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Psicologia ·

Psicologia Social

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95 1 É interessante notar a persistência dessa repre sentação por meio das car tas de leitores dos jornais No jornal O Globo uma leitora acusa as favelas de estabelecerem um clima de guerra na cidade defen dendo sua extinção como a solução para o problema da insegurança da classe média urbana É urgente remover favelas barreiras humanas para encastelar trafi cantes palco de tragé dias em épocas de chuva exemplos internacional mente divulgados da pés sima qualidade de vida que nossa sociedade oferece aos seus pobres Nossas favelas hoje só atendem aos interesses de políticos Favela bairro ou comunidade Quando uma política urbana tornase uma política de signifi cados Leticia de Luna Freire Doutoranda em Antropologia PPGAUFF Pesquisadora do Laboratório de Etnografi a Metropolitana LeMetro IFCSUFRJ Recebido em 191008 Aprovado em 181108 Com base no trabalho de campo realizado em Acari na Zona Norte do Rio de Janeiro o artigo descreve as formas de apropriação e classifi cação dos espaços pelos moradores daquela localidade com ênfase nos efeitos da implantação do Programa FavelaBairro Uma vez que este programa visa transformar a favela em bairro popular por meio tanto de intervenções no es paço físico quanto de um trabalho educativo junto aos que o habitam a investigação dos diferentes sentidos das categorias favela e bairro entre os moradores e os agentes do poder público tornase fundamental para compreender o processo da intervenção urbana Palavraschave favela bairro comunidade Pro grama FavelaBairro The article Favela neighborhood or community When urban policy becomes a policy of mean ings describes based on fi eldwork held in Acari in Rio de Janeiro the appropriation and classifi cation of the space by its inhabitants focusing on the eff ects of FavelaBairro favelatoneighborhood Project Since this project intends to change favela into a popular neighborhood by intervention in physical space as well as educating people to investigate the diff erent senses of the terms favela and neighborhood among inhab itants and agents of public power becomes central to understand processes of the urban intervention Key words favela neighborhood FavelaBairro Project A pesar de sua grande contribuição econômica po lítica e cultural para a cidade as favelas do Rio de Janeiro são desde seu surgimento na passagem para o século XX percebidas como espaços indesejáveis Se por um lado elas vêm sendo cada vez menos percebidas como problema eminentemente sanitário ou moral por outro aparecem hoje com frequência na mídia como o foco trans missor da violência e da criminalidade1 A persistência dessa representação negativa das favelas e seus habitantes remete a sua história como objeto de diferentes modalidades de controle seja por parte do poder público seja por parte de instituições sociais como a Igreja Católica Diver sos estudos realizados desde a década de 1970 por pesquisado res brasileiros e estrangeiros PERLMAN 1977 VALLADARES 1978 2005 LEEDS LEEDS 1978 VALLA 1986 BURGOS 1998 SILVA 2005 entre outros permitemnos reconstituir esse percurso evidenciando as representações que regeram e regem DILEMAS 96 Favela bairro ou comunidade Leticia de Luna Freire as intervenções do Estado sobre esses espaços Não obstante as diferentes perspectivas todos esses trabalhos têm em comum o fato de apontar que a descoberta da favela pelo poder público como um problema surgiu muito mais do incômodo que esses aglomerados urbanos causavam à urbanidade do que de uma postulação de seus habitantes ou de uma vontade política de uni versalizar o acesso a direitos básicos de cidadania Criado pela prefeitura do Rio em 1993 com o objetivo de integrar as favelas à cidade o Programa FavelaBairro resulta de um processo progressivo de avaliação das difi culdades e li mites das experiências empreendidas até a década anterior es pecialmente do fracasso e alto custo político das políticas remo cionistas VALLADARES 1978 assim como da necessidade de consolidar experiências pontuais de urbanização consideradas bemsucedidas tais como aquelas desenvolvidas pela antiga Companhia de Desenvolvimento de Comunidades CODES CO em 1968 e pelo Projeto Mutirão desenvolvido pela pre feitura no início dos anos 1980 utilizando a mãodeobra local para realizar obras de infraestrutura nas favelas De maneira ge ral podese dizer que o FavelaBairro surgiu da percepção no âmbito municipal de que era preciso criar uma forma de inter venção global nas favelas que promovesse sua integração e não mais a sua remoção concentrando esforços de diversos órgãos e secretarias Esta mudança na orientação políticoadministra tiva da prefeitura ganhou força com a realização do Primeiro Seminário sobre Áreas Favelizadas Política de Urbanização e Meio Ambiente no contexto da Conferência das Nações Uni das para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento2 realizada em 1992 na cidade e com as discussões em torno da elaboração do primeiro Plano Diretor da Cidade sancionado no mesmo ano PREFEITURA DO RIO DE JANEIRO 20033 Originalmente o Programa FavelaBairro é um dos sub programas de regularização de favelas criados durante a primeira gestão do prefeito Cesar Maia 19931997 voltado para aquelas favelas que possuem entre 500 e 2500 unidades habitacionais Financiado em parte pelo Banco Interamericano de Desenvol vimento BID ele é hoje porém considerado o carrochefe do conjunto dos programas levados a cabo pela atual Secretaria Municipal de Habitação Seu objetivo institucional é construir ou complementar a estrutura urbana principal saneamento e democratização de acessos e oferecer as condições ambientais religiosos e bandidos Para os cariocas andar por vias expressas cercadas de fa velas como Avenida Brasil linhas Amarela Vermelha e outras é como andar em Bagdá 230104 2 Conhecido como Rio92 ou Eco92 o evento visava defi nir acordos internacio nais sobre questões am bientais 3 A importância desses dois eventos se deve à legitima ção de uma tendência de atuação do poder público no que tange ao tratamen to da questão Ao mesmo tempo que o seminário promovido pela Secretaria Municipal de Desenvolvi mento Social no contexto da Rio92 concluiu que as integrações física e social das favelas só seriam possí veis mediante