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Ciências Políticas

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NOTAS SOBRE LIBERDADE O CONCEITO DE EM ROUSSEAU Silvia Gombi Borges dos Santos USP Resumo Neste estudo procurarseá retomar o conceito de liberdade tal como se encontra expresso em alguns textos básicos de Rousseau opondoo ao de independência natural e relacionandoo ao de homem enquanto ser moral e social dotado de razão que busca a verdade e a virtude Algumas análises e indicações de comentadores como Derathé serão utilizadas como suporte teórico ao desenvolvimento das reflexões que se seguem Palavraschave Liberdade Homem Independência natural Estado Sociedade civil Obediência à Lei Virtude Moralidade Abstract In this study I intend to retake the concept of freedom as it is presented in some of Rousseaus basic texts opposing it to natural independence and relating to the concept of man as a moral and social being endowed with reason that seeks truth and virtue Some analysis and indications of commentators such as Derathé will be used as a theoretical support towards the development of the reflections as following Keywords Freedom Man Natural independence State Civil society Obedience to Law Virtue Morality I A independência do estado de natureza N o capítulo II do ManuscrIto de Genebra Da sociedade geral do Gênero Humano texto que foi suprimido da versão definiti va do Contrato social Rousseau aborda o tema do estado natu ral afirmando que a doce voz da natureza não mais constitui para nós um guia infalível nem a independência que dela recebemos pode ser considerada um estado desejável2 Do ponto de vista histórico esta idade de ouro não passaria de mito tratase de um momento de tranqüilidade que o homem poderia ter vivido que se perdeu no tempo com efeito a paz e a inocência antes que tivéssemos usufruído de suas delícias escaparamnos para sempre Insensível para os homens estúpidos dos tempos primitivos escapando aos homens esclarecidos dos tempos posteriores a vida feliz da idade de ouro sempre foi um estado estranho à raça humana ou por não têIa conhecido quando dela pudera gozar ou por têIa perdido quando poderia conhecêIa Além disso não se apresenta aqui a noção de associação a obrigação de nos unir aos outros como parte do todo Parece que neste ponto Rousseau busca retomar a tradição aristotélica que considera o homem não como ser individual mas como animal político pertencente à ppossllii Se essa independência perfeita essa liberdade sem regras permanecesse unida à antiga inocência sempre existiria um vício es sencial prejudicial ao progresso de nossas melhores faculdades a saber a ausência entre as partes da ligação que constitui o todo A terra ver seia cheia de homens entre os quais não haveria quase nenhuma comunicação tocarnosíamos em alguns pontos sem nos unirmos por nenhum deles cada qual permaneceria isolado entre os demais cada qual pensaria somente em si mesmo não poderia desenvolverse nossa compreensão viveríamos sem nada sentir morreríamos sem haver vi vido toda a nossa felicidade consistiria somente em não conhecer a própria miséria em nossas ações não haveria quer bondade nos cora ções quer moralidade nas ações e nunca teríamos experimentado o mais delicioso sentimento da alma o amor pela virtude4 Em Rousseau o que caracteriza o estado natural é a total independên cia dos homens restritos aos limites de suas forças físicas reúnemse a seus semelhantes apenas fortuitamente desses agregados nasce uma 1 JJ ROUSSEAU Manuscrito de Genebra in Obras políticas Porto Alegre Globo 1962 171 2 Ibidem 172 J Ibidem 4Ibidem imensidade de relações sem medida sem regra sem consistência que os homens alteram e transformam continuamente trabalhando cem no destruíIas para um que se dedica a fixáIas a paz e a felicidade não passam para o homem no estado de natureza de um lampejo somente revelandose permanente a miséria que resulta de todas essas vicissitudes Pudessem seus sentimentos e idéias elevarse até ao amor da ordem e