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BIBLIOTECA BS/CFM Meu Professor de Matemática e outras histórias Elon Lages Lima Copyright ©, 1991 by Elon Lages Lima CFN 510 L733m aceno j27454 SD 20000 6228 dt. de atração -> bacealo Ac. int. de PG.MM.M. Form. registro 38103M01 Preço O.334.080-L Cote registro 11.5.00.1 Capa: Rodolfo Capeto Diagramação e composição: GRAFTEX Comunicação Visual Tel. 274.9944, Rio de Janeiro. Prefácio Este livro é uma coleção de pequenos ensaios sobre Matemática Elemen- tar. Em sua maioria, eles foram publicados na Revista do Professor de Matemática mas alguns são inéditos. Os professores Euclides Rosa e Zoroastro Azambuja Filho gentilmente concordaram em contribuir com dois artigos cada um, pelos quais agradeço sensibilizado. Ao. publicá-lo, gostaria que ele fosse útil aos professores de Matemática e (talvez indiretamente) aos seus alunos. Espero também que alguns dos tópicos nele abordados sirvam para estudos em grupo e seminários para estudantes universitários, especialmente aqueles que visam o magistério. Respeitosamente, dedico este livro à memória do meu antigo mestre Benedito de Morais. Rio de Janeiro, dezembro de 1991. Elon Lages Lima Conteúdo Meu Professor de Matemática 1 A Equação do Terceiro Grau 11 Sobre a Evolução de Algumas Idéias Matemáticas 27 Malba Tahan e as Escravas de Olhos Azuis 43 Mania de Pitágoras 51 Como Abrir um Túnel de Você Sabe Geometria 59 O Teorema de Euler Sobre Poliedros 67 Demonstração do Teorema de Euler para Poliedros Convexos 85 Ainda Sobre o Teorema de Euler Para Poliedros Convexos 91 Como Calcular a área de um Polígono se Você Sabe Contar 101 Fazendo Médias 115 Grandezas Proporcionais 125 Comentário Sobre um Livro 143 Conceitos e Controvérsias 149 Zero é um número natural? 150 Por que (-1)(-1) = 1? 151 Por que (-1)(-1) = 1? (continuação) 153 Qual o valor de 00? 155 Qual a diferença entre círculo e circunferência? 156 Que significa a igualdade 1/9 = 0,111...? 158 Dúvidas sobre dízimas 162 Voltando a falar sobre dízimas 164 2 + 3√−1 ou 3 + 2√−1: Qual destes números é o maior? 171 O número e: por que? 173 Quais são as raízes da equação 2^x = x^2? 176 Números negativos têm logaritmo? 180 Paradoxos? 183 De onde vêm os nomes das funções trigonométricas? 187 Quantas faces tem um poliedro? 189 Sobre um problema da olimpíada 190 Novamente 00 194 Deve-se usar máquina calculadora na escola? 199 O que é o número π? 202 Numa tarde amena, de férias em Maceió, eu conversava com um conhecido, na calçada da Rua do Comércio, quando ele passou pelo lado oposto. A rua era estreita e o movimento muito pequeno. Sem deter-se, perguntou de lá: “O número é 27 ou 729?” Respondi: “Vinte e sete!” Ele: “Ah, sim, claro. Obrigado!”. A pessoa que estava comigo achou estranho alguém confundir dois números tão diferentes. Expliquei-lhe: então que 27 era parte do endereço de uma livraria, que eu dera antes àquele homem. E que, sendo 27 o cubo de 3, enquanto 729 é o cubo de 9, é natural confundir um desses números com o outro, pois 3 e seu quadrado 9 são números muito parecidos, principalmente para quem ensina todos os anos, a várias turmas, os critérios de divisibilidade. Pequenos episódios como esse ocorrem frequentemente à minha lembrança quando recordo o professor Benedito e a influência enorme que ele teve na formação de sucessivas gerações de estudantes. Essa influência transcende a sala de aula e se prolongava por toda uma vida, modesta, porém extremamente íntegra, coerente e com propósito bem definido. No breve relato que se segue, procurei esboçar o essencial de sua personalidade e da mensagem que ele transmitiu, com grande fidelidade, durante décadas. E sugerir quão me sinto privilegiado por ter cruzado sua trajetória. Meu Professor de Matemática Chamava-se Benedito de Morais. Era alto, robusto, bondoso e muito enérgico. Tinha faces rosadas, cabelos prateados e fumava um cachimbo. Carregava uma pasta de couro mole, cheia de folhas que continham as infalíveis listas de exercícios, copiadas a carbono na sua letra redonda, firme e regular. Sua voz, alta e característica, e a maneira de falar sublinhando as palavras, refletiam, como tudo nele, simplicidade, clareza e convicção. Não me consta que tenha sido ou desejado ser outra coisa senão professor de Matemática. Ensinava no Instituto de Educação (um colégio estadual, só para meninas), no Colégio Batista (onde fiz o ginásio) e em sua casa, a turmas para escolas militares, engenharia e concursos para o Banco do Brasil. Certa vez, um governador do Estado, conhecido por suas arbitrariedades, convidou-o para Secretário de Educação. Recusou assim: “Simples questão de Aritmética. No Estado ganho x, no Batista y e em casa z. Aceitando sua oferta, mantenho x, perco y e z, e ganho w. Pode até ser que x + y + z < x + w. Mas o senhor gosta de mandar e eu não gosto de ser mandado. Mais cedo ou mais tarde, terei de escolher entre fazer o que não quero ou perder w. Aí ficarei só com x. Prefiro continuar como estou, com x + y + z.” Foi meu professor no segundo, terceiro e quarto ano do ginásio e, dois anos depois, numa turma particular, em sua casa. Mas, desde os dez anos, ouvia muito falar dele, das coisas que ensinava às minhas irmãs e que depois vinha a ensinar a mim. Elas eram alunas dedicadas. A mais velha dava aulas em casa a grupos de colegas de classe e a outra costumava estudar com zêlo até as demonstrações dos teoremas de Geometria. Eu, mesmo sem querer, escutava muitas dessas coisas. Um ou dois anos depois, quando no colégio os assuntos novos me eram apresentados, vários deles me soavam bastante familiares; agora era apenas a ocasião de conhecê-los melhor. Mais tarde, tive que sair para estudar fora, mas sempre que passava as férias em Maceió, ia visitá-lo. Lembro-me bem, seguia o costume nordestino de pôr cadeiras na calçada para conversar, noite afora, sob o agradável que seu cachimbo exalava. Não sei onde estudou nem como aprendeu Matemática. É quase certo que nunca freqüentou universidade. Andou pelo Rio de Janeiro, onde serviu ao Exército e começou a torcer pelo Fluminense. Já era professor havia muitos anos quando vim a conhecê-lo. Na realidade, era um patrimônio cultural da cidade, respeitado e permanente. Assim como a estátua eqüestre do Marechal Deodoro, na praça do Teatro. Por isso foi um choque saber, anos mais tarde, que falecera. Para mim, ele ia continuar sempre. Em que pesem os bons alunos que teve, alguns dos quais tentaram segui-lo, sei de Maceió deixou de ser, para o jovem que deseja (ou precisa) aprender Matemática, o lugar privilegiado que era no meu tempo. Ficou como era antes dele. Como as outras cidades. A vida me fez conhecer depois outros lugares, países e pessoas. Alguns desses lugares eram maravilhosos e as pessoas extraordinárias. Com eles, foi-me dada a oportunidade de aprender muitas coisas. Mas o Professor Benedito foi quem melhor soube me ensinar. Suas aulas eram bem humoradas e cheias de entusiasmo pela Matemática. Eram também claras, bem organizadas, objetivas e eficientes. Sempre conseguia dar todo o programa oficial do ano. Explicava com bastante cuidado os pontos mais difíceis e requeria dos alunos apenas o que lhes ensinava. Assim, cumpria seu dever da melhor maneira possível. Em troca, não abria mão do direito de exigir que os alunos cumprissem o deles. Nunca fez concessões à fraqueza ou ao desespero de suas classes. Em cada turma havia sempre alguns que aprendiam quase tudo. Os outros tinham que lutar bravamente para sobreviver e trabalhavam duro porque sabiam que o esforço honesto era a única saída viável. Quanto a mim, suas aulas eram as que melhor se adaptavam ao meu modo de enfrentar a escola, que era o seguinte: prestar o máximo de atenção às aulas para depois não ter que estudar em casa. Isto funcionava maravilhosamente com o professor Benedito. As listas de exercícios eu fazia no recreio. E tudo o que eu deitava nas provas estava contido nas aulas que dera e que gravava na memória. Além de tudo, eu ainda ganhava de graça uma profissão. Com efeito, tendo o acaso me deixado um dia, aos dezoito anos, numa cidade estranha, sem dinheiro e sem emprego, não me preocupei muito pois estava certo de que saberia ensinar a Matemática. Bastava fazer como o Professor Benedito. Foi o que fiz e acho que deu certo. A Matemática ensinada por Benedito de Morais não era apenas um conjunto de regras e receitas válidas por decreto (o que ele chamava de método “ou crê ou morre”) nem tampouco um sistema dedutivo formal, vazio de significado. Era qualquer coisa bem próxima da realidade e das aplicações, porém organizada com definições, exemplos e demonstrações. Algumas dessas definições apelavam abertamente para a experiência intuitiva e certas de suas demonstrações também lançavam mão de argumentos não contidos nos axiomas. Isto escandalizaria um purista lógico, mas tinha o grande mérito de assentar a Matemática em bases concretas, próximas da realidade. Devo deixar claro que suas eventuais transgressões ao rigor não continham nada fundamentalmente errado: nunca subtraiu desigualdades do mesmo sentido, nunca dividiu por zero e jamais considerou raiz quadrada real de um número negativo. Simplesmente não fazia cavalo de batalha em torno de certos fatos óbvios e verdadeiros que qualquer aluno de ginásio estaria disposto a aceitar sem discutir. Por exemplo: se o ponto A está no interior e o ponto B está no exterior de uma circunferência, então ele concluía que o segmento AB tem exatamente um ponto em comum com essa circunferência, sem ter maiores considerações a respeito da continuidade da reta, nem sobre a convexidade do círculo. Para maior clareza, vejamos um exemplo de definição e outro de demonstração, tirados de suas aulas, segundo as recordo. Números: “Número inteiro é o resultado de uma contagem de objetos. Números ocorrem, mais geralmente, como resultados de medidas. Medir uma grandeza é compará-la com outra de mesma espécie chamada unidade. Se uma grandeza A está contida exatamente, numa grandeza B, um número inteiro de vezes, diz-se que B é um múltiplo de A e A é um submúltiplo de B. Se algum submúltiplo de A é também submúltiplo de B, então as grandezas A e B dizem-se comensuráveis. Caso contrário, A e B dizem-se incomensuráveis. Um número racional é a medida de uma grandeza comensurável com a unidade. Quando uma grandeza é