a articulação entre as instituições que desenvolviam o trabalho físico atreladas aos promo tores de ações sociais de educação saúde e cultura o documento fi nal do Pla no Diretor Decenal da Cida de reconheceu o problema das favelas e loteamentos irregulares como questão de suma importância para o futuro do município de fi nindo como meta a inte gração das favelas à vida social e política da cidade Além desses eventos a Lei Orgânica Municipal pro mulgada dois anos antes defi niu como um dos pre ceitos da política de desen volvimento urbano item VI do artigo 429 a urbaniza ção regularização fundiária e titulação das áreas favela das e de baixa renda sem remoção dos moradores salvo quando as condições físicas da área ocupada im ponham risco de vida aos seus habitantes DILEMAS 97 Leticia de Luna Freire Favela bairro ou comunidade de leitura da favela como bairro da cidade GEAP 1993 apud CARVALHO et al 1998 p 38 ou da forma como é frequente mente divulgado transformar as favelas em bairros populares PREFEITURA DO RIO DE JANEIRO 2002 É justamente sobre essa transformação da favela em bairro que versa este trabalho interessandome aqui identifi car as di ferentes leituras que se pode ter desses termos A partir de um trabalho de campo empreendido por dois anos 20032005 em Acari durante a implantação do programa na localidade realizei uma etnografi a do processo de transformação dessa favela em um bairro tal como proposta pela prefeitura se guindo os atores em ação LATOUR 2000 e acompanhando os efeitos de suas ações na própria formatação da intervenção urbana Centrarei aqui entretanto a análise dos diversos senti dos atribuídos às categorias favela e bairro entre os diferen tes atores e suas implicações nas formas de conceber e habitar a cidade em especial nas representações e usos do espaço da rua Começo por apresentar brevemente o campo Localizado na Zona Norte do Rio de Janeiro Acari é uma região ocupada em geral por uma população com baixo poder aquisitivo e pouca qualifi cação profi ssional Registrado na 25a Região Administrativa o bairro de Acari consiste em uma área fundamentalmente residencial de quadras planejadas mas que também engloba favelas como Furão Beira Rio e Parque Acari totalizando uma população de 24650 habitantes e com densida de demográfi ca de 15353 habKm² segundo dados do IBGE de 2000 Já Complexo de Acari referese por sua vez ao conjunto de quinze favelas da região sendo esta denominação notadamente mais utilizada pela instituição policial que concebe essas áreas como seus focos de atuação no que tange a segurança pública e sobretudo combate ao tráfi co de drogas A localidade de Acari que nos interessa aqui porém é aquela onde houve a interven ção do programa desenvolvido pela Secretaria Municipal de Ha bitação Geografi camente esta é uma região plana com poucas elevações situada a cerca de 20Km do Centro da cidade no cru zamento de duas importantes rodovias a Avenida Brasil que liga a Zona Oeste e grande parte da Zona Norte ao Centro e a Aveni da Automóvel Clube que corta vários bairros em direção à Bai xada Fluminense Paralelamente a esta segunda avenida há uma estação da linha 2 do metrô AcariFazenda Botafogo ligando Acari também a outros bairros da Zona Norte e ao Centro DILEMAS 98 Favela bairro ou comunidade Leticia de Luna Freire A localidade começou a ser ocupada na década de 1940 por migrantes do Nordeste e de outros estados do Sudeste que vinham para a região em busca de trabalho no incipiente setor industrial Nessa época a localidade era um verdadeiro brejo como me diziam antigos moradores Com a inauguração da Avenida Brasil e o crescente desenvolvimento de indústrias na região a localidade começou a se expandir e a se diferenciar cada vez mais internamente Segundo a explicação resumida de um antigo morador a respeito das transformações sofridas pela loca lidade Acari era um povoado hoje é uma cidade Nas representações de seus moradores não é apenas pela dimensão e complexidade que adquiriu ao longo dos anos que Acari é comparado a uma cidade mas por confi gurar em seu interior o processo dinâmico de hierarquização dos espaços urbanos Acari consiste na composição de quatro localidades distintas cada uma contando com uma associação de morado res própria o Conjunto Residencial Areal e as favelas Parque Acari Vila Rica de Irajá e Vila Esperança Na verdade a própria delimitação dessas localidades é bastante difícil de ser percebida por quem é de fora uma vez que o que se nota à primeira vista é muito mais uma continuidade dos espaços do que a existên cia de fronteiras físicas bem demarcadas Somente ao longo de um trabalho de campo sistemático em que o etnógrafo possa se familiarizar com o ponto de vista nativo é possível compreen der aquilo para o que Souza 2001 já havia chamado a atenção anteriormente em sua pesquisa mais do que físicas em Acari as fronteiras são sobretudo simbólicas Devido a seu grau mais elevado de urbanização e maior disponibilidade de bens e serviços Parque Acari é comu mente representado pelos moradores como a Zona Sul de Acari assim como seus moradores são vistos como si milares a uma classe média urbana com maior poder aqui sitivo e melhores condições de moradia Não temos dados sufi cientes para avaliar a correspondência empírica dessa classifi cação mas entendemos que tal denominação não faz referência apenas a características materiais da localidade mas a aspectos morais de sua população que com frequên cia compartilha de valores semelhantes aos da classe média carioca em geral que vê a favela e seus moradores com maus olhos Buscando um reconhecimento enquanto uma certa elite de Acari esses moradores acabam assim criando for DILEMAS 99 Leticia de Luna Freire Favela bairro ou comunidade mas de se diferenciar daqueles que consideram ser verda deiramente os favelados4 É nesse sentido que há por sua vez uma representação negativa das localidades de Vila Rica e Vila Esperança e de seus moradores atribuída à maior in cidência de sinais de pobreza como a maior precariedade de construção das moradias dos becos e vielas de terra bati da além da maior presença das chamadas bocas de fumo No caso de Vila Esperança que é a localidade mais recente prevalece ainda em algumas áreas uma ambiência que nos remete à paisagem evocada por moradores antigos do início da ocupação da região com barracos de madeira criação de