Texto de pré-visualização
Título do original francês Introduction à la littérature fantastique Editions du Seuil Paris 2ª edição Direitos em língua portuguesa reservados à EDITORA PERSPECTIVA SA Avenida Brigadeiro Luís Antônio 3025 01401 São Paulo SP Brasil Telefones 88583888856878 1992 2 DEFINIÇÃO DO FANTÁSTICO Primeira definição do fantástico A opinião dos predecessores O fantástico em Le Manuscrit trouvé à Saragosse Segunda definição do fantástico mais explícita e mais precisa Outras definições afastadas Um exemplo singular do fantástico Aurélia de Nerval Alvare a personagem principal do livro de Cazotte Le Diable amoureux vive há meses com um ser do sexo feminino que ele acredita ser um mau espírito o diabo ou um de seus subordinados O modo como este ser apareceu indica claramente que se trata de um repre sentante do outro mundo mas seu comportamento especificamente humano e mais ainda feminino os ferimentos reais que recebe parecem ao contrário provar que se trata simplesmente de uma mulher e de uma mulher que ama Quando Alvare lhe pergunta de onde vem Biondetta responde Sou Sílfide de origem e uma das mais notáveis entre elas p 198 Mas as Sílfides existem Eu não compreendia nada do que estava ouvindo continua Alvare Mas o que é que havia de compreensível em minha aventura Tudo isso me parece um sonho dizia a mim mesmo mas será a vida humana outra coisa Sonho mais extraordinariamente que os outros e eis tudo Onde está o possível Onde está o impossível pp 200201 Assim Alvare hesita e pergunta a si mesmo e o leitor com ele se o que lhe está acontecendo é verdadeiro se o que o cerca é de fato realidade neste caso as Sílfides existem ou então se se trata simplesmente de uma ilusão que toma aqui a forma do sonho Alvare é levado mais tarde a dormir com esta mesma mulher que talvez seja o diabo e assustado por esta idéia se interroga de novo Terei dormido serei bastante feliz para que tudo não tenha passado de um sonho p 274 Sua mãe pensa do mesmo modo Você sonhou esta propriedade e todos os seus habitantes p 281 A ambigüidade se mantém até o fim da aventura realidade ou sonho verdade ou ilusão Somos assim transportados ao âmago do fantástico Num mundo que é exatamente o nosso aquele que conhecemos sem diabos sílfides nem vampiros produzse um acontecimento que não pode ser explicado pelas leis deste mesmo mundo familiar Aquele que o percebe deve optar por uma das duas soluções possíveis ou se trata de uma ilusão dos sentidos de um produto da imaginação e nesse caso as leis do mundo continuam a ser o que são ou então o acontecimento realmente ocorreu é parte integrante da realidade mas nesse caso esta realidade é regida por leis desconhecidas para nós Ou o diabo é uma ilusão um ser imaginário ou então existe realmente exatamente como os outros seres vivos com a ressalva de que raramente o encontramos O fantástico ocorre nesta incerteza ao escolher uma ou outra resposta deixase o fantástico para se entrar num gênero vizinho o estranho ou o maravilhoso O fantástico é a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais face a um acontecimento aparentemente sobrenatural O conceito de fantástico se define pois com relação aos de real e imaginário e estes últimos merecem mais do que uma simples menção Mas reservamos sua discussão para o último capítulo deste estudo Será uma definição dessa natureza ao menos original Podemos encontrála ainda que formulada diferentemente já no século XIX Inicialmente na obra do filósofo e místico russo Vladimir Soloviov No verdadeiro fantástico fica sempre preservada a possibilidade exterior e formal de uma explicação simples dos fenômenos mas ao mesmo tempo esta explicação é completamente privada de probabilidade interna citado por Tomachévski p 288 Há um fenômeno estranho que se pode explicar de duas maneiras por meio de causas de tipo natural e sobrenatural A possibilidade de se hesitar entre os dois criou o efeito fantástico Alguns anos mais tarde um autor inglês especializado em histórias de fantasmas Montague Rhodes James retoma quase os mesmos termos Às vezes é necessário ter uma porta de saída para uma explicação natural mas deveria acrescentar que esta porta seja bastante estreita para que não se possa usála p VI Novamente pois duas soluções são possíveis Eis ainda um exemplo alemão e mais recente O herói sente contínua e distintamente a contradição entre os dois mundos o do real e o do fantástico e ele próprio fica espantado diante das coisas extraordinárias que o cercam Olga Reimann Esta lista poderia se alongar indefinidamente Notemos entretanto uma diferença entre as duas primeiras definições e a terceira naquelas cabe ao leitor hesitar entre as duas possibilidades nesta à personagem voltaremos a isso logo É preciso ainda observar que as definições do fantástico que se encontram na França em escritos recentes se não são idênticas à nossa tampouco a contradizem Sem mais delongas daremos alguns exemplos extraídos dos textos canônicos Castex escreve em Le Conte fantastique en France O fantástico se caracteriza por uma intromissão brutal do mistério no quadro da vida real p 8 Louis Vax em LArt et la Littérature fantastiques A narrativa fantástica gosta de nos apresentar habitando o mundo real em que nos achamos homens como nós colocados subitamente em presença do inexplicável p 5 Roger Caillois em Au Coeur du fantastique Todo o fantástico é ruptura da ordem estabelecida irrupção do inadmissível no seio da inalterável legalidade cotidiana p 161 Vemos que estas três definições são intencionalmente ou não paráfrases uma da outra há de cada vez o mistério o inexplicável o inadmissível que se introduz na vida real ou no mundo real ou ainda na inalterável legalidade cotidiana Estas definições encontramse globalmente incluídas naquela proposta pelos primeiros autores citados e que já implicava a existência de acontecimentos de duas ordens os do mundo natural e os do mundo sobrenatural mas a definição de Soloviov James etc assinalava além disso a possibilidade de fornecer duas explicações ao acontecimento sobrenatural e em consequência o fato de que alguém devesse escolher entre ambas Era pois mais sugestiva mais rica a que nós próprios demos dela se origina Além disso enfatiza o caráter diferencial do fantástico como linha de separação entre o estranho e o maravilhoso em vez de transformálo numa substância como fazem Castex Caillois etc De uma forma mais geral é preciso dizer que um gênero se define sempre em relação aos gêneros que lhe são vizinhos limites do fantástico Mas a definição carece ainda de clareza e é aqui que devemos ir mais além do que nossos predecessores Como já foi observado não se dissera claramente se cabia ao leitor ou à personagem hesitar nem quais as nuances da hesitação Le Diable amoureux oferece matéria muito pobre para uma análise mais desenvolvida só por instantes a hesitação a dúvida aí nos preocupam Recorreremos pois a um outro livro escrito uns vinte anos mais tarde e que nos permitirá levantar um número maior de perguntas um livro que inaugura magistralmente a época da narrativa fantástica Le Manuscrit trouvé à Saragosse de Jan Potocki Uma série de acontecimentos nos é inicialmente relatada na qual nenhum dos quais tomado isoladamente contradiz as leis da natureza tais como a experiência nos ensinou a conhecêlas mas sua acumulação desde logo causa problemas Alphonse van Worden herói e narrador do livro atravessa as montanhas da Sierra Morena De repente seu zagal Moschito desaparece algumas horas mais tarde desaparece também o criado Lopez Os habitantes do lugar afirmam que a região é assombrada por almas do outro mundo dois bandidos recentemente enforcados Alphonse chega a um albergue abandonado e se prepara para dormir mas à primeira badalada da meianoite uma bela negra seminua segurando um archote em cada mão p 56 entra no quarto e o convida a seguila Ela o conduz até uma sala subterrânea onde o recebem duas jovens irmãs belas e vestidas ligeiramente Oferecemlhe comida e bebida Alphonse experimenta sensações estranhas e uma dúvida nasce em seu espírito Eu não sabia mais se estava com mulheres ou com insidiosos demônios p 58 Elas lhe contam em seguida sua vida e revelam ser suas próprias primas Mas ao primeiro canto do galo a narrativa é interrompida e Alphonse se lembra de que como se sabe as almas do outro mundo só têm poder da meianoite até o primeiro canto do galo p 55 Tudo isso é evidente