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Ciências Políticas

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4 John Locke e o individualismo liberal Leonel Itaussu Almeida Mello As r e v o l u ç õ e s Em defesa da Liberdade do Parlamento e inglesas da Religião Protestante com este lema gra vado em seu estandarte Guilherme de Oran ge desembarcou em solo britânico para depor o rei Jaime II e encer rar em 1688 um longo e tumultuado período da história inglesa O século XVII foi marcado pelo antagonismo entre a Coroa e o Parlamento controlados respectivamente pela dinastia Stuart defensora do absolutismo e a burguesia ascendente partidária do liberalismo Esse conflito assumiu também conotações religiosas e se mesclou com as lutas sectárias entre católicos anglicanos presbi terianos e puritanos Finalmente a crise políticoreligiosa foi agra vada pela rivalidade econômica entre os beneficiários dos privilé gios e monopólios mercantilistas concedidos pelo Estado e os seto res que advogavam a liberdade de comércio e de produção Em 1640 o confronto entre o rei Carlos I e o Parlamento en volveu o país numa sangrenta guerra civil que só terminou em 1649 com a vitória das forças parlamentares A Revolução Puritana co mo foram denominados esses eventos culminou com a execução de Carlos I e a implantação da república na Inglaterra Foi após os horrores da guerra civil da consumação do regicí dio e da instauração da férrea ditadura de Cromwell que Fhomas 82 OS CLÁSSICOS DA POLÍTICA Hobbes refugiado na França publicou em 1651 o Leviatã O livro era uma apologia do Estado todopoderoso que monopolizando a força concentrada da comunidade tornase fiador da vida dapaz e da segurança dos súditos O Protetorado de Cromwell apoiado no exército e na burgue sia puritana transformou a Inglaterra numa grande potência naval e comercial Em 1660 a morte do Lorde Protetor envolveu o país numa crise política cuja solução para evitar uma nova guerra civil foi a restauração da monarquia e o retorno dos Stuart ao trono inglês Durante a Restauração 166088 reativouse o conflito entre a Coroa e o Parlamento que se opunha à política prócatólica e prófrancesa dos Stuart Em 1680 no reinado de Carlos II o Parla mento cindiuse em dois partidos os Tories e os Whigs representan do respectivamente os conservadores e os liberais A crise da Restauração chegou ao auge no reinado de Jaime II soberano católico e absolutista Os abusos reais levaram à união dos Tories e Whigs que aliandose a Guilherme de Orange chefe de Estado da Holanda e genro de Jaime II organizaram uma cons piração contra o monarca papista Em 1688 Guilherme de Orange aportou no país à frente de um exército e após a deposição de Jaime II recebeu a coroa do Parlamento A Revolução Gloriosa assinalou o triunfo do liberalis mo político sobre o absolutismo e com a aprovação do Bill of Rights em 1689 assegurou a supremacia legal do Parlamento sobre a realeza e instituiu na Inglaterra uma monarquia limitada John Locke John Locke 16321704 que co O individualista liberal mo opositor dos Stuart se encontra va refugiado na Holanda retornou à Inglaterra após o triunfo da Revolução Gloriosa Em 168990 pu blica suas principais obras Cartas sobre a tolerância Ensaio sobre o entendimento humano e os Dois tratados sobre o governo civil O Segundo tratado é uma justificação ex post facto da Revolu ção Gloriosa onde Locke fundamenta a legitimidade da deposição de Jaime II por Guilherme de Orange e pelo Parlamento com base na doutrina do direito de resistência Segundo o autor seu ensaio estava destinado a confirmar a entronização de nosso Grande Res taurador o atual Rei Guilherme a justificar seu título em razão do consentimento do povo pelo que sendo o único dos governos JOHN LOCKE E O INDIVIDUALISMO LIBERAL 83 legais ele o possui de modo mais completo e claro do que qualquer outro príncipe da cristandade Locke nasceu em 1632 no seio de uma família burguesa da ci dade de Bristol Seu pai um comerciante puritano combateu na guerra civil nas fileiras do exército do Parlamento Em 1652 Locke foi estudar em Oxford formandose em medicina e tornandose posteriormente professor daquela Universidade Em 1666 foi requi sitado como médico e conselheiro de lorde Shaftesbury destacado político liberal líder dos Whigs e opositor do rei Carlos II no Parla mento Shaftesbury foi o mentor político de Locke exercendo gran de influência em sua formação liberal Em 1681 acusado de conspi rar contra Carlos II Shaftesbury foi obrigado a exilarse na Holan da onde faleceu dois anos depois O envolvimento na conspiração de seu patrono obrigou Locke também a refugiarse na Holanda em 1683 de onde só retornou após a queda de Jaime II Além de defensor da liberdade e da tolerância religiosas Locke é considerado o fundador do empirismo doutrina segundo a qual todo o conhecimento deriva da experiência Como filósofo Locke é conhecido pela teoria da tabula rasa do conhecimento desenvolvi da no Ensaio sobre o entendimento humano onde afirma Suponhamos pois que a mente é como dissemos um papel branco desprovida de todos os caracteres sem quaisquer idéias co mo ela será suprida De onde lhe provém este vasto estoque que a ativa e que a ilimitada fantasia do homem pintou nela com uma varie dade quase infinita De onde apreende todos os materiais da razão e do conhecimento A isso respondo numa palavra da experiência Todo o nosso conhecimento está nela fundado e dela deriva funda mentalmente o próprio conhecimento Livro II cap I sec 2 A teoria da tabula rasa é portanto uma crítica à doutrina das idéias inatas formulada por Platão e retomada por Descartes segun do a qual determinadas idéias princípios e noções são inerentes ao conhecimento humano e existem independentemente da experiência Os dois tratados Como foi dito os Dois tratados es Sobre o g o v e r n o civil critos provavelmente em 167980 quando da conspiração de Shaftes bury contra Carlos II só foram publicados na Inglaterra em 1690 aPós o triunfo da Revolução Gloriosa 84 OS CLÁSSICOS DA POLÍTICA O Primeiro tratado é uma refutação do Patriarca obra em que Robert Filmer defende o direito divino dos reis com base no princípio da autoridade paterna que Adão supostamente o primei ro pai e o primeiro rei legará à sua descendência De acordo com essa doutrina os monarcas modernos eram descendentes da linha gem de Adão e herdeiros legítimos da autoridade paterna dessa per sonagem bíblica a quem Deus outorgara o poder real O Segundo tratado é como indica seu título um ensaio sobre a origem extensão e objetivo do governo civil Nele Locke susten ta a tese de que nem a tradição nem a força mas apenas o consen timento expresso dos governados é a única fonte do poder político legítimo Locke tornouse célebre principalmente como autor do Se gundo tratado que no plano teórico constitui um importante mar co da história do pensamento político e a nível histórico concreto exerceu enorme influência sobre as revoluções liberais da época mo derna A exposição que se segue é uma síntese da teoria política de senvolvida no Segundo tratado considerado por Norberto Bobbio como a primeira e a mais completa formulação do Estado liberal 0 estado Juntamente com Hobbes e Rousseau Locke é de natureza um dos principais representantes do jusnaturalis mo ou teoria dos direitos naturais O modelo jus naturalista de Locke é em suas linhas gerais semelhante ao de Hobbes ambos partem do estado de natureza que pela mediação do contrato social realiza a passagem para o estado civil Existe contudo grande diferença na forma como Locke diversamente de Hobbes concebe especificamente cada um dos termos do trinômio estado naturalcontrato socialestado civil Em oposição à tradicional doutrina aristotélica segundo a qual a sociedade precede ao indivíduo Locke afirma ser a existên cia do indivíduo anterior ao surgimento da sociedade e do Estado Na sua concepção individualista os homens viviam originalmente num estágio