porcos e galinhas etc É diante desse complexo sistema clas sifi catório simbólico em que Acari é concebida como uma cidade no interior da cidade que os moradores costumam se referir a Parque Acari como a Zona Sul Vila Rica como o subúrbio e Vila Esperança como a Zona Oeste de Aca ri reproduzindo no âmbito local as divisões moralmente hierarquizadas da cidade do Rio de Janeiro Para a prefeitura no entanto as grandes heterogeneidades sociais desta localidade são geralmente desconsideradas Devido a sua relevância antropológica dedicaremos aqui nossa atenção a esse confronto de percepções e sistemas classifi catórios entre os representantes do poder público e a população local iluminado a partir do processo da intervenção urbana Começo agora por descrever o entendimento dos representantes da prefeitura sobre o que vem a ser fa vela e por conseguinte bairro De modo geral prevalece para o poder público a forma de compreensão e classifi cação dos diferentes espaços ur banos baseada em defi nições construídas prioritariamente em função de suas características ocupacionais legais e es truturais Enquanto instrumento de legitimação da política urbana municipal o Plano Diretor oferece a defi nição ofi cial desses espaços que deve guiar as ações do poder público Para o planejamento e controle do desenvolvimento urbano o território da cidade encontrase dividido em Áreas de Pla nejamento AP Regiões Administrativas RA Unidades Espaciais de Planejamento UEP e bairros De acordo com o quarto parágrafo do artigo 42 do Plano Diretor 1992 p25 os bairros correspondem a porções do território que reúnem pessoas que utilizam os mesmos equipamentos co 4 Os signifi cados e os usos desta terminologia serão discutidos mais adiante DILEMAS 100 Favela bairro ou comunidade Leticia de Luna Freire munitários dentro de limites reconhecidos pela mesma de nominação Já no capítulo que trata da política habitacio nal como forma de assegurar o direito social de moradia e reduzir o défi cit habitacional o artigo 138 do Plano Diretor 1992 p 64 defi ne como seus objetivos I Utilização racional do espaço através do controle institucional do solo urbano reprimindo a ação especulativa sobre a terra e simplifi cando as exigências urbanísticas para garantir à população o acesso à moradia com infraestrutura sanitária transporte e equipamentos de educação saúde e lazer II Relocalização prioritária das populações assentadas em áreas de risco com sua recuperação e utilização imediata e adequada III Urbanização e regularização de favelas e de loteamentos de baixa renda IV Implantação de lotes urbanizados e de moradias populares V Geração de recursos para o financiamento dos programas definidos no artigo 146 dirigidos à redução do déficit habita cional e à melhoria da infraestrutura urbana com prioridade para a população de baixa renda Para fi ns de implementação do programa de urbani zação e regularização fundiária das favelas representado pelo FavelaBairro o artigo 147 do Plano Diretor 1992 p 67 defi ne favela como Área predominantemente habitacional caracterizada por ocupação da terra por população de baixa renda precariedade da infraestrutura urbana e de serviços públicos vias estreitas e de alinhamento irregu lar lotes de forma e tamanho irregular e construções não licenciadas em desconformidade com os padrões legais Como podemos notar nessa defi nição as favelas são con cebidas pelo poder público a partir de aspectos prioritariamente ocupacionais estruturais e legais sendo o termo utilizado para denominar espaços que se caracterizam pela precariedade ir regularidade e desconformidade Ou seja as favelas são vistas como espaços que crescem e se perpetuam marcados por uma virtualidade negativa conforme refl etem as palavras acima des tacadas Tais idéias coadunamse com a defi nição dada pela en genheira da Secretaria Municipal de Habitação SMH por nós DILEMAS 101 Leticia de Luna Freire Favela bairro ou comunidade entrevistada Após titubear na resposta repetindo com surpresa a nossa pergunta O que é favela Boa pergunta enfi m res ponde Favela na realidade é uma área que não tem urbaniza ção é uma área de invasão basicamente sem infraestrutura área que não tem legalidade Em suma na defi nição da prefeitura a que pauta suas ações nesses espaços permanece a visão da favela como um espaço desviante do conjunto de normas que regem os bairros e a cidade como um todo Na proposta de fazer valer para as favelas as normas e pa drões ofi ciais que guiam ou devem guiar as ações da prefeitura no meio urbano as agentes comunitárias de habitação5 desem penham um papel fundamental Em geral são moradoras da própria localidade na qual esteja em curso a intervenção ou de outras áreas consideradas informais da cidade e que são con tratadas temporariamente pela administração municipal para atuar como ponte entre a prefeitura e a comunidade FREIRE 2005 Além de representarem um elo de interlocução entre os dois atores promovendo sua integração e o repasse de informa ções as agentes comunitárias têm como uma de suas funções repassar e discutir com os moradores informações e conheci mentos sobre o ambiente urbano e sobre condutas individuais e coletivas em relação à localidade atendida Em uma das reuniões com os moradores das quais par ticipei uma agente comunitária tentava a todo tempo con vencêlos de um certo sentido de favela afi rmando que favela é um lugar onde ninguém respeita o espaço de nin guém com um monte de barracos juntos puxadinhos onde o morador não entende nada de espaço grifo meu Assim tentavase muitas vezes com sucesso sobrepor aos moradores a concepção negativa de favela como local da de sordem urbana em que predomina a ausência de normas e limites e onde o público e o privado se confundem Por meio da capacitação que recebiam de uma organiza ção nãogovernamental as agentes como disse em sua maio ria moradoras de favelas passavam a conhecer incorporar e difundir os princípios racionalistas que norteiam as ações do poder público na cidade na busca pela forma urbana perfeita para o conteúdo visado MELLO VOGEL et alii 19816 Uma de suas funções portanto era justamente propagar esses prin cípios entre os moradores das áreas atendidas pelo Programa FavelaBairro garantindo o uso adequado dos equipamentos 5 Segundo material de di vulgação do CIEDS organi zação nãogovernamental que coordena o trabalho dos cerca de 150 