não se origina propriamente das leis da natureza tais como são conhecidas No máximo podese dizer que são acontecimentos estranhos coincidências insólitas O passo seguinte é decisivo ocorre um acontecimento que a razão não pode mais explicar Alphonse vai para o leito as duas irmãs reúnemse a ele ou talvez ele esteja apenas sonhando mas uma coisa é certa quando acorda não está mais numa cama não está mais numa sala subterrânea Vi o céu Vi que estava ao ar livre Eu estava deitado sob o cadafalso de Los Hermanos Os cadáveres dos dois irmãos de Zoto não estavam mais pendurados na forca estavam deitados ao meu lado p 68 Eis pois um primeiro acontecimento sobrenatural duas belas moças transformadas em cadáveres putrefatos Alphonse entretanto não se acha ainda convencido da existência de forças sobrenaturais o que teria suprimido qualquer hesitação e colocado um fim ao fantástico Ele procura um lugar onde passar a noite e chega à cabana de um eremita aí encontra um possesso Pascheco que lhe conta sua história mas uma história que se parece estranhamente à de Alphonse Pascheco dormira uma noite no mesmo albergue desce até uma sala subterrânea e passara a noite numa cama com as duas irmãs na manhã seguinte acordara sob o cadafalso entre dois cadáveres Esta semelhança põe Alphonse de sobreaviso Por isso diz mais tarde ao eremita que não acredita em almas do outro mundo e dá uma explicação natural para os males de Pascheco Interpreta de igual modo suas próprias aventuras Não tinha dúvidas de que minhas primas fossem mulheres de carne e osso Tinha consciência disso através de não sei que sentimento mais forte do que tudo o que me tinham dito a respeito do poder dos demônios Quanto à peça que me haviam pregado de me colocarem sob o patíbulo estava bastante indignado pp 9899 Admitamos Mas novos acontecimentos vão reavivar as dúvidas de Alphonse Volta a encontrar suas primas numa gruta e uma noite elas vêm até o seu leito Estão prestes a arrancar seus cintos de castidade mas para isso é preciso que o próprio Alphonse se despoje de uma relíquia cristã que mantém em volta do pescoço no lugar desta uma das irmãs coloca uma trança de seus cabelos Mal se apaziguaram os primeiros transportes de amor escutase a primeira pancada da meianoite Um homem entra no quarto expulsa as irmãs e ameaça Alphonse de morte obrigao em seguida a tomar uma beberagem Na manhã seguinte Alphonse desperta como bem se pode imaginar sob o cadafalso ao lado dos cadáveres em volta de seu pescoço não está mais a trança de cabelos mas uma corda de enforcado Voltando ao albergue da primeira noite descobre subitamente entre as tábuas do soalho a relíquia que lhe haviam tirado na gruta Não sabia mais o que fazia Pusme a imaginar que realmente não tinha saído daquele infeliz cabaré e que o eremita o inquisidor cf mais adiante e os irmãos de Zoto eram igualmente fantasmas produzidos por efeito de magia pp 142143 Como que para inclinar de novo a balança encontra logo Pascheco que havia entrevisto durante sua última aventura noturna e que lhe dá uma versão inteiramente diferente da cena Essas duas jovens criaturas depois de lhe terem feito algumas carícias tiraram de seu pescoço uma relíquia que ali estava e a partir desse momento perderam a beleza a meus olhos e reconheci nelas os dois enforcados do vale Los Hermanos Mas o jovem cavaleiro tomandoas sempre por pessoas atraentes prodigalizoulhes os mais ternos nomes Então um dos enforcados tirou do pescoço a corda e a colocou no do cavaleiro que lhe testemunhou seu reconhecimento com novas carícias Enfim fecharam a cortina e não sei o que fizeram então mas penso que tenha sido algum pecado horrível p 145 No que acreditar Alphonse sabe muito bem que passou a noite com duas mulheres amorosas mas e o despertar sob o cadafalso e a corda em torno do pescoço e a relíquia no albergue e a história de Pascheco A incerteza a hesitação chegam ao auge Reforçadas pelo fato de que outras personagens sugerem a Alphonse uma explicação sobrenatural das aventuras Assim o inquisidor que num dado momento deterá Alphonse e o ameaçará com torturas perguntalhe Conheces duas princesas de Túnis Ou antes duas infames feiticeirasvampiros exe cráveis e a encarnação de demônios p 100 E mais tarde Rebecca a hospedeira de Alphonse lhe dirá Nós sabemos que são dois demônios fêmeas e que seus nomes são Emina e Zibeddé p 159 Sozinho durante alguns dias Alphonse sente ainda uma vez as forças da razão lhe voltarem Quer encontrar para os acontecimentos uma explicação realista Lembreime então de algumas palavras que escaparam a Don Emmanuel de Sa governador desta cidade as quais me fizeram pensar que não lhe era de todo estranha a misteriosa existência dos Gomélez Fora ele quem me dera os dois criados Lopez e Moschito Pus na cabeça que tinha sido por ordem sua que me deixaram à entrada funesta de Los Hermanos Minhas primas e a própria Rebecca frequentemente tinham me dado a entender que estavam querendo me colocar à prova Talvez me tivessem dado uma beberagem para que eu adormecesse e depois nada mais fácil que me transportar durante o sono para o fatal cadafalso Pascheco poderia ter perdido um olho em um acidente completamente diferente de sua ligação amorosa com os dois enforcados e sua assustadora história poderia ter sido um conto O ermitão que tinha procurado constantemente descobrir meu segredo era com certeza um agente dos Gomélez que queria pôr a prova minha discrição Enfim Rebecca seu irmão Zoto e o chefe dos boêmios toda essa gente estava talvez mancomunada para experimentar minha coragem p 227 Nem por isso o debate resolveuse pequenos incidentes vão fazer de novo com que Alphonse se encaminhe para uma solução sobrenatural Vê pela janela duas mulheres que lhe parecem ser as famosas irmãs mas ao se aproximar descobre rostos desconhecidos Lê em seguida uma história de diabo que se parece tanto com a sua que confessa Cheguei quase a acreditar que os demônios tinham para me enganar animado os corpos dos enforcados p 173 Cheguei quase a acreditar eis a fórmula que resume o espírito do fantástico A fé absoluta como a incredulidade total nos levam para fora do fantástico é a hesitação que lhe dá vida Quem hesita nesta história Vemos imediatamente Alphonse isto é o herói a personagem É ele quem ao longo de toda a intriga terá que escolher entre duas interpretações Mas se o leitor fosse alertado sobre a verdade se soubesse em que terreno está pisando a situação seria completamente diferente O fantástico implica pois uma integração do leitor no mundo das personagens definese pela percepção ambígua que tem o próprio leitor dos acontecimentos narrados É necessário desde já esclarecer que assim falando temos em vista não este ou aquele leitor particular real mas uma função de leitor implícita no texto do mesmo modo que nele achase implícita a noção do narrador A percepção desse leitor implícito está inscrita no texto com a mesma precisão com que o estão os movimentos das personagens A hesitação do leitor é pois a primeira condição do fantástico Mas será necessário que o leitor se identifique com uma personagem particular como em Le Diable amoureux e no Manuscrit ou seja será necessário que a hesitação seja representada no interior da obra A maior parte das obras que preenchem a primeira condição satisfazem igualmente a segunda existem todavia exceções assim em Véra de Villiers de lIsleAdam O leitor neste caso se interroga sobre a ressurreição da mulher do conde fenômeno que contradiz as leis da natureza mas parece confirmado por uma série de indícios secundários Ora nenhuma personagem compartilha esta hesitação nem o conde dAthol que crê firmemente na segunda vida de Véra nem mesmo o velho servidor Raymond O leitor não se identifica pois com qualquer personagem e a hesitação não está representada no texto Diremos que se trata com esta regra de identificação de uma condição facultativa do fantástico este pode existir sem satisfazêla mas a maior parte das obras fantásticas submetese a ela Quando o leitor sai do mundo das personagens e volta à sua prática própria a de um leitor um novo perigo ameaça o fantástico Perigo que se situa ao nível da interpretação do texto Existem narrativas que contêm elementos sobrenaturais sem que o leitor jamais se interrogue sobre sua natureza sabendo perfeitamente que não deve tomálos ao pé da letra Se animais falam nenhuma dúvida nos assalta o espírito sabemos que as palavras