présocial e prépolítico caracterizado pela mais perfei ta liberdade e igualdade denominado estado de natureza O estado de natureza era segundo Locke uma situação real e historicamente determinada pela qual passara ainda que em épo cas diversas a maior parte da humanidade e na qual se encontra vam ainda alguns povos como as tribos norteamericanas Esse es JOHN LOCKE E O INDIVIDUALISMO LIBERAL tado de natureza diferia do estado de guerra hobbesiano baseado na insegurança e na violência por ser um estado de relativa paz concórdia e harmonia Nesse estado pacífico os homens já eram dotados de razão e desfrutavam da propriedade que numa primeira acepção genérica utilizada por Locke designava simultaneamente a vida a liberda de e os bens como direitos naturais do ser humano A teoria da Locke utiliza também a noção de propriedade nu propriedade ma segunda acepção que em sentido estrito sig nifica especificamente a posse de bens móveis ou imóveis A teoria da propriedade de Locke que é muito inova dora para sua época também difere bastante da de Hobbes Para Hobbes a propriedade inexiste no estado de natureza e foi instituída pelo EstadoLeviatã após a formação da sociedade ci vil Assim como a criou o Estado pode também suprimir a proprie dade dos súditos Para Locke ao contrário a propriedade já existe no estado de natureza e sendo uma instituição anterior à sociedade é um direito natural do indivíduo que não pode ser violado pelo Estado O homem era naturalmente livre e proprietário de sua pessoa e de seu trabalho Como a terra fora dada por Deus em comum a todos os homens ao incorporar seu trabalho à matéria bruta que se encontrava em estado natural o homem tornavaa sua proprieda de privada estabelecendo sobre ela um direito próprio do qual esta vam excluídos todos os outros homens O trabalho era pois na concepção de Locke o fundamento originário da propriedade Se a propriedade era instituída pelo trabalho este por sua vez impunha limitações à propriedade Inicialmente quando todo o mun do era como a América o limite da propriedade era fixado pela ca pacidade de trabalho do ser humano Depois o aparecimento do di nheiro alterou essa situação possibilitando a troca de coisas úteis mas perecíveis por algo duradouro ouro e prata convencionalmen te aceito pelos homens Com o dinheiro surgiu o comércio e também uma nova forma de aquisição da propriedade que além do trabalho Poderia ser adquirida pela compra O uso da moeda levou finalmen te à concentração da riqueza e à distribuição desigual dos bens entre os homens Esse foi para Locke o processo que determinou a passa gem da propriedade limitada baseada no trabalho à propriedade ili mitada fundada na acumulação possibilitada pelo advento do dinheiro 86 OS CLÁSSICOS DA POLÍTICA A concepção de Locke segundo a qual é na realidade o tra balho que provoca a diferença de valor em tudo quanto existe po de ser considerada em certa medida como precursora da teoria do valortrabalho desenvolvida por Smith e Ricardo economistas do liberalismo clássico O c o n t r a t o s o c i a l O estado de natureza relativamente pací fico não está isento de inconvenientes co mo a violação da propriedade vida liberdade e bens que na fal ta de lei estabelecida de juiz imparcial e de força coercitiva para im por a execução das sentenças coloca os indivíduos singulares em es tado de guerra uns contra os outros É a necessidade de superar esses inconvenientes que segundo Locke leva os homens a se unirem e estabelecerem livremente entre si o contrato social que realiza a passagem do estado de natureza para a sociedade política ou civil Esta é formada por um corpo po lítico único dotado de legislação de judicatura e da força concen trada da comunidade Seu objetivo precípuo é a preservação da pro priedade e a proteção da comunidade tanto dos perigos internos quanto das invasões estrangeiras O contrato social de Locke em nada se assemelha ao contrato hobbesiano Em Hobbes os homens firmam entre si um pacto de sub missão pelo qual visando a preservação de suas vidas transferem a um terceiro homem ou assembléia a força coercitiva da comunidade tro cando voluntariamente sua liberdade pela segurança do EstadoLeviatã Em Locke o contrato social é um pacto de consentimento em que os homens concordam livremente em formar a sociedade ci vil para preservar e consolidar ainda mais os direitos que possuíam originalmente no estado de natureza No estado civil os direitos na turais inalienáveis do ser humano à vida à liberdade e aos bens es tão melhor protegidos sob o amparo da lei do árbitro e da força comum de um corpo político unitário A s o c i e d a d e política Assim a passagem do estado de natu ou civil reza para a sociedade política ou civil Locke não distingue entre ambas se opera quando através do contrato social os indivíduos singula res dão seu consentimento unânime para a entrada no estado civil JOHN LOCKE E O INDIVIDUALISMO LIBERAL 87 Estabelecido o estado civil o passo seguinte é a escolha pela comu nidade de uma determinada forma de governo Na escolha do go verno a unanimidade do contrato originário cede lugar ao princí pio da maioria segundo o qual prevalece a decisão majoritária e simultaneamente são respeitados os direitos da minoria De acordo com a teoria aristotélica das formas de governo a comunidade pode ser governada por um por poucos ou por muitos conforme escolha a monarquia a oligarquia ou a democracia A es colha pode recair ainda sobre o governo misto como o existente na Inglaterra após a Revolução Gloriosa onde a Coroa representa va o princípio monárquico a Câmara dos Lordes o oligárquico e a Câmara dos Comuns o democrático Na concepção de Locke porém qualquer que seja a sua for ma todo o governo não possui outra finalidade além da conserva ção da propriedade Definida a forma de governo cabe igualmente à maioria esco lher o poder legislativo que Locke conferindolhe uma superiorida de sobre os demais poderes denomina de poder supremo Ao legis lativo se subordinam tanto o poder executivo confiado ao prínci pe como o poder federativo encarregado das relações exteriores guerra paz alianças etratados Existe uma clara separação entre o poder legislativo de um lado e os poderes executivo e federati vo de outro lado os dois últimos podendo inclusive ser exercidos pelo mesmo magistrado Em suma o livre consentimento dos indivíduos para o estabe lecimento da sociedade o livre consentimento da comunidade para a formação do governo a proteção dos direitos de propriedade pelo governo o controle do executivo pelo legislativo e o controle do go verno pela sociedade são para Locke os principais fundamentos do estado civil O direito de resistência No que diz respeito às relações entre o gover no e a sociedade Locke afirma que quando o executivo ou o legislativo violam a lei estabe ecida e atentam contra a propriedade o governo deixa de cumprir o fim a que fora destinado tornandose ilegal e degenerando em ti rania O que define a tirania é o exercício do poder para além do direito visando o interesse próprio e não o bem público ou comum 88 OS CLÁSSICOS DA POLÍTICA Com efeito a violação deliberada e sistemática da proprieda de vida liberdade e bens e o uso contínuo da força sem amparo legal colocam o governo em estado de guerra contra a sociedade e os governantes em rebelião contra os governados conferindo ao po vo o legítimo direito de resistência à opressão e à tirania O estado de guerra imposto ao povo pelo governo configura a dissolução do estado civil e o retorno ao estado de natureza on de a inexistência de um árbitro comum faz de Deus o único juiz ex pressão utilizada por Locke para indicar que esgotadas todas as al ternativas o impasse só pode ser decidido pela força Segundo Locke a doutrina da legitimidade da resistência ao exercício ilegal do poder reconhece ao povo quando este não tem outro recurso ou a quem apelar para sua proteção o direito de re correr a força para a deposição do