Agentes Comunitários envolvidos nos programas habitacio nais da prefeitura 90 de les são do sexo feminino com escolaridade média de 13 anos de estudo e idade entre 30 e 40 anos 6 Segundo os autores no discurso progressista e ra cionalista arquitetônico e urbanístico contemporâ neo planejar signifi ca dis tinguir e separar as funções inventar e designálas a es paços apropriados combi nar corretamente as peças para que funcionem com o mínimo de atrito possível p134 O planejamento não deve porém ser en tendido como sinônimo de racionalismo arquitetônico e urbanístico A questão crucial deve ser sempre como planejar a partir de que pressupostos planejar e com que objetivos DILEMAS 102 Favela bairro ou comunidade Leticia de Luna Freire implantados na comunidade através de um trabalho educati vo7 Com o propósito de provocar uma mudança de atitu de as agentes orientavam os moradores sobre em que áreas poderiam fazer uso particularizado do espaço como o interior ou quintal de suas casas e em que áreas não poderiam cons truir ou se apropriar para fi ns privativos como as ruas e praças Validando a importância desse trabalho educativo um líder comunitário afi rmavanos que o FavelaBairro muda toda a estrutura da comunidade e por isso o morador também tem que ser educado para se adaptar a essa nova estrutura Essa reeducação em relação aos usos dos espaços da lo calidade era no entanto experienciada pelos moradores de maneiras bastante diversas Alguns a recebiam aparentemente sem crítica ou resistência incorporando talvez para si a identi dade de citadino incompetente que por não entender nada de espaço não sabe nele se comportar adequadamente devendo para tanto ser educado por aqueles que detêm tal competên cia Já outros moradores percebiam esse trabalho educativo das agentes comunitárias como uma forma autoritária de desapro priação dos usos cotidianos que faziam desses espaços Certa vez uma moradora que foi interpelada por uma agente por ter deixado sacos de cimento em frente à sua casa que estava em obra expressouse bastante incomodada com a ação edu cativa enunciando em voz alta e tom irônico a seguinte frase não apenas à agente mas a todos os demais proprietários natu rais da rua JACOBS 2000 que por sua própria presença ali também participavam da cena É agora quem manda na rua é o Cesar Maia né Informada pela agente da possibilidade de receber uma multa pelo uso privativo da via pública a mo radora optou naquela situação por atender à sua solicitação De todo modo o que me parece interessante aqui destacar é o quanto a irônica frase dessa moradora é demonstrativa daquilo que Kant de Lima 2001 muito apropriadamente já destacou em suas pesquisas que no Brasil por contraste com outras sociedades democráticas como a norteamericana a noção de espaço público está diretamente relacionada à fi gura do Esta do submetido ao seu controle e às suas regras e não a uma concepção de espaço coletivo no qual as regras são universal mente conhecidas e acessíveis a todos os cidadãos Assim mais do que sua transformação em coisa pública na percepção da moradora a rua havia apenas mudado de dono Se antes da in 7 Documento do setor de Participação Comunitária da SMH que nos foi entre gue pessoalmente sobre as atividades dos Agentes Co munitários de Habitação DILEMAS 103 Leticia de Luna Freire Favela bairro ou comunidade tervenção urbana ela pertencia aos próprios moradores agora ela pertencia ao prefeito da cidade fi cando submetida ao con trole e às regras impostas por ele Mais do que um espaço físico da localidade a rua en quanto um lugar BRIGGS 1972 permitenos vislumbrar de modo ainda mais evidente o contraste de percepções en tre os diferentes atores quanto aos seus signifi cados Ape sar da escassez apontada pelos técnicos do Programa Fa velaBairro de espaços construídos exclusivamente para o lazer em Acari as ruas e lajes das residências representam espaços importantes para essa função especialmente para as crianças que a qualquer hora do dia podem nelas ser vis tas cultivando brincadeiras tradicionais como rodar pião jogar futebol e soltar pipa sem contar as festas que eventu almente nelas têm lugar Conforme mostraram Mello Vogel et alii 1981 em um estudo sobre o uso dos espaços cole tivos para fi ns de lazer no bairro do Catumbi o princípio da diversidade dá margem a muitas conjunções de espaço e atividade concedendo à rua uma multiplicidade de signi fi cados ligados a seus usos contextuais Tal como os autores perceberam no Catumbi em Acari a mistura também não é um acidente mas o estilo da vida urbana nesse local Assim as ruas da localidade permitem a coexistência de diversas atividades e funções de pátio para as crianças brincarem sozinhas ou acompanhadas de outras crianças de extensão da casa para as mulheres que puxam seus banquinhos para fora para papear com as vizinhas fazer as unhas e observar o movimento da rua de local de trabalho para vendedores ambulantes que circulam com suas bicicletas vendendo em grandes cestas uma variedade de pães e doces de local para a atuação ilegal dos trafi cantes de drogas que privatizam pontos estratégicos das ruas para também vender seus pro dutos de palco de confronto entre policiais e bandidos du rante as situações de confl ito armado ou simplesmente de local de passagem para os transeuntes automóveis e ciclistas que por ali transitam em seus percursos diários De acordo com o contexto algumas atividades podem excluir outras como ocorre durante as imprevisíveis invasões policiais de repressão ao tráfi co de drogas que pela possibilidade de haver tiroteios afastam repentinamente os demais persona gens desse agitado teatro da rua passando esta a ser imedia DILEMAS 104 Favela bairro ou comunidade Leticia de Luna Freire tamente qualifi cada pelos moradores como perigosa Num período de sucessivas incursões policiais na localidade por exemplo ouvi certa vez um menino de dez anos lamentar o fato de que sua mãe não o permitia mais fi car brincando com os seus colegas na rua onde passava diariamente as tar des após a volta da escola Tal era o seu desagrado com essa medida materna de segurança que chegou a me dizer que para ele o que havia de pior em morar em Acari era não poder mais brincar na rua Para a prefeitura entretanto a rua é o espaço público por ex celência devendo por ela e as demais esferas governamentais ser gerido e controlado não