incomensurável com a unidade, sua medida é um número irracional. Exemplos: o lado e a diagonal de um quadrado são grandezas incomensuráveis; o diâmetro e a circunferência também são incomensuráveis. Para algumas grandezas, há também uma noção de sentido, positivo ou negativo. (Exemplos: temperatura, saldo bancário, corrente elétrica, altitude etc.) A medida dessas grandezas é um número relativo, isto é, provido de um sinal + ou –.” Naturalmente, essas noções não eram apresentadas assim, de enxurrada, mas intercaladas com exemplos e explicações. O importante é notar nas definições acima uma conexão entre a Matemática e a realidade, uma explicação concreta da noção de número irracional e uma atitude honesta, direta e desmistificadora. Essas qualidades objetivas, presentes nos bons compêndios franceses de Matemática do começo do século 20 e sensatamente copiadas em nossos melhores da época, parecem ter sido erradamente varridas junto com o entulho que aqueles compêndios também continham. Foram substituídas pelo formalismo pedante e inócuo da “Matemática moderna” que hoje, em declínio acentuado, deu lugar a uma penosa indefinição de personalidade existente na maioria dos textos atuais. A propósito, Benedito de Morais nunca adotou nenhum dos textos existentes. Recomendava-os mas não os seguia. Em primeiro lugar, porque fazia tudo de modo mais simples e claro. E depois, mesmo que quisesse adotar um deles, isto seria incompatível com seu hábito de dar todo o programa, principalmente no chamado “curso colegial”. Um Teorema: Por um ponto dado numa reta passa uma e somente uma perpendicular a essa reta. Figura 1 Demonstração: Pelo ponto C da reta AB, tracemos uma semi-reta CD de modo que o ângulo DCA seja menor do que o ângulo DCB. Fazendo girar a semi-reta CD em torno do ponto C, na direção da seta, vemos que o ângulo DCA aumenta enquanto DCB diminui até ficar menor do que DCA. Logo, deve haver uma posição CE na qual os dois ângulos ACE e ECB são iguais. Então, por definição, CE é perpendicular a AB. Em qualquer outra posição CD, ou teremos DCA < ECA < DCB ou então DCB < ECB < DCA. Em qualquer caso, os dois ângulos DCA e DCB são diferentes, logo CD não é perpendicular a AB. Como aluno do terceiro ano ginasial, esta demonstração me satisfez plenamente. Mais do que isso: além de sua elegância, nela eu via um novo tipo de raciocínio (que hoje reconheço como o teorema do valor intermediário), do máximo que ainda me lembro dos seus detalhes. Mais tarde, ao prosseguir os estudos, me disseram que esta demonstração estava errada porque esquecia na ideia de movimento e na hipótese de continuidade da grandeza ângulo, coisas que não constavam dos axiomas, postulados e noções fundamentais que se admitiram no início da teoria, coisas que não tinham sido cuidadosamente discutidas antes, logo não poderiam ser utilizadas em demonstrações. A crítica acima seria válida se considerássemos a Geometria como um sistema lógico-dedutivo, onde é feita uma lista completa dos axiomas e dos conceitos básicos não definidos, a partir da qual se dão todas as definições e se provam todas as afirmações, segundo os padrões impecáveis da lógica formal. Como nos “Fundamentos da Geometria”, de Hilbert. Acontece porém que uma tal atitude não tem o menor cabimento no âmbito da Escola Secundária. A demonstração ali tem a finalidade de convencer o aluno por meio de argumentos precisos e claros, os quais poderão eventualmente valer-se de fatos aceitados (ainda que não explicitamente discutidos) que pertençam à experiência intuitiva e que possam ser provados rigorosamente em cursos mais avançados. Imperdoável seria utilizar-se de sofismas, raciocínios logicamente incorretos ou fatos matematicamente absurdos. Estou afirmando aqui que considero plenamente admissível, numa demonstração, lançar mão de resultados verdadeiros, intuitivamente óbvios, que são considerados evidentes pelos alunos, mesmo que não tenham sido enunciados logicamente. De resto, é assim que fazem os matemáticos profissionais em seus trabalhos de pesquisa. No exemplo em questão, o argumento usado para demonstrar o teorema é absolutamente correto e fácil de justificar com todo o rigor se utilizarmos coordenadas cartesianas, ou se interpretarmos os pontos do plano como números complexos. Assim, a demonstração acima para mim estava certa, depois estava errada, e afinal de contas, está certa. (Como aquela história do motorista, que pediu ao amigo: “Ponha a cabeça fora da janela e veja se a luz do pisca-pisca está acendendo”. Resposta: “Está, não está, está, não está...”) Benedito de Morais era o que se chamaria um cara “papo-firme”. Falou, está falado. Suas definições e os enunciados dos seus teoremas eram sempre formulados com as mesmas palavras, não importa quantas vezes tivesse que repeti-los. As regras são formidáveis. Facilitava grandemente a memorização, sem maior esforço. Decorar simplifica a vida e é, pelo menos, metade do compreender. Memorizar e raciocinar são funções distintas do cérebro; uma não atrapalha a outra; pelo contrário. Principalmente quando se é adolescente. Ainda hoje tenho gravadas na memória enunciados como: “Num triângulo, a altura baixada do vértice do ângulo reto é a média geométrica entre os segmentos que ela determina sobre a hipotenusa.” “Em círculos iguais ou no mesmo círculo, arcos iguais subtendem cordas iguais.” “Todo número que divide dois outros, divide também o máximo divisor comum entre eles.” E muitos outros. Acima, eu disse “as mesmas palavras”. Isto mesmo. Ele nunca enunciava teoremas, regras ou definições com símbolos. Só usava palavras. (Sempre as mesmas.) Euclides fazia assim. Legendre (e quase todos os grandes autores franceses) também. Hoje em dia, Bourbakí é um dos poucos seguidores dessa bela tradição, que não apenas torna os enunciados mais elegantes, mas ajuda muito a retê-los em nossa mente, já que ninguém pensa por meio de símbolos mas com palavras e com as ideias que elas evocam ou representam. O teorema sobre perpendiculares, que enunciamos e provamos acima, é formulado do seguinte modo num texto recente de Geometria publicado nos Estados Unidos: “Dada uma reta AB e um ponto C 2 AB, existe uma e uma só reta CD tal que CD _|_ AB”. Comparando este enunciado com o que demos acima, pode-se entender por que a Geometria perdeu tanto do seu prestígio no ensino. Era piedoso com os fracos. Quando um aluno fazia bobagens no quadro negro, nunca permitia que o criticássemos, a não ser com bons modos. Eramos proibidos de dizer “está errada”; a expressão admitida era “parece que houve um engano”, “não estou entendendo bem” ou algo assim. Nunca humilhava os alunos, tinha mais paciência com os mais atrasados embora não admitisse jamais baixar o nível ou retardar o curso por causa deles. Algumas vezes por ano, dividia a turma em dois grupos ou “times”, cada um deles com um goleiro, escolhido entre os melhores alunos. O jogo consistia em perguntas sobre um tema previamente escolhido. Cada aluno de um time fazia uma pergunta a outro do time adversário. Se este respondesse, a bola tinha sido rebatida, não fora gol e os papéis se invertiam; quem recebia a pergunta faria outra ao mesmo aluno que lhe perguntara. Se uma pergunta não fosse respondida ou tivesse resposta incorreta (segundo o juiz), isto significava que a bola tinha passado pela defesa e o goleiro quedava limpo. Se o goleiro não respondesse, era gol. Mas quem fez a pergunta tinha que saber a resposta certa, senão o gol era anulado. No final da aula, o time vencedor era premiado com lápis muito bonitos, oferta do juiz-professor. (O goleiro ganhava dois lápis.) Era muito exigente com asseio nos trabalhos, precisão de linguagem e organização nos cálculos. Insistia que o traço de fração estivesse a uma altura entre as duas barras do sinal de igualdade e que fosse a primeira coisa a ser escrita, antes do numerador e do denominador. Fazia cálculos mentais com enorme rapidez, sabia de cor os logaritmos decimais de vários números e os valores das funções trigonométricas dos arcos mais comuns. Essas habilidades lhe poupavam muito tempo e contribuíram também para impor respeito a alunos, numa faixa de idade que outros professores achavam difícil de controlar. Fora da Matemática, suas distrações eram ler romances policiais, dos quais tinha uma enorme coleção, e viajar pelo Brasil. Nas férias de cada ano, visitava um Estado diferente. Tinha um filho, que se chamava Demóstenes, e não Tales, ou Euclides, como era de se esperar. Queria que o rapaz seguisse engenharia e ficou decepcionado quando ele arranjou emprego num banco. Pelo menos cinco de seus alunos fizeram pesquisas originais que os levaram ao doutorado em Matemática: Manfredo do Carmo, Roberto Ramalho, Edmilson Pontes, Alexandre Magalhães e eu. Vários outros (inclusive, por algum tempo, minha irmã Elina) foram por ele orientados para o magistério. E inúmeros engenheiros, oficias das forças armadas, bancários, etc. devem a ele seu treinamento básico em Matemática. Para mim, Benedito de Morais é um símbolo de integridade, trabalho honesto e visão clara dos seus objetivos na vida. A única coisa que discordamos foi ele ter votado em Dutra numa eleição em que eu era jovem demais para poder votar no Brigadeiro... Agradecimento: A Manfredo do Carmo e Alexandre Magalhães por agradáveis conversas evocativas. A Equação do Terceiro Grau A história da solução da equação do terceiro grau tem vários aspectos interessantes, em virtude dos quais ela se constituiu num tópico atraente para estudo e discussão entre alunos e professores de Matemática. Um desses aspectos é o enigma histórico. Se os babilônios já sabiam resolver a equação do segundo grau mil e setecentos anos antes da era cristã, por que se teve de esperar mais de três mil anos até que Scipione Ferro resolvesse a equação do terceiro grau e Ludovico Ferrari, logo em seguida, a do quarto grau? Há também o lado humano, as figuras pitorescas e fascinantes dos homens envolvidos nas descobertas e nas disputas daí decorrentes. Além disso, tem-se ainda o aspecto científico, os progressos matemáticos que advieram da solução e o grande problema geral da resolução por radicais, somente elucidado trezentos anos depois, por Ruffini, Abel e Galois. Tudo isto sem falar no cenário, aquela notável atmosfera de elevada excitação intelectual existente na Itália da