governo rebelde O direito do povo à resistência é legítimo tanto para defenderse da opressão de um governo tirânico como para libertarse do domínio de uma na ção estrangeira A doutrina do direito de resistência não era recente e sua ori gem remontava às guerras de religião quando os escritores políti cos calvinistas denominados monarcomaci conclamavam o povo a resistir aos atos ilegais dos príncipes católicos Resgatada e revalo rizada por Locke no Segundo tratado a doutrina do direito de re sistência transformouse no fermento das revoluções liberais que eclodiram depois na Europa e na América C o n c l u s ã o Os direitos naturais inalienáveis do indivíduo à vi da à liberdade e à propriedade constituem para Locke o cerne do estado civil e ele é considerado por isso o pai do individualismo liberal Norberto Bobbio resumindo os aspectos mais relevantes do pensamento lockiano afirma Através dos princípios de um direito natural preexistente ao Es tado de um Estado baseado no consenso de subordinação do poder executivo ao poder legislativo de um poder limitado de direito de re sistência Locke expôs as diretrizes fundamentais do Estado liberal Direito e Estado no pensamento de Kant UNB 1984 p 41 Locke forneceu a posteriori a justificação moral política e ideológica para a Revolução Gloriosa e para a monarquia parlamen tar inglesa JOHN LOCKE E O INDIVIDUALISMO LIBERAL 89 Locke influenciou a revolução norteamericana onde a decla ração de independência foi redigida e a guerra de libertação foi tra vada em termos de direitos naturais e de direito de resistência para fundamentar a ruptura com o sistema colonial britânico Locke influenciou ainda os filósofos iluministas franceses prin cipalmente Voltaire e Montesquieu e através deles a Grande Revo lução de 1789 e a declaração de direitos do homem e do cidadão E finalmente com a Grande Revolução as idéias inglesas que haviam atravessado o canal da Mancha e estabelecido uma ca beça de ponte no continente transformaramse nas idéias france sas e se difundiram por todo o Ocidente TEXTOS DE LOCKE Introdução Todas essas premissas tendo sido ao que me parece claramen te estabelecidas é impossível que os atuais governantes sobre a Ter ra obtenham qualquer proveito ou derivem a menor sombra de au toridade daquilo que é tido como a fonte de todo poder o domí nio privado e a jurisdição paterna de Adão de tal modo que aque le que nem se permite imaginar que todo governo no mundo é ape nas o produto da força e da violência e que os homens somente vi vem juntos pelas mesmas regras dos animais onde vence o mais forte e desta forma lança as bases para a perpétua desordem e dis córdia tumulto sedição e rebelião coisas que os adeptos dessa hi pótese combatem tão clamorosamente deve necessariamente desco brir outra origem para o governo outra fonte do poder político e uma outra maneira de escolher e conhecer as pessoas que o exercem diferente daquela que nos ensinou Sir Robert Filmer Visando este objetivo não me parece despropositado formu lar o que entendo por poder político Pois o poder de um magistra do sobre um súdito deve ser distinguido daquele de um pai sobre seus filhos de um senhor sobre seu servo de um marido sobre sua esposa e de um nobre sobre seu escravo Como todos estes poderes às vezes se encontram reunidos numa mesma pessoa se a conside rarmos sob tais diferentes relações pode sernos útil distinguir es ses poderes uns dos outros e mostrar a diferença entre um governan te de comunidade um pai de família e um comandante de galera Considero portanto o poder político como o direito de fazer leis com pena de morte e conseqüentemente todas as penalidades menores para regular e preservar a propriedade e o de empregar a força da comunidade na execução de tais leis e na defesa da comu nidade contra a agressão estrangeira e tudo isso apenas em prol do bem público Extraídos de LOCKE John Two treatsises of civil government London Every mans Library 1966 p 117241 Tradução de Cid Knipell Moreira JOHN LOCKE E O INDIVIDUALISMO LIBERAL 9l Do estado de natureza Para compreender corretamente o poder político e depreendê lo de sua origem devemos considerar em que estado todos os ho mens se acham naturalmente sendo este um estado de perfeita li berdade para ordenarlhes as ações e regularlhes as posses e as pes soas tal como acharem conveniente nos limites da lei da natureza sem pedir permissão ou depender da vontade de qualquer outro homem Um Estado também de igualdade onde é recíproco qualquer poder e jurisdição nenhum tendo mais do que o outro nada haven do de mais evidente do que criaturas da mesma espécie e ordem nascidas promiscuamente para as mesmas vantagens da natureza e para o uso das mesmas faculdades que terão sempre de ser iguais umas às outras sem subordinação ou sujeição a menos que o se nhor e mestre de todas elas por qualquer declaração manifesta de sua vontade colocasse uma acima da outra e lhe conferisse por uma indicação evidente e clara direito indubitável ao domínio e à soberania Contudo embora seja este um estado de liberdade não o é de licenciosidade ainda que naquele estado o homem tenha uma li berdade incontrolável para dispor de sua pessoa ou posses não pos sui no entanto liberdade para destruir a si mesmo ou a qualquer criatura que esteja em sua posse senão quando isto seja exigido por algum uso mais nobre do que a simples conservação O estado de natureza tem uma lei de natureza a governálo e que a todos sub mete e a razão que é essa lei ensina a todos os homens que ape nas a consultam que sendo todos iguais e independentes nenhum deve prejudicar a outrem na vida na saúde na liberdade ou nas Posses E para evitar que todos os homens invadam os direitos dos ou tros e que mutuamente se molestem e para que a lei da natureza se ja observada a qual implica na paz e na preservação de toda a hu manidade colocase naquele estado a execução da lei da nature za nas mãos de todos os homens por meio da qual qualquer um tem o direito de castigar os transgressores dessa lei numa medida tal que possa impedir a sua violação Isso porque a lei da natureza corno quaisquer outras leis que digam respeito aos homens neste 92 OS CLÁSSICOS DA POLÍTICA mundo seria vã se não houvesse ninguém nesse estado de nature za que tivesse o poder para pôr essa lei em execução e deste modo preservar o inocente e restringir os infratores Concedo de bom grado que o governo civil é o remédio acerta do para os inconvenientes do estado de natureza os quais certamen te devem ser grandes onde os homens podem ser juizes em causa própria já que é fácil imaginar que quem foi tão injusto a ponto de causar dano a um irmão raramente será tão justo a ponto de condenar a si mesmo por isso Mas desejaria que aqueles que assim objetam se lembrassem de que os monarcas absolutos são apenas homens e se o governo deve ser o remédio para aqueles males que se seguem necessariamente do fato de serem os homens juizes em causa própria não sendo por isso suportável o estado de nature za desejo saber que espécie de governo é este e em que medida é melhor que o estado de natureza onde um homem governando uma multidão tem a liberdade de ser juiz em causa própria poden do fazer aos seus súditos tudo quanto lhe aprouver sem o menor questionamento ou controle por parte daqueles que lhe executam as vontades devendo todos a ele se submeter seja lá o que for que ele faça levado pela razão pelo erro ou pela paixão Mas além dessas considerações sustento que todos os ho mens estão naturalmente naquele estado e nele permanecem até que por sua própria anuência tornamse membros de alguma socieda de política e não duvido que possa tornar isto mais claro na conti nuação deste ensaio Do estado de guerra O estado de guerra é um estado de inimizade e destruição e por isso ao declarar por meio de palavra ou ação não de um modo apaixonado e precipitado mas de maneira calma e firme um desígnio com relação à vida de outrem colocao