podendo ser ocupado por ninguém de forma particularizada e se opondo nesse caso ao espaço privado da casa estabelecido como inviolável pela Constituição Federal Como já ressaltou DaMatta 1987 como categorias sociológi cas casa e rua não designam apenas espaços geográfi cos ou coisas físicas mensuráveis mas acima de tudo entidades morais esferas de ação social Em sua proposta de transformar a favela em bairro o programa em questão visa a defi nir os limites das es feras de ação e responsabilidade do poder público e dos cidadãos Nas palavras da engenheira entrevistada a intervenção urbana tem como objetivo defi nir o que é público e o que é privado na favela quer dizer defi nir até onde é responsabilidade da prefeitu ra fazer e até onde é responsabilidade do morador Todavia entre os moradores de Acari as categorias favela e bairro bem como as público e privado fl utuam por mui tas outras dimensões simbólicas Os critérios classifi catórios não são rígidos ou estáveis e tampouco se reduzem a uma tentativa de atribuir uma pretensa natureza física e organizacional a esses espaços Dependendo das relações e forças em jogo as categorias podem transmudar por sentidos diversos que por vezes se dis tanciam por outras se aproximam Assim como a administração municipal alguns mo radores de Acari reconhecem nas características ocupacio nais e legais elementos que distinguem favela e bairro Se gundo a descrição de uma moradora favela é um monte de gente sem nenhuma educação casas com gatos de luz e água casas coladas uma na outra Como se pode notar esse primeiro sentido presente entre os moradores é o que a defi ne como espaço de caos urbano de irregularidade e ilegalidade em oposição ao espaço regular e ordenado dos DILEMAS 105 Leticia de Luna Freire Favela bairro ou comunidade bairros sentido semelhante ao que é portanto difundido por urbanistas e planejadores racionalistas que insistem em dividir a cidade em espaços formais e informais Ainda nessa concepção um outro aspecto enunciado pe los moradores como aquilo que caracteriza uma favela e a distingue de um bairro é a presença do movimento8 que face à ausência do Estado atuaria como impositor de regras e regulador de confl itos na localidade A redação de uma moradora de 18 anos elucida melhor esse aspecto Eu vejo Acari como uma favela pobre como são a maioria das favelas Acari é uma favela muito boa de se morar isto é quando não se tem tiroteios Quase todos os bandidos que tem respeitam os moradores principalmente o responsável pela favela Morador só é violentado quando faz fofoca ou quando arruma briga que eles mandam raspar o cabelo assim é que eu vejo o Acari Não é à toa portanto que os chefes das quadrilhas de trafi cantes costumam ser chamados pelos moradores dessas localidades de o dono da favela Como resumiu uma outra moradora favela é um lugar sem governo onde os meninos trafi cantes fazem o que querem Penso que talvez a palavra governo deva ser aqui entendida em seu duplo sentido sig nifi cando tanto direção condução quanto a administração pública ou seja o Estado propriamente dito Já o discurso de outra jovem de 15 anos evidencia aspectos mais complexos do papel social desempenhado pelos traficantes unindo ações assistenciais e vigilância dos moradores fazendo neles coabitar simultaneamente os sentimentos de proteção e medo Apesar das dificuldades em nossa comunidade nós jovens temos a oportunidade de fazer diversos cursos Sabemos que não nos levará para um emprego mas já saberemos nos comportar em um Temos também os bailes os pago des as feirinhas onde nós podemos nos divertir Aqui nós podemos andar de bicicleta patins patinete e várias outras coisas que podemos fazer nas praças apesar que sabemos que nas praças mora o perigo pois os traficantes estão prestando atenção em tudo em que nós fazemos Aqui tem muitos vagabundos bons tipo o dono da favela que abre 8 Por movimento os mo radores referemse ao trá fi co de drogas local englo bando nessa denominação genérica tanto os atores humanos em suas variadas funções trafi cante olheiro etc quanto o conjunto de atores nãohumanos dro gas armas dinheiro etc que o compõem Segundo Misse 2007 embora essa denominação tenha apa recido pela primeira vez como jargão do jogo do bicho hoje ela comparece na gíria de consumidores e vendedores de drogas ilíci tas para representar vários e diferentes aspectos do mercado local de drogas nas favelas conjuntos habi tacionais e demais áreas da periferia habitadas por po pulações de baixa renda DILEMAS 106 Favela bairro ou comunidade Leticia de Luna Freire várias oportunidades de curso patrocina as crianças na qua dra para fazer esporte Ele abriu uma padaria que todos os domingos dá pão para a comunidade Uma coisa eu digo as pessoas se sentem mais seguras nas mãos dos bandidos do que nas mãos dos policiais pois os policiais só chegam na favela esculachando todos os moradores não quer saber se é morador ou bandido Outra característica da favela claramente evocada por essa jovem é a de ser um lugar no qual vigora um contro le social permanente tanto por parte dos trafi cantes quanto dos demais moradores É comum dizerem que na favela todo mundo se conhece que tudo que se diz e se faz nas ruas é alvo da atenção e julgamento dos outros Para alguns moradores o clima de fofoca de Acari é juntamente com o aumento da violência gerada pelos confrontos entre policiais e trafi cantes uma motivação importante para o seu desejo de sair da fa vela Embora a fofoca possa ter diferentes funções inclusive educativa ou de reforço do sentimento de identidade comu nitária geralmente ela é concebida como uma força nefasta que serve para informar a reputação dos moradores conso lidando ou prejudicando a sua imagem pública FONSECA 20009 Ao expressarem seu incômodo evocam ao mesmo tempo o desejo de garantir seu anonimato nas ruas e a priva cidade de sua família condições que acreditam poder encon trar fora das favelas pois como me relatou uma moradora em bairro as pessoas não fi cam te olhando te controlando Além desse entendimento da favela como espaço da pes soalidade e do controle e do bairro como espaço da impesso alidade e da liberdade pudemos identifi car um sentido moral ainda mais complexo dessas categorias entre os moradores que pode ser bem exemplifi cado na afi rmação de um antigo morador de que a favela quem faz é o ser humano Para ele e