às sublimes noções da virtude e ainda lhe seria impossível realizar uma aplicação segura de seus princípios numa situação na qual não poderia discernir o bem do mal o homem honesto do perver so Como disse Rousseau em outra parte os homens conheciam a felici dade sem merecêIa Se há uma certa sociabilidade ela ainda é sufi cientemente fraca para permitir relações estáveis não há ainda a cons ciência dessas relações de modo a permitir o desenvolvimento da razão e da moralidade o discernimento do bem e do mal o que acontecerá com o estabelecimento do Estado e da sociedade civil E ao retornar à questão a respeito do surgimento da sociedade civil reaparece a dificuldade inicial a idéia de que dela fazemos provém da nossa própria experiência de vida em sociedade pois na verdade só começamos propriamente a tornarnos homens depois de ter sido cida dãos o percurso realizado aqui por Rousseau parece coincidir com aqueles por ele desenvolvidos em escritos como o Dlcurso sobre a orzcm da desigualdade entre os homens onde traça a evolução histórica da huma nidade o próprio Contrato social onde busca os princípios políticos capazes de estabelecer normas para o convívio dos homens em socie dade e do Emílio onde persegue o desenvolvimento e a humanização do indivíduo Segundo Vaughan7 o conteúdo das afirmações de Rousseau tanto no capítulo II do Manuscnto de Genebra quanto no capítulo VIII do livro I do Contrato social é o mesmo porém expresso em outras palavras De fato com efeito ainda parece ser mais enfática a posição rousseauniana no texto do Manuscnto quando ao finalizar o capítulo conclama os homens a procurar meios para remediar os males advindos do pacto social Em ambos os escritos é como se Rousseau estivesse procurando dar uma resposta convincente e consistente ao raciocinador violento que quer saber das vantagens de se entrar em sociedade 5 Idem 171 6 Ibidem 175 7 C E VAUGHI The Political Writings of JeanJacques Rousseau Introduction notes London Basil Blackwell Mott 1962 v I 4243 Vaughan parece ir um pouco mais além em suas análises afirmando que o contrato social mais do que historicamente improvável logicamente seria impossível inútil destrutivo uma vez que os con tratantes eram animais estúpidos e limitados8 Na opinião deste comentador a importação das teses do Controto e do estado de natureza em Rousseau nada acrescentaria ou retiraria da sua teoria do Direito bem fundamentada na livre subordinação da vontade individual à vontade geral Rousseau teria errado ao supor que esta subordinação pudesse sempre ser o resultado de um ato único e cons ciente muito mais o ato de homens que no momento de sua realização eram inteiramente indisciplinados e desumanizadosY Em outros termos Rousseau estava certo em sustentar que o estado civil de alguma forma é essencial à vida moral do homem para a existência até do mais rudimentar senso de justiça Estava errado ao assumir que ou o estado civil ou o senso de justiça pudesse mesmo ter originado em um único momento o que na verdade só foi possível com o lento passar do tempo 10 A esta interpretação de Vaughan de que a teoria rousseauniana do Estado é independente de sua concepção do estado de natureza um elemento secundário ou mesmo decorativo parece se opor Derathéll para quem tal visão não repousa sobre nenhum fundamento sólido Para este comentador há que se fazer uma leitura continuada em especial da primeira parte do Stçundo dúwrso ao livro I do Controto socifl onde Rousseau insistiu na oposição entre homem natural e homem civil para se verificar que a descrição do estado de natureza orienta sua concepção do Estado Derathé utilizase das próprias palavras de Rousseau retiradas do Stltndo chcltrso para justificar a insistência neste assunto se eu me estendi tão demoradamente sobre a suposição desta condição primitiva é que tendo antigos erros e preconceitos inveterados a destruir acreditei dever escavar até a raiz e mostrar no quadro do verdadeiro estado de natureza como a desigualdade mesmo natural está longe de