ao seu la do num estado de guerra contra aquele a quem declarou uma tal in tenção e desta forma expõe sua vida ao poder de outrem para ser arrebatada por aquele ou por qualquer outro que a ele se junte em sua defesa esposandolhe a causa JOHN LOCKE E O INDIVIDUALISMO LIBERAL 3 Daí resulta que aquele que tenta colocar a outrem sob seu po der absoluto põese por causa disto num estado de guerra com ele devendose interpretar isto como uma declaração de um desígnio em relação à sua vida Assim tenho motivos para concluir que aque le que se apoderar de mim sem meu consentimento fará uso de mim tal como lhe aprouver quando eu estiver em seu poder e des truirmeá também quando lhe der na veneta pois ninguém pode me desejar ter sob seu poder absoluto senão para compelirme pe la força ao que é contrário ao direito de minha liberdade isto é tornarme escravo Livrarme de semelhante força é a única garan tia à minha preservação e a razão me ordena considerar como ini migo de minha preservação aquele que arrebatar aquela liberdade que a protege de sorte que quem tenta me escravizar põese em es tado de guerra comigo E nisto temos a clara diferença entre o estado de natureza e o estado de guerra que muito embora alguns tenham confundido estão tão distantes um do outro quanto um estado de paz boa von tade assistência mútua e preservação está de um estado de inimiza de malícia violência e destruição mútua Quando os homens vivem juntos conforme a razão sem um superior comum na Terra que possua autoridade para julgar entre eles verificase propriamente o estado de natureza Todavia a força ou o desígnio declarado de força contra a pessoa de outrem quando não existe qualquer su perior comum sobre a Terra a quem apelar constitui o estado de guerra e é a necessidade de semelhante apelo que dá ao homem o direito de guerra mesmo contra um agressor ainda que este esteja em sociedade e seja igualmente um súdito A falta de um juiz comum com autoridade coloca todos os homens em um estado de natureza a força sem o direito sobre a pessoa de um homem provo ca um estado de guerra nao so quando ha como quando não ha um juiz comum Evitar esse estado de guerra no qual não há apelo senão pa o céu e no qual qualquer divergência por menor que seja é ca paz de ir dar se não houver autoridade que decida entre os conten dores é razão decisiva para que homens se reúnam em socieda deixando o estado de natureza onde há autoridade poder na terra do qual é possível conseguir amparo mediante apelo exclui se a continuidade do estado de guerra decidindose a controvérsia por aquele poder 94 OS CLÁSSICOS DA POLÍTICA Da propriedade Embora a terra e todas as criaturas inferiores sejam comuns a todos os homens cada homem tem uma propriedade em sua própria pessoa a esta ninguém tem qualquer direito senão ele mesmo Podemos dizer que o trabalho do seu corpo e a obra das suas mãos são propriamente seus Seja o que for que ele retire do estado que a natureza lhe forneceu e no qual o deixou ficalhe misturado ao próprio trabalho juntandoselhe algo que lhe perten ce e por isso mesmo tornandoo propriedade dele Retirandoo do estado comum em que a natureza o colocou anexoulhe por es se trabalho algo que o exclui do direito comum de outros homens Desde que esse trabalho é propriedade indiscutível do trabalha dor nenhum outro homem pode ter direito ao que foi por ele incor porado pelo menos quando houver bastante e igualmente de boa qualidade em comum para terceiros A mesma lei da natureza que nos dá por esse meio a proprie dade também igualmente a limita Deus nos deu de tudo abundan temente I Tim 6 17 é a voz da razão confirmada pela inspiração Mas até que ponto Ele nos deu isso para usufruir Tanto quan to qualquer um pode usar com qualquer vantagem para a vida an tes que se estrague em tanto pode fixar uma propriedade pelo pró prio trabalho o excedente ultrapassa a parte que lhe cabe e perten ce a terceiros É o trabalho portanto que atribui a maior parte do valor à terra sem o qual dificilmente ela valeria alguma coisa é a ele que devemos a maior parte de todos os produtos úteis da terra por tu do isso a palha farelo e pão desse acre de trigo valem mais do que o produto de um acre de terra igualmente boa mas abandonada sendo o valor daquele o efeito do trabalho De tudo isso é evidente que embora a natureza tudo nos ofe reça em comum o homem sendo senhor de si próprio e proprietá rio de sua pessoa e das ações ou do trabalho que executa teria ain da em si mesmo a base da propriedade e aquilo que compôs a maior parte do que ele aplicou ao sustento ou conforto do próprio serquando as invenções e as artes aperfeiçoaram os confortos ma teriais da vida era perfeitamente seu não pertencendo em comum a outros JOHN LOCKE E O INDIVIDUALISMO LIBERAL A maior parte das coisas realmente úteis à vida do homem são em geral de curta duração e tal como a necessidade de subsistên cia obrigou os primeiros membros das comunidades a procurar por elas conforme ora acontece com os americanos da mesma forma se não forem consumidas pelo uso estragarseão e perecerão por si mesmas o ouro a prata e os diamantes são artigos a que a ima ginação ou o acordo atribuiu valor mais do que pelo uso real e sus tento necessário da vida E assim originouse o uso do dinheiro algo de duradouro que os homens pudessem guardar sem se estragar e que por consen timento mútuo recebessem em troca de sustentáculos da vida ver dadeiramente úteis mas perecíveis Mas como o ouro e a prata são de pouca utilidade para a vi da humana em comparação com o alimento vestuário e transpor te tendo valor somente pelo consenso dos homens enquanto o tra balho dá em grande parte a medida é evidente que os homens con cordaram com a posse desigual e desproporcionada da terra ten do descoberto mediante consentimento tácito e voluntário a ma neira de um homem possuir licitamente mais terra do que aquela cu jo produto pode utilizar recebendo em troca pelo excesso ouro e prata que podem guardar sem causar dano a terceiros uma vez que estes metais não se deterioram nem se estragam nas mãos de quem os possui Os homens tornaram praticável semelhante partilha em desigualdade de posses particulares fora dos limites da sociedade e sem precisar de pacto atribuindo valor ao ouro e à prata e concor dando tacitamente com respeito ao uso do dinheiro porque nos go vernos as leis regulam o direito de propriedade e constituições posi tivas determinam a posse da terra Da sociedade política ou civil I O homem nascendo conforme provamos com direito a per feita liberdade e gozo incontrolado de todos os direitos e privilégios da lei da natureza por igual a qualquer outro homem ou grupo de homens do mundo tem por natureza o poder não só de preservar a sua propriedade isto é a vida a liberdade e os bens contra os danos e ataques de outros homens mas também de julgar e cas OS CLÁSSICOS DA POLÍTICA tigar as infrações dessa lei por outros conforme estiver persuadido da gravidade da ofensa e até mesmo com a morte nos crimes em que o horror do fato o exija conforme a sua opinião Contudo co mo qualquer sociedade política não pode existir nem subsistir sem ter em si o poder de preservar a propriedade e para isso castigar as ofensas de todos os membros dessa sociedade haverá sociedade política somente quando cada um dos membros renunciar ao pró prio poder natural passandoo às mãos da comunidade em todos os casos que não lhe impeçam de recorrer à proteção da lei por ela estabelecida Os que estão unidos em um corpo tendo lei co mum estabelecida e judicatura para a qual apelar com autoridade para decidir controvérsias e punir os ofensores estão em socieda de civil uns com os outros mas os que não têm essa apelação em comum quero dizer sobre a Terra ainda se encontram no estado de natureza sendo cada um onde não há outro juiz para si e exe cutor o que constitui conforme mostrei anteriormente o estado perfeito de natureza E por essa maneira a comunidade consegue