do texto devem ser tomadas num outro sentido que se chama alegórico Situação inversa se observa relativamente à poesia O texto poético poderia ser freqüentemente julgado fantástico se ao menos se exigisse que a poesia fosse representativa Mas a questão não se coloca se é dito por exemplo que o eu poético voa pelos ares isto é apenas uma seqüência verbal a ser tomada como tal sem pretender ir além das palavras O fantástico implica portanto não apenas a existência de um acontecimento estranho que provoca hesitação no leitor e no herói mas também numa maneira de ler que se pode por ora definir negativamente não deve ser nem poética nem alegórica Se voltamos ao Manuscrit vemos que esta exigência achase aí igualmente preenchida por um lado nada nos permite dar imediatamente uma interpretação alegórica aos acontecimentos sobrenaturais evocados por outro esses acontecimentos são perfeitamente dados como tais devemos imaginálos e não considerar as palavras que os designam exclusivamente como uma combinação de unidades lingüísticas Podese ressaltar nesta frase de Roger Caillois uma indicação quanto a esta propriedade do texto fantástico Esta espécie de imagens se situa no próprio cerne do fantástico a meio caminho entre aquilo que me ocorreu chamar imagens infinitas e imagens limitadas As primeiras procuram por princípio a incoerência e recusam intencionalmente qualquer significação As segundas traduzem textos precisos em símbolos que um dicionário apropriado reconverte termo por termo em discursos correspondentes p 172 Estamos agora em condições de precisar e completar nossa definição do fantástico Este exige que três condições sejam preenchidas Primeiro é preciso que o texto obrigue o leitor a considerar o mundo das personagens como um mundo de criaturas vivas e a hesitar entre uma explicação natural e uma explicação sobrenatural dos acontecimentos evocados A seguir esta hesitação pode ser igualmente experimentada por uma personagem desta forma o papel do leitor é por assim dizer confiado a uma personagem e ao mesmo tempo a hesitação encontrase representada tornase um dos temas da obra no caso de uma leitura ingênua o leitor real se identifica com a personagem Enfim é importante que o leitor adote uma certa atitude para com o texto ele recusará tanto a interpretação alegórica quanto a interpretação poética Estas três exigências não têm valor igual A primeira e a terceira constituem verdadeiramente o gênero a segunda pode não ser satisfeita Entretanto a maior parte dos exemplos preenchem as três condições Como essas três características se inscrevem no modelo da obra tal como o expúsemos resumidamente no capítulo precedente A primeira condição nos remete ao aspecto verbal do texto mais exatamente ao que se chama visões o fantástico é um caso particular da categoria mais geral da visão ambígua A segunda condição é mais complexa ela se prende por um lado ao aspecto sintático na medida em que implica a existência de um tipo formal de unidades que se referem à apreciação feita pelas personagens sobre os acontecimentos da narrativa estas unidades poderiam se chamar as reações por oposição às ações que formam habitualmente a trama da história Por outro lado ela se refere ao aspecto semântico já que se trata de um tema representado o da percepção e sua notação Enfim a terceira condição tem um caráter mais geral e transcende a divisão em aspectos tratase de uma escolha entre vários modos e níveis de leitura Nossa definição pode ser tida agora como suficientemente explícita Para justificála plenamente comparemola de novo a algumas outras definições desta vez definições com as quais caberá ver não mais em que ela se lhes assemelha mas em que difere De um ponto de vista sistemático podese partir dos muitos sentidos da palavra fantástico Tomemos inicialmente o sentido que ainda que raramente enunciado vem primeiro ao espírito é aquele do dicionário nos textos fantásticos o autor relata acontecimentos que não são suscetíveis de acontecer na vida se nos prendemos aos conhecimentos comuns de cada época no tocante ao que pode ou não pode acontecer assim no Petit Larousse onde entram seres sobrenaturais contos fantásticos Podese com efeito classificar como sobrenaturais os acontecimentos mas o sobrenatural mesmo sendo uma categoria literária não é aqui pertinente Não se pode conceber um gênero que reagrupasse todas as obras onde intervenha o sobrenatural e que por esta circunstância devesse acolher tanto Homero quanto Shakespeare Cervantes quanto Goethe O sobrenatural não caracteriza exatamente as obras sua extensão é grande demais Uma outra atitude bem mais difundida entre os teóricos consiste em se colocar para situar o fantástico no leitor não o leitor implícito no texto mas o leitor real Tomaremos como representante desta tendência H P Lovecraft ele próprio autor de histórias fantásticas e que dedicou ao sobrenatural em literatura uma obra teórica Para Lovecraft o critério do fantástico não se situa na obra mas na experiência particular do leitor e esta experiência deve ser o medo A atmosfera é a coisa mais importante pois o critério definitivo de autenticidade do fantástico não é a estrutura da intriga mas a criação de uma impressão específica Eis por que devemos julgar o conto fantástico não tanto em relação às intenções do autor e os mecanismos da intriga mas em função da intensidade emocional que ele provoca Um conto é fantástico muito simplesmente se o leitor experimenta profundamente um sentimento de temor e de terror a presença de mundos e poderes insólitos p 16 Este sentimento de medo ou de perplexidade é freqüentemente invocado pelos teóricos do fantástico mesmo que a dupla explicação possível permaneça a seus olhos a condição necessária do gênero Assim escreve Peter Penzoldt Com exceção do conto de fadas todas as histórias sobrenaturais são histórias de medo que nos obrigam a perguntar se o que se crê ser pura imaginação não é no final das contas realidade p 9 Caillois propõe também como pedra de toque do fantástico a irredutível impressão de estranheza p 30 É surpreendente encontrar ainda hoje esses juízos na pena de críticos sérios Se tomarmos suas declarações literalmente e que o sentimento de medo deva ser encontrado no leitor seria preciso deduzir daí é este o pensamento de nossos autores que o gênero de uma obra depende do sanguefrio do leitor Procurar o sentimento de medo nas personagens não permite delimitar melhor o gênero em primeiro lugar os contos de fada podem ser histórias de medo como os contos de Perrault contrariamente ao que deles diz Penzoldt por outro lado há narrativas fantásticas nas quais todo medo está ausente pensemos em textos tão diferentes quanto A Princesa Brambilla de Hoffmann e Véra de Villiers de lIsleAdam O medo está freqüentemente ligado ao fantástico mas não como condição necessária Por mais estranho que isto pareça procurouse igualmente situar o critério do fantástico no próprio autor da narrativa Encontramos de novo exemplos disto em Caillois que decididamente não tem medo das contradições Eis como Caillois faz reviver a imagem romântica do poeta inspirado É necessário ao fantástico alguma coisa de involuntário de sofrido uma interrogação inquieta não menos que inquietante surgida improvisadamente de não se sabe que trevas que seu autor viuse obrigado a tomar como veio p 46 ou ainda Uma vez mais o fantástico que não provenha de uma intenção deliberada de desconcertar mas que parece jorrar independentemente do autor da obra quando não à sua revelia prova ser o mais persuasivo p 169 Os argumentos contra esta intentional fallacy são hoje conhecidos demais para serem reformulados Ainda menos atenção merecem outras tentativas de definição que freqüentemente se aplicam a textos que não são de forma alguma fantásticos Assim não é possível definir o fantástico como oposto à reprodução fiel da realidade ao naturalismo Nem como o fez Marcel Schneider em La Littérature fantastique en France O fantástico explora o espaço interior tem uma estreita relação com a imaginação a angústia de viver e a esperança de salvação pp 148149 O Manuscrit trouvé à Saragosse nos forneceu um exemplo de hesitação entre o real e digamos o ilusório perguntavase se o que se via não seria fraude ou erro da percepção Em outros termos duvidavase da interpretação a ser dada a acontecimentos perceptíveis Existe uma outra variedade do fantástico em que a hesitação se situa