época renascentista. A fim de dar ao leitor uma ideia do ambiente em que se desenrolou a saga que vamos relatar, achamos oportuno encerrar esta introdução com dois trechos retirados do livro “Histoire des Sciences Mathématiques en Italie”, de G. Libri, Paris, 1840 (t.6, p.152 do vol. III): “Em nossa opinião, como já repetimos tantas vezes, é o caráter, é a energia que faz os grandes homens, e o talento nunca faltou aos povos que sentem e que desejam com todo ardor. Entretanto, uma reunião de homens como Leonardo da Vinci, Machiavel, Colombo, Raphael, Michelângelo, Ariosto, que congregaram plêiades de discípulos ilustres e de rivais, é um fato que nenhuma pesquisa histórica parece poder explicar.” “Os quesiti são uma coleção, em nove livros, de respostas dadas por Tartaglia a questões que lhes eram endereçadas por príncipes, monges, doutores, embaixadores, professores, arquitetos, etc. Frequentemente, essas questões continham problemas do terceiro grau. Ao ver todos esses problemas propostos no começo do século XVI, compreende-se a importância que se atribuía naquela época às descobertas algébricas. Seria difícil achar na história das ciências exemplo de fato semelhante. As apostas, as disputas públicas, os panfletos se sucediam sem interrupção: todas as classes da sociedade se interessavam por essas lutas científicas, do mesmo modo como na antiguidade se interessavam pelos desafios dos poetas e pelos jogos dos atletas. Parecia que se pressentia a descoberta, e a descoberta não se fez esperar.” Evidentemente, nas limitadas dimensões deste artigo não seria possível tratar exaustivamente todos os ângulos acima aludidos do episódio que vamos narrar. Procuraremos, entretanto, fazer uma exposição coerente e inteligível, a qual será dividida em três partes: História, Álgebra e Cálculo. 1. História Lendo o primeiro capítulo do livro de A. Aaboe “Episódios da História Antiga da Matemática”, publicado pela SBM, aprendemos que os matemáticos babilônios, por volta do ano 1700 AC, já conheciam regras para resolver equações do segundo grau, sob forma de problemas, como o de achar dois números conhecido sua soma e o seu produto p. (Esses números são as raízes da equação x^2 - sx + p = 0 e, na realidade, achar as raízes de qualquer equação do segundo grau equivaleria a resolver um problema desse tipo.) No Capítulo 2 daquele livro, aprendemos que os gregos aperfeiçoaram esse conhecimento demonstrando tais regras e conseguindo, pela utilização de processos geométricos, obter raízes irracionais (representadas por certos segmentos de retas) mesmo numa época em que os números irracionais não eram ainda conhecidos. Na “História da Matemática” de C. Boyer é contada com maiores detalhes a evolução da disciplina conhecida pelo nome de Álgebra, palavra árabe que constava do título do livro de Mohamed ibn Musa al Khowarismi, livro que teve grande influência na preservação do conhecimento matemático durante a Idade Média. Ainda no livro de Boyer, lemos sobre as contribuições do extraordinário matemático Leonardo de Pisa, conhecido como Fibonacci, que viveu no começo do século XII, foi autor de livros notáveis, continuando a obra de Diofante de Alexandria sobre soluções inteiras de equações indeterminadas e teve seu nome imortalizado na “sequência de Fibonacci” 1, 1, 2, 3, 5, 8, 13 etc, onde cada termo, a partir do terceiro, é a soma dos dois que o precedem imediatamente. Esta sequência originou-se num problema sobre reprodução de coelhos mas tem aplicações surpreendentes e variadas. (v. pag. 186 do livro de Boyer.) Os livros de Fibonacci, embora de alto valor científico, não tiveram aceitação e influência educacional comparáveis, por exemplo, às de al Khowarismi, um compilador muito bem sucedido. No meio do século XV teve início o fenômeno sócio-cultural conhecido como a Renascença, caracterizado por uma renovação do interesse pelas coisas do espírito em seus mais altos níveis, por uma efervescência criativa e uma extraordinária explosão produtiva nas artes plásticas, literatura, arquitetura e ciências. Seu epicentro se localizou na Itália, onde surgiram gênios do porte daqueles já mencionados por G. Libri, aos quais acrescentaremos Scipione Ferro, Girolamo Cardano, Niccolò Tartaglia, Ludovico Ferrari e Galileu Galilei, que nasceu no dia em que morreu Michelângelo e viria a morrer no ano do nascimento de Isaac Newton, fazendo lembrar uma corrida de revezamento olímpico. Em 1494, Frei Luca Pacioli, amigo de Leonardo da Vinci, renomado professor de Matemática, tendo ensinado em diversas Universidades da Itália, escreveu o livro “Summa de Aritmética e Geometria”, um bom compêndio de Matemática, contendo noções de cálculo aritmético, radicais, problemas envolvendo equações do primeiro e segundo grau, geometria e contabilidade. Até o aparecimento da Álgebra de Raphael Bombelli, em 1572, o livro de Luca Pacioli (que tinha, além de suas qualidades intrínsecas, a vantagem sobre seus predecessores trazida pela invenção de Guttenberg) teve grande divulgação e prestígio. Como era o costume, a incógnita, que hoje chamamos x, era nele denominada “a coisa”, enquanto x^2 era “censo”, x^3 era “cubo”, x^4 era censco censce, etc. A Álgebra era na época chamada “a arte da coisa” ou “arte maior”. Depois de ensinar, sob forma de versos, a regra para resolver a equação do segundo grau, Pacioli afirmava que não podia haver regra geral para a solução de problemas do tipo “cubo e coisas igual a número”, ou seja, x^3 + px = q. Muitos matemáticos, entre os quais Girolamo Cardano, de quem falaremos a seguir, acreditaram nessa afirmativa peremptória de Pacioli. Mas um, pelo menos, não acreditou e fez muito bem em ser cético. Coube a Scipione Ferro (1465 + 61 = 1526), professor da Universidade de Bolonha, personagem sobre cuja vida muito pouco se conhece, a glória de resolver esse problema de 3 mil anos. Ao que se saiba, ninguém jamais superou seu recorde, resolvendo um problema que tinha desafiado a argúcia dos matemáticos por mais tempo. O curioso é que Ferro nunca publicou sua solução. Na realidade, nunca publicou nada. Sabemos que a duas pessoas ele comunicou o segredo da solução dos problemas do tipo “cubo e coisas igual a número” (x^3 + px = q) e “cubo igual a coisas e número” (x^3 = px + q): seus discípulos Annibale Della Nave (mais tarde seu genro e sucessor na cadeira de Matemática em Bolonha) e Antonio Maria Fiore. A este último, deu a regra mas não a prova. A descoberta ocorreu provavelmente em torno de 1515. Em 1535 Fiore teve a infeliz ideia de desafiar Tartaglia para uma disputa matemática. Como vimos acima, esses duelos intelectuais não eram infrequentes. Eram cercados de ritual, presididos por alguma autoridade e muitas vezes assistidos por numerosa audiência. Alguns contratos de professores universitários eram temporários e muitas vezes a permanência na cátedra dependia de um bom desempenho nessas disputas. Isto talvez explique a atitude sigilosa de Ferro; era bom ter uma bala na agulha para o caso de necessidade. Divulgar sua descoberta seria gastar munição à toa. Niccoló Tartaglia era professor em Veneza e já tinha derrotado muitos desafiante. Fiore propôs 30 problemas, todos envolvendo, de um modo ou de outro, equações do terceiro grau. Tartaglia fez também sua lista, de natureza bem mais variada. A única arma de Fiore era a fórmula de Ferro. As de Tartaglia eram seu sólido conhecimento e sua inteligência. Oito dias antes do encontro, depois de longas tentativas, ocorreu a Tartaglia como deduzir a fórmula da equação do terceiro grau. Sem dúvida, isto foi um notável descoberta, porém não tão grande quanto a de Ferro pois Tartaglia sabia, pelas questões que lhe foram propostas, que uma tal fórmula devia existir, enquanto Ferro não podia ter essa certeza. Quem já fez pesquisa em Matemática sabe a grande diferença que isso faz. É a mesma que existe entre resolver um exercício ou demonstrar um novo teorema. Seja como for, Tartaglia resolveu de um golpe os 30 problemas de Fiore, ganhou a disputa e recusou magnanimamente os 30 banquetes estipulados como prêmio ao vencedor. Notícias sobre o concurso e a natureza dos problemas resolvidos chegaram a Milão, onde vivia o doutor Girolamo Cardano, que ficou muito curioso para saber se e como fora conseguido aquilo que Pacioli julgara impossível. Cardano usou de todos os meios para atrair Tartaglia a sua casa e lá, mediante promessa de guardar segredo, obteve dele, em 1539, a regra para resolver a equação x^3 + px = q, dada sob forma de versos um tanto enigmáticos, sem nenhuma indicação de prova. A vida de Niccolò Tartaglia (1499 + 58 = 1557) foi muito difícil. Nascido em Brescia, ficou órfão de pai aos seis anos e foi criado, com seus três irmãos, por uma mãe devotada e paupérrima. Aos 14 anos, no saque de Brescia por tropas francesas, refugiou-se na Catedral mas, ali mesmo, foi seriamente ferido no rosto por golpes de sabre que lhe deixaram desfigurado e, por longo tempo, quase sem poder falar. Isto lhe valeu o apelido de Tartaglia (o tartamudo), que posteriormente assumiu como sobrenome. Aprendeu sozinho, “somente em companhia de uma filha da pobreza chamada diliġència, estudando continuamente as obras dos homens defunctos”. Superou todas as dificuldades e conseguiu chegar ao limite do conhecimento da época em Matemática, Mecânica, Artilharia e Agrimensura. Descobriu a lei de formação dos coeficientes de (x + a)^n e foi autor de algumas descobertas sobre tiro e fortificações. Por causa delas, sonhava conseguir recompensa do comandante militar de Milão. Esta foi a isca usada por Cardano para atraí-lo. Girolamo Cardano (1501 + 75 = 1576) era um personagem rico em facetas contraditórias e em talentos vários. Sua vida lhe trouxe alternâncias de fama, fortuna, prestigio, desgraça familiar, severas punições e pobreza. Era médico, astrônomo, astrólogo, matemático, filósofo, jogador inveterado e um incansável investigador, cuja curiosidade e interesse por todos os tipos de conhecimento não tinham limites. Escreveu muitos livros sobre todos estes assuntos (mais de cem!), inclusive uma interessantíssima e reveladora autobiografia. Tendo conseguido melhorar vários assuntos tratados por Pacioli, Cardano pretendia publicar um livro de Álgebra, ajudado por seu brilhante e fiel discípulo Ludovico Ferrari. Depois da visita de Tartaglia, Cardano, com algum