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Texto de pré-visualização
MARCELO FRIZON GUADAGNIN O REGIONALISMO NA LITERATURA BRASILEIRA O DIAGNÓSTICO DE ANTONIO CANDIDO PORTO ALEGRE 2007 2 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE LETRAS PROGRAMA DE PÓSGRADUAÇÃO EM LETRAS ÁREA DE ESTUDOS DE LITERATURA ESPECIALIDADE LITERATUAS BRASILEIRA PORTUGUESA E LUSOAFRICANAS O REGIONALISMO NA LITERATURA BRASILEIRA O DIAGNÓSTICO DE ANTONIO CANDIDO MARCELO FRIZON Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Literatura Brasileira ORIENTADOR PROF DR LUÍS AUGUSTO FISCHER PORTO ALEGRE ABRIL DE 2007 3 Para Vivian esposa querida e para meus pais sempre presentes 4 AGRADECIMENTOS Este trabalho não teria sido possível sem o apoio de algumas pessoas que nos momentos mais difíceis souberam pressionar consolar ou ainda dar espaço para que ele pudesse ser realizado Agradeço em particular às seguintes Tânia Maria Frizon e João Luiz Guadagnin mãe e pai que sempre se preocuparam com minha educação e nunca me deixaram sem um livro necessário Vivian Carvalho amiga parceira e esposa sempre compreensiva e ao mesmo tempo provocadora Miguel Frizon Guadagnin exemplo de ambição para o alcance dos melhores objetivos além de ser um grande irmão Iara Altafin pelos conselhos acadêmicos e pela preocupação para que este trabalho saísse o melhor possível Dilamar Jahn amigo sincero intelectual sem preconceitos grande crítico das minhas observações Andréia Scheeren com quem tive o prazer de descobrir como se trabalha numa sala de aula Joseane Rücker pelo apoio moral e pelas idéias sugeridas para este trabalho A todos agradeço muito sinceramente Aos professores e professoras do Instituto de Letras da UFRGS que cuidaram de minha formação acadêmica até aqui sempre propondo reflexões e desafios respeitando a diversidade e sendo exemplos de competência docente Em especial agradeço àqueles cujas aulas foram para mim marcos de reflexão e satisfação Sandra Maggio pelo seu carinho constante Márcia Ivana de Lima e Silva pelos textos e autores a que me apresentou e pela maneira como os discutiu Homero Vizeu Araújo pelo exemplo de intelectual que não pensa apenas nos problemas literários Antonio Sanseverino outro grande pensador da literatura que se mostrou totalmente disposto no momento da realização do estágio de docência Aos professores e colegas do Grupo Formação pela oportunidade dos debates 5 Há um professor contudo que merece menção especial Até porque é ele o grande responsável pela existência deste trabalho embora não possa ser penalizado pelas deficiências e impropriedades que eventualmente contenha Tive a oportunidade de ser aluno do Prof Luís Augusto Fischer pela primeira vez apenas no meu quinto semestre da graduação Desde então a visão que tive da literatura transformouse completamente Nunca mais pude deixar de assistir a suas aulas quando isso era possível Suas reflexões profundas são sempre acompanhadas de explicações iluminadoras e seu posicionamento intelectual é um exemplo importante para minha formação A paciência que demonstrou com meu ritmo de trabalho foi fundamental para a realização deste texto Das suas qualidades maiores nem falarei de sua competência docente ou do belo trabalho que desenvolve com seus estudos sobre a canção brasileira eu gostaria de sublinhar o imenso respeito com que lida com os estudantes E para comprovar isso basta conferir o número cada vez maior de alunos que procuram suas disciplinas ou que desejam ser seus orientandos É uma honra ter tido esta oportunidade não só no mestrado mas também na graduação quando aceitou gentilmente meu pedido para ser meu orientador na monografia de conclusão de curso momento em que me propôs este estudo Gostaria de agradecer também ao Sr Canísio Scherer secretário do Programa de PósGraduação do Instituto de Letras da UFRGS pela disposição constante pela gentileza sem reservas e pelo competente trabalho que desenvolve Finalmente não poderia deixar de registrar o apoio financeiro da agência CAPES sob a forma de uma bolsa de estudos recebido durante um período crucial que tornou viável o mestrado e este trabalho 6 O regionalismo não é uma linguagem regional que o inutilizaria mas falar de problemas que estão mais próximos da pessoa que fala a dor do homem a alegria as suas lutas e as suas belezas etc Não é claro com a limitação de uma linguagem local que inutiliza a expressão universal e a transmissão objetiva do conteúdo humano do poema ou do romance Apenas com aquele interesse intrínseco do humano na valorização do humano O que limita o regionalismo não é o tema de interesse circunscrito mas a linguagem com seus perigos de fixação que lhe poderá inutilizar a universalidade O que interessa é o problema do homem Quando me bato pelo regionalismo é para mostrar numa anedota o local os sentimentos comuns a todos os homens O homem só é amplamente homem quando é regional Se me tirar a estrutura ideológica do pernambucano eu nada sou Faulkner por exemplo é profundamente universal porque é regional e nacional O perigo do regionalismo para o poeta é também a limitação da linguagem porque o conteúdo psicológico lá está indiretamente no seu conteúdo humano E a poesia em geral não é realista ou melhor não permite tanto realismo como o romance João Cabral de Melo Neto entrevista a Marques Gastão Diário de Lisboa Lisboa 3 de maio de 1958 Incluído em Idéias Fixas de João Cabral de Melo Neto de Feliz de Athayde p 85 e 86 7 RESUMO O presente estudo propõese investigar a maneira como Antonio Candido analisou o regionalismo na literatura brasileira Para tanto pesquisaramse os livros e ensaios do estudioso que também acabaram servindo como apoio teórico O objetivo é descrever por um lado como a visão de Candido com relação ao tema alterouse com o passar dos anos e por outro o espaço do regionalismo dentro da literatura brasileira de acordo com a visão do crítico Para tanto examinaramse cronologicamente os textos de Candido levandose em consideração a época em que foram escritos Tal exame mostrouse fundamental para fins de comparação e contraste em suma de embasamento para a leitura aqui proposta A relação que se estabelece a partir da literatura regionalista até a situação política econômica e social do Brasil foi igualmente discutida objetivando uma visão mais abrangente do panorama cultural brasileiro Os resultados evidenciam a permanência de problemas que caracterizaram o Brasil durante muito tempo como um país subdesenvolvido No entanto a maneira como esses problemas foram abordados pela literatura variou ao longo dos séculos O que acabou sendo visto como traço de atraso social e cultural antes era visto como elemento peculiar e de exaltação O intuito portanto foi descrever como Candido explicou cada um desses fenômenos 8 ABSTRACT The present study offers an investigation on the way Antonio Candido has analyzed the regionalism in the Brazilian literature Therefore Candidos books and essays were researched and also used as theoretical support The objective is to outline on the one hand how the authors view towards theme has changed throughout the years and on the other hand the place of regionalism in the Brazilian literature according to his view In order to do so Candidos texts were read chronologically considering the time when they were written This investigation was extremely important to compare and contrast the texts and to fundament the reading proposed here The relation established from the regionalist literature to the political economic and social situation in Brazil was equally discussed in order to come to a broader Brazilian culture scenery The results evidence the permanence of problems that have characterized Brazil for a long time as an underdeveloped country However the way this issued were treated by literature has varied throughout the centuries What was once seen as peculiar exaltation element ended up being seen as a sign of social and cultural delay Thus the intention was to describe the way Candido has explained each of this phenomena 9 SUMÁRIO INTRODUÇÃO O TEMA DO REGIONALISMO LITERÁRIO 10 CAPÍTULO I MOMENTOS INICIAIS 16 11 A VIDA ANTES DA OBRA 16 12 POESIA DOCUMENTO E HISTÓRIA 17 13 O MÉTODO CRÍTICO DE SILVIO ROMERO 20 14 A LITERATURA NA EVOLUÇÃO DE UMA COMUNIDADE 22 15 NOTAS DE CRÍTICA LITERÁRIA SAGARANA E NO GRANDE SERTÃO 25 16 O HOMEM DOS AVESSOS 30 CAPÍTULO II MOMENTOS DECISIVOS 35 21 OS PARCEIROS DO RIO BONITO 35 211 O BAIRRO E O MUTIRÃO 36 212 O CAIPIRA E A SUA CULTURA 39 213 O CAIPIRA EM FACE DA CIVILIZAÇÃO URBANA 43 22 A FORMAÇÃO DA LITERATURA BRASILEIRA 49 221 A POESIA PASTORAL E A CULTURA URBANA 51 222 OS QUATRO GRANDES TEMAS DA FORMAÇÃO E O ROMANTISMO 53 223 JOSÉ DE ALENCAR 63 224 BERNARDO GUIMARÃES 65 225 FRANKLIN TÁVORA 67 226 VISCONDE DE TAUNAY 75 CAPÍTULO III MOMENTOS RADICAIS 79 31 JAGUNÇOS MINEIROS DE CLÁUDIO A GUIMARÃES ROSA 80 32 A LITERATURA E A FORMAÇÃO DO HOMEM 96 33 LITERATURA E SUBDESENVOLVIMENTO 103 CONCLUSÃO O FIM DO REGIONALISMO LITERÁRIO E A PERMANÊNCIA DO SUBDESENVOLVIMENTO 116 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 123 ANEXOS 125 10 INTRODUÇÃO1 ALGUMAS QUESTÕES ACERCA DO REGIONALISMO LITERÁRIO Se considerarmos regionalista qualquer livro que intencionalmente ou não traduza peculiaridades locais teremos que classificar desse modo a maior parte da nossa ficção Assim começava Lucia Miguel Pereira seu capítulo sobre o regionalismo na literatura brasileira em sua obra Prosa de Ficção de 1870 a 1920 publicada em 1950 Sob esse aspecto é provável que mesmo hoje acabássemos considerando regionalista quase toda a produção literária nacional Desde a segunda metade do século XVIII pelo menos tivemos escritores preocupados em construir uma literatura brasileira na busca desse objetivo uma das estratégias que vislumbraram foi justamente traduzir para o texto literário a realidade e a linguagem locais regionais Nesse sentido era regional todo texto que não era urbano O advento do romance no Brasil no século XIX é contemporâneo à formação das grandes cidades brasileiras É nesse período que começaram a aparecer narrativas ditas urbanas Desde então estabeleceuse um contraste de um lado obras com enredos inseridos na cidade ou tendoa como referência por exemplo A Moreninha 1844 de Joaquim Manuel de Macedo Memórias de um sargento de milícias 1853 de Manuel Antonio de Almeida Cinco Minutos 1856 e A Viuvinha 1857 de José de Alencar De outro surgiram tramas que procuraram absorver a coloquialidade e os temas da vida interiorana consideradas regionalistas como A Divina Pastora 1847 do gaúcho Caldre Fião romance publicado no Rio de Janeiro Depois saíram O Gaúcho 1870 e O Sertanejo 1875 de Alencar Inocência 1872 do Visconde de Taunay O Garimpeiro 1872 O Seminarista 1872 e A escrava Isaura 1875 de Bernardo Guimarães O Cabeleira 1876 e O Matuto 1878 de Franklin Távora Com essa produção a partir do decênio de 1870 especialmente polêmicas instalaramse entre intelectuais e escritores pelo debate sobre as melhores realizações regionalistas Távora nas Cartas a Cincinato 1870 ou no prefácio de O Cabeleira é direto ao constatar as 1 O trabalho aqui apresentado vai com pouquíssimas alterações realizadas desde que foi defendido no dia 20 de abril de 2007 devido ao curto prazo para esse fim As sugestões da banca examinadora foram muitas e muito valiosas mas serão aproveitadas no futuro numa publicação em livro ou em outros trabalhos que porventura surgirem Mesmo com as fragilidades apontadas pelos professores o trabalho mereceu conceito A por unanimidade 11 deficiências do romance de Alencar por este tratar de locais que lhe eram completamente desconhecidos O que estava em jogo no fundo era uma discussão sobre a identidade nacional sobre como expressar essa identidade da maneira mais fiel Animados pelo desejo da construção duma cultura válida no país conforme apontou Antonio Candido no Prefácio à 2ª edição da Formação da Literatura Brasileira os escritores iniciaram um processo de descobrimento e divulgação do Brasil através da literatura Embora Távora tivesse razão essas rixas podem ter prejudicado a imagem já frágil da literatura regionalista Durante anos o regionalismo foi colocado em segundo plano por boa parte dos críticos É claro que a formação deste tipo de literatura baseou se em aspectos exóticos e pitorescos das regiões retratadas Apenas na virada do século XIX para o XX começaram a circular narrativas regionalistas de grande valor literário que não caíram nos clichês e nas armadilhas das primeiras tentativas A crítica iniciou a partir daí um processo de revisão do regionalismo que atingiu seu auge apenas com a chegada de Guimarães Rosa às letras nacionais Outra possível razão para a literatura regionalista ter sido considerada secundária é o atraso social político e econômico explicitado pelos textos Numa terra em que o bom era copiar a Europa apresentar os problemas das regiões mais remotas do Brasil era demonstrar que o país não só sofria com o atraso mas de certa forma o exaltava dada a pureza que alguns escritores reivindicavam para a literatura nacional ou seja uma literatura sem influências estrangeiras As letras têm como a política um certo caráter geográfico mais no Norte porém do que no Sul abundam os elementos para a formação de uma literatura propriamente brasileira filha da terra A razão é óbvia o Norte ainda não foi invadido como está sendo o Sul de dia em dia pelo estrangeiro A feição primitiva unicamente modificada pela cultura que as raças as índoles e os costumes recebem dos tempos ou do progresso podese afirmar que ainda se conserva ali em sua pureza em sua genuína expressão2 Távora defendia com fervor sua terra Mas Luís Augusto Fischer nos apresenta a questão de outro lado 2 TÁVORA Franklin O Cabeleira 8ª ed São Paulo Ática Série Bom Livro 2002 p 13 prefácio do autor A data original de publicação do romance é 1876 12 Em sentido amplo tudo é região dependendo do que se quer chamar de região A menos que se aceite o critério imperialista de que há um centro e o resto que fique girando em torno ou que se use um critério mais amplo fortemente consolidado mas nem por isso menos complicado do ponto de vista intelectual que é o critério que opõe a cidade e sua cultura ao campo e sua cultura Este último é que costuma ser a chave do debate FISCHER 2003 p 46 Feitas as primeiras ressalvas o presente estudo pretende analisar a maneira como o regionalismo na literatura brasileira foi pensado por Antonio Candido crítico literário e professor aposentado da USP Sua obra é vasta e determinante para a compreensão de como a literatura brasileira se movimentou ao longo dos séculos E poderíamos dizer até mais do que isso ao explicar a literatura o crítico está explicando o Brasil Nenhum estudante de Letras interessado em literatura brasileira atualmente deveria ficar sem ler a obra de Candido Seus textos mudaram os rumos da crítica literária no Brasil e são influência para professores e estudiosos de literatura das mais variadas correntes desde a Crítica Sociológica até a Literatura Comparada Devo registrar que o assunto foi proposto por meu orientador ainda na minha graduação e desde lá venho dedicandome ao tema Tema aliás que não mereceu um ensaio ou estudo específico de Candido Ele abordou o assunto em textos que tratam da Literatura Brasileira dentro de um quadro geral amplo por exemplo em Literatura e Subdesenvolvimento Às vezes a questão do regionalismo merece sua reflexão de maneira secundária ou apenas para explicar o foco principal de suas idéias vide A literatura e a formação do homem Não são muitos os textos enfim em que este assunto tem destaque na análise do crítico Talvez por isso suas idéias sejam apresentadas de maneira às vezes sumária às vezes sem muita clareza normalmente de forma complexa o que torna o tópico uma fonte inesgotável de reflexão Merece registro o fato de que as obras analisadas acabaram sendo também os textos de apoio para o estudo Ou seja os textos de Candido são ao mesmo tempo objeto de estudo e objeto de apoio analítico Além disso é importante observar que o regionalismo literário que interessa aqui é aquele ligado ao mundo rural Foi assim que Candido observou o tema na maioria de seus ensaios Portanto ficam excluídas obras que são consideradas regionalistas por outros críticos simplesmente por serem ambientadas em regiões distantes do centro do país Dessa forma obras escritas em estados fora do eixo RioSão Paulo podem ter ficado de fora da análise do crítico por 13 tratarem de um meio urbano mesmo que seja esse eixo que determina o que é e o que não é regional Sobre isso uma questão que me chamou atenção foi a forma como o assunto é tratado no estudo escolar desde que comecei a lecionar literatura brasileira há cerca de sete anos Vários livros didáticos utilizam as idéias de Candido às vezes citando a fonte às vezes inclusive reproduzindo frases ou trechos de seus textos mas não há uma construção do tema que para uma boa compreensão por parte do educando leve em consideração a cronologia da literatura regionalista3 O estudo escolar do regionalismo analisa o caso de várias maneiras de acordo com o livro didático utilizado ou com a metodologia da escola ou ainda de acordo com o que é solicitado pelos vestibulares Normalmente porém o que determina a forma como o assunto é tratado é a posição crítica do autor do livro didático ou do professor em sala de aula A maioria desses livros didáticos cita autores como Bernardo Guimarães Franklin Távora Afonso Arinos Valdomiro Silveira Hugo de Carvalho Ramos e Simões Lopes Neto entre outros mas sempre dão mais ênfase à obra de João Guimarães Rosa Da forma como o assunto é discutido porém não há como o estudante compreender a importância da obra de Rosa porque seus antecessores são apresentados sem profundidade nenhum livro tem reproduções de trechos de suas obras o que faz com que o estudante não perceba a diferença entre as características apontadas nesses escritores e as apontadas na obra de Rosa Os textos e as idéias de Candido são mal aproveitados A reprodução de um único trecho de um texto seu já poderia dar uma dimensão mais interessante do problema penso na última parte de A literatura e a formação do homem Isso faz com que o estudante ao invés de apreciar a literatura de Guimarães Rosa e a brasileira em geral acabe rechaçandoa ainda mais hoje com a mídia de uma maneira geral tomando o espaço da literatura o que também foi pensando por Candido como veremos É possível que essa concentração dos livros didáticos apenas na obra de Rosa em detrimento de outros autores regionais se dê também porque a literatura que mais importa é a urbana já que como observou o crítico foi ela que rendeu os melhores frutos na literatura brasileira O regionalismo pode ser estudado de várias maneiras quanto ao assunto quanto à linguagem ou ainda quanto ao arranjo narrativo Na obra de Candido ora o tema 3 Dois bons exemplos são os livros FARACO Carlos Emilio e MOURA Francisco Marto Literatura Brasileira 10ª ed São Paulo Ática 1999 e CAMPEDELLI Samira Yousseff Literatura História e Texto 3v 7ª ed São Paulo Saraiva 2001 especialmente o terceiro volume dedicado à 3ª série do Ensino Médio 14 aparece relacionado ao mundo rural ora como algo ultrapassado às vezes de maneira provinciana mas também como literatura popular como representação da violência e até como uma espécie de nacionalismo falhado A verdade é que nenhuma dessas relações está errada ou equivocada o termo regionalismo ou regional suscita discussões há muito tempo no meio acadêmico O que fiz foi tentar compreender como Candido observou o assunto ao longo de sua trajetória analisando o termo eou o assunto em seus textos buscando traçar um diagnóstico da questão a idéia é simplesmente descrever a interpretação do crítico e não apresentar uma interpretação embora isso ocorra em alguns momentos do trabalho aqui apresentado Qualquer pessoa com uma longa jornada em seu trabalho acaba revisando posições e pensamentos do início da carreira e a visão do crítico não fugiu a essa regra Um bom exemplo é a maneira como ele abordou a obra de Manuel Antonio de Almeida em dois momentos distintos O primeiro na Formação de 1959 quando o que mais chama a atenção é a sua definição final sobre o escritor com tanto senso dos limites e possibilidades de sua arte pressagiou entre nós o fenômeno de consciência literária que foi Machado de Assis realizando a obra mais discretamente máscula da ficção romântica CANDIDO 1997 2ºv p 199 O segundo é o ensaio Dialética da Malandragem de 1970 em que observa as relações de poder e os movimentos entre os pólos da ordem e da desordem apontados através de um típico malandro Leonardo Pataca personagem das Memórias de um sargento de milícias de Almeida mas revelando que esses movimentos eram comuns entre a sociedade da época em que o romance foi publicado Assim contextualizei o aparecimento do termo em cada texto analisado levando em consideração a obra literária estudada pelo crítico e o período histórico da publicação da primeira versão de cada texto É importante ressaltar que diversos textos de Candido foram publicados antes em periódicos e só anos mais tarde reunidos em um livro A data da primeira publicação tornase mais relevante portanto do que a data de lançamento de cada reunião de ensaios Nesse sentido trabalhei com três cronologias a primeira e mais abrangente é a da História do Brasil a segunda a da História da Literatura Brasileira e por fim a da vida de Antonio Candido e da publicação de seus textos já que o crítico começa a acompanhar ao vivo num certo momento a publicação de obras determinantes dentro da literatura brasileira e do regionalismo literário brasileiro 15 A ordem de apresentação de cada capítulo e de cada análise de ensaio segue a cronologia dos textos de Candido Dividi em três momentos a configuração do problema que representam os capítulos de meu estudo O marco é a Formação da Literatura Brasileira a forma como Candido estudou o regionalismo é apresentada de uma maneira até por volta de 1954 Cap 1 Momentos Iniciais do Regionalismo na obra de Antonio Candido Com a publicação da Formação e de Os parceiros do Rio Bonito de 1954 essa forma muda substancialmente assim como todo seu pensamento encontrando fundamentos mais precisos e sofisticados é o momento em que Candido chega à maturidade intelectual Cap2 Momentos Decisivos A terceira parte trata dos textos escritos após o início da ditadura militar no Brasil momento em que sua crítica se tornou ainda mais radical ao demonstrar as relações entre literatura e sociedade expondo como a primeira retratou a realidade da segunda Cap 3 Momentos Radicais Na conclusão discuto ainda alguns textos e entrevistas de Candido posteriores a 1984 em que o crítico reflete sobre a sua obra e sobre a situação cultural do Brasil 16 CAPÍTULO I MOMENTOS INICIAIS 11 A VIDA ANTES DA OBRA4 Antonio Candido de Mello e Souza nasceu no Rio de Janeiro em 1918 O registro dessa data é importante se pensarmos no contexto histórico Machado de Assis havia falecido apenas dez anos antes e a Semana de Arte Moderna se realizaria apenas quatro anos depois Apesar de ser carioca de nascimento Candido passou toda sua infância e adolescência no interior de Minas Gerais Se mudou para São Paulo apenas quando ingressou na faculdade Filho de um pai médico e de uma mãe dona de casa o crítco deveria ter seguido o caminho do pai Acabou não passando nos exames preparatórios de admissão do curso de Medicina e contrariando a vontade paterna que queria vêlo médico resolveu ingressar no recémcriado curso de Sociologia Apesar desse desvio o Dr Aristides Candido aceitou a escolha do filho dizendolhe que acabaria por realizar uma parte sua que ele não havia conseguido realizar Os pais de Candido eram muito cultos a mãe provinha de uma família de mulheres leitoras algo raro para a época e o pai estimulava e dava dinheiro para os três filhos comprar livros indicando os mais importantes Uma questão curiosa comentada em mais de um momento por Candido é o fato de ele ter tido acesso a duas bibliotecas pois cada um de seus pais tinha a sua seleção de livros Isso tudo fez com que o pequeno Antonio Candido se interessasse ainda mais pela leitura Antes de entrar na adolescência por volta dos dez doze anos a família Mello e Souza passou uma temporada na Europa momento em que Candido iniciou seu contato com a língua francesa Mais tarde já no Brasil aprendeu inglês e italiano Ou seja desde cedo antes de concluir os estudos ginasiais o crítico já lia algumas literaturas estrangeiras nas suas línguas de origem 4 As fontes utilizadas nessa rápida biografia são CANDIDO Antonio Textos de Intervenção Org Vinícius Dantas São Paulo Duas CidadesEd 34 2002 DANTAS Vinícius Bibliografia de Antonio Candido São Paulo Duas CidadesEd 34 2002 FISCHER Luís Augusto Antonio Candido Um olhar decisivo sobre o Brasil In Arquipélago Revista de Livros e Idéias nº 1 Porto Alegre mar 2005 JACKSON Luiz Carlos A Tradição Esquecida Os parceiros do Rio Bonito e a sociologia de Antonio Candido Belo Horizonte UFMG São Paulo FAPESP 2002 17 Chegando a São Paulo em 1936 Candido ficou deslumbrado com a vida cultural da cidade que tinha então cerca de um milhão de habitantes Acabou criando amizades que seriam determinantes na sua formação especialmente os colegas de Faculdade que com ele formariam o grupo de Clima a saber Décio de Almeida Prado Paulo Emílio Salles Gomes e Lourival Gomes Machado A revista Clima discutia questões relativas à literatura ao cinema e à sociologia o que acabou determinando a aproximação de Candido da crítica literária Com isso tomou contato com intelectuais da época como Mario de Andrade Oswald de Andrade e Sergio Buarque de Hollanda A partir desse momento surgiram os primeiros textos que aqui nos interessam Desde o início de sua atividade como crítico literário no início da década de 1940 Antonio Candido enfocou o regionalismo em seus textos Apesar do assunto não ser um tema central em sua obra inicial e mesmo depois como veremos na continuação deste trabalho as colocações do crítico a respeito do tema são elucidativas especialmente se considerarmos a época em que foram escritos os textos que serão aqui analisados 12 POESIA DOCUMENTO E HISTÓRIA O primeiro livro de Candido Brigada Ligeira de 1945 contém uma coletânea de textos apresentados inicialmente no jornal Folha da Manhã entre 1943 e 1945 quando o autor ali cumpria o papel de crítico literário Um desses textos Poesia Documento e História que em nada se parece com uma resenha literária atual mas sim com um belo ensaio é na realidade a união de três textos publicados em outubro de 1943 a respeito da obra de Jorge Amado A abertura do ensaio e toda primeira parte merecem especial atenção para nossos fins já que depois Candido vai deterse exclusivamente em aspectos da obra do escritor baiano Talvez se possa dizer que os romancistas da geração dos anos 1930 de certo modo inauguraram o romance brasileiro porque tentaram resolver a grande contradição que caracteriza a nossa cultura a saber a oposição entre as estruturas civilizadas do litoral e as camadas humanas que povoam o interior entendendose por litoral e interior menos as 18 regiões geograficamente correspondentes do que os tipos de existência os padrões de cultura comumente subentendidos em tais designações Essa dualidade cultural de que temos vivido tende naturalmente a ser resolvida e enquanto não for não poderemos falar em civilização brasileira CANDIDO 2004 p 41 As palavras de Candido podem parecer duras já que o embate campo X cidade já era extremamente percebido nos anos de 1940 e mais do que isso era um embate brutal o homem do interior não sabia do funcionamento da sociedade moderna da sociedade que vivia nas cidades Vale lembrar que o engajamento político do autor não é à toa Candido fez parte de grupos de oposição ao Estado Novo de Getulio Vargas como a Associação Brasileira de Escritores Quando diz que a civilização brasileira depende da resolução da dualidade cultural entre o campo e a cidade Candido está pensando historicamente no abismo social entre essas regiões algo que já havia sido registrado por Euclides da Cunha em Os Sertões Além disso o crítico também estava pensando na situação econômica e social promovida pela ditadura de Vargas nos grandes centros urbanos que ganharam universidades e fábricas enquanto o interior brasileiro ficou esquecido quanto a essas transformações Outra observação importante dada pelo autor com uma pequena ressalva é o fato de que o romance brasileiro é inaugurado pela geração de prosadores de 1930 pois foi ela que buscou a resolução do problema apontado É curioso no mínimo que isso tenha sido registrado por Candido já que ele identificou um pouco mais tarde o Arcadismo e o Romantismo como dois momentos cruciais para a formação da literatura brasileira mas também o Modernismo de 1922 como um momento de renovação cultural determinante para a arte brasileira É provável que o crítico estivesse aproximando os romancistas da geração de 1930 aos idealizadores do Modernismo como se aqueles fossem uma extensão destes num outro texto discutido adiante essa questão se fará mais clara Outra possibilidade é que Candido já tivesse em mente a idéia de um sistema literário contínuo com o tripé autor obra público mais tradição ou seja os romancistas de 1930 estavam chegando a um ponto não atingido e nem vislumbrado pelo românticos Mas independente do juízo que se faça disso deve se lembrar que este texto foi escrito a apenas 21 anos de distância da Semana de Arte Moderna num momento em que os escritores de 20 e 30 ainda estavam vivos e relacionandose 19 Na continuação do texto Candido aponta que a questão observada por ele tende a ser resolvida com a integração de grandes massas da nossa população à vida moderna CANDIDO 2004 p 41 Segundo ele ao colocar o problema e solucioná lo a literatura precedeu a obra dos políticos dos economistas e dos educadores mas inicialmente o problema era colocado de maneira tímida com a existência do homem rural sendo explorada como motivo de arte motivo por que não dizêlo de sabor quase exótico para o leitor das capitais citando autores como Bernardo Guimarães Franklin Távora e Monteiro Lobato A partir disso o crítico observa que a visão lírica e de certo modo pitoresca do homem do campo não podia persistir com a marcha do problema social com o trabalhador rural se integrando em massas dominadas pela usina e pela tulha símbolos da poderosa engrenagem latifundiária com o proletariado urbano se ampliando segundo o processo de industrialização CANDIDO 2004 p 4142 A realidade já não permitia a apresentação romântica do homem do interior o processo de modernização por que passou o Brasil na Primeira República e durante a Era Vargas impedia a continuação do trabalho literário com uma identidade que nunca existiu E aí está a base para o surgimento dessa geração dos romancistas de 30 O movimento de reivindicação e a onda surda da tomada de consciência de uma classe ecoaram de certo modo no domínio estético e a massa começou a ser tomada como fator de arte os escritores procurando opor à literatura e à mentalidade litorâneas a verdade a poesia o sentido humano da massa rural e proletária esta um prolongamento urbano do pária sertanejo Dentro da sua linha própria de desenvolvimento interno o romance correu paralelo interagindo com a evolução social recebendo as repercussões CANDIDO 2004 p 42 O homem do campo na pena dos romancistas de 1930 segundo Candido é integrado ao patrimônio cultural brasileiro não mais como algo pitoresco mas reivindicando o seu lugar na nacionalidade e na arte Os escritores vão aceitar o povo realizando e dando sentido humano ao programa estético dos rapazes do movimento de 1922 CANDIDO 2004 p 43 Com isso O romance procedeu a uma espécie de preparo do terreno para a integração das massas na vida do país Na fase regionalista sertaneja o caboclo era considerado sobretudo como um motivo um objeto pitoresco Mesmo em escritores tão compreensivos como Afonso Arinos Entre ele caboclo e os escritores ia a distância que vai do empregado ao patrão 20 bondoso e interessado pela sua vida A força do romance moderno foi ter entrevisto na massa não assunto mas realidade criadora CANDIDO 2004 p 43 Portanto Antonio Candido percebeu já na década de 1940 que a literatura regionalista realizada até o início do século XX tinha um caráter paisagístico ou seja era produzida para o cidadão urbano conhecer o que existia para além das fronteiras de sua cidade Era uma literatura que colocava homens no mesmo patamar dos animais e da natureza E esse problema só é solucionado quando os escritores oriundos das regiões retratadas por esses primeiros regionalistas conseguem desmistificar a paisagem criada e executar uma obra que é bem produzida estética e ideologicamente Eram escritores com capacidade para perceber e transmitir os problemas do homem rural sem cair na propaganda de um mundo selvagem e desconhecido na realidade eram escritores burgueses porque tinham boa formação e com isso uma boa percepção do mundo e das transformações nele ocorridas a partir da virada do século Vale lembrar que por volta de 1945 a 1954 Candido fará uma pesquisa que culminará na defesa de seu doutorado em sociologia com a tese Os Parceiros do Rio Bonito publicada em livro apenas em 1964 certamente um trabalho que lhe rendeu uma percepção ainda mais clara dos problemas sociais do interior brasileiro 13 O MÉTODO CRÍTICO DE SILVIO ROMERO Em 1945 Antonio Candido participou de um concurso para a cadeira de Literatura Brasileira da Universidade de São Paulo defendendo a tese Introdução ao método crítico de Silvio Romero O candidato por critérios injustos não foi selecionado no desempate dos votos contra outro dos candidatos por ter sido aprovado porém conquistou a livredocência e tornouse doutor em Letras que era seu objetivo principal Candido considera a primeira edição do texto a própria tese O texto porém só teve uma divulgação mais ampla na segunda edição de 1963 no Boletim da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da USP nº 266 1º de Teoria Literária e Literatura Comparada com o título diminuído para O Método Crítico de Sílvio Romero O estudo de Candido sobre a obra de Sílvio Romero não aborda o regionalismo Sua importância para o presente trabalho se deve às posições críticas apresentadas em 21 dois momentos O primeiro está no capítulo introdutório chamado A Crítica Pré Romeriana e o Modernismo O mecanismo da evolução literária para ele Sílvio Romero é simples como se depreende dos seus livros Inspirados por algum acontecimento ou pela meditação aparecem os escritores que se tornam grandes pela força do gênio e porque obedecem às regras do bom gosto e das conveniências estéticas firmadas desde Aristóteles Não lhe ocorre depois de Villemain Madame de Stäel Herder os Schlegel que devia conhecer que a literatura possa estar submetida a algum condicionamento que as obras influam umas sobre as outras ou que haja tendências periódicas CANDIDO 1988 p 22 Já estava clara para Candido em 1945 a organicidade da Literatura os escritores e suas obras aparecem segundo algum condicionamento seja do local seja da época ou de interesse Os escritores têm em mente seus antecessores para não repetir o que produziram e para procurar superálos Essas posições serão a base fundamental da Formação da Literatura Brasileira que o crítico começou a escrever pouco tempo depois Em alguns textos que serão analisados a seguir Candido mostra como Guimarães Rosa por exemplo soube ler e ir adiante de seus antecessores do regionalismo literário brasileiro Já no prefácio da segunda edição do livro datado de 1961 Candido utiliza pela primeira vez a expressão crítica integrativa que reaparecerá em textos mais contemporâneos especialmente em entrevistas Neste livro quase no início duma carreira procurei com as limitações pessoais e os poucos recursos do momento sugerir uma crítica integrativa superando os resquícios de naturalismo que ainda sobreviviam e mostrando as limitações do ponto de vista sociológico então em grande voga e ao qual eu próprio aderira anos antes ao começar a escrever CANDIDO 1988 p 22 No momento em que escreve esse prefácio o crítico já é professor de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP e já publicou a Formação O que Candido procurava com essa crítica integrativa era utilizar diversas teorias para o estudo literário de modo que cada uma contribuísse com o que tinha de melhor Ele procurava desde então ou mesmo antes perceber quais eram as melhores teorias para explicar cada obra Em depoimento recente o crítico defende que é a obra que deve determinar a 22 teoria que melhor pode lhe explicar aplicar uma teoria por simples gosto pessoal pode limitar a análise do texto 14 A LITERATURA NA EVOLUÇÃO DE UMA COMUNIDADE Originalmente publicado em 1954 com o título Aspectos sociais da literatura em São Paulo em função do IV Centenário da Cidade de São Paulo no número comemorativo do jornal O Estado de São Paulo A literatura na evolução de uma comunidade é um texto provocativo para qualquer brasileiro mas em especial para quem não é paulista Candido deixa implícito que seu foco não é o regionalismo mas pelo menos suas primeiras frases contêm afirmações que podem ser relacionadas com o assunto Vejamos seu início Se não existe literatura paulista gaúcha ou pernambucana há sem dúvida uma literatura brasileira manifestandose de modo diferente nos diferentes Estados CANDIDO 2002 p 139 Ora é estranho Candido afirmar com tanta convicção que não existe uma literatura paulista gaúcha ou pernambucana O Modernismo de 20 foi um movimento autenticamente paulista apesar do nacionalismo que exaltou e expressou Contudo os modernistas acreditavam que produzindo a sua arte cheia de elementos paulistanos ou regionais estavam ajudando a constituição de uma literatura nacional Essa visão acabou sendo compartilhada pelo crítico que encara o Romantismo e o Modernismo como os dois momentos cruciais da literatura brasileira No caso específico do Rio Grande do Sul a literatura gaúcha tem um sistema literário próprio desde pelo menos o surgimento do grupo Partenon Literário em 1868 como podemos observar pelas análises dos livros Literatura Gaúcha 2004 de Luís Augusto Fischer e História da Literatura do Rio Grande do Sul 1956 de Guilhermino Cesar Existem aqui editoras que publicam apenas autores gaúchos Algumas delas inclusive têm distribuição restrita ao estado Ao fazer a afirmação acima Candido devia ter em mente por exemplo a obra de José de Alencar e de Gonçalves Dias o primeiro cearense o segundo maranhense mas ambos incorporados perfeitamente à literatura brasileira O caso do Rio Grande do Sul porém é exemplar para essa 23 discussão como bem observou Luís Augusto Fischer em texto publicado pela Universidade de Caxias do Sul Uma Reflexão sobre a Formação Regional apresentado num seminário na mesma universidade do qual reproduzo um trecho Literatura paulista não precisa existir insinua Candido mais do que na vida real Quer dizer explicito eu não é preciso pensar numa categoria como literatura paulista para que exista a literatura paulista ela mesma os autores e as obras E por que não precisa existir a categoria na visão de Candido Porque São Paulo cidade ou estado é suficientemente existente e central para impor sua presença sua marca sua influência sobre os escritores tão suficientemente existente que é o próprio centro do Brasil Outro é o caso gaúcho e pernambucano naturalmente Um e outro estados de maneira exclusiva na história brasileira experimentaram por breve mas marcante período a independência a vida autônoma no caso pernambucano durante a chamada dominação holandesa num momento que terá ficado no imaginário do povo a tal ponto que não serão poucas as tentativas de busca por maior autonomia de então em diante especialmente no episódio da Confederação do Equador e no caso gaúcho durante a República do Piratini pelo menos Duas províncias que lutaram por maior autonomia e que até hoje são reconhecidas interna e externamente como singularmente afeitas às idéias republicanas e federalistas Assim não estaremos afastados da justa interpretação quando notamos que a enumeração de Candido fere os casos centrais a considerar quando se trata de literatura regional Dito de modo liso e direto a noção de regionalidade está no quadro brasileiro vinculada diretamente à experiência do poder sobre o conjunto do país ao longo de sua formação FISCHER 2004 p 895 Os modernistas paulistas eram conscientes de que o estado tinha uma predominância econômica e política sobre o restante do país Dessa forma o que praticaram foi de certa forma uma imposição cultural a criação de uma literatura paulista destinada a ser a literatura brasileira Mas não se trata apenas de São Paulo ser o centro do Brasil nem do Rio Grande do Sul ou de Pernambuco terem tradições separatistas Na seqüência à frase anterior Candido afirma Neste artigo não interessa por isso mesmo delimitar produções e autores segundo critério estrito do nascimento mas segundo o critério mais compreensivo e certo da participação na vida social e espiritual da cidade de São Paulo Esta apresenta algumas características e é compreensível que a sua influência marque literariamente os que nela 5 As referências de página deste texto têm por base a versão original do autor cedida a mim antes da publicação da Editora da Universidade de Caxias do Sul EDUCS 24 vivem de modo mais forte que as do lugar em que nasceram CANDIDO 2002 p 139 A seqüência do raciocínio de Candido parece demonstrar uma contradição porque dá a entender que existe sim uma literatura paulista enquanto não existem outras literaturas regionais já que a participação na vida social e espiritual da cidade de São Paulo corresponde à idéia de sistema que Candido utilizou na Formação lembrando que esta estava sendo retomada nessa época depois de alguns anos em que o crítico se dedicou aOs Parceiros Mesmo que Candido esteja pensando numa unidade para a literatura brasileira nas reflexões acima que abrem o ensaio percebemos que para ele como observou Fischer literatura paulista não precisa existir mais do que na vida real Quer dizer não é preciso pensar numa categoria como literatura paulista para que exista a literatura paulista ela mesma os autores e as obras Para aprofundar a questão vejamos um exemplo Raul Bopp nasceu no Rio Grande do Sul mas toda sua carreira foi consolidada em São Paulo quando para lá se mudou saindo da adolescência Bopp escreveu uma poesia voltada para a cultura negra que denunciava as atrocidades cometidas contra os escravos Ninguém pensa em regionalismo quando trata de Raul Bopp mesmo que sua poesia não seja urbana e mesmo que ele seja gaúcho Portanto não importa o local em que cada autor nasceu nem se sua literatura está vinculada a sua região de origem ou principalmente a alguma região central do país mas sim o tipo de literatura que desenvolveu para ser enquadrado como um autor regionalista como veremos adiante Candido comparou Simões Lopes Neto e Coelho Neto num texto revelador das estratégias narrativas de cada um Bopp assim faz parte da literatura paulista e por isso não foi incluído por Fischer no já citado Literatura Gaúcha De qualquer forma vale frisar a última observação de Fischer o regionalismo é definido como tal a partir do centro e por quem está no centro mesmo que um determinado escritor regionalista ou que explora aspectos regionais esteja no centro Se existe uma literatura brasileira manifestandose de modo diferente nos diferentes Estados Candido poderia ter dito que existem literaturas estaduais para fugir da classificação do regionalismo e para demonstrar que elas todas acabam por constituir essa literatura brasileira e a ajudam na sua formação 25 15 NOTAS DE CRÍTICA LITERÁRIA SAGARANA E NO GRANDE SERTÃO À época dos lançamentos de Sagarana 1946 e Grande sertão veredas 1956 ambos de João Guimarães Rosa Antonio Candido publicou dois textos a respeito do acontecimento que era a publicação dessas narrativas para a literatura brasileira em especial a regionalista Apesar das datas de publicação dos livros serem afastadas cabe a comparação dos dois textos porque tratam do mesmo autor e do mesmo quadro histórico Os textos são respectivamente Notas de Crítica Literária Sagarana publicado no Diário de São Paulo em 11071946 e No Grande sertão publicado originalmente sob a rubrica Grande sertão veredas na seção Resenha Bibliográfica do Suplemento Literário de O Estado de São Paulo em 06101956 incluídos na coletânea Textos de Intervenção de 2002 No primeiro Candido afirma que Sagarana não vale apenas na medida em que nos traz um certo sabor regional mas na medida em que constrói um certo sabor regional isto é em que transcende a região A província do sr Guimarães Rosa no caso Minas é menos uma região do Brasil do que uma região da arte com detalhes e locuções e vocabulário e geografia cosidos de maneira por vezes quase irreal tamanha é a concentração com que trabalha o autor CANDIDO 2002 p 185 O crítico apenas três anos depois do texto Poesia Documento e História registra o surgimento de uma obra que trabalha diretamente com a arte que não ignora o pitoresco mas o incorpora ao mundo artístico Mais do que isso se alguns prosadores de 1930 ficaram conhecidos como romancistas do Nordeste Guimarães Rosa desenvolveu uma literatura regionalista profundamente ligada a Minas Gerais mas também muito ligada a um mundo completamente diferente de tudo que já se tinha produzido em termos de literatura regionalista no Brasil e segundo a reflexão exposta acima também em termos artísticos A seguir Candido faz uma defesa importante Por isso sustento e sustentarei mesmo que provem o meu erro que Sagarana não é um livro regional como os outros porque não existe região igual à sua criada livremente pelo autor com elementos caçados 26 analiticamente e depois sintetizados na ecologia belíssima das suas histórias Transcendendo o critério regional por meio de uma condensação do material observado condensação mais forte do que qualquer outra em nossa literatura da terra o sr Guimarães Rosa como que iluminou de repente todo o caminho feito pelos seus antecessores CANDIDO 2002 p 185 e 186 Será que realmente não existe região igual à sua Na época em que o crítico escreveu esse texto provavelmente não se sabia que Guimarães Rosa viveu toda sua infância no interior mineiro e nem que mais tarde para a escritura de Grande sertão veredas fez uma viagem pelo sertão do estado em 1952 tocando 600 cabeças de boi de uma fazenda a outra acompanhando um grupo de peões Outro trecho que chama atenção é quando fala em literatura da terra Literatura da terra significa neste caso literatura regional Aparentemente sim pois aqui o crítico ainda enquadra Rosa no grupo regionalista talvez por se tratar do primeiro livro do escritor mas isso é algo que não fará mais tarde com a continuação da obra rosiana O crítico aponta nomes de precursores regionalistas de Guimarães Rosa como Bernardo Guimarães Afonso Arinos Valdomiro Silveira Monteiro Lobato e outros para mostrar que eles mantinham uma relação de sujeito autor sobre o objeto a região ou de homem do litoral retratando o homem do campo Já Rosa estava preocupado em ir além em transcender o regional em buscar elementos que tornassem sua obra mais autêntica e duradoura trabalhando com elementos que tornaram sua prosa mais humana Sob o olhar de Candido Guimarães Rosa parece ter ido a uma fronteira ainda mais distante mesmo da de Graciliano Ramos Jorge Amado José Lins do Rego e Rachel de Queiroz No parágrafo seguinte o autor opina que Sagarana nasceu universal pelo alcance e pela coesão da fatura A língua parece finalmente ter atingido o ideal da expressão literária regionalista Densa vigorosa foi talhada no veio da linguagem popular e disciplinada dentro das tradições clássicas CANDIDO 2002 p 186 Candido utiliza uma adjetivação que não se repetirá mais tarde afirmar que uma obra é universal sem fazer ressalvas é algo que demonstra um certo deslumbramento diante de uma obra totalmente nova lembremos que o crítico tinha apenas 28 anos em 1946 Notese que o crítico enfatiza que Sagarana foi uma obra determinante também do ponto de vista lingüístico Aparentemente as tramas dos contos só ganham atenção 27 especial do crítico graças à linguagem utilizada para a construção do livro Mas o encantamento de Candido aparentemente também se dá por causa do registro de um mundo que está acabando nesta altura Candido já havia iniciado seu estudo para Os Parceiros que trata justamente desse assunto Mundo este completamente diferente do registrado pelos romancistas de 1930 que tinham muito mais compromisso com a representação da realidade do que Guimarães Rosa já que estavam preocupados com o registro da situação social das regiões retratadas O mundo de Rosa era um mundo ligado ainda ao passado um mundo primitivo exótico embora isso não seja transformado em exotismo Nas linhas seguintes o crítico observa que todos os problemas dos precursores de Guimarães Rosa a linguagem artificial o homem no mesmo nível da paisagem e dos animais se transformaram em suas mãos em outros fatores de vitória E frisa que a temática estava batida e aparentemente esgotada mas com o capricho meio oratório do estilo que há muito consideramos privativo da subliteratura CANDIDO 2002 p 187 e com a retomada eficaz de elementos que poderiam resultar em graves equívocos como o exotismo do léxico e a descrição em contraponto à ação e à introspecção do romance moderno o autor conseguiu transcender o critério regional E conclui observando que os antecessores de Rosa ficaram comendo poeira Pois o sr Guimarães Rosa partiu de todas estas condições algumas das quais bastaram para fazer naufragar escritores do maior talento como Monteiro Lobato ou reduzir às devidas proporções outros indevidamente valorizados como o velho Afonso Arinos não rejeitou nenhuma delas e chegou a verdadeiras obrasprimas como são alguns dos contos de Sagarana CANDIDO 2002 p 187 O crítico aqui é discretamente impiedoso Se antes Candido havia encarado Afonso Arinos como um escritor compreensivo o seu critério teve de ser reavaliado diante da obra de Guimarães Rosa O crítico parece não poder mais concordar com a maneira que era utilizada para encarar a obra de Arinos até então E mais toda a literatura regionalista brasileira teve de ser reavaliada depois de Sagarana E o mérito maior de Rosa parece ter sido saber selecionar o que havia de interessante entre os regionalistas do Romantismo os da virada do século XIX para o XX e os de 1930 Agora passemos ao segundo texto sobre Grande sertão veredas escrito dez anos depois e que inicia assim 28 Este romance é uma das obras mais importantes da literatura brasileira jato de força e beleza numa novelística algo perplexa como é atualmente a nossa Não segue modelos não tem precedentes nem mesmo talvez nos livros anteriores do autor que embora de alta qualidade não apresentam a sua característica fundamental transcendência do regional cuja riqueza peculiar se mantém todavia intacta graças à incorporação em valores universais de humanidade e tensão criadora CANDIDO 2002 p 190 A partir desse parágrafo podemos concluir que o crítico não esperava que ninguém nem mesmo o próprio Guimarães Rosa pudesse superar a maestria de Sagarana visto que Candido considerou à época do lançamento em 1946 que a obra transcendeu o critério regional Mas o próprio Rosa foi muito além dos limites do regional de todas as obras já produzidas dentro do regionalismo porque incorporou o folclore sem cair no pitoresco o que teria pensado Mario de Andrade a respeito de Grande sertão porque tratou o homem como ser humano e não como objeto porque incorporou metafísicos segundo Candido em depoimento recente incluído no Dvd da Edição Comemorativa de 50 anos de Grande sertão veredas Guimarães Rosa dizia que o que importa para o homem é saber apenas se Deus existe ou não Grande sertão é uma história que ultrapassa todas as formas da literatura nacional muito mais do que os paradigmas do regionalismo seja o dos românticos o da geração de 1930 seja o de Sagarana E continua sua análise sobre Grande sertão feita no calor da hora Mundo diverso da ficção regionalística feita quase sempre de fora para dentro e revelando escritor simpático compreensivo mas separado da realidade essencial do mundo que descreve e que enxerta num contexto erudito elementos mais ou menos bem apreendidos da personalidade costumes linguagem do homem rústico obtendo montagens não a integração necessária ao pleno efeito da obra de arte CANDIDO 2002 p 191 Mesmo sem expressar claramente como fará nas décadas seguintes por exemplo em A literatura e a formação do homem de 1972 discutido adiante Candido apontou a solução de Guimarães Rosa para o problema da literatura regionalista ao colocar um narrador em primeira pessoa para contar as aventuras de sua vida o escritor conseguiu quebrar o distanciamento que existia entre o narrador e o leitor nas obras anteriores do regionalismo Ou seja Guimarães Rosa atingiu seu êxito ao escrever uma ficção de dentro para fora assim como havia feito Simões Lopes Neto em Contos Gauchescos de 1912 como o crítico estudou no ensaio referido acima 29 O crítico prossegue sua análise Em Grande sertão veredas o aproveitamento literário do material observado na vida sertaneja se dá de dentro para fora no espírito mais que na forma O autor inventa como se havendo descoberto as leis mentais e sociais do mundo que descreve fundisse num grande bloco um idioma e situações artificiais embora regidos por acontecimentos e princípios expressionais potencialmente contidos no que registrou e sentiu Sob este aspecto ao mesmo tempo de anotação e construção lembra os compositores que infundiram o espírito dos ritmos e melodias populares numa obra da mais requintada fatura como Bela Bartók Comparada a semelhante processo a literatura regionalista não ultrapassa a esfera do programa caipira CANDIDO 2002 p 191 A impressão de Candido é de que Guimarães Rosa conseguiu unir ficção e realidade na construção de seu romance ao inventar algo que havia registrado e sentido o escritor mineiro conseguiu compor uma obra em que a ficção diz respeito a questões importantes para qualquer homem em qualquer lugar do planeta E o crítico não se cansou de comparar a narrativa a obras artísticas do primeiro time como Machado de Assis e Graciliano Ramos embora diferentes quanto aos aspectos explorados E fez isso não por uma questão nacionalista xenófoba mas pela importância do que está sendo contado pelo exjagunço Riobaldo Isso tudo porque é uma obra em que seu autor acabou transcendendo o regionalismo que Candido acreditava ter sido transcendido em Sagarana Para conter tanta riqueza plástica e emocional Guimarães Rosa uniu pitoresco e essencial numa técnica narrativa admirável marcada pelo vaivém o parêntese a antecipação a digressão a retomada que ampliam a nossa percepção em amplitude e profundidade para desembocar na linha reta e palpitante da terça parte final quando Riobaldo assume o destino nas mãos disposto a aceitar o bem e o mal Refinamento técnico e força criadora fundemse então numa unidade onde percebemos emocionados desses raros momentos em que a nossa realidade particular brasileira se transforma em substância universal perdendo a sua expressão aquilo que por exemplo tinha de voluntariamente ingênuo na rapsódia dionisíaca de Macunaíma para adquirir a soberana maturidade das obras que fazem sentir o homem perene CANDIDO 2002 p 192 Candido reconhece que Macunaíma que é claramente um livro cheio de pretensões parece uma simples fábula ao lado de Grande sertão Ao relembrar a obra de Mario de Andrade Antonio Candido está registrando e podese mesmo dizer 30 reconhecendo que o valor da aventura idealizada pelo autor paulista é inferior à do mineiro Para o crítico o Brasil está muito mais próximo da realidade de Grande sertão veredas do que se poderia imaginar E Guimarães Rosa consegue isso tudo como já observado pelo crítico graças à união do pitoresco ao essencial graças ao que ele pôde aproveitar de seus antecessores regionalistas mas também graças à proposta modernista 16 O HOMEM DOS AVESSOS O Homem dos Avessos artigo publicado originalmente sob o título O Sertão e o Mundo em 1957 e incluído em Tese e Antítese de 1964 trata de Grande sertão veredas com mais profundidade Este ensaio é especialmente interessante porque em nenhum momento o crítico utiliza a palavra regionalismo ou regional ou regionalista apesar de tratar e de ter consciência de que está tratando de um mundo regional A divisão do ensaio de Candido remete a Os Sertões de Euclides da Cunha relação estabelecida por Candido já que tanto numa obra quanto em outra há três elementos estruturais que apóiam a composição a terra o homem a luta Grande sertão veredas é analisado apenas um ano depois de sua publicação e leva Antonio Candido a concluir que baseandose em critérios fundamentais para o trato da literatura regional Guimarães Rosa conseguiu fugir ao naturalismo típico da tendência regional e atingiu um alto patamar que leva o leitor a refletir sobre o que está apresentado Uma obsessiva presença física do meio uma sociedade cuja pauta e destino dependem dele como resultado o conflito entre os homens Mas a analogia entre Os Sertões e Grande sertão pára aí não só porque a atitude euclideana é constatar para explicar e a de Guimarães Rosa inventar para sugerir como por que a marcha de Euclides da Cunha é lógica e sucessiva enquanto a dele é uma trança constante de três elementos refugindo a qualquer naturalismo e levando não à solução mas à suspensão que marca a verdadeira obra de arte e permite a sua ressonância na imaginação e na sensibilidade CANDIDO 2002 p 123 A seguir o crítico passa a comentar o cenário em que se passam as aventuras narradas do romance do escritor mineiro o meio físico tem para ele uma realidade envolvente e bizarra servindo de quadro à concepção do mundo e de suporte ao 31 universo inventado Nele a paisagem rude e bela é de um encanto extraordinário CANDIDO 2002 p 123 Candido observa que nesse cenário recheado de aridez e secura o homem do sul é um estranho e que o mundo de Guimarães Rosa parece esgotarse na observação Mas aí o autor faz uma ressalva essa descrição do espaço do romance está a serviço da narração Começamos então a sentir que a flora e a topografia obedecem freqüentemente a necessidades da composição que o deserto é sobretudo projeção da alma e as galas vegetais simbolizam traços afetivos Aos poucos vemos surgir um universo fictício à medida que a realidade geográfica é recoberta pela natureza convencional CANDIDO 2002 p 124 Guimarães Rosa conseguiu equilibrar a descrição do local com a psicologia da personagem principal Riobaldo e com a história por ele contada considerandose aí não só a história de sua vida como toda a experiência social da vida no sertão da vida de jagunço É possível que Candido tenha tido contato com o ensaio Narrar ou Descrever de Georg Lukács escrito em 19366 Na seqüência Candido concentrase na função do rio São Francisco para a composição do romance apontando acontecimentos determinantes da narrativa ocorridos em cada lado do rio o que acaba por dividir também o real e o fantástico em cada lado como observado pelo próprio crítico apesar de serem elementos quase inseparáveis Dessa forma a função exercida pela topografia é variável conforme a situação CANDIDO 2002 p 125 Na parte seguinte do ensaio O homem Antonio Candido para compor sua análise parte da premissa de que os homens são produzidos pelo meio físico o Sertão os encaminha e desencaminha proporcionando um comportamento adequado à sua rudeza CANDIDO 2002 p 127 Essa rudeza aparece sob a forma da violência tema que será trabalhado anos mais tarde pelo crítico em Jagunços mineiros de Cláudio a Guimarães Rosa A luta a violência e o jaguncismo são elementos característicos desses homens o que acaba se tornando parte do regionalismo literário brasileiro segundo a visão de Candido em especial quando se trata de Grande sertão A partir desses elementos o regionalismo também parece apoiarse na idéia de que o cenário retratado é um mundo sem lei assim como o dos romances de Cavalaria para utilizar 6 LUKÁCS Georg Ensaios sôbre literatura 2ª ed Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1968 p 47 100 32 um exemplo do próprio crítico em O Homem dos Avessos A aproximação de Grande sertão veredas ao romance de Cavalaria passa a ser o foco de Candido no ensaio mas diferente do paladino cavaleiresco o jagunço é um bandido A última parte do texto O problema trata da dúvida de Riobaldo com relação à existência de Deus e do Diabo A respeito do assunto Candido faz uma observação elucidativa sobre o homem do Sertão mas por que o demônio em tudo isso Porque nada encarnaria melhor as tensões da alma nesse mundo fantástico nem explicaria mais logicamente certos mistérios inexplicáveis do Sertão CANDIDO 2002 p 136 E mais adiante O demônio surge então como acicate permanente estímulo para viver além do bem e do mal e bem pesadas as coisas o homem no Sertão o homem no mundo não pode existir doutro modo a partir duma certa altura dos problemas Viver é muito perigoso repete Riobaldo a cada passo não só pelos acidentes da vida mas pelas dificuldades em saber como vivêla CANDIDO 2002 p 137 Essa dificuldade de Riobaldo encarar a vida é que o leva à reflexão sobre o bem e o mal sobre Deus e o Diabo sobre qual caminho seguir o da paz ou o da luta Nos últimos parágrafos do texto Candido analisa essa questão colocando Riobaldo no lugar dos paladinos ao invés de no dos jagunços O jagunço sendo o homem adequado à terra O sertão é o jagunço não poderia deixar de ser como é mas ao manipular o mal como condição para atingir o bem possível no Sertão transcende o estado de bandido Bandido e nãobandido portanto é um ser ambivalente que necessita revestirse de certos poderes para definir a si mesmo O pacto desempenha esta função na vida do narrador cujo Eu a partir desse momento é de certo modo alienado em benefício do Nós do grupo a que o indivíduo adere para ser livre no Sertão e que ele consegue levar ao cumprimento da tarefa de aniquilar os traidores os Judas Graças a isto é vencida pelo menos na duração do ato a ambigüidade do jagunço que se fez integralmente paladino Tanto que Riobaldo não prossegue nas armas e se retira acompanhado por grande parte dos seus fiéis Os seus feitos tenderam mesmo a aniquilar a condição de jagunço bandido e ele se justifica aos próprios olhos nessa negação do ser de exceção em benefício da existência comum na fazenda que herdou do padrinho e pai ao lado de Otacília prêmio das andanças O que mormente me fortalecia foi o repetido saber que eles pelo sincero me prezavam como talentoso homem de bem e louvavam meus feitos eu tivesse vindo corajoso para derrubar o Hermógenes e limpar estes gerais da jagunçagem CANDIDO 2002 p 138 e 139 33 Dessa forma Riobaldo parece ser o primeiro paladino regional do Brasil e da literatura brasileira Renunciando aos altos poderes que o elevaram por um instante acima da própria estatura o homem do Sertão se retira na memória e tenta laboriosamente construir a sabedoria sobre a experiência vivida porfiando num esforço comovedor em descobrir a lógica das coisas e dos sentimentos E me inventei neste gosto de especular idéias Desliza então entre o real e o fantástico misturados na prodigiosa invenção de Guimarães Rosa como lei da narrativa E nós podemos ver que o real é ininteligível sem o fantástico e que ao mesmo tempo este é o caminho para o real Nesta grande obra combinamse o mito e logos o mundo da fabulação lendária e o da interpretação racional que disputam a mente de Riobaldo nutrem a sua introspecção tacteante e extravasam sobre o Sertão CANDIDO 2002 p 139 Pelos trechos apresentados fica claro que Candido ainda estava sob o impacto da primeira leitura da obra Sua análise busca uma tentativa de compreensão e interpretação da narrativa A preocupação do crítico era entender a aparição de Grande sertão veredas não apontar uma conclusão a respeito das questões levantadas pelo livro sobre Minas Gerais o Brasil ou o mundo talvez porque aceita a afirmação do narrador de que o sertão é o mundo Apenas alguns anos mais tarde Candido conseguiria enxergar que Grande sertão veredas era uma obra que apontava o atraso do interior do Brasil e que marcava o fim de um mundo Literatura e Subdesenvolvimento embora esse raciocínio já estivesse implícito em Poesia Documento e História em 1943 No momento em que escreveu este O Homem dos Avessos o crítico queria compreender os elementos narrativos da obra assim como Riobaldo se inventando nesse gosto de especular idéias Afinal não existia no Brasil uma obra literária que fundisse elementos mágicos Tratavase de uma realidade brasileira que era preferível manter esquecida ou ignorada segundo a lógica do governo de então o sertão era um mundo a ser ignorado ou destruído como foi o caso da Guerra de Canudos objeto do texto de Euclides o mundo sertanejo tinha de estar marcadamente separado do mundo urbano desenvolvido Antes de apontar a importância social do romance ou mesmo antes de percebêla era determinante compreender sua estrutura E isso não ocorreu apenas com Grande sertão veredas basta conferir por exemplo as já citadas análises sobre as Memórias de um sargento de milícias de Manuel Antonio de Almeida Por isso O Homem dos Avessos pode ser 34 considerado um ensaio diferente dos outros do crítico Ele não estava tentando compreender a realidade ali representada apenas a estrutura literária da obra De 1943 a 56 Antonio Candido demonstrou uma radical mudança na percepção do tema regional na literatura brasileira Isso parece ter sido agravado devido a três fatores principais 1º a situação social e política do Brasil com a industrialização promovida pelo Estado Novo de um lado e o atraso secular a que estavam submetidas algumas regiões do país de outro 2º o início de seu estudo sobre a vida do caipira que será analisado adiante e 3º o lançamento de Sagarana que injetou força na literatura brasileira ao explorar o regionalismo que estava aparentemente esgotado É provável que sem esses acontecimentos o crítico acompanhasse opiniões consagradas e não fizesse restrições como a que fez a Afonso Arinos o que acabará por estender a outros escritores como Monteiro Lobato e Valdomiro Silveira 35 CAPÍTULO II MOMENTOS DECISIVOS 21 OS PARCEIROS DO RIO BONITO Em 1945 como já comentado Antonio Candido conquistou a livredocência com a Introdução ao Método Crítico de Silvio Romero e tornouse doutor em Letras que era o seu objetivo Nessa época Candido já era professorassistente de Fernando de Azevedo desde 1942 na USP na disciplina Sociologia II função que exerceu até 1958 após a defesa dOs parceiros do Rio Bonito Estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida Os parceiros foi a sua tese de doutorado em Sociologia defendida em 1954 em livro o texto só apareceu dez anos depois portanto em 1964 O objetivo inicial de Candido era estudar a poesia popular como manifestada no Cururu um tipo de dança cantada do caipira paulista O trabalho acabou transformandose numa pesquisa sobre os modos de subsistência de uma pequena comunidade rural de Bofete SP antiga Rio Bonito Com relação à tese é importante observar de que maneira ela contribuiu para a crítica literária de Candido Sobre o assunto Luiz Carlos Jackson autor de uma dissertação de mestrado sobre a tese afirma Não pretendemos discutir se a crítica literária de Antonio Candido é sociológica para validar ou não sua preocupação com o meio social e a história Nosso problema é outro aparentemente a produção especificamente sociológica cujo núcleo é PRB Os parceiros do Rio Bonito não tem ligação estreita com a crítica A primeira hipótese deste