entre o real e o imaginário No primeiro caso duvidavase não de que os acontecimentos tivessem sucedido mas de que nossa compreensão tivesse sido exata No segundo perguntase se o que acreditamos perceber não é de fato fruto da imaginação Distingo com dificuldade o que vejo com os olhos da realidade daquilo que vê minha imaginação diz uma personagem de Achim dArnim p 222 Este erro pode ser causado por muitas razões que examinaremos mais adiante damos aqui um exemplo característico em que é atribuído à loucura A Princesa Brambilla de Hoffmann Acontecimentos estranhos e incompreensíveis sobrevêm na vida do pobre ator Giglio Fava durante o carnaval de Roma Acredita que se transforma num príncipe se apaixona por uma princesa e passa por aventuras incríveis Ora a maior parte dos que o cercam lhe asseguram que nada disso é verdadeiro mas que ele Giglio ficou louco É o que pretende signor Pasquale Signor Giglio eu sei o que lhe aconteceu Roma inteira sabe o senhor foi forçado a deixar o teatro porque seu cérebro se desarranjou t III p 27 Por vezes o próprio Giglio duvida de sua razão Ele estava mesmo prestes a pensar que signor Pasquale e mestre Bescapi estavam certos ao creditálo um pouco pancada p 42 Assim Giglio e o leitor implícito é mantido na dúvida ignorando se o que o cerca é ou não produto da imaginação A este processo simples e muito frequente podese opor um outro que parece ser bem mais raro e no qual a loucura é de novo utilizada mas de uma maneira diferente para criar a ambigüidade necessária Pensamos em Aurélia de Nerval Este livro narra como se sabe as visões de uma personagem durante um período de loucura A narrativa é feita na primeira pessoa mas o eu cobre aparentemente duas pessoas distintas a da personagem que percebe mundos desconhecidos ela vive no passado e a do narrador que transcreve as impressões da primeira e vive no presente À primeira vista o fantástico não existe aqui nem para a personagem que considera suas visões não como devidas à loucura mas como uma imagem mais lúcida do mundo achase pois no maravilhoso nem para o narrador que sabe que elas se devem à loucura ou ao sonho não à realidade de seu ponto de vista a narrativa se liga simplesmente ao estranho Mas o texto não funciona assim Nerval recria a ambigüidade em outro nível onde não a esperávamos e Aurélia permanece uma história fantástica Primeiro a personagem não está completamente certa quanto à interpretação que deve dar aos fatos acredita por vezes também ela em sua loucura mas não chega nunca à certeza Compreendi vendome entre os alienados que até então tudo para mim não passara de ilusão Todavia as promessas que eu atribuía à deusa Ísis pareciam realizarse por uma série de provas pelas quais eu estava destinado a passar p 301 Ao mesmo tempo o narrador não está seguro de que tudo o que a personagem viveu se deva à ilusão insiste mesmo sobre a verdade de certos fatos narrados Informeime fora ninguém tinha escutado nada E no entanto estou até agora seguro de que o grito fora real e de que ecoara no ar dos seres vivos p 281 A ambigüidade prendese também ao emprego de dois procedimentos de escritura que penetram todo o texto Nerval utilizaos habitualmente juntos chamamse eles o imperfeito e a modalização Esta última consiste lembremolo em usar certas locuções introdutivas que sem mudar o sentido da frase modificam a relação entre o 43 sujeito da enunciação e o enunciado Por exemplo as duas frases Chove lá fora e Talvez chova lá fora referemse ao mesmo fato mas a segunda indica além disso a incerteza em que se encontra o sujeito que fala quanto à verdade da frase que enuncia O imperfeito tem um sentido semelhante se digo Amava Aurélia não especifico se ainda a amo ou não a continuidade é possível mas em regra geral pouco provável Ora todo o texto de Aurélia achase impregnado desses dois procedimentos Poderíamos citar páginas inteiras em apoio à nossa afirmação Eis alguns exemplos tomados ao acaso Pareciame que entrava numa moradia conhecida Uma velha criada que eu chamava de Marguerite e que me parecia conhecer desde a infância me disse E eu tinha a impressão de que a alma de meu antepassado estava naquele pássaro Acreditei cair num abismo que atravessava o globo Sentiame levado sem sofrimento por uma correnteza de metal fundido Tive a sensação de que essas correntes eram compostas de almas vivas em estado molecular Tornavase claro para mim que os antepassados tomavam a forma de certos animais para nos visitar na terra pp 259260 o grifo é meu etc Se essas locuções estivessem ausentes estaríamos mergulhados no mundo do maravilhoso sem qualquer ligação com a realidade cotidiana habitual por meio delas somos mantidos nos dois mundos ao mesmo tempo O imperfeito além do mais introduz uma distância entre a personagem e o narrador de tal modo que não conhecemos a posição deste último Por uma série de incisos o narrador guarda distância em relação aos outros homens ao homem normal ou mais exatamente ao emprego corrente de certas palavras em certo sentido a linguagem é o tema principal de Aurélia Recuperando aquilo que os homens chamam de razão escreve ele em algum lugar E em outro Mas parece que era uma ilusão de minha vista p 265 Ou ainda Minhas ações aparentemente insensatas estavam submetidas ao que se chama de ilusão segundo a razão humana p 256 Admiremos esta frase as ações são 44 insensatas referência ao natural mas apenas aparentemente referência ao sobrenatural elas estão submetidas à ilusão referência ao natural ou antes não àquilo que se chama ilusão referência ao sobrenatural além do mais o imperfeito significa que não é o narrador presente que assim pensa mas a personagem de outrora E ainda esta frase resumo de toda a ambigüidade de Aurélia Uma série de visões insensatas talvez p 257 O narrador guarda assim distância em relação ao homem normal e se aproxima da personagem a certeza de que se trata de loucura cede lugar à dúvida ao mesmo tempo Ora o narrador vai mais longe retomará abertamente a tese da personagem segundo a qual loucura e sonho são apenas uma razão superior Eis aqui o que a respeito dizia a personagem p 226 As narrativas daqueles que me tinham visto assim me causavam uma espécie de irritação quando eu via que se atribuíam à aberração do espírito os movimentos ou as palavras coincidentes com as diversas fases daquilo que constituía para mim uma série de acontecimentos lógicos ao que responde a frase de Edgar Poe A ciência não nos mostrou ainda se a loucura é ou não o sublime da inteligência H G S p 95 E ainda Com a idéia formada por mim a respeito do sonho como algo que abria ao homem uma comunicação com o mundo dos espíritos esperava p 290 Mas eis como fala o narrador Vou tentar transcrever as impressões de uma longa doença inteiramente passada nos mistérios de meu espírito e não sei por que me sirvo do termo doença pois jamais no que me concerne me senti tão bem Às vezes acreditava duplicadas minha força e atividade a imaginação me trazia delícias infinitas pp 251252 Ou ainda Seja como for creio que a imaginação humana nada inventou que não seja verdadeiro neste mundo ou nos outros e não podia duvidar daquilo que tinha visto tão distintamente p 276 Nestes dois trechos o narrador parece declarar abertamente que o que viu durante sua pretensa loucura é apenas parte da realidade que portanto nunca esteve doente Mas se cada uma das passagens começa no presente a última proposição está de novo no imperfeito e reintroduz a ambigüidade na percepção do leitor O exemplo inverso se encontra nas últimas frases de Aurélia Eu podia julgar de forma mais sadia o mundo de ilusões em que vivi algum tempo Todavia sintome feliz com as convicções que adquiri p 315 A primeira proposição parece devolver tudo o que precede ao mundo da loucura mas então por que essa felicidade pelas convicções adquiridas Aurélia constitui pois um exemplo original e perfeito da ambigüidade fantástica Esta ambigüidade gira expressamente em torno da loucura mas enquanto que em Hoffmann perguntavase se a personagem seria ou não louca aqui sabese antecipadamente que seu comportamento se chama loucura tratase de saber e é neste ponto que reside a hesitação se a loucura não é de fato uma razão superior A hesitação concernia antes à percepção agora concerne à linguagem com Hoffmann hesitase acerca do nome a ser dado a certos acontecimentos com Nerval a hesitação aplicase ao interior do nome ao seu sentido