esforço, conseguiu demonstrar a validade da regra para resolver a equação x^3 + px = q. Naquela época, não era costume concentrar os termos da equação no primeiro membro, deixando apenas zero depois do sinal de igualdade. Nem se percebia que uma equação sem o termo x^2 é o mesmo que ter o mesmo termo com coeficiente zero. Cardano mostrou que a substituição z = y - q/3 permite eliminar o termo em z^2 na equação geral z^3 + az^2 + bz + c = 0 e, ao todo, deduzir as fórmulas para resolver 13 tipos de equações do terceiro grau! Evidentemente, hoje essas fórmulas se reduziram a uma única. Mas é preciso observar que as equações daquele tempo eram todas numéricas. (O uso de letras para representar números em Álgebra teve início com François Viète, em 1591.) Logo, a rigor, não havia fórmulas e sim receitas ou regras, explicadas com exemplos numéricos, uma regra para x^3 + px = q, outra para x^3 = px + q, outra para x^3 + px^2 = q, etc. Os estudos de Cardano, feitos com a colaboração de Ferrari, o qual obteve o solução por radicais da equação do quarto grau, conduziram a importantes avanços na teoria das equações, como o reconhecimento de raizes múltiplas em vários casos, relações entre coeficientes e raízes, e aceitação de raízes negativas, irracionais e imaginárias. (Por estes últimos nomes pode-se perceber a má vontade secular para considerá-las.) Cardano, entretanto, nunca enunciou explicitamente que uma equação qualquer do terceiro grau deve ter três raízes e uma do quarto grau quatro raízes. Isto foi feito depois, por Bombelli. Todos esses progressos eram razões mais do que suficientes para a publicação de um livro sobre o assunto. Mas isto ele estava impedido de fazer em virtude de seu juramento a Tartaglia. Em 1542, entretanto, Cardano e Ferrari visitaram Bolonha e lá obtiveram permissão de Della Nave para examinar os manuscritos deixados por Ferro, entre os quais estava a solução da equação x^3 + px = q. O juramento de Cardano o proibia de publicar a solução de Tartaglia mas não a de Ferro, obtida muito antes. Por isso, ele se considerou desobrigado de qualquer compromisso e voltou-se, com energia, à preparação de seu grande livro “Ars Magna”, que foi publicado em 1545. O aparecimento dessa notável obra foi recebido favoravelmente pelos entendidos mas provocou reação bem desfavorável de Tartaglia. Sobre a Evolução de Algumas Ideias Matemáticas 34 cuja distância à origem é igual a 1. Assim, o ponto z = (x, y) pertence a S¹ se, e somente se, x² + y² = 1 ou, o que é o mesmo, x² + y² = 1. Portanto, os pontos (1,0), (0,1), (1/2, √3/2) e (√2/2, √2/2) pertencem a S¹. Note que o “círculo” S¹ é, na realidade, uma circunferência. A este respeito, vide a seção “Conceitos e Controvérsias”. Agora definirmos a função E: R → S¹. Dado o número real t > 0, medimos no círculo S¹, a partir do ponto U = (1,0), um arco de comprimento t, sempre percorrendo o círculo no sentido positivo (contrário ao movimento dos ponteiros de um relógio, ou seja, o sentido que nos leva de (1,0) a (0,1) pelo caminho mais curto em S¹). A extremidade final deste arco é o ponto que chamaremos de E(t). Se for t < 0, E(t) será a extremidade final de um arco de comprimento t, medido a partir do ponto U = (1,0), no sentido negativo de S¹ (isto é, no sentido do movimento dos ponteiros de um relógio). Observe que, como o comprimento de S¹ é igual a 2π, se tivermos t > 2π ou t < −2π, para descrevermos um arco de comprimento t | a partir do ponto U = (1,0) teremos de dar mais de uma volta ao longo de S¹. Em particular, se t = 2kπ, onde k é um inteiro (positivo, negativo ou nulo), temos E(2kπ) = U. Mais geralmente, para qualquer t ∈ R, vale E(t + 2kπ) = E(t), quando k é um inteiro qualquer. A função de Euler E: R → S¹ consiste em envolver a reta R, pensando esta como um fio inextensível, sobre o círculo S¹ (imaginado como um carretel) de modo que o ponto 0 ∈ R caia sobre o ponto U = (1,0) ∈ S¹. Com auxílio da função E: R → S¹, podemos definir o cosseno e o seno de um número real t. Dado t ∈ R, seja E(t) = (x, y). Pomos cos t = x e sen t = y. Portanto, x = cos t é a abscissa e y = sen t é a ordenada do ponto E(t), todas as propriedades de cos t e sen t resultam desta definição. Quando 0 < t < π, notamos que cos t = cos α e sen t = sen α, onde α é o ângulo que tem o vértice na origem e cujos lados são o semi-eixo positivo das abscissas e a semi-reta que sai da origem e passa pelo ponto E(t). Esta observação estabelece a conexão entre o cosseno e o seno de um número, por um lado, e o cosseno e o seno de um ângulo, por outro lado. Dado um ângulo α, se descrevemos uma circunferência de raio 1 tendo como centro o vértice de α e chamamos de t o comprimento do arco Sobre a Evolução de Algumas Ideias Matemáticas 35 que os lados de α subtendem nessa circunferência, o número t chama-se a medida de α em radianos. Figura 3. Assim, um ângulo reto mede π/2 radianos porque seus lados subtendem numa circunferência de raio 1 um arco igual à quarta parte dessa circunferência. Podemos então dizer que se 0 < t < π então cos t = cos α, onde α é um ângulo que mede t radianos. A função de Euler E: R → S¹, possibilitando considerar cos t e sen t como funções da variável real t, abrir para a Trigonometria as portas da Análise Matemática e de inúmeras aplicações importantes às Ciências Físicas. Uma propriedade fundamental dessas funções é que elas são periódicas, isto é, para todo t ∈ R, temos cos(t + 2π) = cos t e sen(t + 2π) = sen t. Isto se exprime dizendo que 2π é o período das funções cos t e sen t. (É claro, pelo que vimos acima, que qualquer outro múltiplo inteiro de 2π é também um período para estas funções). Mais geralmente, dado qualquer número real T, a função f(t) = sen(2πt/T) satisfaz a identidade f(t + T) = f(t), logo é uma função periódica como período T. Portanto, usando as funções trigonométricas, podemos obter funções com qualquer período. Ora, a periodicidade é uma característica presente em quase tudo que nos cerca, desde o movimento de um planeta em torno do sol, ou de um elétron ao redor do núcleo, às batidas do nosso coração. Periodicidade é Sobre a Evolução de Algumas Ideias Matemáticas 30 (de animais ou bactérias), a radioatividade de uma substância, ou um capital que sofre desconto. Nos dois últimos exemplos, a grandeza diminui com o tempo, de modo que sua lei de variação é da forma x = a · exp(bt), com a = valor inicial, t = tempo e b < 0. Resumindo: um matemático ou astrônomo do século 17 achava os logaritmos importantes porque eles lhe permitiam efetuar cálculos com rapidez e eficiência. Um matemático de hoje acha que a função logaritmo e sua inversa, a função exponencial, ocupam uma posição central na Análise Matemática por causa de suas propriedades funcionais, muito especialmente na equação diferencial x' = c · x, a qual descreve a evolução de grandezas que, em cada instante, sofrem uma variação proporcional ao seu valor naquele instante. 2. Números complexos Um número complexo tem a forma a + ib, ou a + bi, onde a e b são números reais e a “unidade imaginária” i é um novo número, tal que i² = -1. Por isso às vezes se escreve i = √-1. Os números complexos surgiram em Matemática a fim de tornar possível a raiz quadrada de um número negativo. Por exemplo: √-9 = 3i. Consequentemente, toda equação do segundo grau passou a ter raízes. Por exemplo x² – 2x + 5 = 0 possui raízes complexas 1 + 2i e 1 – 2i. Mas notável (e inesperado) é que, quando se acrescentou aos números reais o número i, de modo que passassem a existir as raízes ±i da equação x² + 1 = 0, não foi mais necessário inventar novos números para que tivéssemos raízes todas as demais equações algébricas, sejam quais fossem os seus graus. Com efeito, o chamado “Teorema Fundamental da Álgebra”, cuja demonstração se deve inicialmente a Euler e d’Alembert e posteriormente, em forma definitiva, a Gauss, diz que, dado qualquer polinômio p(z) = a₀ + a₁z + ... + aₙzⁿ, existem números complexos r₁, r₂,..., rₙ tais que p(z) = a₀(z – r₁)(z – r₂)...(z – rₙ). Segue-se daí que p(r₁) = 0, p(r₂) = 0,..., p(rₙ) = 0, isto é, os números complexos r₁, r₂,..., rₙ são as raízes da equação algébrica p(z) = 0. Assim os números complexos, introduzidos em Matemática para que tivéssemos raízes às equações algébricas do segundo grau, são suficientes Sobre a Evolução de Algumas Ideias Matemáticas 31 para dotarem de raízes as equações do terceiro, quarto, quinto, e todos os demais graus. Este fato somente já é responsável em boa parte pela relevância matemática dos números complexos, indispensáveis em Álgebra Linear, Equações Diferenciais e em várias situações nas quais, mesmo que se desejem estudar apenas questões relativas a números reais, é indispensável considerar números complexos para se obter a solução real desejada. Um exemplo do fenômeno acima mencionado, aliás, já havia ocorrido na Renascença, nos trabalhos dos algebristas italianos Ferro, Tartaglia, Cardano e Ferrari, que culminaram com a descoberta das fórmulas de resolução das equações do terceiro e quarto grau. A fórmula da equação do terceiro grau envolve raízes quadradas e cúbicas. Cardano notou que algumas equações do terceiro grau têm as 3 raízes reais mas na fórmula que as fornece ocorrem raízes quadradas de números negativos. Assim, para chegar a essas raízes reais, é preciso primeiro passar pelos números complexos. Hoje em dia já se sabe (é um teorema) que se os coeficientes de uma equação do terceiro grau são números inteiros e as 3 raízes são números reais irracionais então é impossível exprimir essas raízes por meio de fórmulas nas quais os coeficientes são submetidos a operações algébricas e radicais, sem que em algum lugar apareça a raiz quadrada de um número negativo. Não se julgue, entretanto, que a importância dos números complexos resulta apenas do Teorema Fundamental da Álgebra. Eles se fazem presentes em praticamente todos os grandes ramos da Matemática como Álgebra, Teoria dos Números, Topologia, Geometria (Analítica, Diferencial ou Algébrica), Análise, Equações Diferenciais e em aplicações como Física Matemática, Dinâmica dos Fluidos, Eletromagnetismo, etc. A Teoria das Funções de Variável Complexa é uma área nobre, de grande tradição matemática e, ao mesmo tempo, com notável vitalidade, refletida na intensa atividade de pesquisa que se desenvolve nos dias atuais. 