ter neste estado tanta realidade e influência como o pretendem nossos escritores12 Segundo Derathé Rousseau não é um inovador pois as idéias de igual liberdade e independência do estado natural já estavam contidas na filosofia política de seus predecessores Pufendorf Burlamaqui e Locken Ibielem Idem 44 III Ibiclem ll R DERATHE Létat de Ia nature et Ia loi naturelle in IDEM JJ Rousseau et Ia science politique ele son temps Paris PUF 125171 12Ibielem 130 11 Ibielem A hipótese do estado de natureza é inseparível da teoria contratualista e a maneira pela qual é descrito tal estado determinará a forma de contrato Se todos os filósofos estão de acordo sobre o princípio da igualdade natural n50 obstante eles elaboram concepções diferentes da condição natural do homem e estas divergências explicam a maneira diferente pela qual formularam os próprios termos do contrato Para cada um deles a teoria do contrato depende estreitamente da idéia que eles fazem do estado de naturezaH Rousseau parece ter herdado a noção de estado natural de Pufendorf para quem esta adquire dois sentidos O primeiro sentido é o que opõe esta expressão ao que é civilizado o estado de natureza é a triste condição na qual se concebe que estaria reduzido o homem feito como é se estivesse abandonado a si mesmo ao nascer e destituído de todo o socorro de seus semelhantes Num sentido político opõese ao estado civil à sociedade civil o estado de natureza nesta acepção é aquele no qual se concebe os homens enquanto não tendo juntos outra relação moral a não ser aquela fundada sobre esta relação simples e universal que resulta da semelhança de sua natureza independentemente de toda convenção e todo ato humano que tenha sujeitado alguns a outros Assim é a independência que caracterizaria o estado de natureza segundo Pufendorf Desta noção de il1dlJ7il1dll1C1Í1decorrem uma con cepção de lbcrdflLfl I1tlfllm na qual cada um é mestre de si mesmo e lI7IdflLfi 11i7fllm onde todos são vistos como semelhantes sem relação de dominação entre si noções que deverão ser incorporadils de um outro modo no corpo político por ocasião do pacto sociill No entanto Rousseau distanciase da posição dos jurisconsultos tradi cionilis quando afirmil que il liberdade é um direito inalienível Segun do Derathé nem Grotius nem Pufendorf nem seus discípulos suspei tilm que existem direitos dos quais não é permitido ao homem de se despojar porque tais direitos são inseparáveis dil dignidilde humilna Com relação il isso não fazem nenhuma diferençil entre o direito de dispor de seus bens e a liberdade de dispor de SUil pessoil7 Desse modo ilssim como todo homem pode ceder il outro um bem ao qual lhe pertençil também os cidadãos enquanto corpo político podem ceder a um príncipe o direito de governtiIos Esta posição é inteiramente oposta à de Rousseau para quem eu posso alienar bens materiais mas não posso dispor de minhil liberdilde E também por anillogia o povo não pode dispor de sua soberania Se o direito à propriedade só aparece na soci edade civil a liberdade é um direito natural do homem não é suscetível lhidlm PIFFiDOHF citado pOl lkHTlIF op cil 125 1 lhidem R DFHATHE Jd HOIIS8IIl el Ia sielcl polilil1I1 de GI tlmps n2 de ser cedida por um pacto pois não há nada no mundo que possa para um homem ou para um povo compensar a perda de sua liberdade A liberdade em Rousseau aparece portanto como o mais valioso dos bens1H 11 Liberdade e vontade geral a obediência à lei Conciliar liberdade e autoridade esta parece ser a tarefa a que se propôs Rousseau Para ele importa que o Estado se constitua de tal forma que além de oferecer proteção e segurança garanta o exercício da liberdade E numa crítica à concepção de alienação sem reservas no pacto de Hobbes assim se expressa renunciar à própria liberdade é o mesmo que renunciar à qualidade de Humanidade inclusive aos seus deveres Não há nenhuma compensação possível para quem quer que renuncie a tudo Tal renúncia é incompatível com a natureza humana e é arrebatar toda moralidade a suas ações