trabalho afirma o contrário apesar da evidente distância temática Os parceiros e a Formação da Literatura Brasileira respondem de forma diferenciada à mesma preocupação apontando para uma unidade interna à diversidade de sua produção que a vinculam a problemas típicos de uma tradição específica do pensamento brasileiro A primeira hipótese está diretamente ligada à segunda Os parceiros do Rio Bonito não é apenas uma monografia antropológica ou um estudo de comunidade mas uma interpretação mais ampla de nossa formação social A afirmação pode parecer exagerada pois o livro descreve a vida de um grupo de parceiros na fazenda Bela Aliança situada no pequeno município de Bofete no interior de São Paulo É a 36 partir do parceiro de Bofete entretanto que Antonio Candido recupera a formação histórica da cultura caipira no Estado de São Paulo e com ela uma dimensão fundamental do passado do Brasil JACKSON 2002 p 14 A partir dos conhecimentos proporcionados pela pesquisa Antonio Candido passou a ter também ele uma dimensão fundamental do passado do Brasil além da dimensão presente da época o que certamente lhe ajudou a compreender melhor os textos literários que analisava e criticava especialmente os de temática rural O trabalho de campo para a pesquisa foi empreendido entre os anos de 1947 e 1954 É importante registrar desde já que Candido produzia ao mesmo tempo a Formação da Literatura Brasileira iniciada em 1946 e entregue ao editor em 1957 mas publicada apenas em 1959 neste capítulo estou iniciando a análise pelo texto que foi concluído antes e não pelo critério da data de publicação afinal as datas de conclusão desses textos são conhecidas diferente das de outros Importam aqui no entanto apenas os capítulos dedicados à análise da cultura dessa sociedade e do relacionamento entre as pessoas que a compunham Esses elementos acabariam de formas variadas sendo pressupostos ou objetos da crítica literária de Candido portanto são eles que mais nos interessam O trabalho trata ainda da economia da alimentação das relações de trabalho e comércio da natureza da região e das técnicas utilizadas na manipulação dos gêneros 211 O BAIRRO E O MUTIRÃO Bairro segundo informa Candido são os grupos rurais de vizinhança CANDIDO 2001 p 81 Esses bairros integram as famílias de moradores permanentes sitiantes e fazendeiros e transitórios cultivadores nômades agregados e posseiros por morarem próximos uns dos outros O que é bairro perguntei certa vez a um velho caipira cuja resposta pronta exprime numa frase o que se vem expondo aqui Bairro é uma naçãozinha Entendase a porção de terra a que os moradores têm consciência de pertencer formando uma certa unidade diferente das outras CANDIDO 2001 p 84 37 Nesse sentido a noção de identidade e de pertencimento a um local estava firmada entre os moradores permanentes o que Candido chama de sentimento de localidade Dentro desses bairros moravam famílias cuja convivência depende da proximidade física e da necessidade de cooperação CANDIDO 2001 p 84 Havia um sistema de solidariedade entre os moradores da fazenda Bela Aliança denominado mutirão que consistia num trabalho conjunto de vários habitantes para por exemplo a construção de casas para eles próprios Além disso As várias atividades da lavoura e da indústria doméstica constituem oportunidades de mutirão que soluciona o problema de mão deobra nos grupos de vizinhança por vezes entre fazendeiros suprimindo as limitações da atividade individual ou familiar E o aspecto festivo de que se reveste constitui um dos pontos importantes da vida cultural do caipira CANDIDO 2001 p 88 Numa região em que as atrações de lazer são nulas o convívio entre moradores desenvolvendo atividades pesadas pode acabar se tornando prazeroso Cada mutirão era seguido de uma confraternização oferecida pelo habitante que estava recebendo o auxílio Além disso o mutirão constituía um exercício de caridade irrecusável Um velho caipira me contou que no mutirão não há obrigação para com as pessoas e sim para com Deus por amor de quem serve o próximo por isso a ninguém é dado recusar auxílio pedido Um outro referindose ao tempo de dantes dizia que era o tempo da caridade justamente por essa disposição universal de auxiliar na lavoura a quem solicitasse Ambos todavia se referiam sempre a auxílio de moradores do mesmo bairro que era o limite da cooperação e dos deveres CANDIDO 2001 p 89 Candido relata ainda casos de cooperação não solicitada em que os vizinhos percebiam que um deles estava com seu serviço atrasado e promoviam o mutirão sem o pedido ou aviso prévio No sudoeste de Minas parte da área caipira paulista chamase a isto traição para significar o seu caráter de surpresa CANDIDO 2001 p 89 Outra surpresa também relatada e descrita era imposta aos moradores na luta contra incêndios em que se misturam os convocados e aqueles que acorreram de maneira espontânea 38 Mais uma das principais atividades de sociabilidade é o que o crítico chama de vida lúdicoreligiosa Tratase de um complexo de atividades que transcendem o âmbito familiar encontrando no bairro a sua unidade básica de manifestação Ao lado e freqüentemente em lugar dessa prática centralizada pela vila há a série considerável de práticas que têm por universo o grupo rural de vizinhanças Sob este aspecto poderíamos definir o bairro como o agrupamento mais ou menos denso de vizinhança cujos limites se definem pela participação dos moradores nos festejos religiosos locais Quer os mais amplos e organizados geralmente com apoio na capela consagrada a determinado santo quer os menos formais promovidos em caráter doméstico Vemos assim que o trabalho e a religião se associam para configurar o âmbito e o funcionamento do grupo de vizinhança cujas moradias não raro muito afastadas umas das outras constituem unidade na medida em que participam no sistema destas atividades CANDIDO 2001 p 9495 Ao perceber a religião como uma manifestação básica de vida social que envolve os diversos membros da comunidade estudada Candido estava reconhecendo empiricamente um elemento muito explorado pela literatura regionalista De Franklin Távora a Guimarães Rosa a religião é objeto constante de reflexão do homem sertanejo representado pelos personagens de seus autores O melhor exemplo disso está provavelmente em Grande sertão veredas Riobaldo ao narrar a história de sua vida como cangaceiro pensa constantemente na existência de Deus e especialmente do Diabo Mas além de concluir que o Diabo não existe Amável o senhor me ouviu minha idéia confirmou que o Diabo não existe Nonada O diabo não há É o que eu digo se for Existe é homem humano Travessia ROSA 2001 p 624 Riobaldo ressalta a importância do trabalho e da retidão que o estão acompanhando em direção à velhice Assim como para ele para os moradores dos bairros de Bofete não basta o trabalho é fundamental ter algo em que acreditar É fundamental ter fé em Deus e temer o Diabo como podemos conferir através de um dos casos narrados a Candido por Nhô Roque um dos habitantes da Fazenda Bela Aliança O milagre do diabo CANDIDO 2001 p 349 mesmo quando o diabo possa fazer até o bem como no caso citado Diante disso Candido faz uma definição do bairro O bairro é pois o agrupamento básico a unidade por excelência da sociabilidade caipira Aquém dele não há vida social estável e sim o fenômeno ocasional do morador isolado que tende a superar este estádio ou cair em anomia além dele há agrupamentos 39 complexos relações mais seguidas com o mundo exterior características duma sociabilidade mais rica Ele é a unidade em que se ordenam as relações básicas da vida caipira rudimentares como ele É um mínimo social CANDIDO 2001 p 98 Assim o bairro acabava se desenvolvendo forçado também pelo aumento de sua população e pela necessidades que surgiam o que acarretava uma flexibilidade social e estrutural Ao final do capítulo Candido reflete ainda sobre a influência da origem familiar na configuração dos bairros que determinava subdivisões territoriais e conseqüentemente o aparecimento de novos bairros a cultura caipira se desenvolveu e conservou na base dos agrupamentos rurais mais ou menos autárquicos onde aparecem em toda a sua rusticidade equilibrada aqueles mínimos de vida e sociabilidade cuja manifestação se vem pesquisando no presente trabalho CANDIDO 2001 p 102 Com esse fechamento Candido estabelece o nexo com o próximo capítulo que trata especificamente da análise da cultura caipira 212 O CAIPIRA E A SUA CULTURA No quinto capítulo dOs Parceiros Candido faz uma rápida análise entre o homem caipira e a sua representação literária Tendo conseguido elaborar formas de equilíbrio ecológico e social o caipira se apegou a elas como expressão de sua própria razão de ser enquanto tipo de cultura e sociabilidade Daí o atraso que feriu a atenção de SaintHilaire e criou tantos estereótipos fixados sinteticamente de maneira injusta brilhante e caricatural já no século XX no Jeca Tatu de Monteiro Lobato CANDIDO 2001 p 107 A relação que o crítico estabelece pode ser considerada equivocada O atraso não feriu SaintHilaire por causa das formas de equilíbrio ecológico e social mas pela sua experiência urbana que contrastava com os problemas enfrentados pelo homem do campo De qualquer forma aqui o crítico literário parece tomar o lugar do sociólogo ou pelo menos influenciar o seu pensamento Como o atraso das formas de equilíbrio 40 ecológico e social do caipira contribuiu para a criação de estereótipos fixados sinteticamente de maneira injusta brilhante e caricatural na literatura especificamente na de Monteiro Lobato Ora a cultura caipira é uma das mais peculiares do Brasil facilmente identificável reconhecível A impressão que se tem e que é a do crítico nesse trecho é que o caipira sempre esteve fechado para outras culturas ou influências externas como se comprovará num trecho reproduzido logo abaixo Ou no mínimo nunca conseguiu assimilálas muito bem o que a qualifica como uma cultura extremamente original Dessa forma seria difícil representála sem transformála numa caricatura Nem por isso contudo essa caricatura deixa de ser brilhante apesar de injusta Brilhante porque conseguiu captar a peculiaridade do caipira seus hábitos seu universo seus sentimentos mas injusta porque não deixou de lado o exótico e o pitoresco tão presentes na literatura regionalista brasileira até o início do século XX Toda caricatura é um exagero o lado humano do Jeca Tatu porém fez com que a obra de Monteiro Lobato se tornasse um sucesso editorial Este elemento humano é que não estava presente na literatura de Afonso Arinos ou antes de Franklin Távora e José de Alencar por motivos diversos que serão explorados a seguir Candido ainda reflete sobre essa dificuldade da cultura do caipira se flexionar e deixarse influenciar Vejamos a continuação do trecho acima Em verdade esse mecanismo de sobrevivência pelo apego às formas mínimas de ajustamento provocou certa anquilose de sua cultura Como já se tinha visto no seu antepassado índio verificouse nele certa incapacidade de adaptação rápida às formas mais produtivas e exaustivas de trabalho no latifúndio da cana e do café Esse caçador subnutrido senhor do seu destino graças à independência precária da miséria refugou o enquadramento do salário e do patrão como eles lhe foram apresentados em moldes traçados para o trabalho servil CANDIDO 2001 p 107 É possível relacionar esse comentário ao Jeca Tatu de Lobato uma caricatura de um caipira sem patrão subnutrido preguiçoso e miserável Adiante Candido nos ilumina o destino dessa cultura caipira A cultura do caipira como a do primitivo não foi feita para o progresso a sua mudança é o seu fim porque está baseada em tipos tão precários de ajustamento ecológico e social que a alteração destes provoca a derrocada das formas de cultura por eles condicionada Daí o fato de encontrarmos nela uma continuidade impressionante uma 41 sobrevivência das formas essenciais sob transformações de superfície que não atingem o cerne senão quando a árvore já foi derrubada e o caipira deixou de o ser CANDIDO 2001 p 107108 Não só a cultura do caipira estava condicionada a desaparecer diante da mudança como também o destino de qualquer cultura regional arraigada demais em tradições que acabariam sendo atropeladas pelo desenvolvimento urbano industrial e econômico Vide o conflito atual da cultura gauchesca que tenta manter hábitos do passado ao mesmo tempo em que é bombardeada por elementos estrangeiros7 Isso se reflete também na homogeneidade da cultura caipira Candido observa que dessa forma o isolamento cultural é favorecido assim como a estabilização das formas sociais ao contrário das diferenças que dão lugar a uma situação de vasos comunicantes onde o contacto torna possível a passagem dos elementos heterogêneos de um grupo a outro CANDIDO 2001 p 108 O progresso não teve piedade com a cultura caipira e o que Candido estava registrando em Os Parceiros era o fim desse mundo Ao ficar impedida a convivência entre os agrupamentos isolados por causa de suas estabilidades relativas como descreve o crítico as transformações sociais dos anos 60 e 70 acabariam promovendo uma renovação inevitável nos hábitos do caipira fazendo com que esses hábitos gerassem uma outra cultura Outra relação que pode ser estabelecida entre a crítica literária de Candido e a análise sociológica executada nOs Parceiros é com relação à violência do caipira No ensaio Jagunços Mineiros de Cláudio a Guimarães Rosa de 1966 o crítico analisa as relações entre a literatura regional de Minas Gerais e a exploração que esta faz da violência Mesmo tratando de tipos diferentes o caipira e o jagunço em um e outro texto podemos perceber alguns pontos comuns Por enquanto fiquemos com as observações de Candido sobre a violência do caipira 7 Os Centros de Tradições Gauchescas CTGs surgiram nos anos 40 para preservar essa cultura mas muitos deles acabaram tornandose atração turística E aí se assemelham aos elementos explorados por escritores regionalistas como Afonso Arinos Coelho Neto e Valdomiro Silveira que se preocupavam unicamente com o exótico e o pitoresco das regiões retratadas Já foi comentado anteriormente como demonstrou o próprio Antonio Candido num ensaio analisado no terceiro capítulo deste trabalho o escritor que solucionou esse problema foi justamente um gaúcho João Simões Lopes Neto Ele deu voz diretamente a um narrador em primeira pessoa o Blau Nunes de Contos Gauchescos que relata casos que presenciou ou participou ao longo da vida numa prosa recheada de gírias localistas mas respeitando a sintaxe da língua portuguesa Simões Lopes Neto demonstrou assim como era possível realizar uma literatura regional sem cair na superficialidade de um narrador culto em terceira pessoa que vê nos seus personagens uma criatura distante exótica e pitoresca Em outras palavras o que alguns CTGs estão fazendo é o mesmo que faziam os escritores citados acima ou seja estão tratando o seu objeto como algo completamente estranho e mais do que isso o transformando em mercadoria Uma cultura não tem como sobreviver desse modo 42 A ociosidade parece com efeito ter sido verdadeiro flagelo do século XVIII momento crítico da história paulista quando a sedentarização se impôs de modo geral requerendo a reorganização dos hábitos e a redefinição dos valores sociais mais prezados É nele que parecem haverse configurado os traços fundamentais da cultura caipira que se vinha esboçando desde o início da colonização Aí se as camadas superiores puderam afazendarse graças à canadeaçúcar e ao braço negro as demais contribuíram com uma quota apreciável de desocupados de aventureiros deixados sem enquadramento pela desbandeirização se for permitido o termo e que contribuíram para a massa de agregados posseiros desbravadores que se estabilizariam em grande parte no nível de sitiante mas que formariam também os valentões autônomos ou a soldo CANDIDO 2001 p 111 O crítico demonstra assim como se arregimentou a ociosidade do caipira que acabou dando espaço à violência e à bestialidade além da vadiagem Mais do que isso a análise é um registro a respeito do desnível social paulista que se reflete até os dias de hoje Com a evolução e o crescimento das cidades paulistas o caipira também foi deixando o interior para integrarse à cidade grande ou a cidade acabou incorporando o caipira e nessa transformação também estavam os valentões citados por Candido É claro que este movimento social ocorreu em vários estados brasileiros como exemplo basta lembrar a Trilogia do Gaúcho a pé de Cyro Martins De qualquer modo ficaram no caipira não apenas certo pendor para a violência como marcas nítidas de inadaptação ao esforço intenso e contínuo CANDIDO 2001 p 111 Essa dificuldade para o trabalho não deve ser considerada vadiagem segundo Candido e sim desnecessidade de trabalhar Resumindo podemos dizer que o desamor ao trabalho estava ligado à desnecessidade de trabalhar condicionada pela falta de estímulos prementes a técnica sumária e em muitos casos a espoliação eventual da terra obtida por posse ou concessão Em conseqüência resultava larga margem de lazer que vista de certo ângulo funcionava como fator positivo de equilíbrio biossocial O lazer era parte integrante da cultura caipira condição sem a qual não se caracterizava não devendo portanto se julgado no terreno ético isto é ser condenado ou desculpado segundo é costume Ele se encontrava aliás por assim dizer racionalizado graças à observância dos dias de guarda os dias desastrosos nos quais se acredita que o trabalho pode causar prejuízo grave devido ao desrespeito pela norma religiosa CANDIDO 2001 p 112113 43 O atraso das técnicas de trabalho e a falta de estímulos levavam o caipira a não sentir o trabalho como uma necessidade básica E aí Candido apresenta o contraponto ao valentão comentado acima um caipira desocupado mas nem por isso vadio que tem nas atividades de lazer o ponto alto de seu esforço como analisa Nardy Filho em trecho reproduzido por Candido Se para a maioria a semana conta seis dias úteis para o nosso jeca conta apenas quatro No sábado ele não vai à roça fica em casa preparando os seus aviamentos de caça e pesca ou em preparativos para ir no domingo à vila na segunda ele descansa da canseira do domingo E acrescenta como conhecedor prático do assunto Não quero dizer com isto que seja um vadio Não em absoluto simplesmente não é ambicioso nem previdente Desambição e imprevidência devem ser interpretadas como a maneira corrente de designar a desnecessidade de trabalho no universo relativamente fechado e homogêneo de uma cultura rústica em território vasto CANDIDO 2001 p 1148 No trecho acima Candido identifica os motivos do fim da cultura caipira e por que não dizer o fim do mundo caipira e do próprio caipira avesso ao trabalho as atitudes de desambição e imprevidência não combinam com os tempos modernos A exigência de organização levou os caipiras a se defrontar com uma situação com a qual não conseguiam lidar analisada pelo autor na conclusão de Os Parceiros 213 O CAIPIRA EM FACE DA CIVILIZAÇÃO URBANA A conclusão de Os Parceiros do Rio Bonito trata da incorporação progressiva à esfera da cultura urbana por parte do caipira A marcha deste processo culminou na ação já anteriormente exercida por outros fatores como o aumento da densidade demográfica a preponderância da vida econômica e social das fazendas a diminuição das terras disponíveis De maneira que hoje quando estudamos a vida caipira não podemos mais reportarnos ao seu universo por assim dizer fechado mas à sua posição no conjunto da vida do estado e do país CANDIDO 2001 p 271 8 As citações entre aspas são de F Nardy Filho do texto O nosso Jeca e o mês de maio publicado no jornal O Estado de S Paulo em 5 de novembro de 1953 44 Ao perceber que o caipira estava incorporado ao conjunto da vida do estado e do país Candido observou que a vida do caipira começava a ser pautada pelos níveis normas e padrões definidos pela vida urbana Colocado em face desta situação o caipira reage de duas maneiras principais rejeita em bloco as suas condições de vida e emigra proletarizandose ou procura permanecer na lavoura ajustandose como possível Vimos que tal ajuste é mais satisfatório no sitiante médio precário no parceiro mais ainda no colono e no camarada podendo dar lugar à decadência e à plena miséria Em todos eles porém vimos que pode darse 1 aceitação total 2 rejeição total ou 3 aceitação parcial dos traços introduzidos pela nova situação sendo a última hipótese mais comum e normal nos que permanecem no campo Entre os que emigram o ajustamento à situação urbana dadas certas condições econômicas mínimas é quase sempre mais fácil do que poderia parecer e se deve ao fato de mesmo no ritmo atual de incorporação rápida o afastamento cultural entre os agrupamentos rurais e os centros urbanos ser menos abrupto do que supomos Como assinalam os estudiosos para o caso da música da poesia e dos contos muito do que reputamos específico das culturas rústicas é na verdade fruto duma lenta incorporação de padrões eruditos Processo que se poderia com justeza chamar de degradação cultural se fosse possível dar à expressão o sentido etimológico despindoa de qualquer significado pejorativo CANDIDO 2001 p 272 Ao comparar sua vida à vida urbana o caipira começava a assimilar os traços da civilização concebida pela cidade Fazendo isso o que na realidade estava acontecendo não era apenas um processo de degradação cultural mas sim de desligamento total da sua cultura original A incorporação da cultura urbana à vida do caipira levouo a esquecer ou ignorar por completo suas raízes embora a cultura caipira seja uma cultura rústica portanto seria difícil o acesso a uma cultura como a urbana Graças a tais conexões compreendese que o caipira consiga freqüentemente no espaço de alguns anos se não assimilarse ao menos acomodarse satisfatoriamente nos padrões propostos pela civilização urbana E aqui podemos indicar que o processo de urbanização civilizador se o encararmos do ponto de vista da cidade se apresenta ao homem rústico propondo ou impondo certos traços de cultura material e nãomaterial Impõe por exemplo novo ritmo de trabalho novas relações ecológicas certos bens manufaturados propõe a racionalização do orçamento o abandono das crenças tradicionais a individualização do trabalho a passagem à vida urbana Formulando novamente o que ficou dito podemos verificar no caipira paulista três reações adaptativas em face de tal processo 1 aceitação dos traços impostos e propostos 2 45 aceitação apenas dos traços impostos 3 rejeição de ambos CANDIDO 2001 p 272273 Aceitando os traços impostos ou propostos ou ambos o caipira acabava por iniciar o processo que culminaria no fim de sua cultura Como Candido observou numa passagem transcrita acima a mudança da vida cultural do caipira era o seu fim Desse modo o tipo que mais interessa ao estudioso é o que opta pela segunda reação O primeiro e o terceiro casos correspondem em tese ao indivíduo ou à família que enfrentam como tais a situação nova seja porque se desligaram do grupo seja porque este se desintegrou ou está em vias de desintegração O segundo corresponde à situação enfrentada em grupo e se cabe a expressão pelo grupo CANDIDO 2001 p 274 O segundo grupo é o que tentava preservar a sua identidade em meio às transformações que fatalmente teria de sofrer O primeiro caso parece ser daquele caipira que não se importa com a preservação de sua cultura ou que sente que a cultura urbana é mais adequada O terceiro corresponde a um caipira que não apenas não quer se desfazer de seus hábitos mas que se sente mais do que ameaçado destruído pela renovação civilizatória Assim para o segundo grupo A conservação de traços aparece pois como fator de defesa grupal e cultural representando o aspecto de permanência A incorporação dos novos traços representa a mudança A situação de crise no agrupamento pesquisado deriva do fato de não se observar nele estabilização imediata dos dois processos verificandose uma perda de traços relativamente maior do que a aquisição compensatória de outros CANDIDO 2001 p 274 Ou seja o caipira começava a enfrentar um dilema entre o velho e o novo ao mesmo tempo em que a tradição não comporta a sua subsistência a renovação ou não agrada ou não é acessível Outro elemento que desagradava o caipira é a relação social que se estabelecia a partir da mudança iniciada pelo sistema de parceira segundo informa Candido a parceria representa para o caipira uma etapa de transição marcando um degrau no processo de mudança da sua cultura e da sua posição social CANDIDO 2001 p 275 A sociabilidade se minimiza ao âmbito familiar 46 Ora por todo este estudo ficou sugerido que a redução da sociabilidade à esfera familiar ligase na vida tradicional do caipira a situações de isolamento de perda da sociabilidade de bairro significando não raro estado préanômico ou paraanômico A situação atual representa portanto não apenas a desorganização mais ou menos acentuada dos agrupamentos vicinais mas ainda uma regressão a tipos de sociabilidade incompatíveis com a vida cultural plena Esta só será possível se o caipira e sua família deixando de ampararse ecologicamente no meio imediato e socialmente nas relações de vizinhança puderem integrarse compensadoramente num sistema mais largo de relações no plano da vida municipal CANDIDO 2001 p 277 Esse sistema de relações mais largo significava relações mais superficiais algo completamente distante da vida tradicional do caipira que vivia nos bairros Não tendo mais o apoio dos vizinhos o caipira também é afetado economicamente Ora o caipira não vive mais como antes em equilíbrio precário segundo os recursos do meio imediato e de uma sociabilidade de grupos segregados vive em franco desequilíbrio econômico em face dos recursos que a técnica moderna possibilita Antes o atraso técnico e a economia de subsistência condicionavam em São Paulo uma sociedade global muito mais homogênea não havendo discrepâncias essenciais de cultura entre o campo e a cidade O desenvolvimento da economia baseada na exportação dos gêneros tropicais acentuou a diferenciação dos níveis econômicos que foram aos poucos gerando fortes distinções de classe e cultura Quando esse processo avultou o caipira ficou humanamente separado do homem da cidade vivendo cada um o seu tipo de vida CANDIDO 2001 p 279 Segundo Candido esse desnível econômico do caipira acabou por acentuarse na década de 1950 quando a industrialização a diferenciação agrícola a extensão do crédito a abertura do mercado interno ocasionaram uma nova e mais profunda revolução na estrutura social de São Paulo Aliado a isso tudo a modernização dos meios de comunicação o aumento demográfico e a generalização das necessidades complementares fez com que se aproximassem os homens do campo e da cidade sitiantes e fazendeiros assalariados agrícolas e operários CANDIDO 2001 p 279 280 num diálogo em que a voz menos ouvida era a do caipira De fato a situação atual é a do caipira entregue aos seus miseráveis recursos adaptandose penosamente a uma situação nova e vertiginosa de mudança por meio de técnicas materiais e sociais que tinham sido elaboradas para uma situação geral desaparecida Encarada deste ponto de vista dentro do processo de urbanização e industrialização a 47 regressão adaptativa possibilitada pela latência cultural exprime uma situação das mais revoltante iniqüidade CANDIDO 2001 p 280 Com essa reflexão Candido aponta a seguir a necessidade de uma preocupação maior por parte do governo e dos políticos para com os caipiras Para que isso ocorresse efetivamente segundo o estudioso era necessário encontrar soluções que limpem o horizonte carregado do homem rústico Se este livro conseguiu traçar uma imagem coerente da sua situação atual pôdese ver que os elementos de que dispõe a sua cultura tradicional são insuficientes para garantirlhe a integração satisfatória à nova ordem de coisas e que ela é algo a ser superado se quisermos que ele se incorpore em boas condições à vida moderna CANDIDO 2001 p 280281 A verdade é que a incorporação do caipira à realidade urbana não era uma possibilidade da forma como estava sendo constituída E o próprio Candido reconhece que a melhor alternativa seria promover a reforma agrária Concluise de tudo que passando do plano propriamente sociológico para o da política e da administração que o prolongam pelo vínculo da sociologia aplicada a situação estudada neste livro leva a cogitar no problema da reforma agrária Sem planejamento racional a urbanização do campo se processará cada vez mais como um vasto traumatismo cultural e social em que a fome e a anomia continuarão a rondar o seu velho conhecido CANDIDO 2001 p 281 A hipótese de Candido acabou se confirmando devido em parte à falta de planejamento Atualmente um dos problemas mais graves do Brasil é o da reforma agrária que vem sendo ignorada pelos governantes e que esbarra numa burocracia interminável O problema se agravou nos últimos anos com a radicalização das invasões e manifestações promovidas pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra o MST e por outros grupos ligados a ele como o MLST Movimento de Libertação dos Sem Terra9 Candido reflete sobre isso com relação ao caipira 9 A verdade é que a situação tem entraves mais complexos do que a população imagina ou a mídia divulga Se me é permitido um depoimento pessoal meu pai é o Gerente do Programa Nacional de Agricultura Familiar PRONAF há alguns anos Ele precisa lidar freqüentemente com casos de trabalhadores sem terra que foram assentados mas que acabaram vendendo ou abandonando sua propriedade e voltaram a participar do Movimento Como se vê não basta mais apenas promover a reforma agrária 48 Não se trata evidentemente de permitir ao caipira recriar as condições de relativo equilíbrio da sua vida pregressa isto é ajudálo a voltar ao passado Tratase de não favorecer a destruição irremediável das suas instituições básicas sem lhe dar a possibilidade de ajustarse a outras O caipira é condenado à urbanização e todo esforço de uma política rural baseada cientificamente isto é atenta aos estudos e pesquisas da Geografia da Economia Rural da Agronomia e da Sociologia deve ser justamente no sentido de urbanizálo o que notese bem é diferente de trazêlo para a cidade CANDIDO 2001 p 282 Candido aponta que a incorporação do caipira à vida urbana depende de fatores mais profundos do que a simples alocação do indivíduo na cidade Apesar dos governos estarem trabalhando com uma política rural baseada cientificamente como propõe o estudioso ainda falta disposição dos políticos para que essa transformação seja efetivamente realizada A seguir Candido observa que para isso ocorrer é necessário apresentar ao caipira também aqueles bens incompressíveis de que fala JL Lebret que não são apenas os que se reputam essenciais à estrita sobrevivência do indivíduo mas todos aqueles que permitem ao homem tornarse verdadeiramente humano CANDIDO 2001 p 282 por exemplo o acesso à cultura à recreação ao prazer dos supérfluos à participação na beleza como observa o estudioso Ora encarando o passado da sociedade caipira vemos que os bens para ela incompressíveis permitiam definir tipos humanos mais ou menos plenos dentro dos seus padrões e das suas possibilidades de vida econômica social religiosa artística No entanto como hoje o homem rústico se incorpora cada vez mais à esfera das cidades à medida que isto se dá aqueles usos práticas costumes se tornam em boa parte sobrevivências a que os grupos se apegam como defesa Daí ser preciso facultarlhes a opção entre eles e os que dentro das condições atuais consideramos compatíveis com a realização da personalidade ainda que em níveis modestos CANDIDO 2001 p 283 O que Candido propõe aqui é uma fórmula de fazer a identidade caipira sobreviver diante de sua incorporação ao mundo urbano Ao analisar a situação do caipira Candido estava analisando a situação do homem do campo em geral Ao propor a reforma agrária Candido vislumbrava um problema social que persiste mais de 50 anos depois de sua proposição Mais do que isso além de registrar o fim da cultura e do mundo caipiras diante da situação rural contemporânea o estudo de Candido continua atual e revelador 49 22 A FORMAÇÃO DA LITERATURA BRASILEIRA O livro Formação da Literatura Brasileira Momentos Decisivos foi publicado em 195910 O trabalho idealizado inicialmente foi completamente modificado e Candido acabou apresentando uma análise do Arcadismo e do Romantismo basicamente A idéia central de Candido era demonstrar como a literatura brasileira evoluiu até a chegada de um autor maduro Machado de Assis que percebia a fragilidade do exotismo e do provincianismo explorados pelos autores nacionais mesmo que estes não tivessem plena consciência disso A obra machadiana não é analisada pelo crítico Machado é o ponto de chegada do processo formativo é com ele que a literatura brasileira atinge um grau de maturidade e isso só foi possível porque Machado segundo o crítico tinha consciência da literatura de seus antecessores e sabia que estava contribuindo para a formação de uma literatura secundária do ponto de vista internacional Assim a Formação pode ser vinculada a outras obras que pensaram a constituição do Brasil sob outros aspectos como Casa Grande Senzala 1933 de Gilberto Freyre Raízes do Brasil 1936 de Sergio Buarque de Holanda Formação do Brasil Contemporâneo 1942 de Caio Prado Junior e Formação Econômica do Brasil 1959 de Celso Furtado Segundo Roberto Schwarz o estudo de Candido constitui no entanto uma análise de uma formação que já se havia completado SCHWARZ 1999 p 18 Questionado por Luiz Carlos Jackson a respeito da Formação também apresentar um processo formativo incompleto da literatura brasileira já que a formação literária é parte de um processo mais amplo a formação de nosso pensamento e de nossa consciência Candido responde Pergunta interessante Esse negócio de formação é sempre relativo Conforme o ponto de vista estamos formados há muito tempo ou ainda estamos nos formando E não há uma interação dinâmica inclusive porque no domínio da chamada cultura espiritual as ligações com a produção internacional são vivas e constantes Assim por influência direta do arcadismo italiano e português os poetas mineiros alcançaram um grau de refinamento que não corresponde senão em 10 Sua redação foi realizada entre 1945 e 1951 retomada em 1955 e revisada entre 1956 e 1957 quando foi enfim entregue ao editor que havia solicitado uma história da literatura brasileira desde suas origens 50 pequena parte à sociedade atrasada onde viviam Em FLB Formação da Literatura Brasileira eu quis sugerir que no processo de constituição da nossa literatura houve um momento em que se formou a tradição fazendo com que a produção passasse da elaboração de obras isoladas dependentes diretamente dos modelos metropolitanos para obras articuladas num conjunto coerente a que dei o nome de sistema antes do estruturalismo pôr em voga esta palavra num sentido diverso O sistema uma vez constituído configura uma literatura amadurecida mesmo que a sociedade não esteja no mesmo grau de amadurecimento JACKSON 2002 p 174 Também podemos pensar dessa forma no processo formativo da literatura regionalista brasileira Num ensaio analisado no terceiro capítulo deste trabalho Literatura e Subdesenvolvimento Candido afirma que os melhores produtos da literatura brasileira sempre foram urbanos Mas houve uma evolução entre as narrativas regionais de José de Alencar a Guimarães Rosa passando por Afonso Arinos e Graciliano Ramos houve portanto uma formação da literatura regionalista brasileira como será melhor discutido na conclusão É o trabalho desenvolvido pelos autores do Arcadismo e do Romantismo porém que constitui a parte fundamental desse processo de amadurecimento literário Segundo a tese de Candido é por volta desses períodos que se forma um sistema literário no Brasil constituído da tríade Autor Obra Público mais Tradição Antes disso segundo o crítico ocorriam manifestações literárias que ainda não tinham por objetivo a consolidação de uma literatura nacional Essas informações retiradas dos Prefácios da Formação podem ser complementadas com a seguinte reflexão do autor contida no Prefácio da 2ª edição há várias maneiras de encarar e de estudar a literatura Suponhamos que para se configurar plenamente como sistema articulado ela dependa da existência do triângulo autorobrapúblico em interação dinâmica e de uma certa continuidade da tradição Sendo assim a literatura brasileira não nasce é claro mas se configura no decorrer do século XVIII encorpando o processo formativo que vinha de antes e continuou depois Foi este o pressuposto geral do livro no que toca ao problema da divisão de períodos Procurei verificálo através das obras dos escritores postas em absoluto primeiro plano desde o meado daquele século até o momento em que a nossa literatura aparece integrada articulada com a sociedade pensando e fazendo sentir a sua presença isto é no último quartel do século XIX Neste sentido tentei sugerir o segundo pressuposto atinente aos períodos a saber que há uma solidariedade estreita entre os dois que estudei Arcadismo e Romantismo pois se a atitude estética os separa 51 radicalmente a vocação histórica os aproxima constituindo ambos um largo movimento depois do qual se pode falar em literatura plenamente constituída sempre dentro da hipótese do sistema acima mencionada CANDIDO 1997 v1 p 16 Candido assumia dessa forma o uso de um método que ele mesmo descreve era histórico e estético ao mesmo tempo Mas o foco de Candido não agradou a todos estudiosos de literatura e vários viram nas idéias defendidas pelo autor uma rejeição ao Barroco Na entrevista a Jackson o crítico reflete sobre o assunto em FLB eu destaco o Arcadismo e o Romantismo que relacionei de maneira a demonstrar o meu ponto de vista Aliás o livro deveria ter sido intitulado Arcádia e romantismo momentos decisivos na formação do sistema literário brasileiro Assim evitaria muita confusão que até hoje ocorre havendo quem diga que eu fiz uma história incompleta da literatura brasileira ou desqualifiquei o barroco etc Respondi a essas leituras erradas baseadas na força do hábito no prefácio da 2ª edição e nunca mais voltei ao assunto JACKSON 2002 p 175 Realmente se o crítico tivesse alterado o título da Formação não daria margem a interpretações equivocadas de sua pesquisa Hoje quem ainda interpreta a Formação dessa maneira está desenvolvendo um ponto de vista errado porque acaba repetindo o mesmo erro que já foi rebatido pelo autor A preocupação de Candido não era estudar as origens da literatura brasileira e sim demonstrar como a literatura se configurou no Brasil Entre o Barroco e o Arcadismo há um espaço de tempo que impede uma relação literária de continuidade São períodos completamente diferentes inclusive no sentimento que animava seus autores Os árcades ao contrário dos barrocos já tinham a noção de que estavam contribuindo para a formação de uma literatura nacional e isso é decisivo para o estudo de Candido Para a pesquisa aqui desenvolvida no entanto o Arcadismo não importa muito pois a maior parte do trabalho de Candido sobre o regionalismo na Formação se concentra nos autores do Romantismo De qualquer forma é importante ter em mente algumas reflexões do autor 221 A POESIA PASTORAL E A CULTURA URBANA 52 Antes de entrar nas análises dos autores árcades na Formação Candido faz alguns comentários sobre as percepções que estavam presentes para esses autores Vejamos a afirmação contida no primeiro capítulo do texto A poesia pastoral como tema talvez esteja vinculada ao desenvolvimento da cultura urbana que opondo as linhas artificiais da cidade à paisagem natural transforma o campo num bem perdido que encarna facilmente os sentimentos de frustração Os desajustamentos da convivência social se explicam pela perda da vida anterior e o campo surge como cenário de uma perdida euforia A sua evocação equilibra idealmente a angústia de viver associada à vida presente dando acesso aos mitos retrospectivos da idade de ouro Em pleno prestígio da existência citadina os homens sonham com ele à maneira de uma felicidade passada forjando a convenção da naturalidade como forma ideal de relação humana CANDIDO 1997 v1 p 58 O sentimento árcade com relação ao campo é exatamente oposto ao dos românticos Enquanto estes estavam preocupados em desvendar os seus mistérios apresentar seus elementos exóticos e pitorescos aqueles viamno como o locus ideal para o desenvolvimento de emoções que não podiam ser exacerbadas na cidade por não combinarem com ela Nesse sentido é interessante o registro de Candido com relação ao assunto pois demonstra a busca dos árcades pelo lugar perfeito e aprazível enquanto para os românticos este local era o próprio lugar em que viviam a cidade É possível imaginar algumas razões para essa mudança os árcades viviam basicamente em Minas Gerais estado que está no interior do país embora próximo ao litoral era uma época em que essa região ainda carecia de bons recursos para a satisfação cultural desses intelectuais justamente por estarem localizados longe do centro do país Já os românticos viviam em geral na capital federal Rio de Janeiro uma cidade que sempre tentou copiar Paris e que portanto recebia constantemente essas novidades européias em todos os setores artísticos Era mais fácil ser culto no Rio do século XIX do que em Minas no século XVIII até porque o Rio era a sede do Império e assim precisava estar informado sobre as notícias do velho mundo Com essa configuração é compreensível que os árcades vissem no campo o melhor local para se viver enquanto os românticos o percebiam como um local exótico e distante já que a vida na cidade havia se desenvolvido radicalmente e o campo ainda representava um espaço atrasado a ser desvelado 53 222 OS QUATRO GRANDES TEMAS DA FORMAÇÃO E O ROMANTISMO Segundo Antonio Candido Quatro grandes temas presidem à formação da literatura brasileira como sistema entre 1750 e 1880 em correlação íntima com a elaboração de uma consciência nacional o conhecimento da realidade local a valorização das populações aborígines o desejo de contribuir para o progresso do país a incorporação aos padrões europeus CANDIDO 1997 v1 p 6667 Esses quatro grandes temas acabaram sendo explorados tanto pelos árcades quanto pelos românticos em menor grau por alguns representantes em maior por outros O que importa aqui é a maneira como o autor sintetizou o sentimento dos escritores com relação à literatura brasileira O tema do conhecimento da realidade local foi explorado em ambos os períodos nos poemas satíricos do Arcadismo e nos romances regionalistas do Romantismo por exemplo a valorização das populações aborígines foi tema especial dos românticos em prosa e verso mas também já havia aparecido em Basílio da Gama a incorporação aos padrões europeus e o desejo de contribuir para o progresso do país foram temas também ambicionados por ambos Como esses quatro temas mantêm estreita relação entre si e com a elaboração de uma consciência nacional apontada por Candido eles acabarão presentes em praticamente todas as reflexões do crítico sobre o assunto mesmo que de maneira implícita Foi no período romântico porém que esses temas parecem ter ganhado mais força Candido identifica no Romantismo um dos aspectos do movimento da independência política do Brasil Com esse movimento realmente a Independência ao mesmo tempo em que ganha força também oferece suporte para o desenvolvimento de uma cultura nacional autêntica A organização de um projeto estético com base inicialmente nas revistas literárias surgidas logo após 1822 possibilitou ao Romantismo constituir uma literatura original embora apoiada em modelos estrangeiros Segundo o crítico 54 Entre a Independência e a Maioridade a referida elaboração da consciência nacional no setor literário se deu ao longo de certas linhas definidas pouco a pouco e afinal fundidas Imaginemos que os coevos tinham delas consciência clara e que as formulavam do seguinte modo 1 o Brasil tem uma tradição literária própria 2 há nela elementos próprios que é preciso desenvolver 3 a conseqüência será a formação de uma literatura nova baseada em formas e sentimentos renovados adequados a um país jovem que se afirmara na libertação política CANDIDO 1997 v 1 p 281 O sentimento de renovação com base nessas três características alinhadas pelo autor tornou o Romantismo brasileiro extremamente original se pensarmos nos períodos antecessores e na exploração de seus elementos temáticos É visto que a forma literária nesse período ainda não tinha recebido um impulso renovador como pretendiam os intelectuais algo que só seria atingido com Machado de Assis no final do século XIX segundo o raciocínio de Candido mas com o tempo ela ganhou elementos genuinamente nacionais para o bem e para o mal afinal uma literatura só se constrói a partir do que já foi feito com escritores cientes de que estão participando de um processo formativo como pensado pelo crítico Dessa forma é viável pensarmos na formação da literatura regionalista brasileira O melhor gênero para explorar os aspectos regionais não poderia deixar de ser o romance Segundo o crítico No Brasil o romance romântico nas suas produções mais características em Macedo Alencar Bernardo Guimarães Franklin Távora Taunay elaborou a realidade graças ao ponto de vista à posição intelectual e afetiva que norteou todo o nosso Romantismo a saber o nacionalismo literário Nacionalismo na literatura brasileira consistiu basicamente como vimos em escrever sobre coisas locais no romance a conseqüência imediata e salutar foi a descrição de lugares cenas fatos costumes do Brasil É o vínculo que une as Memórias de um Sargento de Milícias ao Guarani e a Inocência e significa por vezes menos o impulso espontâneo de descrever a nossa realidade do que a intenção programática a resolução patriótica de fazêlo Esta tendência naturalizou a literatura portuguesa no Brasil dandolhe um lastro ponderável de coisas brasileiras E como além de recurso estético foi um projeto nacionalista fez do romance verdadeira forma de pesquisa e descoberta do país CANDIDO 1997 v 2 p 99 55 O surgimento do romance no Brasil está portanto ligado ao nacionalismo literário que por sua vez é fruto do romance romântico e condiciona a produção a focalizar as coisas locais Nada mais local do que o índio e as regiões mais afastadas do país exóticas até para quem nele habita como o sertão e o pampa Por isso Candido frisa A nossa cultura intelectual encontrou nisto um elemento dinamizador de primeira ordem que contribuiu para fixar uma consciência mais viva da literatura como estilização de determinadas condições locais O ideal românticonacionalista de criar a expressão nova de um país novo encontra no romance a linguagem mais eficiente Basta relancear em nossa literatura para sentir a importância deste mais ainda como instrumento de interpretação social do que como realização artística de alto nível Este alto nível poucas vezes atingido aquela interpretação levada a efeito com vigor e eficiência equivalentes aos dos estudos históricos e sociais CANDIDO 1997 v 2 p 99100 A literatura brasileira com o romance passou por uma renovação que a transformou no principal veículo de informação a respeito do país É compreensível portanto a relação que o crítico faz entre os estudos históricos e sociais com a literatura já que esta era encarada como um instrumento de interpretação social e demorou para também conquistar a realização artística de alto nível Isso se deu porque as regiões urbanas ainda eram poucas distantes umas das outras e as suas populações ainda parcas como observa o próprio crítico quando diz que numa sociedade pouco urbanizada e portanto ainda caracterizada por uma rede pouco vária de relações sociais o romance não poderia jogarse desde logo ao estudo das complicações psicológicas CANDIDO 1997 v 2 p 100 A profundidade psicológica só seria alcançada depois do romance tornarse um gênero maduro entre os brasileiros leitores e escritores o que só ocorreu na chamada segunda fase de Machado de Assis e que só ocorreria no romance regionalista na década de 1930 O crítico ainda complementa enredo e tipos eis o que terá a princípio e até a maturidade de Machado de Assis não passará realmente muito além destes elementos básicos a que se vai juntando a consciência cada vez mais apurada do quadro geográfico e social CANDIDO 1997 v 2 p 100 O desenvolvimento social e urbano acabou determinando o desenvolvimento do romance brasileiro e provavelmente não poderia ser diferente Num parágrafo subseqüente Candido argumenta Em país caracterizado por zonas tão separadas de formação histórica diversa tal romance valendo por uma tomada de consciência no 56 plano literário do espaço geográfico e social é ao mesmo tempo documento eloqüente da rarefação na densidade espiritual CANDIDO 1997 v 2 p 101 A seguir Candido comenta que Quanto à matéria o romance brasileiro nasceu regionalista e de costumes ou melhor pendeu desde cedo para a descrição dos tipos humanos e formas de vida social nas cidades e nos campos O romance histórico se enquadrou aqui nesta mesma orientação o romance indianista constitui desenvolvimento à parte do ponto de vista da evolução do gênero e corresponde não só à imitação de Chateaubriand e Cooper como a certas necessidades poéticas e históricas de estabelecer um passado heróico e lendário para a nossa civilização a que os românticos desejavam numa utopia retrospectiva dar tanto quanto possível traços autóctones CANDIDO 1997 v 2 p 101 Na primeira oração do trecho acima há algo de taxativo que é suavizado com sua seqüência De qualquer forma a pesquisa e a descrição dos tipos humanos e das formas de vida social na cidade e no campo realmente foram pontos fortes do nascente romance brasileiro Mas o crítico está englobando dentro da classificação regionalista todas aquelas tramas que se passam no campo neste caso O que vem complementado no parágrafo seguinte cuja oração inicial parece não ter sido revisada Assim pois três graus na matéria romanesca determinados pelo espaço em que se desenvolve a narrativa cidade campo selva ou por outra vida urbana vida rural vida primitiva E é esse caráter de exploração e levantamento que dá à ficção romântica importância capital como tomada de consciência da realidade brasileira no plano da arte verdadeira consecução do ideal de nacionalismo literário proclamado pela Niterói CANDIDO 1997 v 2 p 101 A síntese é extremamente interessante pois indica que para o crítico é o espaço em que se desenvolve a narrativa que determina os graus do romance cidade campo e selva ou vida urbana vida rural e vida primitiva Não importa a linguagem a forma ou o arranjo narrativo e sim o meio retratado Neste primeiro momento do romance brasileiro portanto o regionalismo referese simplesmente ao campo à vida rural à descrição dos costumes desse espaço E ele foi um dos três elementos fundamentais para a constituição do nacionalismo literário e do conhecimento da realidade do país E isso se comprova quando Candido diz que 57 No Brasil riqueza e variedade foram buscadas pelo deslocamento da imaginação no espaço procurando uma espécie de exotismo que estimula a observação do escritor e a curiosidade do leitor Exotismo do Ceará para o homem do sul exotismo da própria Itaboraí para os leitores cariocas de Macedo CANDIDO 1997 v 2 p 101 Essa primeira fase do romance brasileiro é também a primeira fase do romance regionalista Como o romance ainda não vislumbrava a análise psicológica ao regionalismo coube a descrição do local retratado seus hábitos seus costumes através de personagens que pretensamente representavam a comunidade focalizada E como os românticos se achavam possuídos quase todos de um senso de missão um intuito de exprimir a realidade específica da sociedade brasileira é relativamente lógica a tentativa de tratar de regiões afastadas para dar conta dessa expressão da realidade mesmo que o romancista não conhecesse a região o desenvolvimento do romance brasileiro de Macedo a Jorge Amado mostra quanto a nossa literatura tem sido consciente da sua aplicação social e responsabilidade na construção de uma cultura CANDIDO 1997 v 2 p 102 Com isso o crítico percebe que há um problema literário Dentre os temas brasileiros impostos pelo nacionalismo tenderiam a ser mais reputados os aspectos de sabor exótico para o homem da cidade a cujo ângulo de visão se ajustava o romancista primitivos habitantes em estado de isolamento ou na fase dos contactos com o branco habitantes rústicos mais ou menos isolados da influência européia direta Daí as duas direções indianismo regionalismo O problema referido é o da expressão literária adequada a cada uma delas CANDIDO 1997 v 2 p 102103 Como um dos pressupostos do nacionalismo literário brasileiro era desvelar o país para o país esses aspectos de sabor exótico para o homem da cidade ganharam ênfase graças ao regionalismo enquanto ao indianismo segundo Candido coube a criação de um mito de um herói nacional inspirado no modelo de Chateaubriand o índio Então o crítico vai explorar os principais elementos do regionalismo inicial a saber a língua e os costumes da região retratada No caso do regionalismo porém a língua e os costumes descritos eram próximos dos da cidade apresentando difícil problema de estilização de respeito a uma realidade que não se podia fantasiar tão livremente quanto a do índio e que não tendo nenhum Chateaubriand 58 para modelo dependia do esforço criador dos escritores daqui A obtenção de verossimilhança era neste caso mais difícil pois o original estava ao alcance do leitor Daí a ambigüidade que desde o início marcou o nosso regionalismo e que levando o escritor a oscilar entre a fantasia e a fidelidade ao observado acabou paradoxalmente por tornar artificial o gênero baseado na realidade mais geral e de certo modo mais própria do país CANDIDO 1997 v 2 p 103 Candido já vislumbrava algo que conseguiria explicar com mais clareza na década de 70 a artificialidade do regionalismo inicial não estava apenas na reprodução do linguajar da região ou na representação de seus hábitos mas na dificuldade de perceber que o homem sertanejo também era humano e não mais um aspecto regional pitoresco e exótico A sensibilidade do regional que marcou escritores como Simões Lopes Neto Graciliano Ramos Jorge Amado e Guimarães Rosa foi crucial para a obtenção dessa verossimilhança Dito de outra forma os primeiros regionalistas eram homens que receberam educação culta desde cedo e logo saíram da sua região natal Alencar Távora Bernardo Guimarães A visão que passavam a ter a respeito da região aqueles que retornavam ou demoravam para sair já estava afetada pela sua instrução O povo do interior era chucro limitado ingênuo humilde simples bárbaro e a visão do romancista altamente intelectualizado se comparado aos seus conterrâneos não os possibilitava perceber a peculiaridade desse povo Daí a fatalidade das narrativas serem quase todas artificiais num gênero que deveria exprimir a realidade mais geral e de certo modo mais própria do país As palavras de Taunay no limiar de Juca o Tropeiro poderiam servir de epígrafe a quase toda a nossa literatura regionalista sobretudo sob o aspecto sertanejo que assumiu com o Naturalismo A autoria da presente narração pertence mais a um exsargento de voluntários de Minas que nos disse haver conhecido de perto o personagem que nela figura do que à nossa pena O que fizemos foi desbastar o correr da história de incidentes por demais longos de inúmeros termos familiares e sobretudo de locuções chulas e sertanejas que podiam por vezes parecer inconvenientes Havendo contudo reconhecido a originalidade e força de colorido dessa linguagem e desejando conservar ainda um quê da ingênua mas pitoresca expressão do narrador resultou uma coisa esquisita nem como era contada pelo exsargento nem como deveria ser saída da mão de quem se atira a escrever para o público11 CANDIDO 1997 v 2 p 103 11 Citação de Sílvio Dinarte Histórias Brasileiras pág 183 grifada por Antonio Candido 59 O registro de Taunay citado por Candido apresenta um certo tom de confissão de culpa porque reconhece o resultado de uma coisa esquisita já que o romancista não soube optar entre a reprodução fiel das palavras do exsargento e a adaptação para uma história mais formal E não é de estranhar que o crítico tenha opinado que o trecho poderia ser epígrafe a quase toda literatura regionalista afinal poucos escritores regionalistas souberam solucionar esse impasse Mesmo assim Candido reconhece algum valor nisto Mas justamente por implicar esforço pessoal de estilização já que não podia canalizar tão facilmente quanto o indianismo e o romance urbano a influência de modelos europeus o regionalismo foi um fator decisivo de autonomia literária e pela quota de observação que implicava importante contrapeso realista CANDIDO 1997 v 2 p 103 O regionalismo foi portanto decisivo para o Romantismo atingir o ideal da autonomia literária ou podemos dizer da independência cultural Isso também foi possível porque a descrição da realidade social não era irreal apesar da influência estrangeira segundo o crítico esse problema ocorreu apenas nas situações narrativas ou seja os personagens não são inverossímeis mas sim artificiais Candido observa ainda que o regionalismo foi um gênero que ampliou o limitado ecúmeno literário pois alguns autores giraram sua obra em torno dos mesmos temas como o da vida burguesa caso de Joaquim Manuel de Macedo o que acabou se refletindo na sua frágil produção Num trecho adiante Candido afirma que o regionalismo foi a manifestação por excelência daquela pesquisa do país e complementa É necessário todavia distinguir o regionalismo dos românticos daquele que veio mais tarde a ser designado por este nome a literatura sertaneja de Afonso Arinos Simões Lopes Neto Valdomiro Silveira Coelho Neto Monteiro Lobato e que embora dele provenha é desenvolvimento diverso pelo espírito e as conseqüências CANDIDO 1997 v 2 p 192 Aqui já está claro para o estudioso que a primeira fase do regionalismo literário brasileiro está circunscrita ao Romantismo enquanto esses escritores da virada do século XIX para o XX representam a segunda cabendo aos escritores surgidos a partir de 1930 o terceiro momento E também está claro que as diferenças entre cada fase 60 dizem respeito aos objetivos que cada grupo buscava atingir mas o crítico só desenvolverá essas distinções de maneira mais objetiva na década de 1970 Ainda sobre os autores dessa primeira fase Candido escreve Os românticos Bernardo Alencar Taunay Távora tomaram a região como quadro natural e social em que se passavam atos e sentimentos sobre os quais incidia a atenção do ficcionista É notório que livros como O Sertanejo O Garimpeiro Inocência Lourenço são construídos em torno de um problema humano individual ou social e que a despeito de todo o pitoresco os personagens existem independentemente das peculiaridades regionais Mesmo a inabilidade técnica ou a visão elementar de um batedor de estradas como Bernardo Guimarães não abafam esta humanidade da narrativa CANDIDO 1997 v 2 p 192 As tramas como anteriormente comentadas eram irreais mas a narrativa não desperdiçava a humanidade dos personagens embora não fossem profundamente analisadas Por isso Candido reconhece que os personagens existem mesmo com o recurso artificial da exploração do pitoresco algo que não ocorreu com a geração regionalista seguinte Já o regionalismo postromântico dos citados escritores tende a anular o aspecto humano em benefício de um pitoresco que se estende também à fala e ao gesto tratando o homem como peça da paisagem envolvendo ambos no mesmo tom de exotismo É uma verdadeira alienação do homem dentro da literatura uma reificação da sua substância espiritual até pôla no mesmo pé que as árvores e os cavalos para deleite do homem estético da cidade Não é à toa que a literatura sertaneja bem versada apesar de tudo por aqueles mestres deu lugar à pior subliteratura de que há notícia em nossa história invadindo a sensibilidade do leitor mediano como praga nefasta hoje revigorada pelo rádio CANDIDO 1997 v 2 p 192 Essa alienação imposta pelos regionalistas da virada do século será melhor analisada por Candido no já referido texto A literatura e a formação do homem de 1972 mas desde a Formação ele tinha consciência de que o projeto iniciado pelos românticos quanto ao regionalismo perdeuse na escrita da geração seguinte que não soube representar o povo com fidelidade passando longe da verossimilhança atingida parcialmente no Romantismo O caso é interessante se o analisarmos do ponto de vista formativo da Formação porque se trata de um retrocesso um paradoxo algo que não ocorreu com o romance urbano brasileiro de Macedo a Machado passando por 61 Almeida e Alencar a prosa dedicada à cidade só evoluiu cada escritor parece ter conferido o que foi feito antes para tentar a superação Para explicarmos melhor a questão vale anteciparmos rapidamente as idéias de Candido em Literatura e Subdesenvolvimento 1970 Neste texto o autor destaca três momentos com relação à consciência de atraso na América Latina em especial no Brasil o primeiro no Romantismo quando predominava a noção de país novo e uma consciência amena do atraso o segundo na virada do século XIX para o XX estendendose até o início da década de 1930 em que a noção de subdesenvolvimento vem à tona e a consciência tornase catastrófica e a terceira época corresponde a uma consciência dilacerada do atraso ocorrida a partir dos anos 1940 1950 em que o Brasil já era uma nação industrializada e com crescimento urbano acelerado mas ainda abrigava regiões que não sabiam o que era luz elétrica água encanada e gás de cozinha Os regionalistas do segundo momento esboçado exploraram o pitoresco e o exotismo das regiões com um narrador culto em terceira pessoa e relegando ao personagem o linguajar da região explorada A humanização do personagem havia se perdido a alienação desses regionalistas pode ter se dado também porque eles percebiam o desenvolvimento urbano e industrial do país e ao mesmo tempo tinham bom conhecimento do marasmo das regiões afastadas Enquanto o campo estava estacionado a cidade corria no ritmo do automóvel o intelectual via sua fonte de relações e conhecimento aumentar enquanto a vida rural não se alterava o que distanciava ainda mais o homem da cidade do homem do campo Os regionalistas desse momento não percebiam que podiam contribuir com suas obras para alterar esse estado Enquanto a consciência catastrófica do atraso fez com que os prosadores evidenciassem as diferenças do campo e da cidade a consciência dilacerada desvelou a necessidade de mudança Não se tratava mais de aceitar e explorar o distanciamento mas de acabar com ele Com o advento do Socialismo no Brasil em especial com a criação do Partido Comunista e com a nova geração de escritores enquadrados no Romance de 30 conscientes dos problemas sociais econômicos e políticos do país o intelectual começa a perceber que as camadas regionais da sociedade precisam ser incluídas à modernidade e que o governo precisa executar políticas públicas para que isso seja alcançado A superação da artificialidade no regionalismo iniciou apenas com Simões Lopes Neto que só teve o devido reconhecimento a partir dos anos 1940 e atingiu a maturidade com Guimarães Rosa Os regionalistas da segunda geração parecem ter levado ainda mais longe a sua posição intelectual frente ao homem rústico Enquanto 62 aqueles eram inteligentes capacitados civilizados este era ignorante limitado bárbaro A solução só foi atingida com a humanização total e radical do personagem foi necessário tornálo o narrador da história para acabar com a alienação do regionalismo E aí sim o gênero atingiu um nível estético que nos agrada até hoje não pelo exotismo mas pela fatura de sua composição Por isso tudo Candido observa a qualidade do regionalismo romântico frente ao da geração seguinte O regionalismo dos românticos ao contrário distinguindo a qualidade respectiva do homem e da paisagem constitui na sua linha tronco uma das melhores direções de nossa evolução literária vindo através de Domingos Olímpio ramificarse no moderno romance sobretudo no galho nordestino onde vemos a região condicionar a vida sem sobreporse aos seus problemas específicos Por isso o regionalismo o verdadeiro e fecundo que aparece nesta fase com Bernardo Guimarães teve a importância que lhe reconhecemos Enquanto nas literaturas evoluídas do Ocidente ele é quase sempre subproduto sem maiores conseqüências uma espécie de bairrismo literário no Brasil que ainda se apalpa e estremece a cada momento com as surpresas do próprio corpo foi e é um instrumento de descoberta CANDIDO 1997 v 2 p 192193 Os românticos conseguiram enfim estabelecer as qualidades do homem e da paisagem sem colocálas no mesmo plano sem tratálas da mesma maneira no mesmo nível E isso conduziu o regionalismo à modernidade com o citado Domingos Olímpio mas também com Simões Lopes Neto antes de chegar aos romancistas do Nordeste os romancistas de 1930 em que vemos a região condicionar a vida sem sobreporse aos seus problemas específicos Aí estaria atingido o objetivo da humanização no romance regionalista da naturalidade no tratamento das tramas e dos personagens Quanto ao fato do regionalismo ser uma subliteratura nos países mais desenvolvidos do Ocidente nada mais natural em regiões mais antigas e há mais tempo urbanizadas industrializadas e evoluídas é natural que os problemas regionais sejam secundários e que a literatura daí produzida diga pouco ao homem urbano moderno Faltava ao regionalismo brasileiro todavia algo que o romance europeu dominava há muito tempo a saber a psicologia dos personagens Entretanto as sendas poéticas do indianismo e a humanidade sincera mas superficial do regionalismo não eram elementos suficientes para a maturidade do nosso romance Faltavamlhe para isso aquelas pesquisas psicológicas que segundo Lucia Miguel Pereira constituem 63 o brasão de Machado de Assis e Raul Pompéia Elas consistem principalmente em recusar o valor aparente do comportamento e das idéias em não aceitálos segundo a norma que lhes traçam o costume ou os seus desvios mais freqüentes CANDIDO 1997 v 2 p 193 A falta dessas pesquisas psicológicas começa a ser preenchida com os romances de José de Alencar em especial os urbanos mas só atinge a melhor resolução com Machado de Assis e no regionalismo com Guimarães Rosa que consegue demonstrar tudo que se pode tirar do homem rústico e que isso não é pouco 223 JOSÉ DE ALENCAR Antonio Candido observa que a década de 1870 foi a mais produtiva de Alencar pois tinha um contrato com a Livraria Garnier e acabou publicando em seis anos doze romances e um drama Segundo o crítico Terá sido nessa fase que imaginou dar à sua obra um sentido de levantamento do Brasil como deixa indicado no prefácio de Sonhos dOuro O fato é que cultiva então o regionalismo descrição típica da vida e do homem nas regiões afastadas com O Gaúcho 1870 continuandoo nO Sertanejo 1875 CANDIDO 1997 v 2 p 201 Surge a dúvida para Candido o regionalismo é a descrição típica da vida e do homem nas regiões afastadas ou o regionalismo de Alencar é assim Se pensarmos nas reflexões citadas anteriormente a segunda afirmativa parece ser a correta Mesmo assim há uma relação estabelecida entre o cultivo do regionalismo e o sentido de levantamento do Brasil O crítico não aprofunda a questão mas vê algumas qualidades nos romances do escritor É de notarse que nos romances de que os homens são foco os romances do sertão Alencar não apela para o desfecho da união feliz A palmeira do Guarani desaparece sem deixar vestígios Arnaldo nO Sertanejo continua servindo a dama inacessível Manuel Canho nO Gaúcho precipitase no abismo enlaçado à amada que lhe roubaram como