3. Trigonometria A Trigonometria foi inventada há mais de dois mil anos. Ela consiste, essencialmente, em associar a cada ângulo α certos números como cos α (o cosseno de α) e sen α (o seno de α), que, como os quais representam, de certo modo, uma espécie de “medida” daquele ângulo. Melhor dizendo, esses números constituem um grande passo à frente nos estudos Sobre a Evolução de Algumas Ideias Matemáticas 32 das chamadas “relações métricas” nos triângulos porque estas, tradicionalmente, estabelecem fórmulas que relacionam entre si comprimentos de segmentos (tais como lados, alturas, bissetrizes, etc.) enquanto as funções trigonométricas relacionam ângulos com lados. A base teórica na qual se fundamentou originalmente a Trigonometria foi a semelhança de triângulos. Dado um ângulo retângulo ABC, do qual ∠BAC seja um dos ângulos, se AC é a hipotenusa, define-se cos α = AB/AC e sen α = BC/AC. Se tivéssemos construído qualquer outro triângulo A'B'C' de modo análogo, ele seria semelhante a ABC por ter um ângulo agudo comum, logo AB/AC = A'B'/A'C" e BC/AC = B"C'/A'C'. Portanto, a semelhança de triângulos garante que as definições de cos α e sen α são coerentes, isto é, não dependem de qual tenha sido o triângulo retângulo ABC escolhido. A relação fundamental entre cos α e sen α é a fórmula cos² α + sen² α = 1. (É um costume antigo e conveniente escrever-se cos² α e sen² α em vez de (cos α)² e (sen α)² respectiva mente.) Esta fórmula resulta imediatamente do Teorema de Pitágoras, segundo o qual (AC)² = (AB)² + (BC)². Figura 1. Se o ângulo α é obtuso (maior do que um e menor do que dois retos) considera-se seu suplemento α' e pôe-se, por definição, cos α = – cos α', sen α = sen α'. A motivação original da Trigonometria foi o problema da “resolução de triângulos”, que consiste em determinar os 6 elementos de um triângulo (3 lados e 3 ângulos) quando conhecem 3 deles, correspondentes aos casos clássicos de congruência (3 lados, ou 2 lados mais o ângulo compreendido, ou 2 ângulos e o lado compreendido). O surgimento do Cálculo Infinitesimal e, posteriormente, de seu pro BSI/CFM 0.334.030.4 Sobre a Evolução de Algumas Ideias Matemáticas 33 longamento teórico, a Análise Matemática, veio dar uma nova dimensão às noções básicas da Trigonometria, como seno, cosseno e às noções associadas de tangente, secante, etc. Para isso, é indispensável considerar as funções cos t e sen t definidas para todo número real t. Ou seja, é preciso falar em cosseno e seno de um número, em vez de um ângulo. A transição é feita por meio de uma função, que chamaremos a função de Euler. O domínio da função de Euler é o conjunto R dos números reais. Seu contra-domínio é o círculo unitário do plano, que representaremos por S¹. Assim, a cada número real t, a função E faz corresponder um ponto E(t) do círculo S¹. Para definir precisamente o círculo S¹, introduzimos no plano um sistema de coordenadas cartesianas, de modo que todo ponto z do plano passa a ser representado com um par ordenado z = (x, y), onde x é a sua abscissa e y sua ordenada. Pelo Teorema de Pitágoras, a distância do ponto z = (x, y) ao ponto w = (u, v) é 𝓓(z,w) = √(x – u)² + (y – v)². Em particular, a distância de z = (x, y) à origem O = (0,0) é igual a √x² + y². O círculo unitário S¹ é, por definição, o conjunto dos pontos do plano (1,0) x² + y² = 1 Figura 2. 36 Sobre a Evolução de Algumas Ideias Matemáticas uma ideia muito próxima de oscilação (ou vibração), outro fato ubíquo, presente nas cordas de um violino que nos eleva e na corrente alternada que usamos em nossas casas. As funções periódicas são o instrumento matemático adequado para descrever todos os fenômenos periódicos. Dado o evidente interesse que se tem por entender fatos como os acima citados, não é difícil perceber a importância enorme das funções trigonométricas na Matemática e na Física, principalmente depois que o matemático francês Joseph Fourier mostrou (em 1822), no seu consagrado estudo sobre a transmissão do calor, que toda função pode, sob hipóteses bem razoáveis, ser obtida como soma de uma série cujos termos são senos ou cossenos (“série de Fourier”). Isto foi o ponto de partida da chamada Análise de Fourier ou, mais geralmente, da Análise Harmônica, um ramo central da Matemática contemporânea. 4. Síntese Os comentários acima visam orientar o professor de Matemática do 2o grau em relação à importância, à posição científica e às possíveis aplicações de três tópicos que constam do seu programa de ensino. Espero que eles ajudem a responder a perguntas do tipo “para que serve?” e a fazer o professor sentir-se mais consciente da perspectiva histórica e do significado da matemática que está transmitindo a seus alunos. Este parágrafo final, entretanto, é de natureza diferente, pois é mais diretamente ligado ao dia-a-dia do professor em suas aulas. Mostraremos aqui como a função de Euler E: R → S1, definida na seção 3, estabelece uma conexão entre logaritmos, números complexos e Trigonometria, efetuando uma síntese entre essas três disciplinas. O primeiro passo nessa direção consiste em interpretar geometricamente um número complexo como um ponto do plano, em analogia com a imagem de um número real como um ponto de uma reta. Introduzindo coordenadas cartesianas, por meio de dois eixos perpendiculares, cada ponto do plano é representado como um par ordenado z = (x, y) de números reais: sua abscissa x e sua ordenada y. Sendo o número complexo z = x + iy, em última análise, (ou em princípio) um par de números reais, é natural identificar o número complexo z = x + iy com o ponto z = (x, y) do plano cartesiano. Feito isto, as operações de adição e multiplicação de números complexos devem possuir interpretações geométricas. Para a adição, não há difi- 37 Sobre a Evolução de Algumas Ideias Matemáticas culdade. Dados z = x+iy e w = u+iv, a soma z+w = (x+u)+i(y+v) é o quarto vértice do paralelogramo cujos três outros vértices são a origem 0 = 0 + i0 e os pontos z, w. Figura 4. Figura 5. Para interpretar geometricamente a multiplicação, vamos esperar um pouquinho. Antes, associemos a cada número complexo z = x + iy seu módulo |z| = √x² + y² e seu conjugado z̅ = x - iy. Geometricamente, o número real não-negativo |z| é a distância do ponto z à origem, enquanto z̅ é o ponto simétrico de z em relação ao eixo das abcissas. Observemos que |z| = |z̅| e que |z - w| = √(x - u)² + (y - v)² é a distância entre os pontos z = x + iy e w = u + iv. 38 Sobre a Evolução de Algumas Ideias Matemáticas O produto dos números complexos z = x + iy e w = u + iv é definido como z · w = (xu - yv) + i(xv + yu). A multiplicação de números complexos é comutativa, associativa, distributiva em relação à adição e o número 1 = 1 + i · 0 é seu elemento neutro, isto é, 1 · z = z para todo z. (Na seção 3, foi usada a notação U = 1 + i · 0 = (1, 0) para indicar este número. Isto será feito novamente, quando for conveniente.) Além disso, todo número complexo z = x + iy ≠ 0 possui o inverso multiplicativo z⁻¹ = x/(x² + y²) - i(y/(x² + y²)) = z̅/|z|² pois z · z⁻¹ = 1, como se verifica, a partir da definição. Note que z ≠ 0 significa que x² + y² ≠ 0. O círculo unitário S¹ passa a ser visto como o conjunto dos números complexos de módulo 1. Se z ∈ S¹, isto é, |z| = 1, então z⁻¹ = z̅. Ou seja, o inverso de um número complexo de módulo 1 coincide com seu conjugado. Em particular z ∈ S¹ implica z⁻¹ ∈ S¹. A adição e a multiplicação de números complexos se relacionam com o módulo da seguinte maneira: |z + w| ≤ |z| + |w| e |z · w| = |z| · |w|. A primeira destas relações resulta de ser o comprimento |z + w| de um lado de um triângulo inferior à soma |z| + |w| dos comprimentos dos outros dois lados. A desigualdade |z + w| ≤ |z| + |w| também pode ser demonstrada aritmeticamente, mas, no momento, estamos mais interessados nas formulas |z| · |w| = |z · w|. Sejam z = x + iy e w = u + iv. Como os dois membros da igualdade proposta |z · w| = |z| · |w| são não-negativos, basta provar que |z · w|² = |z|² · |w|², ou seja, ((xv + yu)² + (xu - yv)²) = (x² + y²)(u² + v²), o que se verifica facilmente quando se efetuam as operações indicadas. Segue-se, em particular, que se |z| = 1 e |w| = 1 então |z · w| = 1. Assim, o círculo unitário S¹ é fechado em relação às operações de multiplicação e tomar o inverso z̅ = 1⁻ do um número complexo. Isto se estiver dizendo que S¹ é um grupo multiplicativo. Outra consequência da igualdade |z · w| = |z| · |w| é que se c = a + ib tem módulo 1 então a distância |z - w| entre 2 pontos quaisquer z, w do plano é igual à distância |c · z - c · w| entre os pontos c · z e c · w. Basta notar que |c · z - c · w| = |c| · |z - w| = |z - w|. Em particular, dados quaisquer números reais s, t, como E(t) ≠ cost + i sent tem módulo 1, a distância |E(s) · E(t) - E(t)| = |E(s) · E(t) - E(t) · U| 39 Sobre a Evolução de Algumas Ideias Matemáticas é igual à distância |E(s) - U|. (Lembre-se que U = 1 + i · 0.) Assim o arco cujas extremidades são E(s), E(t), E(t) e o arco cujas extremidades são E(s), U subtendem cordas iguais no círculo S¹. Logo esses arcos têm o mesmo comprimento s. Consequentemente, o arco que vai de U a E(s), E(t) tem comprimento s + t, isto é, E(s) · E(t) = E(s + t). Figura 6. A identidade E(s + t) = E(s) · E(t), que acabamos de provar, é o fato mais importante a respeito da função de Euler E: R → S¹. Se escrevermos E(s + t) = cos(s + t) + i · sen(s + t), E(s) = cos s + i · sen s, E(t) = cos t + i · sen t e efetuarmos a multiplicação de números complexos indicada no segundo membro, ela se torna cos(s + t) + i · sen(s + t) = (cos s · cos t - sen s · sen t) + i · (cos s · sen t + sen s · cos t). Igualando as partes reais e imaginárias dos dois membros, obtemos 40 Sobre a Evolução de Algumas Ideias Matemáticas as fórmulas clássicas da Trigonometria: cos(s + t) = cos s · cos t - sen s · sen t, sen(s + t) = cos s · sen t + sen s · cos t. Reciprocamente, se tivéssemos admitido estas fórmulas como conhecidas, delas resultaria a identidade E(s + t) = E(s) · E(t). Esta identidade mostra que E(t) se comporta como uma potência de exponente t, o que levou Euler a propor a definição eit = E(t), ou seja, eit = cos t + i · sen t para a potência de exponente imaginário it e, mais geralmente, ez = ex+iy = ex · eiy = ex · (cos y + i sen y) para a potência de base “e” com exponente complexo z = x + iy. Estas definições estão de pleno acordo com os desenvolvimentos em série de Taylor das funções ex, cos x e sen x. Elas servem de base para estender a noção de logaritmo para os números negativos e mesmo para os números complexos. (Veja a seção 1 em “Números negativos possuem logaritmo?”, no capítulo “Conceitos e Controvérsias”.) A identidade E(s + t) = E(s) · E(t) fornece a interpretação geométrica para a multiplicação de números complexos. Dado z ≠ 0 podemos escrever z = |z| · E(s), onde s é o comprimento do arco de S¹ que vai desde o ponto U = 1 + i · 0 até a interseção de S¹ com a semi-reta Oz. O número real s é chamado (um) argumento do número complexo z... (Outros argumentos de z são s + 2kπ, k inteiro.) Analogamente, se w ≠ 0, podemos escrever w = |w| · E(t). Então z · w = |z| · |w| · E(s) · E(t) = |z| · |w| · E(s + t). 