bem como subtrair toda liberdade à sua vontadelY Deste modo sendo a força e a liber dade de cada homem os primeiros instrumentos de sua conservação2u o problema do pacto que instaura o corpo político é colocado por Rousseau nestes termos encontrar uma forma de associação pela qual cada um unindose a todos não obedece entretanto a não ser a si mesmo e permanece tão livre como antes21 Tratase de transformar a liberdade natural limitada pelas forças do indivíduo pela liberda de civil que é limitada pela liberdade geral e a posse da proprie dade que só pode ser baseada num título positivo22 Ao contraporse à noção que afirma a existência de uma sociedade geral do gênero humano defendida por Diderot Rousseau23 pensará o estabelecimento do Estado como decorrente de uma associação volun tária entre homens A natureza desse corpo político é a de ser um artefato uma criação da razão humana por um ato de sua própria vontade isto é o resultado absolutamente diferente da natureza dos componentes individuais que o formaram Deste modo para serem livres no estado civil os homens devem obe decer a uma vontade do Estado que não lhes seja estranha nem coer citiva mas sua própria vontade tratase da vontade geral criada com lH Ibidem 373 19 JJ ROUSSEAU Du contrat social Paris Aubier 1943 I IV 73 20 Ibidem I VI 90 21 Ibidem 2 Ibidem I VIII 115 21 IDEM Manuscrito de Genebra 171178 o pacto social baseada no interesse comum Por este pacto cada um de nós põe em comum sua pessoa e toda a sua autoridade sob o supremo comando da vontade geral e recebemos em conjunto cada membro como parte indivisível do todo24 Neste pacto cada qual dandose a todos não se dá a ninguém e como não existe um associado sobre quem não se adquira o mesmo direito que lhe foi cedido ganhase o equivalente de tudo o que se perde e maior força para conservar o que se tem2S A este respeito assim se expressa Derathé o pacto comporta para todos os associados a obrigação de submeter a vontade particular que têm enquanto homens à vontade geral que têm enquanto cidadãos Mas uma tal obrigação bem longe de destruir ou de restringir a liber dade é a sua condição2ó Embora haja uma variedade de interpretações conf1itantes a respeito do tema da liberdade entre os comenta dores Rousseau a teria definido de uma maneira clara e precisa segundo Cassirer liberdade não é sinô nimo de arbitrário ao contrário este termo repele e exclui tudo o que o é Ele marca a submissão a uma lei severa inviolável que todo indivíduo se dá a si mesmo Não está no fato de se desviar desta lei de se destacar dela que reside o caráter verdadeiro essencial da liber dade mas sim no fato de a ela consentir livremente E é precisamente este caráter essencial da liberdade que deve ser realizado na vontade geral na vontade do Estado O Estado abarca o indivíduo em sua totalidade sem restrição nenhuma porém sua ação não é a de uma força coercitiva limitase a submeter o indivíduo a uma obrigação que ele próprio considera como justa e necessária e que portanto ele aceita tanto por si mesma como em seu interesse a ele27 É necessário assim que os homens se submetam à lei por eles mesmos criada através da intervenção da vontade geral para garantir sua liberdade e a liberdade do todo social A obediência d lei é liberdade a renúncia a este bem é incompatível com a natureza do homem2H A obediência à vontade geral é a única obrigação que se coloca aos associados do pacto Nas palavras do próprio Rousseau a fim de que não constitua um formulário inútil o pacto social contém tacitamen te esta obrigação a única a poder dar forças às outras quem se recusar 24 IDEM Du cnntrat social I VI 92 Ibidem R DERATHE JJ Rousseau et Ia science politique de son temps Paris PUF 1950 232 E CASSIRER Lunité chez Rousseau in IDEM Pensée de Rousseau Paris Seuil 1984 456 JJ RoessEAu Du contrat social I IV 73 a obedecer à vontade geral a isto será constrangido pelo corpo em conjunto o que apenas significa que será forçado a ser livre2Y Ao ingressar no corpo político o homem assume