·

Psicologia ·

Psicologia Social

Send your question to AI and receive an answer instantly

Ask Question

Preview text

20 TRATAMENTO DO TRANSTORNO DA DOR GENITOPÉLVICAPENETRAÇÃO Aline Sardinha Paula da Costa Caldeira Até a publicação da quinta edição do Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais da American Psychiatric Association APA 2014 mulheres com dor associada à penetração vaginal eram diagnosticadas com dispareunia ou vaginismo No entanto a diferenciação entre tais transtornos é bastante sutil na medida em que mulheres com dispareunia ie dor genital durante ou após o sexo acabam desenvolvendo contração da musculatura pélvica como mecanismo de defesa à experiência da dor sendo o vaginismo um possível diagnóstico secundário à dispareunia Kuile et al 2007 Como na prática clínica esses dois diagnósticos aparecem frequentemente associados para a APA 2014 essas entidades foram integradas na mesma categoria diagnóstica O transtorno da dor genitopélvicapenetração passa a ser caracterizado por mulheres com dificuldades sexuais e experiências de dor vulvovaginal e pélvica recorrentes na relação sexual principalmente na penetração vaginal Muitas vezes essas mulheres apresentam medo da dor e ansiedade antecipatória à relação sexual ou tensão e contração acentuada da musculatura pélvica durante a tentativa de penetração vaginal Segundo a APA 2014 esse quadro deve persistir por até 6 meses para que se feche o diagnóstico e pode estar presente desde o início da vida sexual da mulher ou ter sido adquirido após um período de funcionamento sexual normal A localizaçãoda dor superficial ou profunda a maneira como a dor se dá provocada ou espontânea a qualidade da dor ardência estiramento latejamento queimação ou pontada e a intensidade e a dimensão do prejuízo na vida sexual e relacional da mulher devem ser avaliadas Vários fatores devem ser considerados durante a avaliação da queixa sexual da paciente de acordo com a APA 2014 compreendendo no ciclo de desenvolvimento e manutenção da disfunção e relevantes para o planejamento e o curso do tratamento 1 Fatores relacionados com o parceiro e o relacionamento 2 Fatores relacionados com vulnerabilidade individual comorbidades e estressores 3 Fatores socioculturais e religiosos 4 Fatores médicos relevantes para prognóstico curso ou tratamento DESENVOLVIMENTO Aproximadamente 15 das mulheres americanas relatam dor sexual recorrente e essa queixa aparece com maior frequência durante a fase inicial da sexualidade da mulher e no período após a menopausa APA 2014 Uma pesquisa brasileira conduzida em 10 cidades de sete estados brasileiros mostrou que aproximadamente 49 das mulheres brasileiras apresentam pelo menos alguma queixa sexual sendo a queixa de baixo desejo a maior queixa sexual 267 seguida da dor sexual à penetração 23 e queixa de orgasmo 21 Abdo et al 2004 Nessa pesquisa a idade e os níveis de escolaridade mostraramse variáveis altamente associadas às disfunções sexuais Em se tratando do diagnóstico de dor na relação sexual aproximadamente 178 das brasileiras relatam dor podendo esta ocorrer antes 10 durante 754 ou após 215 a penetração vaginal Abdo 2004 Nesse estudo a dor na relação sexual era mais prevalente no início da vida adulta 239 e acima dos 60 anos 171 É comum mulheres com dor apresentarem dificuldades em realizar exames ginecológicos e não usarem absorventes íntimos internos além de apresentarem comportamento evitativo à relação sexual de maneira geral e evitarem outras queixas sexuais e prejuízos significativos em todos os aspectos do funcionamento sexual como menor satisfação sexual interesse sexual re duelo problemas de excitação sexual dificuldades para atingir o orgasmo e falta de prazer na atividade sexual Além disso as mulheres que sentem dor evitam outras formas de intimidade conjugal e se concentram na excitação e na satisfação sexual do parceiro Brotto et al 2015 Como se concentram na resposta sexual do parceiro essas mulheres acabam por se engajar menos nos estímulos eróticos que poderiam ser excitantes a elas o que dificulta a experiência de prazer e agrava a queixa de dor Queixas de baixo desejo e excitação são as comorbidades sexuais mais comuns e mesmo quando essas