Texto de pré-visualização
Título do original francês Introduction à la littérature fantastique Editions du Seuil Paris 2ª edição Direitos em língua portuguesa reservados à EDITORA PERSPECTIVA SA Avenida Brigadeiro Luís Antônio 3025 01401 São Paulo SP Brasil Telefones 88583888856878 1992 2 DEFINIÇÃO DO FANTÁSTICO Primeira definição do fantástico A opinião dos predecessores O fantástico em Le Manuscrit trouvé à Saragosse Segunda definição do fantástico mais explícita e mais precisa Outras definições afastadas Um exemplo singular do fantástico Aurélia de Nerval Alvare a personagem principal do livro de Cazotte Le Diable amoureux vive há meses com um ser do sexo feminino que ele acredita ser um mau espírito o diabo ou um de seus subordinados O modo como este ser apareceu indica claramente que se trata de um repre sentante do outro mundo mas seu comportamento especificamente humano e mais ainda feminino os ferimentos reais que recebe parecem ao contrário provar que se trata simplesmente de uma mulher e de uma mulher que ama Quando Alvare lhe pergunta de onde vem Biondetta responde Sou Sílfide de origem e uma das mais notáveis entre elas p 198 Mas as Sílfides existem Eu não compreendia nada do que estava ouvindo continua Alvare Mas o que é que havia de compreensível em minha aventura Tudo isso me parece um sonho dizia a mim mesmo mas será a vida humana outra coisa Sonho mais extraordinariamente que os outros e eis tudo Onde está o possível Onde está o impossível pp 200201 Assim Alvare hesita e pergunta a si mesmo e o leitor com ele se o que lhe está acontecendo é verdadeiro se o que o cerca é de fato realidade neste caso as Sílfides existem ou então se se trata simplesmente de uma ilusão que toma aqui a forma do sonho Alvare é levado mais tarde a dormir com esta mesma mulher que talvez seja o diabo e assustado por esta idéia se interroga de novo Terei dormido serei bastante feliz para que tudo não tenha passado de um sonho p 274 Sua mãe pensa do mesmo modo Você sonhou esta propriedade e todos os seus habitantes p 281 A ambigüidade se mantém até o fim da aventura realidade ou sonho verdade ou ilusão Somos assim transportados ao âmago do fantástico Num mundo que é exatamente o nosso aquele que conhecemos sem diabos sílfides nem vampiros produzse um acontecimento que não pode ser explicado pelas leis deste mesmo mundo familiar Aquele que o percebe deve optar por uma das duas soluções possíveis ou se trata de uma ilusão dos sentidos de um produto da imaginação e nesse caso as leis do mundo continuam a ser o que são ou então o acontecimento realmente ocorreu é parte integrante da realidade mas nesse caso esta realidade é regida por leis desconhecidas para nós Ou o diabo é uma ilusão um ser imaginário ou então existe realmente exatamente como os outros seres vivos com a ressalva de que raramente o encontramos O fantástico ocorre nesta incerteza ao escolher uma ou outra resposta deixase o fantástico para se entrar num gênero vizinho o estranho ou o maravilhoso O fantástico é a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais face a um acontecimento aparentemente sobrenatural O conceito de fantástico se define pois com relação aos de real e imaginário e estes últimos merecem mais do que uma simples menção Mas reservamos sua discussão para o último capítulo deste estudo Será uma definição dessa natureza ao menos original Podemos encontrála ainda que formulada diferentemente já no século XIX Inicialmente na obra do filósofo e místico russo Vladimir Soloviov No verdadeiro fantástico fica sempre preservada a possibilidade exterior e formal de uma explicação simples dos fenômenos mas ao mesmo tempo esta explicação é completamente privada de probabilidade interna citado por Tomachévski p 288 Há um fenômeno estranho que se pode explicar de duas maneiras por meio de causas de tipo natural e sobrenatural A possibilidade de se hesitar entre os dois criou o efeito fantástico Alguns anos mais tarde um autor inglês especializado em histórias de fantasmas Montague Rhodes James retoma quase os mesmos termos Às vezes é necessário ter uma porta de saída para uma explicação natural mas deveria acrescentar que esta porta seja bastante estreita para que não se possa usála p VI Novamente pois duas soluções são possíveis Eis ainda um exemplo alemão e mais recente O herói sente contínua e distintamente a contradição entre os dois mundos o do real e o do fantástico e ele próprio fica espantado diante das coisas extraordinárias que o cercam Olga Reimann Esta lista poderia se alongar indefinidamente Notemos entretanto uma diferença entre as duas primeiras definições e a terceira naquelas cabe ao leitor hesitar entre as duas possibilidades nesta à personagem voltaremos a isso logo É preciso ainda observar que as definições do fantástico que se encontram na França em escritos recentes se não são idênticas à nossa tampouco a contradizem Sem mais delongas daremos alguns exemplos extraídos dos textos canônicos Castex escreve em Le Conte fantastique en France O fantástico se caracteriza por uma intromissão brutal do mistério no quadro da vida real p 8 Louis Vax em LArt et la Littérature fantastiques A narrativa fantástica gosta de nos apresentar habitando o mundo real em que nos achamos homens como nós colocados subitamente em presença do inexplicável p 5 Roger Caillois em Au Coeur du fantastique Todo o fantástico é ruptura da ordem estabelecida irrupção do inadmissível no seio da inalterável legalidade cotidiana p 161 Vemos que estas três definições são intencionalmente ou não paráfrases uma da outra há de cada vez o mistério o inexplicável o inadmissível que se introduz na vida real ou no mundo real ou ainda na inalterável legalidade cotidiana Estas definições encontramse globalmente incluídas naquela proposta pelos primeiros autores citados e que já implicava a existência de acontecimentos de duas ordens os do mundo natural e os do mundo sobrenatural mas a definição de Soloviov James etc assinalava além disso a possibilidade de fornecer duas explicações ao acontecimento sobrenatural e em consequência o fato de que alguém devesse escolher entre ambas Era pois mais sugestiva mais rica a que nós próprios demos dela se origina Além disso enfatiza o caráter diferencial do fantástico como linha de separação entre o estranho e o maravilhoso em vez de transformálo numa substância como fazem Castex Caillois etc De uma forma mais geral é preciso dizer que um gênero se define sempre em relação aos gêneros que lhe são vizinhos limites do fantástico Mas a definição carece ainda de clareza e é aqui que devemos ir mais além do que nossos predecessores Como já foi observado não se dissera claramente se cabia ao leitor ou à personagem hesitar nem quais as nuances da hesitação Le Diable amoureux oferece matéria muito pobre para uma análise mais desenvolvida só por instantes a hesitação a dúvida aí nos preocupam Recorreremos pois a um outro livro escrito uns vinte anos mais tarde e que nos permitirá levantar um número maior de perguntas um livro que inaugura magistralmente a época da narrativa fantástica Le Manuscrit trouvé à Saragosse de Jan Potocki Uma série de acontecimentos nos é inicialmente relatada na qual nenhum dos quais tomado isoladamente contradiz as leis da natureza tais como a experiência nos ensinou a conhecêlas mas sua acumulação desde logo causa problemas Alphonse van Worden herói e narrador do livro atravessa as montanhas da Sierra Morena De repente seu zagal Moschito desaparece algumas horas mais tarde desaparece também o criado Lopez Os habitantes do lugar afirmam que a região é assombrada por almas do outro mundo dois bandidos recentemente enforcados Alphonse chega a um albergue abandonado e se prepara para dormir mas à primeira badalada da meianoite uma bela negra seminua segurando um archote em cada mão p 56 entra no quarto e o convida a seguila Ela o conduz até uma sala subterrânea onde o recebem duas jovens irmãs belas e vestidas ligeiramente Oferecemlhe comida e bebida Alphonse experimenta sensações estranhas e uma dúvida nasce em seu espírito Eu não sabia mais se estava com mulheres ou com insidiosos demônios p 58 Elas lhe contam em seguida sua vida e revelam ser suas próprias primas Mas ao primeiro canto do galo a narrativa é interrompida e Alphonse se lembra de que como se sabe as almas do outro mundo só têm poder da meianoite até o primeiro canto do galo p 55 Tudo isso é evidente