41 Sobre a Evolução de Algumas Ideias Matemáticas Figura 7. Geometricamente, esta igualdade significa que z · w é obtido de w multiplcando-se seu módulo por |z| e dando a w uma rotação de s radianos em torno da origem. Por exemplo, como i := E(π/2), dado qualquer número complexo w, o produto iw é obtido de w por uma rotação de 90 graus no sentido positivo. (Como |i²| = 1, os módulos de w e de iw são iguais.) Zoroastro Azambuja Filho foi professor de Matemática no Estado e na rede particular do Rio de Janeiro. Tendo começado muito cedo, aposentou-se ainda em pleno vigor e, nos últimos anos, vive num sítio em Jacarepaguá, onde cuida da horta, de seus discos e seus livros. Mas, em vez de rocks rurais, graças a Deus, ocasionalmente nos brinda com sua agradável conversação matemática, da qual a peça sobre Malba Tahan é um exemplo. Sua inclusão nesta coletânea justifica-se tanto pela divulgação de um livro muito interessante e pelo fino perfil que traça do seu autor, como pela surpresa na conclusão, com um final contundente. Quanto à frase final do ensaio, lamento estragar o suspense de Zoroastro. Ele é uma dessas raras pessoas que têm olhos de cores diferentes: um é verde e o outro castanho. Malba Tahan e as Escravas de Olhos Azuis Na seção de livros de uma loja de departamentos, deparei-me outro dia, por acaso, com um exemplar da 27ª edição de “O Homem que Calculava” de Malba Tahan. (Editora Record, Rio de Janeiro, 1983.) Quarenta anos depois de o ter lido pela primeira vez, não resisti à tentação nostálgica de reviver antigas emoções. Comprei-o e o reli. Para os mais jovens leitores da RPM, talvez tenha alguma utilidade dizer algumas palavras sobre esse autor e sua obra. Malba Tahan, pseudônimo do Professor Júlio César de Mello e Souza, exerceu uma influência singular entre os estudantes da minha geração. Para os não-especialistas, em particular para a imprensa, ele foi, enquanto viveu, o maior matemático do Brasil. Esse julgamento, que pouco tinha a ver com a realidade, resultava principalmente do grande número de livros que ele escreveu (quase uma centena!), muitos deles sobre Matemática. Eram livros de divulgação, escritos num estilo claro, simples e agradável, peculiar ao autor. Neles, a ênfase maior era dada à História da Matemática e a exposições sobre tópicos elementares, inclusive da Matemática que fora moderna no princípio deste século, com destaque para aspectos pitorescos, paradoxais, surpreendentes ou controversos. Embora os livros de Malba Tahan tenham sido criticados por tratarem seus assuntos de forma superficial, por conterem alguns erros sérios de concepção, por serem, em grande parte, meras compilações e coletâneas de citações, é forçoso reconhecer que alguns desses livros tiveram grande aceitação, o que significa que havia no país um numeroso público, na maioria jovem, ávido por conhecer melhor a Matemática, sua história e seus desenvolvimentos. Principalmente pessoas ansiosas por ouvir alguém falar da Matemática sob forma menos árida e antipática do que seus tradicionais e severos professores, com seus igualmente áridos compêndios. Essa necessidade foi suprida, devemos admitir, com bastante sucesso, por Malba Tahan. Olhando em retrospecto, podemos hoje achar que esse papel de propaganda da Matemática deveria ter sido ocupado por alguém com melhor treinamento profissional, isto é, com mais competência científica. Alguém como Amoroso Costa, talvez. Mas Amoroso morreu cedo e, mesmo assim, em que pese sua vasta cultura, o país ainda não estava maduro para um divulgador do seu nível. Malba Tahan surgiu na hora certa, com o nível e o estilo que minha geração queria. Se o analisarmos como matemático, estaremos olhando para o lado errado. Mas, se mudarmos o enfoque, podemos vê-lo mais adequadamente, como jornalista, divulgador, antologista e contador de histórias. Como contador de histórias, ele tem grandes momentos e “O Homem que Calculava” é o seu melhor trabalho. Em suas 27 edições, “O Homem que Calculava” muito fez para estimular o cultivo da arte de resolver problemas, incutir o amor pela Matemática e destacar aspectos nobres e estéticos dessa Ciência. Eu era menino quando minha irmã mais velha ganhou um exemplar desse livro como presente de seu professor. Lembro-me que o devorei avidamente. E ao relê-lo agora, não obstante os muitos calos que me deixou o longo exercício do magistério, ainda senti algumas das mesmas emoções de outrora, diante de certos trechos de rara beleza. Como toda obra, o livro tem seus pontos altos e outros nem tanto. Curiosamente, as coisas que mais me agradaram na leitura de hoje foram aquelas das quais guardava ainda alguma lembrança desde a primeira vez. “O Homem que Calculava” é a história de Beremiz Samir, um fictício jovem persa, hábil calculista, versado na Matemática da época (século 13), contada por um amigo, admirador e companheiro de viagens, uma espécie de Dr. Watson muçulmano. Em certas passagens, a narrativa das proezas matemáticas de Beremiz nos diferentes lugares por onde passava nos faz lembrar o Evangelho segundo São Marcos. O relato, feito por um muçulmano ortodoxo, é cheio de respeitosas evocações divinas e pontilhado pela linguagem pitoresca do árabe de novela. Isto é feito com graça e dá um colorido especial a todo conto. Beremiz Samir resolve problemas curiosos, alguns propostos, outros acontecidos naturalmente em suas andanças. Faz também discursos eloquentes sobre o amor a Deus, a grandeza moral e a Matemática. E dá aulas de Matemática bastante inspiradas à filha de um cheque, com a qual vem a casar-se no fim da história. Para que se tenha uma ideia dos problemas tratados, descrevemos o primeiro, o segundo e o último deles. No primeiro problema, Beremiz e seu amigo, viajando sobre o mesmo camelo, chegam a um oásis, onde encontram três irmãos discutindo acaloradamente sobre como dividir uma herança de 35 camelos. Seu pai estipulara que a metade dessa herança caberia ao filho mais velho, um terço ao do meio e um nono ao mais moço. Como 35 não é divisível por 2, nem por 3, nem por 9, eles não sabiam como efetuar a partilha. Para espanto e preocupação do amigo, Beremiz entrega seu camelo aos 3 irmãos, a fim de facilitar a divisão. Os 36 camelos são repartidos, ficando o irmão mais velho com 18, o do meio com 12 e o mais moço com 4 camelos. Todos ficaram contentes porque esperavam antes receber 17 e meio, 11 e dois terços e 3 e oito nonos respectivamente. E o melhor: como 18 + 12 + 4 = 34, sobraram 2 camelos, a saber, o que fora emprestado e mais um. Todo mundo saiu ganhando. Explicação: Um meio mais um terço mais um nono é igual a 17/18, logo menor do que 1. Na partilha recomendada pelo velho árabe sobrava um resto, do que se aproveitaram Beremiz e seu amigo. O segundo problema é uma pequena delícia. Beremiz e seu amigo, a caminho de Bagdá, socorrem no deserto um rico cheique, que fora assaltado, e com ele repartem irmamente sua comida, que se resumia a 8 pães: 5 de Beremiz e 3 do amigo. Chegados ao seu destino, o cheique os recompensa com oito moedas de ouro: 5 para Beremiz e 3 para o amigo. Todos então se surpreendem com o suave protesto de Beremiz. Segundo este, a maneira justa de repartir as 8 moedas seria dar 7 a ele e 1 apenas ao amigo! E prova: durante a viagem, cada refeição consistia em dividir um pão em 3 partes iguais e cada um dos viajantes comia uma delas. Foram consumidos ao todo 8 pães, ou seja, 24 terços, cada viajante comendo 8 terços. Destes, 15 terços foram dados por Beremiz, que comeu 8, logo contribuiu com 7 terços para a alimentação do cheique. Por sua vez, o amigo contribuiu com 3 pães, isto é, 9 terços, dos quais consumiu 8, logo participou apenas com 1 terço para alimentar o cheique. Isto justifica a observação de Beremiz. No final, porém, o homem que calculava, generosamente, ficou com apenas 4 moedas, dando as 4 restantes ao amigo. O último problema do livro se refere às 5 escravas de um poderoso califa. Três delas têm olhos azuis e nunca falam a verdade. As outras duas têm olhos negros e só dizem a verdade. As escravas se apresentaram com os rostos cobertos por véus e Beremiz foi desafiado a determinar a cor dos olhos de cada uma, tendo o direito a fazer três perguntas, não mais do que uma pergunta a cada escrava. Para facilitar as referências, chamaremos as 5 escravas de A, B, C, D e E. Beremiz começou perguntando à escrava A: “Qual a cor dos seus olhos?” Para seu desespero, ela respondeu em chinês, língua que ele não entendia, por isso protestou. Seu protesto não foi aceito, mas ficou decidido que as respostas seguintes seriam em árabe. Em seguida, ele perguntou a B: “Qual foi a resposta que A me deu?” B respondeu: “Que seus olhos eram azuis”. Finalmente, Beremiz perguntou a C: “Quais as cores dos olhos de A e B?” A resposta de C foi: “A tem olhos pretos e B tem olhos azuis”. Neste ponto, o homem que calculava concluiu: “A tem olhos pretos, B azuis, C pretos, D azuis e E azuis”. Acertou e todos ficaram maravilhados. Explicação para a dedução de Beremiz: Em primeiro lugar, se perguntarmos a qualquer das cinco escravas qual a cor dos seus olhos, sua resposta só poderá ser “Negros”, tenha ela olhos azuis ou negros, pois na primeira hipótese ela mentirá e na segunda dirá a verdade. Logo B mentiu e portanto seus olhos são azuis. Como C disse que os olhos de B eram azuis, C falou a verdade, logo seus olhos são negros. Também porque C fala a verdade, os olhos de A são negros. Como somente duas escravas têm olhos negros, segue-se que os olhos de D e E são azuis. Certamente Malba Tahan escolheu este caso para o fim do livro porque desejava encerrá-lo com chave de ouro, tal a beleza do problema. Podemos, entretanto, fazer três observações que reduzem bastante o brilho desse “gran finale”. 