direitos e deveres é a união entre os membros do corpo que permitirá a liberdade civil e o desenvolvimento de todas as suas potencialidades Nâo se trata de ensinarme o que é a justiça mas sim de mostrarme que interesse tenho em ser justo 1D Com esta observação inscrita no verso da folha número sete do Mmllls aito Rousseau através de uma interpelação do raciocinador violento reafirma a necessidade de que o pacto social deve se constituir numa convenção vantajosa Ou seja não basta que o indivíduo conheça per feitamente as regras a que deve seguir para a promoção do bem de todos mas sobretudo que vantagens terá em associarse O homem será mais livre no pacto social do que no estado natural se no estado da natureza é independente e tem um direito ilimitado a tudo que o tenta e pode alcançarl no estado civil não apenas ganha a liberdade civil e o direito à propriedade mas a liberdade moral a única que torna o homem verdadeiramente senhor de si mesmo posto que o impulso apenas do apetite constitui a escravidão e a obediência à lei a si mesmo prescrita é liberdade2 Derathé seguindo o pensamento de Rousseau enfatiza a necessidade de não se confundir independência e liberdade e afirma se é certo que não se pode se tornar cidadão sem renunciar à sua independência natural é somente se colocando sob a suprema direção da vontade geral que os homens podem se tornar livres Eles ganham primeira mente a liberdade civil Mas esta não sendo em suma a não ser o equivalente da independência natural o pacto social nada faz senão restituirlhes sob uma outra forma um bem do qual eles já desfrutavam no estado de natureza Na medida em que a lei lhes preserva de toda dependência pessoal e os coloca ao abrigo das violências particulares Ibidem I VII 108 lU ImM Manuscrito de Genebra 174 ll IDEM Du contrat social I VIII 115 Ibidem os homens se encontram somente tão livres como antes Se eles são mais livres é porque é preciso acrescentar à aquisição do estado civil a liber dade moral a única que torna o homem verdadeiramente senhor de si Portanto mais do que conservar e proteger os cidadãos o pacto social deve garantir não apenas o exercício da liberdade civil mas permitir a aquisição da liberdade moral Derathéj destacará a importância deste conceito em Rousseau nestes termos a liberdade moral é o que há de mais precioso para o homem e o verdadeiro benefício que este retira da vida social Enquanto vive isolado e permanece abandonado a si mesmo o homem não conhece o bem nem o mal se não há de modo algum maldade em seu coração não há tampouco moralidade em suas ações seu ser moral não existe ainda ou ao menos não existe a não ser em potência Élhe necessário com efeito o socorro de seus semelhantes e mais ainda a disciplina salutar das leis para sair da infância da razão e se elevar à vida moral Assim se no estado natural o homem não conhece a moralidade mas apenas uma harmonia com o meio uma ociosidade que lhe traria uma certa sensação de bemestar é no convívio social que buscará aprimo ramento De fato Rousseau especialmente no texto do Contrato parece atribuir uma superioridade à vida social em detrimento da natural por haver permitido o desenvolvimento das capacidades humanas Tal estado civil seria completamente perfeito se não tivesse propiciado o aparecimento dos vícios e do mal decorrentes da eclosão das paixões humanas as quais é preciso refrear Mas mesmo assim Rousseau parece propenso a enaltecer o momento em que o homem deixou de ser um animal estúpido e limitado para se transformar num ser inteligente num homem A passagem do estado natural para o estado civil produz no homem uma mudança considerável substituindo em sua conduta a justiça ao instinto e dan do a suas ações a moralidade que antes lhe faltava É somente então que a voz do dever sucedendo ao impulso físico e o direito ao apetite que o homem tendo até aí olhado apenas para si mesmo vêse forçado a agir por outros princípios e a consultar sua razão antes de ouvir suas inclinações Embora se prive nesse estado de muitas