muitos outros moradores com os quais in teragi são o estilo de vida e o comportamento das pessoas principalmente nos espaços públicos que atribuem o caráter de favela ao local e o status negativo de favelados à sua população Entre os moradores a categoria favelado pos sui diferentes signifi cados mas sua enunciação evoca sempre comportamentos percebidos como moralmente inferiores associados ou não como ser maleducado falar palavrões 9 Ao tratar das relações de gênero na Vila do Cachorro Sentado em Porto Alegre a autora mostra que en quanto a categoria respei to revela o papel da força masculina na rede de tro cas simbólicas na favela a fofoca é o contrapeso feminino Embora conside re diferentes contribuições da literatura antropológica para compreender este fenômeno observa no seu campo a pertinência da sua função de controle moral vista geralmente pelos moradores como algo negativo DILEMAS 107 Leticia de Luna Freire Favela bairro ou comunidade andar malvestido ou sujo consumir drogas prostituirse mendigar ser desonesto brigar na rua roubar enfi m pra ticar tudo de errado Nessas diferentes defi nições fi ca claro que a qualidade de ser pobre não se equipara à qualidade de ser favelado visto que a segunda forma de classifi cação não está ligada à sua condição social mas a certos valores morais Segundo o presidente de uma das Associações de Mora dores de Acari porém o que distingue favela e bairro é ape nas uma diferença de poder aquisitivo de seus habitantes Falando em nome dos moradores argumentava que nós somos iguais aos moradores de Copacabana porque temos o mesmo atendimento da Comlurb da Light da Cedae Para ele o problema é que o favelado já se vê diferente do cara que mora no bairro Embora rejeitasse a oposição fa velabairro mostrando que a diferença é apenas social descrevia formas distintas de os moradores destes espaços lidarem por exemplo com os equipamentos públicos Rela toume por exemplo que enquanto no bairro um telefone público não é depredado pelos seus próprios moradores na favela ele seria destruído imediatamente após sua instalação por crianças ou trafi cantes temerosos de que os moradores o utilizassem para fazer denúncias acionando a polícia Em bora considere em seu exemplo aspectos que diferenciam ambos os contextos como a condição social de seus habi tantes ao fi nal de sua fala acaba admitindo que o que existe é diferença de tipos de pessoas Para outra moradora é tan to a presença do movimento quanto a de uma minoria de moradores que exibem hábitos e comportamentos depre ciativos que atribuem a Acari uma imagem pública negativa Indignada com os discursos preconceituosos que tendem a homogeneizar sua população ela dizia que a favela é suja por causa de alguns moradores e quem não tem nada com isso também sofre as consequências A distinção entre os moradores de baixa renda e aqueles considerados favelados tornase explícita em certas situa ções Por exemplo quando algum dos pavilhões da Ceasa10 é incendiado atraindo moradores de diversas regiões pobres da cidade para recolherem alimentos e objetos diversos junto aos escombros acontecimento que costuma ser amplamen te divulgado pelos meios de comunicação de massa Quando dentre essas pessoas que para lá se dirigem há moradores de 10 A Central de Abasteci mento do Rio de Janeiro localizase do outro lado da Avenida Brasil em rela ção ao Bairro acolhendo um grande número de trabalhadores que resi dem em Acari DILEMAS 108 Favela bairro ou comunidade Leticia de Luna Freire Acari tal fato é visto pelos demais moradores sobretudo os de Parque Acari como vergonhoso atribuindo essa atitude a um modo de vida favelado que contribui para uma desvalo rização da localidade Pois como me afi rmou uma moradora são essas pessoas que fazem isso aqui ser favela Diante dessa conotação pejorativa cabe notar que pra ticamente nenhum morador com o qual mantive contato se autodenominava como favelado Essa categoria era sempre utilizada para se referir ao outro Apenas alguns moradores antigos se autorreferiam dessa forma mas apenas em situa ções muito particulares com o intuito de resgatar a história da favela e exibir seu orgulho diante dos sacrifícios enfrenta dos para a sua consolidação e permanência no local Num uso ainda mais complexo da categoria uma antiga moradora me dizia que se considerava favelada apenas enquanto estava na favela dizendo comportarse diferentemente quando estava em áreas consideradas mais nobres o que era evidente nessa sua fala Aqui eu sou favelada vivo no meio de favelados Lá fora eu sou outra pessoa A diferença na maneira de falar vestirse e se expressar corporalmente dentro e fora da favela era tal que a moradora alegava ter duas personalidades Certamente essa concepção moral dos termos favela e favelado está associada ao estigma produzido historicamen te em relação a estes espaços urbanos e seus habitantes isto é à concepção da favela enquanto espaço estigmatizante Con forme indiquei no início do artigo o próprio termo favela vem ao longo do tempo adquirindo um caráter depreciativo uma vez que em torno desses espaços se construiu no imagi nário social uma série de mitos ligados à pobreza à violência e à criminalidade que se refl etiam nas ações do poder público neles empreendidas e na consequente estigmatização de seus habitantes como pobres violentos e marginais em potencial Conforme sintetiza o desabafo de uma moradora expressando as consequências sociais e psicológicas dessa estigmatização Falam que as pessoas que moram em favelas são favelados são viciados falam que gente da favela é tudo bandido Toda favela tem droga mas eu me sinto muito mal com isso No célebre livro de Goffman 1982 o autor afi rma que o estigma está relacionado com a existência de expec tativas que norteiam as relações sociais Quando entra mos em contato com um estranho os primeiros aspectos DILEMAS 109 Leticia de Luna Freire Favela bairro ou comunidade nos permitem prever a sua categoria e os seus atributos ou seja a sua identidade social No entanto sem que nos apercebamos transformamos essas préconcepções em expectativas normativas fazendo algumas afi rmativas em relação àquilo que o indivíduo à nossa frente deveria ser Assim demandamos por uma identidade social virtual baseada em nossas expectativas normativas em detrimen to de sua identidade social real ibid p12 A estigmati zação ocorre quando um dos