mulheres relatam desejo sexual a motivação e o interesse sexuais parecem ser reduzidos às situações sexuais que não são dolorosas ou que não envolvem penetração vaginal geralmente mantendo o comportamento evitativo das situações sexuais e da intimidade conjugal APA 2014 Um estudo recente mostrou que desejo e excitação sexuais parecem ser importantes moderadores de resultados em mulheres com vulvodínia o que indica que quanto maiores forem os níveis de excitação e desejo no início do tratamento maior será a probabilidade de eficácia terapêutica nos desfechos de redução da dor e diminuição da angústia sexual Smith et al 2019 Mulheres com disfunção sexual tendem a apresentar crenças disfuncionais e expectativas irrealistas sobre a sua sexualidade e a sexualidade dos seus parceiros que podem estar relacionadas com desenvolvimento e manutenção da queixa sexual e ajustamento sexual conjugal disfuncional Nobre PintoGouveia 2009 Sardinha et al 2019 As crenças sexuais disfuncionais são construídas socialmente a partir da aprendizagem por observação de modelos experiências sexuais prévias e reforço e punição de comportamentos sexuais determinando esquemas sexuais mais disfuncionais Dessa forma essas mulheres apresentam autoesquema sexual mais negativo quando comparadas com a população não clínica conforme Pazmany et al 2013 e esquemas cognitivos de incompetência fracasso autodepreciação rejeição e vulnerabilidade ao perigo já foram mapeados segundo Nobre e PintoGouveia 2008a e Oliveira e Nobre 2013 Os esquemas sexuais são desenvolvidos a partir das experiências sexuais dos indivíduos ao longo do seu desenvolvimento Fatores externos como histórico de abuso sexual físico e emocional estão associados à experimentação disfuncional da sexualidade e posteriormente à formação Tratamento do transtorno da dor genitopélvicapenetração Manual de gênero e sexualidade na psicoterapia Figura 201 Ciclo da dor genitopélvicapenetração Fonte Adaptada de Basson 2012 e Carvalho e Sardinha 2017 As dificuldades sexuais podem ter etologias multifatoriais incluindo fatores biológicos psicológicos relacionais e socioculturais A avaliação clínica inicial engloba a caracterização da queixa sexual a investigação do histórico de dor sexual das experiências sexuais prévias A TCS visa melhorar a satisfação sexual ao ampliar e enriquecer o repertório sexual do casal além de proporcionar maior adaptabilidade à dor EVA de 27 anos buscou terapia após a queixa do namorado Tiago de 30 anos sobre a frequência sexual reduzida após alguns meses de funcionamento sexual normal de Eva Eles se conheceram em uma festa por meio de amigos em comum e estão juntos há um ano No início do relacionamento Eva e Tiago tinham maior frequência sexual e cabia a Tiago a responsabilidade de sempre propor novidades à relação sexual além de apresentar maior interesse sexual Diferentemente de Eva Tiago havia se relacionado com outras parceiras anteriormente ao relacionamento com uma vida sexual ativa e satisfatória Tiago era o segundo relacionamento de Eva Eva perdeu a virgindade com Marcelo na adolescência ao iniciarem um relacionamento e desde então sente dor nas suas relações sexuais principalmente na penetração vaginal No início da vida sexual ela achava que era normal sentir dor e que à medida que aumentasse a frequência e a experiência sexual a dor passaria Eles usavam lubrificantes e tentavam posições diferentes mas após algum tempo a relação se resumi a masturbações e sexo virtual principalmente com o intercâmbio do Marcelo O relacionamento com Marcelo foi marcado por algumas tentativas frustradas de penetração vaginal e terminou após Marcelo estender seu intercâmbio Após o término desse relacionamento Eva desenvolveu um quadro de bulimia e compulsão alimentar Hoje Eva diz se preocuparse com seu corpo na hora do sexo e com os julgamentos que Tiago pode fazer Diz se sentir feia gorda e inadequada e evita engajarse no sexo principalmente após uma compulsão alimentar não seguida de alguma purgação Quando na relação sexual Eva diz estar atenta à forma como seu corpo possa estar sendo apresentado a Marcelo evitando algumas posições sexuais e situações como transar durante o dia que podem deixar seu corpo