não se origina propriamente das leis da natureza tais como são conhecidas No máximo podese dizer que são acontecimentos estranhos coincidências insólitas O passo seguinte é decisivo ocorre um acontecimento que a razão não pode mais explicar Alphonse vai para o leito as duas irmãs reúnemse a ele ou talvez ele esteja apenas sonhando mas uma coisa é certa quando acorda não está mais numa cama não está mais numa sala subterrânea Vi o céu Vi que estava ao ar livre Eu estava deitado sob o cadafalso de Los Hermanos Os cadáveres dos dois irmãos de Zoto não estavam mais pendurados na forca estavam deitados ao meu lado p 68 Eis pois um primeiro acontecimento sobrenatural duas belas moças transformadas em cadáveres putrefatos Alphonse entretanto não se acha ainda convencido da existência de forças sobrenaturais o que teria suprimido qualquer hesitação e colocado um fim ao fantástico Ele procura um lugar onde passar a noite e chega à cabana de um eremita aí encontra um possesso Pascheco que lhe conta sua história mas uma história que se parece estranhamente à de Alphonse Pascheco dormira uma noite no mesmo albergue desce até uma sala subterrânea e passara a noite numa cama com as duas irmãs na manhã seguinte acordara sob o cadafalso entre dois cadáveres Esta semelhança põe Alphonse de sobreaviso Por isso diz mais tarde ao eremita que não acredita em almas do outro mundo e dá uma explicação natural para os males de Pascheco Interpreta de igual modo suas próprias aventuras Não tinha dúvidas de que minhas primas fossem mulheres de carne e osso Tinha consciência disso através de não sei que sentimento mais forte do que tudo o que me tinham dito a respeito do poder dos demônios Quanto à peça que me haviam pregado de me colocarem sob o patíbulo estava bastante indignado pp 9899 Admitamos Mas novos acontecimentos vão reavivar as dúvidas de Alphonse Volta a encontrar suas primas numa gruta e uma noite elas vêm até o seu leito Estão prestes a arrancar seus cintos de castidade mas para isso é preciso que o próprio Alphonse se despoje de uma relíquia cristã que mantém em volta do pescoço no lugar desta uma das irmãs coloca uma trança de seus cabelos Mal se apaziguaram os primeiros transportes de amor escutase a primeira pancada da meianoite Um homem entra no quarto expulsa as irmãs e ameaça Alphonse de morte obrigao em seguida a tomar uma beberagem Na manhã seguinte Alphonse desperta como bem se pode imaginar sob o cadafalso ao lado dos cadáveres em volta de seu pescoço não está mais a trança de cabelos mas uma corda de enforcado Voltando ao albergue da primeira noite descobre subitamente entre as tábuas do soalho a relíquia que lhe haviam tirado na gruta Não sabia mais o que fazia Pusme a imaginar que realmente não tinha saído daquele infeliz cabaré e que o eremita o inquisidor cf mais adiante e os irmãos de Zoto eram igualmente fantasmas produzidos por efeito de magia pp 142143 Como que para inclinar de novo a balança encontra logo Pascheco que havia entrevisto durante sua última aventura noturna e que lhe dá uma versão inteiramente diferente da cena Essas duas jovens criaturas depois de lhe terem feito algumas carícias tiraram de seu pescoço uma relíquia que ali estava e a partir desse momento perderam a beleza a meus olhos e reconheci nelas os dois enforcados do vale Los Hermanos Mas o jovem cavaleiro tomandoas sempre por pessoas atraentes prodigalizoulhes os mais ternos nomes Então um dos enforcados tirou do pescoço a corda e a colocou no do cavaleiro que lhe testemunhou seu reconhecimento com novas carícias Enfim fecharam a cortina e não sei o que fizeram então mas penso que tenha sido algum pecado horrível p 145 No que acreditar Alphonse sabe muito bem que passou a noite com duas mulheres amorosas mas e o despertar sob o cadafalso e a corda em torno do pescoço e a relíquia no albergue e a história de Pascheco A incerteza a hesitação chegam ao auge Reforçadas pelo fato de que outras personagens sugerem a Alphonse uma explicação sobrenatural das aventuras Assim o inquisidor que num dado momento deterá Alphonse e o ameaçará com torturas perguntalhe Conheces duas princesas de Túnis Ou antes duas infames feiticeirasvampiros exe cráveis e a encarnação de demônios p 100 E mais tarde Rebecca a hospedeira de Alphonse lhe dirá Nós sabemos que são dois demônios fêmeas e que seus nomes são Emina e Zibeddé p 159 Sozinho durante alguns dias Alphonse sente ainda uma vez as forças da razão lhe voltarem Quer encontrar para os acontecimentos uma explicação realista Lembreime então de algumas palavras que escaparam a Don Emmanuel de Sa governador desta cidade as quais me fizeram pensar que não lhe era de todo estranha a misteriosa existência dos Gomélez Fora ele quem me dera os dois criados Lopez e Moschito Pus na cabeça que tinha sido por ordem sua que me deixaram à entrada funesta de Los Hermanos Minhas primas e a própria Rebecca frequentemente tinham me dado a entender que estavam querendo me colocar à prova Talvez me tivessem dado uma beberagem para que eu adormecesse e depois nada mais fácil que me transportar durante o sono para o fatal cadafalso Pascheco poderia ter perdido um olho em um acidente completamente diferente de sua ligação amorosa com os dois enforcados e sua assustadora história poderia ter sido um conto O ermitão que tinha procurado constantemente descobrir meu segredo era com certeza um agente dos Gomélez que queria pôr a prova minha discrição Enfim Rebecca seu irmão Zoto e o chefe dos boêmios toda essa gente estava talvez mancomunada para experimentar minha coragem p 227 Nem por isso o debate resolveuse pequenos incidentes vão fazer de novo com que Alphonse se encaminhe para uma solução sobrenatural Vê pela janela duas mulheres que lhe parecem ser as famosas irmãs mas ao se aproximar descobre rostos desconhecidos Lê em seguida uma história de diabo que se parece tanto com a sua que confessa Cheguei quase a acreditar que os demônios tinham para me enganar animado os corpos dos enforcados p 173 Cheguei quase a acreditar eis a fórmula que resume o espírito do fantástico A fé absoluta como a incredulidade total nos levam para fora do fantástico é a hesitação que lhe dá vida Quem hesita nesta história Vemos imediatamente Alphonse isto é o herói a personagem É ele quem ao longo de toda a intriga terá que escolher entre duas interpretações Mas se o leitor fosse alertado sobre a verdade se soubesse em que terreno está pisando a situação seria completamente diferente O fantástico implica pois uma integração do leitor no mundo das personagens definese pela percepção ambígua que tem o próprio leitor dos acontecimentos narrados É necessário desde já esclarecer que assim falando temos em vista não este ou aquele leitor particular real mas uma função de leitor implícita no texto do mesmo modo que nele achase implícita a noção do narrador A percepção desse leitor implícito está inscrita no texto com a mesma precisão com que o estão os movimentos das personagens A hesitação do leitor é pois a primeira condição do fantástico Mas será necessário que o leitor se identifique com uma personagem particular como em Le Diable amoureux e no Manuscrit ou seja será necessário que a hesitação seja representada no interior da obra A maior parte das obras que preenchem a primeira condição satisfazem igualmente a segunda existem todavia exceções assim em Véra de Villiers de lIsleAdam O leitor neste caso se interroga sobre a ressurreição da mulher do conde fenômeno que contradiz as leis da natureza mas parece confirmado por uma série de indícios secundários Ora nenhuma personagem compartilha esta hesitação nem o conde dAthol que crê firmemente na segunda vida de Véra nem mesmo o velho servidor Raymond O leitor não se identifica pois com qualquer personagem e a hesitação não está representada no texto Diremos que se trata com esta regra de identificação de uma condição facultativa do fantástico este pode existir sem satisfazêla mas a maior parte das obras fantásticas submetese a ela Quando o leitor sai do mundo das personagens e volta à sua prática própria a de um leitor um novo perigo ameaça o fantástico Perigo que se situa ao nível da interpretação do texto Existem narrativas que contêm elementos sobrenaturais sem que o leitor jamais se interrogue sobre sua natureza sabendo perfeitamente que não deve tomálos ao pé da letra Se animais falam nenhuma dúvida nos assalta o espírito sabemos que as palavras