grupos ou indivíduos envol vidos numa relação social possui um atributo não previsto e considerado negativo pelo outro Dessa forma estigma designa para Goffman a situação do indivíduo que está inabilitado para a aceitação social plena ibid p7 A respeito do morador de favela Gondim 1982 indica que o estigma não se esgota na mera situação geográfi ca mas está associado a uma condição de pobreza e a uma relação de subordinação na estrutura social as quais em última instân cia permitem a sua manipulação na política habitacional11 Esse estigma associado à pobreza e ao crime afeta os mais diversos aspectos da vida dos moradores como a busca por empregos o envolvimento amoroso a relação com a polícia ou a simples aproximação com outras pessoas Visando ame nizar esse estigma a categoria comunidade parece evocar tanto para os representantes do poder público quanto para os moradores diretamente atingidos pelo processo de estigmati zação uma alternativa simbólica viável Em Acari quando as agentes comunitárias aludiam nas reu niões com moradores à origem do termo favela12 dizendo que favela é planta elas tentavam desviarse do seu aspecto estig matizante Em lugar desta terminologia as agentes optavam por comunidade estando assim em consonância com a forma atu al com que os órgãos governamentais e as organizações da socie dade civil que vêm se proliferando nessas localidades se referem a esses espaços urbanos Além disso comunidade é também um termo comumente utilizado pelos moradores para se referirem à localidade em que vivem assim como para defi nir o grau de pertinência dos indivíduos a ela ou seja distinguindo os que são ou não da comunidade Uma líder comunitária de Parque Acari por exemplo justifi ca sua preferência por este termo por considerar que favela é um nome muito pesado defendendo inclusive a sua extinção do nosso vocabulário urbano 11 Se existe um estigma para os pobres em geral no sentido de uma classifi ca ção por atributos negativos associados à sua condição social então a situação de morar em favela é vista como um adicional a esses atributos e o favelado é du plamente estigmatizado O fato de se encontrarem numa situação ilegal com relação à propriedade da terra que ocupam torna os favelados muito mais vul neráveis à intervenção es tatal do que outros grupos de baixa renda como por exemplo os moradores de conjuntos habitacionais e de loteamentos periféricos GONDIM 1982 p 32 12 Segundo Medina 1964 o nome favela pro vém de uma planta picante que cobria os morros que circundavam Canudos no Nordeste e foi esse nome que soldados sobreviven tes da guerra de Canudos deram ao Morro da Provi dência no Rio de Janeiro onde se instalaram quan do vieram à capital da República solicitar apoio e assistência do governo em 1900 O nome rapida mente se generalizou pas sando a designar todas as formas de aglomerações de moradias com caracte rísticas semelhantes DILEMAS 110 Favela bairro ou comunidade Leticia de Luna Freire Em vez de considerar favela e comunidade como cate gorias estáticas devese compreender a forma como são ope racionalizadas pelos atores sendo seus sentidos construídos e reconstruídos dinamicamente no cotidiano de suas interações sociais Foi assim que percebi ao longo do trabalho de campo que entre os moradores comunidade carente e favela são expressões que oscilam frequentemente utilizadas para ressaltar aspectos negativos de Acari No caso da primeira quando se bus cava acentuar a pobreza e uma carência generalizada Aqui falta tudo denunciando uma situação de abandono da localidade por parte do poder público No caso da segunda quando além desses aspectos se enfatizavam as diferentes formas de violência incitadas pela presença do tráfi co de drogas armado nessas loca lidades associandoas à noção de perigo Essas imagens são utilizadas sobretudo por moradores que comporiam aquilo que Silva 1967 designou como burguesia favelada grupo de pessoas que monopoliza o acesso controle e manipulação dos recursos econômicos e das decisões e conta tos políticos na localidade em situações que envolvam algu ma negociação para obter benefícios para seu grupo social Por exemplo quando um líder local recebe visitas de autoridades e políticos especialmente em período préeleitoral ele exibe aos visitantes os cantos mais sujos e precários da favela aludindo a uma explícita negociação de troca Em prol de melhorias em termos de serviços públicos e assistência social e às vezes tam bém em favor de interesses pessoais os líderes prometem uma retribuição nas urnas tornandose importantes cabos eleitorais na localidade13 Por sua vez entre políticos e representantes do poder público comunidade carente e favela são categorias utilizadas em situações de negociação semelhantes isto é quan do pretendem ressaltar a necessidade de benfeitorias realizadas ou prometidas nessas localidades e justifi car intervenções de en frentamento do tráfi co de drogas Por outro lado a imagem idealizada de um grupo homo gêneo e coeso sugerida pelo sentido tradicional do conceito de comunidade era mais utilizada pelos moradores quando que riam ressaltar aspectos positivos de Acari tal como o presiden te da Associação de Moradores que tentando impressionar os visitantes exibia orgulhoso seus feitos pela comunidade Com efeito ao se referirem a Acari como comunidade os moradores buscavam produzir uma imagem pública positiva desvinculada 13 Nem sempre esta re tribuição se dá nas urnas pois como dizem os mora dores após as eleições os políticos tendem a esque cer a comunidade Como nos afi rmou uma líder local que desistiu de traba lhar em campanhas para políticos por perder a con fi ança neles o povo não é burro e tá cansado de ser enganado Assim como já dizia Medina 1964 p88 tal situação muitas vezes não passa de uma simu lação em que o eleitor diz que vai votar mas não vota O cabo eleitoral fi n ge que acredita mas não acredita O candidato pelo menos antes da eleição embora já informado pelo cabo eleitoral continua afi rmando que conta com o apoio de todos DILEMAS 111 Leticia de Luna Freire Favela bairro ou comunidade do estigma homogeneizante já incutido na própria noção de fave la O uso eufemístico do termo não confronta todavia o estigma mas apenas indica uma relação de cortesia necessária no curso das trocas sociais que se passam com aqueles que não podem se desfazer de suas marcas BIRMAN 200814 