se a fibra heróica ficasse mais convincente posta acima da harmonia sentimental dos romances urbanos nos quais a rusga ou a 64 barreira não passam de preâmbulo daquelas cenas de entendimento final CANDIDO 1997 v2 p 203 Interessante pensarmos na classificação radical que Candido faz os romances do sertão são todos os regionalistas de que os homens são foco mesmo O Gaúcho Talvez ele tenha registrado dessa forma apenas para não entrar em minúcias mas é estranho vermos associado ao sertão a história da Revolução Farroupilha ou a figura de Manuel Canho mesmo que ele não represente o gaúcho de maneira fiel De qualquer forma o crítico reconhece que são romances menores dentro da ficção alencariana E os motivos já são conhecidos e criticados há bastante tempo desde pelo menos as Cartas a Cincinato 1870 ou no prefácio de O Cabeleira 1876 em que Franklin Távora é objetivo ao demonstrar a fragilidade do mundo regional de Alencar que não conhecia as regiões nem o povo que retratava Para complementar no fechamento do capítulo dedicado ao escritor cearense Candido observa que a sua arte literária é mais consciente e bem armada do que poderíamos supor à primeira vista Parecendo um escritor de conjuntos de largos traços atirados com certa desordem a leitura mais discriminada de suas obras revela pelo contrário que a desenvoltura aparente recobre um trabalho esclarecido dos detalhes e a sua inspiração longe de confirmarse soberana é contrabalançada por boa reflexão crítica Tanto assim poderíamos dizer que na verdade não escreveu mais do que dois ou três romances ou melhor nada mais fez nos vinte e um publicados do que retomar alguns temas básicos que experimentou e enriqueceu com admirável consciência estética a partir do compromisso com a fama assumido nO Guarani CANDIDO 1997 v 2 p 211 Se está correto o pensamento de Candido o compromisso com a fama de Alencar surgido em 1857 a partir de O Guarani o levou tão longe a ponto de querer desvendar o Brasil ou de tentar encontrar o referido sentido de levantamento do país Nada mais natural Alencar foi o escritor mais bem sucedido naquilo que o crítico indicou como a elaboração da consciência nacional no setor literário pois assim como seus contemporâneos ele tinha consciência clara dessas linhas que foram definidas pouco a pouco e depois unidas Mais do que isso o romancista foi definitivo na síntese das molas propulsoras do Romantismo Brasileiro afinal ajudou o Brasil a ter e a desenvolver uma tradição literária própria e os seus conseqüentes elementos o que acarretou o surgimento de uma literatura nova como apontou o crítico em passagem 65 acima transcrita Algo que não está expresso de forma detalhada na Formação mas que fica explícito para o leitor é que sem Alencar Gonçalves Dias Manuel Antonio de Almeida Joaquim Manuel de Macedo entre outros o advento de Machado de Assis não teria sido possível Isso fica mais evidente quando percebemos que no fundo não foram muitos os temas realmente novos trazidos por Machado o principal de sua contribuição foi a forma como desenvolveu suas tramas sabendo deixar de lado os erros de seus predecessores e aproveitando os seus acertos O uso da ironia e a pesquisa psicológica entre outros recursos exploraram assuntos conhecidos como a traição a trapaça a loucura a vingança Com isso podemos pensar que Machado foi correto ao não explorar o regionalismo porque certamente tinha consciência da fragilidade do gênero e provavelmente não tinha a solução do problema É possível também que essa inexistência de um texto regionalista machadiano seja fruto de sua vontade velada talvez de fazer uma literatura européia que não combinava com o regionalismo como vimos numa passagem da Formação Isso torna o papel de José de Alencar ainda mais importante porque foi senão o único o principal escritor brasileiro a explorar os três graus na matéria romanesca determinados pelo espaço em que se desenvolve a narrativa como refletiu Candido a cidade o campo e a selva ou a vida urbana a vida rural e a vida primitiva Dito de outra forma Alencar é o paradigma do crítico é a síntese da matéria romanesca analisada na Formação 224 BERNARDO GUIMARÃES Candido reconhece em Bernardo Guimarães um escritor consciente das qualidades da vida sertaneja e que soube descrevêlas muito bem O capítulo dedicado ao escritor mineiro começa com uma narração recurso pouco explorado pelo crítico que conta a história da viagem de Couto de Magalhães em que passou por Catalão cidade goiana onde vivia o autor de A Escrava Isaura À primeira vista parece apenas uma boa maneira de começar um capítulo mas demonstra no fundo uma certa simpatia pela prosa de Bernardo 66 os romances deste juiz Bernardo Joaquim da Silva Guimarães parecem boa prosa da roça cadenciada pelo fumo de rolo que vai caindo no côncavo da mão ou pela marcha das bestas de viagem sem outro ritmo além do que lhes imprime a disposição de narrar sadiamente com simplicidade o fruto de uma pitoresca experiência humana e artística CANDIDO 1997 v 2 p 212 A descrição acima da obra de Bernardo é prova do apreço do crítico um pouco pela simplicidade um pouco pelo tom da narrativa ou ainda pelo próprio enredo E talvez por isso a visão de Candido não seja pejorativa com relação à obra em questão O Ermitão de Muquém é contado em quatro pousos por um companheiro de jornada e quase todos os outros livros não deixam de apresentar essa tonalidade de conversa de rancho Conversa de bacharel bastante letrado para florear as descrições e suspender a curiosidade do ouvinte mas bastante matuto para exprimir fielmente a inspiração do gênio dos lugares CANDIDO 1997 v 2 p 212 Segundo essa visão do crítico Bernardo parece ter alinhavado elementos fundamentais para o regionalismo como a descrição floreada o suspense da próxima cena e a expressão da realidade local Mas essa tonalidade de conversa de rancho só foi possível por causa da formação bacharelesca do escritor E é quando explora esses elementos que está retratando a região de que mais gosta Apesar de ter situado uma narrativa em São Paulo e outra na Província do Rio de Janeiro Rosaura e A Escrava Isaura apesar de ter escrito uma história fantástica do Amazonas O Pão de Ouro o seu mundo predileto é o oeste de Minas e o sul de Goiás onde se passam O Ermitão de Muquém O Seminarista O Garimpeiro O Índio Afonso A filha do Fazendeiro que constituem o bloco central e mais característico da sua ficção Maurício e o Bandido do Rio das Mortes inacabado passamse no século XVIII em São João dEl Rei limite oriental da zona de campos que tanto amou Zona de fazendas esparsas gente rude e primitiva que deixou péssima impressão em Saint Hilaire para Bernardo todavia as mulheres eram ali mais belas e os homens melhores mais valentes CANDIDO 1997 v 2 p 212213 O êxito de Bernardo parece residir diante da reflexão do crítico no amor que tinha e despendia aos locais que retratava Aí está uma diferença fundamental entre Bernardo e Alencar ou entre Bernardo e os regionalistas da virada do século enquanto o cearense tinha por objetivo mapear o país e regionalistas como Afonso Arinos e Coelho Neto queriam explorar o lado exótico e pitoresco das regiões Bernardo amava 67 sua terra e a representava com esse olhar E esse sentimento subjetivo do autor parece ser determinante para o sucesso de qualquer obra regionalista vide Simões Lopes Neto e Guimarães Rosa além dos procedimentos formais Quem leu O Seminarista não pode esquecer a várzea com o riacho a ponte a porteira de varas as duas paineiras os dois caminhos que levam à casa do Capitão Antunes e à da tia Umbelina ao lado da figueira não poderá sobretudo esquecer a utilização por assim dizer psicológica que o romancista deles faz como cenário qualitativo dos amores de Eugênio e Margarida transformandoos numa paisagem subjetiva variável na consistência e densidade CANDIDO 1997 v 2 p 214 A descrição da paisagem é usada portanto não para expor algo exótico mas como um recurso que canaliza as ações e os sentimentos dos personagens Para o crítico Bernardo soube dosar os elementos de um bom romance regionalista O senso regionalista dos costumes e da paisagem a hipertrofia romântica e esquemática dos sentimentos a presença tangível da carne aparecem harmoniosamente entrosados no melhor de seus livros O Seminarista que ainda hoje podemos ler com atenção e proveito CANDIDO 1997 v 2 p 216 Segundo o crítico o problema de Escrava Isaura é justamente não se amparar na descrição do locus para englobar os dramas vividos pelos personagens acabando por se exceder nos elementos que ignorou nos seus melhores livros Candido afirma entretanto que Bernardo encontrou a solução literária conveniente para tratar dos problemas criados em suas tramas embora reconheça que Alencar também tratou situações delicadas com imaginação mais acentuada do que Bernardo CANDIDO 1997 v 2 p 217 225 FRANKLIN TÁVORA A abertura do capítulo sobre Franklin Távora na Formação faz referência às diversidades regionais do Brasil analisando em especial o Nordeste que possui segundo o crítico impressionante autonomia e nitidez na sua geografia história e cultura Com essa autonomia surgiu o sentimento regionalista que encontrou 68 expressão típica na confederação do Equador que falhou no plano político mas persistiu teimosamente no plano da inteligência A literatura e a oratória tornaramse com efeito a forma preferencial daquela região velha e ilustre exprimir a sua consciência e dar estilo à sua cultura intelectual que antecedeu e por muito tempo superou a do resto do país O nacionalismo romântico cioso da terra dos feitos brasileiros se transformou lá graças a este processo num regionalismo literário sem equivalente entre nós e bem ilustrado nos romances de Franklin Távora O regionalismo pinturesco de um Trajano Galvão um Juvenal Galeno ou mesmo um Alencar tornase com ele programa quase culto acentuado com a decadência do Nordeste e a supremacia política do Sul CANDIDO 1997 v 2 p 267 O crítico deixa entrever que os estados com propensão para a independência normalmente afastados do centro do país como Pernambuco e Rio Grande do Sul têm fortes tendências regionalistas e que as tentativas de revoluções contribuíram para isso E a contribuição foi inclusive cronológica o regionalismo do Nordeste tornouse programa quase culto com Franklin Távora porque a Confederação do Equador foi uma das primeiras revoltas ocorridas contra a coroa além da referida decadência do Nordeste Segundo Candido a virulência crítica dos intelectuais nordestinos contribuiu decisivamente para desenvolver o movimento crítico do decênio de 70 culminando com a Escola do Recife que levou ao máximo esta tendência prolongandose por todo o pósromantismo e em nossos dias pelo romance nordestino e a obra de Gilberto Freyre Para Silvio Romero apóstolo combativo e convicto do regionalismo nordestino o resto do país vivia armando conspirações de silêncio contra a sua região desconhecendolhe o talento procurando escamotear a prioridade e a primazia que lhe cabiam na vida intelectual vezo reivindicatório que ainda hoje persiste CANDIDO 1997 v 2 p 268 A esse respeito lembremos também da já citada polêmica entre Távora e Alencar O crítico parece explicar isso com a descrição de outro sentimento regionalista fundamental para a boa execução do gênero literário a defesa da terra algo que é comum em estados periféricos e que acaba por determinar um sistema literário regional à parte do nacional como no Rio Grande do Sul poderíamos falar inclusive num amplo 69 sistema artístico autônomo Mas a intenção do Nordeste não era se particularizar e sim fazerse reconhecer pelo resto do país Franklin Távora sentiu tudo isto profundamente ao ponto de tentar uma espécie de félibrige só que félibrige pela metade dentro não apenas do mesmo país mas da mesma língua Norte e Sul são irmãos mas são dois Cada um há de ter uma literatura sua porque o gênio de um não se confunde com o de outro Cada um tem as suas aspirações seus interesses e há de ter se já não tem sua política12 Desvio evidente que levandoo a dissociar o que era uno e fazer de características regionais princípio de independência traía de certo modo a grande tarefa romântica de definir uma literatura nacional CANDIDO 1997 v 2 p 268 A dissidência de Franklin Távora tinha por objetivo esse reconhecimento de que o Nordeste tinha poder intelectual e político devendo por isso ter sua importância reconhecida pelo resto do país Se isto o afastou da tarefa de definir uma literatura nacional ou de participar dessa definição o possibilitou a criar uma literatura regionalista única e que acabou servindo de modelo para outros escritores O seu regionalismo parece fundarse em três elementos que ainda hoje constituem em proporções variáveis a principal argamassa do regionalismo literário do Nordeste Primeiro o senso da terra da paisagem que condiciona tão estreitamente a vida de toda a região marcando o ritmo da sua história pela famosa intercadência de Euclides da Cunha Em seguida o que se poderia chamar patriotismo regional orgulhoso das guerras holandesas do velho patriarcado açucareiro das rebeliões nativistas Finalmente a disposição polêmica de reivindicar a preeminência do Norte reputado mais brasileiro onde abundam os elementos para a formação de uma literatura propriamente brasileira filha da terra A razão é óbvia o Norte ainda não foi invadido como está sendo o Sul de dia em dia pelo estrangeiro13 CANDIDO 1997 v 2 p 268 O parágrafo acima contém várias informações que exigem reflexão Primeiro a identificação de três elementos fundamentais do regionalismo o senso da terra o patriotismo regional e a reivindicação da preeminência do Nordeste Se esses três elementos referemse também aos escritores nordestinos contemporâneos à escritura da Formação incluemse aí Graciliano Ramos Rachel de Queiroz Jorge Amado entre outros Apesar de terem também eles o senso da terra é difícil perceber em suas obras 12 Cf Candido Franklin Távora O Cabeleira prefácio pág XIV 13 Cf Candido Ob cit pág XII 70 esse patriotismo regional e essa preeminência do Nordeste Não que não amassem sua terra mas porque apontavam os problemas que esta sofria Ou seja o patriotismo dos nordestinos é diferente daquele amor à terra de Bernardo Guimarães Esses três elementos que constituem segundo o crítico a principal argamassa do regionalismo literário do Nordeste não constituiriam também a argamassa de todo regionalismo literário Ou pelo menos daquele que não trata seus personagens como peças extras do ambiente pitoresco retratado Afinal em Simões Lopes Neto também encontramos esses elementos mas com a exaltação da sua terra o Rio Grande do Sul É bom registrar que embora não esteja claramente expresso o Sul referido por Távora e endossado por Candido referese a Rio de Janeiro e São Paulo Diante disso a exclusão da região Sul verdadeira acaba por delimitar ainda mais o projeto regionalista de Távora Távora foi o primeiro romancista do Nordeste no sentido em que ainda hoje entendemos a expressão e deste modo abriu caminho a uma linhagem ilustre culminada pela geração de 1930 mais de meio século depois das suas tentativas reforçadas a meio caminho pelo baiano fluminense dOs Sertões CANDIDO 1997 v 2 p 268 O crítico acaba por encontrar em Távora não só a argamassa do regionalismo literário nordestino como também o início de um grupo de escritores que trabalharam o mundo rural Mas a vinculação entre eles não se dá apenas pelo foco comum na região mas pelos temas que acabaram explorando Em sua obra portanto há inicialmente uma vivência regional uma interpenetração da sensibilidade com a paisagem geográfica e social do Nordeste em cuja célula formadora Pernambuco bem cedo se integrou Se deixarmos de lado a primeira tentativa no romance veremos com efeito que toda a sua obra gira em torno da história e costumes pernambucanos CANDIDO 1997 v 2 p 268269 Assim não é estranho vermos o vínculo entre Távora e os romancistas de 1930 Mas é possível que Candido ressalte esses aspectos a respeito de Távora justamente por causa desses autores O crítico escrevia a Formação enquanto acompanhava a publicação das obras de Graciliano Ramos Rachel de Queiroz e Jorge Amado entre outros Talvez se a época fosse outra Távora não seria tão exaltado e Candido não 71 afirmaria com tanta convicção que ele iniciou a exploração dos elementos que seriam plenamente esmiuçados pela geração de 30 A virtude maior de Távora foi sentir a importância literária de um levantamento regional sentir como a ficção é beneficiada pelo contacto de uma realidade concretamente demarcada no espaço e no tempo que serviria de limite e em certos casos no Romantismo de corretivo à fantasia Ora para ele este contacto se funda na experiência direta da paisagem que o romancista deve conhecer e descrever precisamente CANDIDO 1997 v 2 p 269 Aí parece residir a diferença entre o regionalismo de Távora e o de Alencar ou de Bernardo o espaço ficcional não era o sertão por uma simples escolha ou para explorar um povo e uma parte do país pouco conhecidos Sua intenção era desvelar as mazelas dessa gente tratála com fidelidade e respeito sem praticar o pitoresco e o exotismo afinal conhecia bem a região que retratava e não gostava de quem não fizesse como ele A principal censura que dirige a Alencar é a de não conhecer o cenário geográfico dos seus livros ou conhecêlo mal Ele ao contrário não abandona uma área relativamente pequena que conhece bem Um Casamento no Arrabalde e O Sacrifício se desenrolam nas cercanias do Recife ou na zona rural imediata O Cabeleira O Matuto e Lourenço alargam o âmbito para o norte até atingirem a Paraíba Esta velha área canavieira é o seu mundo cujos rios e acidentes registra com amor topográfico demorandose nas matas baixadas trilhos descrevendo as enchentes e as secas Vêse que ama profundamente a canadeaçúcar como plante e realidade econômica NO Matuto dedicalhe verdadeiro hino nostálgico da sua gloriosa história abespinhado pela preeminência do café e a impressão do leitor é que está lamentando em termos de geografia econômica a passagem da hegemonia cultural e política do Norte para o Sul CANDIDO 1997 v 2 p 269 Com base nas já citadas críticas de Távora a Alencar das Cartas a Cincinato Candido percebe que a boa execução do regionalismo de Távora reside também no fato de que ele não tentou retratar áreas que não conhecia mesmo que seu universo ficcional ficasse restrito a poucas paisagens de Pernambuco E aqui o crítico retoma o amor devotado pela terra já comentado sobre a obra de Bernardo Guimarães Mas como o projeto de Távora tinha um respeito peculiar pela região escolhida e um senso de que podia e devia fazer algo para alterar aquele estado ele não podia deixar de lado as dificuldades de se viver naquele local 72 Para ele o escritor deveria partir de um conhecimento exato do quadro em que se localizavam as ações descritas a exatidão daguerreotípica Mas esta condição por assim dizer de ética literária não envolvia a de reproduzir minuciosamente a realidade nem substituir pelo arrolamento e a observação o trabalho imaginativo que continuava em primeira linha Este trabalho de imaginação consiste para Távora em selecionar os aspectos que conduzem a uma noção ideal da natureza Acha por exemplo que Alencar faz mal ao mencionar o tamanduá bicho grotesco CANDIDO 1997 v 2 p 270 Essa intenção de tratar a natureza com base no belo artístico fez com que sua obra acabasse perdendo em fidelidade ao ambiente retratado Dito de outra forma o realismo de seu programa acabou naufragando na tentativa de navegar num mar sem ondas Por isso Candido ressalta que Embora não tenha seguido escrupulosamente este conceito não há dúvida que procura construir uma visão ideal da realidade colocando quase sempre os personagens além das contingências de todo o dia dotandoos de qualidades acima ou abaixo da norma CANDIDO 1997 v 2 p 270 Se Távora porém não tivesse se preocupado com os aspectos históricos que envolviam suas tramas e a história da região focalizada talvez esta visão ideal da realidade obtivesse melhor resultado não apenas quanto ao aspecto estético mas também quanto ao ideológico a história se tornou elemento importante no seu romance permitindolhe estribar o ardente regionalismo no passado sempre suscetível de maior prestígio pelo embelezamento assim deu ao bairrismo o amparo de grandes feitos e uma genealogia ilustre A história é pois uma segunda dimensão que vem juntarse à geografia como componente da estética de Franklin Távora Ao senso ecológico acrescenta o da duração temporal e graças aos dois leva adiante o programa de literatura nortista CANDIDO 1997 v 2 p 270 A reflexão de Candido é interessante porque pela primeira vez em sua obra podemos afirmar com quase certeza se estabelece uma relação entre regionalismo e bairrismo Não é à toa provavelmente que essa relação seja dada quando o crítico relaciona a história da região com o mundo do romance especificamente o de Távora Ao contrário do que poderia parecer à primeira vista no entanto o bairrismo não é algo 73 de todo ruim e o autor de O Cabeleira via nele uma das bases de sustentação de seu programa segundo o parágrafo exposto acima Sobre isso o crítico afirma Há com efeito muito de programa em sua obra quem sabe devido à preocupação com os problemas sociais da região Alguém não me lembro quem disse que Távora incorreu num certo equívoco ao escolher o romance para exprimir uma realidade que se trataria melhor doutra forma É verdade que ele tinha algo de pesquisador e se vivesse mais talvez recorresse apenas à história como sugerem os dois trabalhos inacabados sobre as revoluções pernambucanas Notese todavia que antes das teorias da artepelaarte os escritores consideravam o romance um estudo e um meio de debater CANDIDO 1997 v 2 p 270271 A reflexão de Candido parece chocarse com uma outra antes referida a de que Távora procurava o belo da paisagem É claro que ele não estava preocupado com os padrões da artepelaarte afinal nem os conhecia e que o interesse histórico acabou por dar esse tom de programa à sua obra mas a defesa do crítico afirmando que o romance era um meio de estudo e debate vai contra os ideais de Távora por ele antes analisados De qualquer forma a preocupação histórica acabou por prejudicar a eficácia narrativa do romancista As lacunas de Távora provêm a meu ver de imperícia e carência estética não da matéria nem do ponto de vista coerentes em seu tempo com a concepção do romance Nem tampouco da nítida intenção ideológica do programa definido de demonstrar teses e sugerir modelos Ao contrário do que muito se afirma em nossos dias à eficácia de um romance não é indiferente a intenção ideológica do autor nem esta entra como simples argamassa da forma A verdade porém é que a eminência vem ligada freqüentemente em matéria de romance à possibilidade de dar certo toque de ficção à realidade sentida e compreendida à luz de um propósito ideológico Este não basta mas sem ele não há romance duradouro A importância de Távora consiste como disse em ter percebido a valia de uma visão da realidade local que era a sua CANDIDO 1997 v 2 p 271 Mesmo que essa preocupação histórica ou como disse Candido a nítida intenção ideológica não faça parte das lacunas de Távora elas acabaram por prejudicar sua liberdade criativa Por isso o crítico afirma que o romance precisa de certo toque ficcional à realidade sentida e compreendida à luz de um propósito ideológico A última frase do parágrafo acima também merece atenção Távora parece retratado como o pai ou o líder dos regionalistas Se lembrarmos das reflexões anteriores do crítico a 74 respeito do escritor podemos concluir que essa liderança é verdadeira afinal ele deu a base para o romance regionalista senso da terra patriotismo valorização do Nordeste Mas e por que não Alencar Talvez porque o melhor de sua obra esteja nos romances urbanos e indianistas Ou porque não soube sentir a terra como seu conterrâneo Ou ainda porque incorreu nos erros apontados por Távora De qualquer forma Candido continua refletindo sobre as intenções de Távora Ora para ele como atualmente para Jorge Amado e o José Lins do Rego de Bangüê Usina e Moleque Ricardo a região não era apenas motivo de contemplação orgulho ou enlevo mas também complexo de problemas sociais sobrelevando não custa repisar a perda de hegemonia políticoeconômica A guerra dos Mascates lhe interessa como panodefundo romanesco mas também como competição entre dois grupos rivais o fazendeiro e o comerciante início de crise para o açúcar e portanto da decadência material já avultada em seus dias CANDIDO 1997 v 2 p 271 Talvez aí esteja a resposta para as perguntas feitas acima sobre Alencar para Távora não interessava simplesmente contemplar a região ou utilizála como cenário para narrativas que bem poderiam ser urbanas O que ele pretende segundo o crítico é pôr em choque os tipos que ali vivem pôr em evidência o mundo rural retratar seus dramas discutir seu folclore Isso se comprova na passagem referida por Candido das Cartas a Cincinato Aliás para ele literatura não era apenas obra de fantasia nem dispensava objetivos extraliterários o romance tem influência civilizadora moraliza educa forma o sentimento pelas lições e pelas advertências até certo ponto acompanha o teatro em suas vistas de conquista do ideal social Por isso é que preferia o romance verossímil possível que tentava por meio da história e dos costumes para representar o homem junto das coisas definição da arte por Bacon14 CANDIDO 1997 v 2 p 271272 Távora era portanto um escritor consciente de sua função sabia que sua obra contribuía para o amadurecimento intelectual do leitor e assim tentava utilizar o máximo de realismo possível As combinações por ele exploradas todavia não bem executadas 14 Cf Candido Cartas a Cincinato cit págs 98 e 99 75 Devido porém às mencionadas carências e imperícias esse homem prático e apaixonado fundador de uma das correntes mais poderosas do nosso romance não é um grande escritor O conhecimento históricogeográfico da região o equipamento ideológico do bairrismo eram condições necessárias que lhe pareceram também suficientes Achava que Alencar falhou nO Gaúcho por não conhecer objetivamente o pampa e os seus habitantes Ora o que lhe faltou foi justamente o poder alencariano de construir o ambiente e os personagens com mais elementos do que a fidelidade que em literatura consiste sobretudo na coerência entre personagens e ambiente não entre autor e ambiente como pensava CANDIDO 1997 v 2 p 272 É bom guardar essa afirmação de Candido de que o regionalismo é uma das correntes mais poderosas do nosso romance Mais tarde ele desqualificará o romance regionalista E na passagem acima o crítico é direto ao colocar Távora como o fundador do regionalismo literário Parece que os três elementos apontados por Candido realmente fizeram de Távora o principal representante desse gênero no século XIX ou pelo menos o primeiro relevante Outro registro importante é a defesa que Candido faz de Alencar apesar de suas deficiências ele sabia criar mundos e personagens verossímeis mesmo sem conhecer a região em que os apresentava Como escreveu o crítico não basta ao autor regionalista conhecer a região e retratála com fidelidade É claro que isso contribui para a verossimilhança e para a composição da obra mas com falta de imaginação consistente não se escreve um romance interessante 226 VISCONDE DE TAUNAY Antonio Candido inicia o capítulo dedicado a Taunay apresentandolhe como um militar enfronhado em problemas práticos que trouxe para a literatura uma rica experiência de guerra e sertão depurada por sensibilidade e cultura nutridas de música e artes plásticas Esta combinação de senso prático e refinamento estético fundamenta as suas obras e compõe o traçado geral da sua personalidade CANDIDO 1997 v 2 p 275 De família culta Alfredo dEscragnolle Taunay foi ensinado a amar a natureza em especial a floresta carioca segundo nos conta o crítico Por isso sempre estava preparado para fazer anotações a respeito dos locais por onde passava além de desenhos que registravam cenas de viagem Além disso Candido ressalta a influência da música na sua composição literária 76 Predominava nele todavia a sensibilidade musical Compôs com facilidade e elegância escreveu com acerto sobre assuntos de música e mesmo nas descrições do sertão percebemos que também o ouvido elaborava as impressões da paisagem No primeiro capítulo de Inocência O Sertão e o Sertanejo a paisagem e a vida daqueles ermos são apresentados a partir de alguns temas fundamentais compostos em seguida num ritmo que se diria musical Daí o tom de ouverture dessa página aliás admirável na sua inspiração telúrica uma das melhores da literatura romântica onde se preformam certos movimentos dA Terra e dO Homem nOs Sertões de Euclides da Cunha CANDIDO 1997 v 2 p 275276 O comentário de Candido é bastante peculiar associar experiência musical com literatura não é um recurso comum mesmo para um crítico com obra vasta embora a Formação seja ainda um de seus primeiros volumes De qualquer forma Candido não rejeita a biografia de Taunay para perceber que ela ajuda a explicar a composição de sua obra Como o ritmo da descrição empregado pelo escritor remete ao ritmo musical é factível a relação estabelecida pelo crítico E esse foi um dos trunfos da literatura desse carioca filho de franceses além do encantamento pela terra brasileira que herdou dos parentes e do engajamento militar e político que resultou segundo Candido num brasileirismo misto de entusiasmo plástico e consciência dos problemas econômicos e sociais alguns dos quais abordou com senso e eficiência Daí também o fato de suas obras mais significativas estarem ligadas à experiência do sertão e da guerra que elaborou durante toda a vida sem poder desprenderse do seu fascínio CANDIDO 1997 v 2 p 276 O contato direto com o sertão contribuiu para a literatura de Taunay portanto e aqui temos uma relação nova a de regionalismo e brasileirismo ou seja misto de entusiasmo plástico e consciência dos problemas econômicos e sociais Autores diferentes relações diferentes o regionalismo de Taunay abordou com plasticidade os problemas do sertão Sob sua pena o gênero ganhou destaque diverso do explorado até então pelos seus pares É claro que Alencar e Távora também retrataram guerras e combates mas nenhum dos dois parece ter encarado suas tramas com esse brasileirismo E a sua experiência pessoal contribuiu de maneira especial para sua obra recheada de impressão e lembrança segundo Candido que classifica sua obra como um longo 77 diário numa literatura parca de documentação pessoal CANDIDO 1997 v 2 p 276 e vê um tom egocêntrico em sua produção Este culto sempre vivo de si mesmo foi de boas conseqüências para a nossa literatura uma vez que não enveredou para as pirraças estéreis ou à megalomania que o acompanharam ordinariamente no Brasil e sendo saudável foi bastante forte para dobrálo artisticamente sobre a própria vida tida como digna de literariamente elaborada O esteta e o sertanista se completam pois pelo egotista enxergando no eu o critério seletivo da experiência que Franklin Távora enxergava na consciência regional CANDIDO 1997 v 2 p 277 Aí a diferença básica entre Taunay e Távora enquanto este estava preocupado em abordar o sentimento coletivo da região em personagenstipo aquele retirava de sua própria vida experiências por assim dizer subjetivas que ainda encantam tantos leitores Provavelmente por isso a realização de Taunay tenha sido mais convincente afinal não tentou incorporar elementos grupais num único personagem nem decalcou sua vida na prosa como pode estar parecendo mas retirou de sua trajetória histórias que mereciam ser contadas dobradas nas palavras do crítico e as lançou em duas obras A Retirada de Laguna e Inocência que concretizaram segundo Candido uma aspiração literária fundamental do Romantismo o nacionalismo estético CANDIDO 1997 v 2 p 277 O próprio autor reconhecia que Inocência era a base da verdadeira literatura brasileira Cf Candido Memórias do Visconde de Taunay pág 233 O crítico afirma ainda que Taunay não desmerecia Alencar mas dizia que este não conhecia absolutamente a natureza brasileira que tanto queria reproduzir nem dela estava imbuído Não lhe sentia a possança e a verdade Descreviaa do fundo do seu gabinete lembrandose muito mais do que lera do que aquilo que vira com os próprios olhos15 Daí também as palavraschave que Candido usa para Taunay impressão e lembrança Mesmo longe do sertão ele o descrevia como se estivesse lá Talvez aí esteja mais um motivo para a literatura regionalista de Alencar não colocálo à frente do grupo regionalista O crítico relata então o enredo de um conto de Taunay inspirado num amor que teve por um índia que comprou e mais tarde abandonou para afirmar que 15 Cf Candido Memórias do Visconde de Taunay pág 229 78 Na verdade os dois processos literários que empregou conscientemente a reprodução e a elaboração premeditada do real teriam sido suficientes para acender a imaginação e compor em Inocência o que é um enredo até certo ponto banal Mas não bastariam para realizar o que realizou graças à intervenção do inconsciente CANDIDO 1997 v 2 p 281 Segundo Candido estes traços foram condicionados pela experiência da guerra do sertão e do amor no sertão A relação estranha a princípio combina com um autor preocupado em retratar com verossimilhança tudo que viu e vivenciou De qualquer forma a literatura de Taunay mesmo que imbuída dessas experiências pessoais subjetivas alinhase à de Macedo e Alencar como observa o crítico Neste segundo capítulo pudemos perceber as mudanças ocorridas na crítica de Antonio Candido A experiência alcançada com o trabalho de campo exigido para Os Parceiros do Rio Bonito fez com que o crítico pesasse suas reflexões com mais embasamento a respeito das relações entre literatura e sociedade É provável que persistiriam algumas análises de certa forma ingênuas caso Candido não tivesse tomado contato com o mundo que seria objeto de sua análise em vários de seus textos a partir da década de 50 E a Formação da Literatura Brasileira foi e continua sendo um projeto ousado que claramente exigiu uma reflexão crítica muito superior a dos textos que o crítico praticava até então Mesmo sem ter dito de maneira direta Candido percebeu que a literatura regionalista brasileira além de participar do processo formativo também tinha um sistema próprio ou seja Guimarães Rosa que é claramente o ponto de chegada dessa formação como foi Machado de Assis para a literatura brasileira observou o que seus antecessores fizeram para aproveitar suas melhores soluções e dispensar o acessório 79 CAPÍTULO III MOMENTOS RADICAIS Na divisão proposta dos capítulos deste trabalho esta terceira parte contempla textos escritos nas décadas de 1960 e 1970 como se sabe uma época de grandes transformações sociais e políticas no Brasil Antonio Candido abandonou o cargo de primeiro assistente do professor Fernando Azevedo na cadeira de Sociologia II da Universidade de São Paulo em 1958 quando começou a lecionar Literatura Brasileira na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Assis Em 1960 retornou à USP desta vez como professor colaborador de Teoria Literária e Literatura Comparada tornando se titular em 1974 e aposentandose em 1978 mas orientando teses e dissertações até o início dos anos 1990 O título deste capítulo foi pensado com base nas intenções críticas de Candido nesse período seus ensaios mais engajados foram produzidos durante a ditadura militar Ele mesmo se reconhece como um radical na entrevista concedida a Luiz Carlos Jackson JACKSON 2002 p 130 Para se ter uma idéia em 1965 saiu o livro Literatura e Sociedade em 1970 os textos Dialética da Malandragem e Literatura e Subdesenvolvimento e entre 1973 e 1976 De cortiço a cortiço Nestes ensaios vemos um crítico preocupado com a realidade estética da obra literária mas focalizando especialmente a sociedade brasileira Além disso nessa época Candido participou da revista Argumento censurada pelo regime militar no quarto número e que contava com a participação de diversos intelectuais de esquerda Com relação ao regionalismo a crítica de Candido ganha uma nova configuração Não se tratava mais de colocar criticamente cada escritor no seu devido lugar como fez na Formação mas de evidenciar que a literatura estava apontando um problema social ignorado pelo governo Enquanto o país vivia o milagre econômico e entrava definitivamente na era global certas regiões ainda não eram assistidas pelas mínimas melhorias proporcionadas pela modernização Mas as reflexões de Candido também apontam outra situação com as transformações pelas quais o país passava as peculiaridades dessas regiões acabariam sumindo sendo impelidas pela cidade Por um lado haveria vantagens nisso a vida no campo poderia se tornar mais fácil e agradável Por outro o crítico percebe que as regiões não receberiam essas facilidades 80 rapidamente o que ocorreria na verdade seria uma nova migração populacional do campo para a cidade Sem preparar esta gente para encarar a vida urbana não se conseguiria incorporálos à nova rotina No fundo o crítico associou à literatura as mesmas idéias que explorou em nOs Parceiros do Rio Bonito Mas não adiantemos a reflexão que partirá dos textos a seguir 31 JAGUNÇOS MINEIROS DE CLÁUDIO A GUIMARÃES ROSA Jagunços Mineiros de Cláudio a Guimarães Rosa é um ensaio feito a partir de quatro aulas que Antonio Candido ministrou em 1966 num curso sobre o cangaço na realidade brasileira organizado por José Aderaldo Castello na Faculdade de Filosofia da USP A idéia central do crítico neste texto é a relação que se estabelece entre a violência e a jagunçagem a partir de textos regionalistas que descrevem esta relação A análise contudo se concentra nos textos de autores mineiros o que pode nos dar a idéia de que Candido viu em Minas Gerais uma tradição quanto à literatura regionalista É interessante notar porém que são raros os momentos em que o crítico trata esses textos e autores como regionalistas O assunto do texto não é o regionalismo mas sim a violência explorada pelas obras regionalistas Candido abre o texto afirmando A violência habitual como forma de comportamento ou meio de vida ocorre no Brasil através de diversos tipos sociais de que o mais conhecido é o cangaceiro da região nordestina Mas o valentão armado atuando isoladamente ou em bando é fenômeno geral em todas as áreas onde a pressão da lei não se faz sentir e onde a ordem privada desempenha funções que em princípio caberiam ao poder público CANDIDO 2004 p 99 Em primeiro lugar Candido não faz uma distinção entre cangaço e jagunçagem Os dois casos são sinônimos para o crítico Em segundo o texto pode parecer datado pela afirmação inicial afinal o tipo social do cangaceiro já não existe mais pelo menos na forma como o crítico aqui observa O cangaço e a jagunçagem sumiram do Brasil O que persiste são homens trabalhando para grandes fazendeiros defendendo os latifúndios contra o MST e ladrões de cabeças de gado de certa forma eles são herdeiros dos valentões existentes até a metade do século XX o que é reforçado pela 81 segunda oração embora esses valentões fossem homens livres que trabalhavam quando queriam e que sobreviviam através de sua força Esses fenômenos são nacionais porque não se restringem ao nordeste A seguir Candido começa sua reflexão sobre como a literatura abordou a violência no mundo rural Como estas áreas são geralmente menos atingidas pela influência imediata da civilização urbana é natural que o regionalismo literário que as descreve tenha abordado desde cedo o jagunço e o bandido Com efeito o nosso regionalismo nasceu ligado à descrição da tropelia da violência grupal e individual normais de certo modo nas sociedades rústicas do passado Além disso é preciso mencionar uma influência externa o prestígio do foradalei na literatura romântica CANDIDO 2004 p 99 A síntese acima não deixa dúvidas para o crítico o regionalismo literário é fruto da distância entre o mundo rural e o mundo urbano e da necessidade de descrever literariamente a violência das sociedades rústicas do passado Isso é reforçado pelo poder de sedução e coragem do bandido retratado pelo Romantismo Os melhores personagens ou os mais interessantes eram os bandidos como afirma Candido ao comentar rapidamente As fatalidades de dois jovens de Teixeira e Sousa O índio Afonso de Bernardo Guimarães e O Cabeleira de Franklin Távora A seguir o crítico aventa a possibilidade do romance enquanto gênero literário ter começado pela exploração literária da violência na zona rural já que Joaquim Manuel de Macedo afirmava que O forasteiro publicado em 1855 tinha sido escrito em 1838 Segundo Candido este romance seria cronologicamente então o primeiro romance brasileiro e é um tecido de assaltos e tropelias CANDIDO 2004 p 99 Nada mais natural seguindo as idéias de Candido na Formação o desejo dos brasileiros de terem uma literatura nacional que expressasse os problemas nacionais também se concretiza através do surgimento do romance explorando algo que o Brasil tinha de muito peculiar o mundo rural O crítico justifica a escolha de Minas Gerais para a análise por ser o estado mais diversificado quanto aos tipos humanos e a sua paisagem física já que faz divisa com os outros estados do Sudeste mas também com estados do CentroOeste e Nordeste Goiás e Bahia respectivamente Segundo Candido essa variedade de regiões favorece muitos tipos de banditismo e de violência endêmica 82 Haveria mesmo certas modalidades que se poderiam qualificar de propriamente mineiras como é o caso dos contrabandistas de ouro e pedras preciosas do século XVIII criando problemas graves de repressão ou ainda o dos salteadores do Caminho das Minas tornando perigosa esta via comercial que ligava o interior ao Rio e contra os quais lutou com êxito o alferes Joaquim José da Silva Xavier CANDIDO 2004 p 100 Minas realmente se apresenta como um estado peculiar Apesar do contrabando ter sido prática comum em vários estados do país foi para lá que migraram a partir do século XVII milhares de aventureiros dispostos a enriquecer facilmente com o ouro E as fronteiras de Minas contribuem para essa diversidade o que acabou sendo explorado por diversos escritores Nesse tempo do seu fastígio Minas Gerais foi uma área de violência e fraude a partir da anomia dos primeiros anos do século XVIII disciplinada pouco a pouco pela ordem pública Esta circunstância aparece na literatura desde aquele período como se pode ver no Vila Rica de Cláudio Manuel da Costa terminado provavelmente em 1773 que é no fundo a primeira descrição dos bandos de jagunços e seus conflitos às ordens de mandões tão poderosos quanto Manuel Nunes Viana que no final do poema presta obediência ao governador Antonio Albuquerque Coelho de Carvalho CANDIDO 2004 p 100 A idéia de tradição dentro de Minas Gerais realmente parece se confirmar desde o início do sistema literário brasileiro como proposto por Candido o estado teve representantes preocupados com a região e suas peculiaridades dentre as quais se destacava a violência dos jagunços que lutavam pelo ouro O regionalismo literário portanto parece ter nascido entre nós em Minas Gerais E três forças protagonizavam esse combate o governo o povo e os bandidos Enquanto o povo já tinha noções de polimento o governo tentava regular a baderna promovida pelos bandidos O poema Vila Rica canta a vitória da ordem pública sobre este estado de coisas mas deixa ver que o movimento se fazia tanto do lado oficial quanto do lado dos caudilhos rebeldes e dos francos desordeiros por meio da ação dos valentões freqüentemente formando bandos a serviço dos chefes locais precursores dos coronéis dos nossos dias CANDIDO 2004 p 101 O banditismo estava diretamente ligado ao coronelismo como reflete Candido ao citar uma passagem do poema em que os três irmãos Pereiras se põem às ordens do 83 governador onde vemos um esboço do coronelismo e da capangagem CANDIDO 2004 p 101 Em seguida o crítico faz observações sobre duas obras de Bernardo Guimarães Maurício ou Os paulistas em São João dEl Rei 1877 e O bandido do rio das Mortes 1904 continuação da primeira Segundo Candido os romances não tratam de jaguncismo mas de bandos de antecipados patriotas contra portugueses CANDIDO 2004 p 101 De certa maneira portanto os livros de Bernardo associam o patriotismo ao regionalismo Apesar do título do segundo romance não há nele a figura típica do bandido segundo o crítico pois o protagonista é um foragido configurandose como o foradalei tão caro ao Romantismo Mesmo assim há a organização da violência e o recrutamento de marginais CANDIDO 2004 p 101102 Comentando o romance O mameluco Boaventura 1929 de Eduardo Frieiro Candido observa que os representantes da ordem se confundem com os bandidos quanto à forma como lidam com estes para conter os atos criminosos entrevemos que no mundo da violência então como agora há pouca variação de método entre transgressores e defensores da lei E mais que o indivíduo de prestígio armado e acolitado pode representar uma forma primária de controle adaptada às regiões sem peia e às épocas de formação CANDIDO 2004 p 102 Se a lei é imposta da mesma forma como se cometem os crimes ou seja com violência é difícil abolir a prática criminosa dos bandidos Esta é a idéia que impera na sociedade contemporânea Um bom exemplo disso é a última invasão dos Estados Unidos no Iraque Enquanto a ordem não for lá estabelecida de forma rápida eficaz e organizada os soldados americanos permanecerão mantendo a ordem à base da truculência Na seqüência o crítico faz uma distinção entre bandidos jagunços e capangas Perguntemos agora de que maneira surgem os tipos de transgressores tanto o bandido salteador e assassino quanto o jagunço que pode ser mandatário isolado de crimes e violências ou o capanga o guardacostas que serve como um régulo como se dizia integrando o seu bando de asseclas CANDIDO 2004 p 102 O jagunço não é necessariamente um bandido portanto e também se diferencia do capanga ou do guardacostas pois tem uma tendência para a liberdade não trabalha 84 sob o comando de outrem Para responder a pergunta do trecho acima Candido observa que a violência surge da banalidade De um motivo mínimo na sua futilidade inesperada pode surgir o criminoso e daí o profissional do crime Um dos mais típicos é a briga ocasional em que alguém mata sem vontade nem predisposição e a seguir cumpre pena ou se põe à margem da sociedade CANDIDO 2004 p 103 Para embasar a reflexão Candido lembra as obras de Mario Palmério Vila dos Confins e Amadeu de Queirós Histórias do carimbamba que contêm personagens que passam por situações como as descritas pelo crítico relembrando ainda Bernardo Guimarães O índio Afonso e Afonso Arinos nos contos Pedro Barqueiro e Joaquim Mironga Ao analisar Maleita 1934 romance de estréia de Lucio Cardoso o crítico observa como a ordem é estabelecida através da violência a que o narrador se vê obrigado a executar já que esta era a lei da cidade que estava ajudando a construir Mais tarde com as instituições organizadas o coronelismo toma o lugar da lei criando uma violência constitucional nas palavras do crítico o que força a saída do narrador Candido conclui a primeira parte desse ensaio com uma reflexão que será aplicada às próximas obras que analisou no texto especificamente as de Guimarães Rosa e Mario Palmério Dessas narrativas depreendemos que o nome de jagunço pode ser dado tanto ao valentão assalariado e ao camarada em armas quanto ao próprio mandante que os utiliza para fins de transgressão consciente ou para impor a ordem privada que faz as vezes de ordem pública De qualquer forma não se consideram jagunços os ladrões de gado os contrabandistas os bandidos independentes Embora haja flutuação do termo a idéia de jaguncismo está ligada à idéia de prestação de serviço de mandante e mandatário sendo típica nas situações de luta política disputa de famílias ou grupos CANDIDO 2004 p 105 Creio que o ponto principal do parágrafo acima é a percepção de que nas regiões mais afastadas do país a ordem privada vem cumprindo o papel da ordem pública Era assim antigamente e continua sendo assim ainda hoje Mas com essas palavras o crítico sintetizou algumas das principais características da sociedade rural brasileira e por conseqüência do regionalismo literário brasileiro que a descreveu O jagunço era um homem livre que podia estar trabalhando a serviço de algum coronel mas também 85 podia corresponder ao próprio coronel Mas o jagunço apesar de livre atuava em bando nunca sozinho pois aí temos o bandido Com relação a isto Candido argumenta ainda que o banditismo sempre teve grande apelo popular o que o tornou fonte inspiradora de causos e modas de viola e de uma subliteratura CANDIDO 2004 p 105 Antes de entrar na obra de Palmério e Rosa o crítico analisa rapidamente Guapé reminiscências 1933 de Passos Maia Segundo Candido este romance demonstra como a ordem privada se prepara para usar a violência contra a violência agrupando jagunços que executarão a justiça sertaneja sob a forma de vingança privada CANDIDO 2004 p 106 O crítico comenta ainda que um caso contido nesta narrativa inspirado num acontecimento de larga repercussão no sudoeste de Minas é o mote para Chapadão do Bugre 1966 de Mario Palmério o massacre dos chefes políticos de Santana do Boqueirão no edifício do Fórum pelo truculento delegado militar capitão Eucaristo Rosa desfecho de uma atmosfera de expectativa e tensão muito bem preparada CANDIDO 2004 p 107 Com isso Candido observa a relação entre o coronelismo e a utilização do crime como ferramenta da política Chapadão do Bugre começa pela história de um destino individual para se alargar pouco a pouco em decorrência das vicissitudes que o envolvem e que se enquadram num panorama bem traçado do coronelismo mineiro sob as suas formas mais drásticas as que suscitam organizam e disciplinam o crime como instrumento de dominação política No desenvolvimento do enredo surgem diversos fatores do jaguncismo pois o pretexto de tudo é o dentista prático José de Arimatéia homem pacato que traído pela noiva com o filho do patrão e protetor matao foge e se torna jagunço eficiente do coronel Americão Barbosa CANDIDO 2004 p 107 A síntese acima parece poder ser aplicada a quase toda literatura regionalista surgida no século XX A maior parte dos autores explorou a violência vinculada à política a partir de uma história individual de Simões Lopes Neto ao João Ubaldo Ribeiro de Sargento Getulio passando por Guimarães Rosa Mario Palmério e Jorge Amado temos coronéis fazendeiros pequenos e grandes latifundiários enfim que suscitam organizam e disciplinam o crime como instrumento de dominação política Violência e política no mundo regional parecem indissociáveis portanto Candido ainda aprofunda a análise dessa sociedade violenta apresentada no romance de Palmério 86 Mas apesar desta moldura individual deste caso de amor e sangue gerando a ferocidade para o leitor interessado no jaguncismo importa sobretudo o panorama social de Santana do Boqueirão nome que deve cobrir uma espécie de síntese ficcional de diversas localidades do sudoeste de Minas e do Triângulo Mineiro Aqui o autor faz a descrição pitoresca e algo caricatural dos costumes sertanejos mormente a política de campanário que já tratara com bastante graça no romance anterior Vila dos Confins CANDIDO 2004 p 107108 Não só Santana do Boqueirão é uma síntese ficcional do interior mineiro o romance de Palmério demonstra como se forma e se perpetua o coronelismo segundo o crítico Em terras pouco colonizadas a ordem privada precisa impor a ordem pública e a demonstração disso parece ser para Candido o grande mérito da obra de Palmério A parte mais interessante de Chapadão do Bugre mostra de que maneira se instala e procura eternizarse a ordem social torcida dos coronéis de Santana e vilas vizinhas tendo por base a imposição do arbítrio e por instrumento o que se poderia chamar exploração do trabalho criminoso do jagunço individual CANDIDO 2004 p 108 Ao estudar o cangaço na realidade brasileira focalizando a literatura o crítico estava desenvolvendo uma análise comum em sua obra a da relação entre literatura e sociedade O que Chapadão do Bugre retrata é a instituição do coronelismo atividade comum em quase todos estados brasileiros Mas a narrativa vai além demonstrando que não há outra forma de iniciar a colonização das regiões mais afastadas senão com a imposição da ordem pelos mais ricos o que acaba gerando conseqüências mais graves Tratase da ordem a princípio necessária na fase de desbravamento pois assegura através das instâncias privadas que são principalmente os grupos familiares e suas clientelas um funcionamento sucedâneo de instituições que o poder público ainda é incapaz de assegurar A seguir esta ordem se torna apenas arbítrio mantendo o parasitismo dos grupos dominantes e impedindo o progresso A violência se organiza de tal modo que o conselheiro do chefe político coronel Americão Barbosa o engenhoso guardalivros Clodulfo de Oliveira tem a idéia de arregimentar os jagunços num verdadeiro sindicato do crime que já fora literariamente explorado nOs contratadores da morte de Antonio Celestino fornecendo matadores aos interessados em toda redondeza mediante pagamento CANDIDO 2004 p 108 87 A organização dos coronéis acaba por gerar a organização dos criminosos Uns acabam se confundindo com os outros aumentando a tensão E a reflexão de Candido exemplifica não só como o coronelismo se perpetua mas como continua imperando mesmo depois da sociedade estar organizada com suas instituições públicas funcionando Por isso é comum encontrarmos em obras ficcionais personagens que são representantes dessa ordem pública mas que têm medo e acabam seguindo as ordens de algum coronel inclusive em obras carregadas de comicidade como O Auto da Compadecida de Ariano Suassuna O crítico comenta ainda as habilidades desses jagunços contratados elas iam da simples persuasão para a conquista de votos numa eleição até chacinas e assassinatos de inimigos políticos elementos explorados no romance de Passos Maia que conta que não apenas se faziam eleições com base em intimidações para as quais eram usados facínoras ou meros correligionários avalentoados mas que se podia alugar gente especializada para tais ocasiões CANDIDO 2004 p 108 Assim Candido conclui que a relação entre os coronéis e os representantes do Estado acaba se estreitando Diante desse estado de coisas Chapadão do Bugre faz ver como o poder central do Estado dependente dos coronéis graças ao mecanismo do voto acaudilhado exerce uma ação antes de usufruto político do que de restrição do coronelismo As restrições que há são meras perseguições a um grupo incômodo ou adverso em benefício de outro que deseja o seu lugar para agir do mesmo modo CANDIDO 2004 p 109 Por meio da persuasão executada pelos jagunços os coronéis conseguem dominar o poder do Estado estabelecendo as leis conforme os seus desígnios Mesmo com a troca de governo a situação se mantém a mesma porque embora os interesses sejam diferentes a forma como eles são tratados é igual a dos governantes anteriores que tentarão a todo custo voltar ao poder elementos todos explorados segundo o crítico na obra de Palmério Candido afirma que Chapadão do Bugre apresenta três ordens de realidade a do jagunço individual a dos coronéis e suas famílias e a da força pública que corta o fio dos destinos individuais e procura abalar o sólido feixe de interesses de grupo Como critério para a ação de todos o romancista põe em cena alguns atos de jaguncismo que mostram ao leitor a função do jagunço na 88 sociedade rústica desde as motivações psicológicas até a inserção na vida coletiva Assim temos em Chapadão do Bugre uma visão realista e pitoresca do jaguncismo integrado em seu contexto social e em seus aspectos pessoais com a descrição completa da formação atuação e sentido da ação individual do jagunço no quadro dos interesses do mandonismo E com isto deixamos para trás o aspecto documentário que nos vem norteando porque vamos agora entrar noutro mundo CANDIDO 2004 p 110 Apesar do aspecto documentário o romance de Palmério incorporou todos os elementos necessários à composição literária da realidade rústica de uma região em formação Por isso Candido afirma que a obra tem uma visão realista e pitoresca do jaguncismo E o outro mundo em que se vai entrar a seguir é o mundo de Grande sertão veredas Começa assim o comentário do crítico sobre o romance de Guimarães Rosa De fato em Grande sertão veredas ocorre algo diametralmente oposto Não se trata de livro realista nem pitoresco embora pitoresco e realismo nele se encontrem a cada passo mas de um livro carregado de valores simbólicos onde os dados da realidade física e social constituem ponto de partida Esta circunstância parece decorrer do princípio de reversibilidade Em função dele assim como a geografia desliza para o símbolo e o mistério apesar da sua rigorosa precisão o jagunço oscila entre o cavaleiro e o bandido tudo se unindo no fecho de abóbada que é a mulherhomem Diadorim CANDIDO 2004 p 111 Desde a publicação de Grande sertão veredas Antonio Candido vinha encarando o livro como um marco paradoxal da literatura brasileira porque ao mesmo tempo que o livro não é realista nem pitoresco encontramos elementos de realismo e pitoresco a todo instante Ao mesmo tempo em que o jagunço é um cavaleiro é também um bandido graças segundo o crítico aos valores simbólicos que o livro carrega que estabelecem esse princípio de reversibilidade que acarreta o deslizamento da geografia para o símbolo e o mistério Mas tudo isso tem um ponto de partida a realidade física e social O sertão é o mundo segundo Riobaldo narrador e protagonista do romance Com isso a realidade física e social do sertão precisa englobar todos os defeitos do homem e deve ser isto que acarreta a utilização da expressão por Candido princípio de reversibilidade O jagunço da narrativa sintetiza o medo e a coragem a fraqueza e a força a hipocrisia e a educação do homem de qualquer homem já que o sertão é o mundo 89 naquele sertão o jaguncismo pode ser uma forma de estabelecer e fazer observar normas o que torna o jagunço um tipo especial de homem violento e por um lado o afasta do bandido Por isso é que sendo as condutas tão relativas e o mundo tão cheio de reversibilidade não há barreiras marcando a separação O mesmo homem pode ser hoje solado e a amanhã jagunço ou o contrário CANDIDO 2004 p 112 Para Candido o homem retratado em Grande sertão parece ser uma espécie de síntese da humanidade um homem que carrega consigo todas as contradições do ser humano Apesar disso sua constituição está diretamente vinculada ao meio em que vive O que o torna extremamente humano é a pena do autor conforme observa o crítico O jagunço é portanto aquele que no sertão adota uma certa conduta de guerra e aventura compatível com o meio embora se revista de atributos contrários a isto mas não é necessariamente pior do que os outros que adotam condutas de paz atuam teoricamente por meios legais como o voto e se opõem à barbárie enquanto civilizados Ao contrário parece freqüentemente que o risco e a disciplina dão ao jagunço uma espécie de dignidade não encontrada em fazendeiros estadonhos solertes aproveitadores da situação que o empregam para seus fins ou o exploram para maior luzimento da máquina econômica CANDIDO 2004 p 112113 Diferente de Mario Palmério Guimarães Rosa parece ter conseguido captar a personalidade do jagunço As práticas do jaguncismo são executadas de acordo com as necessidades que se apresentam A sua conduta de guerra e aventura compatível com o meio é pautada justamente por esse meio em que vive E o jagunço é mais humano do que os fazendeiros estadonhos porque aquele apresenta essa personalidade dirigida de acordo com a situação enfrentada enquanto estes têm suas convicções formadas Por isso Candido ainda reflete É interessante notar a propósito que quando ambos entram em contacto o risco ao contrário do que seria normal é todo do jagunço não do homem de ordem Este constitui uma ameaça à natureza do jagunço um perigo de reduzilo a peça de engrenagem destruindo a sua condição de aventura e liberdade CANDIDO 2004 p 113 90 Para embasar o argumento o crítico relembra a manipulação de sêo Habão sobre ZéBebelo e seu bando e a de Timóteo Regimildiano da Silva o Zabudo que hospeda o bando e engana Riobaldo O trabalho dos jagunços para os coronéis pode reduzir a liberdade dos jagunços pode ao fim acabar com o jaguncismo Diante dessas fortalezas do lucro e da ordem sentimos vagamente que ser jagunço é mais reto quando mais não fosse porque o jagunço vive no perigo Tanto assim que se há fazendeiros que exploram para seus fins o jaguncismo há pelo menos um o severo Medeiro Vaz que assume papel mais digno ao queimar simbolicamente o que o prendia na terra e adotar a condição de jagunço como forma de viver como modo de conceber a vida perigosa que pode ser uma busca de valores do bem e do mal no sertão CANDIDO 2004 p 113 A personalidade do jagunço não condiz com a do fazendeiro este trai engana manipula a seu bel prazer aquele sem capacidade para essas ações leva sua vida encarando os contratempos que aparecem e resolvendoos da maneira que se mostrar mais adequada seja através da palavra seja através da luta Essa síntese do jagunço em Guimarães Rosa levou Candido a afirmar que há nele um ser jagunço como forma de existência como realização ontológica no mundo do sertão CANDIDO 2004 p 113 114 Sem prejuízo dos demais aspectos inclusive os rigorosamente documentários este me parece importante como chave de interpretação Ele encarna as formas mais plenas de contradição no mundosertão e não significa necessariamente deformação pois este mundo como vem descrito no livro traz imanentes no bojo ou difusas na aparência certas formas de comportamento que são baralhadas e parciais nos outros homens mas que no jagunço são levadas a termo e se tornam coerentes O jagunço atualiza dá vida a essas possibilidades atrofiadas do ser porque o sertão assim o exige E o mesmo homem que é jagunço seria outra coisa noutro mundo CANDIDO 2004 p 114 Para compreender Grande sertão veredas portanto é imprescindível compreender que ser jagunço é uma forma de existência é algo imanente ao homem do sertão Como dito acima o jagunço para o crítico é um homem contraditório com uma personalidade determinada pelo local que habita e pelas pessoas com que convive Daí Candido dizer que as formas contraditórias de comportamento se tornam coerentes no jagunço Ser jagunço é ser contraditório Parafraseando o que foi dito acima a contradição é algo imanente ao homem do sertão por isso não há incoerência 91 Mas o crítico reconhece que todos esses elementos ainda apareciam em outras obras regionalistas como Chapadão do Bugre Talvez seja estranho perceber apenas quando trata de Grande sertão Candido fale em ser jagunço mas o que realmente distingue este romance dentro do regionalismo é o sertão transformado em espaço privilegiado e único para que nele exista o jagunço Aqui em Grande sertão ocorrem quase apenas jagunços agrupados em bandos enormes vivendo em contacto com outros jagunços obedecendo a chefes jagunços movendose conforme uma ética de jagunços num mundo separado do resto do mundo descartadas as cidades e suas leis de tal forma que depois de embalados na leitura só por um esforço de reflexão podemos pensar em termos históricos ou sociológicos como até aqui tínhamos feito nestas aulas Escritor genial Guimarães Rosa supera e refina o documento que não obstante conhece exaustivamente e cuja força sugestiva guarda intacta por meio da sublimação estética Por isso não basta procurar nele em que medida a ficção vale como transposição dos fatos mas também em que medida o comportamento humano do jagunço aparece como um modo de existência como forma de ser no mundo encharcando a realidade social de preocupações metafísicas CANDIDO 2004 p 115 A reflexão acima é objetiva ao declarar que o mundo de Grande sertão é um mundo tão distante do resto do mundo que é difícil relacionálo à análise histórica e sociológica É como se o mundo estivesse refeito no sertão é como se este mundo estivesse fechado em si mesmo provocando as preocupações metafísicas Por isso Candido argumenta que provavelmente ninguém se identifica com heróis de outros autores regionalistas No entanto todos nós somos Riobaldo que transcende o cunho particular do documento para encarnar os problemas comuns da nossa humanidade num sertão que é também o nosso espaço de vida Se o sertão é o mundo como diz ele a certa altura do livro não é menos certo que o jagunço somos nós CANDIDO 2004 p 115 Esta a capacidade fantástica do romance de Guimarães Rosa fazer com que qualquer homem por mais afastado que esteja daquele espaço daquela realidade consiga se identificar com os dramas de seu protagonista O sertão do livro é mundo à parte mas é a síntese do nosso próprio mundo por isso somos o jagunço como defende o crítico 92 Mas a origem desse ser jagunço segundo Candido já estava em A hora e a vez de Augusto Matraga conto de Sagarana 1946 A oportunidade a hora e vez de nhô Augusto consiste em fazer o bem e com isto assegurar a salvação da alma por meio da violência destruidora do ato de jagunço matador que ele reprimira duramente até então com medo de perdêla O tiroteio e o duelo a faca durante o qual mata Joãosinho BemBem e é por ele morto como em Grande sertão Hermógenes e Diadorim surge ao modo de um prêmio de Deus CANDIDO 2004 p 116117 O jagunço não é necessariamente mau portanto A sua maldade é praticada através da violência para sobrevivência ou execução de vingança Por isso Candido relaciona na seqüência o jaguncismo a um símbolo Neste conto vemos de que maneira pode emergir da situação comum de jaguncismo um sentido voltado para o símbolo No momento em que se faz jagunço nhô Augusto sobe em vez de cair pois está adotando uma forma justa de comportamento cujo resultado final é paradoxalmente suprimir o jaguncismo como ocorrerá também em Grande sertão com o comportamento de Riobaldo Ser jagunço tornase além de uma condição normal no mundosertão onde a vontade se forma mais forte que poder do lugar uma opção de comportamento definindo um certo modo de ser naquele espaço Daí a violência produzir resultados diferentes dos que esperamos na dimensão documentária e sociológica tornandose por exemplo instrumento de redenção CANDIDO 2004 p 117 Ser jagunço no sertão de Guimarães Rosa não é destino é opção de comportamento A violência de Grande sertão ou de A hora e a vez de Augusto Matraga é uma violência redentora porque não se trata de utilizála de maneira banal ou prazerosa mas como um dos elementos dessa opção Por isso como analisa o crítico em Grande sertão veredas fica mais claro este aspecto do jagunço como modo de ser e reajuste da personalidade a fim de operar num plano superior já que Riobaldo passa por uma transformação simbolizada pelo pacto com o diabo o que o aproxima do mal e lhe dá a coragem e a força necessárias para combater Hermógenes e Ricardão além de alterar seu comportamento tornandose mais violento e intransigente com os que se opunham a ele e com os inimigos Essa transformação faz com que Riobaldo tornese plenamente jagunço Guimarães Rosa parece ter querido mostrar que o ato decorre antes de mais nada de um modo peculiar de ser e se torna uma construção da 93 personalidade no mundosertão CANDIDO 2004 p 117 Assim o crítico fala na transcendência de Riobaldo O pacto deixa ver de maneira mais clara o enxerto de um jagunço simbólico no jagunço comum e a sua função transformadora é nítida no cuidado com que o autor baralha bruscamente as condições normais de espaço Isto a violência adquirida após o pacto talvez possa ser considerado como um sinal a mais do seu jaguncismo peculiar Riobaldo seria um