1) O método usado por Beremiz não permite sempre resolver o problema. Ele acertou por mero acaso. Com efeito, se os olhos de A 48 Malba Tahan e as Escravas de Olhos Azuis. 49 Malba Tahan e as Escravas de Olhos Azuis. fossem azuis (admitindo ainda que B tenha olhos azuis e C negros), 49 olhos de B são... etc. Neste caso, A não me mente, porque ela só é, ele só poderia concluir que, entre D e E, uma teria olhos azuis e a outra negros. Mas não poderia dizer qual delas. Mais precisamente: o raciocínio utilizado por Beremiz permite de- terminar apenas as cores dos olhos de A, B e C. Por exclusão, conclui-se que D e E têm as cores que faltam, mas não se pode especificar a cor de cada uma quando essas cores forem diferentes. 2) Se Beremiz fosse mais esperto, encontraria um método infalível para determinar a cor dos olhos de cada uma das escravas, fazendo apenas uma única pergunta! Bastava chegar junto a uma das escravas (digamos, A) e perguntar: "Qual a cor dos olhos de cada uma de vocês?" Como há 3 escravas de olhos azuis e 2 de olhos negros, só haveria duas respostas possíveis. Se A tivesse olhos negros, sua resposta mencio- naria duas escravas de olhos negros, três de olhos azuis e seria a resposta certa. Se A tivesse olhos azuis, sua resposta diria três escravas de olhos negros e duas de olhos azuis e, neste caso, bastaria inverter sua resposta para obter a verdade. 3) A solução de Beremiz e aquela dada em 2) acima fazem uso de uma informação aparentemente essencial: quantas escravas de olhos azuis e quantas de olhos negros existem no grupo. Suponhamos agora que essa informação seja omitida. Têm-se n escravas, cujos olhos podem ser azuis ou negros. As primeiras mentem sempre, as últimas nunca. Pode haver de 0 a n escravas de olhos azuis; consequentemente, o número de escravas de olhos negros também não é fornecido. Mesmo assim, ainda é possível determinar a cor dos olhos de cada uma por meio de uma única pergunta! Basta perguntar à escrava A o seguinte: "Se eu me amigo lhe indagasse qual a cor dos olhos de cada uma das n, que lhe responderia você?" A resposta de A para mim consistiria em atribuir a cada escrava uma das cores. Pois bem, seja qual fosse a cor dos olhos de A, fosse ela mentirosa ou não, a cor dos olhos de cada escrava seria exatamente aquela dada por sua resposta a mim. Com efeito, apenas por uma questão de método vamos supor que A começasse sua resposta pela cor de seus próprios olhos. Haveria então duas possibilidades quando ao começo da resposta de A. Primeira: "Eu diria ao seu amigo que meus olhos são negros que os poderia dizer ao meu amigo que seus olhos são negros. Logo seus olhos são mesmo negros e sua resposta contem a verdade. Segunda: "Eu diria ao seu amigo que meus olhos são azuis, que os de B são... etc". Então A é mentirosa, pois ela não poderia dizer a ninguém que seus próprios olhos são azuis. Portanto A mentiria ao meu amigo e me diria o contrário, logo me contaria a verdade. Apesar de ter estragado um pouco da festa de Beremiz com as es- cravas, espero ter deixado claro que me diverti lendo "O Homem que Calculava", tanto agora como da primeira vez. A solução 2) foi por mim imaginada naquela época, embora as pessoas que me conhecem ou que sabem a cor dos meus olhos, duvidem muito desta afirmação. O hibridismo do seu nome pode ter sido uma coincidência ou não, mas a verdade é que, por algum tempo, Euclides Rosa hesitou entre ser um escritor como o João Guimarães ou um professor de Matemática como o de Alexandria ou (mais modestamente) como o Rozo. O acaso apressou a decisão. Seu primeiro emprego foi como professor de Inglês mas, logo em seguida, o professor de Matemática do colégio onde ensinava passou num con- curso para o Banco do Brasil e largou todas as turmas. Euclides aproveitou a oportunidade e aí hoje trabalha no mesmo lugar. De vez em quando, porém, tem uma recaída e, num compromisso inevitável, faz-se escritor de Matemática. Sua crônica sobre o Teorema de Pitágoras é, na realidade, a resenha de um livro, escrito por um professor americano do começo do século, que teve a paciência de colecionar centenas de demonstrações do referido teorema mas não teve o discernimento para notar que a maioria delas são variações triviais umas das outras. Euclides Rosa soube extrair do livro e nos dar de bandeja os aspectos mais interessantes e curiosos que ele contém, acrescentar suas próprias observações e críticas (às vezes irônicas, como aquela sobre a fórmula cos²x + sen²x = 1), e culminar com a bela demonstração de Polya. Tudo isto numa prosa capaz de agradar a Monsieur Jourdain. O Teorema de Pitágoras é, de fato, uma proposição de importância crucial na Matemática e merece todo o destaque que a ele se possa dar. Seus aficio- nados não precisam, entretanto, ater-se ao trabalho de ler o livro do Professor Loomis nem lamentarem não tê-lo achado. O essencial aqui está adiante. A esses aficionados, Euclides me pede que proponha a seguinte versão tri-dimensional do teorema: "O quadrado da área de um polígono plano qualquer, situado no espaço, é igual à soma dos quadrados das áreas de suas projeções sobre três planos mutuamente ortogonais". 53 Mania de Pitágoras Elisha Scott Loomis, professor de Matemática em Cleveland, Ohio (Esta- dos Unidos) era realmente um apaixonado pelo Teorema de Pitágoras. Du- rante 20 anos, de 1907 a 1927, colecionou demonstrações desse teorema, agruou-as e se organizou num livro, ao qual chamou "The Pythagorean Proposition". (A Proposição de Pitágoras.) A primeira edição, em 1927, continha 230 demonstrações. Na segunda edição, publicada em 1940, este número foi aumentado para 370 demonstrações. Depois do falecimento do autor, o livro foi reimpressso, em 1968 e 1972, pelo "National Council of Teachers of Mathematics" daquele país. O Professor Loomis classifica as demonstrações do Teorema de Pi- tágoras em basicamente dois tipos: provas "algébricas" (baseadas nas relações métricas nos triângulos retângulos) e provas ''geométricas" (basea- das em comparações de áreas). Ele se dá ao trabalho de observar que não é possível provar o Teorema de Pitágoras com argumentos trigonométricos porque a igualdade fundamental da Trigonometria, cos²x + sen²x = 1, já é um caso particular daquele teorema. Como sabemos, o enunciado do Teorema de Pitágoras é o seguinte: "A área do quadrado cujo lado é a hipotenusa de um triângulo retângulo é igual à soma das áreas dos quadrados que têm como lados cada um dos catetos". Se a, b são as medidas dos catetos e c é a medida da hipotenusa, o enunciado acima equivale a afirmar que a² + b² = c². Documentos históricos mostram que os egípcios e os babilônios, muito antes dos gregos, conheciam casos particulares desse teorema, ex- pressos em relações como 3² + 4² = 5² 12² + ( 3 1 ) 2 = ( 1 1 ) 2 e 2 ( 2 4 O fato de que o triângulo de lados 3, 4 e 5 era retângulo era (e ainda é) útil aos agrimensores. Há também um manuscrito chinês, datando de mais de mil anos antes de Cristo, onde se encontra a seguinte afirmação: "Tome o quadrado do primeiro lado e o quadrado do segundo e os some; a raiz quadrada dessa soma é a hipotenusa". Outros documentos antigos mostram que na Índia, bem antes da era Cristã, sabia-se que os triângulos de lados 3, 4, 5 ou 5, 12, 13, ou 12, 35, 37 são retângulos. O que parece certo, todavia, é que nenhum desses povos sabia de- monstrar o teorema. Tudo indica que Pitágoras foi o primeiro a prová-lo. (Ou alguém da sua Escola o fez, o que dá no mesmo, pois o conhecimento científico naquele grupo era propriedade comum.) 1. A mais bela prova Qual foi a demonstração dada por Pitágoras? Não se sabe ao certo, pois ele não deixou trabalhos escritos. A maioria dos historiadores acre- dita que foi uma demonstração do tipo "geométrico", isto é, baseada na comparação de áreas. Não foi a que se encontra nos "Elementos" de Euclides, e que é ainda hoje muito encontrada nos livros de Geometria, pois tal demonstração parece ter sido concebida pelo próprio Euclides. A demonstração de Pitágoras pode muito bem ter sido a que decorre das figuras abaixo. Figura 1. Do quadrado que tem a + b como lado, retiramos 4 triângulos iguais ao dado. Se fizermos isto com a figura à esquerda, obteremos um quadrado de lado c. Mas se a mesma operação for feita como na figura à direita, restarão dois quadrados, de lados a e b respectivamente. Logo, a área do quadrado de lado c é a soma das áreas dos quadrados restantes que medem a e b. 54 Mania de Pitágoras Esta é, provavelmente, a mais bela demonstração do Teorema de Pitágoras. Entretanto, no livro de Loomis ela aparece sem maior destaque, como variante de uma das provas dadas, não sendo sequer contada entre as 370 numeradas. Apresentamos a seguir algumas demonstrações do Teorema de Pitágoras, que têm algum interesse especial, por um motivo ou por outro. As quatro primeiras constam da lista do Professor Loomis. 2. A prova mais curta É também a mais conhecida. Baseia-se na seguinte consequência da semelhança de triângulos retângulos: "Num triângulo retângulo, cada cateto é a média geométrica entre a hipotenusa e sua projeção sobre ela". Assim, se m e n são respectivamente as projeções dos catetos a e b sobre a hipotenusa c, temos a² = mc, b² = nc, enquanto m + n = c. Somando, vem a² + b² = c². Simplificando, obtemos a² + b² = c². Figura 2. Figura 3. 3. A demonstração do presidente James Abram Garfield, presidente dos Estados Unidos durante apenas 4 meses (pois foi assassinado em 1881) era também general e também gostava de Matemática. Ele deu uma prova do Teorema de Pitágoras baseada na figura 3. A área do trapézio com bases a, b e altura a + b é igual à semi-soma das bases vezes a altura. Por outro lado, a mesma área é também igual à soma das áreas de 3 triângulos retângulos. Portanto a + b ab ab c² --- x (a + b) = --- + --- + ---. 