por meio de um poder julgador estabelecer que castigo cabe às várias transgressões quando cometidas entre os membros dessa sociedade que é o po der de fazer leis bem como possui o poder de castigar qualquer dano praticado contra qualquer dos membros por alguém que não pertence a ela que é o poder de guerra e de paz e tudo isso para preservação da propriedade de todos os membros dessa socie dade tanto quanto possível E aqui deparamos com a origem dos poderes legislativo e executivo da sociedade que deve julgar por meio de leis estabelecidas até que ponto se devem castigar as ofensas quando cometidas dentro dos limites da comunidade bem como determinar mediante julgamentos ocasionais baseados nas circunstâncias atuais do fato até onde as agressões externas devem ser retaliadas e em um e outro caso utilizar toda a força de todos os membros quando houver necessidade Do que ficou dito é evidente que a monarquia absoluta que alguns consideram o único governo no mundo é de fato incompa tível com a sociedade civil não podendo por isso ser uma forma qualquer de governo civil porque o objetivo da sociedade civil con siste em evitar e remediar os inconvenientes do estado de natureza que resultam necessariamente de poder cada homem ser juiz em cau sa própria estabelecendose uma autoridade conhecida para a qual todos os membros dessa sociedade podem apelar por qualquer da no que lhe causem ou controvérsia que possa surgir e à qual todos JOHN LOCKE E O individualismo L1BERAl os membros dessa sociedade terão de obedecer Onde quer que exis tam pessoas que não tenham semelhante autoridade a que recorre rem para decisão de qualquer diferença entre elas estarão tais pes soas no estado de natureza e assim se encontra qualquer príncipe absoluto em relação aos que estão sob seu domínio Do começo das sociedades políticas Sendo os homens conforme acima dissemos por natureza to dos livres iguais e independentes ninguém pode ser expulso de sua propriedade e submetido ao poder político de outrem sem dar con sentimento A maneira única em virtude da qual uma pessoa qual quer renuncia à liberdade natural e se reveste dos laços da socieda de civil consiste em concordar com outras pessoas em juntarse e unirse em comunidade para viverem com segurança conforto e paz umas com as outras gozando garantidamente das propriedades que tiverem e desfrutando de maior proteção contra quem quer que não faça parte dela Qualquer número de homens pode fazêlo por que não prejudica a liberdade dos demais ficam como estavam na liberdade do estado de natureza Quando qualquer número de ho mens consentiu desse modo em constituir uma comunidade ou go verno ficam de fato a ela incorporados e formam um corpo poli tico no qual a maioria tem o direito de agir e resolver por todos E assim todo homem concordando com outros em formar um corpo político sob um governo assume a obrigação para com todos os membros dessa sociedade de se submeter à resolução da maioria conforme esta a assentar se assim não fosse esse pacto ini cial pelo qual ele juntamente com outros se incorpora a uma so ciedade nada significaria e deixaria de ser pacto se aquele indi víduo ficasse livre e sob nenhum outro vínculo senão aquele em Que se achava no estado de natureza Se o assentimento da maioria não fosse aceito como razoável enquanto ato de todos submetendo cada indivíduo nada senão o consentimento de cada um poderia fazer com que qualquer coisa fosse o ato de todos mas tal consentimento é quase impossível de se conseguir se considerarmos as enfermidades e as ocupações secun dárias com os negócios que em um grupo qualquer embora muito 98 OS CLÁSSICOS DA POLÍTICA menos que em uma comunidade afastarão necessariamente muitos membros da assembléia pública Quem quer portanto que saindo de um estado de natureza entre para uma comunidade deve ser considerado como declinan do de todo o poder necessário aos fins para os quais se uniram em sociedade em favor da maioria da comunidade a menos que este jam expressamente de acordo quanto a um número maior do que a maioria E isto se consegue concordando simplesmente em unir se em uma sociedade política no que consiste todo pacto que exis te ou deve existir entre os indivíduos que entram em uma comunida de ou a constituem Assim sendo o que dá início e constitui real mente qualquer sociedade política nada mais é senão o assentimen to de qualquer número de homens livres e capazes de maioria em se unirem e incorporarem a tal sociedade E isto e somente isto deu ou poderia dar origem a qualquer governo legítimo no mundo Assim essas sociedades políticas começaram todas de uma união voluntária e do acordo mútuo de homens que agiam li vremente na escolha dos governantes e das formas de governo Nessas condições quem uma vez deu por acordo real e qual quer declaração expressa o seu consentimento em fazer parte de uma comunidade está obrigado perpétua e indispensavelmente a ser e ficar inalteravelmente súdito dela não podendo voltar nova mente à liberdade do estado de natureza a menos que em virtude de alguma calamidade venha a dissolverse o governo sob o qual vive ou então mediante algum ato público fique dispensado de ser membro dela daí por diante Dos fins da sociedade política e do governo Se o homem no estado de natureza é tão livre conforme disse mos se é senhor absoluto da sua própria pessoa e posses igual ao maior e a ninguém sujeito por que abrirá ele mão dessa liberdade por que abandonará o seu império e sujeitarseá ao domínio e con trole de qualquer outro poder Ao que é óbvio responder que em bora no estado de natureza tenha tal direito a fruição do mesmo é muito incerta e está constantemente exposta à invasão de tercei JOHN LOCKE E O INDIVIDUALISMO LIBERAL 99 ros porque sendo todos reis tanto quanto ele todos iguais a ele e Na maioria pouco observadores da eqüidade e da justiça a fruição da propriedade que possui nesse estado é muito insegura muito ar riscada Estas circunstâncias obrigamno a abandonar esta condição que embora livre está cheia de temores e perigos constantes e não é sem razão que procura de boa vontade juntarse em sociedade com outros que estão já unidos ou pretendem unirse para a mú tua conservação da vida da liberdade e dos bens a que chamo de propriedade O objetivo grande e principal portanto da união dos homens em comunidades colocandose eles sob governo é a preservação da propriedade Para este objetivo muitas condições faltam no esta do de natureza Primeiro falta uma lei estabelecida firmada co nhecida recebida e aceita mediante consentimento comum como padrão do justo e injusto e medida comum para resolver quaisquer controvérsias entre os homens Em segundo lugar no estado de natureza falta um juiz conhe cido e indiferente com autoridade para resolver quaisquer dissen sões de acordo com a lei estabelecida Em terceiro lugar no estado de natureza freqüentemente fal ta poder que apoie e sustente a sentença quando justa dandolhe a devida execução Assim os homens apesar de todos os privilégios do estado de natureza ao se verem apenas em más condições enquanto nele per manecem são rapidamente levados à sociedade Daí resulta que rara mente encontramos qualquer grupo de homens vivendo dessa manei ra Os inconvenientes a que estão expostos pelo exercício irregular e incerto do poder que todo homem tem de castigar as transgressões dos outros levamnos a se abrigarem sob as leis estabelecidas de go verno e nele procurarem a preservação da propriedade É isso que os leva a abandonarem de boa vontade o poder isolado que têm de castigar para que passe a exercêlo um só indivíduo escolhido para isso entre eles e mediante as regras que a comunidade ou os que com tal propósito forem por ela autorizados concorde em estabe lecer E nisso se contém o direito original dos poderes legislativo e executivo bem como dos governos e das sociedades E assim sendo quem tiver o poder legislativo ou o poder supremo de qualquer comunidade