais perderam a virginda de antes do casamento Eram homens e mulheres que haviam extraviado seus documentos Alguns eram ape nas tímidos Pelo menos trinta e três eram crianças Homens mulheres e crianças às vezes comiam ra tos bebiam esgoto ou urina dormiam sobre capim eram espancados e violados Nas noites geladas da serra da Mantiqueira eram atirados ao relento nus ou cober tos apenas por trapos Instintivamente faziam um círcu lo compacto alternando os que ficavam no lado de fora e no de dentro na tentativa de sobreviver Alguns não alcançavam as manhãs Os pacientes do Colônia morriam de frio de fome de doença Morriam também de choque Em alguns dias os eletrochoques eram tantos e tão fortes que a sobrecarga derrubava a rede do município Nos pe ríodos de maior lotação dezesseis pessoas morriam a cada dia Morriam de tudo e também de invisibi 15 lidade Ao morrer davam lucro Entre 1969 e 1980 1853 corpos de pacientes do manicômio foram ven didos para dezessete faculdades de medicina do país sem que ninguém questionasse Quando houve excesso de cadáveres e o mercado encolheu os corpos foram decompostos em ácido no pátio do Colônia na frente dos pacientes para que as ossadas pudessem ser co mercializadas Nada se perdia exceto a vida Pelo menos trinta bebês foram roubados de suas mães As pacientes conseguiam proteger sua gravidez passando fezes sobre a barriga para não serem toca das Mas logo depois do parto os bebês eram tirados de seus braços e doados Este foi o destino de Débora Aparecida Soares nascida em 23 de agosto de 1984 Dez dias depois foi adotada por uma funcionária do hospício A cada aniversário sua mãe Sueli Aparecida Resende epilética perguntava a médicos e funcioná rios pela menina E repetia Uma mãe nunca se es quece da filha Só muito mais tarde depois de adulta Débora descobriria sua origem Ao empreender uma jornada em busca da mãe alcançou a insanidade da en grenagem que destruiu suas vidas Esta é a história que Daniela Arbex desvela docu menta e transforma em memória neste livroreportagem fundamental Ao expor a anatomia do sistema a repór ter ilumina um genocídio cometido sistematicamente pelo Estado brasileiro com a conivência de médicos de funcionários e também da sociedade É preciso perceber que nenhuma violação dos direitos humanos mais básicos se sustenta por tanto tempo sem a nossa omissão menos ainda uma bárbara como esta Em 1979 o psiquiatra italiano Franco Basaglia pioneiro da luta pelo fim dos manicômios esteve no Brasil e conheceu o Colônia Em seguida chamou uma coletiva de impren 16 sa na qual afirmou Estive hoje num campo de concen tração nazista Em lugar nenhum do mundo presenciei uma tragédia como esta Quando começou a apurar a série de reportagens que marcariam o nascimento deste livro Daniela descobriu se diante de um impasse Seu filho Diego tinha apenas quatro meses de vida Ela tinha acabado de virar mãe ainda amamentava e colocavase por vontade própria no parapeito do horror A repórter sabia que mergulha ria no inferno e de novo aqui o inferno não é uma hipérbole Sabia também que no inferno não há fim de expediente Um repórter quando faz bem o seu trabalho é assinalado pelo que vive A dor só vira palavra escrita depois de respirar dentro de cada um como pesadelo Como repórter experiente que pela qualidade de suas matérias ganhou os principais prêmios nacionais e inter nacionais de jornalismo Daniela sabia o que se estendia diante dela E mesmo assim fez a sua escolha E o filho Diego se orgulharia dela Depois da série de reportagens publicada na Tribuna de Minas de Juiz de Fora Daniela seguiu investigando Viajava noventa e cinco quilômetros até Barbacena to das as manhãs e voltava à tarde já exausta pelo que viu e ouviu para iniciar a rotina no jornal Entrevistou mais de cem pessoas parte delas nunca tinha contado a sua história Além de sobreviventes do holocausto Danie la escutou o testemunho de funcionários e de médicos Um deles Ronaldo Simões Coelho ligou para ela meses atrás Meu tempo de validade está acabando Não que ro morrer sem ler seu livro No final dos anos 1970 o psiquiatra havia denunciado o Colônia e reivindicado sua extinção O que acontece no Colônia é a desuma nidade a crueldade planejada No hospício tirase o ca ráter humano de uma pessoa e ela deixa de ser gente É 17 permitido andar nu e comer bosta mas é proibido o pro testo qualquer que seja a sua forma Perdeu o emprego Umas poucas vezes os esqueletos do Colônia su biram à superfície Passada a comoção pública vol tavam ao fundo empurrados pelas pedras de sempre Em 1961 a rotina do hospício foi contada na revista O Cruzeiro pelo fotógrafo Luiz Alfredo e pelo repórter José Franco O título da matéria era A sucursal do inferno Em 1979 o repórter Hiram Firmino e a fotó grafa Jane Faria publicaram a reportagem Os porões da loucura no Estado de Minas O documentário Em nome da razão de Helvécio Ratton filmado em 1979 tornouse um símbolo da luta antimanicomial No início dos anos 1960 ao voltar para a redação de O Cruzeiro depois de conhecer o Colônia o fotógrafo Luiz Alfredo desabafou com o chefe Aquilo não é um acidente mas um assassinato em massa Apesar da de núncia estampada na revista de maior sucesso da época a realidade só começaria a mudar lentamente duas décadas mais tarde a partir dos anos 1980 quando a re forma psiquiátrica ganhou força Hoje restam menos de 200 sobreviventes Parte deles morrerá internada parte tenta inventar um cotidiano em residências terapêuticas com os farrapos de delicadeza que lhe sobram Como Sônia Maria da Costa que às vezes coloca dois vestidos porque passou a vida nua Neste livro Daniela Arbex salvou do esquecimento um capítulo da história do Brasil Agora é preciso lem brar Porque a história não pode ser esquecida Porque o holocausto ainda não acabou Eliane Brum São Paulo 5 de fevereiro de 2013