2 2 2 2 Logo 4. A demonstração de Leonardo da Vinci O grande gênio criador da Mona Lisa também concebeu uma demonstração do Teorema de Pitágoras, que se baseia na figura 4. Figura 4. Os quadriláteros ABCD, DEFA, GFHI e GEJI são congruentes. Logo os hexágonos ABCDEF e GEJIHF têm a mesma área. Daí resulta que a área do quadrado FEJH é a soma das áreas dos quadrados ABGF e CDEG. 56 Mania de Pitágoras 5. A demonstração de Papus Na realidade, não se trata apenas de uma nova demonstração mas de uma generalização bastante interessante do Teorema de Pitágoras. Em vez de um triângulo retângulo, toma-se um triângulo arbitrário ABC; em vez de quadrados sobre os lados, tomam-se paralelogramos, sendo dois deles quaisquer, exigindo-se que o terceiro cumpra a condição de CD ser paralelo a HA e com o mesmo comprimento. O teorema de Papus afirma que a área do paralelogramo BCDE é a soma das áreas de ABFG e AIJC. A demonstração se baseia na simples observação de que dois paralelogramos com bases e alturas de mesmo comprimento têm a mesma área. Figura 5. Assim, por um lado, AHKFB tem a mesma área que ABFG e por outro lado, a mesma área que BMNE. Segue-se que as áreas de BMNE e ABFG são iguais. Analogamente, são iguais as áreas de CDNM e CAIJ. Portanto, a área de BCDE é a soma das áreas de ABFG e CAIJ. O Teorema de Pitágoras é caso particular do de Papus. Basta tomar o triângulo ABC retângulo e três quadrados em lugar dos três paralelogramos. 6. O argumento de Polya No meu entender, entretanto, a demonstração mais inteligente do Teorema de Pitágoras não está incluída entre as 370 colecionadas pelo Professor Loomis. Ela se acha no livro "Induction and Analogy in Mathematics", de autoria do matemático húngaro George Polya. 57 Mania de Pitágoras O raciocínio de Polya se baseia na conhecida proposição, segundo a qual “as áreas de duas figuras semelhantes estão entre si como o quadrado da razão de semelhança”. Lembremos que duas figuras F e F’ dizem-se semelhantes quando a cada ponto A da figura F corresponde um ponto A’ em F’, chamado o seu homólogo, de tal maneira que se A, B são pontos quaisquer de F e A’, B’ são seus homólogos em F’ então a razão A’B’/AB é uma constante k, chamada a razão de semelhança de F para F’. Por exemplo, dois triângulos são semelhantes se, e somente se, os ângulos de um deles são congruentes aos ângulos do outro. Por outro lado, dois quadrados quaisquer, um de lado i e outro de lado i’, são semelhantes e a razão de semelhança do primeiro para o segundo é k = i’/i. Em vez do Teorema de Pitágoras, Polya procura provar a seguinte proposição mais geral (que, diga-se de passagem, já se acha nos “Elementos” de Euclides): Se F’, F” e F”’ são figuras semelhantes, construídas respectivamente sobre a hipotenusa c e sobre os catetos a, b de um triângulo retângulo então a área de F é igual à soma das áreas de F’ e F”. Figura 6. O enunciado acima implica que a razão de semelhança de F’ para F” é b/a, de F’ para F é c/a e de F” para F é c/b. Por simplicidade, escrevamos F em vez de “área de F”, G em vez de “área de G”, etc. Se G, G’, G” são outras figuras semelhantes construídas sobre a hipotenusa e os catetos, respectivamente, em virtude da proposição acima enunciada, temos: G’ b² --- = ---- G a² logo G’ F’ --- = ---- G F De modo análogo teremos G” c² --- = --- G F” Portanto G / F = G’ / F’ = G” / F” = α, digamos. Escrevendo de outro modo: G = α ⋅ F, G’ = α ⋅ F’ e G” = α ⋅ F”. Que significam estas 3 duplas igualdades? Elas querem dizer que, se conseguirmos achar 3 figuras semelhantes especiais F, F’ e F”, construídas sobre a hipotenusa e os catetos do nosso triângulo, de tal maneira que se tenha F = F’ + F” então teremos também G = G’ + G” sejam quais forem as figuras semelhantes G, G’ e G” construídas do mesmo modo. Com efeito, temos G = α ⋅ F, G’ = α ⋅ F’ e G” = α ⋅ F”, logo G” + G” = α⋅F’ + α⋅(F’ + F”) = α ⋅ F = G. Agora é só procurar as figuras especiais. Mas elas estão facilmente ao nosso alcance. Dado o triângulo retângulo ABC, tracemos a altura CD, baixada do vértice do ângulo reto C sobre a hipotenusa AB. Figura 7. A figura F será o próprio triângulo ABC. Para F’ escolheremos ADC e faremos F” = BCD. Evidentemente, F, F’ e F” são figuras semelhantes. Mais evidentemente ainda, temos F = F’ + F”. Por dois pontos distintos passa uma, e somente uma, linha reta. Este é um dos postulados fundamentais da Geometria Euclidiana. Traçar a reta que une dois pontos é uma das duas operações básicas do Desenho Geométrico. (A outra é traçar o círculo com raio dado e centro num ponto dado.) Em problemas geométricos, uma reta é considerada como inteiramente determinada, desde que se conheçam dois de seus pontos. Na prática, a situação pode ser diferente. Num plano (para simplificar), suponhamos dados dois pontos A e B. Como traçar a reta que os une se o único instrumento ao nosso dispor é uma régua cujo comprimento é menor do que a distância do ponto A ao ponto B? Isto ilustra um aspecto da diferença entre Matemática Pura e Matemática Aplicada. No problema considerado a seguir, há uma montanha entre os pontos A e B, o que impede até mesmo fazer mira de um ponto ao outro, ou esticar um fio. Mesmo assim, o problema foi resolvido. Com auxílio da Geometria Euclidiana, naturalmente. Depois de ler a narrativa, teremos aprendido como, usando uma régua pequenina, traçar uma reta ligando dois pontos muito afastados. Como Abrir um Túnel, se Você Sabe Geometria A ilha de Samos, que ainda pertence à Grécia, fica a menos de 2 quilômetros da costa da Turquia. Há 2 500 anos, toda aquela região era habitada por gregos. Somos passou à História por ser a terra natal de Pitágoras, mas não é dele que vamos falar. O herói do nosso episódio nem ao menos era matemático. Seu nome era Eupalinos e, nos dias atuais, seria chamado de engenheiro. Ele será focalizado aqui por ter sabido usar, com bastante sucesso, um fato elementar de Geometria Plana para resolver um problema de Engenharia e assim contribuir para o bem-estar de uma comunidade. O exemplo de Eupalinos merece ser conhecido por dois motivos: fornece um tópico interessante para ilustrar nossas aulas e mostra como o conhecimento matemático, mesmo quando de natureza teórica, pode ter influência decisiva no progresso tecnológico. O teorema de Geometria usado por Eupalinos foi o seguinte: Se dois triângulos retângulos têm catetos proporcionais, seus ângulos agudos são iguais. Na figura a seguir, se b/c = b'/c' então Lab = La'b' e Lac = La'c'. Na figura a seguir, se b/c = b'/c' então Lab = La'b' e Lac = La'c'. Como se sabe, este é um caso particular de semelhança de triângulos. (Os triângulos dados têm um ângulo (reto) igual, compreendendo entre lados proporcionais.) Para sermos exatos, Eupalinos não usou precisamente o teorema acima e sim uma sua consequência imediata, que enunciaremos agora: Sejam abc a'b'c' triângulos retângulos com um vértice comum. Se os catetos b e c' são perpendiculares e, além disso, tem-se b/c = b'/c' então as hipotenusas a e a' estão em linha reta. A afirmação acima decorre imediatamente da anterior pois a soma dos ângulos em torno do vértice comum aos dois triângulos é igual a dois ângulos retos. Retornemos nossa história. Ela se passa em Samos, ano 530 a.C. O poderoso tirano Polícrates se preocupava com o abastecimento de água da cidade. Havia fontes abundantes na ilha, mas ficavam do outro lado do monte Castro; o acesso a elas era muito difícil para os habitantes da cidade. Decidiu-se abrir um túnel. A melhor entrada e a mais conveniente saída do túnel foram escolhidas pelos assessores de Polícrates. Eram dois pontos, que chamaremos de A e B respectivamente. Cavar a montanha não seria árduo, pois a rocha era calcárea e não faltavam operários experientes. O problema era achar um modo de sair do ponto A e, cavando, chegar ao ponto B sem se perder no caminho. Eupalinos, encarregado de estudar a questão, surpreendeu a todos com uma solução simples e prática. Além disso, anunciou que reduziria o tempo de trabalho à metade propondo que se iniciasse a obra em duas frentes, começando a cavar simultaneamente nos pontos A e B, encontrando-se as duas turmas no meio do túnel! Disse e fez. O túnel, construído há 25 séculos, é mencionado pelo historiador grego Heródoto. Em 1882, arqueólogos alemães, escavando na ilha de Samos, o encontraram. Ele tem um quilômetro de extensão, sua seção transversal é um quadrado com 2 metros de lado, com uma vala funda para os canos d'água e aberturas no teto para renovação do ar e limpeza de detritos. Mas como Eupalinos conseguiu, partindo simultaneamente de A e B, traçar uma reta ligando esses pontos, através da montanha? Na figura a seguir, o contorno curvilíneo representa o monte, A é o ponto de entrada e B é a saída do túnel. A partir do ponto B fixa-se uma direção arbitrária BC e, caminhando ao longo de uma poligonal BCDEFGHA, na qual cada lado forma um ângulo reto com o seguinte, atinge-se o ponto A, tendo evitado assim as áreas mais escarpadas da montanha. (Não é difícil imaginar um instrumento ótico rudimentar que permitia dar com precisão esses giros de 90 graus.) Anotando-se o comprimento de cada um dos lados da poligonal, determinam-se facilmente os comprimentos dos catetos AK e KB do triângulo retângulo AKB no qual AB é a hipotenusa e os catetos têm as direções dos lados da poligonal considerada. Calcula-se então a razão r = AK/KB. A partir dos pontos A e B, constróem-se dois pequenos triângulos retângulos cujos catetos ainda tenham as direções dos lados da poligonal e, além disso, em cada um desses triângulos, a razão entre os catetos seja igual à razão r entre os catetos do triângulo AKB: Agora é só cavar o morro, a partir dos pontos A e B, na direção das hipotenusas dos triângulos pequenos. Isto resolve o problema se os pontos A e B estiverem no mesmo nível: cava-se sempre na horizontal e o plano horizontal é fácil de determinar, por meio de vasos comunicantes ou por outros processos. Em geral, A e B não estão no mesmo nível. No caso em questão, é obviamente desejável que B seja mais baixo e sem dúvida levou-se isto em conta na sua escolha como ponto de saída. Mas é fácil calcular d = diferença de nível entre A e B. Basta ir registrando, à medida que se percorre a poligonal BCDEFGHA, a diferença de nível entre cada vértice e o seguinte. Tendo d, consideramos o triângulo retângulo AMB, no qual o cateto AM é vertical e tem comprimento d. O comprimento da hipotenusa AB se determina pelo teorema de Pitágoras (a partir dos catetos do triângulo AKB). A razão AM/AB = s diz como deve ser controlada a inclinação da escavação: cada vez que andarmos uma unidade de comprimento ao longo