do texto devem ser tomadas num outro sentido que se chama alegórico Situação inversa se observa relativamente à poesia O texto poético poderia ser freqüentemente julgado fantástico se ao menos se exigisse que a poesia fosse representativa Mas a questão não se coloca se é dito por exemplo que o eu poético voa pelos ares isto é apenas uma seqüência verbal a ser tomada como tal sem pretender ir além das palavras O fantástico implica portanto não apenas a existência de um acontecimento estranho que provoca hesitação no leitor e no herói mas também numa maneira de ler que se pode por ora definir negativamente não deve ser nem poética nem alegórica Se voltamos ao Manuscrit vemos que esta exigência achase aí igualmente preenchida por um lado nada nos permite dar imediatamente uma interpretação alegórica aos acontecimentos sobrenaturais evocados por outro esses acontecimentos são perfeitamente dados como tais devemos imaginálos e não considerar as palavras que os designam exclusivamente como uma combinação de unidades lingüísticas Podese ressaltar nesta frase de Roger Caillois uma indicação quanto a esta propriedade do texto fantástico Esta espécie de imagens se situa no próprio cerne do fantástico a meio caminho entre aquilo que me ocorreu chamar imagens infinitas e imagens limitadas As primeiras procuram por princípio a incoerência e recusam intencionalmente qualquer significação As segundas traduzem textos precisos em símbolos que um dicionário apropriado reconverte termo por termo em discursos correspondentes p 172 Estamos agora em condições de precisar e completar nossa definição do fantástico Este exige que três condições sejam preenchidas Primeiro é preciso que o texto obrigue o leitor a considerar o mundo das personagens como um mundo de criaturas vivas e a hesitar entre uma explicação natural e uma explicação sobrenatural dos acontecimentos evocados A seguir esta hesitação pode ser igualmente experimentada por uma personagem desta forma o papel do leitor é por assim dizer confiado a uma personagem e ao mesmo tempo a hesitação encontrase representada tornase um dos temas da obra no caso de uma leitura ingênua o leitor real se identifica com a personagem Enfim é importante que o leitor adote uma certa atitude para com o texto ele recusará tanto a interpretação alegórica quanto a interpretação poética Estas três exigências não têm valor igual A primeira e a terceira constituem verdadeiramente o gênero a segunda pode não ser satisfeita Entretanto a maior parte dos exemplos preenchem as três condições Como essas três características se inscrevem no modelo da obra tal como o expúsemos resumidamente no capítulo precedente A primeira condição nos remete ao aspecto verbal do texto mais exatamente ao que se chama visões o fantástico é um caso particular da categoria mais geral da visão ambígua A segunda condição é mais complexa ela se prende por um lado ao aspecto sintático na medida em que implica a existência de um tipo formal de unidades que se referem à apreciação feita pelas personagens sobre os acontecimentos da narrativa estas unidades poderiam se chamar as reações por oposição às ações que formam habitualmente a trama da história Por outro lado ela se refere ao aspecto semântico já que se trata de um tema representado o da percepção e sua notação Enfim a terceira condição tem um caráter mais geral e transcende a divisão em aspectos tratase de uma escolha entre vários modos e níveis de leitura Nossa definição pode ser tida agora como suficientemente explícita Para justificála plenamente comparemola de novo a algumas outras definições desta vez definições com as quais caberá ver não mais em que ela se lhes assemelha mas em que difere De um ponto de vista sistemático podese partir dos muitos sentidos da palavra fantástico Tomemos inicialmente o sentido que ainda que raramente enunciado vem primeiro ao espírito é aquele do dicionário nos textos fantásticos o autor relata acontecimentos que não são suscetíveis de acontecer na vida se nos prendemos aos conhecimentos comuns de cada época no tocante ao que pode ou não pode acontecer assim no Petit Larousse onde entram seres sobrenaturais contos fantásticos Podese com efeito classificar como sobrenaturais os acontecimentos mas o sobrenatural mesmo sendo uma categoria literária não é aqui pertinente Não se pode conceber um gênero que reagrupasse todas as obras onde intervenha o sobrenatural e que por esta circunstância devesse acolher tanto Homero quanto Shakespeare Cervantes quanto Goethe O sobrenatural não caracteriza exatamente as obras sua extensão é grande demais Uma outra atitude bem mais difundida entre os teóricos consiste em se colocar para situar o fantástico no leitor não o leitor implícito no texto mas o leitor real Tomaremos como representante desta tendência H P Lovecraft ele próprio autor de histórias fantásticas e que dedicou ao sobrenatural em literatura uma obra teórica Para Lovecraft o critério do fantástico não se situa na obra mas na experiência particular do leitor e esta experiência deve ser o medo A atmosfera é a coisa mais importante pois o critério definitivo de autenticidade do fantástico não é a estrutura da intriga mas a criação de uma impressão específica Eis por que devemos julgar o conto fantástico não tanto em relação às intenções do autor e os mecanismos da intriga mas em função da intensidade emocional que ele provoca Um conto é fantástico muito simplesmente se o leitor experimenta profundamente um sentimento de temor e de terror a presença de mundos e poderes insólitos p 16 Este sentimento de medo ou de perplexidade é freqüentemente invocado pelos teóricos do fantástico mesmo que a dupla explicação possível permaneça a seus olhos a condição necessária do gênero Assim escreve Peter Penzoldt Com exceção do conto de fadas todas as histórias sobrenaturais são histórias de medo que nos obrigam a perguntar se o que se crê ser pura imaginação não é no final das contas realidade p 9 Caillois propõe também como pedra de toque do fantástico a irredutível impressão de estranheza p 30 É surpreendente encontrar ainda hoje esses juízos na pena de críticos sérios Se tomarmos suas declarações literalmente e que o sentimento de medo deva ser encontrado no leitor seria preciso deduzir daí é este o pensamento de nossos autores que o gênero de uma obra depende do sanguefrio do leitor Procurar o sentimento de medo nas personagens não permite delimitar melhor o gênero em primeiro lugar os contos de fada podem ser histórias de medo como os contos de Perrault contrariamente ao que deles diz Penzoldt por outro lado há narrativas fantásticas nas quais todo medo está ausente pensemos em textos tão diferentes quanto A Princesa Brambilla de Hoffmann e Véra de Villiers de lIsleAdam O medo está freqüentemente ligado ao fantástico mas não como condição necessária Por mais estranho que isto pareça procurouse igualmente situar o critério do fantástico no próprio autor da narrativa Encontramos de novo exemplos disto em Caillois que decididamente não tem medo das contradições Eis como Caillois faz reviver a imagem romântica do poeta inspirado É necessário ao fantástico alguma coisa de involuntário de sofrido uma interrogação inquieta não menos que inquietante surgida improvisadamente de não se sabe que trevas que seu autor viuse obrigado a tomar como veio p 46 ou ainda Uma vez mais o fantástico que não provenha de uma intenção deliberada de desconcertar mas que parece jorrar independentemente do autor da obra quando não à sua revelia prova ser o mais persuasivo p 169 Os argumentos contra esta intentional fallacy são hoje conhecidos demais para serem reformulados Ainda menos atenção merecem outras tentativas de definição que freqüentemente se aplicam a textos que não são de forma alguma fantásticos Assim não é possível definir o fantástico como oposto à reprodução fiel da realidade ao naturalismo Nem como o fez Marcel Schneider em La Littérature fantastique en France O fantástico explora o espaço interior tem uma estreita relação com a imaginação a angústia de viver e a esperança de salvação pp 148149 O Manuscrit trouvé à Saragosse nos forneceu um exemplo de hesitação entre o real e digamos o ilusório perguntavase se o que se via não seria fraude ou erro da percepção Em outros termos duvidavase da interpretação a ser dada a acontecimentos perceptíveis Existe uma outra variedade do fantástico em que a hesitação se situa