De modo similar a prefeitura vem optando por este termo como a forma politi camente correta de aludir a essas localidades e seus moradores mantendo entretanto o dogma de sua especifi cidade Conforme destaca Valladares 2005 apesar da existência de diferenças en tre as favelas e dentro delas dado que os poderes públicos não ignoram é sempre mais efi caz prever um alvo homogêneo ao qual corresponderão exatamente programas especiais capazes de resolver problemas sociais bem identifi cados A permanên cia da expressão população de baixa renda empregada desde os anos 1960 até o atual Programa FavelaBairro testemunharia segundo a autora também essa tendência Desse modo notase que tanto a denominação de Acari como favela quanto comunidade assim como as distinções entre favela e bairro resultam de habilidosas negociações entre os moradores e os de fora dependendo sempre dos ele mentos em jogo nas interações e da dinâmica das situações No âmbito da intervenção do Programa FavelaBairro interpreta mos o trabalho educativo das agentes comunitárias como uma tentativa de por à prova o sistema classifi catório dos moradores seduzindoos a adotar os signifi cados evocados pela prefeitura atividade que pode ou não ser bemsucedida uma vez que os nativos aqui não são passivos fi gurantes mas negociadores fun damentais nessa política do signifi cado GEERTZ 1989 14 Além da intenção de evitar mencionar a iden tificação por aquele que fala sobre o lugar estig matizante da favela o uso do termo comunidade pode expressar também segundo Birman 2008 as intenções de identificar a favela com o ideal de harmonia e de tradição de colocar em relevo ex periências pessoais posi tivas associandoas aos lugares de ocorrência e ainda de mostrar o outro lado desses territórios que se mostra contrário e mesmo antagônico à visão totalizante que os identifica de fora DILEMAS 112 Favela bairro ou comunidade Leticia de Luna Freire Referências BIRMAN Patrícia 2008 Favela é comunidade Em SILVA Luiz Antônio Machado da org Vida sob cerco violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro Rio de Janeiro Nova Fronteira BRIGGS Asa 1972 O conceito de lugar Em A Humanização do Meio Ambiente Simpósio do Instituto Smithsoniano São Paulo Cultura BURGOS Marcelo Bauman 1998 Dos parques proletários ao FavelaBairro As políticas públicas nas favelas do Rio de Ja neiro Em ZALUAR Alba e ALVITO Marcos orgs Um século de favela Rio de Janeiro FGV CARVALHO Maria Alice Rezende de CHEIBUB Zairo Borges BURGOS Marcelo Bauman e SIMAS Marcelo 1998 Cultura política e cidadania Uma proposta de metodologia de avaliação do Programa FavelaBairro Rio de Janeiro Fi nepSMHRioIuperj DAMATTA Roberto 1987 A casa e a rua Espaço cidadania mulher e morte no Brasil Rio de Janeiro Rocco FONSECA Cláudia 2000 Família fofoca e honra etnografi a de relações de gênero e violência em grupos populares Por to Alegre Editora da UniversidadeUFRGS FREIRE Leticia de Luna 2005 Tecendo as redes do Programa Fa velaBairro em Acari Dissertação mestrado em Psicologia So cial Universidade do Estado do Rio de Janeiro GEERTZ Clifford 1989 A interpretação das culturas Rio de Janeiro LTC GOFFMAN Erving 1982 Estigma Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada Rio de Janeiro Zahar GONÇALVES Rafael Soares 2007 La construction historique dun ob jet juridique Les favelas de Rio de Janeiro de la fi n du siècle à nos jours Tese doutorado Université de Paris VII Denis Diderot DILEMAS 113 Leticia de Luna Freire Favela bairro ou comunidade GONDIM Linda Maria 1982 A manipulação do es tigma de favelado na política habitacional do Rio de Janeiro Em Revista de Ciências Sociais Vol 1213 no 12 Fortaleza Edições UFC JACOBS Jane 2000 Morte e vida de grandes cidades São Paulo Martins Fontes KANT DE LIMA Roberto Carnavais malandros e heróis O dilema brasileiro do espaço público Em GOMES Laura Graziela BARBOSA Lívia e DRUMMOND José Augusto 2001 O Brasil não é para principiantes Carnavais ma landros e heróis 20 anos depois Rio de Janeiro FGV LATOUR Bruno 2000 Ciência em ação como seguir cien tistas e engenheiros sociedade afora São Paulo Unesp LEEDS Anthony e LEEDS Elizabeth 1978 A sociologia do Brasil urbano Rio de Janeiro Zahar MACHADO DA SILVA Luiz Antônio 1967 A política na favela Cadernos Brasileiros no 41 maiojunho MEDINA Carlos Alberto 1964 A favela e o demagogo São Paulo Martins MELLO M A S VOGEL A 1983 Lições da rua O que um racionalista pode aprender no Catumbi Arquitetura Revista Vol1 no1 Rio de Janeiro FAUUFRJ MELLO Marco Antonio da Silva VOGEL Arno et alii 1981 Quando a rua vira casa A apropriação de espaços de uso coletivo em um centro de bairro Rio de Janeiro Ibam MISSE Michel 2007 Mercados ilegais redes de proteção e organização local do crime no Rio de Janeiro Estudos Avançados no 2161 PERLMAN Janice E 1977 O mito da marginalidade Favelas e política no Rio de Janeiro Rio de Janeiro Paz e Terra DILEMAS 114 Favela bairro ou comunidade Leticia de Luna Freire PREFEITURA DO RIO DE JANEIRO 2003 Das remoções à Célula Urbana Evolução urbanosocial das favelas do Rio de Janeiro Rio de Janeiro Secretaria Especial de Co municação Social da Prefeitura do Rio de Janeiro 2002 Informativo habitação FavelaBairro Rio de Janeiro Secretaria Municipal de Habitação Junho 1992 Plano Diretor Decenal da Cidade do Rio de Ja neiro Rio de Janeiro Secretaria Municipal de Urbanismo 1990 Lei Orgânica Municipal Rio de Janeiro 5 de abril SANTOS Carlos Nelson Ferreira dos 1981 Movimentos Ur banos no Rio de Janeiro Rio de Janeiro Zahar Editores SILVA Maria Laís Pereira da 2005 Favelas Cariocas 1930 1964 Rio de Janeiro Contraponto SIMÕES Soraya Silveira 2008 Cruzada São Sebastião do Leblon uma etnografi a da moradia e do cotidiano dos habitantes de um conjunto habitacional na Zona Sul do Rio de Janeiro Tese dou torado em Antropologia Universidade Federal Fluminense SOUZA Marcos Alvito Pereira de 2001 As cores de Acari Rio de Janeiro FGV VALLA Victor Vincent 1986 Educação e favela políticas para as favelas do Rio de Janeiro 19401985 Petrópolis Editora VozesAbrasco VALLADARES Lícia do Prado 1978 Passase uma casa análise do programa de remoção de favelas do Rio de Janeiro Rio de Janeiro Zahar 2005 A invenção da favela do mito de origem a favelacom Rio de Janeiro Editora FGV e MEDEIROS Lídia 2003 Pensando as favelas do Rio de Janeiro 19062000 Rio de Janeiro Relume DumaráFaperjUrbandata