obrigase a governála mediante Leis estabelecidas promulgadas e conhecidas pelo povo e não Por meio de decretos extemporâneos e mediante juizes imparciais 100 OS CLÁSSICOS DA POLÍTICA e corretos que terão de resolver as controvérsias conforme essas leis Obrigase também a empregar a força da comunidade no seu território somente na execução de tais leis ou fora dele para preve nir ou remediar malefícios estrangeiros e garantir a sociedade con tra incursões ou invasões E tudo isso tendo em vista nenhum outro objetivo senão a paz a segurança e o bemestar do povo Das formas de uma comunidade Uma vez que a maioria conforme mostramos a partir da pri meira união dos homens em sociedade detém todo o poder da co munidade naturalmente em si pode empregálo de tempos em tem pos para fazer leis destinadas à comunidade e que se executam por meio de funcionários que ela própria nomeia nesse caso a forma de governo é uma perfeita democracia ou então pode colocar o po der de fazer leis nas mãos de alguns homens escolhidos seus herdei ros e sucessores nesse caso terseá uma oligarquia ou então nas mãos de um único homem e constituise nesse caso uma monarquia se para ele e herdeiros será hereditária se para ele somente duran te a vida mas pela morte dele sendo a ela devolvido o poder de in dicar o sucessor será a monarquia eletiva E assim segundo estas maneiras de ser a comunidade pode estabelecer formas compostas ou mistas de governo conforme achar conveniente Da extensão do poder legislativo Uma vez que o grande objetivo do ingresso dos homens em so ciedade é a fruição da propriedade em paz e segurança e que o gran de instrumento e meio disto são as leis estabelecidas nessa socieda de a primeira lei positiva e fundamental de todas as comunidades consiste em estabelecer o poder legislativo enquanto primeira lei na tural fundamental que deve reger até mesmo o poder legislativo Ela é em si mesma a preservação da sociedade e até o ponto em que seja compatível com o bem público de qualquer pessoa que faça parte dela Esse poder legislativo não é somente o poder supremo da comunidade mas sagrado e inalterável nas mãos em JOHN LOCKE E O INDIVIDUALISMO LIBERAl que a comunidade uma vez o tenha colocado nem pode qualquer edito de quem quer que seja concebido por qualquer maneira ou apoiado por qualquer poder que seja ter a força e a obrigação de uma lei se não tiver sanção do legislativo escolhido e nomeado pe lo público porque sem isto a lei não teria o que é absolutamente necessário à sua natureza de lei o consentimento da sociedade so bre a qual ninguém tem o poder de fazer leis senão pelo próprio consentimento daquela e pela autoridade dela recebida Tais são as obrigações que os encargos a eles conferidos pela sociedade e pela lei de Deus e da natureza atribuíram ao poder le gislativo de qualquer comunidade em todas as formas de governo primeiro têm de governar por meio de leis estabelecidas e promul gadas que não poderão variar em casos particulares instituindo a mesma regra para ricos e pobres para favoritos na corte ou campo neses no arado segundo tais leis não devem ser destinadas a qualquer outro fim se não o bem do povo terceiro não devem lançar impostos sobre a propriedade do povo sem o consentimento deste dado diretamente ou por intermédio dos seus deputados E essa propriedade somente diz respeito aos go vernos quando o legislativo é permanente ou pelo menos quando o povo não reservou qualquer porção do poder legislativo para de putados a serem por ele escolhidos de tempos em tempos quarto o legislativo não deve nem pode transferir o poder de elabo rar leis a ninguém mais ou colocálo em qualquer outro lugar que não o indicado pelo povo Dos poderes legislativo executivo e federativo da comunidade O poder legislativo é o que tem o direito de estabelecer como se deverá utilizar a força da comunidade no sentido da preservação dela própria e dos seus membros Como se tem de pôr constante mente em prática as leis que devem continuar sempre em vigor mas que se podem elaborar em curto prazo não há necessidade de Manterse tal poder permanentemente em exercício pois que nem sempre teria no que se ocupar 102 OS CLÁSSICOS DA POLÍTICA Todavia como as leis elaboradas imediatamente e em prazo curto têm força constante e duradoura precisando para isso de per pétua execução e observância tornase necessária a existência de um poder permanente que acompanhe a execução das leis que se elaboram e ficam em vigor E desse modo os poderes legislativo e executivo ficam freqüentemente separados Existe outro poder em uma comunidade que se poderia deno minar natural visto como é o que corresponde ao que todo homem tinha naturalmente antes de entrar em sociedade porquanto embo ra em uma comunidade os seus membros sejam pessoas distintas ainda que consideradas relativamente umas às outras e como tais sejam governadas pelas leis da sociedade contudo relativamente ao resto dos homens constituem um corpo que se encontra co mo qualquer dos seus membros anteriormente se encontrava ain da no estado de natureza com os demais homens Daí resulta que as controvérsias que se verificam entre qualquer membro da socieda de e os que estão fora dela são resolvidas pelo público e um dano causado a um membro desse corpo empenha a todos na sua repara ção Assim neste particular a comunidade inteira é um corpo em estado de natureza relativamente a todos os estados ou pessoas fo ra da comunidade Aí se contém portanto o poder de guerra e de paz de ligas e alianças e todas as transações com todas as pessoas e comunida des estranhas à sociedade podendose chamar federativa se as sim quiserem Se entenderem a questão fico indiferente ao nome Embora conforme disse os poderes executivo e federativo de qualquer comunidade sejam realmente distintos em si dificilmen te podem separarse e colocarse ao mesmo tempo em mãos de pes soas distintas Visto como ambos exigem a força da sociedade pa ra seu exercício é quase impraticável colocarse a força do Estado em mãos distintas e não subordinadas ou os poderes executivo e fe derativo em pessoas que possam agir separadamente em virtude do que a força do público ficaria sob comandos diferentes o que poderia ocasionar em qualquer ocasião desordem e ruína Da subordinação dos poderes da comunidade Embora em um Estado constituído erguido sobre a sua pró pria base e atuando de acordo com a sua própria natureza isto é agindo no sentido da preservação da comunidade somente pos JOHN LOCKE E O INDIVIDUALISMO LIBERAL sa existir um poder supremo que é o legislativo ao qual tudo mais deve ficar subordinado contudo sendo o legislativo somente um poder fiduciário destinado a entrar em ação para certos fins cabe ainda ao povo um poder supremo para afastar ou alterar o legislati vo quando é levado a verificar que age contrariamente ao encargo que lhe confiaram E nessas condições a comunidade conser va perpetuamente o poder supremo de se salvaguardar dos propósi tos e atentados de quem quer que seja mesmo dos legisladores sem pre que forem tão levianos ou maldosos que formulem e conduzam planos contra as liberdades e propriedades dos súditos Pois uma vez que nenhum homem ou sociedade de homens tem o poder de re nunciar à própria preservação ou conseqüentemente aos meios de fazêlo a favor da vontade absoluta e domínio arbitrário de ou trem sempre que alguém experimente trazêlos a semelhante situa ção de escravidão terão sempre o direito de preservar o que não ti nham o poder de alienar e de livrarse dos que invadem esta lei fundamental sagrada e inalterável da autopreservaçâo e em virtu de da qual entraram em sociedade E assim podese dizer neste par ticular que a comunidade é sempre o poder supremo mas não con siderada sob qualquer forma de governo porquanto este poder do povo não pode nunca ter lugar senão quando se dissolve o governo Não é necessário tampouco conveniente que o poder legisla tivo esteja sempre reunido mas é absolutamente necessário