instrumento de forças que o transcendem e nada mais faz do que ajustar o ser à craveira que permite realizar a sua missão fazer o bem através do mal nutrindo com as operações do ódio um amor desesperado e imenso CANDIDO 2004 p 118 Quando Riobaldo não tem mais medo do jaguncismo tornase um jagunço com forças que o transcendem como afirma Candido E essa transcendência engloba fazer o bem através do mal praticar atos de uma vingança que não é sua mas de Diadorim como também observa o crítico No fundo ele é quem força Riobaldo a transformarse embora hesite depois da transformação E a transformação de Riobaldo transforma também o mundo pela idéia de Diadorim de raptar a mulher de Hermógenes este e Ricardão vão à procura do bando de Riobaldo algo que não aconteceu com Medeiro Vaz e ZéBebelo que os procuraram mas não os localizaram invertendo a situação da narrativa graças ao pacto agora é o mundo que vem a Riobaldo CANDIDO 2004 p 119 Mais do que isso segundo o crítico Riobaldo passou a reger o mundo depois do pacto Essa ascensão de Riobaldo o tornou mais humano como observa Candido Podemos repetir que há em Guimarães Rosa uma ontologia peculiar do jagunço que sem prejuízo e mesmo por causa dos aspectos sociológicos muito vivos parece o traço mais característico do seu universo ficcional Por isso o seu jagunço difere dos que aparecem noutros livros brasileiros e não espanta que desde o aparecimento de Grande sertão tenha sido encarado por alguns críticos como forma de paladino a ser aproximado da ficção medieval Isto significa que Guimarães Rosa tomou um tipo humano tradicional em nossa ficção e desbastando os seus elementos contingentes transportouo além do documento até a esfera onde os tipos literários passam a representar os problemas comuns da nossa humanidade desprendendose do molde histórico e social de que partiram CANDIDO 2004 p 120 94 A base da narrativa de Grande sertão é a realidade e com a reflexão acima Candido consegue demonstrar como se pode analisar sociologicamente o romance Não se trata simplesmente de decalcar a realidade no romance mas de transformála para que se atinja a aproximação como observou anteriormente o crítico entre leitor e protagonista A escolha da primeira pessoa do singular não foi à toa certamente e acabou determinando essa relação conforme o estudioso registra no parágrafo seguinte Em Grande sertão veredas esta operação de alta estética foi possível devido a certos procedimentos ligados ao foco narrativo que por sua vez comanda uma expressividade máxima da linguagem utilizada Tratase com efeito de ver o mundo através dum ângulo de jagunço resultando um mundo visto como mundodejagunço Mundo onde sendo a violência norma de conduta as coisas são encaradas nos seus extremos e as contradições se mostram com maior força No espaço fechado do sertão a vida ganha aspectos projetados pela maneira de ser de Riobaldo que descobre ou redescobre o mundo em função da sua angústia e do seu dilaceramento A narrativa na primeira pessoa favorece a solidariedade entre ambos ao estabelecer uma paridade entre o dilaceramento do narrador e o dilaceramento do mundo que se condicionam e se reforçam mutuamente CANDIDO 2004 p 120121 Aqui Candido já adiantava o centro do argumento do próximo ensaio seu a ser analisado a opção pela narração em primeira pessoa foi fundamental para dar ao texto uma fatura consistente e sem exotismo A história que Riobaldo nos conta não parece ficcional não só porque é como se fôssemos seu interlocutor mas porque dessa forma ele estava nos revelando aspectos de uma linguagem que é extremamente brasileira embora possa não parece à primeira vista além de uma realidade que também é muito brasileira apesar de regional o mundo é visto numa totalidade impressionante na qual ser jagunço foi a condição para compreender os vários lados da vida vistos agora por quem foi jagunço O discurso direto reforça as reflexões de Riobaldo reforça seu caráter e sua experiência primeira pessoa conduzindo a uma presentização do passado a uma simultaneidade temporal que aprofunda o significado de cada coisa parece a condição formal básica de Grande sertão veredas O crítico ainda hesita em afirmar que não só parece mas esta é a condição formal básica da obra Sem ela provavelmente seria apenas mais um romance regionalista e possivelmente pior do que outros E é a partir dessa condição que o leitor faz a sua criação do sertão ou seja é através das palavras de Riobaldo que o sertão se configura na imaginação do leitor Na 95 medida em que o sertão é o mundo e o mundosertão nos está sendo apresentado por um jagunço vivido é através desse jagunço que o criamos Do ângulo do estilo ser jagunço e ver como jagunço constitui uma espécie de subterfúgio ou de malícia do romancista Subterfúgio para esclarecer o mundo brutal do sertão através da consciência dos próprios agentes da brutalidade malícia que estabelece um compromisso e quase uma cumplicidade segundo a qual o leitor esposa a visão do jagunço porque ela oferece uma chave adequada para entrar no mundo sertão Mas sobretudo porque através da voz do narrador é como se o próprio leitor estivesse denominando o mundo de maneira mais cabal do que seria possível aos seus hábitos mentais CANDIDO 2004 p 121 Só com a sua experiência no jaguncismo Riobaldo consegue transmitir o que é ser jagunço e penetrar na compreensão profunda do bem e do mal na trama complicada da vida CANDIDO 2004 p 121 Sem ela o leitor não conseguiria compreender esse mundo porque é um mundo completamente diferente de tudo que se conhece Por isso Candido diz que em tal mundo ser jagunço pode formar a base para ver melhor CANDIDO 2004 p 122 e portanto para demonstrar compreensão Fechando o ensaio o crítico observa que graças ao romance de Guimarães Rosa o leitor brasileiro pôde ter contato com uma região que até então não havia sido elevado à categoria de objeto estético demonstrando a unidade do sertão brasileiro irmanando a fisionomia social de zonas que imaginávamos separadas CANDIDO 2004 p 122123 E para comprovar que o romance é meticulosamente plantado na realidade física histórica e social da região especificamente do norte de Minas Candido dá um depoimento pessoal a respeito de um bando de jagunços que viu passar na cidade onde passou sua infância Poços de Caldas e o corpo baleado de um jagunço adolescente que viu carregado por soldados Além disso em municípios próximos aconteceu uma revolução para ajuste de contas entre políticos que ameaçavam assaltar sua cidade Seu pai só e desarmado mas muito calmo recusava sair de casa apesar de visado Afinal não vieram e ele foi a uma centena de quilômetros de distância buscar para a defesa da cidade carabinas cedidas por um oficial cujo nome vem referido por Riobaldo em Grande sertão veredas Creio que esta minúscula experiência pessoal do fim do jaguncismo no sul de Minas no decênio de 1920 talvez ajude os moços a sentirem o ritmo das mudanças em nosso tempo e o interesse com que falei do assunto CANDIDO 2004 p 123124 96 Realmente esta reflexão final esclarece a minúcia que Candido dispensou ao tema no ensaio Mais do que isso demonstra um interesse de ordem pessoal de tentar entender através da literatura o fenômeno do jaguncismo a que ele próprio assistiu além de embasar seus argumentos com base na realidade histórica O sertão não é tão longe quanto se imagina portanto o jaguncismo não acabou há tanto tempo e no fundo ainda persiste sob outro viés 32 A LITERATURA E A FORMAÇÃO DO HOMEM A literatura e a formação do homem é um ensaio escrito para uma conferência que Antonio Candido pronunciou em 1972 e que foi posteriormente publicado na revista Ciência e Cultura O objetivo do crítico era analisar as variações sobre a função humanizadora da literatura isto é sobre a capacidade que ela tem de confirmar a humanidade do homem CANDIDO 2002 p 77 O pressuposto do crítico é que todo ser humano precisa de um pouco de fantasia em algum momento de seu dia pois é através dela que o homem se humaniza Depois de analisar como se relacionam a função psicológica a fantasia e a imaginação no texto literário e como estas contribuem para a formação da personalidade do indivíduo o que também está relacionado a uma função educativa o crítico parte de uma pergunta para nos apresentar um exemplo prático de como a literatura pode humanizar mas também alienar O questionamento de Candido dizia respeito ao fato de a literatura ter uma função de conhecimento do mundo e do ser O crítico registra que muitas correntes estéticas identificam três elementos básicos do que é literatura 1 a literatura é uma forma de conhecimento 2 uma forma de expressão e 3 uma construção de objetos semiologicamente autônomos Apesar da literatura ter uma autonomia de significado Candido argumenta que esta autonomia não a desliga das suas fontes de inspiração no real nem anula a sua capacidade de atuar sobre ele CANDIDO 2002 p 85 Essa reflexão está vinculada diretamente à metodologia analítica de Candido Suas análises sempre partiram das obras literárias para o crítico são elas que determinam como elas mesmas deviam ser examinadas Apesar disso Candido sempre 97 manteve uma preocupação com a relação que as obras mantinham com a realidade Daí toda preocupação que Candido dispensou às obras que analisou especialmente com relação àqueles textos que o despertaram de maneira mais forte como em Jagunços mineiros de Cláudio a Guimarães Rosa quando trata de Grande sertão veredas Para demonstrar como a literatura pode exercer uma função humanizadora e dentro do mesmo estilo literário uma função alienante o crítico apresenta um exemplo de relação das obras literárias com a realidade concreta o regionalismo brasileiro que por definição é cheio de realidade documentária CANDIDO 2002 p 86 A ficção regionalista brasileira preenche os três casos referidos acima ou seja através dela podemos adquirir conhecimento identificar uma forma peculiar de expressão e portanto a construção de um objeto autônomo Por isso Candido argumenta Tratase de um caso privilegiado para estudar o papel da literatura num país em formação que procura a sua identidade através da variação dos temas e da fixação da linguagem oscilando para isto entre a adesão aos modelos europeus e a pesquisa de aspectos locais O Regionalismo foi uma busca do tipicamente brasileiro através das formas de encontro surgidas do contato entre o europeu e o meio americano Ao mesmo tempo documentário e idealizador forneceu elementos para a autoidentificação do homem brasileiro e também para uma série de projeções ideais CANDIDO 2002 p 86 Em texto analisado anteriormente o crítico aventou a possibilidade do romance brasileiro ter iniciado através do regionalismo Mesmo que não tenha sido assim essa tendência para o regional foi decisiva para a configuração da literatura brasileira porque como escreveu Candido acima procurou a sua identidade através da variação dos temas e da fixação da linguagem O regionalismo no Brasil não foi apenas uma tendência literária mas sim uma forma de encontrar identificar e apresentar o tipicamente brasileiro grifado pelo crítico Com essas reflexões poderíamos imaginar que a literatura brasileira teria sido muito mais influenciada pelos modelos europeus caso não tivesse existido o regionalismo O parágrafo seguinte guarda algumas reflexões que podem inicialmente parecer estranhas Candido escreve Mas antes de ir além um parêntese para dizer que hoje tanto na crítica brasileira quanto na latinoamericana a palavra de ordem é morte ao Regionalismo quanto ao presente e menosprezo pelo que foi quanto ao passado Esta atitude é criticamente boa se a tomarmos como um 98 basta à tirania do pitoresco que vem a ser afinal de contas uma literatura de exportação e exotismo fácil Mas é forçoso convir que justamente porque a literatura desempenha funções na vida da sociedade não depende apenas da opinião crítica que o Regionalismo exista ou deixe de existir CANDIDO 2002 p 86 Guimarães Rosa havia falecido há cinco anos quando Candido escreveu este ensaio que é contemporâneo ao Sargento Getulio de João Ubaldo Ribeiro publicado em 1971 O regionalismo estava muito vivo na literatura brasileira estava vendo serem produzidas suas grandes obras Então por que o crítico registra que a palavra de ordem do momento é morte ao Regionalismo Ele explica então que se refere ao regionalismo de exportação e exotismo fácil ou seja o regionalismo dos autores da virada do século XIX para o XX Portanto João Ubaldo Ribeiro Guimarães Rosa e alguns outros poucos autores não são para Candido regionalistas A literatura deles está impregnada de valores e temas regionais mas são obras que transcendem o regionalismo em especial a de Rosa cabe registrar que Candido não tem nenhum conhecido estudo sobre o livro de João Ubaldo E como a existência ou a extinção do regionalismo não dependem da crítica Candido reconhece que há fatores mais fortes para a sua perpetuação Ele existiu existe e existirá enquanto houver condições como as do subdesenvolvimento que forçam o escritor a focalizar como tema as culturas rústicas mais ou menos à margem da cultura urbana O que acontece é que ele se vai modificando e adaptando superando as formas mais grosseiras até dar a impressão de que se dissolveu na generalidade dos temas universais como é normal em toda obra bemfeita E pode mesmo chegar à etapa onde os temas rurais são tratados com um requinte que em geral só é dispensado aos temas urbanos como é o caso de Guimarães Rosa a cujo propósito seria cabível falar num super Regionalismo Mas ainda aí estamos diante de uma variedade malsinada da corrente CANDIDO 2002 p 8687 O Brasil sempre teve traços de atraso muito acentuados com relação aos países da Europa e mesmo com relação a vários países das Américas Esses traços sempre foram explorados pela literatura mas passaram a ser encarados com sensibilidade ao invés de um tratamento exótico como se fossem traços de uma cultura atrasadíssima Os escritores regionalistas perceberam que podiam realizar grandes obras do ponto de vista estético sem cair no pitoresco que tanto irritou Candido e outros críticos em autores como Afonso Arinos e Valdomiro Silveira Mas mesmo assim o crítico é 99 reticente ao afirmar que Guimarães Rosa é regionalista preferindo enquadrálo numa outra classificação que ele reconhece não ser ideal a do superRegionalismo Como veremos no próximo tópico várias dessas idéias de Candido já estavam contidas no ensaio Literatura e Subdesenvolvimento que publicado pela primeira vez em língua portuguesa em 1973 já havia aparecido em francês em 1970 Antes de analisar as obras de Coelho Neto e Simões Lopes Neto para exemplificar a alienação e a humanização na literatura Candido reflete sobre a tensão entre tema e linguagem presente no regionalismo O tema rústico puxa para os aspectos exóticos e pitorescos e através deles para uma linguagem inculta e cheia de peculiaridades locais mas a convenção normal da literatura baseada no postulado da inteligibilidade puxa para uma linguagem culta e mesmo acadêmica O Regionalismo deve estabelecer uma relação adequada entre os dois aspectos e por isso se torna um instrumento poderoso de transformação da língua e de revelação e autoconsciência do país mas pode ser também fator de artificialidade na língua e de alienação no plano do conhecimento do país As duas coisas ocorrem nas diversas fases do Regionalismo brasileiro e eventualmente em obras diferentes do mesmo autor CANDIDO 2002 p 87 Durante muito tempo o grande entrave da literatura regionalista brasileira foi justamente essa tensão entre tema e linguagem A maioria dos autores optava por utilizar o linguajar da região retratada apenas quando os personagens tomavam a voz no discurso direto por exemplo em diálogos Alguns inclusive apresentavam personagens regionais em obras urbanas o que acentuava ainda mais a diferença entre os dois mundos Graciliano Ramos por outro lado realizou uma literatura regional utilizando basicamente a norma culta da língua portuguesa Daí muitos críticos debaterem se sua obra é realmente regional afinal não seria possível escrever um romance regional sem apresentar uma linguagem também regional Para elucidar o caso Candido compara dois contos dos referidos autores a saber Mandoví contido na coletânea Sertão de Coelho Neto e Contrabandista dos Contos Gauchescos de Simões Lopes Lembrando que os dois autores viveram na mesma época e se conheceram Candido afirma Ambos escreveram num momento de grande voga da literatura regionalista quando ela parecia mais autêntica do que outras modalidades porque se ocupava de tipos humanos paisagens e costumes 100 considerados tipicamente brasileiros No conjunto foi uma tendência falsa correspondendo a modalidades superficiais de nacionalismo baseada numa distância insuperada entre o escritor e o seu personagem que ficava reduzido ao nível da curiosidade e do pitoresco Não obstante alguns escritores conseguiram posição bem mais humanizadora Os dois exemplos procuram sugerir as duas posições CANDIDO 2002 p 8788 Candido demonstra a fragilidade da obra regionalista de Coelho Neto ao explicar que o personagem era tratado como mais um acessório da narrativa no meio da descrição paisagem exótica Dessa forma a narrativa transmitia uma sensação de alienação Segundo o crítico O Regionalismo de Coelho Neto cuja obra se desenvolveu na maior parte em outros rumos mostra a dualidade estilística predominante entre os regionalistas que escreviam como homens cultos nos momentos de discurso indireto e procuravam nos momentos de discurso direto reproduzir não apenas o vocabulário e a sintaxe mas o próprio aspecto fônico da linguagem do homem rústico CANDIDO 2002 p 88 Não era apenas o personagem um acessório da narrativa contribuindo para o exotismo mas também todos os seus hábitos sua linguagem e a própria maneira como falava Como observa Candido esse recurso fazia com que se estabelecesse um distanciamento máximo entre o autor e seu personagem entre o homem da cidade e o homem do campo como se ele estivesse querendo marcar pela dualidade de discursos a diferença de natureza e de posição que o separava do objeto exótico que é o seu personagem CANDIDO 2002 p 88 O resultado é um texto desagradável de ser lido com os dois discursos misturados às vezes inclusive no mesmo parágrafo A linguagem empregada irrita o leitor mais exigente porque ela não se decide para que lado vai O procedimento exemplificado com o texto de Coelho Neto é uma técnica ideológica inconsciente para aumentar a distância erudita do autor que quer ficar com o requinte gramatical e acadêmico e confinar o personagem rústico por meio de um ridículo patuá pseudorealista no nível infrahumano dos objetos pitorescos exóticos para o homem culto da cidade Digo pseudorealista porque na verdade o que ocorre é uma dualidade de critérios Com efeito ao narrador ou personagem cultos de classe superior é reservada a integridade do discurso que se traduz pela grafia convencional indicadora da norma culta CANDIDO 2002 p 89 101 É claro que a posição de Coelho Neto não lhe permitia agir de outra forma afinal era ligado ao grupo parnasiano e praticava uma linguagem também parnasiana Dando aos personagens humildes o linguajar da região incorporando aspectos fônicos na escrita dessa linguagem e reservando a erudição ao narrador em terceira pessoa Coelho Neto não só agradava aos leitores pretensamente cultos da época como também fazia com que esses leitores se sentissem ainda mais cultos que realmente eram Como registra Candido os personagens de boa situação social não têm sotaque e não têm a sua linguagem deformada assumindo o estado ideal de dicionário Quando ao contrário marca o desvio da norma no homem rural pobre o escritor dá ao nível fônico um aspecto quase teratológico que contamina todo o discurso e situa o emissor como um ser à parte um espetáculo pitoresco como as árvores e os bichos feito para contemplação ou divertimento do homem culto que deste modo se sente confirmado na sua superioridade Em tais casos o Regionalismo é uma falsa admissão do homem rural ao universo dos valores éticos e estéticos CANDIDO 2002 p 8990 Este foi portanto o pior tipo de regionalismo literário desenvolvido no Brasil Mesmo que a intenção de escritores como Coelho Neto não fosse tratar seus personagens de maneira desumana ao contrário como registra Candido era difícil para o autor perceber que não estava executando uma literatura humanizadora Mesmo o caso positivo analisado por Candido Simões Lopes Neto talvez não tenha escrito sua literatura consciente de que seus colegas regionalistas não humanizavam seus personagens De qualquer forma Simões Lopes conseguiu solucionar um problema grave da literatura regionalista ao dar voz diretamente a um homem do campo conhecedor de sua terra e de seus costumes Simões Lopes Neto começa por assegurar uma identificação máxima com o universo da cultura rústica adotando como enfoque narrativo a primeira pessoa de um narrador rústico o velho cabo Blau Nunes que se situa dentro da matéria narrada e não raro do próprio enredo como uma espécie de Marlowe gaúcho Esta mediação nunca usada por Coelho Neto encastelado numa terceira pessoa alheia ao mundo ficcional que hipertrofia o ângulo do narrador culto atenua ao máximo o hiato entre criador e criatura dissolvendo de certo modo o homem culto no homem rústico Este deixa de ser um ente separado e estranho que o homem culto contempla para tornarse um homem 102 realmente humano cujo contato humaniza o leitor CANDIDO 2002 p 9091 A técnica empregada nos Contos Gauchescos e em outros textos de seu autor faz com que não haja distanciamento entre leitor e narrador ou no mínimo com que o homem culto não se sinta superior ao homem rústico Pelo contrário aquele acaba vendo neste um sábio um homem com quem se pode conhecer e aprender coisas novas Como observa Candido com a utilização do narrador fictício fica evitada a situação de dualidade porque não há diferença de cultura entre quem narra e quem é objeto da narrativa CANDIDO 2002 p 92 Simões Lopes Neto utilizou poucas técnicas exploradas por outros escritores como Coelho Neto Por exemplo são raras as expressões reproduzidas fielmente da fala como por exemplo o escuite do conto O negro Bonifácio Além disso quanto à sintaxe seu português é culto apenas o vocabulário é localista Talvez por causa disso o crítico observe que No entanto aí está um ritmo diferente estão certos vocábulos reveladores e ligeiras deformações prosódicas construindo uma fala gaúcha estilizada e convincente mas ao mesmo tempo literária esteticamente válida Para o seu narrador Blau Nunes o autor tinha dois extremos possíveis ou deformar as palavras e grafar toda a narrativa segundo a falsa convenção fonética usual em nosso Regionalismo de que vimos um exemplo em Coelho Neto ou adotar um estilo castiço registrado segundo as convenções da norma culta Simões Lopes Neto rejeitou totalmente o primeiro e adaptou sabiamente o segundo conseguindo um nível muito eficiente de estilização Graças a isto o universo do homem rústico é trazido para a esfera do civilizado CANDIDO 2002 p 92 As soluções de Simões Lopes acabaram sendo decisivas certamente para o surgimento de Guimarães Rosa que soube aproveitar o melhor de cada acerto de Simões para transcendêlo Talvez Candido não situe Simões e Rosa no mesmo grupo porque mesmo a obra do gaúcho sendo de alta qualidade ele nunca escreveu um romance como fez o mineiro Pode parecer um preconceito mas o fato é que quando o críticos falam de Guimarães Rosa exaltam especialmente Grande sertão veredas Como vimos nos textos de Candido das décadas de 40 e 50 o deslumbre do crítico com o romance faz com que os contos de Sagarana sejam relegados a segundo plano Mesmo assim foi Simões quem conseguiu fazer o movimento de aproximação entre o 103 homem rústico e o civilizado e alçou a literatura regionalista brasileira a um novo patamar 33 LITERATURA E SUBDESENVOLVIMENTO Literatura e Subdesenvolvimento apareceu pela primeira vez em tradução francesa em 1970 e em língua espanhola em 1972 No Brasil o texto foi publicado pela primeira vez em 1973 na primeira edição da revista Argumento que Antonio Candido ajudou a criar e com a qual colaborou até ser censurada pela ditadura militar no ano seguinte O foco da análise de Candido no ensaio é a relação entre a arte e a cultura em especial a literatura e a situação social dos países latinoamericanos O ensaio foi encomendado pela Unesco que em 1966 iniciou o empreendimento de estudar as culturas da América Latina em suas expressões literárias e artísticas a fim de determinar as características de tais culturas MORENO 1979 p XI Partindo de um argumento de Mario Vieira de Mello do livro Desenvolvimento e Cultura O Problema do estetismo no Brasil de 1963 Candido explica que até 1930 predominava no Brasil a noção de país novo que ainda não pudera realizarse mas que atribuía a si mesmo grandes possibilidades de progresso futuro CANDIDO 2000 p 140 Na época em que o texto foi escrito como observa o crítico o que predominava era a idéia de país subdesenvolvido Este termo deixou de ser utilizado devido a questões politicamente corretas tendo sido substituído por país em desenvolvimento mas o que caracteriza um e outro termo continua igual Segundo Candido a idéia de país novo produz na literatura algumas atitudes fundamentais derivadas da surpresa do interesse pelo exótico de um certo respeito pelo grandioso e da esperança quanto às possibilidades CANDIDO 2000 p 140 141 Talvez aí esteja a justificativa para a efusão de obras regionalistas no Brasil e em outros países da América Latina especialmente na virada do século XIX para o XX Esse estado de euforia foi herdado pelos intelectuais latino americanos que o transformaram em instrumentos de afirmação nacional e em justificativa ideológica A literatura se fez linguagem de celebração e terno apego favorecida pelo Romantismo com apoio na hipérbole e na transformação do exotismo em estado de alma 104 A idéia de pátria se vinculava estreitamente à de natureza e em parte extraía dela a sua justificativa Ambas conduziam a uma literatura que compensava o atraso material e a debilidade das instituições por meio da supervalorização dos aspectos regionais fazendo do exotismo razão de otimismo social CANDIDO 2000 p 141 O crítico aí apontava uma justificativa que poderia ter utilizado na Formação da Literatura Brasileira para explicar a exploração excessiva do exotismo e do pitoresco na literatura regionalista O atraso econômico político e social era atenuado pela natureza especial que ganhava contornos requintados nas artes Era como se exaltando a peculiaridade da paisagem as dificuldades acarretadas pelo atraso fossem esquecidas um dos pressupostos ostensivos ou latentes da literatura latinoamericana foi esta contaminação geralmente eufórica entre a terra e a pátria considerandose que a grandeza da segunda seria uma espécie de desdobramento natural da pujança atribuída à primeira CANDIDO 2000 p 141142 Mas Candido observa que também havia intelectuais preocupados com o atraso e que viam um paradoxo entre a desorganização das instituições e as grandiosas condições naturais para usar suas expressões O crítico ressalta os aspectos do atraso que atingiu um ponto alto também devido à visão alienante de que se a terra era linda a pátria seria superior Ora dada esta ligação causal terra bela pátria grande não é difícil ver a repercussão que traria a consciência do subdesenvolvimento como mudança de perspectiva que evidenciou a realidade dos solos pobres das técnicas arcaicas da miséria pasmosa das populações da sua incultura paralisante A visão que resulta é pessimista quanto ao presente e problemática quanto ao futuro e o único resto de milenarismo da fase anterior talvez seja a confiança com que se admite que a remoção do imperialismo traria por si só a explosão do progresso CANDIDO 2000 p 142 Não é à toa que a revista Argumento foi censurada Assim como outros intelectuais que ali escreveram Candido tocava na ferida dos políticos que comandavam o país demonstrando que apesar dos avanços tecnológicos o Brasil continuava extremamente atrasado Diante desse estado de coisas o crítico demonstra que a única alternativa para os intelectuais era lutar contra a situação Mas em geral não se trata mais de um ponto de vista passivo Desprovido de euforia ele é agônico e leva à decisão de lutar pois o traumatismo causado na consciência pela verificação de quanto o atraso é 105 catastrófico suscita reformulações políticas O precedente gigantismo de base paisagística aparece então na sua essência verdadeira como construção ideológica transformada em ilusão compensadora Daí a disposição de combate que se alastra pelo continente tornando a idéia de subdesenvolvimento uma força propulsora que dá novo cunho ao tradicional empenho político dos nossos intelectuais CANDIDO 2000 p 142 A batalha já vinha sendo travada desde antes da instauração do regime militar Os intelectuais em especial os escritores demonstravam a disparidade social do Brasil Era como se existissem dois países um desenvolvido com telefone energia elétrica e água encanada nas residências outro atrasado que não sabia o que era telefone e sonhava com saneamento básico e energia elétrica Sem falar nas questões educacionais e de segurança Segundo o crítico a consciência do subdesenvolvimento é posterior à Segunda Guerra Mundial e se manifestou claramente a partir dos anos de 1950 Mas desde o decênio de 1930 tinha havido mudança de orientação sobretudo na ficção regionalista que pode ser tomada como termômetro dadas a sua generalidade e persistência Ela abandona então a amenidade e curiosidade pressentindo ou percebendo o que havia de mascaramento no encanto pitoresco ou no cavalheirismo ornamental com que antes se abordava o homem rústico Não é falso dizer que sob este aspecto o romance adquiriu uma força desmistificadora que precede a tomada de consciência dos economistas e políticos CANDIDO 2000 p 142 A ficção regionalista é para Candido um termômetro da situação social do país Na fase de consciência amena de atraso o regionalismo explorava o exótico e o pitoresco numa literatura em geral pouco preocupada com os problemas sociais e que procurava colocar o homem da cidade acima do homem do campo A fase de consciência catastrófica de atraso iniciase no decênio de 1930 com o advento do chamado Romance de 30 ou Romance do Nordeste e corresponde à noção de país subdesenvolvido A noção de subdesenvolvimento surge acompanhada de uma geração de escritores preocupados em expor as mazelas regionais do país mostrando que enquanto Getulio Vargas inaugurava fábricas automobilísticas nos grandes centros urbanos a vida no interior correspondia a uma situação semelhante à da Idade Média Para o crítico se pensarmos nas condições materiais de existência da literatura o fato básico talvez seja o analfabetismo CANDIDO 2000 p 143 Nesta área a situação não mudou muito para os dias atuais Segundo estudos do Instituto Brasileiro 106 de Geografia e Estatística IBGE apenas vinte e cinco por cento da população brasileira contemporânea domina plenamente as funções de leitura e escrita Excetuando os analfabetos totais que correspondem a cerca de dez por cento do total por volta de sessenta e cinco por cento da população brasileira não entende o que lê ou consegue apenas captar pequenas informações em frases curtas A leitura de um romance ou de um poema de Carlos Drummond de Andrade é algo simplesmente impossível para a maior parte dos brasileiros mesmo que tenham acesso a esse tipo de texto tanto na Espanha e em Portugal quanto em nossos países criase uma condição negativa prévia o número de alfabetizados isto é os que podem eventualmente constituir os leitores das obras Esta circunstância faz com que os países latinoamericanos estejam mais próximos das condições virtuais das antigas metrópoles do que em relação às suas os países subdesenvolvidos da África e da Ásia que falam idiomas diferentes dos falados pelo colonizador e enfrentam o grave problema de escolher o idioma em que deve manifestarse a criação literária Os escritores africanos de língua européia francesa como Léopold Sendar Senghor ou inglesa como Chinua Achebe se afastam duplamente dos seus públicos virtuais e se amarram ou aos públicos metropolitanos distantes em todos os sentidos ou a um público local incrivelmente reduzido CANDIDO 2000 p 144 Mas Candido exclui a língua como um problema afinal tirando as tribos indígenas que têm a sua própria língua o povo brasileiro e também os povos de língua espanhola fala uma mesma língua sem variantes acentuadas Isto é dito para mostrar que são maiores as possibilidades de comunicação do escritor latinoamericano no quadro do Terceiro Mundo apesar da situação atual que reduz muito os seus públicos eventuais No entanto é também possível imaginar que o escritor latinoamericano esteja condenado a ser sempre o que tem sido um produtor de bens culturais para minorias embora no caso estas não signifiquem grupos de boa qualidade estética mas simplesmente os poucos grupos dispostos a ler Com efeito não esqueçamos que os modernos recursos audiovisuais podem motivar uma tal mudança nos processos de criação e nos meios de comunicação que quando as grandes massas chegarem finalmente à instrução quem sabe irão buscar fora do livro os meios de satisfazer as suas necessidades de ficção e poesia CANDIDO 2000 p 144 Dito de outra forma o escritor latinoamericano poderia prevalecerse pelo fato de poder escrever numa língua compreendida por quase um continente inteiro mas o analfabetismo se mostrava um empecilho Além disso no parágrafo acima o crítico 107 retomou algo que já estava registrado para o público brasileiro em A literatura e a formação do homem ou seja a necessidade de fantasia inerente ao ser humano Mais do que isso Candido foi profético ao refletir sobre o futuro cultural das massas A televisão tomou conta do imaginário popular através das telenovelas sem falar nos recentes realityshows que no fundo nada têm de real A interação entre público e meios de comunicação também aumentou a televisão acabou incorporando elementos do rádio como a intromissão do público em questões referentes a seus programas e a Internet trouxe um mundo radicalmente novo e alienante em que a informação precisa ser rápida sem profundidade e as pessoas podem se passar por outras e criar mundos paralelos É claro que tanto a Internet quanto a televisão trouxeram muitos benefícios mas para a maioria do povo esses recursos servem apenas para afastála dos problemas reais e da cultura refinada o que acaba contribuindo à precariedade educacional do país Como afirma o crítico proporcionar a alfabetização geral não significa necessariamente a geração de um público leitor em nosso tempo uma catequese às avessas converte rapidamente o homem rural à sociedade urbana por meio de recursos comunicativos que vão até à inculcação subliminar impondolhe valores duvidosos e bem diferentes dos que o homem culto busca na arte e na literatura CANDIDO 2000 p 145 Com isso Candido reflete a operação arquitetada pelos países desenvolvidos para impor uma cultura de massa citando como exemplos o cowboy das histórias de farwest e o samurai dos japoneses Os valores importados são completamente diferentes daqueles que seriam necessários à instrução do povo latinoamericano o que provoca o surgimento de uma cultura pobre unificada sem variantes sem elementos peculiares ou regionais É como se estivesse sendo construída uma única cultura a do colonizador Mas voltando à literatura Candido relembra algo já discutido na Formação num país sem cultura para o intelectual e o escritor o modelo a ser seguido estava na Europa Só depois de muito tempo como sugerido na Formação é que temos o surgimento de uma literatura desvinculada da realidade européia Mas a falta de escritores originais fazia com que a opinião crítica exaltasse obras malfeitas como argumenta o crítico Toda literatura apresenta aspectos de retardamento que são normais ao seu modo podendose dizer que a média da produção num dado instante já é tributária do passado enquanto as vanguardas preparam o futuro Além disso há uma subliteratura oficial marginal e provinciana geralmente expressa pelas Academias Mas o que chama a 108 atenção na América Latina é o fato de serem consideradas vivas obras esteticamente anacrônicas ou o fato de obras secundárias serem acolhidas pela melhor opinião crítica e durarem por mais de uma geração quando umas e outras deveriam ter sido desde logo postas no devido lugar como coisa sem valor ou manifestação de sobrevivência inócua Citemos apenas o estranho caso do poema Tabaré de Juan Zorrilla de San Martín tentativa de epopéia nacional uruguaia já no fim do século XIX levada a sério pela opinião crítica apesar de concebida e executada segundo moldes os mais obsoletos CANDIDO 2000 p 150 No entanto às vezes o atraso significava simples demora cultural como observa Candido com relação ao Naturalismo que chegou um pouco tarde e se prolongou até nossos dias sem quebra essencial de continuidade embora modificando as suas modalidades CANDIDO 2000 p 150 O Naturalismo já estava sendo deixado de lado na Europa quando aportou no Brasil encontrando espaço para se manter não só até a época em que o crítico escreveu o texto como até hoje se pensarmos em obras como Cidade de Deus de Paulo Lins e Capão Pecado de Ferréz Mas Candido reconhece que mesmo quando o Brasil viu surgir escritores originais a literatura brasileira continuou recebendo influência estrangeira Apenas quando começa uma relação de causalidade interna para usar a expressão de Candido é que o cordão umbilical parece ter sido definitivamente cortado Esta relação se iniciou com a geração seguinte à dos modernistas da década de 20 que foram influenciados por estes que por sua vez ainda absorveram as novidades das vanguardas européias apesar de terem dado o grito de independência cultural A seguir Candido reflete sobre a situação da época quanto mais o homem livre que pensa se imbui da realidade trágica do subdesenvolvimento mais ele se imbui da aspiração revolucionária isto é do desejo de rejeitar o jugo econômico e político do imperialismo e de promover em cada país a modificação das estruturas internas que alimentam a situação de subdesenvolvimento CANDIDO 2000 p 154 Aí está uma colocação importante para o que o crítico chamará de consciência dilacerada do atraso No momento em que esta surge por volta da década de 1950 não há mais espaço para alienação entre os intelectuais que precisam confrontar o Estado para que mudanças sociais sejam executadas oficialmente Por isso Candido prossegue A partir dos movimentos estéticos do decênio de 1920 da intensa consciência estéticosocial dos anos 19301940 da crise de 109 desenvolvimento econômico e do experimentalismo técnico dos anos recentes começamos a sentir que a dependência se encaminha para uma interdependência cultural Isto não apenas dará aos escritores da América Latina a consciência da sua unidade na diversidade mas favorecerá obras de teor maduro e original que serão lentamente assimiladas pelos outros povos inclusive os dos países metropolitanos e imperialistas O caminho da reflexão sobre o desenvolvimento conduz no terreno da cultura ao da integração transnacional pois o que era imitação vai cada vez mais virando assimilação recíproca CANDIDO 2000 p 154155 Além das obras de Jorge Luis Borges e Mario Vargas Llosa é o que aconteceu também com a obra de Guimarães Rosa seguindo o raciocínio de Candido Dito de outra forma Rosa conseguiu perceber as peculiaridades regionais os problemas da região que retratava e a partir de um expressivo conhecimento filológico atingiu uma maturidade literária com Grande sertão veredas Como o crítico observara em 1966 o sertão de Rosa é um mundo à parte e é como o leitor vê o sertão E é sobre isso que Candido vai se deter ao final do ensaio Atraso que estimula a cópia servil de tudo quanto a moda dos países adiantados oferece além de seduzir os escritores com a migração por vezes migração interior que encurrala o indivíduo no silêncio e no isolamento Atraso que entretanto no outro lado da medalha propõe o que há de mais peculiar na realidade local insinuando um regionalismo que ao parecer afirmação da identidade nacional pode ser na verdade um modo insuspeitado de oferecer à sensibilidade européia o exotismo que ela desejava como desfastio e que se torna desta maneira forma aguda de dependência na independência Com a perspectiva atual parece que as duas tendências são solidárias e nascem da mesma situação de retardo ou subdesenvolvimento CANDIDO 2000 p 156157 O regionalismo a que se refere o crítico é o dos escritores da virada do século XIX para o XX que acreditavam estar escrevendo uma obra original e audaciosa mas que na realidade estavam transformando a realidade rural brasileira num acessório exótico para os olhos do colonizador O regionalismo demorou a conquistar uma real independência Ela veio apenas com Simões Lopes Neto que só foi lido e compreendido realmente muito depois de sua morte já que seus contemporâneos não o levaram muito a sério e foi Carlos Reverbel quem o redescobriu na década de 194016 época em que Guimarães Rosa estava despontando e Graciliano Ramos já tinha escrito 16 Com base na biografia de Simões Lopes Neto em LOPES NETO João Simões Obra Completa Org Paulo Bentancur Porto Alegre Sulina 2003 110 parte de sua obra Foram esses escritores que perceberam que o peculiar não poderia ser abordado com subserviência pois dessa forma estariam contribuindo para a mesma situação de retardo ou subdesenvolvimento dos escritores anteriores Sobre isso Candido ainda sugere de maneira irônica Talvez não sejam menos grosseiras certas formas primárias de nativismo e regionalismo literário que reduzem os problemas humanos a elemento pitoresco fazendo da paixão e do sofrimento do homem rural ou das populações de cor um equivalente dos mamões e dos abacaxis Esta atitude redunda em fornecer a um leitor urbano europeu ou europeizado artificialmente a realidade quase turística que lhe agradaria ver na América Sem o perceber o nativismo mais sincero arrisca tornarse manifestação ideológica do mesmo colonialismo cultural que o seu praticante rejeitaria no plano da razão clara e que manifesta uma situação de subdesenvolvimento e conseqüente dependência CANDIDO 2000 p 157 Em face disso Candido propõe que o regionalismo não seja encarado de maneira hostil como estava na moda na época porque as áreas de subdesenvolvimento e os problemas do subdesenvolvimento ou atraso invadem o campo da consciência e da sensibilidade do escritor propondo sugestões erigindose em assunto que é impossível evitar tornandose estímulos positivos ou negativos da criação CANDIDO 2000 p 157158 Em outras palavras há dois tipos de regionalismo o humanizador e o alienante Não se pode classificar da mesma maneira autores como José de Alencar ou Coelho Neto e Simões Lopes Neto ou Mario Palmério e Guimarães Rosa Assim o crítico conclui que o regionalismo é uma força estimulante da literatura latino americana Na fase de consciência de país novo correspondente à situação de atraso o regionalismo dá lugar sobretudo ao pitoresco decorativo e funciona como descoberta reconhecimento da realidade do país e sua incorporação ao temário da literatura Na fase de consciência do subdesenvolvimento funciona como presciência e depois consciência da crise motivando o documentário e com o sentimento de urgência o empenho político CANDIDO 2000 p 158 Para Candido apesar da etapa inicial do regionalismo ter servido apenas para expor os aspectos exóticos da região colocando o homem no mesmo nível dos mamões e abacaxis ela foi fundamental para que surgisse a segunda etapa que engloba escritores conscientes da precariedade da vida no campo E todas as etapas do 111 regionalismo foram fundamentais não só para a literatura brasileira ou latinoamericana mas também para evidenciar os problemas sociais que eram ignorados ou pouco conhecidos pelo homem da cidade como afirma o crítico O regionalismo foi uma etapa necessária que fez a literatura sobretudo o romance e o conto focalizar a realidade local Algumas vezes foi oportunidade de boa expressão literária embora na maioria os seus produtos tenham envelhecido Mas de um certo ângulo talvez não se possa dizer que acabou muitos dos que hoje o atacam no fundo o praticam A realidade econômica do subdesenvolvimento mantém a dimensão regional como objeto vivo a despeito da dimensão urbana ser cada vez mais atuante Basta lembrar que alguns dentre os melhores encontram nela substância para livros universalmente significativos como José María Arguedas Gabriel García Márquez Augusto Roa Bastos João Guimarães Rosa Apenas nos países de absoluto predomínio da cultura das grandes cidades como a Argentina e o Uruguai a literatura regional se tornou um total anacronismo CANDIDO 2000 p 159 Em outros ensaios Candido preocupouse menos em analisar as obras literárias regionais em face da realidade que retratavam do que em colocálas frente a frente expondo de maneira clara os bons e os maus textos Em Literatura e Subdesenvolvimento a preocupação é outra além de fazer o que já fazia antes o crítico está preocupado em expor a qualidade literária em face dos problemas sociais do continente latinoamericano mas sem partir do pressuposto aparentemente comum à época de que toda literatura regionalista não tem valor Dessa forma propõe uma revisão do regionalismo Por isso é preciso redefinir criticamente o problema verificando que ele não se esgota pelo fato de hoje ninguém mais considerar o regionalismo como forma privilegiada de expressão literária nacional inclusive porque como ficou dito pode ser especialmente alienante Mas convém pensar nas suas transformações lembrando que sob nomes e conceitos diversos prolongase a mesma realidade básica Com efeito na fase de consciência eufórica de país novo caracterizada pela idéia de atraso tivemos o regionalismo pitoresco que em vários países se inculcava como a verdadeira literatura É a modalidade há muito superada ou rejeitada para o nível da subliteratura CANDIDO 2000 p 159 112 Com isso Candido observa que o romance da geração de 30 sem ser exclusivamente regional o é em boa parte e portanto esses escritores foram precursores da consciência de subdesenvolvimento O que os caracteriza todavia é a superação do otimismo patriótico e a adoção de um tipo de pessimismo diferente do que ocorria na ficção naturalista Enquanto este focalizava o homem pobre como elemento refratário ao progresso eles desvendam a situação na sua complexidade voltandose contra as classes dominantes e vendo na degradação do homem uma conseqüência da espoliação econômica não do seu destino individual CANDIDO 2000 p 160 Segundo o crítico na obra de escritores como Jorge Amado e José Lins do Rego o que resta de pitoresco e melodramático é dissolvido pelo desmascaramento social fazendo pressentir a passagem da consciência de país novo à consciência de país subdesenvolvido com as conseqüências políticas que isto importa Mais do que isso para Candido mesmo a linguagem espontânea e irregular desses autores não compromete suas obras em face do descortinamento da realidade social que estas provocaram Inclusive esses escritores acharam boas soluções para o problema O crítico lembra de Vidas Secas em que as poucas palavras proferidas pelos personagens acabam contribuindo para a sua personalização numa narrativa que trata do mundo rural mais pobre sem incorporar elementos regionais à linguagem A seguir numa rara comparação Candido compara os produtos regionais com os urbanos em especial a ficção de Machado de Assis Vem a propósito dizer que o caso do Brasil é talvez peculiar pois aqui o regionalismo inicial que principia com o Romantismo antes dos outros países nunca produziu obras consideradas de primeiro plano mesmo pelos contemporâneos tendo sido tendência secundária quando não francamente subliterária em prosa e verso Os melhores produtos da ficção brasileira foram sempre urbanos as mais das vezes desprovidos de qualquer pitoresco sendo que o seu maior representante Machado de Assis mostrava desde os anos de 1880 a fragilidade do descritivismo e da cor local que baniu dos seus livros extraordinariamente requintados De tal modo que só a partir mais ou menos de 1930 numa segunda fase que estamos tentando caracterizar as tendências regionalistas já sublimadas e como transfiguradas pelo realismo social atingiram o nível das obras significativas quando em outros países sobretudo Argentina Uruguai Chile já estavam sendo postas de lado CANDIDO 2000 p 161 113 O parágrafo pode parecer inicialmente confuso ou contraditório porque o crítico afirma que o regionalismo nunca produziu obras de valor Diante da questão tomei a liberdade de escrever uma carta ao professor Antonio Candido que respondeume afirmando que estava pensando no conjunto das literaturas latinoamericanas levando em conta que excluía Guimarães Rosa do regionalismo propriamente dito Quando trata de Guimarães Rosa no ensaio o crítico se refere ao escritor mineiro como pertencente a uma fase de superregionalismo Para Candido Rosa está acima do regionalismo ou no mínimo fora dele porque sua obra não se compara a nenhuma outra da ficção regionalista e mesmo da ficção urbana Mas os romancistas de 30 já tinham atingido o nível das obras significativas como afirma Candido embora o regionalismo já estivesse sendo deixado de lado em outros países E esse grupo de escritores é responsável pela exposição da consciência do subdesenvolvimento uma consciência catastrófica nas palavras do crítico que diz estar tentando caracterizála A partir de 1930 o Brasil começa a sofrer profundas mudanças políticas e sociais que vão afetar o seu desenvolvimento econômico com a chegada ao poder de Getulio Vargas É um momento em que os escritores percebem o atraso brasileiro em todos os setores e por isso precisam combater a situação enfrentando os políticos que preferiam abafar ou ignorar esses problemas O regionalismo dessa geração contribuiu para a tomada de consciência de outros intelectuais mas vários desses autores e outros surgidos posteriormente mesmo tratando de temas regionais preferiam ser enquadrados de outra maneira A superação destas modalidades e o ataque que vêm sofrendo por parte da crítica são demonstrações de amadurecimento Por isso muitos autores rejeitariam como pecha o qualificativo de regionalistas que de fato não tem mais sentido Mas isto não impede que a dimensão regional continue presente em muitas obras da maior importância embora sem qualquer caráter de tendência impositiva ou de requisito duma equivocada consciência nacional CANDIDO 2000 p 161 No fundo o regionalismo tinha deixado de lado o pitoresco e o exótico Os ataques a que se refere Candido diziam respeito àquela segunda geração de regionalistas alienados dos problemas sociais e acreditando que desvelando a terra estavam mostrando a superioridade urbana Mas como observa o crítico não depende do escritor ser enquadrado como regionalista ou não e sim dos temas que aborda O regionalismo porém acabou passando por uma metamorfose ganhou refinamento 114 técnico graças ao qual as regiões se transfiguram e os seus contornos humanos se subvertem levando os traços antes pitorescos a se descarnarem e adquirirem universalidade CANDIDO 2000 p 161 Nesse caso poderíamos pensar que além de Guimarães Rosa João Ubaldo Ribeiro com seu Sargento Getulio também não deveria receber o qualificativo de regionalista Candido faz então a descrição de uma terceira fase do regionalismo e da consciência do atraso Descartando o sentimentalismo e a retórica nutrida de elementos nãorealistas como o absurdo a magia das situações ou de técnicas antinaturalistas como o monólogo interior a visão simultânea o escorço a elipse ela implica não obstante em aproveitamento do que antes era a própria substância do nativismo do exotismo e do documentário social Isto levaria a propor a distinção de uma terceira fase que se poderia pensando em surrealismo ou superrealismo chamar de super regionalista Ela corresponde à consciência dilacerada do subdesenvolvimento e opera uma explosão do tipo de naturalismo que se baseia na referência a uma visão empírica do mundo naturalismo que foi a tendência estética peculiar a uma época onde triunfava a mentalidade burguesa e correspondia à consolidação das nossas literaturas CANDIDO 2000 p 161162 Essa consciência dilacerada do subdesenvolvimento suscitada pela obra de Rosa mas também pela de Gabriel Garcia Márquez Juan Rulfo e Alejo Carpentier colocou em evidência um grave problema que Candido estudou na sua tese de sociologia Os Parceiros do Rio Bonito a saber a destruição total do mundo rural que acabaria englobado pela cidade num momento em que o campo não podia agüentar essa transformação nem precisava disso O que o interior do continente necessitava e que está implícito no argumento de Candido era diminuir a distância entre campo e cidade quantos aos aspectos sociais de saneamento básico saúde educação etc Mas o que aconteceu como está registrado em Grande sertão veredas foi a chegada ao campo do homem da cidade com seus jipes máquinas e instrumentos inúteis para a vida rural O que aí está demarcado é o fim de um mundo não só o fim físico mas também o fim cultural folclórico desse mundo Sobre isso ainda analisaremos alguns depoimentos importantes do crítico na conclusão deste trabalho a seguir A situação social brasileira a partir da década de 1960 especialmente após a instalação da ditadura militar parece ter obrigado Antonio Candido a expor 115 radicalmente o atraso social do Brasil com destaque para o interior do país A impressão que se tem é que o crítico queria demonstrar como o regionalismo não só mantinha força para gerar boas obras como conseguia retratar fielmente uma parte do país que era ignorada pelos centros urbanos e pelo próprio governo Cada ensaio abordado neste capítulo tratou de algum elemento especial com relação ao regionalismo Os valentões continuavam existindo em terras onde imperava a lei dos fazendeiros não a da justiça Jagunços Mineiros de Cláudio a Guimarães Rosa apesar da vontade de alguns de acabar com o regionalismo ele ainda demonstrava como poderia ser matéria artística humanizadora da melhor qualidade A literatura e a formação do homem e a exposição do atraso em que o Brasil sempre esteve inserido embora a consciência disso tenha variado com o tempo Literatura e Subdesenvolvimento Todos são textos embasados historicamente e com reflexões precisas a respeito da literatura que representava as dificuldades do país 116 CONCLUSÃO O FIM DO REGIONALISMO LITERÁRIO E A PERMANÊNCIA DO SUBDESENVOLVIMENTO Nos últimos anos Antonio Candido pouco tem escrito e publicado Entretanto com freqüência ele é chamado a dar sua opinião a respeito de assuntos variados e tem aceitado dar algumas entrevistas e depoimentos Um desses casos foram as duas entrevistas que concedeu a Luiz Carlos Jackson em 1996 e que estão incluídas na publicação em livro de sua dissertação de mestrado Provavelmente é nesta entrevista em que o crítico melhor sintetiza e explica as motivações que comandaram suas análises ao longo da vida Como o entrevistador tinha formação sociológica e pouco entendia de literatura Candido acabou dando várias explicações de maneira poderíamos dizer didática O tom da entrevista é de revisão de uma trajetória longa consolidada e respeitada Uma das sínteses valiosas diz respeito à diferença do nacionalismo entre Romantismo e Modernismo Romantismo e Modernismo são dois momentos parecidos devido ao nacionalismo à generosidade dos impulsos literários ao desejo de independência espiritual que não obstante era alimentado pelos modelos europeus Ambos reagiram contra modelos literários cansados e permitiram a liberdade de experiência que é fundamental e ambos promoveram a renovação da palavra a fim de aprofundar os temas locais Foram movimentos de libertação O nacionalismo romântico foi um nacionalismo laudatório enquanto o modernista é um nacionalismo crítico Os românticos inventaram o índio porque era a maneira ideal como disse Roger Bastide de sublimar a mestiçagem brasileira Transformase o índio em cavaleiro medieval dando a ele uma grande nobreza e redimese a mestiçagem enquanto o modernismo tomado em sentido amplo desde vinte até quarenta trouxe a realidade do proletário do imigrante do negro do pobre acabando com a visão paradisíaca do Brasil O realismo já tinha começado neste rumo mas o modernismo deu uma espécie de quase teoria do nacionalismo crítico JACKSON 2002 p 175 Segundo o raciocínio do crítico o nacionalismo romântico parece ter sido decisivo para o nacionalismo modernista O Romantismo de certa forma foi a fonte de inspiração do Modernismo Mas os modernistas perceberam que precisavam reavaliar o 117 espírito de nacionalidade expondo os problemas do país Ambos viam no Brasil uma terra cheia de riquezas mas os modernistas sentiram que não podiam mais aceitar ou endossar uma visão alienante dos problemas sociais era necessário mostrar o paradoxo do país ser tão belo e glorioso enquanto existiam tantas mazelas a serem superadas especialmente em face da realidade estrangeira Foi isso que tornou crítico o nacionalismo modernista foi isso que detonou a tomada de consciência catastrófica do atraso e posteriormente a consciência dilacerada Em entrevista ao professor Luís Augusto Fischer publicada revista Arquipélago em 2005 Candido foi questionado a pensar no papel que o regionalismo desempenhou na literatura brasileira e acabou fazendo um resumo da história do regionalismo literário brasileiro A resposta é longa mas acaba por definir os limites do regionalismo apresentando uma classificação nova a suas idéias com relação ao tema que foram debatidas nos capítulos deste trabalho A questão tem vários aspectos e já escrevi sobre alguns deles Esquematicamente seria possível forçando um pouco identificar três modalidades sucessivas no regionalismo brasileiro Primeira a de predomínio da incorporação segunda a de predomínio da exclusão terceira a de predomínio da sublimação No tempo do Império ele foi um instrumento de revelação do Brasil aos brasileiros incorporando à experiência do leitor das cidades o espetáculo da vida nas regiões afastadas Penso em autores como José de Alencar e Bernardo Guimarães O ânimo de integração por parte deles pode ser verificado na maneira de escrever ambos praticavam uma escrita ajustada à norma culta com o mínimo indispensável de modismos regionais o que aproximava o homem rural do homem urbano mostrando a unidade sob a diferença No tempo da Primeira República e do incremento da urbanização o regionalismo foi ao contrário fator de afastamento e mesmo estranhamento entre ambos como se a intenção dos autores fosse marcar a diferença acentuando o exotismo do homem rural e assim marcando a condição superior do homem urbano Foi um processo de folclorização do regionalismo visível na diferença entre o discurso civilizado do autor e o discurso rústico quase caricatural dos personagens excluídos de certo modo da norma culta Era o tempo dos detestáveis ocê tá bão e da redução reificadora do campesino a elemento pitoresco da paisagem Penso em autores como o Coelho Neto de Sertão Depois de 1930 houve uma fecundação do regionalismo em duas direções que ocorreram sucessivamente A primeira foi devida sobretudo a ficcionistas do Nordeste e consistiu em superar a alienação folclórica por meio da consciência social que problematizou a vida rural e por outro lado procurou aproximar o homem rústico do homem da cidade invertendo de certo modo a natureza do discurso da fase anterior ao 118 tentar uma injeção equilibrada da simplicidade coloquial na norma culta A segunda direção que denominei superregionalismo pensando em surrealismo ou superrealismo foi uma literatura de sublimação na medida em que incorporou o experimentalismo modernista Um autor como Guimarães Rosa privilegiou a função poética da linguagem e viu a sua tarefa como invenção não reprodução pitoresca Coisa paralela se deu em outras literaturas da América Latina o que levou o saudoso crítico uruguaio Angel Rama a apontar a inesperada originalidade dessa solução paradoxal consistente em fundir as práticas de vanguarda que encaram o presente e são esteticamente revolucionárias com os temas regionais que tendem ao realismo e a uma preservação conservadora do passado A tipologia acima é aproximativa e visa sobretudo às predominâncias mas é preciso lembrar que as três tendências podem ocorrer em grau maior ou menor Pensemos por exemplo que na fase dominada pelo pitoresco alienante Simões Lopes Neto prenuncia a etapa posterior graças à sua inventividade peculiar FISCHER 2005 p 3334 A consciência amena do atraso correspondente à noção de país novo engloba a primeira modalidade do regionalismo a de predomínio da incorporação A consciência catastrófica que corresponde à época da Primeira República e à segunda modalidade apontada pelo crítico tem no regionalismo literário o predomínio da exclusão Na consciência dilacerada do atraso dentro da terceira modalidade que ocorre a partir da chegada ao poder de Getulio Vargas há um predomínio da sublimação no regionalismo em duas direções a primeira com a dos romancistas de 30 e a segunda com a obra de Guimarães Rosa e outros escritores latinoamericanos Notese todavia que na primeira e na terceira modalidades há segundo Candido uma aproximação do homem rústico do homem da cidade Aí poderia residir uma contradição mas o que o crítico tem em mente é que no primeiro caso ocorre uma demonstração da unidade sob a diferença No segundo correspondente ao regionalismo dos romancistas do Nordeste há uma tentativa de injetar equilibradamente a simplicidade coloquial na norma culta E aqui temos uma visão renovada também sobre a obra de Guimarães Rosa que privilegiou a função poética da linguagem e viu a sua tarefa como invenção não reprodução pitoresca Candido relembra Angel Rama que explicou essa mudança de rumo como a fusão das práticas de vanguarda que encaram o presente e são esteticamente revolucionárias com os temas regionais que tendem ao realismo e a uma preservação conservadora do passado Portanto sem a renovação modernista provavelmente não existiria a consciência dilacerada do atraso E Candido retoma a expressão superregionalismo ao falar de Guimarães Rosa embora pouco explique o 119 que significa um escritor superregionalista Sobre isso podemos registrar que em depoimento recente incluído no Dvd Nonada da edição comemorativa de 50 anos de Grande sertão veredas o crítico reflete a respeito do surgimento de Sagarana e de Grande sertão Guimarães Rosa não é um regionalista propriamente dito porque através do homem do sertão havia uma presença dos problemas universais A gente sentia que o regionalismo dele não era de cunho pitoresco O pitoresco havia evidentemente mas já havia uma universalidade dos temas havia uma espécie de vibração espiritual uma vibração em relação aos grandes problemas que atormentam o homem que o fazia ter uma coisa diferente Não era propriamente um regionalista Depois quando saiu Grande sertão veredas eu estudei isso mais detalhadamente Quando saiu Grande sertão veredas eu falei se não me engano em romance metafísico Não se tratava mais de regionalismo E não se tratava mais de regionalismo porque o que eu entendo que se pode considerar como regionalista propriamente dito é o romance o conto em que o que sobressai é o choque de exotismo A mim me pareceu que em Guimarães Rosa isso era apenas um ingrediente e que o importante eram os grandes problemas do homem Além do mais a linguagem dele não era propriamente uma linguagem documentária que acontece no regionalismo A impressão que se tinha era de que ele estava criando uma linguagem Eu senti que ele estava inventando uma linguagem que ao mesmo tempo era plantada na região mas estava ligada ao passado da língua portuguesa ROSA 2006 Dvd Aqui Candido é mais claro ao explicar por que não considera Guimarães Rosa um autor regionalista A universalidade dos temas a transcendência do regional através da exploração dos grandes problemas do homem o exotismo tratado apenas como ingrediente e a criação de uma nova linguagem fizeram a obra de Rosa segundo o crítico ultrapassar todos os limites até então impostos pelo próprio regionalismo Tanto que Candido acabou criando essa categoria completamente diferente a do super regionalismo Uma coisa importante pra se assinalar a respeito de regionalismo que eu acho fundamental e faltou falar é o seguinte o grande milagre do Guimarães Rosa que é a ambigüidade suprema que neste caso está não apenas no livro mas nele também é o seguinte ele tomou uma tendência muito cansada da literatura brasileira que é o regionalismo por causa do pitoresco da linguagem do arcaísmo do tema caipira do tema regional do tema do jagunço do tema do caboclo Isso já era uma coisa muito sovada muito gasta praticamente consideravase que a literatura brasileira já tinha saído disso No momento em que a crítica pensava 120 mais ou menos isso surge um homem fechado hermeticamente dentro do universo do sertão com uma exuberância verbal extraordinária com aquilo que é considerado ruim da tradição brasileira que era a exuberância de linguagem com aquilo que era considerado ruim que era o regionalismo com aquilo que era considerado perigoso que era o pitoresco Ele parte de tudo isso e consegue fazer uma coisa inteiramente nova consegue fazer uma ficção como eu disse de tipo universal com todos os grandes problemas do homem Tanto assim que pensando neste caso eu pensei como é que se pode resolver esse paradoxo de um regionalismo que não é regionalismo de uma universalidade que é a mais particular possível Ele fez o livro que supera o regionalismo através do regionalismo Do ponto de vista da composição literária a meu ver isso é um paradoxo supremo Tanto assim que eu me senti obrigado a criar uma nova categoria que é transregionalismo ou surregionalismo ROSA 2006 Dvd A categoria do superregionalismo foi criada segundo o crítico pensandose no surrealismo E essa categoria engloba ainda outros autores latinoamericanos que surgiram na mesma época de Rosa como os já citados Gabriel Garcia Márquez Juan Rulfo Mario Vargas Llosa e outros porque também estão enraizados universalmente em suas regiões porque também criaram uma linguagem nova e ao mesmo tempo com tradição Nesse sentido em gêneros literários diferentes poderíamos pensar também em João Cabral de Melo Neto com Morte e Vida Severina e Ariano Suassuna com O Auto da Compadecida Para Candido portanto existiram três fases do Regionalismo na literatura brasileira Assim como essas fases podemos identificar senão fases como rechaça o crítico na correspondência com ele trocada alguns momentos em que suas análises mudaram de maneira substancial e facilmente identificável No início de sua carreira era um crítico jovem consciente dos problemas sociais do país mas ainda limitado quanto a sua exposição analítica embora tenha escrito textos muito interessantes como vimos A década de 50 marcada pela conclusão dos trabalhos dOs Parceiros e das Formação representa um marco na obra de Candido Se havia ingenuidade ao abordar Sagarana e classificála como uma obra de alcance universal apesar da superação de Rosa em Grande sertão aí não havia espaço para uma definição assim O crítico sentiu a necessidade de uma nova classificação diante do romance rosiano Mas essa caracterização só surgiu mais tarde já na década de 1970 momento em que a situação social brasileira atingiu contrastes impensáveis Com essas reflexões podemos observar que a literatura regionalista brasileira teve ela mesma uma formação própria A literatura urbana teve seu ápice com Machado 121 de Assis que como refletiu Candido em trecho reproduzido