mais evidente Ao ser questionada pela tetrapeuta Eva comenta não sentir mais prazer nas situações sexuais sentindose um fracasso como mulher tendo vergonha do seu corpo e não sabendo se de fato alguma vez já teve orgasmo No início do relacionamento com Tiago Eva esforçavase para satisfazêlo pois acreditava que Tiago deixaria de amála se não houvesse mais intimidade sexual entre eles Ela teme que Tiago acabe se interessando por outra pessoa se ela não for mulher suficiente O episódio mais marcante que culminou na vinda de Eva para a terapia foi quando ela propôs sexo anal e ao sentir dor acabou experimentando extrema angústia por se sentir fracasada na relação Diferentemente e Tiago Eva teve uma criação mais rígida tradicional e católica em que não era comum falar sobre a sua sexualidade ETAPAS DO PROCESSO TERAPÊUTICO Primeira etapa Acolhimento É muito comum o terapeuta perceber na primeira avaliação como a queixa sexual foi construída e modulada na interação de regras e crenças do casal O casal tinha uma queixa de diminuição da frequência sexual devido ao baixo desejo sexual de Eva e à dor sexual por contração da musculatura pélvica no momento da penetração vaginal o que fazia Eva se sentir responsabilizada pelo desajuste conjugal Foi importante acolher Eva valendo a sua dificuldade sexual mas envolvendo Tiago no processo de mudança embora a terapia fosse individual Uma vez que a queixa sexual é construída no jogo sexual conjugal tornouse primordial redirecionar o foco do problema para o jogo sexual do casal Carvalho Sardinha 2017 Sardinha 2020 Avaliação da queixa sexual 1 Cronologia de aquisição Desde as primeiras relações sexuais Eva sentiu dor Desde então suas relações sexuais são marcadas por contração da musculatura pélvica acompanhada de dor e baixo desejo sexual Devido à crença de que Sexo bom é sexo com penetração e a não conseguir sentir prazer com a penetração com o tempo agravouse a queixa de baixo desejo sexual 2 Circunstância em que ocorre A queixa sexual de Eva sempre esteve presente em sua vida sexual sendo generalizada a todas as parcerias e situações sexuais Em algumas situações como após uma briga conjugal e estresse no trabalho Eva experimentava maior sofrimento e insatisfação sexual Quando bebia vinho e outras bebidas alcoólicas conseguia relaxar e experimentar maior prazer 3 Etiologia Investigação das crenças que Eva construiu a partir de suas vivências e experiências com a sexualidade e de como isso se relaciona com os padrões atuais e modula a dor sexual e a queixa de baixo desejo Dados familiares culturais religiosos de autoimagem primeiros contatos sexuais histórico clínico individual histórico do casal e história do problema também foram mapeados Ver avaliação do caso no final do capítulo 4 Grau de sofrimento Ao se sentir pressionada a mudar para que não houvesse rompimento do relacionamento Eva passou a experimentar maior sensação de fracasso em todas as áreas da vida À medida que experimentava frustração ao não conseguir desempenhar sua parte conforme gostaria mais frequentes se tornaram os comportamentos de compulsão alimentar bulimia e uso da bebida alcoólica Além disso com o tempo Eva passou a evitar a intimidade conjugal e a se sentir cada vez mais deprimida com a insatisfação de Tiago com a relação Devido ao quadro de vaginismo era extremamente angustiante para Eva a realização de exames ginecológicos de rotina 5 Aspectos da parceria Aspectos do relacionamento e da parceria também foram mapeados para entender o impacto deles na queixa sexual bem como o impacto da queixa no vínculo Conforme Eva evitava a intimidade conjugal Tiago não se sentia mais desejado por ela e mais ameaçadora era a possibilidade do rompimento para Eva que acabava se forçando a se engajar na relação Em consequência ela reforçava a experiência de dor e confirmava a crença de fracasso A Figura 202 distribuída nas duas páginas a seguir apresenta um exemplo de avaliação de caso a partir do modelo da terapia cognitiva sexual Experiências sexuais Primeiro contato Positividade ausência de vergonha mostrados como sentindose satisfeitos de maneira emocional e física Primordial satisfação sexual relação por sanamento História do casal conflito