vantagens obti das da natureza ganha outras tão grandes suas faculdades se exerci tam e se desenvolvem suas idéias se alargam seus sentimentos se enobrecem toda a sua alma se eleva a tal ponto que se os abusos desta 11 R DERATHÉ JJ Rousseau et Ia science poli tique de son temps 375 14 Ibidem 376 Ibidem Em nota importante Derathé reproduz fragmento inédito de Rousseau publicado por Vaughan Political Writings I 335 onde transparece o caráter social dos vícios e virtudes dos homens bem como de seu ser moral nova condição não o degradassem com freqüência a uma condição inferior àquela da qual saiu deveria abençoar incessantemente o ins tante feliz que dela o arrancou para sempre e fez de um animal estúpido e limitado um ser inteligente e um homem36 Graças à cons tituição da sociedade o ser humano pode conquistar não apenas a liberdade civil mas lutar por felicidade e virtude A este respeito assim se expressou Rousseau no Erníio fó Emílio onde está o homem que nada deva a seu país Quem quer que seja ele lhe deve o que há de mais precioso para o homem a moralidade de suas ações e o amor à virtude Nascido no fundo de um bosque teria vivido mais feliz e mais livre mas tendo a combater para seguir suas inclinações teria sido bom sem mérito não teria sido virtuoso e agora ele o sabe ser apesar de suas paixões A simples aparência de ordem levao a conhecêIa a amáIa O bem público que serve unicamente de pretexto aos outros é para ele um motivo real Ele aprende a combater a vencerse a sacrificar seu interesse ao interesse comum Não é verdade que não tire nenhum proveito das leis elas dão a coragem de ser justo entre os maus Não é verdade que não o tenham tornado livre elas lhe ensinaram a reinar sobre si mesmo 7 Afirmase aqui entre outras coisas uma importante função das leis dar aos homens a coragem de serem justos Em outro lugar no prefácio ao Narâio Rousseau bem adverte que a leis podem deter os maus mas jamais tornáIos bons38 Cumpre pois conservar os homens que ainda não se corromperam E neste ponto ao lembrar que tanto o vício como a virtude são noções coletivas que só nascem do convívio dos homens Rousseau entrevê uma nova função às ciências e às artes no meio social pensadas por ele primeiramente como causa do desenvolvimento dos vícios estas realizações humanas serviriam agora à finalidade de estancá los não se trata mais de levar os povos a agirem bem basta distraíIos de fazerem o mal Impõese ocupálos com bagatelas para desviálos das más ações em lugar de pregarlhe devese distraílos34 lIi RmssEAu Du contrat social I VIII 114 Ce passage de létat de nature à létat civil produit dans lhomme un changement tres remarquable en substituant dans sa conduite Ia justice à linstinct et donnant à ses actions Ia moralité qui Ieur manquoit auparavant Cest alors seulement que Ia voix du devoir succédant à lappétit Ihomme qui jusquelà navoit regardé que luimême se voit forcé dagir sur dautres principes et de consulter sa raison avant découter ses penchans QuoiquiI se prive dans cet état de plusieurs avantages quil tient de Ia nature iI en regagne de si grands ses facultés sexercent et se développent ses idées sétendent ses sentiments sennoblissent son âme toute entiere séleve à teI point que si les abus de cette nouvelle condition ne le dégradoient souvent audessous de celle dont il est sorti iI devroit bénir sans cesse linstant heureux que len arracha pour jamais et qui dun animal stupide et borné fit un être intelligent et un homme 7 IDEM Emílio São PauIolRio de Janeiro DifeI 1979 livro V 560561 lS IDEM Prefácio ao Narciso São Paulo Abril Cultural 1973 Coleção Os pensadoresv XXIV 433434 o JJ ROUSSEAUPrefácio ao Narciso 434435 Há portanto a valorização ainda assim do estado civil em que ao menos alguns homens podem conhecer a virtude e a verdade E caberia às ciências e às artes a tarefa de fazernos suportar a própria perda da virtude Nas próprias palavras de Rousseau as artes e as ciências depois de terem feito os vícios brotarem são necessárias para imped i los