acima mostrava desde os anos de 1880 a fragilidade do descritivismo e da cor local que baniu dos seus livros extraordinariamente requintados A literatura urbana portanto teve de se apoiar na regionalista para atingir sua maturidade A literatura regionalista parece ter se valido exclusivamente dos autores que a exploraram para constituir sua tradição e chegar ao auge com Guimarães Rosa É possível notar essa continuidade começada ainda pelos poetas árcades como o crítico observou em Jagunços Mineiros passando por José de Alencar Bernardo Guimarães Franklin Távora Visconde de Taunay Valdomiro Silveira Hugo de Carvalho Ramos Afonso Arinos Coelho Neto Domingos Olímpio Manuel de Oliveira Paiva Simões Lopes Neto e depois de Rosa João Ubaldo Ribeiro As questões que se apresentam diante da situação dizem respeito ao momento contemporâneo Qual consciência de atraso temos hoje Que autores estariam exprimindo melhor essa consciência Essas perguntas são de difícil resposta e provavelmente o máximo que se poderia fazer são suposições Mas uma pergunta que também devese ter em mente é o regionalismo literário acabou Ainda existem autores regionalistas escrevendo e publicando regularmente Alguns dos maiores problemas da vida no campo parecem ter sido superados luz elétrica saneamento básico etc Hoje o mundo rural está cada vez mais próximo do mundo urbano Se existe alguma obra ou algum autor que está explorando a consciência contemporânea do atraso e é claro que existem mas não importa aqui pensar em seus nomes provavelmente é um autor de literatura urbana diferente do que aconteceu nos três estágios apontados por Candido que tinham em geral autores regionalistas expressando as consciências De qualquer forma a exuberância da linguagem regional certamente acabou influenciando escritores urbanos que tratam da violência nas grandes cidades como Paulo Lins em Cidade de Deus que procuram retratar o linguajar dos criminosos cariocas com suas gírias Mesmo assim é interessante notar que o Brasil ainda têm muitos problemas tradicionalmente regionais como o da reforma agrária Não só isso perambulando pelo nordeste e pelo centro do país não é difícil encontrar famílias de retirantes em busca de vida melhor Dito de outra forma os embustes do subdesenvolvimento persistem mas a literatura parece mais preocupada com os dramas sociais da cidade O tema do regionalismo vem sendo explorado pelo cinema nacional Deus é Brasileiro de Cacá Diegues Narradores de Javé de Eliane Caffé Cinema Aspirinas e Urubus de Marcelo Gomes e até em telenovelas O Rei do Gado de Benedito Ruy Barbosa mas a 122 literatura parece ter abandonado completamente o assunto A criação de um mundo extremamente regional e ao mesmo tempo universal o mundo de Grande sertão veredas parece mesmo ter marcado o fim desse mundo Antes de finalizar é importante reconsiderar outras posições de Candido com relação aos assuntos que discutiu ao longo da vida Ao exercer a crítica literária Candido não estava apenas preocupado em explicar o fenômeno literário mas também o Brasil a partir da literatura Em O direito à literatura de 1988 incluído em Vários Escritos o crítico defende a idéia de que não basta proporcionar o acesso à educação básica para a população carente além dos outros direitos humanos essenciais como casa comida e saúde Para Candido é fundamental apresentar a literatura a essa fatia da sociedade brasileira o acesso à cultura e à instrução refinada deve ser encarado como mais um dos direitos humanos O crítico previa em Literatura e Subdesenvolvimento que as massas acabariam procurando a distração diretamente na televisão e nas histórias em quadrinhos quando chegassem a um estágio razoável de instrução A hipótese não apenas se confirmou como se mostrou muito pior do que o crítico poderia imaginar Agora também temos bestsellers videogames internet e cinema de mau gosto chamando a atenção de jovens e adultos afastandoos de uma cultura exigente mas humanizadora Todo professor de literatura e de língua portuguesa precisa estar ciente dessa situação para conseguir combatêla Como sugeriu certa vez o professor Luís Augusto Fischer a obra de Antonio Candido para isso serve como uma espécie de oração a ser rezada diariamente pelos professores 123 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CANDIDO Antonio Brigada Ligeira 3ª ed Rio de Janeiro Ouro sobre Azul 2004 CANDIDO Antonio O Método Crítico de Silvio Romero São Paulo EDUSP 1988 CANDIDO Antonio Literatura e Sociedade estudos de Teoria e História Literária 8ª ed São Paulo T A Queiroz 2002 CANDIDO Antonio Textos de Intervenção Org Vinícius Dantas São Paulo Duas CidadesEd 34 2002 CANDIDO Antonio Tese e Antítese 4ª ed São Paulo T A Queiroz 2002 CANDIDO Antonio Formação da literatura brasileira momentos decisivos 2v 8ª ed Belo Horizonte Itatiaia 1997 CANDIDO Antonio Os Parceiros do Rio Bonito 9ªed São Paulo Duas CidadesEd 34 2001 CANDIDO Antonio Vários escritos 4ª ed Rio de Janeiro Ouro Sobre Azul São Paulo Duas Cidades 2004 CANDIDO Antonio A educação pela noite e outros ensaios 3ª ed São Paulo Ática 2000 CESAR Guilhermino História da Literatura do Rio Grande do Sul 2ªed Porto Alegre Globo 1971 DANTAS Vinícius Bibliografia de Antonio Candido São Paulo Duas CidadesEd 34 2002 FISCHER Luís Agusto Literatura Brasileira Modos de Usar São Paulo Col Para Saber Mais Abril 2003 FISCHER Luís Agusto Uma reflexão sobre a formação regional In Cultura regional língua história literatura Orgs Flávio Loureiro Chaves e Elisa Battisti Caxias do Sul EDUCS 2004 FISCHER Luís Augusto Literatura Gaúcha Porto Alegre Leitura XXI 2004 FISCHER Luís Augusto Antonio Candido Um olhar decisivo sobre o Brasil In Arquipélago Revista de Livros e Idéias nº 1 Porto Alegre mar 2005 JACKSON Luiz Carlos A Tradição Esquecida Os parceiros do Rio Bonito e a sociologia de Antonio Candido Belo Horizonte UFMG São Paulo FAPESP 2002 124 LOPES NETO João Simões Obra Completa Org Paulo Bentancur Porto Alegre Sulina 2003 LUKÁCS Georg Ensaios sôbre literatura 2ª ed Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1968 MORENO César Fernández coord América Latina em sua Literatura São Paulo Perspectiva 1979 PEREIRA Lucia Miguel Prosa de Ficção de 1870 a 1920 Belo Horizonte Itatiaia São Paulo Editora da Universidade de São Paulo 1988 ROSA João Guimarães Grande Sertão Veredas 19ª ed Rio de Janeiro Nova Fronteira 2001 SCHWARZ Roberto Seqüências Brasileiras São Paulo Companhia das Letras 1999 125 ANEXOS Carta a Antonio Candido Porto Alegre 4 de novembro de 2005 Caro professor Antonio Candido Meu nome é Marcelo Frizon tenho 25 anos e sou orientando de mestrado do professor Luís Augusto Fischer na UFRGS Meu trabalho de dissertação é sobre como o senhor discutiu o regionalismo ao longo de sua obra Além disso sou professor de Literatura do Ensino Médio em duas escolas aqui em Porto Alegre Resolvi escrever esta carta porque certo dia lendo a orelha dos Contos de Belazarte escrita por João Etienne Filho fui instigado a fazêlo Ele dizia que não sabia se ainda hoje os moços escrevem aos escritores que admiram pedindo opinião conselhos mandando originais etc etc Então como nunca tive oportunidade de conhecêlo resolvi escrever para compartilhar algumas idéias e tirar algumas dúvidas Se o senhor não tiver tempo de pensar no assunto não se incomode pois eu entenderei Bem venho estudando esse assunto desde o final de minha graduação Devo registrar que o assunto me foi proposto naquela época pelo professor Fischer e desde então tenho dedicado meu tempo de estudos ao tema que me fascina da mesma maneira que há três anos Meu fascínio é tão grande quanto algumas dúvidas que surgiram ao longo da leitura de seus textos Vou ser mais objetivo A impressão que tenho numa visada de conjunto é que a sua visão a respeito do regionalismo na literatura brasileira mudou radicalmente em dois momentos distintos constituindo três fases portanto A primeira após a realização e conclusão da pesquisa que resultou nOs Parceiros do rio Bonito A segunda após o início da ditadura militar especialmente após o AI5 No início de sua carreira de crítico nos anos 40 o assunto aparecia de maneira tímida com uma visão bastante influenciada pelos argumentos de Lucia MiguelPereira penso por exemplo no texto Poesia documento e história incluído em Brigada Ligeira Após Os Parceiros o senhor parece ter alargado a sua visão a respeito do tema provavelmente por ter tido contato com o meio que era tema da literatura de autores como Guimarães Rosa e Graciliano Ramos que estavam publicando sua obra com uma contundência maior do que a dos regionalistas da virada do século XIX para o XX penso nas resenhas de Sagarana e Grande sertão veredas incluídas em Textos de Intervenção Depois durante a ditadura o senhor parece ter resolvido escancarar um problema social que era ignorado pelo governo e pela sociedade e é provável que a sociedade não o percebesse visse porque o governo não deixava enquanto boa parte do Brasil tinha se urbanizado e industrializado algumas 126 regiões do país continuavam vivendo na Idade Média por exemplo Literatura e Subdesenvolvimento O senhor poderia comentar esse quadro Por falar nas resenhas de Sagarana e Grande sertão veredas é curiosíssimo notar que quando da edição de Sagarana o senhor disse que o livro era uma grande obra por transcender o critério regional por meio de uma condensação do material observado Dez anos depois com Grande sertão o senhor dizia que o livro era um jato de força e beleza por apresentar algo que não aparecera em nenhum outro escritor regionalista e mesmo nos livros anteriores de Guimarães Rosa a transcendência do regional Em Literatura e Subdesenvolvimento na quinta e última parte do texto o senhor faz a seguinte afirmação Vem a propósito dizer que o caso do Brasil é talvez peculiar pois aqui o regionalismo inicial que principia com o Romantismo antes dos outros países nunca produziu obras de primeiro plano mesmo pelos contemporâneos tendo sido tendência secundária quando não francamente subliterária em prosa e verso Os melhores produtos da ficção brasileira foram sempre urbanos as mais das vezes desprovidos de qualquer pitoresco o grifo em urbanos é seu Neste trecho os contemporâneos a que o senhor se refere são os do Romantismo Ou os contemporâneos à época em que o seu texto foi escrito Essa passagem me confunde há bastante tempo e já conversei com diversos professores mas não obtive uma resposta unânime No final do primeiro parágrafo da primeira parte do ensaio De Cortiço a Cortiço após a introdução o senhor diz que o nosso regionalismo nasceu em parte como fruto da dificuldade de desdobrar a sociedade urbana em temário variado para o romancista Poderia desenvolver melhor estar idéia Pareceme que o senhor quer dizer que a temática urbana não seria suficiente para os escritores mas como isso pode ser importante para o surgimento do regionalismo Sei que o senhor não disse que é importante mas se não fosse de alguma forma o senhor não teria escrito esse comentário Não concorda Fora isso o senhor poderia me dizer onde está publicado o texto Literatura e consciência nacional A referência que tenho é do Suplemento Literário de MG mas esse texto não aparece citado na sua Bibliografia organizada por Vinicius Dantas Esse texto foi publicado em algum livro Infelizmente não tive acesso a ele ainda Outra dúvida que gostaria de lhe colocar é quando será publicada a nova edição da Formação da Literatura Brasileira E também se O Método Crítico de Silvio Romero está na lista das suas próximas reedições pois este é o último livro seu que me falta Enfim não preciso dizer que além de gostar muito de sua obra e de utilizála bastante em minhas aulas admiro sua trajetória e suas posições Um grande abraço Marcelo Frizon 127 Resposta de Antonio Candido São Paulo 10 de abril de 2006 Caro Professor Marcelo Frizon Desculpe o grande atraso com que respondo a sua carta de 4 de novembro do ano passado Ela chegou num momento particularmente difícil que terminou em dezembro com a morte de minha mulher Só agora começo a pôr um pouco de ordem nas obrigações A sua carta suscita problemas que demandariam muita reflexão para a qual não me sinto capacitado no momento Não sei se tem razão quanto a fases em minha maneira de encarar o regionalismo Ao longo de uma vida tão espichada quanto a minha deve haver mais contradições do que fases Quanto àquele trecho confuso de Literatura e Subdesenvolvimento creio que estava pensando no conjunto das ficções latinoamericanas levando em conta que excluía Guimarães Rosa do regionalismo propriamente dito Quanto ao trecho publicado no Suplemento de Minas é o que está em meu livro A Educação pela Noite com o título Literatura de dois gumes A editora Ouro sobre Azul lançará brevemente novas edições de minha tese sobre Silvio Romero e da Formação da Literatura Brasileira Uma palavra final sobre regionalismo brasileiro considero que a minha posição está formulada de maneira que me satisfaz na entrevista com seu orientador Luís Augusto Fischer Agradecendo as suas palavras de apreço aqui fica muito cordialmente o Antonio Candido
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Texto de pré-visualização
MARCELO FRIZON GUADAGNIN O REGIONALISMO NA LITERATURA BRASILEIRA O DIAGNÓSTICO DE ANTONIO CANDIDO PORTO ALEGRE 2007 2 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE LETRAS PROGRAMA DE PÓSGRADUAÇÃO EM LETRAS ÁREA DE ESTUDOS DE LITERATURA ESPECIALIDADE LITERATUAS BRASILEIRA PORTUGUESA E LUSOAFRICANAS O REGIONALISMO NA LITERATURA BRASILEIRA O DIAGNÓSTICO DE ANTONIO CANDIDO MARCELO FRIZON Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Literatura Brasileira ORIENTADOR PROF DR LUÍS AUGUSTO FISCHER PORTO ALEGRE ABRIL DE 2007 3 Para Vivian esposa querida e para meus pais sempre presentes 4 AGRADECIMENTOS Este trabalho não teria sido possível sem o apoio de algumas pessoas que nos momentos mais difíceis souberam pressionar consolar ou ainda dar espaço para que ele pudesse ser realizado Agradeço em particular às seguintes Tânia Maria Frizon e João Luiz Guadagnin mãe e pai que sempre se preocuparam com minha educação e nunca me deixaram sem um livro necessário Vivian Carvalho amiga parceira e esposa sempre compreensiva e ao mesmo tempo provocadora Miguel Frizon Guadagnin exemplo de ambição para o alcance dos melhores objetivos além de ser um grande irmão Iara Altafin pelos conselhos acadêmicos e pela preocupação para que este trabalho saísse o melhor possível Dilamar Jahn amigo sincero intelectual sem preconceitos grande crítico das minhas observações Andréia Scheeren com quem tive o prazer de descobrir como se trabalha numa sala de aula Joseane Rücker pelo apoio moral e pelas idéias sugeridas para este trabalho A todos agradeço muito sinceramente Aos professores e professoras do Instituto de Letras da UFRGS que cuidaram de minha formação acadêmica até aqui sempre propondo reflexões e desafios respeitando a diversidade e sendo exemplos de competência docente Em especial agradeço àqueles cujas aulas foram para mim marcos de reflexão e satisfação Sandra Maggio pelo seu carinho constante Márcia Ivana de Lima e Silva pelos textos e autores a que me apresentou e pela maneira como os discutiu Homero Vizeu Araújo pelo exemplo de intelectual que não pensa apenas nos problemas literários Antonio Sanseverino outro grande pensador da literatura que se mostrou totalmente disposto no momento da realização do estágio de docência Aos professores e colegas do Grupo Formação pela oportunidade dos debates 5 Há um professor contudo que merece menção especial Até porque é ele o grande responsável pela existência deste trabalho embora não possa ser penalizado pelas deficiências e impropriedades que eventualmente contenha Tive a oportunidade de ser aluno do Prof Luís Augusto Fischer pela primeira vez apenas no meu quinto semestre da graduação Desde então a visão que tive da literatura transformouse completamente Nunca mais pude deixar de assistir a suas aulas quando isso era possível Suas reflexões profundas são sempre acompanhadas de explicações iluminadoras e seu posicionamento intelectual é um exemplo importante para minha formação A paciência que demonstrou com meu ritmo de trabalho foi fundamental para a realização deste texto Das suas qualidades maiores nem falarei de sua competência docente ou do belo trabalho que desenvolve com seus estudos sobre a canção brasileira eu gostaria de sublinhar o imenso respeito com que lida com os estudantes E para comprovar isso basta conferir o número cada vez maior de alunos que procuram suas disciplinas ou que desejam ser seus orientandos É uma honra ter tido esta oportunidade não só no mestrado mas também na graduação quando aceitou gentilmente meu pedido para ser meu orientador na monografia de conclusão de curso momento em que me propôs este estudo Gostaria de agradecer também ao Sr Canísio Scherer secretário do Programa de PósGraduação do Instituto de Letras da UFRGS pela disposição constante pela gentileza sem reservas e pelo competente trabalho que desenvolve Finalmente não poderia deixar de registrar o apoio financeiro da agência CAPES sob a forma de uma bolsa de estudos recebido durante um período crucial que tornou viável o mestrado e este trabalho 6 O regionalismo não é uma linguagem regional que o inutilizaria mas falar de problemas que estão mais próximos da pessoa que fala a dor do homem a alegria as suas lutas e as suas belezas etc Não é claro com a limitação de uma linguagem local que inutiliza a expressão universal e a transmissão objetiva do conteúdo humano do poema ou do romance Apenas com aquele interesse intrínseco do humano na valorização do humano O que limita o regionalismo não é o tema de interesse circunscrito mas a linguagem com seus perigos de fixação que lhe poderá inutilizar a universalidade O que interessa é o problema do homem Quando me bato pelo regionalismo é para mostrar numa anedota o local os sentimentos comuns a todos os homens O homem só é amplamente homem quando é regional Se me tirar a estrutura ideológica do pernambucano eu nada sou Faulkner por exemplo é profundamente universal porque é regional e nacional O perigo do regionalismo para o poeta é também a limitação da linguagem porque o conteúdo psicológico lá está indiretamente no seu conteúdo humano E a poesia em geral não é realista ou melhor não permite tanto realismo como o romance João Cabral de Melo Neto entrevista a Marques Gastão Diário de Lisboa Lisboa 3 de maio de 1958 Incluído em Idéias Fixas de João Cabral de Melo Neto de Feliz de Athayde p 85 e 86 7 RESUMO O presente estudo propõese investigar a maneira como Antonio Candido analisou o regionalismo na literatura brasileira Para tanto pesquisaramse os livros e ensaios do estudioso que também acabaram servindo como apoio teórico O objetivo é descrever por um lado como a visão de Candido com relação ao tema alterouse com o passar dos anos e por outro o espaço do regionalismo dentro da literatura brasileira de acordo com a visão do crítico Para tanto examinaramse cronologicamente os textos de Candido levandose em consideração a época em que foram escritos Tal exame mostrouse fundamental para fins de comparação e contraste em suma de embasamento para a leitura aqui proposta A relação que se estabelece a partir da literatura regionalista até a situação política econômica e social do Brasil foi igualmente discutida objetivando uma visão mais abrangente do panorama cultural brasileiro Os resultados evidenciam a permanência de problemas que caracterizaram o Brasil durante muito tempo como um país subdesenvolvido No entanto a maneira como esses problemas foram abordados pela literatura variou ao longo dos séculos O que acabou sendo visto como traço de atraso social e cultural antes era visto como elemento peculiar e de exaltação O intuito portanto foi descrever como Candido explicou cada um desses fenômenos 8 ABSTRACT The present study offers an investigation on the way Antonio Candido has analyzed the regionalism in the Brazilian literature Therefore Candidos books and essays were researched and also used as theoretical support The objective is to outline on the one hand how the authors view towards theme has changed throughout the years and on the other hand the place of regionalism in the Brazilian literature according to his view In order to do so Candidos texts were read chronologically considering the time when they were written This investigation was extremely important to compare and contrast the texts and to fundament the reading proposed here The relation established from the regionalist literature to the political economic and social situation in Brazil was equally discussed in order to come to a broader Brazilian culture scenery The results evidence the permanence of problems that have characterized Brazil for a long time as an underdeveloped country However the way this issued were treated by literature has varied throughout the centuries What was once seen as peculiar exaltation element ended up being seen as a sign of social and cultural delay Thus the intention was to describe the way Candido has explained each of this phenomena 9 SUMÁRIO INTRODUÇÃO O TEMA DO REGIONALISMO LITERÁRIO 10 CAPÍTULO I MOMENTOS INICIAIS 16 11 A VIDA ANTES DA OBRA 16 12 POESIA DOCUMENTO E HISTÓRIA 17 13 O MÉTODO CRÍTICO DE SILVIO ROMERO 20 14 A LITERATURA NA EVOLUÇÃO DE UMA COMUNIDADE 22 15 NOTAS DE CRÍTICA LITERÁRIA SAGARANA E NO GRANDE SERTÃO 25 16 O HOMEM DOS AVESSOS 30 CAPÍTULO II MOMENTOS DECISIVOS 35 21 OS PARCEIROS DO RIO BONITO 35 211 O BAIRRO E O MUTIRÃO 36 212 O CAIPIRA E A SUA CULTURA 39 213 O CAIPIRA EM FACE DA CIVILIZAÇÃO URBANA 43 22 A FORMAÇÃO DA LITERATURA BRASILEIRA 49 221 A POESIA PASTORAL E A CULTURA URBANA 51 222 OS QUATRO GRANDES TEMAS DA FORMAÇÃO E O ROMANTISMO 53 223 JOSÉ DE ALENCAR 63 224 BERNARDO GUIMARÃES 65 225 FRANKLIN TÁVORA 67 226 VISCONDE DE TAUNAY 75 CAPÍTULO III MOMENTOS RADICAIS 79 31 JAGUNÇOS MINEIROS DE CLÁUDIO A GUIMARÃES ROSA 80 32 A LITERATURA E A FORMAÇÃO DO HOMEM 96 33 LITERATURA E SUBDESENVOLVIMENTO 103 CONCLUSÃO O FIM DO REGIONALISMO LITERÁRIO E A PERMANÊNCIA DO SUBDESENVOLVIMENTO 116 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 123 ANEXOS 125 10 INTRODUÇÃO1 ALGUMAS QUESTÕES ACERCA DO REGIONALISMO LITERÁRIO Se considerarmos regionalista qualquer livro que intencionalmente ou não traduza peculiaridades locais teremos que classificar desse modo a maior parte da nossa ficção Assim começava Lucia Miguel Pereira seu capítulo sobre o regionalismo na literatura brasileira em sua obra Prosa de Ficção de 1870 a 1920 publicada em 1950 Sob esse aspecto é provável que mesmo hoje acabássemos considerando regionalista quase toda a produção literária nacional Desde a segunda metade do século XVIII pelo menos tivemos escritores preocupados em construir uma literatura brasileira na busca desse objetivo uma das estratégias que vislumbraram foi justamente traduzir para o texto literário a realidade e a linguagem locais regionais Nesse sentido era regional todo texto que não era urbano O advento do romance no Brasil no século XIX é contemporâneo à formação das grandes cidades brasileiras É nesse período que começaram a aparecer narrativas ditas urbanas Desde então estabeleceuse um contraste de um lado obras com enredos inseridos na cidade ou tendoa como referência por exemplo A Moreninha 1844 de Joaquim Manuel de Macedo Memórias de um sargento de milícias 1853 de Manuel Antonio de Almeida Cinco Minutos 1856 e A Viuvinha 1857 de José de Alencar De outro surgiram tramas que procuraram absorver a coloquialidade e os temas da vida interiorana consideradas regionalistas como A Divina Pastora 1847 do gaúcho Caldre Fião romance publicado no Rio de Janeiro Depois saíram O Gaúcho 1870 e O Sertanejo 1875 de Alencar Inocência 1872 do Visconde de Taunay O Garimpeiro 1872 O Seminarista 1872 e A escrava Isaura 1875 de Bernardo Guimarães O Cabeleira 1876 e O Matuto 1878 de Franklin Távora Com essa produção a partir do decênio de 1870 especialmente polêmicas instalaramse entre intelectuais e escritores pelo debate sobre as melhores realizações regionalistas Távora nas Cartas a Cincinato 1870 ou no prefácio de O Cabeleira é direto ao constatar as 1 O trabalho aqui apresentado vai com pouquíssimas alterações realizadas desde que foi defendido no dia 20 de abril de 2007 devido ao curto prazo para esse fim As sugestões da banca examinadora foram muitas e muito valiosas mas serão aproveitadas no futuro numa publicação em livro ou em outros trabalhos que porventura surgirem Mesmo com as fragilidades apontadas pelos professores o trabalho mereceu conceito A por unanimidade 11 deficiências do romance de Alencar por este tratar de locais que lhe eram completamente desconhecidos O que estava em jogo no fundo era uma discussão sobre a identidade nacional sobre como expressar essa identidade da maneira mais fiel Animados pelo desejo da construção duma cultura válida no país conforme apontou Antonio Candido no Prefácio à 2ª edição da Formação da Literatura Brasileira os escritores iniciaram um processo de descobrimento e divulgação do Brasil através da literatura Embora Távora tivesse razão essas rixas podem ter prejudicado a imagem já frágil da literatura regionalista Durante anos o regionalismo foi colocado em segundo plano por boa parte dos críticos É claro que a formação deste tipo de literatura baseou se em aspectos exóticos e pitorescos das regiões retratadas Apenas na virada do século XIX para o XX começaram a circular narrativas regionalistas de grande valor literário que não caíram nos clichês e nas armadilhas das primeiras tentativas A crítica iniciou a partir daí um processo de revisão do regionalismo que atingiu seu auge apenas com a chegada de Guimarães Rosa às letras nacionais Outra possível razão para a literatura regionalista ter sido considerada secundária é o atraso social político e econômico explicitado pelos textos Numa terra em que o bom era copiar a Europa apresentar os problemas das regiões mais remotas do Brasil era demonstrar que o país não só sofria com o atraso mas de certa forma o exaltava dada a pureza que alguns escritores reivindicavam para a literatura nacional ou seja uma literatura sem influências estrangeiras As letras têm como a política um certo caráter geográfico mais no Norte porém do que no Sul abundam os elementos para a formação de uma literatura propriamente brasileira filha da terra A razão é óbvia o Norte ainda não foi invadido como está sendo o Sul de dia em dia pelo estrangeiro A feição primitiva unicamente modificada pela cultura que as raças as índoles e os costumes recebem dos tempos ou do progresso podese afirmar que ainda se conserva ali em sua pureza em sua genuína expressão2 Távora defendia com fervor sua terra Mas Luís Augusto Fischer nos apresenta a questão de outro lado 2 TÁVORA Franklin O Cabeleira 8ª ed São Paulo Ática Série Bom Livro 2002 p 13 prefácio do autor A data original de publicação do romance é 1876 12 Em sentido amplo tudo é região dependendo do que se quer chamar de região A menos que se aceite o critério imperialista de que há um centro e o resto que fique girando em torno ou que se use um critério mais amplo fortemente consolidado mas nem por isso menos complicado do ponto de vista intelectual que é o critério que opõe a cidade e sua cultura ao campo e sua cultura Este último é que costuma ser a chave do debate FISCHER 2003 p 46 Feitas as primeiras ressalvas o presente estudo pretende analisar a maneira como o regionalismo na literatura brasileira foi pensado por Antonio Candido crítico literário e professor aposentado da USP Sua obra é vasta e determinante para a compreensão de como a literatura brasileira se movimentou ao longo dos séculos E poderíamos dizer até mais do que isso ao explicar a literatura o crítico está explicando o Brasil Nenhum estudante de Letras interessado em literatura brasileira atualmente deveria ficar sem ler a obra de Candido Seus textos mudaram os rumos da crítica literária no Brasil e são influência para professores e estudiosos de literatura das mais variadas correntes desde a Crítica Sociológica até a Literatura Comparada Devo registrar que o assunto foi proposto por meu orientador ainda na minha graduação e desde lá venho dedicandome ao tema Tema aliás que não mereceu um ensaio ou estudo específico de Candido Ele abordou o assunto em textos que tratam da Literatura Brasileira dentro de um quadro geral amplo por exemplo em Literatura e Subdesenvolvimento Às vezes a questão do regionalismo merece sua reflexão de maneira secundária ou apenas para explicar o foco principal de suas idéias vide A literatura e a formação do homem Não são muitos os textos enfim em que este assunto tem destaque na análise do crítico Talvez por isso suas idéias sejam apresentadas de maneira às vezes sumária às vezes sem muita clareza normalmente de forma complexa o que torna o tópico uma fonte inesgotável de reflexão Merece registro o fato de que as obras analisadas acabaram sendo também os textos de apoio para o estudo Ou seja os textos de Candido são ao mesmo tempo objeto de estudo e objeto de apoio analítico Além disso é importante observar que o regionalismo literário que interessa aqui é aquele ligado ao mundo rural Foi assim que Candido observou o tema na maioria de seus ensaios Portanto ficam excluídas obras que são consideradas regionalistas por outros críticos simplesmente por serem ambientadas em regiões distantes do centro do país Dessa forma obras escritas em estados fora do eixo RioSão Paulo podem ter ficado de fora da análise do crítico por 13 tratarem de um meio urbano mesmo que seja esse eixo que determina o que é e o que não é regional Sobre isso uma questão que me chamou atenção foi a forma como o assunto é tratado no estudo escolar desde que comecei a lecionar literatura brasileira há cerca de sete anos Vários livros didáticos utilizam as idéias de Candido às vezes citando a fonte às vezes inclusive reproduzindo frases ou trechos de seus textos mas não há uma construção do tema que para uma boa compreensão por parte do educando leve em consideração a cronologia da literatura regionalista3 O estudo escolar do regionalismo analisa o caso de várias maneiras de acordo com o livro didático utilizado ou com a metodologia da escola ou ainda de acordo com o que é solicitado pelos vestibulares Normalmente porém o que determina a forma como o assunto é tratado é a posição crítica do autor do livro didático ou do professor em sala de aula A maioria desses livros didáticos cita autores como Bernardo Guimarães Franklin Távora Afonso Arinos Valdomiro Silveira Hugo de Carvalho Ramos e Simões Lopes Neto entre outros mas sempre dão mais ênfase à obra de João Guimarães Rosa Da forma como o assunto é discutido porém não há como o estudante compreender a importância da obra de Rosa porque seus antecessores são apresentados sem profundidade nenhum livro tem reproduções de trechos de suas obras o que faz com que o estudante não perceba a diferença entre as características apontadas nesses escritores e as apontadas na obra de Rosa Os textos e as idéias de Candido são mal aproveitados A reprodução de um único trecho de um texto seu já poderia dar uma dimensão mais interessante do problema penso na última parte de A literatura e a formação do homem Isso faz com que o estudante ao invés de apreciar a literatura de Guimarães Rosa e a brasileira em geral acabe rechaçandoa ainda mais hoje com a mídia de uma maneira geral tomando o espaço da literatura o que também foi pensando por Candido como veremos É possível que essa concentração dos livros didáticos apenas na obra de Rosa em detrimento de outros autores regionais se dê também porque a literatura que mais importa é a urbana já que como observou o crítico foi ela que rendeu os melhores frutos na literatura brasileira O regionalismo pode ser estudado de várias maneiras quanto ao assunto quanto à linguagem ou ainda quanto ao arranjo narrativo Na obra de Candido ora o tema 3 Dois bons exemplos são os livros FARACO Carlos Emilio e MOURA Francisco Marto Literatura Brasileira 10ª ed São Paulo Ática 1999 e CAMPEDELLI Samira Yousseff Literatura História e Texto 3v 7ª ed São Paulo Saraiva 2001 especialmente o terceiro volume dedicado à 3ª série do Ensino Médio 14 aparece relacionado ao mundo rural ora como algo ultrapassado às vezes de maneira provinciana mas também como literatura popular como representação da violência e até como uma espécie de nacionalismo falhado A verdade é que nenhuma dessas relações está errada ou equivocada o termo regionalismo ou regional suscita discussões há muito tempo no meio acadêmico O que fiz foi tentar compreender como Candido observou o assunto ao longo de sua trajetória analisando o termo eou o assunto em seus textos buscando traçar um diagnóstico da questão a idéia é simplesmente descrever a interpretação do crítico e não apresentar uma interpretação embora isso ocorra em alguns momentos do trabalho aqui apresentado Qualquer pessoa com uma longa jornada em seu trabalho acaba revisando posições e pensamentos do início da carreira e a visão do crítico não fugiu a essa regra Um bom exemplo é a maneira como ele abordou a obra de Manuel Antonio de Almeida em dois momentos distintos O primeiro na Formação de 1959 quando o que mais chama a atenção é a sua definição final sobre o escritor com tanto senso dos limites e possibilidades de sua arte pressagiou entre nós o fenômeno de consciência literária que foi Machado de Assis realizando a obra mais discretamente máscula da ficção romântica CANDIDO 1997 2ºv p 199 O segundo é o ensaio Dialética da Malandragem de 1970 em que observa as relações de poder e os movimentos entre os pólos da ordem e da desordem apontados através de um típico malandro Leonardo Pataca personagem das Memórias de um sargento de milícias de Almeida mas revelando que esses movimentos eram comuns entre a sociedade da época em que o romance foi publicado Assim contextualizei o aparecimento do termo em cada texto analisado levando em consideração a obra literária estudada pelo crítico e o período histórico da publicação da primeira versão de cada texto É importante ressaltar que diversos textos de Candido foram publicados antes em periódicos e só anos mais tarde reunidos em um livro A data da primeira publicação tornase mais relevante portanto do que a data de lançamento de cada reunião de ensaios Nesse sentido trabalhei com três cronologias a primeira e mais abrangente é a da História do Brasil a segunda a da História da Literatura Brasileira e por fim a da vida de Antonio Candido e da publicação de seus textos já que o crítico começa a acompanhar ao vivo num certo momento a publicação de obras determinantes dentro da literatura brasileira e do regionalismo literário brasileiro 15 A ordem de apresentação de cada capítulo e de cada análise de ensaio segue a cronologia dos textos de Candido Dividi em três momentos a configuração do problema que representam os capítulos de meu estudo O marco é a Formação da Literatura Brasileira a forma como Candido estudou o regionalismo é apresentada de uma maneira até por volta de 1954 Cap 1 Momentos Iniciais do Regionalismo na obra de Antonio Candido Com a publicação da Formação e de Os parceiros do Rio Bonito de 1954 essa forma muda substancialmente assim como todo seu pensamento encontrando fundamentos mais precisos e sofisticados é o momento em que Candido chega à maturidade intelectual Cap2 Momentos Decisivos A terceira parte trata dos textos escritos após o início da ditadura militar no Brasil momento em que sua crítica se tornou ainda mais radical ao demonstrar as relações entre literatura e sociedade expondo como a primeira retratou a realidade da segunda Cap 3 Momentos Radicais Na conclusão discuto ainda alguns textos e entrevistas de Candido posteriores a 1984 em que o crítico reflete sobre a sua obra e sobre a situação cultural do Brasil 16 CAPÍTULO I MOMENTOS INICIAIS 11 A VIDA ANTES DA OBRA4 Antonio Candido de Mello e Souza nasceu no Rio de Janeiro em 1918 O registro dessa data é importante se pensarmos no contexto histórico Machado de Assis havia falecido apenas dez anos antes e a Semana de Arte Moderna se realizaria apenas quatro anos depois Apesar de ser carioca de nascimento Candido passou toda sua infância e adolescência no interior de Minas Gerais Se mudou para São Paulo apenas quando ingressou na faculdade Filho de um pai médico e de uma mãe dona de casa o crítco deveria ter seguido o caminho do pai Acabou não passando nos exames preparatórios de admissão do curso de Medicina e contrariando a vontade paterna que queria vêlo médico resolveu ingressar no recémcriado curso de Sociologia Apesar desse desvio o Dr Aristides Candido aceitou a escolha do filho dizendolhe que acabaria por realizar uma parte sua que ele não havia conseguido realizar Os pais de Candido eram muito cultos a mãe provinha de uma família de mulheres leitoras algo raro para a época e o pai estimulava e dava dinheiro para os três filhos comprar livros indicando os mais importantes Uma questão curiosa comentada em mais de um momento por Candido é o fato de ele ter tido acesso a duas bibliotecas pois cada um de seus pais tinha a sua seleção de livros Isso tudo fez com que o pequeno Antonio Candido se interessasse ainda mais pela leitura Antes de entrar na adolescência por volta dos dez doze anos a família Mello e Souza passou uma temporada na Europa momento em que Candido iniciou seu contato com a língua francesa Mais tarde já no Brasil aprendeu inglês e italiano Ou seja desde cedo antes de concluir os estudos ginasiais o crítico já lia algumas literaturas estrangeiras nas suas línguas de origem 4 As fontes utilizadas nessa rápida biografia são CANDIDO Antonio Textos de Intervenção Org Vinícius Dantas São Paulo Duas CidadesEd 34 2002 DANTAS Vinícius Bibliografia de Antonio Candido São Paulo Duas CidadesEd 34 2002 FISCHER Luís Augusto Antonio Candido Um olhar decisivo sobre o Brasil In Arquipélago Revista de Livros e Idéias nº 1 Porto Alegre mar 2005 JACKSON Luiz Carlos A Tradição Esquecida Os parceiros do Rio Bonito e a sociologia de Antonio Candido Belo Horizonte UFMG São Paulo FAPESP 2002 17 Chegando a São Paulo em 1936 Candido ficou deslumbrado com a vida cultural da cidade que tinha então cerca de um milhão de habitantes Acabou criando amizades que seriam determinantes na sua formação especialmente os colegas de Faculdade que com ele formariam o grupo de Clima a saber Décio de Almeida Prado Paulo Emílio Salles Gomes e Lourival Gomes Machado A revista Clima discutia questões relativas à literatura ao cinema e à sociologia o que acabou determinando a aproximação de Candido da crítica literária Com isso tomou contato com intelectuais da época como Mario de Andrade Oswald de Andrade e Sergio Buarque de Hollanda A partir desse momento surgiram os primeiros textos que aqui nos interessam Desde o início de sua atividade como crítico literário no início da década de 1940 Antonio Candido enfocou o regionalismo em seus textos Apesar do assunto não ser um tema central em sua obra inicial e mesmo depois como veremos na continuação deste trabalho as colocações do crítico a respeito do tema são elucidativas especialmente se considerarmos a época em que foram escritos os textos que serão aqui analisados 12 POESIA DOCUMENTO E HISTÓRIA O primeiro livro de Candido Brigada Ligeira de 1945 contém uma coletânea de textos apresentados inicialmente no jornal Folha da Manhã entre 1943 e 1945 quando o autor ali cumpria o papel de crítico literário Um desses textos Poesia Documento e História que em nada se parece com uma resenha literária atual mas sim com um belo ensaio é na realidade a união de três textos publicados em outubro de 1943 a respeito da obra de Jorge Amado A abertura do ensaio e toda primeira parte merecem especial atenção para nossos fins já que depois Candido vai deterse exclusivamente em aspectos da obra do escritor baiano Talvez se possa dizer que os romancistas da geração dos anos 1930 de certo modo inauguraram o romance brasileiro porque tentaram resolver a grande contradição que caracteriza a nossa cultura a saber a oposição entre as estruturas civilizadas do litoral e as camadas humanas que povoam o interior entendendose por litoral e interior menos as 18 regiões geograficamente correspondentes do que os tipos de existência os padrões de cultura comumente subentendidos em tais designações Essa dualidade cultural de que temos vivido tende naturalmente a ser resolvida e enquanto não for não poderemos falar em civilização brasileira CANDIDO 2004 p 41 As palavras de Candido podem parecer duras já que o embate campo X cidade já era extremamente percebido nos anos de 1940 e mais do que isso era um embate brutal o homem do interior não sabia do funcionamento da sociedade moderna da sociedade que vivia nas cidades Vale lembrar que o engajamento político do autor não é à toa Candido fez parte de grupos de oposição ao Estado Novo de Getulio Vargas como a Associação Brasileira de Escritores Quando diz que a civilização brasileira depende da resolução da dualidade cultural entre o campo e a cidade Candido está pensando historicamente no abismo social entre essas regiões algo que já havia sido registrado por Euclides da Cunha em Os Sertões Além disso o crítico também estava pensando na situação econômica e social promovida pela ditadura de Vargas nos grandes centros urbanos que ganharam universidades e fábricas enquanto o interior brasileiro ficou esquecido quanto a essas transformações Outra observação importante dada pelo autor com uma pequena ressalva é o fato de que o romance brasileiro é inaugurado pela geração de prosadores de 1930 pois foi ela que buscou a resolução do problema apontado É curioso no mínimo que isso tenha sido registrado por Candido já que ele identificou um pouco mais tarde o Arcadismo e o Romantismo como dois momentos cruciais para a formação da literatura brasileira mas também o Modernismo de 1922 como um momento de renovação cultural determinante para a arte brasileira É provável que o crítico estivesse aproximando os romancistas da geração de 1930 aos idealizadores do Modernismo como se aqueles fossem uma extensão destes num outro texto discutido adiante essa questão se fará mais clara Outra possibilidade é que Candido já tivesse em mente a idéia de um sistema literário contínuo com o tripé autor obra público mais tradição ou seja os romancistas de 1930 estavam chegando a um ponto não atingido e nem vislumbrado pelo românticos Mas independente do juízo que se faça disso deve se lembrar que este texto foi escrito a apenas 21 anos de distância da Semana de Arte Moderna num momento em que os escritores de 20 e 30 ainda estavam vivos e relacionandose 19 Na continuação do texto Candido aponta que a questão observada por ele tende a ser resolvida com a integração de grandes massas da nossa população à vida moderna CANDIDO 2004 p 41 Segundo ele ao colocar o problema e solucioná lo a literatura precedeu a obra dos políticos dos economistas e dos educadores mas inicialmente o problema era colocado de maneira tímida com a existência do homem rural sendo explorada como motivo de arte motivo por que não dizêlo de sabor quase exótico para o leitor das capitais citando autores como Bernardo Guimarães Franklin Távora e Monteiro Lobato A partir disso o crítico observa que a visão lírica e de certo modo pitoresca do homem do campo não podia persistir com a marcha do problema social com o trabalhador rural se integrando em massas dominadas pela usina e pela tulha símbolos da poderosa engrenagem latifundiária com o proletariado urbano se ampliando segundo o processo de industrialização CANDIDO 2004 p 4142 A realidade já não permitia a apresentação romântica do homem do interior o processo de modernização por que passou o Brasil na Primeira República e durante a Era Vargas impedia a continuação do trabalho literário com uma identidade que nunca existiu E aí está a base para o surgimento dessa geração dos romancistas de 30 O movimento de reivindicação e a onda surda da tomada de consciência de uma classe ecoaram de certo modo no domínio estético e a massa começou a ser tomada como fator de arte os escritores procurando opor à literatura e à mentalidade litorâneas a verdade a poesia o sentido humano da massa rural e proletária esta um prolongamento urbano do pária sertanejo Dentro da sua linha própria de desenvolvimento interno o romance correu paralelo interagindo com a evolução social recebendo as repercussões CANDIDO 2004 p 42 O homem do campo na pena dos romancistas de 1930 segundo Candido é integrado ao patrimônio cultural brasileiro não mais como algo pitoresco mas reivindicando o seu lugar na nacionalidade e na arte Os escritores vão aceitar o povo realizando e dando sentido humano ao programa estético dos rapazes do movimento de 1922 CANDIDO 2004 p 43 Com isso O romance procedeu a uma espécie de preparo do terreno para a integração das massas na vida do país Na fase regionalista sertaneja o caboclo era considerado sobretudo como um motivo um objeto pitoresco Mesmo em escritores tão compreensivos como Afonso Arinos Entre ele caboclo e os escritores ia a distância que vai do empregado ao patrão 20 bondoso e interessado pela sua vida A força do romance moderno foi ter entrevisto na massa não assunto mas realidade criadora CANDIDO 2004 p 43 Portanto Antonio Candido percebeu já na década de 1940 que a literatura regionalista realizada até o início do século XX tinha um caráter paisagístico ou seja era produzida para o cidadão urbano conhecer o que existia para além das fronteiras de sua cidade Era uma literatura que colocava homens no mesmo patamar dos animais e da natureza E esse problema só é solucionado quando os escritores oriundos das regiões retratadas por esses primeiros regionalistas conseguem desmistificar a paisagem criada e executar uma obra que é bem produzida estética e ideologicamente Eram escritores com capacidade para perceber e transmitir os problemas do homem rural sem cair na propaganda de um mundo selvagem e desconhecido na realidade eram escritores burgueses porque tinham boa formação e com isso uma boa percepção do mundo e das transformações nele ocorridas a partir da virada do século Vale lembrar que por volta de 1945 a 1954 Candido fará uma pesquisa que culminará na defesa de seu doutorado em sociologia com a tese Os Parceiros do Rio Bonito publicada em livro apenas em 1964 certamente um trabalho que lhe rendeu uma percepção ainda mais clara dos problemas sociais do interior brasileiro 13 O MÉTODO CRÍTICO DE SILVIO ROMERO Em 1945 Antonio Candido participou de um concurso para a cadeira de Literatura Brasileira da Universidade de São Paulo defendendo a tese Introdução ao método crítico de Silvio Romero O candidato por critérios injustos não foi selecionado no desempate dos votos contra outro dos candidatos por ter sido aprovado porém conquistou a livredocência e tornouse doutor em Letras que era seu objetivo principal Candido considera a primeira edição do texto a própria tese O texto porém só teve uma divulgação mais ampla na segunda edição de 1963 no Boletim da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da USP nº 266 1º de Teoria Literária e Literatura Comparada com o título diminuído para O Método Crítico de Sílvio Romero O estudo de Candido sobre a obra de Sílvio Romero não aborda o regionalismo Sua importância para o presente trabalho se deve às posições críticas apresentadas em 21 dois momentos O primeiro está no capítulo introdutório chamado A Crítica Pré Romeriana e o Modernismo O mecanismo da evolução literária para ele Sílvio Romero é simples como se depreende dos seus livros Inspirados por algum acontecimento ou pela meditação aparecem os escritores que se tornam grandes pela força do gênio e porque obedecem às regras do bom gosto e das conveniências estéticas firmadas desde Aristóteles Não lhe ocorre depois de Villemain Madame de Stäel Herder os Schlegel que devia conhecer que a literatura possa estar submetida a algum condicionamento que as obras influam umas sobre as outras ou que haja tendências periódicas CANDIDO 1988 p 22 Já estava clara para Candido em 1945 a organicidade da Literatura os escritores e suas obras aparecem segundo algum condicionamento seja do local seja da época ou de interesse Os escritores têm em mente seus antecessores para não repetir o que produziram e para procurar superálos Essas posições serão a base fundamental da Formação da Literatura Brasileira que o crítico começou a escrever pouco tempo depois Em alguns textos que serão analisados a seguir Candido mostra como Guimarães Rosa por exemplo soube ler e ir adiante de seus antecessores do regionalismo literário brasileiro Já no prefácio da segunda edição do livro datado de 1961 Candido utiliza pela primeira vez a expressão crítica integrativa que reaparecerá em textos mais contemporâneos especialmente em entrevistas Neste livro quase no início duma carreira procurei com as limitações pessoais e os poucos recursos do momento sugerir uma crítica integrativa superando os resquícios de naturalismo que ainda sobreviviam e mostrando as limitações do ponto de vista sociológico então em grande voga e ao qual eu próprio aderira anos antes ao começar a escrever CANDIDO 1988 p 22 No momento em que escreve esse prefácio o crítico já é professor de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP e já publicou a Formação O que Candido procurava com essa crítica integrativa era utilizar diversas teorias para o estudo literário de modo que cada uma contribuísse com o que tinha de melhor Ele procurava desde então ou mesmo antes perceber quais eram as melhores teorias para explicar cada obra Em depoimento recente o crítico defende que é a obra que deve determinar a 22 teoria que melhor pode lhe explicar aplicar uma teoria por simples gosto pessoal pode limitar a análise do texto 14 A LITERATURA NA EVOLUÇÃO DE UMA COMUNIDADE Originalmente publicado em 1954 com o título Aspectos sociais da literatura em São Paulo em função do IV Centenário da Cidade de São Paulo no número comemorativo do jornal O Estado de São Paulo A literatura na evolução de uma comunidade é um texto provocativo para qualquer brasileiro mas em especial para quem não é paulista Candido deixa implícito que seu foco não é o regionalismo mas pelo menos suas primeiras frases contêm afirmações que podem ser relacionadas com o assunto Vejamos seu início Se não existe literatura paulista gaúcha ou pernambucana há sem dúvida uma literatura brasileira manifestandose de modo diferente nos diferentes Estados CANDIDO 2002 p 139 Ora é estranho Candido afirmar com tanta convicção que não existe uma literatura paulista gaúcha ou pernambucana O Modernismo de 20 foi um movimento autenticamente paulista apesar do nacionalismo que exaltou e expressou Contudo os modernistas acreditavam que produzindo a sua arte cheia de elementos paulistanos ou regionais estavam ajudando a constituição de uma literatura nacional Essa visão acabou sendo compartilhada pelo crítico que encara o Romantismo e o Modernismo como os dois momentos cruciais da literatura brasileira No caso específico do Rio Grande do Sul a literatura gaúcha tem um sistema literário próprio desde pelo menos o surgimento do grupo Partenon Literário em 1868 como podemos observar pelas análises dos livros Literatura Gaúcha 2004 de Luís Augusto Fischer e História da Literatura do Rio Grande do Sul 1956 de Guilhermino Cesar Existem aqui editoras que publicam apenas autores gaúchos Algumas delas inclusive têm distribuição restrita ao estado Ao fazer a afirmação acima Candido devia ter em mente por exemplo a obra de José de Alencar e de Gonçalves Dias o primeiro cearense o segundo maranhense mas ambos incorporados perfeitamente à literatura brasileira O caso do Rio Grande do Sul porém é exemplar para essa 23 discussão como bem observou Luís Augusto Fischer em texto publicado pela Universidade de Caxias do Sul Uma Reflexão sobre a Formação Regional apresentado num seminário na mesma universidade do qual reproduzo um trecho Literatura paulista não precisa existir insinua Candido mais do que na vida real Quer dizer explicito eu não é preciso pensar numa categoria como literatura paulista para que exista a literatura paulista ela mesma os autores e as obras E por que não precisa existir a categoria na visão de Candido Porque São Paulo cidade ou estado é suficientemente existente e central para impor sua presença sua marca sua influência sobre os escritores tão suficientemente existente que é o próprio centro do Brasil Outro é o caso gaúcho e pernambucano naturalmente Um e outro estados de maneira exclusiva na história brasileira experimentaram por breve mas marcante período a independência a vida autônoma no caso pernambucano durante a chamada dominação holandesa num momento que terá ficado no imaginário do povo a tal ponto que não serão poucas as tentativas de busca por maior autonomia de então em diante especialmente no episódio da Confederação do Equador e no caso gaúcho durante a República do Piratini pelo menos Duas províncias que lutaram por maior autonomia e que até hoje são reconhecidas interna e externamente como singularmente afeitas às idéias republicanas e federalistas Assim não estaremos afastados da justa interpretação quando notamos que a enumeração de Candido fere os casos centrais a considerar quando se trata de literatura regional Dito de modo liso e direto a noção de regionalidade está no quadro brasileiro vinculada diretamente à experiência do poder sobre o conjunto do país ao longo de sua formação FISCHER 2004 p 895 Os modernistas paulistas eram conscientes de que o estado tinha uma predominância econômica e política sobre o restante do país Dessa forma o que praticaram foi de certa forma uma imposição cultural a criação de uma literatura paulista destinada a ser a literatura brasileira Mas não se trata apenas de São Paulo ser o centro do Brasil nem do Rio Grande do Sul ou de Pernambuco terem tradições separatistas Na seqüência à frase anterior Candido afirma Neste artigo não interessa por isso mesmo delimitar produções e autores segundo critério estrito do nascimento mas segundo o critério mais compreensivo e certo da participação na vida social e espiritual da cidade de São Paulo Esta apresenta algumas características e é compreensível que a sua influência marque literariamente os que nela 5 As referências de página deste texto têm por base a versão original do autor cedida a mim antes da publicação da Editora da Universidade de Caxias do Sul EDUCS 24 vivem de modo mais forte que as do lugar em que nasceram CANDIDO 2002 p 139 A seqüência do raciocínio de Candido parece demonstrar uma contradição porque dá a entender que existe sim uma literatura paulista enquanto não existem outras literaturas regionais já que a participação na vida social e espiritual da cidade de São Paulo corresponde à idéia de sistema que Candido utilizou na Formação lembrando que esta estava sendo retomada nessa época depois de alguns anos em que o crítico se dedicou aOs Parceiros Mesmo que Candido esteja pensando numa unidade para a literatura brasileira nas reflexões acima que abrem o ensaio percebemos que para ele como observou Fischer literatura paulista não precisa existir mais do que na vida real Quer dizer não é preciso pensar numa categoria como literatura paulista para que exista a literatura paulista ela mesma os autores e as obras Para aprofundar a questão vejamos um exemplo Raul Bopp nasceu no Rio Grande do Sul mas toda sua carreira foi consolidada em São Paulo quando para lá se mudou saindo da adolescência Bopp escreveu uma poesia voltada para a cultura negra que denunciava as atrocidades cometidas contra os escravos Ninguém pensa em regionalismo quando trata de Raul Bopp mesmo que sua poesia não seja urbana e mesmo que ele seja gaúcho Portanto não importa o local em que cada autor nasceu nem se sua literatura está vinculada a sua região de origem ou principalmente a alguma região central do país mas sim o tipo de literatura que desenvolveu para ser enquadrado como um autor regionalista como veremos adiante Candido comparou Simões Lopes Neto e Coelho Neto num texto revelador das estratégias narrativas de cada um Bopp assim faz parte da literatura paulista e por isso não foi incluído por Fischer no já citado Literatura Gaúcha De qualquer forma vale frisar a última observação de Fischer o regionalismo é definido como tal a partir do centro e por quem está no centro mesmo que um determinado escritor regionalista ou que explora aspectos regionais esteja no centro Se existe uma literatura brasileira manifestandose de modo diferente nos diferentes Estados Candido poderia ter dito que existem literaturas estaduais para fugir da classificação do regionalismo e para demonstrar que elas todas acabam por constituir essa literatura brasileira e a ajudam na sua formação 25 15 NOTAS DE CRÍTICA LITERÁRIA SAGARANA E NO GRANDE SERTÃO À época dos lançamentos de Sagarana 1946 e Grande sertão veredas 1956 ambos de João Guimarães Rosa Antonio Candido publicou dois textos a respeito do acontecimento que era a publicação dessas narrativas para a literatura brasileira em especial a regionalista Apesar das datas de publicação dos livros serem afastadas cabe a comparação dos dois textos porque tratam do mesmo autor e do mesmo quadro histórico Os textos são respectivamente Notas de Crítica Literária Sagarana publicado no Diário de São Paulo em 11071946 e No Grande sertão publicado originalmente sob a rubrica Grande sertão veredas na seção Resenha Bibliográfica do Suplemento Literário de O Estado de São Paulo em 06101956 incluídos na coletânea Textos de Intervenção de 2002 No primeiro Candido afirma que Sagarana não vale apenas na medida em que nos traz um certo sabor regional mas na medida em que constrói um certo sabor regional isto é em que transcende a região A província do sr Guimarães Rosa no caso Minas é menos uma região do Brasil do que uma região da arte com detalhes e locuções e vocabulário e geografia cosidos de maneira por vezes quase irreal tamanha é a concentração com que trabalha o autor CANDIDO 2002 p 185 O crítico apenas três anos depois do texto Poesia Documento e História registra o surgimento de uma obra que trabalha diretamente com a arte que não ignora o pitoresco mas o incorpora ao mundo artístico Mais do que isso se alguns prosadores de 1930 ficaram conhecidos como romancistas do Nordeste Guimarães Rosa desenvolveu uma literatura regionalista profundamente ligada a Minas Gerais mas também muito ligada a um mundo completamente diferente de tudo que já se tinha produzido em termos de literatura regionalista no Brasil e segundo a reflexão exposta acima também em termos artísticos A seguir Candido faz uma defesa importante Por isso sustento e sustentarei mesmo que provem o meu erro que Sagarana não é um livro regional como os outros porque não existe região igual à sua criada livremente pelo autor com elementos caçados 26 analiticamente e depois sintetizados na ecologia belíssima das suas histórias Transcendendo o critério regional por meio de uma condensação do material observado condensação mais forte do que qualquer outra em nossa literatura da terra o sr Guimarães Rosa como que iluminou de repente todo o caminho feito pelos seus antecessores CANDIDO 2002 p 185 e 186 Será que realmente não existe região igual à sua Na época em que o crítico escreveu esse texto provavelmente não se sabia que Guimarães Rosa viveu toda sua infância no interior mineiro e nem que mais tarde para a escritura de Grande sertão veredas fez uma viagem pelo sertão do estado em 1952 tocando 600 cabeças de boi de uma fazenda a outra acompanhando um grupo de peões Outro trecho que chama atenção é quando fala em literatura da terra Literatura da terra significa neste caso literatura regional Aparentemente sim pois aqui o crítico ainda enquadra Rosa no grupo regionalista talvez por se tratar do primeiro livro do escritor mas isso é algo que não fará mais tarde com a continuação da obra rosiana O crítico aponta nomes de precursores regionalistas de Guimarães Rosa como Bernardo Guimarães Afonso Arinos Valdomiro Silveira Monteiro Lobato e outros para mostrar que eles mantinham uma relação de sujeito autor sobre o objeto a região ou de homem do litoral retratando o homem do campo Já Rosa estava preocupado em ir além em transcender o regional em buscar elementos que tornassem sua obra mais autêntica e duradoura trabalhando com elementos que tornaram sua prosa mais humana Sob o olhar de Candido Guimarães Rosa parece ter ido a uma fronteira ainda mais distante mesmo da de Graciliano Ramos Jorge Amado José Lins do Rego e Rachel de Queiroz No parágrafo seguinte o autor opina que Sagarana nasceu universal pelo alcance e pela coesão da fatura A língua parece finalmente ter atingido o ideal da expressão literária regionalista Densa vigorosa foi talhada no veio da linguagem popular e disciplinada dentro das tradições clássicas CANDIDO 2002 p 186 Candido utiliza uma adjetivação que não se repetirá mais tarde afirmar que uma obra é universal sem fazer ressalvas é algo que demonstra um certo deslumbramento diante de uma obra totalmente nova lembremos que o crítico tinha apenas 28 anos em 1946 Notese que o crítico enfatiza que Sagarana foi uma obra determinante também do ponto de vista lingüístico Aparentemente as tramas dos contos só ganham atenção 27 especial do crítico graças à linguagem utilizada para a construção do livro Mas o encantamento de Candido aparentemente também se dá por causa do registro de um mundo que está acabando nesta altura Candido já havia iniciado seu estudo para Os Parceiros que trata justamente desse assunto Mundo este completamente diferente do registrado pelos romancistas de 1930 que tinham muito mais compromisso com a representação da realidade do que Guimarães Rosa já que estavam preocupados com o registro da situação social das regiões retratadas O mundo de Rosa era um mundo ligado ainda ao passado um mundo primitivo exótico embora isso não seja transformado em exotismo Nas linhas seguintes o crítico observa que todos os problemas dos precursores de Guimarães Rosa a linguagem artificial o homem no mesmo nível da paisagem e dos animais se transformaram em suas mãos em outros fatores de vitória E frisa que a temática estava batida e aparentemente esgotada mas com o capricho meio oratório do estilo que há muito consideramos privativo da subliteratura CANDIDO 2002 p 187 e com a retomada eficaz de elementos que poderiam resultar em graves equívocos como o exotismo do léxico e a descrição em contraponto à ação e à introspecção do romance moderno o autor conseguiu transcender o critério regional E conclui observando que os antecessores de Rosa ficaram comendo poeira Pois o sr Guimarães Rosa partiu de todas estas condições algumas das quais bastaram para fazer naufragar escritores do maior talento como Monteiro Lobato ou reduzir às devidas proporções outros indevidamente valorizados como o velho Afonso Arinos não rejeitou nenhuma delas e chegou a verdadeiras obrasprimas como são alguns dos contos de Sagarana CANDIDO 2002 p 187 O crítico aqui é discretamente impiedoso Se antes Candido havia encarado Afonso Arinos como um escritor compreensivo o seu critério teve de ser reavaliado diante da obra de Guimarães Rosa O crítico parece não poder mais concordar com a maneira que era utilizada para encarar a obra de Arinos até então E mais toda a literatura regionalista brasileira teve de ser reavaliada depois de Sagarana E o mérito maior de Rosa parece ter sido saber selecionar o que havia de interessante entre os regionalistas do Romantismo os da virada do século XIX para o XX e os de 1930 Agora passemos ao segundo texto sobre Grande sertão veredas escrito dez anos depois e que inicia assim 28 Este romance é uma das obras mais importantes da literatura brasileira jato de força e beleza numa novelística algo perplexa como é atualmente a nossa Não segue modelos não tem precedentes nem mesmo talvez nos livros anteriores do autor que embora de alta qualidade não apresentam a sua característica fundamental transcendência do regional cuja riqueza peculiar se mantém todavia intacta graças à incorporação em valores universais de humanidade e tensão criadora CANDIDO 2002 p 190 A partir desse parágrafo podemos concluir que o crítico não esperava que ninguém nem mesmo o próprio Guimarães Rosa pudesse superar a maestria de Sagarana visto que Candido considerou à época do lançamento em 1946 que a obra transcendeu o critério regional Mas o próprio Rosa foi muito além dos limites do regional de todas as obras já produzidas dentro do regionalismo porque incorporou o folclore sem cair no pitoresco o que teria pensado Mario de Andrade a respeito de Grande sertão porque tratou o homem como ser humano e não como objeto porque incorporou metafísicos segundo Candido em depoimento recente incluído no Dvd da Edição Comemorativa de 50 anos de Grande sertão veredas Guimarães Rosa dizia que o que importa para o homem é saber apenas se Deus existe ou não Grande sertão é uma história que ultrapassa todas as formas da literatura nacional muito mais do que os paradigmas do regionalismo seja o dos românticos o da geração de 1930 seja o de Sagarana E continua sua análise sobre Grande sertão feita no calor da hora Mundo diverso da ficção regionalística feita quase sempre de fora para dentro e revelando escritor simpático compreensivo mas separado da realidade essencial do mundo que descreve e que enxerta num contexto erudito elementos mais ou menos bem apreendidos da personalidade costumes linguagem do homem rústico obtendo montagens não a integração necessária ao pleno efeito da obra de arte CANDIDO 2002 p 191 Mesmo sem expressar claramente como fará nas décadas seguintes por exemplo em A literatura e a formação do homem de 1972 discutido adiante Candido apontou a solução de Guimarães Rosa para o problema da literatura regionalista ao colocar um narrador em primeira pessoa para contar as aventuras de sua vida o escritor conseguiu quebrar o distanciamento que existia entre o narrador e o leitor nas obras anteriores do regionalismo Ou seja Guimarães Rosa atingiu seu êxito ao escrever uma ficção de dentro para fora assim como havia feito Simões Lopes Neto em Contos Gauchescos de 1912 como o crítico estudou no ensaio referido acima 29 O crítico prossegue sua análise Em Grande sertão veredas o aproveitamento literário do material observado na vida sertaneja se dá de dentro para fora no espírito mais que na forma O autor inventa como se havendo descoberto as leis mentais e sociais do mundo que descreve fundisse num grande bloco um idioma e situações artificiais embora regidos por acontecimentos e princípios expressionais potencialmente contidos no que registrou e sentiu Sob este aspecto ao mesmo tempo de anotação e construção lembra os compositores que infundiram o espírito dos ritmos e melodias populares numa obra da mais requintada fatura como Bela Bartók Comparada a semelhante processo a literatura regionalista não ultrapassa a esfera do programa caipira CANDIDO 2002 p 191 A impressão de Candido é de que Guimarães Rosa conseguiu unir ficção e realidade na construção de seu romance ao inventar algo que havia registrado e sentido o escritor mineiro conseguiu compor uma obra em que a ficção diz respeito a questões importantes para qualquer homem em qualquer lugar do planeta E o crítico não se cansou de comparar a narrativa a obras artísticas do primeiro time como Machado de Assis e Graciliano Ramos embora diferentes quanto aos aspectos explorados E fez isso não por uma questão nacionalista xenófoba mas pela importância do que está sendo contado pelo exjagunço Riobaldo Isso tudo porque é uma obra em que seu autor acabou transcendendo o regionalismo que Candido acreditava ter sido transcendido em Sagarana Para conter tanta