que o poder executivo seja permanente visto como nem sempre há neces sidade de elaborar novas leis mas sempre existe a necessidade de executar as que foram feitas Quando o legislativo entregou a execu ção das leis que fez a outras mãos ainda tem o poder de retomá la se houver motivo e de castigar por qualquer má administração contra as leis O mesmo se aplica ao poder federativo já que este e o executivo são ministeriais e subordinados ao legislativo que con forme mostramos e supremo em uma comunidade constituída Neste ponto podese perguntar o que acontecerá se o poder executivo sendo senhor da força da comunidade empregála para impedir a reunião e ação do legislativo conforme o exigirem a cons tituição original ou as necessidades do povo Digo que empregar a força sobre o povo sem autoridade e contrariamente ao encargo confiado a quem assim procede constitui estado de guerra com o Povo que tem o direito de restabelecer o poder legislativo ao exer cício dos seus poderes porquanto tendo instituído um poder legis 104 OS CLÁSSICOS DA POLÍTICA lativo com a intenção de que exercesse o poder de elaborar leis ou em certas épocas fixadas ou quando delas houvesse necessidade se qualquer força o impedir de fazer o que é necessário à socie dade e de que depende a segurança e a preservação desta o povo tem o direito de removêla pela força Em todos os estados e condi ções o verdadeiro remédio contra a força sem autoridade é opor lhe a força O emprego da força sem autoridade coloca sempre quem dela faz uso num estado de guerra como agressor e sujeitao a ser tratado da mesma forma Dos poderes paterno político e despótico considerados em conjunto Primeiro o pátrio poder ou poder dos pais consiste somente no que os progenitores possuem sobre os filhos para os governarem visando ao bem deles até que atinjam o uso da razão ou um esta do de conhecimento no qual se suponha serem capazes de entender a lei seja a da natureza seja a municipal do próprio país pela qual terão de regerse capazes repito de sabêlo tão bem como outros que vivem como homens livres sob essa lei E assim na verdade o poder paterno constitui governo natural mas sem es tenderse aos fins e jurisdições do que é político Em segundo lugar o poder político é o que cada homem pos suía no estado de natureza e cedeu às mãos da sociedade e dessa maneira aos governantes que a sociedade instalou sobre si mesma com o encargo expresso ou tácito de que seja empregado para o bem e para a preservação de sua propriedade Ora este poder que qualquer homem tem no estado de natureza e ao qual renuncia a favor da sociedade em todos os casos em que ela pode garantilo consiste em lançar mão dos meios que julgue bons e que a nature za lhe ofereça para a preservação da propriedade e de castigar a in fração da lei da natureza em terceiros de sorte que isso possa levar da melhor maneira possível de acordo com o que a razão julgue mais acertado à preservação dele próprio e dos outros homens Esse poder tem origem somente no pacto acordo e assentimento mútuo dos que compõem a comunidade JOHN LOCKE E O INDIVIDUALISMO LIBERAL 105 Em terceiro lugar o poder despótico é o poder absoluto e ar bitrário que um homem tem sobre outro para tirarlhe a vida sem pre que o queira Tal poder nem a natureza dá pois nào fez tal distinção entre um homem e outro nem qualquer pacto pode atri buir porque o homem não possuindo tal poder arbitrário sobre a própria vida não o pode dar a outrem e tal poder consiste somen te no efeito do confisco que o agressor faz da própria vida quan do se coloca em estado de guerra com outro indivíduo E por essa forma os prisioneiros capturados em guerra justa e legítima e somente estes ficam sujeitos a poder despótico que como não resulta de pacto tampouco é suscetível de qualquer pac to mas consiste em estado de guerra continuado pois que pacto po de fazer um homem que não é senhor da própria vida A natureza dá o primeiro destes poderes isto é o pátrio po der aos pais para benefício dos filhos durante a menoridade para suprirlhes a falta de capacidade e de entendimento em como admi nistrar a propriedade Por propriedade devo entender aqui como em outros lugares a que os homens têm tanto na própria pessoa co mo nos bens O acordo voluntário concede o segundo isto é o po der político aos governantes para o benefício dos súditos a fim de garantirlhes a posse e uso da propriedade E o confisco dá o ter ceiro poder o despótico aos senhores para seu próprio benefício sobre os que são despojados de toda propriedade O pátrio poder existe apenas quando a menoridade tor na o menor incapaz de gerir a propriedade o político quando os homens têm propriedade à sua disposição e o despótico sobre os que não possuem qualquer propriedade Da conquista Embora os governos não possam ter originariamente qualquer outra fonte senão as que mencionamos atrás nem se baseie a políti ca senão no consentimento do povo tais têm sido contudo as de sordens com que a ambição tem enchido o mundo que no tumulto da guerra que toma tão grande parte da história dos homens Pouca atenção se presta a esse consentimento e portanto muitas Pessoas têm confundido a força das armas com o consentimento do Povo considerando a conquista como uma das origens do governo Que o agressor que se põe em estado de guerra com outrem invadindolhe injustamente o direito não pode nunca por meio de tal guerra injusta chegar a ter direito sobre o conquistado to dos os homens facilmente concordarão e não pensarão que ladrões e piratas tenham direito de império sobre quem quer que tenham força bastante para dominar ou que os homens fiquem obrigados por promessas que lhes são extorquidas por força ilegítima Do que fica dito é claro que aquele que conquista em guerra injusta não pode ter qualquer direito à submissão e obediência do conquistado Nenhum governo pode ter direito à obediência de um po vo que não a consentiu livremente o que não se pode nunca supor que façam até que se encontrem em condições de inteira liberdade para escolher governo e governantes ou pelo menos até que tenham tais leis promulgadas a que por si ou por intermédio de representan tes deram seu livre assentimento bem como até que lhe permitam a propriedade devida que importa em ser de tal maneira proprietá rio do que lhes pertence que ninguém ospossa privar de qualquer parte sem seu próprio consentimento e se assim não for os ho mens sob qualquer governo não estarão no estado de homens livres mas serão escravos diretos sob a força da guerra O resumo da questão das conquistas é o seguinte o conquista dor se tem justa causa possui direito despótico sobre as pessoas de todos aqueles que realmente ajudaram e concorreram na guerra con tra ele e o direito de compensar o próprio dano e despesa com o tra balho e as propriedades deles contanto que não prejudique o direi to de terceiros Não tem qualquer poder sobre o povo restante se al guém houve que não assentiu a favor da guerra e sobre os filhos dos próprios cativos ou sobre as propriedades de uns e de outros e assim sendo não pode ter em virtude da conquista qualquer título legíti mo ao domínio sobre eles ou passálo à posteridade mas tornase agressor se atenta contra a propriedade e por esse modo se coloca em estado de guerra contra eles Donde ser evidente que livrar se de um poder que a força e não o direito instalou sobre alguém em bora tenha o nome de rebelião não constitui ofensa perante Deus mas é o que Ele permite e aprova mesmo quando promessas e acor dos se obtidos pela força intervém Pois é muito provável para quem quer que leia a história de Ahaz e Jezequiá atentamente que os assírios dominaram Ahaz e o depuseram fazendo Jeze quiá rei durante a vida do próprio pai e Jezequiá por assentimen to prestoulhe homenagem e pagoulhe tributo durante todo esse tempo 107 Da usurpação Da mesma forma que se pode chamar a conquista de usurpa o estrangeira assim também a usurpação é uma espécie de con nuista