de se tornarem crimes cobrindoos de um verniz que não permite que o veneno se evapore tão livremente Destroem a virtude mas pre servam o seu simulacro público que sempre é uma bela coisa em seu lugar introduzem a polidez e a decência e substituem o temor de parecer mau pelo de parecer ridículo Rousseau aqui de uma outra perspectiva que de certa forma ilustra as idéias contidas no COIlmo e também as do St1I1do dcurso traça um perfil sombrio a respeito da sociedade de seu tempo pedindonos suportar a própria perda da virtude e procurar conter o mal aceitando a flptlrllIClíl di ordilll Em nota bastante escarecedora a esse respeito do próprio Rousseau lêse ainda esse simulacro da virtude consiste numa certa doçura de costumes que algumas vezes substitui a sua pureza uma certa aparln cia de ordem que previne a tremenda confusão uma certa admiraçlo pelas belas coisas que impede as boas de caírem inteiramente no esque cimento É o vício que toma a máscara da virtude não como a hipocri sia para enganar e trair mas para sob essa efígie amivel e sagrada afastar o horror que tem de si mesmo quando se contempla nul De algum modo estas considerações de Rousseau nos remetem às reflexões de Iufendorf quando este ao estabelecer a relação entre en tendimento e ontade na determinação dos princípios da ação moral afirma que só se deseja o que se conhece2 como sendo algo de bom Iortanto se o homem desconhece o que é a virtude e é mau não iri desejéila Tal poSturél parece remontar à tradição racionalista de Sócrates segundo a qual a origem do mal esti na ignorância e o seu combate é o autoconhecimento primeiro passo para se instaurar a justiça na cidade Muito mais do que a mera aceitação de uma aparência de virtude o que Rousseau parece querer nos propor enfim é que o homem realizando o domínio de si e agindo em concerto com seus pares pela obediência às leis resultantes da vontade geral possa imprimir uma crescente bondade e justiça em suas ações e deste modo atingir um nível SUPl rim de liberdade Ihicell 435 11 Ihidell S PITElOiF Le cmil de Ia lIallle 11 ce 111 Amsterdam 1712 li I chap lI I p38 onde afirma que 011 111 di qlle e qll II 11oil As reflexões empreendidas sobre o tema em questão permitiram situar a liberdmldentro do pensamento político de Rousseau como característica essencialmente humana diferenciandoa da simples independência que prevalecia no hipotético estado de natureza Ser livre em Rousseau não é de modo algum voluntarismo além de um direito inalienável é também um dever de obediência à lei que expressa a vontade geral Ser livre é desenvolver capacidades e potencialidades razão ciência arte convívio social bem como exercer um controle sobre instintos e paixões Vivese hoje em grande medida o que Rousseau já dissera há dois séculos a falta de sentido do que seja a virtude o aumento da corrupção entre os homens o predomínio de um modus llilltlltli que privilegia a aparência a imersão do homem na obscuridade do mundo privado a exacerbação da violência diante das imensas desigualdades sociais Era preciso que todos os homens fossem proprietários e que ninguém tivesse bens em demasia alertounos Rousseau O homem na verdade ainda hoje nasce livre e por toda a parte encontrase acorrentado Libertarse dos grilhões mais do que nunca é necessário CASSIRER E et alli Pensée de ROIISSetlll Paris Seuil 1984 Coleção Os pensadores São Paulo Abril Cultural 1973 v XXIV Rousseau DERATHÉ R lj ROIISSCflIlet Ia soénce pollúllle de son tel1lps Paris PUF 1950 PUFENDORF S Le drOl de Ia Ilature et des gells 011lstêl1leIlàa des prillojJes es pIIS illportrlllts de Ia Mome de a jlldprudence et a Poitique Trad de Jean Barbeyrac Amsterdam 21712 livr I ROUSSEAU JJ Du ccmtmt socia Paris Aubier 1943 El1líIÓSão PauloRio de Janeiro Difel 1979 Manuscrito de Genebra ill Obras poítkas Porto Alegre Globo 1962 VAUGHAN C E Tlte poitim lInfillgs olellljacqlles ROIISSCflUIntroduction notes London Basil Blackwell Mott Ud 1962 v 1 Endereço do Autor Av Doutor Saul de Carvalho 368 3H30000 ltuiutaba MG