riqueza plástica e emocional Guimarães Rosa uniu pitoresco e essencial numa técnica narrativa admirável marcada pelo vaivém o parêntese a antecipação a digressão a retomada que ampliam a nossa percepção em amplitude e profundidade para desembocar na linha reta e palpitante da terça parte final quando Riobaldo assume o destino nas mãos disposto a aceitar o bem e o mal Refinamento técnico e força criadora fundemse então numa unidade onde percebemos emocionados desses raros momentos em que a nossa realidade particular brasileira se transforma em substância universal perdendo a sua expressão aquilo que por exemplo tinha de voluntariamente ingênuo na rapsódia dionisíaca de Macunaíma para adquirir a soberana maturidade das obras que fazem sentir o homem perene CANDIDO 2002 p 192 Candido reconhece que Macunaíma que é claramente um livro cheio de pretensões parece uma simples fábula ao lado de Grande sertão Ao relembrar a obra de Mario de Andrade Antonio Candido está registrando e podese mesmo dizer 30 reconhecendo que o valor da aventura idealizada pelo autor paulista é inferior à do mineiro Para o crítico o Brasil está muito mais próximo da realidade de Grande sertão veredas do que se poderia imaginar E Guimarães Rosa consegue isso tudo como já observado pelo crítico graças à união do pitoresco ao essencial graças ao que ele pôde aproveitar de seus antecessores regionalistas mas também graças à proposta modernista 16 O HOMEM DOS AVESSOS O Homem dos Avessos artigo publicado originalmente sob o título O Sertão e o Mundo em 1957 e incluído em Tese e Antítese de 1964 trata de Grande sertão veredas com mais profundidade Este ensaio é especialmente interessante porque em nenhum momento o crítico utiliza a palavra regionalismo ou regional ou regionalista apesar de tratar e de ter consciência de que está tratando de um mundo regional A divisão do ensaio de Candido remete a Os Sertões de Euclides da Cunha relação estabelecida por Candido já que tanto numa obra quanto em outra há três elementos estruturais que apóiam a composição a terra o homem a luta Grande sertão veredas é analisado apenas um ano depois de sua publicação e leva Antonio Candido a concluir que baseandose em critérios fundamentais para o trato da literatura regional Guimarães Rosa conseguiu fugir ao naturalismo típico da tendência regional e atingiu um alto patamar que leva o leitor a refletir sobre o que está apresentado Uma obsessiva presença física do meio uma sociedade cuja pauta e destino dependem dele como resultado o conflito entre os homens Mas a analogia entre Os Sertões e Grande sertão pára aí não só porque a atitude euclideana é constatar para explicar e a de Guimarães Rosa inventar para sugerir como por que a marcha de Euclides da Cunha é lógica e sucessiva enquanto a dele é uma trança constante de três elementos refugindo a qualquer naturalismo e levando não à solução mas à suspensão que marca a verdadeira obra de arte e permite a sua ressonância na imaginação e na sensibilidade CANDIDO 2002 p 123 A seguir o crítico passa a comentar o cenário em que se passam as aventuras narradas do romance do escritor mineiro o meio físico tem para ele uma realidade envolvente e bizarra servindo de quadro à concepção do mundo e de suporte ao 31 universo inventado Nele a paisagem rude e bela é de um encanto extraordinário CANDIDO 2002 p 123 Candido observa que nesse cenário recheado de aridez e secura o homem do sul é um estranho e que o mundo de Guimarães Rosa parece esgotarse na observação Mas aí o autor faz uma ressalva essa descrição do espaço do romance está a serviço da narração Começamos então a sentir que a flora e a topografia obedecem freqüentemente a necessidades da composição que o deserto é sobretudo projeção da alma e as galas vegetais simbolizam traços afetivos Aos poucos vemos surgir um universo fictício à medida que a realidade geográfica é recoberta pela natureza convencional CANDIDO 2002 p 124 Guimarães Rosa conseguiu equilibrar a descrição do local com a psicologia da personagem principal Riobaldo e com a história por ele contada considerandose aí não só a história de sua vida como toda a experiência social da vida no sertão da vida de jagunço É possível que Candido tenha tido contato com o ensaio Narrar ou Descrever de Georg Lukács escrito em 19366 Na seqüência Candido concentrase na função do rio São Francisco para a composição do romance apontando acontecimentos determinantes da narrativa ocorridos em cada lado do rio o que acaba por dividir também o real e o fantástico em cada lado como observado pelo próprio crítico apesar de serem elementos quase inseparáveis Dessa forma a função exercida pela topografia é variável conforme a situação CANDIDO 2002 p 125 Na parte seguinte do ensaio O homem Antonio Candido para compor sua análise parte da premissa de que os homens são produzidos pelo meio físico o Sertão os encaminha e desencaminha proporcionando um comportamento adequado à sua rudeza CANDIDO 2002 p 127 Essa rudeza aparece sob a forma da violência tema que será trabalhado anos mais tarde pelo crítico em Jagunços mineiros de Cláudio a Guimarães Rosa A luta a violência e o jaguncismo são elementos característicos desses homens o que acaba se tornando parte do regionalismo literário brasileiro segundo a visão de Candido em especial quando se trata de Grande sertão A partir desses elementos o regionalismo também parece apoiarse na idéia de que o cenário retratado é um mundo sem lei assim como o dos romances de Cavalaria para utilizar 6 LUKÁCS Georg Ensaios sôbre literatura 2ª ed Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1968 p 47 100 32 um exemplo do próprio crítico em O Homem dos Avessos A aproximação de Grande sertão veredas ao romance de Cavalaria passa a ser o foco de Candido no ensaio mas diferente do paladino cavaleiresco o jagunço é um bandido A última parte do texto O problema trata da dúvida de Riobaldo com relação à existência de Deus e do Diabo A respeito do assunto Candido faz uma observação elucidativa sobre o homem do Sertão mas por que o demônio em tudo isso Porque nada encarnaria melhor as tensões da alma nesse mundo fantástico nem explicaria mais logicamente certos mistérios inexplicáveis do Sertão CANDIDO 2002 p 136 E mais adiante O demônio surge então como acicate permanente estímulo para viver além do bem e do mal e bem pesadas as coisas o homem no Sertão o homem no mundo não pode existir doutro modo a partir duma certa altura dos problemas Viver é muito perigoso repete Riobaldo a cada passo não só pelos acidentes da vida mas pelas dificuldades em saber como vivêla CANDIDO 2002 p 137 Essa dificuldade de Riobaldo encarar a vida é que o leva à reflexão sobre o bem e o mal sobre Deus e o Diabo sobre qual caminho seguir o da paz ou o da luta Nos últimos parágrafos do texto Candido analisa essa questão colocando Riobaldo no lugar dos paladinos ao invés de no dos jagunços O jagunço sendo o homem adequado à terra O sertão é o jagunço não poderia deixar de ser como é mas ao manipular o mal como condição para atingir o bem possível no Sertão transcende o estado de bandido Bandido e nãobandido portanto é um ser ambivalente que necessita revestirse de certos poderes para definir a si mesmo O pacto desempenha esta função na vida do narrador cujo Eu a partir desse momento é de certo modo alienado em benefício do Nós do grupo a que o indivíduo adere para ser livre no Sertão e que ele consegue levar ao cumprimento da tarefa de aniquilar os traidores os Judas Graças a isto é vencida pelo menos na duração do ato a ambigüidade do jagunço que se fez integralmente paladino Tanto que Riobaldo não prossegue nas armas e se retira acompanhado por grande parte dos seus fiéis Os seus feitos tenderam mesmo a aniquilar a condição de jagunço bandido e ele se justifica aos próprios olhos nessa negação do ser de exceção em benefício da existência comum na fazenda que herdou do padrinho e pai ao lado de Otacília prêmio das andanças O que mormente me fortalecia foi o repetido saber que eles pelo sincero me prezavam como talentoso homem de bem e louvavam meus feitos eu tivesse vindo corajoso para derrubar o Hermógenes e limpar estes gerais da jagunçagem CANDIDO 2002 p 138 e 139 33 Dessa forma Riobaldo parece ser o primeiro paladino regional do Brasil e da literatura brasileira Renunciando aos altos poderes que o elevaram por um instante acima da própria estatura o homem do Sertão se retira na memória e tenta laboriosamente construir a sabedoria sobre a experiência vivida porfiando num esforço comovedor em descobrir a lógica das coisas e dos sentimentos E me inventei neste gosto de especular idéias Desliza então entre o real e o fantástico misturados na prodigiosa invenção de Guimarães Rosa como lei da narrativa E nós podemos ver que o real é ininteligível sem o fantástico e que ao mesmo tempo este é o caminho para o real Nesta grande obra combinamse o mito e logos o mundo da fabulação lendária e o da interpretação racional que disputam a mente de Riobaldo nutrem a sua introspecção tacteante e extravasam sobre o Sertão CANDIDO 2002 p 139 Pelos trechos apresentados fica claro que Candido ainda estava sob o impacto da primeira leitura da obra Sua análise busca uma tentativa de compreensão e interpretação da narrativa A preocupação do crítico era entender a aparição de Grande sertão veredas não apontar uma conclusão a respeito das questões levantadas pelo livro sobre Minas Gerais o Brasil ou o mundo talvez porque aceita a afirmação do narrador de que o sertão é o mundo Apenas alguns anos mais tarde Candido conseguiria enxergar que Grande sertão veredas era uma obra que apontava o atraso do interior do Brasil e que marcava o fim de um mundo Literatura e Subdesenvolvimento embora esse raciocínio já estivesse implícito em Poesia Documento e História em 1943 No momento em que escreveu este O Homem dos Avessos o crítico queria compreender os elementos narrativos da obra assim como Riobaldo se inventando nesse gosto de especular idéias Afinal não existia no Brasil uma obra literária que fundisse elementos mágicos Tratavase de uma realidade brasileira que era preferível manter esquecida ou ignorada segundo a lógica do governo de então o sertão era um mundo a ser ignorado ou destruído como foi o caso da Guerra de Canudos objeto do texto de Euclides o mundo sertanejo tinha de estar marcadamente separado do mundo urbano desenvolvido Antes de apontar a importância social do romance ou mesmo antes de percebêla era determinante compreender sua estrutura E isso não ocorreu apenas com Grande sertão veredas basta conferir por exemplo as já citadas análises sobre as Memórias de um sargento de milícias de Manuel Antonio de Almeida Por isso O Homem dos Avessos pode ser 34 considerado um ensaio diferente dos outros do crítico Ele não estava tentando compreender a realidade ali representada apenas a estrutura literária da obra De 1943 a 56 Antonio Candido demonstrou uma radical mudança na percepção do tema regional na literatura brasileira Isso parece ter sido agravado devido a três fatores principais 1º a situação social e política do Brasil com a industrialização promovida pelo Estado Novo de um lado e o atraso secular a que estavam submetidas algumas regiões do país de outro 2º o início de seu estudo sobre a vida do caipira que será analisado adiante e 3º o lançamento de Sagarana que injetou força na literatura brasileira ao explorar o regionalismo que estava aparentemente esgotado É provável que sem esses acontecimentos o crítico acompanhasse opiniões consagradas e não fizesse restrições como a que fez a Afonso Arinos o que acabará por estender a outros escritores como Monteiro Lobato e Valdomiro Silveira 35 CAPÍTULO II MOMENTOS DECISIVOS 21 OS PARCEIROS DO RIO BONITO Em 1945 como já comentado Antonio Candido conquistou a livredocência com a Introdução ao Método Crítico de Silvio Romero e tornouse doutor em Letras que era o seu objetivo Nessa época Candido já era professorassistente de Fernando de Azevedo desde 1942 na USP na disciplina Sociologia II função que exerceu até 1958 após a defesa dOs parceiros do Rio Bonito Estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida Os parceiros foi a sua tese de doutorado em Sociologia defendida em 1954 em livro o texto só apareceu dez anos depois portanto em 1964 O objetivo inicial de Candido era estudar a poesia popular como manifestada no Cururu um tipo de dança cantada do caipira paulista O trabalho acabou transformandose numa pesquisa sobre os modos de subsistência de uma pequena comunidade rural de Bofete SP antiga Rio Bonito Com relação à tese é importante observar de que maneira ela contribuiu para a crítica literária de Candido Sobre o assunto Luiz Carlos Jackson autor de uma dissertação de mestrado sobre a tese afirma Não pretendemos discutir se a crítica literária de Antonio Candido é sociológica para validar ou não sua preocupação com o meio social e a história Nosso problema é outro aparentemente a produção especificamente sociológica cujo núcleo é PRB Os parceiros do Rio Bonito não tem ligação estreita com a crítica A primeira hipótese deste trabalho afirma o contrário apesar da evidente distância temática Os parceiros e a Formação da Literatura Brasileira respondem de forma diferenciada à mesma preocupação apontando para uma unidade interna à diversidade de sua produção que a vinculam a problemas típicos de uma tradição específica do pensamento brasileiro A primeira hipótese está diretamente ligada à segunda Os parceiros do Rio Bonito não é apenas uma monografia antropológica ou um estudo de comunidade mas uma interpretação mais ampla de nossa formação social A afirmação pode parecer exagerada pois o livro descreve a vida de um grupo de parceiros na fazenda Bela Aliança situada no pequeno município de Bofete no interior de São Paulo É a 36 partir do parceiro de Bofete entretanto que Antonio Candido recupera a formação histórica da cultura caipira no Estado de São Paulo e com ela uma dimensão fundamental do passado do Brasil JACKSON 2002 p 14 A partir dos conhecimentos proporcionados pela pesquisa Antonio Candido passou a ter também ele uma dimensão fundamental do passado do Brasil além da dimensão presente da época o que certamente lhe ajudou a compreender melhor os textos literários que analisava e criticava especialmente os de temática rural O trabalho de campo para a pesquisa foi empreendido entre os anos de 1947 e 1954 É importante registrar desde já que Candido produzia ao mesmo tempo a Formação da Literatura Brasileira iniciada em 1946 e entregue ao editor em 1957 mas publicada apenas em 1959 neste capítulo estou iniciando a análise pelo texto que foi concluído antes e não pelo critério da data de publicação afinal as datas de conclusão desses textos são conhecidas diferente das de outros Importam aqui no entanto apenas os capítulos dedicados à análise da cultura dessa sociedade e do relacionamento entre as pessoas que a compunham Esses elementos acabariam de formas variadas sendo pressupostos ou objetos da crítica literária de Candido portanto são eles que mais nos interessam O trabalho trata ainda da economia da alimentação das relações de trabalho e comércio da natureza da região e das técnicas utilizadas na manipulação dos gêneros 211 O BAIRRO E O MUTIRÃO Bairro segundo informa Candido são os grupos rurais de vizinhança CANDIDO 2001 p 81 Esses bairros integram as famílias de moradores permanentes sitiantes e fazendeiros e transitórios cultivadores nômades agregados e posseiros por morarem próximos uns dos outros O que é bairro perguntei certa vez a um velho caipira cuja resposta pronta exprime numa frase o que se vem expondo aqui Bairro é uma naçãozinha Entendase a porção de terra a que os moradores têm consciência de pertencer formando uma certa unidade diferente das outras CANDIDO 2001 p 84 37 Nesse sentido a noção de identidade e de pertencimento a um local estava firmada entre os moradores permanentes o que Candido chama de sentimento de localidade Dentro desses bairros moravam famílias cuja convivência depende da proximidade física e da necessidade de cooperação CANDIDO 2001 p 84 Havia um sistema de solidariedade entre os moradores da fazenda Bela Aliança denominado mutirão que consistia num trabalho conjunto de vários habitantes para por exemplo a construção de casas para eles próprios Além disso As várias atividades da lavoura e da indústria doméstica constituem oportunidades de mutirão que soluciona o problema de mão deobra nos grupos de vizinhança por vezes entre fazendeiros suprimindo as limitações da atividade individual ou familiar E o aspecto festivo de que se reveste constitui um dos pontos importantes da vida cultural do caipira CANDIDO 2001 p 88 Numa região em que as atrações de lazer são nulas o convívio entre moradores desenvolvendo atividades pesadas pode acabar se tornando prazeroso Cada mutirão era seguido de uma confraternização oferecida pelo habitante que estava recebendo o auxílio Além disso o mutirão constituía um exercício de caridade irrecusável Um velho caipira me contou que no mutirão não há obrigação para com as pessoas e sim para com Deus por amor de quem serve o próximo por isso a ninguém é dado recusar auxílio pedido Um outro referindose ao tempo de dantes dizia que era o tempo da caridade justamente por essa disposição universal de auxiliar na lavoura a quem solicitasse Ambos todavia se referiam sempre a auxílio de moradores do mesmo bairro que era o limite da cooperação e dos deveres CANDIDO 2001 p 89 Candido relata ainda casos de cooperação não solicitada em que os vizinhos percebiam que um deles estava com seu serviço atrasado e promoviam o mutirão sem o pedido ou aviso prévio No sudoeste de Minas parte da área caipira paulista chamase a isto traição para significar o seu caráter de surpresa CANDIDO 2001 p 89 Outra surpresa também relatada e descrita era imposta aos moradores na luta contra incêndios em que se misturam os convocados e aqueles que acorreram de maneira espontânea 38 Mais uma das principais atividades de sociabilidade é o que o crítico chama de vida lúdicoreligiosa Tratase de um complexo de atividades que transcendem o âmbito familiar encontrando no bairro a sua unidade básica de manifestação Ao lado e freqüentemente em lugar dessa prática centralizada pela vila há a série considerável de práticas que têm por universo o grupo rural de vizinhanças Sob este aspecto poderíamos definir o bairro como o agrupamento mais ou menos denso de vizinhança cujos limites se definem pela participação dos moradores nos festejos religiosos locais Quer os mais amplos e organizados geralmente com apoio na capela consagrada a determinado santo quer os menos formais promovidos em caráter doméstico Vemos assim que o trabalho e a religião se associam para configurar o âmbito e o funcionamento do grupo de vizinhança cujas moradias não raro muito afastadas umas das outras constituem unidade na medida em que participam no sistema destas atividades CANDIDO 2001 p 9495 Ao perceber a religião como uma manifestação básica de vida social que envolve os diversos membros da comunidade estudada Candido estava reconhecendo empiricamente um elemento muito explorado pela literatura regionalista De Franklin Távora a Guimarães Rosa a religião é objeto constante de reflexão do homem sertanejo representado pelos personagens de seus autores O melhor exemplo disso está provavelmente em Grande sertão veredas Riobaldo ao narrar a história de sua vida como cangaceiro pensa constantemente na existência de Deus e especialmente do Diabo Mas além de concluir que o Diabo não existe Amável o senhor me ouviu minha idéia confirmou que o Diabo não existe Nonada O diabo não há É o que eu digo se for Existe é homem humano Travessia ROSA 2001 p 624 Riobaldo ressalta a importância do trabalho e da retidão que o estão acompanhando em direção à velhice Assim como para ele para os moradores dos bairros de Bofete não basta o trabalho é fundamental ter algo em que acreditar É fundamental ter fé em Deus e temer o Diabo como podemos conferir através de um dos casos narrados a Candido por Nhô Roque um dos habitantes da Fazenda Bela Aliança O milagre do diabo CANDIDO 2001 p 349 mesmo quando o diabo possa fazer até o bem como no caso citado Diante disso Candido faz uma definição do bairro O bairro é pois o agrupamento básico a unidade por excelência da sociabilidade caipira Aquém dele não há vida social estável e sim o fenômeno ocasional do morador isolado que tende a superar este estádio ou cair em anomia além dele há agrupamentos 39 complexos relações mais seguidas com o mundo exterior características duma sociabilidade mais rica Ele é a unidade em que se ordenam as relações básicas da vida caipira rudimentares como ele É um mínimo social CANDIDO 2001 p 98 Assim o bairro acabava se desenvolvendo forçado também pelo aumento de sua população e pela necessidades que surgiam o que acarretava uma flexibilidade social e estrutural Ao final do capítulo Candido reflete ainda sobre a influência da origem familiar na configuração dos bairros que determinava subdivisões territoriais e conseqüentemente o aparecimento de novos bairros a cultura caipira se desenvolveu e conservou na base dos agrupamentos rurais mais ou menos autárquicos onde aparecem em toda a sua rusticidade equilibrada aqueles mínimos de vida e sociabilidade cuja manifestação se vem pesquisando no presente trabalho CANDIDO 2001 p 102 Com esse fechamento Candido estabelece o nexo com o próximo capítulo que trata especificamente da análise da cultura caipira 212 O CAIPIRA E A SUA CULTURA No quinto capítulo dOs Parceiros Candido faz uma rápida análise entre o homem caipira e a sua representação literária Tendo conseguido elaborar formas de equilíbrio ecológico e social o caipira se apegou a elas como expressão de sua própria razão de ser enquanto tipo de cultura e sociabilidade Daí o atraso que feriu a atenção de SaintHilaire e criou tantos estereótipos fixados sinteticamente de maneira injusta brilhante e caricatural já no século XX no Jeca Tatu de Monteiro Lobato CANDIDO 2001 p 107 A relação que o crítico estabelece pode ser considerada equivocada O atraso não feriu SaintHilaire por causa das formas de equilíbrio ecológico e social mas pela sua experiência urbana que contrastava com os problemas enfrentados pelo homem do campo De qualquer forma aqui o crítico literário parece tomar o lugar do sociólogo ou pelo menos influenciar o seu pensamento Como o atraso das formas de equilíbrio 40 ecológico e social do caipira contribuiu para a criação de estereótipos fixados sinteticamente de maneira injusta brilhante e caricatural na literatura especificamente na de Monteiro Lobato Ora a cultura caipira é uma das mais peculiares do Brasil facilmente identificável reconhecível A impressão que se tem e que é a do crítico nesse trecho é que o caipira sempre esteve fechado para outras culturas ou influências externas como se comprovará num trecho reproduzido logo abaixo Ou no mínimo nunca conseguiu assimilálas muito bem o que a qualifica como uma cultura extremamente original Dessa forma seria difícil representála sem transformála numa caricatura Nem por isso contudo essa caricatura deixa de ser brilhante apesar de injusta Brilhante porque conseguiu captar a peculiaridade do caipira seus hábitos seu universo seus sentimentos mas injusta porque não deixou de lado o exótico e o pitoresco tão presentes na literatura regionalista brasileira até o início do século XX Toda caricatura é um exagero o lado humano do Jeca Tatu porém fez com que a obra de Monteiro Lobato se tornasse um sucesso editorial Este elemento humano é que não estava presente na literatura de Afonso Arinos ou antes de Franklin Távora e José de Alencar por motivos diversos que serão explorados a seguir Candido ainda reflete sobre essa dificuldade da cultura do caipira se flexionar e deixarse influenciar Vejamos a continuação do trecho acima Em verdade esse mecanismo de sobrevivência pelo apego às formas mínimas de ajustamento provocou certa anquilose de sua cultura Como já se tinha visto no seu antepassado índio verificouse nele certa incapacidade de adaptação rápida às formas mais produtivas e exaustivas de trabalho no latifúndio da cana e do café Esse caçador subnutrido senhor do seu destino graças à independência precária da miséria refugou o enquadramento do salário e do patrão como eles lhe foram apresentados em moldes traçados para o trabalho servil CANDIDO 2001 p 107 É possível relacionar esse comentário ao Jeca Tatu de Lobato uma caricatura de um caipira sem patrão subnutrido preguiçoso e miserável Adiante Candido nos ilumina o destino dessa cultura caipira A cultura do caipira como a do primitivo não foi feita para o progresso a sua mudança é o seu fim porque está baseada em tipos tão precários de ajustamento ecológico e social que a alteração destes provoca a derrocada das formas de cultura por eles condicionada Daí o fato de encontrarmos nela uma continuidade impressionante uma 41 sobrevivência das formas essenciais sob transformações de superfície que não atingem o cerne senão quando a árvore já foi derrubada e o caipira deixou de o ser CANDIDO 2001 p 107108 Não só a cultura do caipira estava condicionada a desaparecer diante da mudança como também o destino de qualquer cultura regional arraigada demais em tradições que acabariam sendo atropeladas pelo desenvolvimento urbano industrial e econômico Vide o conflito atual da cultura gauchesca que tenta manter hábitos do passado ao mesmo tempo em que é bombardeada por elementos estrangeiros7 Isso se reflete também na homogeneidade da cultura caipira Candido observa que dessa forma o isolamento cultural é favorecido assim como a estabilização das formas sociais ao contrário das diferenças que dão lugar a uma situação de vasos comunicantes onde o contacto torna possível a passagem dos elementos heterogêneos de um grupo a outro CANDIDO 2001 p 108 O progresso não teve piedade com a cultura caipira e o que Candido estava registrando em Os Parceiros era o fim desse mundo Ao ficar impedida a convivência entre os agrupamentos isolados por causa de suas estabilidades relativas como descreve o crítico as transformações sociais dos anos 60 e 70 acabariam promovendo uma renovação inevitável nos hábitos do caipira fazendo com que esses hábitos gerassem uma outra cultura Outra relação que pode ser estabelecida entre a crítica literária de Candido e a análise sociológica executada nOs Parceiros é com relação à violência do caipira No ensaio Jagunços Mineiros de Cláudio a Guimarães Rosa de 1966 o crítico analisa as relações entre a literatura regional de Minas Gerais e a exploração que esta faz da violência Mesmo tratando de tipos diferentes o caipira e o jagunço em um e outro texto podemos perceber alguns pontos comuns Por enquanto fiquemos com as observações de Candido sobre a violência do caipira 7 Os Centros de Tradições Gauchescas CTGs surgiram nos anos 40 para preservar essa cultura mas muitos deles acabaram tornandose atração turística E aí se assemelham aos elementos explorados por escritores regionalistas como Afonso Arinos Coelho Neto e Valdomiro Silveira que se preocupavam unicamente com o exótico e o pitoresco das regiões retratadas Já foi comentado anteriormente como demonstrou o próprio Antonio Candido num ensaio analisado no terceiro capítulo deste trabalho o escritor que solucionou esse problema foi justamente um gaúcho João Simões Lopes Neto Ele deu voz diretamente a um narrador em primeira pessoa o Blau Nunes de Contos Gauchescos que relata casos que presenciou ou participou ao longo da vida numa prosa recheada de gírias localistas mas respeitando a sintaxe da língua portuguesa Simões Lopes Neto demonstrou assim como era possível realizar uma literatura regional sem cair na superficialidade de um narrador culto em terceira pessoa que vê nos seus personagens uma criatura distante exótica e pitoresca Em outras palavras o que alguns CTGs estão fazendo é o mesmo que faziam os escritores citados acima ou seja estão tratando o seu objeto como algo completamente estranho e mais do que isso o transformando em mercadoria Uma cultura não tem como sobreviver desse modo 42 A ociosidade parece com efeito ter sido verdadeiro flagelo do século XVIII momento crítico da história paulista quando a sedentarização se impôs de modo geral requerendo a reorganização dos hábitos e a redefinição dos valores sociais mais prezados É nele que parecem haverse configurado os traços fundamentais da cultura caipira que se vinha esboçando desde o início da colonização Aí se as camadas superiores puderam afazendarse graças à canadeaçúcar e ao braço negro as demais contribuíram com uma quota apreciável de desocupados de aventureiros deixados sem enquadramento pela desbandeirização se for permitido o termo e que contribuíram para a massa de agregados posseiros desbravadores que se estabilizariam em grande parte no nível de sitiante mas que formariam também os valentões autônomos ou a soldo CANDIDO 2001 p 111 O crítico demonstra assim como se arregimentou a ociosidade do caipira que acabou dando espaço à violência e à bestialidade além da vadiagem Mais do que isso a análise é um registro a respeito do desnível social paulista que se reflete até os dias de hoje Com a evolução e o crescimento das cidades paulistas o caipira também foi deixando o interior para integrarse à cidade grande ou a cidade acabou incorporando o caipira e nessa transformação também estavam os valentões citados por Candido É claro que este movimento social ocorreu em vários estados brasileiros como exemplo basta lembrar a Trilogia do Gaúcho a pé de Cyro Martins De qualquer modo ficaram no caipira não apenas certo pendor para a violência como marcas nítidas de inadaptação ao esforço intenso e contínuo CANDIDO 2001 p 111 Essa dificuldade para o trabalho não deve ser considerada vadiagem segundo Candido e sim desnecessidade de trabalhar Resumindo podemos dizer que o desamor ao trabalho estava ligado à desnecessidade de trabalhar condicionada pela falta de estímulos prementes a técnica sumária e em muitos casos a espoliação eventual da terra obtida por posse ou concessão Em conseqüência resultava larga margem de lazer que vista de certo ângulo funcionava como fator positivo de equilíbrio biossocial O lazer era parte integrante da cultura caipira condição sem a qual não se caracterizava não devendo portanto se julgado no terreno ético isto é ser condenado ou desculpado segundo é costume Ele se encontrava aliás por assim dizer racionalizado graças à observância dos dias de guarda os dias desastrosos nos quais se acredita que o trabalho pode causar prejuízo grave devido ao desrespeito pela norma religiosa CANDIDO 2001 p 112113 43 O atraso das técnicas de trabalho e a falta de estímulos levavam o caipira a não sentir o trabalho como uma necessidade básica E aí Candido apresenta o contraponto ao valentão comentado acima um caipira desocupado mas nem por isso vadio que tem nas atividades de lazer o ponto alto de seu esforço como analisa Nardy Filho em trecho reproduzido por Candido Se para a maioria a semana conta seis dias úteis para o nosso jeca conta apenas quatro No sábado ele não vai à roça fica em casa preparando os seus aviamentos de caça e pesca ou em preparativos para ir no domingo à vila na segunda ele descansa da canseira do domingo E acrescenta como conhecedor prático do assunto Não quero dizer com isto que seja um vadio Não em absoluto simplesmente não é ambicioso nem previdente Desambição e imprevidência devem ser interpretadas como a maneira corrente de designar a desnecessidade de trabalho no universo relativamente fechado e homogêneo de uma cultura rústica em território vasto CANDIDO 2001 p 1148 No trecho acima Candido identifica os motivos do fim da cultura caipira e por que não dizer o fim do mundo caipira e do próprio caipira avesso ao trabalho as atitudes de desambição e imprevidência não combinam com os tempos modernos A exigência de organização levou os caipiras a se defrontar com uma situação com a qual não conseguiam lidar analisada pelo autor na conclusão de Os Parceiros 213 O CAIPIRA EM FACE DA CIVILIZAÇÃO URBANA A conclusão de Os Parceiros do Rio Bonito trata da incorporação progressiva à esfera da cultura urbana por parte do caipira A marcha deste processo culminou na ação já anteriormente exercida por outros fatores como o aumento da densidade demográfica a preponderância da vida econômica e social das fazendas a diminuição das terras disponíveis De maneira que hoje quando estudamos a vida caipira não podemos mais reportarnos ao seu universo por assim dizer fechado mas à sua posição no conjunto da vida do estado e do país CANDIDO 2001 p 271 8 As citações entre aspas são de F Nardy Filho do texto O nosso Jeca e o mês de maio publicado no jornal O Estado de S Paulo em 5 de novembro de 1953 44 Ao perceber que o caipira estava incorporado ao conjunto da vida do estado e do país Candido observou que a vida do caipira começava a ser pautada pelos níveis normas e padrões definidos pela vida urbana Colocado em face desta situação o caipira reage de duas maneiras principais rejeita em bloco as suas condições de vida e emigra proletarizandose ou procura permanecer na lavoura ajustandose como possível Vimos que tal ajuste é mais satisfatório no sitiante médio precário no parceiro mais ainda no colono e no camarada podendo dar lugar à decadência e à plena miséria Em todos eles porém vimos que pode darse 1 aceitação total 2 rejeição total ou 3 aceitação parcial dos traços introduzidos pela nova situação sendo a última hipótese mais comum e normal nos que permanecem no campo Entre os que emigram o ajustamento à situação urbana dadas certas condições econômicas mínimas é quase sempre mais fácil do que poderia parecer e se deve ao fato de mesmo no ritmo atual de incorporação rápida o afastamento cultural entre os agrupamentos rurais e os centros urbanos ser menos abrupto do que supomos Como assinalam os estudiosos para o caso da música da poesia e dos contos muito do que reputamos específico das culturas rústicas é na verdade fruto duma lenta incorporação de padrões eruditos Processo que se poderia com justeza chamar de degradação cultural se fosse possível dar à expressão o sentido etimológico despindoa de qualquer significado pejorativo CANDIDO 2001 p 272 Ao comparar sua vida à vida urbana o caipira começava a assimilar os traços da civilização concebida pela cidade Fazendo isso o que na realidade estava acontecendo não era apenas um processo de degradação cultural mas sim de desligamento total da sua cultura original A incorporação da cultura urbana à vida do caipira levouo a esquecer ou ignorar por completo suas raízes embora a cultura caipira seja uma cultura rústica portanto seria difícil o acesso a uma cultura como a urbana Graças a tais conexões compreendese que o caipira consiga freqüentemente no espaço de alguns anos se não assimilarse ao menos acomodarse satisfatoriamente nos padrões propostos pela civilização urbana E aqui podemos indicar que o processo de urbanização civilizador se o encararmos do ponto de vista da cidade se apresenta ao homem rústico propondo ou impondo certos traços de cultura material e nãomaterial Impõe por exemplo novo ritmo de trabalho novas relações ecológicas certos bens manufaturados propõe a racionalização do orçamento o abandono das crenças tradicionais a individualização do trabalho a passagem à vida urbana Formulando novamente o que ficou dito podemos verificar no caipira paulista três reações adaptativas em face de tal processo 1 aceitação dos traços impostos e propostos 2 45 aceitação apenas dos traços impostos 3 rejeição de ambos CANDIDO 2001 p 272273 Aceitando os traços impostos ou propostos ou ambos o caipira acabava por iniciar o processo que culminaria no fim de sua cultura Como Candido observou numa passagem transcrita acima a mudança da vida cultural do caipira era o seu fim Desse modo o tipo que mais interessa ao estudioso é o que opta pela segunda reação O primeiro e o terceiro casos correspondem em tese ao indivíduo ou à família que enfrentam como tais a situação nova seja porque se desligaram do grupo seja porque este se desintegrou ou está em vias de desintegração O segundo corresponde à situação enfrentada em grupo e se cabe a expressão pelo grupo CANDIDO 2001 p 274 O segundo grupo é o que tentava preservar a sua identidade em meio às transformações que fatalmente teria de sofrer O primeiro caso parece ser daquele caipira que não se importa com a preservação de sua cultura ou que sente que a cultura urbana é mais adequada O terceiro corresponde a um caipira que não apenas não quer se desfazer de seus hábitos mas que se sente mais do que ameaçado destruído pela renovação civilizatória Assim para o segundo grupo A conservação de traços aparece pois como fator de defesa grupal e cultural representando o aspecto de permanência A incorporação dos novos traços representa a mudança A situação de crise no agrupamento pesquisado deriva do fato de não se observar nele estabilização imediata dos dois processos verificandose uma perda de traços relativamente maior do que a aquisição compensatória de outros CANDIDO 2001 p 274 Ou seja o caipira começava a enfrentar um dilema entre o velho e o novo ao mesmo tempo em que a tradição não comporta a sua subsistência a renovação ou não agrada ou não é acessível Outro elemento que desagradava o caipira é a relação social que se estabelecia a partir da mudança iniciada pelo sistema de parceira segundo informa Candido a parceria representa para o caipira uma etapa de transição marcando um degrau no processo de mudança da sua cultura e da sua posição social CANDIDO 2001 p 275 A sociabilidade se minimiza ao âmbito familiar 46 Ora por todo este estudo ficou sugerido que a redução da sociabilidade à esfera familiar ligase na vida tradicional do caipira a situações de isolamento de perda da sociabilidade de bairro significando não raro estado préanômico ou paraanômico A situação atual representa portanto não apenas a desorganização mais ou menos acentuada dos agrupamentos vicinais mas ainda uma regressão a tipos de sociabilidade incompatíveis com a vida cultural plena Esta só será possível se o caipira e sua família deixando de ampararse ecologicamente no meio imediato e socialmente nas relações de vizinhança puderem integrarse compensadoramente num sistema mais largo de relações no plano da vida municipal CANDIDO 2001 p 277 Esse sistema de relações mais largo significava relações mais superficiais algo completamente distante da vida tradicional do caipira que vivia nos bairros Não tendo mais o apoio dos vizinhos o caipira também é afetado economicamente Ora o caipira não vive mais como antes em equilíbrio precário segundo os recursos do meio imediato e de uma sociabilidade de grupos segregados vive em franco desequilíbrio econômico em face dos recursos que a técnica moderna possibilita Antes o atraso técnico e a economia de subsistência condicionavam em São Paulo uma sociedade global muito mais homogênea não havendo discrepâncias essenciais de cultura entre o campo e a cidade O desenvolvimento da economia baseada na exportação dos gêneros tropicais acentuou a diferenciação dos níveis econômicos que foram aos poucos gerando fortes distinções de classe e cultura Quando esse processo avultou o caipira ficou humanamente separado do homem da cidade vivendo cada um o seu tipo de vida CANDIDO 2001 p 279 Segundo Candido esse desnível econômico do caipira acabou por acentuarse na década de 1950 quando a industrialização a diferenciação agrícola a extensão do crédito a abertura do mercado interno ocasionaram uma nova e mais profunda revolução na estrutura social de São Paulo Aliado a isso tudo a modernização dos meios de comunicação o aumento demográfico e a generalização das necessidades complementares fez com que se aproximassem os homens do campo e da cidade sitiantes e fazendeiros assalariados agrícolas e operários CANDIDO 2001 p 279 280 num diálogo em que a voz menos ouvida era a do caipira De fato a situação atual é a do caipira entregue aos seus miseráveis recursos adaptandose penosamente a uma situação nova e vertiginosa de mudança por meio de técnicas materiais e sociais que tinham sido elaboradas para uma situação geral desaparecida Encarada deste ponto de vista dentro do processo de urbanização e industrialização a 47 regressão adaptativa possibilitada pela latência cultural exprime uma situação das mais revoltante iniqüidade CANDIDO 2001 p 280 Com essa reflexão Candido aponta a seguir a necessidade de uma preocupação maior por parte do governo e dos políticos para com os caipiras Para que isso ocorresse efetivamente segundo o estudioso era necessário encontrar soluções que limpem o horizonte carregado do homem rústico Se este livro conseguiu traçar uma imagem coerente da sua situação atual pôdese ver que os elementos de que dispõe a sua cultura tradicional são insuficientes para garantirlhe a integração satisfatória à nova ordem de coisas e que ela é algo a ser superado se quisermos que ele se incorpore em boas condições à vida moderna CANDIDO 2001 p 280281 A verdade é que a incorporação do caipira à realidade urbana não era uma possibilidade da forma como estava sendo constituída E o próprio Candido reconhece que a melhor alternativa seria promover a reforma agrária Concluise de tudo que passando do plano propriamente sociológico para o da política e da administração que o prolongam pelo vínculo da sociologia aplicada a situação estudada neste livro leva a cogitar no problema da reforma agrária Sem planejamento racional a urbanização do campo se processará cada vez mais como um vasto traumatismo cultural e social em que a fome e a anomia continuarão a rondar o seu velho conhecido CANDIDO 2001 p 281 A hipótese de Candido acabou se confirmando devido em parte à falta de planejamento Atualmente um dos problemas mais graves do Brasil é o da reforma agrária que vem sendo ignorada pelos governantes e que esbarra numa burocracia interminável O problema se agravou nos últimos anos com a radicalização das invasões e manifestações promovidas pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra o MST e por outros grupos ligados a ele como o MLST Movimento de Libertação dos Sem Terra9 Candido reflete sobre isso com relação ao caipira 9 A verdade é que a situação tem entraves mais complexos do que a população imagina ou a mídia divulga Se me é permitido um depoimento pessoal meu pai é o Gerente do Programa Nacional de Agricultura Familiar PRONAF há alguns anos Ele precisa lidar freqüentemente com casos de trabalhadores sem terra que foram assentados mas que acabaram vendendo ou abandonando sua propriedade e voltaram a participar do Movimento Como se vê não basta mais apenas promover a reforma agrária 48 Não se trata evidentemente de permitir ao caipira recriar as condições de relativo equilíbrio da sua vida pregressa isto é ajudálo a voltar ao passado Tratase de não favorecer a destruição irremediável das suas instituições básicas sem lhe dar a possibilidade de ajustarse a outras O caipira é condenado à urbanização e todo esforço de uma política rural baseada cientificamente isto é atenta aos estudos e pesquisas da Geografia da Economia Rural da Agronomia e da Sociologia deve ser justamente no sentido de urbanizálo o que notese bem é diferente de trazêlo para a cidade CANDIDO 2001 p 282 Candido aponta que a incorporação do caipira à vida urbana depende de fatores mais profundos do que a simples alocação do indivíduo na cidade Apesar dos governos estarem trabalhando com uma política rural baseada cientificamente como propõe o estudioso ainda falta disposição dos políticos para que essa transformação seja efetivamente realizada A seguir Candido observa que para isso ocorrer é necessário apresentar ao caipira também aqueles bens incompressíveis de que fala JL Lebret que não são apenas os que se reputam essenciais à estrita sobrevivência do indivíduo mas todos aqueles que permitem ao homem tornarse verdadeiramente humano CANDIDO 2001 p 282 por exemplo o acesso à cultura à recreação ao prazer dos supérfluos à participação na beleza como observa o estudioso Ora encarando o passado da sociedade caipira vemos que os bens para ela incompressíveis permitiam definir tipos humanos mais ou menos plenos dentro dos seus padrões e das suas possibilidades de vida econômica social religiosa artística No entanto como hoje o homem rústico se incorpora cada vez mais à esfera das cidades à medida que isto se dá aqueles usos práticas costumes se tornam em boa parte sobrevivências a que os grupos se apegam como defesa Daí ser preciso facultarlhes a opção entre eles e os que dentro das condições atuais consideramos compatíveis com a realização da personalidade ainda que em níveis modestos CANDIDO 2001 p 283 O que Candido propõe aqui é uma fórmula de fazer a identidade caipira sobreviver diante de sua incorporação ao mundo urbano Ao analisar a situação do caipira Candido estava analisando a situação do homem do campo em geral Ao propor a reforma agrária Candido vislumbrava um problema social que persiste mais de 50 anos depois de sua proposição Mais do que isso além de registrar o fim da cultura e do mundo caipiras diante da situação rural contemporânea o estudo de Candido continua atual e revelador 49 22 A FORMAÇÃO DA LITERATURA BRASILEIRA O livro Formação da Literatura Brasileira Momentos Decisivos foi publicado em 195910 O trabalho idealizado inicialmente foi completamente modificado e Candido acabou apresentando uma análise do Arcadismo e do Romantismo basicamente A idéia central de Candido era demonstrar como a literatura brasileira evoluiu até a chegada de um autor maduro Machado de Assis que percebia a fragilidade do exotismo e do provincianismo explorados pelos autores nacionais mesmo que estes não tivessem plena consciência disso A obra machadiana não é analisada pelo crítico Machado é o ponto de chegada do processo formativo é com ele que a literatura brasileira atinge um grau de maturidade e isso só foi possível porque Machado segundo o crítico tinha consciência da literatura de seus antecessores e sabia que estava contribuindo para a formação de uma literatura secundária do ponto de vista internacional Assim a Formação pode ser vinculada a outras obras que pensaram a constituição do Brasil sob outros aspectos como Casa Grande Senzala 1933 de Gilberto Freyre Raízes do Brasil 1936 de Sergio Buarque de Holanda Formação do Brasil Contemporâneo 1942 de Caio Prado Junior e Formação Econômica do Brasil 1959 de Celso Furtado Segundo Roberto Schwarz o estudo de Candido constitui no entanto uma análise de uma formação que já se havia completado SCHWARZ 1999 p 18 Questionado por Luiz Carlos Jackson a respeito da Formação também apresentar um processo formativo incompleto da literatura brasileira já que a formação literária é parte de um processo mais amplo a formação de nosso pensamento e de nossa consciência Candido responde Pergunta interessante Esse negócio de formação é sempre relativo Conforme o ponto de vista estamos formados há muito tempo ou ainda estamos nos formando E não há uma interação dinâmica inclusive porque no domínio da chamada cultura espiritual as ligações com a produção internacional são vivas e constantes Assim por influência direta do arcadismo italiano e português os poetas mineiros alcançaram um grau de refinamento que não corresponde senão em 10 Sua redação foi realizada entre 1945 e 1951 retomada em 1955 e revisada entre 1956 e 1957 quando foi enfim entregue ao editor que havia solicitado uma história da literatura brasileira desde suas origens 50 pequena parte à sociedade atrasada onde viviam Em FLB Formação da Literatura Brasileira eu quis sugerir que no processo de constituição da nossa literatura houve um momento em que se formou a tradição fazendo com que a produção passasse da elaboração de obras isoladas dependentes diretamente dos modelos metropolitanos para obras articuladas num conjunto coerente a que dei o nome de sistema antes do estruturalismo pôr em voga esta palavra num sentido diverso O sistema uma vez constituído configura uma literatura amadurecida mesmo que a sociedade não esteja no mesmo grau de amadurecimento JACKSON 2002 p 174 Também podemos pensar dessa forma no processo formativo da literatura regionalista brasileira Num ensaio analisado no terceiro capítulo deste trabalho Literatura e Subdesenvolvimento Candido afirma que os melhores produtos da literatura brasileira sempre foram urbanos Mas houve uma evolução entre as narrativas regionais de José de Alencar a Guimarães Rosa passando por Afonso Arinos e Graciliano Ramos houve portanto uma formação da literatura regionalista brasileira como será melhor discutido na conclusão É o trabalho desenvolvido pelos autores do Arcadismo e do Romantismo porém que constitui a parte fundamental desse processo de amadurecimento literário Segundo a tese de Candido é por volta desses períodos que se forma um sistema literário no Brasil constituído da tríade Autor Obra Público mais Tradição Antes disso segundo o crítico ocorriam manifestações literárias que ainda não tinham por objetivo a consolidação de uma literatura nacional Essas informações retiradas dos Prefácios da Formação podem ser complementadas com a seguinte reflexão do autor contida no Prefácio da 2ª edição há várias maneiras de encarar e de estudar a literatura Suponhamos que para se configurar plenamente como sistema articulado ela dependa da existência do triângulo autorobrapúblico em interação dinâmica e de uma certa continuidade da tradição Sendo assim a literatura brasileira não nasce é claro mas se configura no decorrer do século XVIII encorpando o processo formativo que vinha de antes e continuou depois Foi este o pressuposto geral do livro no que toca ao problema da divisão de períodos Procurei verificálo através das obras dos escritores postas em absoluto primeiro plano desde o meado daquele século até o momento em que a nossa literatura aparece integrada articulada com a sociedade pensando e fazendo sentir a sua presença isto é no último quartel do século XIX Neste sentido tentei sugerir o segundo pressuposto atinente aos períodos a saber que há uma solidariedade estreita entre os dois que estudei Arcadismo e Romantismo pois se a atitude estética os separa 51 radicalmente a vocação histórica os aproxima constituindo ambos um largo movimento depois do qual se pode falar em literatura plenamente constituída sempre dentro da hipótese do sistema acima mencionada CANDIDO 1997 v1 p 16 Candido assumia dessa forma o uso de um método que ele mesmo descreve era histórico e estético ao mesmo tempo Mas o foco de Candido não agradou a todos estudiosos de literatura e vários viram nas idéias defendidas pelo autor uma rejeição ao Barroco Na entrevista a Jackson o crítico reflete sobre o assunto em FLB eu destaco o Arcadismo e o Romantismo que relacionei de maneira a demonstrar o meu ponto de vista Aliás o livro deveria ter sido intitulado Arcádia e romantismo momentos decisivos na formação do sistema literário brasileiro Assim evitaria muita confusão que até hoje ocorre havendo quem diga que eu fiz uma história incompleta da literatura brasileira ou desqualifiquei o barroco etc Respondi a essas leituras erradas baseadas na força do hábito no prefácio da 2ª edição e nunca mais voltei ao assunto JACKSON 2002 p 175 Realmente se o crítico tivesse alterado o título da Formação não daria margem a interpretações equivocadas de sua pesquisa Hoje quem ainda interpreta a Formação dessa maneira está desenvolvendo um ponto de vista errado porque acaba repetindo o mesmo erro que já foi rebatido pelo autor A preocupação de Candido não era estudar as origens da literatura brasileira e sim demonstrar como a literatura se configurou no Brasil Entre o Barroco e o Arcadismo há um espaço de tempo que impede uma relação literária de continuidade São períodos completamente diferentes inclusive no sentimento que animava seus autores Os árcades ao contrário dos barrocos já tinham a noção de que estavam contribuindo para a formação de uma literatura nacional e isso é decisivo para o estudo de Candido Para a pesquisa aqui desenvolvida no entanto o Arcadismo não importa muito pois a maior parte do trabalho de Candido sobre o regionalismo na Formação se concentra nos autores do Romantismo De qualquer forma é importante ter em mente algumas reflexões do autor 221 A POESIA PASTORAL E A CULTURA URBANA 52 Antes de entrar nas análises dos autores árcades na Formação Candido faz alguns comentários sobre as percepções que estavam presentes para esses autores Vejamos a afirmação contida no primeiro capítulo do texto A poesia pastoral como tema talvez esteja vinculada ao desenvolvimento da cultura urbana que opondo as linhas artificiais da cidade à paisagem natural transforma o campo num bem perdido que encarna facilmente os sentimentos de frustração Os desajustamentos da convivência social se explicam pela perda da vida anterior e o campo surge como cenário de uma perdida euforia A sua evocação equilibra idealmente a angústia de viver associada à vida presente dando acesso aos mitos retrospectivos da idade de ouro Em pleno prestígio da existência citadina os homens sonham com ele à maneira de uma felicidade passada forjando a convenção da naturalidade como forma ideal de relação humana CANDIDO 1997 v1 p 58 O sentimento árcade com relação ao campo é exatamente oposto ao dos românticos Enquanto estes estavam preocupados em desvendar os seus mistérios apresentar seus elementos exóticos e pitorescos aqueles viamno como o locus ideal para o desenvolvimento de emoções que não podiam ser exacerbadas na cidade por não combinarem com ela Nesse sentido é interessante o registro de Candido com relação ao assunto pois demonstra a busca dos árcades pelo lugar perfeito e aprazível enquanto para os românticos este local era o próprio lugar em que viviam a cidade É possível imaginar algumas razões para essa mudança os árcades viviam basicamente em Minas Gerais estado que está no interior do país embora próximo ao litoral era uma época em que essa região ainda carecia de bons recursos para a satisfação cultural desses intelectuais justamente por estarem localizados longe do centro do país Já os românticos viviam em geral na capital federal Rio de Janeiro uma cidade que sempre tentou copiar Paris e que portanto recebia constantemente essas novidades européias em todos os setores artísticos Era mais fácil ser culto no Rio do século XIX do que em Minas no século XVIII até porque o Rio era a sede do Império e assim precisava estar informado sobre as notícias do velho mundo Com essa configuração é compreensível que os árcades vissem no campo o melhor local para se viver enquanto os românticos o percebiam como um local exótico e distante já que a vida na cidade havia se desenvolvido radicalmente e o campo ainda representava um espaço atrasado a ser desvelado 53 222 OS QUATRO GRANDES TEMAS DA FORMAÇÃO E O ROMANTISMO Segundo Antonio Candido Quatro grandes temas presidem à formação da literatura brasileira como sistema entre 1750 e 1880 em correlação íntima com a elaboração de uma consciência nacional o conhecimento da realidade local a valorização das populações aborígines o desejo de contribuir para o progresso do país a incorporação aos padrões europeus CANDIDO 1997 v1 p 6667 Esses quatro grandes temas acabaram sendo explorados tanto pelos árcades quanto pelos românticos em menor grau por alguns representantes em maior por outros O que importa aqui é a maneira como o autor sintetizou o sentimento dos escritores com relação à literatura brasileira O tema do conhecimento da realidade local foi explorado em ambos os períodos nos poemas satíricos do Arcadismo e nos romances regionalistas do Romantismo por exemplo a valorização das populações aborígines foi tema especial dos românticos em prosa e verso mas também já havia aparecido em Basílio da Gama a incorporação aos padrões europeus e o desejo de contribuir para o progresso do país foram temas também ambicionados por ambos Como esses quatro temas mantêm estreita relação entre si e com a elaboração de uma consciência nacional apontada por Candido eles acabarão presentes em praticamente todas as reflexões do crítico sobre o assunto mesmo que de maneira implícita Foi no período romântico porém que esses temas parecem ter ganhado mais força Candido identifica no Romantismo um dos aspectos do movimento da independência política do Brasil Com esse movimento realmente a Independência ao mesmo tempo em que ganha força também oferece suporte para o desenvolvimento de uma cultura nacional autêntica A organização de um projeto estético com base inicialmente nas revistas literárias surgidas logo após 1822 possibilitou ao Romantismo constituir uma literatura original embora apoiada em modelos estrangeiros Segundo o crítico 54 Entre a Independência e a Maioridade a referida elaboração da consciência nacional no setor literário se deu ao longo de certas linhas definidas pouco a pouco e afinal fundidas Imaginemos que os coevos tinham delas consciência clara e que as formulavam do seguinte modo 1 o Brasil tem uma tradição literária própria 2 há nela elementos próprios que é preciso desenvolver 3 a conseqüência será a formação de uma literatura nova baseada em formas e sentimentos renovados adequados a um país jovem que se afirmara na libertação política CANDIDO 1997 v 1 p 281 O sentimento de renovação com base nessas três características alinhadas pelo autor tornou o Romantismo brasileiro extremamente original se pensarmos nos períodos antecessores e na exploração de seus elementos temáticos É visto que a forma literária nesse período ainda não tinha recebido um impulso renovador como pretendiam os intelectuais algo que só seria atingido com Machado de Assis no final do século XIX segundo o raciocínio de Candido mas com o tempo ela ganhou elementos genuinamente nacionais para o bem e para o mal afinal uma literatura só se constrói a partir do que já foi feito com escritores cientes de que estão participando de um processo formativo como pensado pelo crítico Dessa forma é viável pensarmos na formação da literatura regionalista brasileira O melhor gênero para explorar os aspectos regionais não poderia deixar de ser o romance Segundo o crítico No Brasil o romance romântico nas suas produções mais características em Macedo Alencar Bernardo Guimarães Franklin Távora Taunay elaborou a realidade graças ao ponto de vista à posição intelectual e afetiva que norteou todo o nosso Romantismo a saber o nacionalismo literário Nacionalismo na literatura brasileira consistiu basicamente como vimos em escrever sobre coisas locais no romance a conseqüência imediata e salutar foi a descrição de lugares cenas fatos costumes do Brasil É o vínculo que une as Memórias de um Sargento de Milícias ao Guarani e a Inocência e significa por vezes menos o impulso espontâneo de descrever a nossa realidade do que a intenção programática a resolução patriótica de fazêlo Esta tendência naturalizou a literatura portuguesa no Brasil dandolhe um lastro ponderável de coisas brasileiras E como além de recurso estético foi um projeto nacionalista fez do romance verdadeira forma de pesquisa e descoberta do país CANDIDO 1997 v 2 p 99 55 O surgimento do romance no Brasil está portanto ligado ao nacionalismo literário que por sua vez é fruto do romance romântico e condiciona a produção a focalizar as coisas locais Nada mais local do que o índio e as regiões mais afastadas do país exóticas até para quem nele habita como o sertão e o pampa Por isso Candido frisa A nossa cultura intelectual encontrou nisto um elemento dinamizador de primeira ordem que contribuiu para fixar uma consciência mais viva da literatura como estilização de determinadas condições locais O ideal românticonacionalista de criar a expressão nova de um país novo encontra no romance a linguagem mais eficiente Basta relancear em nossa literatura para sentir a importância deste mais ainda como instrumento de interpretação social do que como realização artística de alto nível Este alto nível poucas vezes atingido aquela interpretação levada a efeito com vigor e eficiência equivalentes aos dos estudos históricos e sociais CANDIDO 1997 v 2 p 99100 A literatura brasileira com o romance passou por uma renovação que a transformou no principal veículo de informação a respeito do país É compreensível portanto a relação que o crítico faz entre os estudos históricos e sociais com a literatura já que esta era encarada como um instrumento de interpretação social e demorou para também conquistar a realização artística de alto nível Isso se deu porque as regiões urbanas ainda eram poucas distantes umas das outras e as suas populações ainda parcas como observa o próprio crítico quando diz que numa sociedade pouco urbanizada e portanto ainda caracterizada por uma rede pouco vária de relações sociais o romance não poderia jogarse desde logo ao estudo das complicações psicológicas CANDIDO 1997 v 2 p 100 A profundidade psicológica só seria alcançada depois do romance tornarse um gênero maduro entre os brasileiros leitores e escritores o que só ocorreu na chamada segunda fase de Machado de Assis e que só ocorreria no romance regionalista na década de 1930 O crítico ainda complementa enredo e tipos eis o que terá a princípio e até a maturidade de Machado de Assis não passará realmente muito além destes elementos básicos a que se vai juntando a consciência cada vez mais apurada do quadro geográfico e social CANDIDO 1997 v 2 p 100 O desenvolvimento social e urbano acabou determinando o desenvolvimento do romance brasileiro e provavelmente não poderia ser diferente Num parágrafo subseqüente Candido argumenta Em país caracterizado por zonas tão separadas de formação histórica diversa tal romance valendo por uma tomada de consciência no 56 plano literário do espaço geográfico e social é ao mesmo tempo documento eloqüente da rarefação na densidade espiritual CANDIDO 1997 v 2 p 101 A seguir Candido comenta que Quanto à matéria o romance brasileiro nasceu regionalista e de costumes ou melhor pendeu desde cedo para a descrição dos tipos humanos e formas de vida social nas cidades e nos campos O romance histórico se enquadrou aqui nesta mesma orientação o romance indianista constitui desenvolvimento à parte do ponto de vista da evolução do gênero e corresponde não só à imitação de Chateaubriand e Cooper como a certas necessidades poéticas e históricas de estabelecer um passado heróico e lendário para a nossa civilização a que os românticos desejavam numa utopia retrospectiva dar tanto quanto possível traços autóctones CANDIDO 1997 v 2 p 101 Na primeira oração do trecho acima há algo de taxativo que é suavizado com sua seqüência De qualquer forma a pesquisa e a descrição dos tipos humanos e das formas de vida social na cidade e no campo realmente foram pontos fortes do nascente romance brasileiro Mas o crítico está englobando dentro da classificação regionalista todas aquelas tramas que se passam no campo neste caso O que vem complementado no parágrafo seguinte cuja oração inicial parece não ter sido revisada Assim pois três graus na matéria romanesca determinados pelo espaço em que se desenvolve a narrativa cidade campo selva ou por outra vida urbana vida rural vida primitiva E é esse caráter de exploração e levantamento que dá à ficção romântica importância capital como tomada de consciência da realidade brasileira no plano da arte verdadeira consecução do ideal de nacionalismo literário proclamado pela Niterói CANDIDO 1997 v 2 p 101 A síntese é extremamente interessante pois indica que para o crítico é o espaço em que se desenvolve a narrativa que determina os graus do romance cidade campo e selva ou vida urbana vida rural e vida primitiva Não importa a linguagem a forma ou o arranjo narrativo e sim o meio retratado Neste primeiro momento do romance brasileiro portanto o regionalismo referese simplesmente ao campo à vida rural à descrição dos costumes desse espaço E ele foi um dos três elementos fundamentais para a constituição do nacionalismo literário e do conhecimento da realidade do país E isso se comprova quando Candido diz que 57 No Brasil riqueza e variedade foram buscadas pelo deslocamento da imaginação no espaço procurando uma espécie de exotismo que estimula a observação do escritor e a curiosidade do leitor Exotismo do Ceará para o homem do sul exotismo da própria Itaboraí para os leitores cariocas de Macedo CANDIDO 1997 v 2 p 101 Essa primeira fase do romance brasileiro é também a primeira fase do romance regionalista Como o romance ainda não vislumbrava a análise psicológica ao regionalismo coube a descrição do local retratado seus hábitos seus costumes através de personagens que pretensamente representavam a comunidade focalizada E como os românticos se achavam possuídos quase todos de um senso de missão um intuito de exprimir a realidade específica da sociedade brasileira é relativamente lógica a tentativa de tratar de regiões afastadas para dar conta dessa expressão da realidade mesmo que o romancista não conhecesse a região o desenvolvimento do romance brasileiro de Macedo a Jorge Amado mostra quanto a nossa literatura tem sido consciente da sua aplicação social e responsabilidade na construção de uma cultura CANDIDO 1997 v 2 p 102 Com isso o crítico percebe que há um problema literário Dentre os temas brasileiros impostos pelo nacionalismo tenderiam a ser mais reputados os aspectos de sabor exótico para o homem da cidade a cujo ângulo de visão se ajustava o romancista primitivos habitantes em estado de isolamento ou na fase dos contactos com o branco habitantes rústicos mais ou menos isolados da influência européia direta Daí as duas direções indianismo regionalismo O problema referido é o da expressão literária adequada a cada uma delas CANDIDO 1997 v 2 p 102103 Como um dos pressupostos do nacionalismo literário brasileiro era desvelar o país para o país esses aspectos de sabor exótico para o homem da cidade ganharam ênfase graças ao regionalismo enquanto ao indianismo segundo Candido coube a criação de um mito de um herói nacional inspirado no modelo de Chateaubriand o índio Então o crítico vai explorar os principais elementos do regionalismo inicial a saber a língua e os costumes da região retratada No caso do regionalismo porém a língua e os costumes descritos eram próximos dos da cidade apresentando difícil problema de estilização de respeito a uma realidade que não se podia fantasiar tão livremente quanto a do índio e que não tendo nenhum Chateaubriand 58 para modelo dependia do esforço criador dos escritores daqui A obtenção de verossimilhança era neste caso mais difícil pois o original estava ao alcance do leitor Daí a ambigüidade que desde o início marcou o nosso regionalismo e que levando o escritor a oscilar entre a fantasia e a fidelidade ao observado acabou paradoxalmente por tornar artificial o gênero baseado na realidade mais geral e de certo modo mais própria do país CANDIDO 1997 v 2 p 103 Candido já vislumbrava algo que conseguiria explicar com mais clareza na década de 70 a artificialidade do regionalismo inicial não estava apenas na reprodução do linguajar da região ou na representação de seus hábitos mas na dificuldade de perceber que o homem sertanejo também era humano e não mais um aspecto regional pitoresco e exótico A sensibilidade do regional que marcou escritores como Simões Lopes Neto Graciliano Ramos Jorge Amado e Guimarães Rosa foi crucial para a obtenção dessa verossimilhança Dito de outra forma os primeiros regionalistas eram homens que receberam educação culta desde cedo e logo saíram da sua região natal Alencar Távora Bernardo Guimarães A visão que passavam a ter a respeito da região aqueles que retornavam ou demoravam para sair já estava afetada pela sua instrução O povo do interior era chucro