tempo de relacionamento possibilidade de conflitos impedimentos não realizado saindo de questões de inadequação História do problema diagnóstico psiquiátrico Diagnóstico sexual situação de virgindade hábitos do corpo e peculiaridades Segunda etapa Psicoaducação O entendimento do funcionamento sexual feminino e masculino foi a primeira estratégia terapêutica seguida do modelo cognitivo da dor Reestruturação cognitiva Conhecer as próprias crenças e mitos sexuais Foco no prazer Tratamento do transtorno da dor genitopélvicapenetração gradativamente nas situações sexuais para que as experimentasse com uma melhor regulação das emoções negativas atitude de atenção plena e uma melhor regulação das emoções negativas A educação rígida e religiosa que Eva teve na infância impediu que ela experimentasse a sua sexualidade de formas saudáveis explorandoa sem julgamentos Em paralelo ao trabalho com mindfulness era importante para Eva experimentar a sua sexualidade e descobrir quais estímulos sensoriais pensamentos imagens e fantasias eram eróticos e excitantes para ela Manual de gênero e sexualidade na psicoterapia CONSIDERAÇÕES FINAIS A queixa de dor na relação sexual é muito comum entre mulheres nas diferentes etapas do ciclo de vida A prevalência é tamanha que o senso comum chega a acreditar erroneamente que a dor sexual é normal e esperada especialmente em algumas etapas do ciclo de vida da mulher como a primeira relação o pósparto ou a menopausa Neste capítulo apresentamos os principais conceitos relacionados à queixa de dor sexual os principais diagnósticos relacionados bem como os aspectos a serem observados na realização de diagnósticos diferenciais Tratamento do transtorno da dor genitopélvicapenetração A gestão clínica das disfunções sexuais Eva foi acompanhada para a fisioterapia pélvica e acompanhada por um ginecologista especializado em transtornos da dor genitopélvicapenetração Por fim embora não abordado no capítulo um trabalho cognitivocomportamental igualmente baseado na literatura foi realizado para as queixas de compulsão sexual e bulimia Jaderk I LewStarowicz M 2019 A systematic review on mindfulness meditationbased interventions for sexual dysfunction The Journal of Sexual Medicine 1610 15811596 Kuile M L Lankveld J J D M Groot E Melles R Neffs J Zandbergen M 2007 Cognitivebehavioral therapy for women with lifelong vaginismus Process and prognostic factors Behavioral Research Therapy 4512 359373 Masters W H Johnson V E 1970 Human sexual inadequacy Ishi Press Meana M Ferrel E Maykut C 2017 Treating genital pain associated with sexual intercourse In Z D Peterson Ed The Wiley handbook of sex therapy pp 98114 Wiley Blackwell Nobre P J PintoGouveia J 2008a Differences in automatic thoughts presented during sexual activity between sexually functional and dysfunctional men and women Cognitive Therapy and Research 321 3749 Nobre P J PintoGouveia J 2008b Cognitive and emotional predictors of female sexual dysfunctions Preliminary findings Journal of Sex Marital Therapy 344 325342 Nobre P J PintoGouveia J 2009 Cognitive schemas associated with negative sexual events A comparison of men and women with and without sexual dysfunction Archives of Sexual Behavior 385 842851 Oliveira C Nobre P J 2013 Cognitive structures in women with sexual dysfunction The role of maladaptive schemas The Journal of Sexual Medicine 1007 17551764 Pazmany E Bergeron S Van Oudenhove L Verhaeghe J Enzlin P 2013 Body image and genital selfimage in premenopausal women with dyspareunia Archives of Sexual Behavior 426 9991010 Pazmany E Bergeron S Verhaeghe J Van Oudenhove L Enzlin P 2015 Dyadic sexual communication in premenopausal women with selfreported dyspareunia and their partners Associations with sexual function sexual distress and dyadic adjustment Journal of Sexual Medicine 122 516528 Pukall C E Goldstein A T Bergeron S Foster D Stein A KelloggSpadt S Bachmann G 2016 Vulvodynia Definition prevalence impact and pathophysiological factors The Journal of Sexual Medicine 133 291304 Rosenbaum T Y 2013 An integrated mindfulnessbased approach to treatment of women with sexual pain and anxiety Promoting autonomy and mindbody connection Sexual and Relationship Therapy 2812 19