entre o real e o imaginário No primeiro caso duvidavase não de que os acontecimentos tivessem sucedido mas de que nossa compreensão tivesse sido exata No segundo perguntase se o que acreditamos perceber não é de fato fruto da imaginação Distingo com dificuldade o que vejo com os olhos da realidade daquilo que vê minha imaginação diz uma personagem de Achim dArnim p 222 Este erro pode ser causado por muitas razões que examinaremos mais adiante damos aqui um exemplo característico em que é atribuído à loucura A Princesa Brambilla de Hoffmann Acontecimentos estranhos e incompreensíveis sobrevêm na vida do pobre ator Giglio Fava durante o carnaval de Roma Acredita que se transforma num príncipe se apaixona por uma princesa e passa por aventuras incríveis Ora a maior parte dos que o cercam lhe asseguram que nada disso é verdadeiro mas que ele Giglio ficou louco É o que pretende signor Pasquale Signor Giglio eu sei o que lhe aconteceu Roma inteira sabe o senhor foi forçado a deixar o teatro porque seu cérebro se desarranjou t III p 27 Por vezes o próprio Giglio duvida de sua razão Ele estava mesmo prestes a pensar que signor Pasquale e mestre Bescapi estavam certos ao creditálo um pouco pancada p 42 Assim Giglio e o leitor implícito é mantido na dúvida ignorando se o que o cerca é ou não produto da imaginação A este processo simples e muito frequente podese opor um outro que parece ser bem mais raro e no qual a loucura é de novo utilizada mas de uma maneira diferente para criar a ambigüidade necessária Pensamos em Aurélia de Nerval Este livro narra como se sabe as visões de uma personagem durante um período de loucura A narrativa é feita na primeira pessoa mas o eu cobre aparentemente duas pessoas distintas a da personagem que percebe mundos desconhecidos ela vive no passado e a do narrador que transcreve as impressões da primeira e vive no presente À primeira vista o fantástico não existe aqui nem para a personagem que considera suas visões não como devidas à loucura mas como uma imagem mais lúcida do mundo achase pois no maravilhoso nem para o narrador que sabe que elas se devem à loucura ou ao sonho não à realidade de seu ponto de vista a narrativa se liga simplesmente ao estranho Mas o texto não funciona assim Nerval recria a ambigüidade em outro nível onde não a esperávamos e Aurélia permanece uma história fantástica Primeiro a personagem não está completamente certa quanto à interpretação que deve dar aos fatos acredita por vezes também ela em sua loucura mas não chega nunca à certeza Compreendi vendome entre os alienados que até então tudo para mim não passara de ilusão Todavia as promessas que eu atribuía à deusa Ísis pareciam realizarse por uma série de provas pelas quais eu estava destinado a passar p 301 Ao mesmo tempo o narrador não está seguro de que tudo o que a personagem viveu se deva à ilusão insiste mesmo sobre a verdade de certos fatos narrados Informeime fora ninguém tinha escutado nada E no entanto estou até agora seguro de que o grito fora real e de que ecoara no ar dos seres vivos p 281 A ambigüidade prendese também ao emprego de dois procedimentos de escritura que penetram todo o texto Nerval utilizaos habitualmente juntos chamamse eles o imperfeito e a modalização Esta última consiste lembremolo em usar certas locuções introdutivas que sem mudar o sentido da frase modificam a relação entre o 43 sujeito da enunciação e o enunciado Por exemplo as duas frases Chove lá fora e Talvez chova lá fora referemse ao mesmo fato mas a segunda indica além disso a incerteza em que se encontra o sujeito que fala quanto à verdade da frase que enuncia O imperfeito tem um sentido semelhante se digo Amava Aurélia não especifico se ainda a amo ou não a continuidade é possível mas em regra geral pouco provável Ora todo o texto de Aurélia achase impregnado desses dois procedimentos Poderíamos citar páginas inteiras em apoio à nossa afirmação Eis alguns exemplos tomados ao acaso Pareciame que entrava numa moradia conhecida Uma velha criada que eu chamava de Marguerite e que me parecia conhecer desde a infância me disse E eu tinha a impressão de que a alma de meu antepassado estava naquele pássaro Acreditei cair num abismo que atravessava o globo Sentiame levado sem sofrimento por uma correnteza de metal fundido Tive a sensação de que essas correntes eram compostas de almas vivas em estado molecular Tornavase claro para mim que os antepassados tomavam a forma de certos animais para nos visitar na terra pp 259260 o grifo é meu etc Se essas locuções estivessem ausentes estaríamos mergulhados no mundo do maravilhoso sem qualquer ligação com a realidade cotidiana habitual por meio delas somos mantidos nos dois mundos ao mesmo tempo O imperfeito além do mais introduz uma distância entre a personagem e o narrador de tal modo que não conhecemos a posição deste último Por uma série de incisos o narrador guarda distância em relação aos outros homens ao homem normal ou mais exatamente ao emprego corrente de certas palavras em certo sentido a linguagem é o tema principal de Aurélia Recuperando aquilo que os homens chamam de razão escreve ele em algum lugar E em outro Mas parece que era uma ilusão de minha vista p 265 Ou ainda Minhas ações aparentemente insensatas estavam submetidas ao que se chama de ilusão segundo a razão humana p 256 Admiremos esta frase as ações são 44 insensatas referência ao natural mas apenas aparentemente referência ao sobrenatural elas estão submetidas à ilusão referência ao natural ou antes não àquilo que se chama ilusão referência ao sobrenatural além do mais o imperfeito significa que não é o narrador presente que assim pensa mas a personagem de outrora E ainda esta frase resumo de toda a ambigüidade de Aurélia Uma série de visões insensatas talvez p 257 O narrador guarda assim distância em relação ao homem normal e se aproxima da personagem a certeza de que se trata de loucura cede lugar à dúvida ao mesmo tempo Ora o narrador vai mais longe retomará abertamente a tese da personagem segundo a qual loucura e sonho são apenas uma razão superior Eis aqui o que a respeito dizia a personagem p 226 As narrativas daqueles que me tinham visto assim me causavam uma espécie de irritação quando eu via que se atribuíam à aberração do espírito os movimentos ou as palavras coincidentes com as diversas fases daquilo que constituía para mim uma série de acontecimentos lógicos ao que responde a frase de Edgar Poe A ciência não nos mostrou ainda se a loucura é ou não o sublime da inteligência H G S p 95 E ainda Com a idéia formada por mim a respeito do sonho como algo que abria ao homem uma comunicação com o mundo dos espíritos esperava p 290 Mas eis como fala o narrador Vou tentar transcrever as impressões de uma longa doença inteiramente passada nos mistérios de meu espírito e não sei por que me sirvo do termo doença pois jamais no que me concerne me senti tão bem Às vezes acreditava duplicadas minha força e atividade a imaginação me trazia delícias infinitas pp 251252 Ou ainda Seja como for creio que a imaginação humana nada inventou que não seja verdadeiro neste mundo ou nos outros e não podia duvidar daquilo que tinha visto tão distintamente p 276 Nestes dois trechos o narrador parece declarar abertamente que o que viu durante sua pretensa loucura é apenas parte da realidade que portanto nunca esteve doente Mas se cada uma das passagens começa no presente a última proposição está de novo no imperfeito e reintroduz a ambigüidade na percepção do leitor O exemplo inverso se encontra nas últimas frases de Aurélia Eu podia julgar de forma mais sadia o mundo de ilusões em que vivi algum tempo Todavia sintome feliz com as convicções que adquiri p 315 A primeira proposição parece devolver tudo o que precede ao mundo da loucura mas então por que essa felicidade pelas convicções adquiridas Aurélia constitui pois um exemplo original e perfeito da ambigüidade fantástica Esta ambigüidade gira expressamente em torno da loucura mas enquanto que em Hoffmann perguntavase se a personagem seria ou não louca aqui sabese antecipadamente que seu comportamento se chama loucura tratase de saber e é neste ponto que reside a hesitação se a loucura não é de fato uma razão superior A hesitação concernia antes à percepção agora concerne à linguagem com Hoffmann hesitase acerca do nome a ser dado a certos acontecimentos com Nerval a hesitação aplicase ao interior do nome ao seu sentido