limitado ingênuo humilde simples bárbaro e a visão do romancista altamente intelectualizado se comparado aos seus conterrâneos não os possibilitava perceber a peculiaridade desse povo Daí a fatalidade das narrativas serem quase todas artificiais num gênero que deveria exprimir a realidade mais geral e de certo modo mais própria do país As palavras de Taunay no limiar de Juca o Tropeiro poderiam servir de epígrafe a quase toda a nossa literatura regionalista sobretudo sob o aspecto sertanejo que assumiu com o Naturalismo A autoria da presente narração pertence mais a um exsargento de voluntários de Minas que nos disse haver conhecido de perto o personagem que nela figura do que à nossa pena O que fizemos foi desbastar o correr da história de incidentes por demais longos de inúmeros termos familiares e sobretudo de locuções chulas e sertanejas que podiam por vezes parecer inconvenientes Havendo contudo reconhecido a originalidade e força de colorido dessa linguagem e desejando conservar ainda um quê da ingênua mas pitoresca expressão do narrador resultou uma coisa esquisita nem como era contada pelo exsargento nem como deveria ser saída da mão de quem se atira a escrever para o público11 CANDIDO 1997 v 2 p 103 11 Citação de Sílvio Dinarte Histórias Brasileiras pág 183 grifada por Antonio Candido 59 O registro de Taunay citado por Candido apresenta um certo tom de confissão de culpa porque reconhece o resultado de uma coisa esquisita já que o romancista não soube optar entre a reprodução fiel das palavras do exsargento e a adaptação para uma história mais formal E não é de estranhar que o crítico tenha opinado que o trecho poderia ser epígrafe a quase toda literatura regionalista afinal poucos escritores regionalistas souberam solucionar esse impasse Mesmo assim Candido reconhece algum valor nisto Mas justamente por implicar esforço pessoal de estilização já que não podia canalizar tão facilmente quanto o indianismo e o romance urbano a influência de modelos europeus o regionalismo foi um fator decisivo de autonomia literária e pela quota de observação que implicava importante contrapeso realista CANDIDO 1997 v 2 p 103 O regionalismo foi portanto decisivo para o Romantismo atingir o ideal da autonomia literária ou podemos dizer da independência cultural Isso também foi possível porque a descrição da realidade social não era irreal apesar da influência estrangeira segundo o crítico esse problema ocorreu apenas nas situações narrativas ou seja os personagens não são inverossímeis mas sim artificiais Candido observa ainda que o regionalismo foi um gênero que ampliou o limitado ecúmeno literário pois alguns autores giraram sua obra em torno dos mesmos temas como o da vida burguesa caso de Joaquim Manuel de Macedo o que acabou se refletindo na sua frágil produção Num trecho adiante Candido afirma que o regionalismo foi a manifestação por excelência daquela pesquisa do país e complementa É necessário todavia distinguir o regionalismo dos românticos daquele que veio mais tarde a ser designado por este nome a literatura sertaneja de Afonso Arinos Simões Lopes Neto Valdomiro Silveira Coelho Neto Monteiro Lobato e que embora dele provenha é desenvolvimento diverso pelo espírito e as conseqüências CANDIDO 1997 v 2 p 192 Aqui já está claro para o estudioso que a primeira fase do regionalismo literário brasileiro está circunscrita ao Romantismo enquanto esses escritores da virada do século XIX para o XX representam a segunda cabendo aos escritores surgidos a partir de 1930 o terceiro momento E também está claro que as diferenças entre cada fase 60 dizem respeito aos objetivos que cada grupo buscava atingir mas o crítico só desenvolverá essas distinções de maneira mais objetiva na década de 1970 Ainda sobre os autores dessa primeira fase Candido escreve Os românticos Bernardo Alencar Taunay Távora tomaram a região como quadro natural e social em que se passavam atos e sentimentos sobre os quais incidia a atenção do ficcionista É notório que livros como O Sertanejo O Garimpeiro Inocência Lourenço são construídos em torno de um problema humano individual ou social e que a despeito de todo o pitoresco os personagens existem independentemente das peculiaridades regionais Mesmo a inabilidade técnica ou a visão elementar de um batedor de estradas como Bernardo Guimarães não abafam esta humanidade da narrativa CANDIDO 1997 v 2 p 192 As tramas como anteriormente comentadas eram irreais mas a narrativa não desperdiçava a humanidade dos personagens embora não fossem profundamente analisadas Por isso Candido reconhece que os personagens existem mesmo com o recurso artificial da exploração do pitoresco algo que não ocorreu com a geração regionalista seguinte Já o regionalismo postromântico dos citados escritores tende a anular o aspecto humano em benefício de um pitoresco que se estende também à fala e ao gesto tratando o homem como peça da paisagem envolvendo ambos no mesmo tom de exotismo É uma verdadeira alienação do homem dentro da literatura uma reificação da sua substância espiritual até pôla no mesmo pé que as árvores e os cavalos para deleite do homem estético da cidade Não é à toa que a literatura sertaneja bem versada apesar de tudo por aqueles mestres deu lugar à pior subliteratura de que há notícia em nossa história invadindo a sensibilidade do leitor mediano como praga nefasta hoje revigorada pelo rádio CANDIDO 1997 v 2 p 192 Essa alienação imposta pelos regionalistas da virada do século será melhor analisada por Candido no já referido texto A literatura e a formação do homem de 1972 mas desde a Formação ele tinha consciência de que o projeto iniciado pelos românticos quanto ao regionalismo perdeuse na escrita da geração seguinte que não soube representar o povo com fidelidade passando longe da verossimilhança atingida parcialmente no Romantismo O caso é interessante se o analisarmos do ponto de vista formativo da Formação porque se trata de um retrocesso um paradoxo algo que não ocorreu com o romance urbano brasileiro de Macedo a Machado passando por 61 Almeida e Alencar a prosa dedicada à cidade só evoluiu cada escritor parece ter conferido o que foi feito antes para tentar a superação Para explicarmos melhor a questão vale anteciparmos rapidamente as idéias de Candido em Literatura e Subdesenvolvimento 1970 Neste texto o autor destaca três momentos com relação à consciência de atraso na América Latina em especial no Brasil o primeiro no Romantismo quando predominava a noção de país novo e uma consciência amena do atraso o segundo na virada do século XIX para o XX estendendose até o início da década de 1930 em que a noção de subdesenvolvimento vem à tona e a consciência tornase catastrófica e a terceira época corresponde a uma consciência dilacerada do atraso ocorrida a partir dos anos 1940 1950 em que o Brasil já era uma nação industrializada e com crescimento urbano acelerado mas ainda abrigava regiões que não sabiam o que era luz elétrica água encanada e gás de cozinha Os regionalistas do segundo momento esboçado exploraram o pitoresco e o exotismo das regiões com um narrador culto em terceira pessoa e relegando ao personagem o linguajar da região explorada A humanização do personagem havia se perdido a alienação desses regionalistas pode ter se dado também porque eles percebiam o desenvolvimento urbano e industrial do país e ao mesmo tempo tinham bom conhecimento do marasmo das regiões afastadas Enquanto o campo estava estacionado a cidade corria no ritmo do automóvel o intelectual via sua fonte de relações e conhecimento aumentar enquanto a vida rural não se alterava o que distanciava ainda mais o homem da cidade do homem do campo Os regionalistas desse momento não percebiam que podiam contribuir com suas obras para alterar esse estado Enquanto a consciência catastrófica do atraso fez com que os prosadores evidenciassem as diferenças do campo e da cidade a consciência dilacerada desvelou a necessidade de mudança Não se tratava mais de aceitar e explorar o distanciamento mas de acabar com ele Com o advento do Socialismo no Brasil em especial com a criação do Partido Comunista e com a nova geração de escritores enquadrados no Romance de 30 conscientes dos problemas sociais econômicos e políticos do país o intelectual começa a perceber que as camadas regionais da sociedade precisam ser incluídas à modernidade e que o governo precisa executar políticas públicas para que isso seja alcançado A superação da artificialidade no regionalismo iniciou apenas com Simões Lopes Neto que só teve o devido reconhecimento a partir dos anos 1940 e atingiu a maturidade com Guimarães Rosa Os regionalistas da segunda geração parecem ter levado ainda mais longe a sua posição intelectual frente ao homem rústico Enquanto 62 aqueles eram inteligentes capacitados civilizados este era ignorante limitado bárbaro A solução só foi atingida com a humanização total e radical do personagem foi necessário tornálo o narrador da história para acabar com a alienação do regionalismo E aí sim o gênero atingiu um nível estético que nos agrada até hoje não pelo exotismo mas pela fatura de sua composição Por isso tudo Candido observa a qualidade do regionalismo romântico frente ao da geração seguinte O regionalismo dos românticos ao contrário distinguindo a qualidade respectiva do homem e da paisagem constitui na sua linha tronco uma das melhores direções de nossa evolução literária vindo através de Domingos Olímpio ramificarse no moderno romance sobretudo no galho nordestino onde vemos a região condicionar a vida sem sobreporse aos seus problemas específicos Por isso o regionalismo o verdadeiro e fecundo que aparece nesta fase com Bernardo Guimarães teve a importância que lhe reconhecemos Enquanto nas literaturas evoluídas do Ocidente ele é quase sempre subproduto sem maiores conseqüências uma espécie de bairrismo literário no Brasil que ainda se apalpa e estremece a cada momento com as surpresas do próprio corpo foi e é um instrumento de descoberta CANDIDO 1997 v 2 p 192193 Os românticos conseguiram enfim estabelecer as qualidades do homem e da paisagem sem colocálas no mesmo plano sem tratálas da mesma maneira no mesmo nível E isso conduziu o regionalismo à modernidade com o citado Domingos Olímpio mas também com Simões Lopes Neto antes de chegar aos romancistas do Nordeste os romancistas de 1930 em que vemos a região condicionar a vida sem sobreporse aos seus problemas específicos Aí estaria atingido o objetivo da humanização no romance regionalista da naturalidade no tratamento das tramas e dos personagens Quanto ao fato do regionalismo ser uma subliteratura nos países mais desenvolvidos do Ocidente nada mais natural em regiões mais antigas e há mais tempo urbanizadas industrializadas e evoluídas é natural que os problemas regionais sejam secundários e que a literatura daí produzida diga pouco ao homem urbano moderno Faltava ao regionalismo brasileiro todavia algo que o romance europeu dominava há muito tempo a saber a psicologia dos personagens Entretanto as sendas poéticas do indianismo e a humanidade sincera mas superficial do regionalismo não eram elementos suficientes para a maturidade do nosso romance Faltavamlhe para isso aquelas pesquisas psicológicas que segundo Lucia Miguel Pereira constituem 63 o brasão de Machado de Assis e Raul Pompéia Elas consistem principalmente em recusar o valor aparente do comportamento e das idéias em não aceitálos segundo a norma que lhes traçam o costume ou os seus desvios mais freqüentes CANDIDO 1997 v 2 p 193 A falta dessas pesquisas psicológicas começa a ser preenchida com os romances de José de Alencar em especial os urbanos mas só atinge a melhor resolução com Machado de Assis e no regionalismo com Guimarães Rosa que consegue demonstrar tudo que se pode tirar do homem rústico e que isso não é pouco 223 JOSÉ DE ALENCAR Antonio Candido observa que a década de 1870 foi a mais produtiva de Alencar pois tinha um contrato com a Livraria Garnier e acabou publicando em seis anos doze romances e um drama Segundo o crítico Terá sido nessa fase que imaginou dar à sua obra um sentido de levantamento do Brasil como deixa indicado no prefácio de Sonhos dOuro O fato é que cultiva então o regionalismo descrição típica da vida e do homem nas regiões afastadas com O Gaúcho 1870 continuandoo nO Sertanejo 1875 CANDIDO 1997 v 2 p 201 Surge a dúvida para Candido o regionalismo é a descrição típica da vida e do homem nas regiões afastadas ou o regionalismo de Alencar é assim Se pensarmos nas reflexões citadas anteriormente a segunda afirmativa parece ser a correta Mesmo assim há uma relação estabelecida entre o cultivo do regionalismo e o sentido de levantamento do Brasil O crítico não aprofunda a questão mas vê algumas qualidades nos romances do escritor É de notarse que nos romances de que os homens são foco os romances do sertão Alencar não apela para o desfecho da união feliz A palmeira do Guarani desaparece sem deixar vestígios Arnaldo nO Sertanejo continua servindo a dama inacessível Manuel Canho nO Gaúcho precipitase no abismo enlaçado à amada que lhe roubaram como se a fibra heróica ficasse mais convincente posta acima da harmonia sentimental dos romances urbanos nos quais a rusga ou a 64 barreira não passam de preâmbulo daquelas cenas de entendimento final CANDIDO 1997 v2 p 203 Interessante pensarmos na classificação radical que Candido faz os romances do sertão são todos os regionalistas de que os homens são foco mesmo O Gaúcho Talvez ele tenha registrado dessa forma apenas para não entrar em minúcias mas é estranho vermos associado ao sertão a história da Revolução Farroupilha ou a figura de Manuel Canho mesmo que ele não represente o gaúcho de maneira fiel De qualquer forma o crítico reconhece que são romances menores dentro da ficção alencariana E os motivos já são conhecidos e criticados há bastante tempo desde pelo menos as Cartas a Cincinato 1870 ou no prefácio de O Cabeleira 1876 em que Franklin Távora é objetivo ao demonstrar a fragilidade do mundo regional de Alencar que não conhecia as regiões nem o povo que retratava Para complementar no fechamento do capítulo dedicado ao escritor cearense Candido observa que a sua arte literária é mais consciente e bem armada do que poderíamos supor à primeira vista Parecendo um escritor de conjuntos de largos traços atirados com certa desordem a leitura mais discriminada de suas obras revela pelo contrário que a desenvoltura aparente recobre um trabalho esclarecido dos detalhes e a sua inspiração longe de confirmarse soberana é contrabalançada por boa reflexão crítica Tanto assim poderíamos dizer que na verdade não escreveu mais do que dois ou três romances ou melhor nada mais fez nos vinte e um publicados do que retomar alguns temas básicos que experimentou e enriqueceu com admirável consciência estética a partir do compromisso com a fama assumido nO Guarani CANDIDO 1997 v 2 p 211 Se está correto o pensamento de Candido o compromisso com a fama de Alencar surgido em 1857 a partir de O Guarani o levou tão longe a ponto de querer desvendar o Brasil ou de tentar encontrar o referido sentido de levantamento do país Nada mais natural Alencar foi o escritor mais bem sucedido naquilo que o crítico indicou como a elaboração da consciência nacional no setor literário pois assim como seus contemporâneos ele tinha consciência clara dessas linhas que foram definidas pouco a pouco e depois unidas Mais do que isso o romancista foi definitivo na síntese das molas propulsoras do Romantismo Brasileiro afinal ajudou o Brasil a ter e a desenvolver uma tradição literária própria e os seus conseqüentes elementos o que acarretou o surgimento de uma literatura nova como apontou o crítico em passagem 65 acima transcrita Algo que não está expresso de forma detalhada na Formação mas que fica explícito para o leitor é que sem Alencar Gonçalves Dias Manuel Antonio de Almeida Joaquim Manuel de Macedo entre outros o advento de Machado de Assis não teria sido possível Isso fica mais evidente quando percebemos que no fundo não foram muitos os temas realmente novos trazidos por Machado o principal de sua contribuição foi a forma como desenvolveu suas tramas sabendo deixar de lado os erros de seus predecessores e aproveitando os seus acertos O uso da ironia e a pesquisa psicológica entre outros recursos exploraram assuntos conhecidos como a traição a trapaça a loucura a vingança Com isso podemos pensar que Machado foi correto ao não explorar o regionalismo porque certamente tinha consciência da fragilidade do gênero e provavelmente não tinha a solução do problema É possível também que essa inexistência de um texto regionalista machadiano seja fruto de sua vontade velada talvez de fazer uma literatura européia que não combinava com o regionalismo como vimos numa passagem da Formação Isso torna o papel de José de Alencar ainda mais importante porque foi senão o único o principal escritor brasileiro a explorar os três graus na matéria romanesca determinados pelo espaço em que se desenvolve a narrativa como refletiu Candido a cidade o campo e a selva ou a vida urbana a vida rural e a vida primitiva Dito de outra forma Alencar é o paradigma do crítico é a síntese da matéria romanesca analisada na Formação 224 BERNARDO GUIMARÃES Candido reconhece em Bernardo Guimarães um escritor consciente das qualidades da vida sertaneja e que soube descrevêlas muito bem O capítulo dedicado ao escritor mineiro começa com uma narração recurso pouco explorado pelo crítico que conta a história da viagem de Couto de Magalhães em que passou por Catalão cidade goiana onde vivia o autor de A Escrava Isaura À primeira vista parece apenas uma boa maneira de começar um capítulo mas demonstra no fundo uma certa simpatia pela prosa de Bernardo 66 os romances deste juiz Bernardo Joaquim da Silva Guimarães parecem boa prosa da roça cadenciada pelo fumo de rolo que vai caindo no côncavo da mão ou pela marcha das bestas de viagem sem outro ritmo além do que lhes imprime a disposição de narrar sadiamente com simplicidade o fruto de uma pitoresca experiência humana e artística CANDIDO 1997 v 2 p 212 A descrição acima da obra de Bernardo é prova do apreço do crítico um pouco pela simplicidade um pouco pelo tom da narrativa ou ainda pelo próprio enredo E talvez por isso a visão de Candido não seja pejorativa com relação à obra em questão O Ermitão de Muquém é contado em quatro pousos por um companheiro de jornada e quase todos os outros livros não deixam de apresentar essa tonalidade de conversa de rancho Conversa de bacharel bastante letrado para florear as descrições e suspender a curiosidade do ouvinte mas bastante matuto para exprimir fielmente a inspiração do gênio dos lugares CANDIDO 1997 v 2 p 212 Segundo essa visão do crítico Bernardo parece ter alinhavado elementos fundamentais para o regionalismo como a descrição floreada o suspense da próxima cena e a expressão da realidade local Mas essa tonalidade de conversa de rancho só foi possível por causa da formação bacharelesca do escritor E é quando explora esses elementos que está retratando a região de que mais gosta Apesar de ter situado uma narrativa em São Paulo e outra na Província do Rio de Janeiro Rosaura e A Escrava Isaura apesar de ter escrito uma história fantástica do Amazonas O Pão de Ouro o seu mundo predileto é o oeste de Minas e o sul de Goiás onde se passam O Ermitão de Muquém O Seminarista O Garimpeiro O Índio Afonso A filha do Fazendeiro que constituem o bloco central e mais característico da sua ficção Maurício e o Bandido do Rio das Mortes inacabado passamse no século XVIII em São João dEl Rei limite oriental da zona de campos que tanto amou Zona de fazendas esparsas gente rude e primitiva que deixou péssima impressão em Saint Hilaire para Bernardo todavia as mulheres eram ali mais belas e os homens melhores mais valentes CANDIDO 1997 v 2 p 212213 O êxito de Bernardo parece residir diante da reflexão do crítico no amor que tinha e despendia aos locais que retratava Aí está uma diferença fundamental entre Bernardo e Alencar ou entre Bernardo e os regionalistas da virada do século enquanto o cearense tinha por objetivo mapear o país e regionalistas como Afonso Arinos e Coelho Neto queriam explorar o lado exótico e pitoresco das regiões Bernardo amava 67 sua terra e a representava com esse olhar E esse sentimento subjetivo do autor parece ser determinante para o sucesso de qualquer obra regionalista vide Simões Lopes Neto e Guimarães Rosa além dos procedimentos formais Quem leu O Seminarista não pode esquecer a várzea com o riacho a ponte a porteira de varas as duas paineiras os dois caminhos que levam à casa do Capitão Antunes e à da tia Umbelina ao lado da figueira não poderá sobretudo esquecer a utilização por assim dizer psicológica que o romancista deles faz como cenário qualitativo dos amores de Eugênio e Margarida transformandoos numa paisagem subjetiva variável na consistência e densidade CANDIDO 1997 v 2 p 214 A descrição da paisagem é usada portanto não para expor algo exótico mas como um recurso que canaliza as ações e os sentimentos dos personagens Para o crítico Bernardo soube dosar os elementos de um bom romance regionalista O senso regionalista dos costumes e da paisagem a hipertrofia romântica e esquemática dos sentimentos a presença tangível da carne aparecem harmoniosamente entrosados no melhor de seus livros O Seminarista que ainda hoje podemos ler com atenção e proveito CANDIDO 1997 v 2 p 216 Segundo o crítico o problema de Escrava Isaura é justamente não se amparar na descrição do locus para englobar os dramas vividos pelos personagens acabando por se exceder nos elementos que ignorou nos seus melhores livros Candido afirma entretanto que Bernardo encontrou a solução literária conveniente para tratar dos problemas criados em suas tramas embora reconheça que Alencar também tratou situações delicadas com imaginação mais acentuada do que Bernardo CANDIDO 1997 v 2 p 217 225 FRANKLIN TÁVORA A abertura do capítulo sobre Franklin Távora na Formação faz referência às diversidades regionais do Brasil analisando em especial o Nordeste que possui segundo o crítico impressionante autonomia e nitidez na sua geografia história e cultura Com essa autonomia surgiu o sentimento regionalista que encontrou 68 expressão típica na confederação do Equador que falhou no plano político mas persistiu teimosamente no plano da inteligência A literatura e a oratória tornaramse com efeito a forma preferencial daquela região velha e ilustre exprimir a sua consciência e dar estilo à sua cultura intelectual que antecedeu e por muito tempo superou a do resto do país O nacionalismo romântico cioso da terra dos feitos brasileiros se transformou lá graças a este processo num regionalismo literário sem equivalente entre nós e bem ilustrado nos romances de Franklin Távora O regionalismo pinturesco de um Trajano Galvão um Juvenal Galeno ou mesmo um Alencar tornase com ele programa quase culto acentuado com a decadência do Nordeste e a supremacia política do Sul CANDIDO 1997 v 2 p 267 O crítico deixa entrever que os estados com propensão para a independência normalmente afastados do centro do país como Pernambuco e Rio Grande do Sul têm fortes tendências regionalistas e que as tentativas de revoluções contribuíram para isso E a contribuição foi inclusive cronológica o regionalismo do Nordeste tornouse programa quase culto com Franklin Távora porque a Confederação do Equador foi uma das primeiras revoltas ocorridas contra a coroa além da referida decadência do Nordeste Segundo Candido a virulência crítica dos intelectuais nordestinos contribuiu decisivamente para desenvolver o movimento crítico do decênio de 70 culminando com a Escola do Recife que levou ao máximo esta tendência prolongandose por todo o pósromantismo e em nossos dias pelo romance nordestino e a obra de Gilberto Freyre Para Silvio Romero apóstolo combativo e convicto do regionalismo nordestino o resto do país vivia armando conspirações de silêncio contra a sua região desconhecendolhe o talento procurando escamotear a prioridade e a primazia que lhe cabiam na vida intelectual vezo reivindicatório que ainda hoje persiste CANDIDO 1997 v 2 p 268 A esse respeito lembremos também da já citada polêmica entre Távora e Alencar O crítico parece explicar isso com a descrição de outro sentimento regionalista fundamental para a boa execução do gênero literário a defesa da terra algo que é comum em estados periféricos e que acaba por determinar um sistema literário regional à parte do nacional como no Rio Grande do Sul poderíamos falar inclusive num amplo 69 sistema artístico autônomo Mas a intenção do Nordeste não era se particularizar e sim fazerse reconhecer pelo resto do país Franklin Távora sentiu tudo isto profundamente ao ponto de tentar uma espécie de félibrige só que félibrige pela metade dentro não apenas do mesmo país mas da mesma língua Norte e Sul são irmãos mas são dois Cada um há de ter uma literatura sua porque o gênio de um não se confunde com o de outro Cada um tem as suas aspirações seus interesses e há de ter se já não tem sua política12 Desvio evidente que levandoo a dissociar o que era uno e fazer de características regionais princípio de independência traía de certo modo a grande tarefa romântica de definir uma literatura nacional CANDIDO 1997 v 2 p 268 A dissidência de Franklin Távora tinha por objetivo esse reconhecimento de que o Nordeste tinha poder intelectual e político devendo por isso ter sua importância reconhecida pelo resto do país Se isto o afastou da tarefa de definir uma literatura nacional ou de participar dessa definição o possibilitou a criar uma literatura regionalista única e que acabou servindo de modelo para outros escritores O seu regionalismo parece fundarse em três elementos que ainda hoje constituem em proporções variáveis a principal argamassa do regionalismo literário do Nordeste Primeiro o senso da terra da paisagem que condiciona tão estreitamente a vida de toda a região marcando o ritmo da sua história pela famosa intercadência de Euclides da Cunha Em seguida o que se poderia chamar patriotismo regional orgulhoso das guerras holandesas do velho patriarcado açucareiro das rebeliões nativistas Finalmente a disposição polêmica de reivindicar a preeminência do Norte reputado mais brasileiro onde abundam os elementos para a formação de uma literatura propriamente brasileira filha da terra A razão é óbvia o Norte ainda não foi invadido como está sendo o Sul de dia em dia pelo estrangeiro13 CANDIDO 1997 v 2 p 268 O parágrafo acima contém várias informações que exigem reflexão Primeiro a identificação de três elementos fundamentais do regionalismo o senso da terra o patriotismo regional e a reivindicação da preeminência do Nordeste Se esses três elementos referemse também aos escritores nordestinos contemporâneos à escritura da Formação incluemse aí Graciliano Ramos Rachel de Queiroz Jorge Amado entre outros Apesar de terem também eles o senso da terra é difícil perceber em suas obras 12 Cf Candido Franklin Távora O Cabeleira prefácio pág XIV 13 Cf Candido Ob cit pág XII 70 esse patriotismo regional e essa preeminência do Nordeste Não que não amassem sua terra mas porque apontavam os problemas que esta sofria Ou seja o patriotismo dos nordestinos é diferente daquele amor à terra de Bernardo Guimarães Esses três elementos que constituem segundo o crítico a principal argamassa do regionalismo literário do Nordeste não constituiriam também a argamassa de todo regionalismo literário Ou pelo menos daquele que não trata seus personagens como peças extras do ambiente pitoresco retratado Afinal em Simões Lopes Neto também encontramos esses elementos mas com a exaltação da sua terra o Rio Grande do Sul É bom registrar que embora não esteja claramente expresso o Sul referido por Távora e endossado por Candido referese a Rio de Janeiro e São Paulo Diante disso a exclusão da região Sul verdadeira acaba por delimitar ainda mais o projeto regionalista de Távora Távora foi o primeiro romancista do Nordeste no sentido em que ainda hoje entendemos a expressão e deste modo abriu caminho a uma linhagem ilustre culminada pela geração de 1930 mais de meio século depois das suas tentativas reforçadas a meio caminho pelo baiano fluminense dOs Sertões CANDIDO 1997 v 2 p 268 O crítico acaba por encontrar em Távora não só a argamassa do regionalismo literário nordestino como também o início de um grupo de escritores que trabalharam o mundo rural Mas a vinculação entre eles não se dá apenas pelo foco comum na região mas pelos temas que acabaram explorando Em sua obra portanto há inicialmente uma vivência regional uma interpenetração da sensibilidade com a paisagem geográfica e social do Nordeste em cuja célula formadora Pernambuco bem cedo se integrou Se deixarmos de lado a primeira tentativa no romance veremos com efeito que toda a sua obra gira em torno da história e costumes pernambucanos CANDIDO 1997 v 2 p 268269 Assim não é estranho vermos o vínculo entre Távora e os romancistas de 1930 Mas é possível que Candido ressalte esses aspectos a respeito de Távora justamente por causa desses autores O crítico escrevia a Formação enquanto acompanhava a publicação das obras de Graciliano Ramos Rachel de Queiroz e Jorge Amado entre outros Talvez se a época fosse outra Távora não seria tão exaltado e Candido não 71 afirmaria com tanta convicção que ele iniciou a exploração dos elementos que seriam plenamente esmiuçados pela geração de 30 A virtude maior de Távora foi sentir a importância literária de um levantamento regional sentir como a ficção é beneficiada pelo contacto de uma realidade concretamente demarcada no espaço e no tempo que serviria de limite e em certos casos no Romantismo de corretivo à fantasia Ora para ele este contacto se funda na experiência direta da paisagem que o romancista deve conhecer e descrever precisamente CANDIDO 1997 v 2 p 269 Aí parece residir a diferença entre o regionalismo de Távora e o de Alencar ou de Bernardo o espaço ficcional não era o sertão por uma simples escolha ou para explorar um povo e uma parte do país pouco conhecidos Sua intenção era desvelar as mazelas dessa gente tratála com fidelidade e respeito sem praticar o pitoresco e o exotismo afinal conhecia bem a região que retratava e não gostava de quem não fizesse como ele A principal censura que dirige a Alencar é a de não conhecer o cenário geográfico dos seus livros ou conhecêlo mal Ele ao contrário não abandona uma área relativamente pequena que conhece bem Um Casamento no Arrabalde e O Sacrifício se desenrolam nas cercanias do Recife ou na zona rural imediata O Cabeleira O Matuto e Lourenço alargam o âmbito para o norte até atingirem a Paraíba Esta velha área canavieira é o seu mundo cujos rios e acidentes registra com amor topográfico demorandose nas matas baixadas trilhos descrevendo as enchentes e as secas Vêse que ama profundamente a canadeaçúcar como plante e realidade econômica NO Matuto dedicalhe verdadeiro hino nostálgico da sua gloriosa história abespinhado pela preeminência do café e a impressão do leitor é que está lamentando em termos de geografia econômica a passagem da hegemonia cultural e política do Norte para o Sul CANDIDO 1997 v 2 p 269 Com base nas já citadas críticas de Távora a Alencar das Cartas a Cincinato Candido percebe que a boa execução do regionalismo de Távora reside também no fato de que ele não tentou retratar áreas que não conhecia mesmo que seu universo ficcional ficasse restrito a poucas paisagens de Pernambuco E aqui o crítico retoma o amor devotado pela terra já comentado sobre a obra de Bernardo Guimarães Mas como o projeto de Távora tinha um respeito peculiar pela região escolhida e um senso de que podia e devia fazer algo para alterar aquele estado ele não podia deixar de lado as dificuldades de se viver naquele local 72 Para ele o escritor deveria partir de um conhecimento exato do quadro em que se localizavam as ações descritas a exatidão daguerreotípica Mas esta condição por assim dizer de ética literária não envolvia a de reproduzir minuciosamente a realidade nem substituir pelo arrolamento e a observação o trabalho imaginativo que continuava em primeira linha Este trabalho de imaginação consiste para Távora em selecionar os aspectos que conduzem a uma noção ideal da natureza Acha por exemplo que Alencar faz mal ao mencionar o tamanduá bicho grotesco CANDIDO 1997 v 2 p 270 Essa intenção de tratar a natureza com base no belo artístico fez com que sua obra acabasse perdendo em fidelidade ao ambiente retratado Dito de outra forma o realismo de seu programa acabou naufragando na tentativa de navegar num mar sem ondas Por isso Candido ressalta que Embora não tenha seguido escrupulosamente este conceito não há dúvida que procura construir uma visão ideal da realidade colocando quase sempre os personagens além das contingências de todo o dia dotandoos de qualidades acima ou abaixo da norma CANDIDO 1997 v 2 p 270 Se Távora porém não tivesse se preocupado com os aspectos históricos que envolviam suas tramas e a história da região focalizada talvez esta visão ideal da realidade obtivesse melhor resultado não apenas quanto ao aspecto estético mas também quanto ao ideológico a história se tornou elemento importante no seu romance permitindolhe estribar o ardente regionalismo no passado sempre suscetível de maior prestígio pelo embelezamento assim deu ao bairrismo o amparo de grandes feitos e uma genealogia ilustre A história é pois uma segunda dimensão que vem juntarse à geografia como componente da estética de Franklin Távora Ao senso ecológico acrescenta o da duração temporal e graças aos dois leva adiante o programa de literatura nortista CANDIDO 1997 v 2 p 270 A reflexão de Candido é interessante porque pela primeira vez em sua obra podemos afirmar com quase certeza se estabelece uma relação entre regionalismo e bairrismo Não é à toa provavelmente que essa relação seja dada quando o crítico relaciona a história da região com o mundo do romance especificamente o de Távora Ao contrário do que poderia parecer à primeira vista no entanto o bairrismo não é algo 73 de todo ruim e o autor de O Cabeleira via nele uma das bases de sustentação de seu programa segundo o parágrafo exposto acima Sobre isso o crítico afirma Há com efeito muito de programa em sua obra quem sabe devido à preocupação com os problemas sociais da região Alguém não me lembro quem disse que Távora incorreu num certo equívoco ao escolher o romance para exprimir uma realidade que se trataria melhor doutra forma É verdade que ele tinha algo de pesquisador e se vivesse mais talvez recorresse apenas à história como sugerem os dois trabalhos inacabados sobre as revoluções pernambucanas Notese todavia que antes das teorias da artepelaarte os escritores consideravam o romance um estudo e um meio de debater CANDIDO 1997 v 2 p 270271 A reflexão de Candido parece chocarse com uma outra antes referida a de que Távora procurava o belo da paisagem É claro que ele não estava preocupado com os padrões da artepelaarte afinal nem os conhecia e que o interesse histórico acabou por dar esse tom de programa à sua obra mas a defesa do crítico afirmando que o romance era um meio de estudo e debate vai contra os ideais de Távora por ele antes analisados De qualquer forma a preocupação histórica acabou por prejudicar a eficácia narrativa do romancista As lacunas de Távora provêm a meu ver de imperícia e carência estética não da matéria nem do ponto de vista coerentes em seu tempo com a concepção do romance Nem tampouco da nítida intenção ideológica do programa definido de demonstrar teses e sugerir modelos Ao contrário do que muito se afirma em nossos dias à eficácia de um romance não é indiferente a intenção ideológica do autor nem esta entra como simples argamassa da forma A verdade porém é que a eminência vem ligada freqüentemente em matéria de romance à possibilidade de dar certo toque de ficção à realidade sentida e compreendida à luz de um propósito ideológico Este não basta mas sem ele não há romance duradouro A importância de Távora consiste como disse em ter percebido a valia de uma visão da realidade local que era a sua CANDIDO 1997 v 2 p 271 Mesmo que essa preocupação histórica ou como disse Candido a nítida intenção ideológica não faça parte das lacunas de Távora elas acabaram por prejudicar sua liberdade criativa Por isso o crítico afirma que o romance precisa de certo toque ficcional à realidade sentida e compreendida à luz de um propósito ideológico A última frase do parágrafo acima também merece atenção Távora parece retratado como o pai ou o líder dos regionalistas Se lembrarmos das reflexões anteriores do crítico a 74 respeito do escritor podemos concluir que essa liderança é verdadeira afinal ele deu a base para o romance regionalista senso da terra patriotismo valorização do Nordeste Mas e por que não Alencar Talvez porque o melhor de sua obra esteja nos romances urbanos e indianistas Ou porque não soube sentir a terra como seu conterrâneo Ou ainda porque incorreu nos erros apontados por Távora De qualquer forma Candido continua refletindo sobre as intenções de Távora Ora para ele como atualmente para Jorge Amado e o José Lins do Rego de Bangüê Usina e Moleque Ricardo a região não era apenas motivo de contemplação orgulho ou enlevo mas também complexo de problemas sociais sobrelevando não custa repisar a perda de hegemonia políticoeconômica A guerra dos Mascates lhe interessa como panodefundo romanesco mas também como competição entre dois grupos rivais o fazendeiro e o comerciante início de crise para o açúcar e portanto da decadência material já avultada em seus dias CANDIDO 1997 v 2 p 271 Talvez aí esteja a resposta para as perguntas feitas acima sobre Alencar para Távora não interessava simplesmente contemplar a região ou utilizála como cenário para narrativas que bem poderiam ser urbanas O que ele pretende segundo o crítico é pôr em choque os tipos que ali vivem pôr em evidência o mundo rural retratar seus dramas discutir seu folclore Isso se comprova na passagem referida por Candido das Cartas a Cincinato Aliás para ele literatura não era apenas obra de fantasia nem dispensava objetivos extraliterários o romance tem influência civilizadora moraliza educa forma o sentimento pelas lições e pelas advertências até certo ponto acompanha o teatro em suas vistas de conquista do ideal social Por isso é que preferia o romance verossímil possível que tentava por meio da história e dos costumes para representar o homem junto das coisas definição da arte por Bacon14 CANDIDO 1997 v 2 p 271272 Távora era portanto um escritor consciente de sua função sabia que sua obra contribuía para o amadurecimento intelectual do leitor e assim tentava utilizar o máximo de realismo possível As combinações por ele exploradas todavia não bem executadas 14 Cf Candido Cartas a Cincinato cit págs 98 e 99 75 Devido porém às mencionadas carências e imperícias esse homem prático e apaixonado fundador de uma das correntes mais poderosas do nosso romance não é um grande escritor O conhecimento históricogeográfico da região o equipamento ideológico do bairrismo eram condições necessárias que lhe pareceram também suficientes Achava que Alencar falhou nO Gaúcho por não conhecer objetivamente o pampa e os seus habitantes Ora o que lhe faltou foi justamente o poder alencariano de construir o ambiente e os personagens com mais elementos do que a fidelidade que em literatura consiste sobretudo na coerência entre personagens e ambiente não entre autor e ambiente como pensava CANDIDO 1997 v 2 p 272 É bom guardar essa afirmação de Candido de que o regionalismo é uma das correntes mais poderosas do nosso romance Mais tarde ele desqualificará o romance regionalista E na passagem acima o crítico é direto ao colocar Távora como o fundador do regionalismo literário Parece que os três elementos apontados por Candido realmente fizeram de Távora o principal representante desse gênero no século XIX ou pelo menos o primeiro relevante Outro registro importante é a defesa que Candido faz de Alencar apesar de suas deficiências ele sabia criar mundos e personagens verossímeis mesmo sem conhecer a região em que os apresentava Como escreveu o crítico não basta ao autor regionalista conhecer a região e retratála com fidelidade É claro que isso contribui para a verossimilhança e para a composição da obra mas com falta de imaginação consistente não se escreve um romance interessante 226 VISCONDE DE TAUNAY Antonio Candido inicia o capítulo dedicado a Taunay apresentandolhe como um militar enfronhado em problemas práticos que trouxe para a literatura uma rica experiência de guerra e sertão depurada por sensibilidade e cultura nutridas de música e artes plásticas Esta combinação de senso prático e refinamento estético fundamenta as suas obras e compõe o traçado geral da sua personalidade CANDIDO 1997 v 2 p 275 De família culta Alfredo dEscragnolle Taunay foi ensinado a amar a natureza em especial a floresta carioca segundo nos conta o crítico Por isso sempre estava preparado para fazer anotações a respeito dos locais por onde passava além de desenhos que registravam cenas de viagem Além disso Candido ressalta a influência da música na sua composição literária 76 Predominava nele todavia a sensibilidade musical Compôs com facilidade e elegância escreveu com acerto sobre assuntos de música e mesmo nas descrições do sertão percebemos que também o ouvido elaborava as impressões da paisagem No primeiro capítulo de Inocência O Sertão e o Sertanejo a paisagem e a vida daqueles ermos são apresentados a partir de alguns temas fundamentais compostos em seguida num ritmo que se diria musical Daí o tom de ouverture dessa página aliás admirável na sua inspiração telúrica uma das melhores da literatura romântica onde se preformam certos movimentos dA Terra e dO Homem nOs Sertões de Euclides da Cunha CANDIDO 1997 v 2 p 275276 O comentário de Candido é bastante peculiar associar experiência musical com literatura não é um recurso comum mesmo para um crítico com obra vasta embora a Formação seja ainda um de seus primeiros volumes De qualquer forma Candido não rejeita a biografia de Taunay para perceber que ela ajuda a explicar a composição de sua obra Como o ritmo da descrição empregado pelo escritor remete ao ritmo musical é factível a relação estabelecida pelo crítico E esse foi um dos trunfos da literatura desse carioca filho de franceses além do encantamento pela terra brasileira que herdou dos parentes e do engajamento militar e político que resultou segundo Candido num brasileirismo misto de entusiasmo plástico e consciência dos problemas econômicos e sociais alguns dos quais abordou com senso e eficiência Daí também o fato de suas obras mais significativas estarem ligadas à experiência do sertão e da guerra que elaborou durante toda a vida sem poder desprenderse do seu fascínio CANDIDO 1997 v 2 p 276 O contato direto com o sertão contribuiu para a literatura de Taunay portanto e aqui temos uma relação nova a de regionalismo e brasileirismo ou seja misto de entusiasmo plástico e consciência dos problemas econômicos e sociais Autores diferentes relações diferentes o regionalismo de Taunay abordou com plasticidade os problemas do sertão Sob sua pena o gênero ganhou destaque diverso do explorado até então pelos seus pares É claro que Alencar e Távora também retrataram guerras e combates mas nenhum dos dois parece ter encarado suas tramas com esse brasileirismo E a sua experiência pessoal contribuiu de maneira especial para sua obra recheada de impressão e lembrança segundo Candido que classifica sua obra como um longo 77 diário numa literatura parca de documentação pessoal CANDIDO 1997 v 2 p 276 e vê um tom egocêntrico em sua produção Este culto sempre vivo de si mesmo foi de boas conseqüências para a nossa literatura uma vez que não enveredou para as pirraças estéreis ou à megalomania que o acompanharam ordinariamente no Brasil e sendo saudável foi bastante forte para dobrálo artisticamente sobre a própria vida tida como digna de literariamente elaborada O esteta e o sertanista se completam pois pelo egotista enxergando no eu o critério seletivo da experiência que Franklin Távora enxergava na consciência regional CANDIDO 1997 v 2 p 277 Aí a diferença básica entre Taunay e Távora enquanto este estava preocupado em abordar o sentimento coletivo da região em personagenstipo aquele retirava de sua própria vida experiências por assim dizer subjetivas que ainda encantam tantos leitores Provavelmente por isso a realização de Taunay tenha sido mais convincente afinal não tentou incorporar elementos grupais num único personagem nem decalcou sua vida na prosa como pode estar parecendo mas retirou de sua trajetória histórias que mereciam ser contadas dobradas nas palavras do crítico e as lançou em duas obras A Retirada de Laguna e Inocência que concretizaram segundo Candido uma aspiração literária fundamental do Romantismo o nacionalismo estético CANDIDO 1997 v 2 p 277 O próprio autor reconhecia que Inocência era a base da verdadeira literatura brasileira Cf Candido Memórias do Visconde de Taunay pág 233 O crítico afirma ainda que Taunay não desmerecia Alencar mas dizia que este não conhecia absolutamente a natureza brasileira que tanto queria reproduzir nem dela estava imbuído Não lhe sentia a possança e a verdade Descreviaa do fundo do seu gabinete lembrandose muito mais do que lera do que aquilo que vira com os próprios olhos15 Daí também as palavraschave que Candido usa para Taunay impressão e lembrança Mesmo longe do sertão ele o descrevia como se estivesse lá Talvez aí esteja mais um motivo para a literatura regionalista de Alencar não colocálo à frente do grupo regionalista O crítico relata então o enredo de um conto de Taunay inspirado num amor que teve por um índia que comprou e mais tarde abandonou para afirmar que 15 Cf Candido Memórias do Visconde de Taunay pág 229 78 Na verdade os dois processos literários que empregou conscientemente a reprodução e a elaboração premeditada do real teriam sido suficientes para acender a imaginação e compor em Inocência o que é um enredo até certo ponto banal Mas não bastariam para realizar o que realizou graças à intervenção do inconsciente CANDIDO 1997 v 2 p 281 Segundo Candido estes traços foram condicionados pela experiência da guerra do sertão e do amor no sertão A relação estranha a princípio combina com um autor preocupado em retratar com verossimilhança tudo que viu e vivenciou De qualquer forma a literatura de Taunay mesmo que imbuída dessas experiências pessoais subjetivas alinhase à de Macedo e Alencar como observa o crítico Neste segundo capítulo pudemos perceber as mudanças ocorridas na crítica de Antonio Candido A experiência alcançada com o trabalho de campo exigido para Os Parceiros do Rio Bonito fez com que o crítico pesasse suas reflexões com mais embasamento a respeito das relações entre literatura e sociedade É provável que persistiriam algumas análises de certa forma ingênuas caso Candido não tivesse tomado contato com o mundo que seria objeto de sua análise em vários de seus textos a partir da década de 50 E a Formação da Literatura Brasileira foi e continua sendo um projeto ousado que claramente exigiu uma reflexão crítica muito superior a dos textos que o crítico praticava até então Mesmo sem ter dito de maneira direta Candido percebeu que a literatura regionalista brasileira além de participar do processo formativo também tinha um sistema próprio ou seja Guimarães Rosa que é claramente o ponto de chegada dessa formação como foi Machado de Assis para a literatura brasileira observou o que seus antecessores fizeram para aproveitar suas melhores soluções e dispensar o acessório 79 CAPÍTULO III MOMENTOS RADICAIS Na divisão proposta dos capítulos deste trabalho esta terceira parte contempla textos escritos nas décadas de 1960 e 1970 como se sabe uma época de grandes transformações sociais e políticas no Brasil Antonio Candido abandonou o cargo de primeiro assistente do professor Fernando Azevedo na cadeira de Sociologia II da Universidade de São Paulo em 1958 quando começou a lecionar Literatura Brasileira na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Assis Em 1960 retornou à USP desta vez como professor colaborador de Teoria Literária e Literatura Comparada tornando se titular em 1974 e aposentandose em 1978 mas orientando teses e dissertações até o início dos anos 1990 O título deste capítulo foi pensado com base nas intenções críticas de Candido nesse período seus ensaios mais engajados foram produzidos durante a ditadura militar Ele mesmo se reconhece como um radical na entrevista concedida a Luiz Carlos Jackson JACKSON 2002 p 130 Para se ter uma idéia em 1965 saiu o livro Literatura e Sociedade em 1970 os textos Dialética da Malandragem e Literatura e Subdesenvolvimento e entre 1973 e 1976 De cortiço a cortiço Nestes ensaios vemos um crítico preocupado com a realidade estética da obra literária mas focalizando especialmente a sociedade brasileira Além disso nessa época Candido participou da revista Argumento censurada pelo regime militar no quarto número e que contava com a participação de diversos intelectuais de esquerda Com relação ao regionalismo a crítica de Candido ganha uma nova configuração Não se tratava mais de colocar criticamente cada escritor no seu devido lugar como fez na Formação mas de evidenciar que a literatura estava apontando um problema social ignorado pelo governo Enquanto o país vivia o milagre econômico e entrava definitivamente na era global certas regiões ainda não eram assistidas pelas mínimas melhorias proporcionadas pela modernização Mas as reflexões de Candido também apontam outra situação com as transformações pelas quais o país passava as peculiaridades dessas regiões acabariam sumindo sendo impelidas pela cidade Por um lado haveria vantagens nisso a vida no campo poderia se tornar mais fácil e agradável Por outro o crítico percebe que as regiões não receberiam essas facilidades 80 rapidamente o que ocorreria na verdade seria uma nova migração populacional do campo para a cidade Sem preparar esta gente para encarar a vida urbana não se conseguiria incorporálos à nova rotina No fundo o crítico associou à literatura as mesmas idéias que explorou em nOs Parceiros do Rio Bonito Mas não adiantemos a reflexão que partirá dos textos a seguir 31 JAGUNÇOS MINEIROS DE CLÁUDIO A GUIMARÃES ROSA Jagunços Mineiros de Cláudio a Guimarães Rosa é um ensaio feito a partir de quatro aulas que Antonio Candido ministrou em 1966 num curso sobre o cangaço na realidade brasileira organizado por José Aderaldo Castello na Faculdade de Filosofia da USP A idéia central do crítico neste texto é a relação que se estabelece entre a violência e a jagunçagem a partir de textos regionalistas que descrevem esta relação A análise contudo se concentra nos textos de autores mineiros o que pode nos dar a idéia de que Candido viu em Minas Gerais uma tradição quanto à literatura regionalista É interessante notar porém que são raros os momentos em que o crítico trata esses textos e autores como regionalistas O assunto do texto não é o regionalismo mas sim a violência explorada pelas obras regionalistas Candido abre o texto afirmando A violência habitual como forma de comportamento ou meio de vida ocorre no Brasil através de diversos tipos sociais de que o mais conhecido é o cangaceiro da região nordestina Mas o valentão armado atuando isoladamente ou em bando é fenômeno geral em todas as áreas onde a pressão da lei não se faz sentir e onde a ordem privada desempenha funções que em princípio caberiam ao poder público CANDIDO 2004 p 99 Em primeiro lugar Candido não faz uma distinção entre cangaço e jagunçagem Os dois casos são sinônimos para o crítico Em segundo o texto pode parecer datado pela afirmação inicial afinal o tipo social do cangaceiro já não existe mais pelo menos na forma como o crítico aqui observa O cangaço e a jagunçagem sumiram do Brasil O que persiste são homens trabalhando para grandes fazendeiros defendendo os latifúndios contra o MST e ladrões de cabeças de gado de certa forma eles são herdeiros dos valentões existentes até a metade do século XX o que é reforçado pela 81 segunda oração embora esses valentões fossem homens livres que trabalhavam quando queriam e que sobreviviam através de sua força Esses fenômenos são nacionais porque não se restringem ao nordeste A seguir Candido começa sua reflexão sobre como a literatura abordou a violência no mundo rural Como estas áreas são geralmente menos atingidas pela influência imediata da civilização urbana é natural que o regionalismo literário que as descreve tenha abordado desde cedo o jagunço e o bandido Com efeito o nosso regionalismo nasceu ligado à descrição da tropelia da violência grupal e individual normais de certo modo nas sociedades rústicas do passado Além disso é preciso mencionar uma influência externa o prestígio do foradalei na literatura romântica CANDIDO 2004 p 99 A síntese acima não deixa dúvidas para o crítico o regionalismo literário é fruto da distância entre o mundo rural e o mundo urbano e da necessidade de descrever literariamente a violência das sociedades rústicas do passado Isso é reforçado pelo poder de sedução e coragem do bandido retratado pelo Romantismo Os melhores personagens ou os mais interessantes eram os bandidos como afirma Candido ao comentar rapidamente As fatalidades de dois jovens de Teixeira e Sousa O índio Afonso de Bernardo Guimarães e O Cabeleira de Franklin Távora A seguir o crítico aventa a possibilidade do romance enquanto gênero literário ter começado pela exploração literária da violência na zona rural já que Joaquim Manuel de Macedo afirmava que O forasteiro publicado em 1855 tinha sido escrito em 1838 Segundo Candido este romance seria cronologicamente então o primeiro romance brasileiro e é um tecido de assaltos e tropelias CANDIDO 2004 p 99 Nada mais natural seguindo as idéias de Candido na Formação o desejo dos brasileiros de terem uma literatura nacional que expressasse os problemas nacionais também se concretiza através do surgimento do romance explorando algo que o Brasil tinha de muito peculiar o mundo rural O crítico justifica a escolha de Minas Gerais para a análise por ser o estado mais diversificado quanto aos tipos humanos e a sua paisagem física já que faz divisa com os outros estados do Sudeste mas também com estados do CentroOeste e Nordeste Goiás e Bahia respectivamente Segundo Candido essa variedade de regiões favorece muitos tipos de banditismo e de violência endêmica 82 Haveria mesmo certas modalidades que se poderiam qualificar de propriamente mineiras como é o caso dos contrabandistas de ouro e pedras preciosas do século XVIII criando problemas graves de repressão ou ainda o dos salteadores do Caminho das Minas tornando perigosa esta via comercial que ligava o interior ao Rio e contra os quais lutou com êxito o alferes Joaquim José da Silva Xavier CANDIDO 2004 p 100 Minas realmente se apresenta como um estado peculiar Apesar do contrabando ter sido prática comum em vários estados do país foi para lá que migraram a partir do século XVII milhares de aventureiros dispostos a enriquecer facilmente com o ouro E as fronteiras de Minas contribuem para essa diversidade o que acabou sendo explorado por diversos escritores Nesse tempo do seu fastígio Minas Gerais foi uma área de violência e fraude a partir da anomia dos primeiros anos do século XVIII disciplinada pouco a pouco pela ordem pública Esta circunstância aparece na literatura desde aquele período como se pode ver no Vila Rica de Cláudio Manuel da Costa terminado provavelmente em 1773 que é no fundo a primeira descrição dos bandos de jagunços e seus conflitos às ordens de mandões tão poderosos quanto Manuel Nunes Viana que no final do poema presta obediência ao governador Antonio Albuquerque Coelho de Carvalho CANDIDO 2004 p 100 A idéia de tradição dentro de Minas Gerais realmente parece se confirmar desde o início do sistema literário brasileiro como proposto por Candido o estado teve representantes preocupados com a região e suas peculiaridades dentre as quais se destacava a violência dos jagunços que lutavam pelo ouro O regionalismo literário portanto parece ter nascido entre nós em Minas Gerais E três forças protagonizavam esse combate o governo o povo e os bandidos Enquanto o povo já tinha noções de polimento o governo tentava regular a baderna promovida pelos bandidos O poema Vila Rica canta a vitória da ordem pública sobre este estado de coisas mas deixa ver que o movimento se fazia tanto do lado oficial quanto do lado dos caudilhos rebeldes e dos francos desordeiros por meio da ação dos valentões freqüentemente formando bandos a serviço dos chefes locais precursores dos coronéis dos nossos dias CANDIDO 2004 p 101 O banditismo estava diretamente ligado ao coronelismo como reflete Candido ao citar uma passagem do poema em que os três irmãos Pereiras se põem às ordens do 83 governador onde vemos um esboço do coronelismo e da capangagem CANDIDO 2004 p 101 Em seguida o crítico faz observações sobre duas obras de Bernardo Guimarães Maurício ou Os paulistas em São João dEl Rei 1877 e O bandido do rio das Mortes 1904 continuação da primeira Segundo Candido os romances não tratam de jaguncismo mas de bandos de antecipados patriotas contra portugueses CANDIDO 2004 p 101 De certa maneira portanto os livros de Bernardo associam o patriotismo ao regionalismo Apesar do título do segundo romance não há nele a figura típica do bandido segundo o crítico pois o protagonista é um foragido configurandose como o foradalei tão caro ao Romantismo Mesmo assim há a organização da violência e o recrutamento de marginais CANDIDO 2004 p 101102 Comentando o romance O mameluco Boaventura 1929 de Eduardo Frieiro Candido observa que os representantes da ordem se confundem com os bandidos quanto à forma como lidam com estes para conter os atos criminosos entrevemos que no mundo da violência então como agora há pouca variação de método entre transgressores e defensores da lei E mais que o indivíduo de prestígio armado e acolitado pode representar uma forma primária de controle adaptada às regiões sem peia e às épocas de formação CANDIDO 2004 p 102 Se a lei é imposta da mesma forma como se cometem os crimes ou seja com violência é difícil abolir a prática criminosa dos bandidos Esta é a idéia que impera na sociedade contemporânea Um bom exemplo disso é a última invasão dos Estados Unidos no Iraque Enquanto a ordem não for lá estabelecida de forma rápida eficaz e organizada os soldados americanos permanecerão mantendo a ordem à base da truculência Na seqüência o crítico faz uma distinção entre bandidos jagunços e capangas Perguntemos agora de que maneira surgem os tipos de transgressores tanto o bandido salteador e assassino quanto o jagunço que pode ser mandatário isolado de crimes e violências ou o capanga o guardacostas que serve como um régulo como se dizia integrando o seu bando de asseclas CANDIDO 2004 p 102 O jagunço não é necessariamente um bandido portanto e também se diferencia do capanga ou do guardacostas pois tem uma tendência para a liberdade não trabalha 84 sob o comando de outrem Para responder a pergunta do trecho acima Candido observa que a violência surge da banalidade De um motivo mínimo na sua futilidade inesperada pode surgir o criminoso e daí o profissional do crime Um dos mais típicos é a briga ocasional em que alguém mata sem vontade nem predisposição e a seguir cumpre pena ou se põe à margem da sociedade CANDIDO 2004 p 103 Para embasar a reflexão Candido lembra as obras de Mario Palmério Vila dos Confins e Amadeu de Queirós Histórias do carimbamba que contêm personagens que passam por situações como as descritas pelo crítico relembrando ainda Bernardo Guimarães O índio Afonso e Afonso Arinos nos contos Pedro Barqueiro e Joaquim Mironga Ao analisar Maleita 1934 romance de estréia de Lucio Cardoso o crítico observa como a ordem é estabelecida através da violência a que o narrador se vê obrigado a executar já que esta era a lei da cidade que estava ajudando a construir Mais tarde com as instituições organizadas o coronelismo toma o lugar da lei criando uma violência constitucional nas palavras do crítico o que força a saída do narrador Candido conclui a primeira parte desse ensaio com uma reflexão que será aplicada às próximas obras que analisou no texto especificamente as de Guimarães Rosa e Mario Palmério Dessas narrativas depreendemos que o nome de jagunço pode ser dado tanto ao valentão assalariado e ao camarada em armas quanto ao próprio mandante que os utiliza para fins de transgressão consciente ou para impor a ordem privada que faz as vezes de ordem pública De qualquer forma não se consideram jagunços os ladrões de gado os contrabandistas os bandidos independentes Embora haja flutuação do termo a idéia de jaguncismo está ligada à idéia de prestação de serviço de mandante e mandatário sendo típica nas situações de luta política disputa de famílias ou grupos CANDIDO 2004 p 105 Creio que o ponto principal do parágrafo acima é a percepção de que nas regiões mais afastadas do país a ordem privada vem cumprindo o papel da ordem pública Era assim antigamente e continua sendo assim ainda hoje Mas com essas palavras o crítico sintetizou algumas das principais características da sociedade rural brasileira e por conseqüência do regionalismo literário brasileiro que a descreveu O jagunço era um homem livre que podia estar trabalhando a serviço de algum coronel mas também 85 podia corresponder ao próprio coronel Mas o jagunço apesar de livre atuava em bando nunca sozinho pois aí temos o bandido Com relação a isto Candido argumenta ainda que o banditismo sempre teve grande apelo popular o que o tornou fonte inspiradora de causos e modas de viola e de uma subliteratura CANDIDO 2004 p 105 Antes de entrar na obra de Palmério e Rosa o crítico analisa rapidamente Guapé reminiscências 1933 de Passos Maia Segundo Candido este romance demonstra como a ordem privada se prepara para usar a violência contra a violência agrupando jagunços que executarão a justiça sertaneja sob a forma de vingança privada CANDIDO 2004 p 106 O crítico comenta ainda que um caso contido nesta narrativa inspirado num acontecimento de larga repercussão no sudoeste de Minas é o mote para Chapadão do Bugre 1966 de Mario Palmério o massacre dos chefes políticos de Santana do Boqueirão no edifício do Fórum pelo truculento delegado militar capitão Eucaristo Rosa desfecho de uma atmosfera de expectativa e tensão muito bem preparada CANDIDO 2004 p 107 Com isso Candido observa a relação entre o coronelismo e a utilização do crime como ferramenta da política Chapadão do Bugre começa pela história de um destino individual para se alargar pouco a pouco em decorrência das vicissitudes que o envolvem e que se enquadram num panorama bem traçado do coronelismo mineiro sob as suas formas mais drásticas as que suscitam organizam e disciplinam o crime como instrumento de dominação política No desenvolvimento do enredo surgem diversos fatores do jaguncismo pois o pretexto de tudo é o dentista prático José de Arimatéia homem pacato que traído pela noiva com o filho do patrão e protetor matao foge e se torna jagunço eficiente do coronel Americão Barbosa CANDIDO 2004 p 107 A síntese acima parece poder ser aplicada a quase toda literatura regionalista surgida no século XX A maior parte dos autores explorou a violência vinculada à política a partir de uma história individual de Simões Lopes Neto ao João Ubaldo Ribeiro de Sargento Getulio passando por Guimarães Rosa Mario Palmério e Jorge Amado temos coronéis fazendeiros pequenos e grandes latifundiários enfim que suscitam organizam e disciplinam o crime como instrumento de dominação política Violência e política no mundo regional parecem indissociáveis portanto Candido ainda aprofunda a análise dessa sociedade violenta apresentada no romance de Palmério 86 Mas apesar desta moldura individual deste caso de amor e sangue gerando a ferocidade para o leitor interessado no jaguncismo importa sobretudo o panorama social de Santana do Boqueirão nome que deve cobrir uma espécie de síntese ficcional de diversas localidades do sudoeste de Minas e do Triângulo Mineiro Aqui o autor faz a descrição pitoresca e algo caricatural dos costumes sertanejos mormente a política de campanário que já tratara com bastante graça no romance anterior Vila dos Confins CANDIDO 2004 p 107108 Não só Santana do Boqueirão é uma síntese ficcional do interior mineiro o romance de Palmério demonstra como se forma e se perpetua o coronelismo segundo o crítico Em terras pouco colonizadas a ordem privada precisa impor a ordem pública e a demonstração disso parece ser para Candido o grande mérito da obra de Palmério A parte mais interessante de Chapadão do Bugre mostra de que maneira se instala e procura eternizarse a ordem social torcida dos coronéis de Santana e vilas vizinhas tendo por base a imposição do arbítrio e por instrumento o que se poderia chamar exploração do trabalho criminoso do jagunço individual CANDIDO 2004 p 108 Ao estudar o cangaço na realidade brasileira focalizando a literatura o crítico estava desenvolvendo uma análise comum em sua obra a da relação entre literatura e sociedade O que Chapadão do Bugre retrata é a instituição do coronelismo atividade comum em quase todos estados brasileiros Mas a narrativa vai além demonstrando que não há outra forma de iniciar a colonização das regiões mais afastadas senão com a imposição da ordem pelos mais ricos o que acaba gerando conseqüências mais graves Tratase da ordem a princípio necessária na fase de desbravamento pois assegura através das instâncias privadas que são principalmente os grupos familiares e suas clientelas um funcionamento sucedâneo de instituições que o poder público ainda é incapaz de assegurar A seguir esta ordem se torna apenas arbítrio mantendo o parasitismo dos grupos dominantes e impedindo o progresso A violência se organiza de tal modo que o conselheiro do chefe político coronel Americão Barbosa o engenhoso guardalivros Clodulfo de Oliveira tem a idéia de arregimentar os jagunços num verdadeiro sindicato do crime que já fora literariamente explorado nOs contratadores da morte de Antonio Celestino fornecendo matadores aos interessados em toda redondeza mediante pagamento CANDIDO 2004 p 108 87 A organização dos coronéis acaba por gerar a organização dos criminosos Uns acabam se confundindo com os outros aumentando a tensão E a reflexão de Candido exemplifica não só como o coronelismo se perpetua mas como continua imperando mesmo depois da sociedade estar organizada com suas instituições públicas funcionando Por isso é comum encontrarmos em obras ficcionais personagens que são representantes dessa ordem pública mas que têm medo e acabam seguindo as ordens de algum coronel inclusive em obras carregadas de comicidade como O Auto da Compadecida de Ariano Suassuna O crítico comenta ainda as habilidades desses jagunços contratados elas iam da simples persuasão para a conquista de votos numa eleição até chacinas e assassinatos de inimigos políticos elementos explorados no romance de Passos Maia que conta que não apenas se faziam eleições com base em intimidações para as quais eram usados facínoras ou meros correligionários avalentoados mas que se podia alugar gente especializada para tais ocasiões CANDIDO 2004 p 108 Assim Candido conclui que a relação entre os coronéis e os representantes do Estado acaba se estreitando Diante desse estado de coisas Chapadão do Bugre faz ver como o poder central do Estado dependente dos coronéis graças ao mecanismo do voto acaudilhado exerce uma ação antes de usufruto político do que de restrição do coronelismo As restrições que há são meras perseguições a um grupo incômodo ou adverso em benefício de outro que deseja