interna com a diferença que um usurpador não pode ter nun ca o direito a seu favor somente sendo usurpação quando o usurpa dor entra na posse daquilo a que um terceiro tem direito Quem quer que ingresse no exercício de qualquer parte do poder por meios diferentes dos que as leis da comunidade pres creveram não tem direito a ser obedecido embora a forma da co munidade ainda continue preservada desde que não é a pessoa que as leis indicaram e em conseqüência não é a pessoa a que o povo dera assentimento Da tirania Do mesmo modo que a usurpação consiste no exercício do po der a que outrem tem direito a tirania é o exercício do poder além do direito o que não pode caber a pessoa alguma E esta consiste em fazer uso do poder que alguém tem nas mãos não para o bem daqueles que lhe estão sujeitos mas a favor da vantagem própria privada e separada quando o governante embora autorizado to ma como regra não a lei mas a própria vontade não se orientan do as suas ordens e ações para a preservação das propriedades do povo mas para a satisfação da ambição vingança cobiça ou qual quer outra paixão irregular que o domine É um engano supor que esta imperfeição é própria somente das monarquias outras formas de governo estão a ela igualmente sujeitas Pois onde quer que o poder que é depositado em quais quer mãos para o governo do povo e a preservação da proprieda de for aplicado para outros fins e dele se fizer uso para empobre cer perseguir ou subjugar o povo às ordens arbitrárias e irregulares dos que o possuem tornase realmente tirania sejam um ou mui tos os que assim o utilizem 108 OS CLÁSSICOS DA POLÍTICA Onde quer que a lei termine a tirania começa se se transgre dir a lei para dano de outrem E quem quer que em autoridade ex ceda o poder que lhe foi dado pela lei e faça uso da força que tem sob as suas ordens para levar a cabo sobre o súdito o que a lei não permite deixa de ser magistrado e agindo sem autoridade pode so frer oposição como qualquer pessoa que invada pela força o direi to de outrem se a parte prejudicada puder encontrar remédio e os seus danos reparados mediante apelação à lei não haverá qualquer ne cessidade de recorrer à força que somente se deverá usar quando alguém se vir impedido de recorrer à lei porque só se deve conside rar força hostil a que não possibilita o recurso a semelhante apela ção e é tãosó essa força que põe em estado de guerra aquele que faz dela uso e torna legítimo resistirlhe Mas se qualquer desses atos ilegais se estendeu à maior parte do povo ou se o malefício e a opressão atingiram somente a al guns mas em casos tais que os precedentes e as conseqüências pare çam a todos ameaçar estando eles persuadidos intimamente de que as leis e com elas as propriedades liberdades e vidas estão em peri go e talvez até mesmo a religião não estou em condições de di zer como se poderá impedilos de resistir à força ilegal de que se faz uso contra eles Da dissolução do governo Aquele que quiser falar com clareza sobre dissolução do go verno deve em primeiro lugar distinguir entre a dissolução da so ciedade e a dissolução do governo O que faz a comunidade e traz os homens do estado vago de natureza para a sociedade política é o compromisso que cada um tem com os demais de se incorporar e agir como um único corpo e assim constituir uma comunidade dis tinta A maneira usual e quase única de dissolverse essa união con siste na invasão de força estranha que a venha conquistar porque neste caso não sendo capaz de manterse e sustentarse como cor po infèiro e independente a união que lhe cabia e o formava tem necessariamente de cessar e assim cada um volta ao estado em que JOHN LOCKE E O INDIVIDUALISMO LIBERAL 109 encontrava antes com a liberdade de agir por conta própria e prover à própria segurança conforme achar conveniente em qual quer outra sociedade Sempre que se dissolve a sociedade é certo que o governo dessa sociedade não pode continuar Além dessa subversão provinda do exterior também se dissol vem os governos por motivos internos Primeiro quando se altera o poder legislativo Sendo a socie dade civil um estado de paz entre os que fazem parte dela do qual se exclui o estado de guerra pelo poder de arbitramento concedido ao legislativo com o fito de pôr termo a qualquer dissídio que pos sa surgir é no legislativo que se unem e combinam os membros de uma comunidade para formar um corpo vivo e coerente Se um homem ou mais de um chamarem a si a elaboração de leis sem que o povo os tenha nomeado para assim o fazerem elaboram leis sem autoridade a que o povo em conseqüência não está obriga do a obedecer e nessas condições o povo ficará novamente deso brigado de sujeição podendo constituir novo legislativo conforme julgar melhor tendo inteira liberdade de resistir à força aos que sem autoridade quiserem imporlhe seja lá o que for Nestes e em outros casos semelhantes quando se dissolve o go verno o povo fica em liberdade de prover para si instituindo no vo legislativo que difira do anterior pela mudança das pessoas ou da forma ou por ambas as maneiras conforme julgar mais conve niente ao próprio bem e segurança Há portanto em segundo lugar outra maneira de se dissol ver o governo que consiste em agirem o legislativo ou o príncipe contrariamente ao encargo que receberam Sempre que os legisladores tentam tirar e destruir a proprie dade do povo ou reduzilo à escravidão sob poder arbitrário en tram em estado de guerra com ele que fica assim absolvido de qual quer obediência mais abandonado ao refúgio comum que Deus pro videnciou para todos os homens contra a força e a violência O que disse acima a respeito do legislativo em geral também se apli ca ao executor supremo que recebendo duplo encargo ter par te no legislativo e exercer a suprema execução da lei age contra um e outro quando se esforça por firmar a própria vontade como lei da sociedade Age também contrariamente ao seu dever quando ou emprega a força o tesouro ou os cargos da sociedade para cor romper os representantes e atraílos a seus próprios fins ou quando 110 OS CLÁSSICOS DA POLÍTICA alicia abertamente os eleitores e lhes impõe à escolha alguém que ga nhou para os seus desígnios por meio de promessas ameaças e soli citações ou por outra maneira qualquer empregandoo para asses sorar os que se comprometeram de antemão em relação ao que vo tar e ao que decretar Em ambos os casos acima citados quando se muda o legislati vo ou os legisladores agem contrariamente ao fim para o qual foram designados os que têm culpa são culpados de rebelião porque se alguém fazendo uso da força elimina o legislativo estabelecido de qualquer sociedade e as leis por ela feitas conforme os seus deve res elimina por esse modo o árbitro em que todos haviam assenti do para a solução pacífica de todas as controvérsias e o empecilho ao estado de guerra entre eles E se os que suprimem o legisla tivo pela força são rebeldes não é possível considerar que o sejam menos os próprios legisladores conforme mostramos quando os que foram designados para proteção e preservação do povo da li berdade e da propriedade as invadem usando a força e procuram arrebatálas e assim pondose em estado de guerra com aqueles que os fizeram protetores e guardas da própria paz são propriamen te e com o maior dos agravantes rebellantes isto é rebeldes Neste ponto é provável que formulem a pergunta comum Quem julgará se o príncipe ou o legislativo agem contrariamente ao encargo recebido A isto respondo O povo será o juiz por que quem poderá julgar se o depositário ou o deputado age bem e de acordo com o encargo a ele confiado senão aquele que o nomeia devendo por têlo nomeado ter ainda poder para afastálo quan do não agir conforme seu dever Se isto for razoável no caso parti cular de homens privados por que seria de outra forma no de maior importância que afeta o bemestar de milhões e também quando o mal se não for prevenido é maior e a reparação muito difícil dispendiosa e arriscada