o seu lugar para agir do mesmo modo CANDIDO 2004 p 109 Por meio da persuasão executada pelos jagunços os coronéis conseguem dominar o poder do Estado estabelecendo as leis conforme os seus desígnios Mesmo com a troca de governo a situação se mantém a mesma porque embora os interesses sejam diferentes a forma como eles são tratados é igual a dos governantes anteriores que tentarão a todo custo voltar ao poder elementos todos explorados segundo o crítico na obra de Palmério Candido afirma que Chapadão do Bugre apresenta três ordens de realidade a do jagunço individual a dos coronéis e suas famílias e a da força pública que corta o fio dos destinos individuais e procura abalar o sólido feixe de interesses de grupo Como critério para a ação de todos o romancista põe em cena alguns atos de jaguncismo que mostram ao leitor a função do jagunço na 88 sociedade rústica desde as motivações psicológicas até a inserção na vida coletiva Assim temos em Chapadão do Bugre uma visão realista e pitoresca do jaguncismo integrado em seu contexto social e em seus aspectos pessoais com a descrição completa da formação atuação e sentido da ação individual do jagunço no quadro dos interesses do mandonismo E com isto deixamos para trás o aspecto documentário que nos vem norteando porque vamos agora entrar noutro mundo CANDIDO 2004 p 110 Apesar do aspecto documentário o romance de Palmério incorporou todos os elementos necessários à composição literária da realidade rústica de uma região em formação Por isso Candido afirma que a obra tem uma visão realista e pitoresca do jaguncismo E o outro mundo em que se vai entrar a seguir é o mundo de Grande sertão veredas Começa assim o comentário do crítico sobre o romance de Guimarães Rosa De fato em Grande sertão veredas ocorre algo diametralmente oposto Não se trata de livro realista nem pitoresco embora pitoresco e realismo nele se encontrem a cada passo mas de um livro carregado de valores simbólicos onde os dados da realidade física e social constituem ponto de partida Esta circunstância parece decorrer do princípio de reversibilidade Em função dele assim como a geografia desliza para o símbolo e o mistério apesar da sua rigorosa precisão o jagunço oscila entre o cavaleiro e o bandido tudo se unindo no fecho de abóbada que é a mulherhomem Diadorim CANDIDO 2004 p 111 Desde a publicação de Grande sertão veredas Antonio Candido vinha encarando o livro como um marco paradoxal da literatura brasileira porque ao mesmo tempo que o livro não é realista nem pitoresco encontramos elementos de realismo e pitoresco a todo instante Ao mesmo tempo em que o jagunço é um cavaleiro é também um bandido graças segundo o crítico aos valores simbólicos que o livro carrega que estabelecem esse princípio de reversibilidade que acarreta o deslizamento da geografia para o símbolo e o mistério Mas tudo isso tem um ponto de partida a realidade física e social O sertão é o mundo segundo Riobaldo narrador e protagonista do romance Com isso a realidade física e social do sertão precisa englobar todos os defeitos do homem e deve ser isto que acarreta a utilização da expressão por Candido princípio de reversibilidade O jagunço da narrativa sintetiza o medo e a coragem a fraqueza e a força a hipocrisia e a educação do homem de qualquer homem já que o sertão é o mundo 89 naquele sertão o jaguncismo pode ser uma forma de estabelecer e fazer observar normas o que torna o jagunço um tipo especial de homem violento e por um lado o afasta do bandido Por isso é que sendo as condutas tão relativas e o mundo tão cheio de reversibilidade não há barreiras marcando a separação O mesmo homem pode ser hoje solado e a amanhã jagunço ou o contrário CANDIDO 2004 p 112 Para Candido o homem retratado em Grande sertão parece ser uma espécie de síntese da humanidade um homem que carrega consigo todas as contradições do ser humano Apesar disso sua constituição está diretamente vinculada ao meio em que vive O que o torna extremamente humano é a pena do autor conforme observa o crítico O jagunço é portanto aquele que no sertão adota uma certa conduta de guerra e aventura compatível com o meio embora se revista de atributos contrários a isto mas não é necessariamente pior do que os outros que adotam condutas de paz atuam teoricamente por meios legais como o voto e se opõem à barbárie enquanto civilizados Ao contrário parece freqüentemente que o risco e a disciplina dão ao jagunço uma espécie de dignidade não encontrada em fazendeiros estadonhos solertes aproveitadores da situação que o empregam para seus fins ou o exploram para maior luzimento da máquina econômica CANDIDO 2004 p 112113 Diferente de Mario Palmério Guimarães Rosa parece ter conseguido captar a personalidade do jagunço As práticas do jaguncismo são executadas de acordo com as necessidades que se apresentam A sua conduta de guerra e aventura compatível com o meio é pautada justamente por esse meio em que vive E o jagunço é mais humano do que os fazendeiros estadonhos porque aquele apresenta essa personalidade dirigida de acordo com a situação enfrentada enquanto estes têm suas convicções formadas Por isso Candido ainda reflete É interessante notar a propósito que quando ambos entram em contacto o risco ao contrário do que seria normal é todo do jagunço não do homem de ordem Este constitui uma ameaça à natureza do jagunço um perigo de reduzilo a peça de engrenagem destruindo a sua condição de aventura e liberdade CANDIDO 2004 p 113 90 Para embasar o argumento o crítico relembra a manipulação de sêo Habão sobre ZéBebelo e seu bando e a de Timóteo Regimildiano da Silva o Zabudo que hospeda o bando e engana Riobaldo O trabalho dos jagunços para os coronéis pode reduzir a liberdade dos jagunços pode ao fim acabar com o jaguncismo Diante dessas fortalezas do lucro e da ordem sentimos vagamente que ser jagunço é mais reto quando mais não fosse porque o jagunço vive no perigo Tanto assim que se há fazendeiros que exploram para seus fins o jaguncismo há pelo menos um o severo Medeiro Vaz que assume papel mais digno ao queimar simbolicamente o que o prendia na terra e adotar a condição de jagunço como forma de viver como modo de conceber a vida perigosa que pode ser uma busca de valores do bem e do mal no sertão CANDIDO 2004 p 113 A personalidade do jagunço não condiz com a do fazendeiro este trai engana manipula a seu bel prazer aquele sem capacidade para essas ações leva sua vida encarando os contratempos que aparecem e resolvendoos da maneira que se mostrar mais adequada seja através da palavra seja através da luta Essa síntese do jagunço em Guimarães Rosa levou Candido a afirmar que há nele um ser jagunço como forma de existência como realização ontológica no mundo do sertão CANDIDO 2004 p 113 114 Sem prejuízo dos demais aspectos inclusive os rigorosamente documentários este me parece importante como chave de interpretação Ele encarna as formas mais plenas de contradição no mundosertão e não significa necessariamente deformação pois este mundo como vem descrito no livro traz imanentes no bojo ou difusas na aparência certas formas de comportamento que são baralhadas e parciais nos outros homens mas que no jagunço são levadas a termo e se tornam coerentes O jagunço atualiza dá vida a essas possibilidades atrofiadas do ser porque o sertão assim o exige E o mesmo homem que é jagunço seria outra coisa noutro mundo CANDIDO 2004 p 114 Para compreender Grande sertão veredas portanto é imprescindível compreender que ser jagunço é uma forma de existência é algo imanente ao homem do sertão Como dito acima o jagunço para o crítico é um homem contraditório com uma personalidade determinada pelo local que habita e pelas pessoas com que convive Daí Candido dizer que as formas contraditórias de comportamento se tornam coerentes no jagunço Ser jagunço é ser contraditório Parafraseando o que foi dito acima a contradição é algo imanente ao homem do sertão por isso não há incoerência 91 Mas o crítico reconhece que todos esses elementos ainda apareciam em outras obras regionalistas como Chapadão do Bugre Talvez seja estranho perceber apenas quando trata de Grande sertão Candido fale em ser jagunço mas o que realmente distingue este romance dentro do regionalismo é o sertão transformado em espaço privilegiado e único para que nele exista o jagunço Aqui em Grande sertão ocorrem quase apenas jagunços agrupados em bandos enormes vivendo em contacto com outros jagunços obedecendo a chefes jagunços movendose conforme uma ética de jagunços num mundo separado do resto do mundo descartadas as cidades e suas leis de tal forma que depois de embalados na leitura só por um esforço de reflexão podemos pensar em termos históricos ou sociológicos como até aqui tínhamos feito nestas aulas Escritor genial Guimarães Rosa supera e refina o documento que não obstante conhece exaustivamente e cuja força sugestiva guarda intacta por meio da sublimação estética Por isso não basta procurar nele em que medida a ficção vale como transposição dos fatos mas também em que medida o comportamento humano do jagunço aparece como um modo de existência como forma de ser no mundo encharcando a realidade social de preocupações metafísicas CANDIDO 2004 p 115 A reflexão acima é objetiva ao declarar que o mundo de Grande sertão é um mundo tão distante do resto do mundo que é difícil relacionálo à análise histórica e sociológica É como se o mundo estivesse refeito no sertão é como se este mundo estivesse fechado em si mesmo provocando as preocupações metafísicas Por isso Candido argumenta que provavelmente ninguém se identifica com heróis de outros autores regionalistas No entanto todos nós somos Riobaldo que transcende o cunho particular do documento para encarnar os problemas comuns da nossa humanidade num sertão que é também o nosso espaço de vida Se o sertão é o mundo como diz ele a certa altura do livro não é menos certo que o jagunço somos nós CANDIDO 2004 p 115 Esta a capacidade fantástica do romance de Guimarães Rosa fazer com que qualquer homem por mais afastado que esteja daquele espaço daquela realidade consiga se identificar com os dramas de seu protagonista O sertão do livro é mundo à parte mas é a síntese do nosso próprio mundo por isso somos o jagunço como defende o crítico 92 Mas a origem desse ser jagunço segundo Candido já estava em A hora e a vez de Augusto Matraga conto de Sagarana 1946 A oportunidade a hora e vez de nhô Augusto consiste em fazer o bem e com isto assegurar a salvação da alma por meio da violência destruidora do ato de jagunço matador que ele reprimira duramente até então com medo de perdêla O tiroteio e o duelo a faca durante o qual mata Joãosinho BemBem e é por ele morto como em Grande sertão Hermógenes e Diadorim surge ao modo de um prêmio de Deus CANDIDO 2004 p 116117 O jagunço não é necessariamente mau portanto A sua maldade é praticada através da violência para sobrevivência ou execução de vingança Por isso Candido relaciona na seqüência o jaguncismo a um símbolo Neste conto vemos de que maneira pode emergir da situação comum de jaguncismo um sentido voltado para o símbolo No momento em que se faz jagunço nhô Augusto sobe em vez de cair pois está adotando uma forma justa de comportamento cujo resultado final é paradoxalmente suprimir o jaguncismo como ocorrerá também em Grande sertão com o comportamento de Riobaldo Ser jagunço tornase além de uma condição normal no mundosertão onde a vontade se forma mais forte que poder do lugar uma opção de comportamento definindo um certo modo de ser naquele espaço Daí a violência produzir resultados diferentes dos que esperamos na dimensão documentária e sociológica tornandose por exemplo instrumento de redenção CANDIDO 2004 p 117 Ser jagunço no sertão de Guimarães Rosa não é destino é opção de comportamento A violência de Grande sertão ou de A hora e a vez de Augusto Matraga é uma violência redentora porque não se trata de utilizála de maneira banal ou prazerosa mas como um dos elementos dessa opção Por isso como analisa o crítico em Grande sertão veredas fica mais claro este aspecto do jagunço como modo de ser e reajuste da personalidade a fim de operar num plano superior já que Riobaldo passa por uma transformação simbolizada pelo pacto com o diabo o que o aproxima do mal e lhe dá a coragem e a força necessárias para combater Hermógenes e Ricardão além de alterar seu comportamento tornandose mais violento e intransigente com os que se opunham a ele e com os inimigos Essa transformação faz com que Riobaldo tornese plenamente jagunço Guimarães Rosa parece ter querido mostrar que o ato decorre antes de mais nada de um modo peculiar de ser e se torna uma construção da 93 personalidade no mundosertão CANDIDO 2004 p 117 Assim o crítico fala na transcendência de Riobaldo O pacto deixa ver de maneira mais clara o enxerto de um jagunço simbólico no jagunço comum e a sua função transformadora é nítida no cuidado com que o autor baralha bruscamente as condições normais de espaço Isto a violência adquirida após o pacto talvez possa ser considerado como um sinal a mais do seu jaguncismo peculiar Riobaldo seria um instrumento de forças que o transcendem e nada mais faz do que ajustar o ser à craveira que permite realizar a sua missão fazer o bem através do mal nutrindo com as operações do ódio um amor desesperado e imenso CANDIDO 2004 p 118 Quando Riobaldo não tem mais medo do jaguncismo tornase um jagunço com forças que o transcendem como afirma Candido E essa transcendência engloba fazer o bem através do mal praticar atos de uma vingança que não é sua mas de Diadorim como também observa o crítico No fundo ele é quem força Riobaldo a transformarse embora hesite depois da transformação E a transformação de Riobaldo transforma também o mundo pela idéia de Diadorim de raptar a mulher de Hermógenes este e Ricardão vão à procura do bando de Riobaldo algo que não aconteceu com Medeiro Vaz e ZéBebelo que os procuraram mas não os localizaram invertendo a situação da narrativa graças ao pacto agora é o mundo que vem a Riobaldo CANDIDO 2004 p 119 Mais do que isso segundo o crítico Riobaldo passou a reger o mundo depois do pacto Essa ascensão de Riobaldo o tornou mais humano como observa Candido Podemos repetir que há em Guimarães Rosa uma ontologia peculiar do jagunço que sem prejuízo e mesmo por causa dos aspectos sociológicos muito vivos parece o traço mais característico do seu universo ficcional Por isso o seu jagunço difere dos que aparecem noutros livros brasileiros e não espanta que desde o aparecimento de Grande sertão tenha sido encarado por alguns críticos como forma de paladino a ser aproximado da ficção medieval Isto significa que Guimarães Rosa tomou um tipo humano tradicional em nossa ficção e desbastando os seus elementos contingentes transportouo além do documento até a esfera onde os tipos literários passam a representar os problemas comuns da nossa humanidade desprendendose do molde histórico e social de que partiram CANDIDO 2004 p 120 94 A base da narrativa de Grande sertão é a realidade e com a reflexão acima Candido consegue demonstrar como se pode analisar sociologicamente o romance Não se trata simplesmente de decalcar a realidade no romance mas de transformála para que se atinja a aproximação como observou anteriormente o crítico entre leitor e protagonista A escolha da primeira pessoa do singular não foi à toa certamente e acabou determinando essa relação conforme o estudioso registra no parágrafo seguinte Em Grande sertão veredas esta operação de alta estética foi possível devido a certos procedimentos ligados ao foco narrativo que por sua vez comanda uma expressividade máxima da linguagem utilizada Tratase com efeito de ver o mundo através dum ângulo de jagunço resultando um mundo visto como mundodejagunço Mundo onde sendo a violência norma de conduta as coisas são encaradas nos seus extremos e as contradições se mostram com maior força No espaço fechado do sertão a vida ganha aspectos projetados pela maneira de ser de Riobaldo que descobre ou redescobre o mundo em função da sua angústia e do seu dilaceramento A narrativa na primeira pessoa favorece a solidariedade entre ambos ao estabelecer uma paridade entre o dilaceramento do narrador e o dilaceramento do mundo que se condicionam e se reforçam mutuamente CANDIDO 2004 p 120121 Aqui Candido já adiantava o centro do argumento do próximo ensaio seu a ser analisado a opção pela narração em primeira pessoa foi fundamental para dar ao texto uma fatura consistente e sem exotismo A história que Riobaldo nos conta não parece ficcional não só porque é como se fôssemos seu interlocutor mas porque dessa forma ele estava nos revelando aspectos de uma linguagem que é extremamente brasileira embora possa não parece à primeira vista além de uma realidade que também é muito brasileira apesar de regional o mundo é visto numa totalidade impressionante na qual ser jagunço foi a condição para compreender os vários lados da vida vistos agora por quem foi jagunço O discurso direto reforça as reflexões de Riobaldo reforça seu caráter e sua experiência primeira pessoa conduzindo a uma presentização do passado a uma simultaneidade temporal que aprofunda o significado de cada coisa parece a condição formal básica de Grande sertão veredas O crítico ainda hesita em afirmar que não só parece mas esta é a condição formal básica da obra Sem ela provavelmente seria apenas mais um romance regionalista e possivelmente pior do que outros E é a partir dessa condição que o leitor faz a sua criação do sertão ou seja é através das palavras de Riobaldo que o sertão se configura na imaginação do leitor Na 95 medida em que o sertão é o mundo e o mundosertão nos está sendo apresentado por um jagunço vivido é através desse jagunço que o criamos Do ângulo do estilo ser jagunço e ver como jagunço constitui uma espécie de subterfúgio ou de malícia do romancista Subterfúgio para esclarecer o mundo brutal do sertão através da consciência dos próprios agentes da brutalidade malícia que estabelece um compromisso e quase uma cumplicidade segundo a qual o leitor esposa a visão do jagunço porque ela oferece uma chave adequada para entrar no mundo sertão Mas sobretudo porque através da voz do narrador é como se o próprio leitor estivesse denominando o mundo de maneira mais cabal do que seria possível aos seus hábitos mentais CANDIDO 2004 p 121 Só com a sua experiência no jaguncismo Riobaldo consegue transmitir o que é ser jagunço e penetrar na compreensão profunda do bem e do mal na trama complicada da vida CANDIDO 2004 p 121 Sem ela o leitor não conseguiria compreender esse mundo porque é um mundo completamente diferente de tudo que se conhece Por isso Candido diz que em tal mundo ser jagunço pode formar a base para ver melhor CANDIDO 2004 p 122 e portanto para demonstrar compreensão Fechando o ensaio o crítico observa que graças ao romance de Guimarães Rosa o leitor brasileiro pôde ter contato com uma região que até então não havia sido elevado à categoria de objeto estético demonstrando a unidade do sertão brasileiro irmanando a fisionomia social de zonas que imaginávamos separadas CANDIDO 2004 p 122123 E para comprovar que o romance é meticulosamente plantado na realidade física histórica e social da região especificamente do norte de Minas Candido dá um depoimento pessoal a respeito de um bando de jagunços que viu passar na cidade onde passou sua infância Poços de Caldas e o corpo baleado de um jagunço adolescente que viu carregado por soldados Além disso em municípios próximos aconteceu uma revolução para ajuste de contas entre políticos que ameaçavam assaltar sua cidade Seu pai só e desarmado mas muito calmo recusava sair de casa apesar de visado Afinal não vieram e ele foi a uma centena de quilômetros de distância buscar para a defesa da cidade carabinas cedidas por um oficial cujo nome vem referido por Riobaldo em Grande sertão veredas Creio que esta minúscula experiência pessoal do fim do jaguncismo no sul de Minas no decênio de 1920 talvez ajude os moços a sentirem o ritmo das mudanças em nosso tempo e o interesse com que falei do assunto CANDIDO 2004 p 123124 96 Realmente esta reflexão final esclarece a minúcia que Candido dispensou ao tema no ensaio Mais do que isso demonstra um interesse de ordem pessoal de tentar entender através da literatura o fenômeno do jaguncismo a que ele próprio assistiu além de embasar seus argumentos com base na realidade histórica O sertão não é tão longe quanto se imagina portanto o jaguncismo não acabou há tanto tempo e no fundo ainda persiste sob outro viés 32 A LITERATURA E A FORMAÇÃO DO HOMEM A literatura e a formação do homem é um ensaio escrito para uma conferência que Antonio Candido pronunciou em 1972 e que foi posteriormente publicado na revista Ciência e Cultura O objetivo do crítico era analisar as variações sobre a função humanizadora da literatura isto é sobre a capacidade que ela tem de confirmar a humanidade do homem CANDIDO 2002 p 77 O pressuposto do crítico é que todo ser humano precisa de um pouco de fantasia em algum momento de seu dia pois é através dela que o homem se humaniza Depois de analisar como se relacionam a função psicológica a fantasia e a imaginação no texto literário e como estas contribuem para a formação da personalidade do indivíduo o que também está relacionado a uma função educativa o crítico parte de uma pergunta para nos apresentar um exemplo prático de como a literatura pode humanizar mas também alienar O questionamento de Candido dizia respeito ao fato de a literatura ter uma função de conhecimento do mundo e do ser O crítico registra que muitas correntes estéticas identificam três elementos básicos do que é literatura 1 a literatura é uma forma de conhecimento 2 uma forma de expressão e 3 uma construção de objetos semiologicamente autônomos Apesar da literatura ter uma autonomia de significado Candido argumenta que esta autonomia não a desliga das suas fontes de inspiração no real nem anula a sua capacidade de atuar sobre ele CANDIDO 2002 p 85 Essa reflexão está vinculada diretamente à metodologia analítica de Candido Suas análises sempre partiram das obras literárias para o crítico são elas que determinam como elas mesmas deviam ser examinadas Apesar disso Candido sempre 97 manteve uma preocupação com a relação que as obras mantinham com a realidade Daí toda preocupação que Candido dispensou às obras que analisou especialmente com relação àqueles textos que o despertaram de maneira mais forte como em Jagunços mineiros de Cláudio a Guimarães Rosa quando trata de Grande sertão veredas Para demonstrar como a literatura pode exercer uma função humanizadora e dentro do mesmo estilo literário uma função alienante o crítico apresenta um exemplo de relação das obras literárias com a realidade concreta o regionalismo brasileiro que por definição é cheio de realidade documentária CANDIDO 2002 p 86 A ficção regionalista brasileira preenche os três casos referidos acima ou seja através dela podemos adquirir conhecimento identificar uma forma peculiar de expressão e portanto a construção de um objeto autônomo Por isso Candido argumenta Tratase de um caso privilegiado para estudar o papel da literatura num país em formação que procura a sua identidade através da variação dos temas e da fixação da linguagem oscilando para isto entre a adesão aos modelos europeus e a pesquisa de aspectos locais O Regionalismo foi uma busca do tipicamente brasileiro através das formas de encontro surgidas do contato entre o europeu e o meio americano Ao mesmo tempo documentário e idealizador forneceu elementos para a autoidentificação do homem brasileiro e também para uma série de projeções ideais CANDIDO 2002 p 86 Em texto analisado anteriormente o crítico aventou a possibilidade do romance brasileiro ter iniciado através do regionalismo Mesmo que não tenha sido assim essa tendência para o regional foi decisiva para a configuração da literatura brasileira porque como escreveu Candido acima procurou a sua identidade através da variação dos temas e da fixação da linguagem O regionalismo no Brasil não foi apenas uma tendência literária mas sim uma forma de encontrar identificar e apresentar o tipicamente brasileiro grifado pelo crítico Com essas reflexões poderíamos imaginar que a literatura brasileira teria sido muito mais influenciada pelos modelos europeus caso não tivesse existido o regionalismo O parágrafo seguinte guarda algumas reflexões que podem inicialmente parecer estranhas Candido escreve Mas antes de ir além um parêntese para dizer que hoje tanto na crítica brasileira quanto na latinoamericana a palavra de ordem é morte ao Regionalismo quanto ao presente e menosprezo pelo que foi quanto ao passado Esta atitude é criticamente boa se a tomarmos como um 98 basta à tirania do pitoresco que vem a ser afinal de contas uma literatura de exportação e exotismo fácil Mas é forçoso convir que justamente porque a literatura desempenha funções na vida da sociedade não depende apenas da opinião crítica que o Regionalismo exista ou deixe de existir CANDIDO 2002 p 86 Guimarães Rosa havia falecido há cinco anos quando Candido escreveu este ensaio que é contemporâneo ao Sargento Getulio de João Ubaldo Ribeiro publicado em 1971 O regionalismo estava muito vivo na literatura brasileira estava vendo serem produzidas suas grandes obras Então por que o crítico registra que a palavra de ordem do momento é morte ao Regionalismo Ele explica então que se refere ao regionalismo de exportação e exotismo fácil ou seja o regionalismo dos autores da virada do século XIX para o XX Portanto João Ubaldo Ribeiro Guimarães Rosa e alguns outros poucos autores não são para Candido regionalistas A literatura deles está impregnada de valores e temas regionais mas são obras que transcendem o regionalismo em especial a de Rosa cabe registrar que Candido não tem nenhum conhecido estudo sobre o livro de João Ubaldo E como a existência ou a extinção do regionalismo não dependem da crítica Candido reconhece que há fatores mais fortes para a sua perpetuação Ele existiu existe e existirá enquanto houver condições como as do subdesenvolvimento que forçam o escritor a focalizar como tema as culturas rústicas mais ou menos à margem da cultura urbana O que acontece é que ele se vai modificando e adaptando superando as formas mais grosseiras até dar a impressão de que se dissolveu na generalidade dos temas universais como é normal em toda obra bemfeita E pode mesmo chegar à etapa onde os temas rurais são tratados com um requinte que em geral só é dispensado aos temas urbanos como é o caso de Guimarães Rosa a cujo propósito seria cabível falar num super Regionalismo Mas ainda aí estamos diante de uma variedade malsinada da corrente CANDIDO 2002 p 8687 O Brasil sempre teve traços de atraso muito acentuados com relação aos países da Europa e mesmo com relação a vários países das Américas Esses traços sempre foram explorados pela literatura mas passaram a ser encarados com sensibilidade ao invés de um tratamento exótico como se fossem traços de uma cultura atrasadíssima Os escritores regionalistas perceberam que podiam realizar grandes obras do ponto de vista estético sem cair no pitoresco que tanto irritou Candido e outros críticos em autores como Afonso Arinos e Valdomiro Silveira Mas mesmo assim o crítico é 99 reticente ao afirmar que Guimarães Rosa é regionalista preferindo enquadrálo numa outra classificação que ele reconhece não ser ideal a do superRegionalismo Como veremos no próximo tópico várias dessas idéias de Candido já estavam contidas no ensaio Literatura e Subdesenvolvimento que publicado pela primeira vez em língua portuguesa em 1973 já havia aparecido em francês em 1970 Antes de analisar as obras de Coelho Neto e Simões Lopes Neto para exemplificar a alienação e a humanização na literatura Candido reflete sobre a tensão entre tema e linguagem presente no regionalismo O tema rústico puxa para os aspectos exóticos e pitorescos e através deles para uma linguagem inculta e cheia de peculiaridades locais mas a convenção normal da literatura baseada no postulado da inteligibilidade puxa para uma linguagem culta e mesmo acadêmica O Regionalismo deve estabelecer uma relação adequada entre os dois aspectos e por isso se torna um instrumento poderoso de transformação da língua e de revelação e autoconsciência do país mas pode ser também fator de artificialidade na língua e de alienação no plano do conhecimento do país As duas coisas ocorrem nas diversas fases do Regionalismo brasileiro e eventualmente em obras diferentes do mesmo autor CANDIDO 2002 p 87 Durante muito tempo o grande entrave da literatura regionalista brasileira foi justamente essa tensão entre tema e linguagem A maioria dos autores optava por utilizar o linguajar da região retratada apenas quando os personagens tomavam a voz no discurso direto por exemplo em diálogos Alguns inclusive apresentavam personagens regionais em obras urbanas o que acentuava ainda mais a diferença entre os dois mundos Graciliano Ramos por outro lado realizou uma literatura regional utilizando basicamente a norma culta da língua portuguesa Daí muitos críticos debaterem se sua obra é realmente regional afinal não seria possível escrever um romance regional sem apresentar uma linguagem também regional Para elucidar o caso Candido compara dois contos dos referidos autores a saber Mandoví contido na coletânea Sertão de Coelho Neto e Contrabandista dos Contos Gauchescos de Simões Lopes Lembrando que os dois autores viveram na mesma época e se conheceram Candido afirma Ambos escreveram num momento de grande voga da literatura regionalista quando ela parecia mais autêntica do que outras modalidades porque se ocupava de tipos humanos paisagens e costumes 100 considerados tipicamente brasileiros No conjunto foi uma tendência falsa correspondendo a modalidades superficiais de nacionalismo baseada numa distância insuperada entre o escritor e o seu personagem que ficava reduzido ao nível da curiosidade e do pitoresco Não obstante alguns escritores conseguiram posição bem mais humanizadora Os dois exemplos procuram sugerir as duas posições CANDIDO 2002 p 8788 Candido demonstra a fragilidade da obra regionalista de Coelho Neto ao explicar que o personagem era tratado como mais um acessório da narrativa no meio da descrição paisagem exótica Dessa forma a narrativa transmitia uma sensação de alienação Segundo o crítico O Regionalismo de Coelho Neto cuja obra se desenvolveu na maior parte em outros rumos mostra a dualidade estilística predominante entre os regionalistas que escreviam como homens cultos nos momentos de discurso indireto e procuravam nos momentos de discurso direto reproduzir não apenas o vocabulário e a sintaxe mas o próprio aspecto fônico da linguagem do homem rústico CANDIDO 2002 p 88 Não era apenas o personagem um acessório da narrativa contribuindo para o exotismo mas também todos os seus hábitos sua linguagem e a própria maneira como falava Como observa Candido esse recurso fazia com que se estabelecesse um distanciamento máximo entre o autor e seu personagem entre o homem da cidade e o homem do campo como se ele estivesse querendo marcar pela dualidade de discursos a diferença de natureza e de posição que o separava do objeto exótico que é o seu personagem CANDIDO 2002 p 88 O resultado é um texto desagradável de ser lido com os dois discursos misturados às vezes inclusive no mesmo parágrafo A linguagem empregada irrita o leitor mais exigente porque ela não se decide para que lado vai O procedimento exemplificado com o texto de Coelho Neto é uma técnica ideológica inconsciente para aumentar a distância erudita do autor que quer ficar com o requinte gramatical e acadêmico e confinar o personagem rústico por meio de um ridículo patuá pseudorealista no nível infrahumano dos objetos pitorescos exóticos para o homem culto da cidade Digo pseudorealista porque na verdade o que ocorre é uma dualidade de critérios Com efeito ao narrador ou personagem cultos de classe superior é reservada a integridade do discurso que se traduz pela grafia convencional indicadora da norma culta CANDIDO 2002 p 89 101 É claro que a posição de Coelho Neto não lhe permitia agir de outra forma afinal era ligado ao grupo parnasiano e praticava uma linguagem também parnasiana Dando aos personagens humildes o linguajar da região incorporando aspectos fônicos na escrita dessa linguagem e reservando a erudição ao narrador em terceira pessoa Coelho Neto não só agradava aos leitores pretensamente cultos da época como também fazia com que esses leitores se sentissem ainda mais cultos que realmente eram Como registra Candido os personagens de boa situação social não têm sotaque e não têm a sua linguagem deformada assumindo o estado ideal de dicionário Quando ao contrário marca o desvio da norma no homem rural pobre o escritor dá ao nível fônico um aspecto quase teratológico que contamina todo o discurso e situa o emissor como um ser à parte um espetáculo pitoresco como as árvores e os bichos feito para contemplação ou divertimento do homem culto que deste modo se sente confirmado na sua superioridade Em tais casos o Regionalismo é uma falsa admissão do homem rural ao universo dos valores éticos e estéticos CANDIDO 2002 p 8990 Este foi portanto o pior tipo de regionalismo literário desenvolvido no Brasil Mesmo que a intenção de escritores como Coelho Neto não fosse tratar seus personagens de maneira desumana ao contrário como registra Candido era difícil para o autor perceber que não estava executando uma literatura humanizadora Mesmo o caso positivo analisado por Candido Simões Lopes Neto talvez não tenha escrito sua literatura consciente de que seus colegas regionalistas não humanizavam seus personagens De qualquer forma Simões Lopes conseguiu solucionar um problema grave da literatura regionalista ao dar voz diretamente a um homem do campo conhecedor de sua terra e de seus costumes Simões Lopes Neto começa por assegurar uma identificação máxima com o universo da cultura rústica adotando como enfoque narrativo a primeira pessoa de um narrador rústico o velho cabo Blau Nunes que se situa dentro da matéria narrada e não raro do próprio enredo como uma espécie de Marlowe gaúcho Esta mediação nunca usada por Coelho Neto encastelado numa terceira pessoa alheia ao mundo ficcional que hipertrofia o ângulo do narrador culto atenua ao máximo o hiato entre criador e criatura dissolvendo de certo modo o homem culto no homem rústico Este deixa de ser um ente separado e estranho que o homem culto contempla para tornarse um homem 102 realmente humano cujo contato humaniza o leitor CANDIDO 2002 p 9091 A técnica empregada nos Contos Gauchescos e em outros textos de seu autor faz com que não haja distanciamento entre leitor e narrador ou no mínimo com que o homem culto não se sinta superior ao homem rústico Pelo contrário aquele acaba vendo neste um sábio um homem com quem se pode conhecer e aprender coisas novas Como observa Candido com a utilização do narrador fictício fica evitada a situação de dualidade porque não há diferença de cultura entre quem narra e quem é objeto da narrativa CANDIDO 2002 p 92 Simões Lopes Neto utilizou poucas técnicas exploradas por outros escritores como Coelho Neto Por exemplo são raras as expressões reproduzidas fielmente da fala como por exemplo o escuite do conto O negro Bonifácio Além disso quanto à sintaxe seu português é culto apenas o vocabulário é localista Talvez por causa disso o crítico observe que No entanto aí está um ritmo diferente estão certos vocábulos reveladores e ligeiras deformações prosódicas construindo uma fala gaúcha estilizada e convincente mas ao mesmo tempo literária esteticamente válida Para o seu narrador Blau Nunes o autor tinha dois extremos possíveis ou deformar as palavras e grafar toda a narrativa segundo a falsa convenção fonética usual em nosso Regionalismo de que vimos um exemplo em Coelho Neto ou adotar um estilo castiço registrado segundo as convenções da norma culta Simões Lopes Neto rejeitou totalmente o primeiro e adaptou sabiamente o segundo conseguindo um nível muito eficiente de estilização Graças a isto o universo do homem rústico é trazido para a esfera do civilizado CANDIDO 2002 p 92 As soluções de Simões Lopes acabaram sendo decisivas certamente para o surgimento de Guimarães Rosa que soube aproveitar o melhor de cada acerto de Simões para transcendêlo Talvez Candido não situe Simões e Rosa no mesmo grupo porque mesmo a obra do gaúcho sendo de alta qualidade ele nunca escreveu um romance como fez o mineiro Pode parecer um preconceito mas o fato é que quando o críticos falam de Guimarães Rosa exaltam especialmente Grande sertão veredas Como vimos nos textos de Candido das décadas de 40 e 50 o deslumbre do crítico com o romance faz com que os contos de Sagarana sejam relegados a segundo plano Mesmo assim foi Simões quem conseguiu fazer o movimento de aproximação entre o 103 homem rústico e o civilizado e alçou a literatura regionalista brasileira a um novo patamar 33 LITERATURA E SUBDESENVOLVIMENTO Literatura e Subdesenvolvimento apareceu pela primeira vez em tradução francesa em 1970 e em língua espanhola em 1972 No Brasil o texto foi publicado pela primeira vez em 1973 na primeira edição da revista Argumento que Antonio Candido ajudou a criar e com a qual colaborou até ser censurada pela ditadura militar no ano seguinte O foco da análise de Candido no ensaio é a relação entre a arte e a cultura em especial a literatura e a situação social dos países latinoamericanos O ensaio foi encomendado pela Unesco que em 1966 iniciou o empreendimento de estudar as culturas da América Latina em suas expressões literárias e artísticas a fim de determinar as características de tais culturas MORENO 1979 p XI Partindo de um argumento de Mario Vieira de Mello do livro Desenvolvimento e Cultura O Problema do estetismo no Brasil de 1963 Candido explica que até 1930 predominava no Brasil a noção de país novo que ainda não pudera realizarse mas que atribuía a si mesmo grandes possibilidades de progresso futuro CANDIDO 2000 p 140 Na época em que o texto foi escrito como observa o crítico o que predominava era a idéia de país subdesenvolvido Este termo deixou de ser utilizado devido a questões politicamente corretas tendo sido substituído por país em desenvolvimento mas o que caracteriza um e outro termo continua igual Segundo Candido a idéia de país novo produz na literatura algumas atitudes fundamentais derivadas da surpresa do interesse pelo exótico de um certo respeito pelo grandioso e da esperança quanto às possibilidades CANDIDO 2000 p 140 141 Talvez aí esteja a justificativa para a efusão de obras regionalistas no Brasil e em outros países da América Latina especialmente na virada do século XIX para o XX Esse estado de euforia foi herdado pelos intelectuais latino americanos que o transformaram em instrumentos de afirmação nacional e em justificativa ideológica A literatura se fez linguagem de celebração e terno apego favorecida pelo Romantismo com apoio na hipérbole e na transformação do exotismo em estado de alma 104 A idéia de pátria se vinculava estreitamente à de natureza e em parte extraía dela a sua justificativa Ambas conduziam a uma literatura que compensava o atraso material e a debilidade das instituições por meio da supervalorização dos aspectos regionais fazendo do exotismo razão de otimismo social CANDIDO 2000 p 141 O crítico aí apontava uma justificativa que poderia ter utilizado na Formação da Literatura Brasileira para explicar a exploração excessiva do exotismo e do pitoresco na literatura regionalista O atraso econômico político e social era atenuado pela natureza especial que ganhava contornos requintados nas artes Era como se exaltando a peculiaridade da paisagem as dificuldades acarretadas pelo atraso fossem esquecidas um dos pressupostos ostensivos ou latentes da literatura latinoamericana foi esta contaminação geralmente eufórica entre a terra e a pátria considerandose que a grandeza da segunda seria uma espécie de desdobramento natural da pujança atribuída à primeira CANDIDO 2000 p 141142 Mas Candido observa que também havia intelectuais preocupados com o atraso e que viam um paradoxo entre a desorganização das instituições e as grandiosas condições naturais para usar suas expressões O crítico ressalta os aspectos do atraso que atingiu um ponto alto também devido à visão alienante de que se a terra era linda a pátria seria superior Ora dada esta ligação causal terra bela pátria grande não é difícil ver a repercussão que traria a consciência do subdesenvolvimento como mudança de perspectiva que evidenciou a realidade dos solos pobres das técnicas arcaicas da miséria pasmosa das populações da sua incultura paralisante A visão que resulta é pessimista quanto ao presente e problemática quanto ao futuro e o único resto de milenarismo da fase anterior talvez seja a confiança com que se admite que a remoção do imperialismo traria por si só a explosão do progresso CANDIDO 2000 p 142 Não é à toa que a revista Argumento foi censurada Assim como outros intelectuais que ali escreveram Candido tocava na ferida dos políticos que comandavam o país demonstrando que apesar dos avanços tecnológicos o Brasil continuava extremamente atrasado Diante desse estado de coisas o crítico demonstra que a única alternativa para os intelectuais era lutar contra a situação Mas em geral não se trata mais de um ponto de vista passivo Desprovido de euforia ele é agônico e leva à decisão de lutar pois o traumatismo causado na consciência pela verificação de quanto o atraso é 105 catastrófico suscita reformulações políticas O precedente gigantismo de base paisagística aparece então na sua essência verdadeira como construção ideológica transformada em ilusão compensadora Daí a disposição de combate que se alastra pelo continente tornando a idéia de subdesenvolvimento uma força propulsora que dá novo cunho ao tradicional empenho político dos nossos intelectuais CANDIDO 2000 p 142 A batalha já vinha sendo travada desde antes da instauração do regime militar Os intelectuais em especial os escritores demonstravam a disparidade social do Brasil Era como se existissem dois países um desenvolvido com telefone energia elétrica e água encanada nas residências outro atrasado que não sabia o que era telefone e sonhava com saneamento básico e energia elétrica Sem falar nas questões educacionais e de segurança Segundo o crítico a consciência do subdesenvolvimento é posterior à Segunda Guerra Mundial e se manifestou claramente a partir dos anos de 1950 Mas desde o decênio de 1930 tinha havido mudança de orientação sobretudo na ficção regionalista que pode ser tomada como termômetro dadas a sua generalidade e persistência Ela abandona então a amenidade e curiosidade pressentindo ou percebendo o que havia de mascaramento no encanto pitoresco ou no cavalheirismo ornamental com que antes se abordava o homem rústico Não é falso dizer que sob este aspecto o romance adquiriu uma força desmistificadora que precede a tomada de consciência dos economistas e políticos CANDIDO 2000 p 142 A ficção regionalista é para Candido um termômetro da situação social do país Na fase de consciência amena de atraso o regionalismo explorava o exótico e o pitoresco numa literatura em geral pouco preocupada com os problemas sociais e que procurava colocar o homem da cidade acima do homem do campo A fase de consciência catastrófica de atraso iniciase no decênio de 1930 com o advento do chamado Romance de 30 ou Romance do Nordeste e corresponde à noção de país subdesenvolvido A noção de subdesenvolvimento surge acompanhada de uma geração de escritores preocupados em expor as mazelas regionais do país mostrando que enquanto Getulio Vargas inaugurava fábricas automobilísticas nos grandes centros urbanos a vida no interior correspondia a uma situação semelhante à da Idade Média Para o crítico se pensarmos nas condições materiais de existência da literatura o fato básico talvez seja o analfabetismo CANDIDO 2000 p 143 Nesta área a situação não mudou muito para os dias atuais Segundo estudos do Instituto Brasileiro 106 de Geografia e Estatística IBGE apenas vinte e cinco por cento da população brasileira contemporânea domina plenamente as funções de leitura e escrita Excetuando os analfabetos totais que correspondem a cerca de dez por cento do total por volta de sessenta e cinco por cento da população brasileira não entende o que lê ou consegue apenas captar pequenas informações em frases curtas A leitura de um romance ou de um poema de Carlos Drummond de Andrade é algo simplesmente impossível para a maior parte dos brasileiros mesmo que tenham acesso a esse tipo de texto tanto na Espanha e em Portugal quanto em nossos países criase uma condição negativa prévia o número de alfabetizados isto é os que podem eventualmente constituir os leitores das obras Esta circunstância faz com que os países latinoamericanos estejam mais próximos das condições virtuais das antigas metrópoles do que em relação às suas os países subdesenvolvidos da África e da Ásia que falam idiomas diferentes dos falados pelo colonizador e enfrentam o grave problema de escolher o idioma em que deve manifestarse a criação literária Os escritores africanos de língua européia francesa como Léopold Sendar Senghor ou inglesa como Chinua Achebe se afastam duplamente dos seus públicos virtuais e se amarram ou aos públicos metropolitanos distantes em todos os sentidos ou a um público local incrivelmente reduzido CANDIDO 2000 p 144 Mas Candido exclui a língua como um problema afinal tirando as tribos indígenas que têm a sua própria língua o povo brasileiro e também os povos de língua espanhola fala uma mesma língua sem variantes acentuadas Isto é dito para mostrar que são maiores as possibilidades de comunicação do escritor latinoamericano no quadro do Terceiro Mundo apesar da situação atual que reduz muito os seus públicos eventuais No entanto é também possível imaginar que o escritor latinoamericano esteja condenado a ser sempre o que tem sido um produtor de bens culturais para minorias embora no caso estas não signifiquem grupos de boa qualidade estética mas simplesmente os poucos grupos dispostos a ler Com efeito não esqueçamos que os modernos recursos audiovisuais podem motivar uma tal mudança nos processos de criação e nos meios de comunicação que quando as grandes massas chegarem finalmente à instrução quem sabe irão buscar fora do livro os meios de satisfazer as suas necessidades de ficção e poesia CANDIDO 2000 p 144 Dito de outra forma o escritor latinoamericano poderia prevalecerse pelo fato de poder escrever numa língua compreendida por quase um continente inteiro mas o analfabetismo se mostrava um empecilho Além disso no parágrafo acima o crítico 107 retomou algo que já estava registrado para o público brasileiro em A literatura e a formação do homem ou seja a necessidade de fantasia inerente ao ser humano Mais do que isso Candido foi profético ao refletir sobre o futuro cultural das massas A televisão tomou conta do imaginário popular através das telenovelas sem falar nos recentes realityshows que no fundo nada têm de real A interação entre público e meios de comunicação também aumentou a televisão acabou incorporando elementos do rádio como a intromissão do público em questões referentes a seus programas e a Internet trouxe um mundo radicalmente novo e alienante em que a informação precisa ser rápida sem profundidade e as pessoas podem se passar por outras e criar mundos paralelos É claro que tanto a Internet quanto a televisão trouxeram muitos benefícios mas para a maioria do povo esses recursos servem apenas para afastála dos problemas reais e da cultura refinada o que acaba contribuindo à precariedade educacional do país Como afirma o crítico proporcionar a alfabetização geral não significa necessariamente a geração de um público leitor em nosso tempo uma catequese às avessas converte rapidamente o homem rural à sociedade urbana por meio de recursos comunicativos que vão até à inculcação subliminar impondolhe valores duvidosos e bem diferentes dos que o homem culto busca na arte e na literatura CANDIDO 2000 p 145 Com isso Candido reflete a operação arquitetada pelos países desenvolvidos para impor uma cultura de massa citando como exemplos o cowboy das histórias de farwest e o samurai dos japoneses Os valores importados são completamente diferentes daqueles que seriam necessários à instrução do povo latinoamericano o que provoca o surgimento de uma cultura pobre unificada sem variantes sem elementos peculiares ou regionais É como se estivesse sendo construída uma única cultura a do colonizador Mas voltando à literatura Candido relembra algo já discutido na Formação num país sem cultura para o intelectual e o escritor o modelo a ser seguido estava na Europa Só depois de muito tempo como sugerido na Formação é que temos o surgimento de uma literatura desvinculada da realidade européia Mas a falta de escritores originais fazia com que a opinião crítica exaltasse obras malfeitas como argumenta o crítico Toda literatura apresenta aspectos de retardamento que são normais ao seu modo podendose dizer que a média da produção num dado instante já é tributária do passado enquanto as vanguardas preparam o futuro Além disso há uma subliteratura oficial marginal e provinciana geralmente expressa pelas Academias Mas o que chama a 108 atenção na América Latina é o fato de serem consideradas vivas obras esteticamente anacrônicas ou o fato de obras secundárias serem acolhidas pela melhor opinião crítica e durarem por mais de uma geração quando umas e outras deveriam ter sido desde logo postas no devido lugar como coisa sem valor ou manifestação de sobrevivência inócua Citemos apenas o estranho caso do poema Tabaré de Juan Zorrilla de San Martín tentativa de epopéia nacional uruguaia já no fim do século XIX levada a sério pela opinião crítica apesar de concebida e executada segundo moldes os mais obsoletos CANDIDO 2000 p 150 No entanto às vezes o atraso significava simples demora cultural como observa Candido com relação ao Naturalismo que chegou um pouco tarde e se prolongou até nossos dias sem quebra essencial de continuidade embora modificando as suas modalidades CANDIDO 2000 p 150 O Naturalismo já estava sendo deixado de lado na Europa quando aportou no Brasil encontrando espaço para se manter não só até a época em que o crítico escreveu o texto como até hoje se pensarmos em obras como Cidade de Deus de Paulo Lins e Capão Pecado de Ferréz Mas Candido reconhece que mesmo quando o Brasil viu surgir escritores originais a literatura brasileira continuou recebendo influência estrangeira Apenas quando começa uma relação de causalidade interna para usar a expressão de Candido é que o cordão umbilical parece ter sido definitivamente cortado Esta relação se iniciou com a geração seguinte à dos modernistas da década de 20 que foram influenciados por estes que por sua vez ainda absorveram as novidades das vanguardas européias apesar de terem dado o grito de independência cultural A seguir Candido reflete sobre a situação da época quanto mais o homem livre que pensa se imbui da realidade trágica do subdesenvolvimento mais ele se imbui da aspiração revolucionária isto é do desejo de rejeitar o jugo econômico e político do imperialismo e de promover em cada país a modificação das estruturas internas que alimentam a situação de subdesenvolvimento CANDIDO 2000 p 154 Aí está uma colocação importante para o que o crítico chamará de consciência dilacerada do atraso No momento em que esta surge por volta da década de 1950 não há mais espaço para alienação entre os intelectuais que precisam confrontar o Estado para que mudanças sociais sejam executadas oficialmente Por isso Candido prossegue A partir dos movimentos estéticos do decênio de 1920 da intensa consciência estéticosocial dos anos 19301940 da crise de 109 desenvolvimento econômico e do experimentalismo técnico dos anos recentes começamos a sentir que a dependência se encaminha para uma interdependência cultural Isto não apenas dará aos escritores da América Latina a consciência da sua unidade na diversidade mas favorecerá obras de teor maduro e original que serão lentamente assimiladas pelos outros povos inclusive os dos países metropolitanos e imperialistas O caminho da reflexão sobre o desenvolvimento conduz no terreno da cultura ao da integração transnacional pois o que era imitação vai cada vez mais virando assimilação recíproca CANDIDO 2000 p 154155 Além das obras de Jorge Luis Borges e Mario Vargas Llosa é o que aconteceu também com a obra de Guimarães Rosa seguindo o raciocínio de Candido Dito de outra forma Rosa conseguiu perceber as peculiaridades regionais os problemas da região que retratava e a partir de um expressivo conhecimento filológico atingiu uma maturidade literária com Grande sertão veredas Como o crítico observara em 1966 o sertão de Rosa é um mundo à parte e é como o leitor vê o sertão E é sobre isso que Candido vai se deter ao final do ensaio Atraso que estimula a cópia servil de tudo quanto a moda dos países adiantados oferece além de seduzir os escritores com a migração por vezes migração interior que encurrala o indivíduo no silêncio e no isolamento Atraso que entretanto no outro lado da medalha propõe o que há de mais peculiar na realidade local insinuando um regionalismo que ao parecer afirmação da identidade nacional pode ser na verdade um modo insuspeitado de oferecer à sensibilidade européia o exotismo que ela desejava como desfastio e que se torna desta maneira forma aguda de dependência na independência Com a perspectiva atual parece que as duas tendências são solidárias e nascem da mesma situação de retardo ou subdesenvolvimento CANDIDO 2000 p 156157 O regionalismo a que se refere o crítico é o dos escritores da virada do século XIX para o XX que acreditavam estar escrevendo uma obra original e audaciosa mas que na realidade estavam transformando a realidade rural brasileira num acessório exótico para os olhos do colonizador O regionalismo demorou a conquistar uma real independência Ela veio apenas com Simões Lopes Neto que só foi lido e compreendido realmente muito depois de sua morte já que seus contemporâneos não o levaram muito a sério e foi Carlos Reverbel quem o redescobriu na década de 194016 época em que Guimarães Rosa estava despontando e Graciliano Ramos já tinha escrito 16 Com base na biografia de Simões Lopes Neto em LOPES NETO João Simões Obra Completa Org Paulo Bentancur Porto Alegre Sulina 2003 110 parte de sua obra Foram esses escritores que perceberam que o peculiar não poderia ser abordado com subserviência pois dessa forma estariam contribuindo para a mesma situação de retardo ou subdesenvolvimento dos escritores anteriores Sobre isso Candido ainda sugere de maneira irônica Talvez não sejam menos grosseiras certas formas primárias de nativismo e regionalismo literário que reduzem os problemas humanos a elemento pitoresco fazendo da paixão e do sofrimento do homem rural ou das populações de cor um equivalente dos mamões e dos abacaxis Esta atitude redunda em fornecer a um leitor urbano europeu ou europeizado artificialmente a realidade quase turística que lhe agradaria ver na América Sem o perceber o nativismo mais sincero arrisca tornarse manifestação ideológica do mesmo colonialismo cultural que o seu praticante rejeitaria no plano da razão clara e que manifesta uma situação de subdesenvolvimento e conseqüente dependência CANDIDO 2000 p 157 Em face disso Candido propõe que o regionalismo não seja encarado de maneira hostil como estava na moda na época porque as áreas de subdesenvolvimento e os problemas do subdesenvolvimento ou atraso invadem o campo da consciência e da sensibilidade do escritor propondo sugestões erigindose em assunto que é impossível evitar tornandose estímulos positivos ou negativos da criação CANDIDO 2000 p 157158 Em outras palavras há dois tipos de regionalismo o humanizador e o alienante Não se pode classificar da mesma maneira autores como José de Alencar ou Coelho Neto e Simões Lopes Neto ou Mario Palmério e Guimarães Rosa Assim o crítico conclui que o regionalismo é uma força estimulante da literatura latino americana Na fase de consciência de país novo correspondente à situação de atraso o regionalismo dá lugar sobretudo ao pitoresco decorativo e funciona como descoberta reconhecimento da realidade do país e sua incorporação ao temário da literatura Na fase de consciência do subdesenvolvimento funciona como presciência e depois consciência da crise motivando o documentário e com o sentimento de urgência o empenho político CANDIDO 2000 p 158 Para Candido apesar da etapa inicial do regionalismo ter servido apenas para expor os aspectos exóticos da região colocando o homem no mesmo nível dos mamões e abacaxis ela foi fundamental para que surgisse a segunda etapa que engloba escritores conscientes da precariedade da vida no campo E todas as etapas do 111 regionalismo foram fundamentais não só para a literatura brasileira ou latinoamericana mas também para evidenciar os problemas sociais que eram ignorados ou pouco conhecidos pelo homem da cidade como afirma o crítico O regionalismo foi uma etapa necessária que fez a literatura sobretudo o romance e o conto focalizar a realidade local Algumas vezes foi oportunidade de boa expressão literária embora na maioria os seus produtos tenham envelhecido Mas de um certo ângulo talvez não se possa dizer que acabou muitos dos que hoje o atacam no fundo o praticam A realidade econômica do subdesenvolvimento mantém a dimensão regional como objeto vivo a despeito da dimensão urbana ser cada vez mais atuante Basta lembrar que alguns dentre os melhores encontram nela substância para livros universalmente significativos como José María Arguedas Gabriel García Márquez Augusto Roa Bastos João Guimarães Rosa Apenas nos países de absoluto predomínio da cultura das grandes cidades como a Argentina e o Uruguai a literatura regional se tornou um total anacronismo CANDIDO 2000 p 159 Em outros ensaios Candido preocupouse menos em analisar as obras literárias regionais em face da realidade que retratavam do que em colocálas frente a frente expondo de maneira clara os bons e os maus textos Em Literatura e Subdesenvolvimento a preocupação é outra além de fazer o que já fazia antes o crítico está preocupado em expor a qualidade literária em face dos problemas sociais do continente latinoamericano mas sem partir do pressuposto aparentemente comum à época de que toda literatura regionalista não tem valor Dessa forma propõe uma revisão do regionalismo Por isso é preciso redefinir criticamente o problema verificando que ele não se esgota pelo fato de hoje ninguém mais considerar o regionalismo como forma privilegiada de expressão literária nacional inclusive porque como ficou dito pode ser especialmente alienante Mas convém pensar nas suas transformações lembrando que sob nomes e conceitos diversos prolongase a mesma realidade básica Com efeito na fase de consciência eufórica de país novo caracterizada pela idéia de atraso tivemos o regionalismo pitoresco que em vários países se inculcava como a verdadeira literatura É a modalidade há muito superada ou rejeitada para o nível da subliteratura CANDIDO 2000 p 159 112 Com isso Candido observa que o romance da geração de 30 sem ser exclusivamente regional o é em boa parte e portanto esses escritores foram precursores da consciência de subdesenvolvimento O que os caracteriza todavia é a superação do otimismo patriótico e a adoção de um tipo de pessimismo diferente do que ocorria na ficção naturalista Enquanto este focalizava o homem pobre como elemento refratário ao progresso eles desvendam a situação na sua complexidade voltandose contra as classes dominantes e vendo na degradação do homem uma conseqüência da espoliação econômica não do seu destino individual CANDIDO 2000 p 160 Segundo o crítico na obra de escritores como Jorge Amado e José Lins do Rego o que resta de pitoresco e melodramático é dissolvido pelo desmascaramento social fazendo pressentir a passagem da consciência de país novo à consciência de país subdesenvolvido com as conseqüências políticas que isto importa Mais do que isso para Candido mesmo a linguagem espontânea e irregular desses autores não compromete suas obras em face do descortinamento da realidade social que estas provocaram Inclusive esses escritores acharam boas soluções para o problema O crítico lembra de Vidas Secas em que as poucas palavras proferidas pelos personagens acabam contribuindo para a sua personalização numa narrativa que trata do mundo rural mais pobre sem incorporar elementos regionais à linguagem A seguir numa rara comparação Candido compara os produtos regionais com os urbanos em especial a ficção de Machado de Assis Vem a propósito dizer que o caso do Brasil é talvez peculiar pois aqui o regionalismo inicial que principia com o Romantismo antes dos outros países nunca produziu obras consideradas de primeiro plano mesmo pelos contemporâneos tendo sido tendência secundária quando não francamente subliterária em prosa e verso Os melhores produtos da ficção brasileira foram sempre urbanos as mais das vezes desprovidos de qualquer pitoresco sendo que o seu maior representante Machado de Assis mostrava desde os anos de 1880 a fragilidade do descritivismo e da cor local que baniu dos seus livros extraordinariamente requintados De tal modo que só a partir mais ou menos de 1930 numa segunda fase que estamos tentando caracterizar as tendências regionalistas já sublimadas e como transfiguradas pelo realismo social atingiram o nível das obras significativas quando em outros países sobretudo Argentina Uruguai Chile já estavam sendo postas de lado CANDIDO 2000 p 161 113 O parágrafo pode parecer inicialmente confuso ou contraditório porque o crítico afirma que o regionalismo nunca produziu obras de valor Diante da questão tomei a liberdade de escrever uma carta ao professor Antonio Candido que respondeume afirmando que estava pensando no conjunto das literaturas latinoamericanas levando em conta que excluía Guimarães Rosa do regionalismo propriamente dito Quando trata de Guimarães Rosa no ensaio o crítico se refere ao escritor mineiro como pertencente a uma fase de superregionalismo Para Candido Rosa está acima do regionalismo ou no mínimo fora dele porque sua obra não se compara a nenhuma outra da ficção regionalista e mesmo da ficção urbana Mas os romancistas de 30 já tinham atingido o nível das obras significativas como afirma Candido embora o regionalismo já estivesse sendo deixado de lado em outros países E esse grupo de escritores é responsável pela exposição da consciência do subdesenvolvimento uma consciência catastrófica nas palavras do crítico que diz estar tentando caracterizála A partir de 1930 o Brasil começa a sofrer profundas mudanças políticas e sociais que vão afetar o seu desenvolvimento econômico com a chegada ao poder de Getulio Vargas É um momento em que os escritores percebem o atraso brasileiro em todos os setores e por isso precisam combater a situação enfrentando os políticos que preferiam abafar ou ignorar esses problemas O regionalismo dessa geração contribuiu para a tomada de consciência de outros intelectuais mas vários desses autores e outros surgidos posteriormente mesmo tratando de temas regionais preferiam ser enquadrados de outra maneira A superação destas modalidades e o ataque que vêm sofrendo por parte da crítica são demonstrações de amadurecimento Por isso muitos autores rejeitariam como pecha o qualificativo de regionalistas que de fato não tem mais sentido Mas isto não impede que a dimensão regional continue presente em muitas obras da maior importância embora sem qualquer caráter de tendência impositiva ou de requisito duma equivocada consciência nacional CANDIDO 2000 p 161 No fundo o regionalismo tinha deixado de lado o pitoresco e o exótico Os ataques a que se refere Candido diziam respeito àquela segunda geração de regionalistas alienados dos problemas sociais e acreditando que desvelando a terra estavam mostrando a superioridade urbana Mas como observa o crítico não depende do escritor ser enquadrado como regionalista ou não e sim dos temas que aborda O regionalismo porém acabou passando por uma metamorfose ganhou refinamento 114 técnico graças ao qual as regiões se transfiguram e os seus contornos humanos se subvertem levando os traços antes pitorescos a se descarnarem e adquirirem universalidade CANDIDO 2000 p 161 Nesse caso poderíamos pensar que além de Guimarães Rosa João Ubaldo Ribeiro com seu Sargento Getulio também não deveria receber o qualificativo de regionalista Candido faz então a descrição de uma terceira fase do regionalismo e da consciência do atraso Descartando o sentimentalismo e a retórica nutrida de elementos nãorealistas como o absurdo a magia das situações ou de técnicas antinaturalistas como o monólogo interior a visão simultânea o escorço a elipse ela implica não obstante em aproveitamento do que antes era a própria substância do nativismo do exotismo e do documentário social Isto levaria a propor a distinção de uma terceira fase que se poderia pensando em surrealismo ou superrealismo chamar de super regionalista Ela corresponde à consciência dilacerada do subdesenvolvimento e opera uma explosão do tipo de naturalismo que se baseia na referência a uma visão empírica do mundo naturalismo que foi a tendência estética peculiar a uma época onde triunfava a mentalidade burguesa e correspondia à consolidação das nossas literaturas CANDIDO 2000 p 161162 Essa consciência dilacerada do subdesenvolvimento suscitada pela obra de Rosa mas também pela de Gabriel Garcia Márquez Juan Rulfo e Alejo Carpentier colocou em evidência um grave problema que Candido estudou na sua tese de sociologia Os Parceiros do Rio Bonito a saber a destruição total do mundo rural que acabaria englobado pela cidade num momento em que o campo não podia agüentar essa transformação nem precisava disso O que o interior do continente necessitava e que está implícito no argumento de Candido era diminuir a distância entre campo e cidade quantos aos aspectos sociais de saneamento básico saúde educação etc Mas o que aconteceu como está registrado em Grande sertão veredas foi a chegada ao campo do homem da cidade com seus jipes máquinas e instrumentos inúteis para a vida rural O que aí está demarcado é o fim de um mundo não só o fim físico mas também o fim cultural folclórico desse mundo Sobre isso ainda analisaremos alguns depoimentos importantes do crítico na conclusão deste trabalho a seguir A situação social brasileira a partir da década de 1960 especialmente após a instalação da ditadura militar parece ter obrigado Antonio Candido a expor 115 radicalmente o atraso social do Brasil com destaque para o interior do país A impressão que se tem é que o crítico queria demonstrar como o regionalismo não só mantinha força para gerar boas obras como conseguia retratar fielmente uma parte do país que era ignorada pelos centros urbanos e pelo próprio governo Cada ensaio abordado neste capítulo tratou de algum elemento especial com relação ao regionalismo Os valentões continuavam existindo em terras onde imperava a lei dos fazendeiros não a da justiça Jagunços Mineiros de Cláudio a Guimarães Rosa apesar da vontade de alguns de acabar com o regionalismo ele ainda demonstrava como poderia ser matéria artística humanizadora da melhor qualidade A literatura e a formação do homem e a exposição do atraso em que o Brasil sempre esteve inserido embora a consciência disso tenha variado com o tempo Literatura e Subdesenvolvimento Todos são textos embasados historicamente e com reflexões precisas a respeito da literatura que representava as dificuldades do país 116 CONCLUSÃO O FIM DO REGIONALISMO LITERÁRIO E A PERMANÊNCIA DO SUBDESENVOLVIMENTO Nos últimos anos Antonio Candido pouco tem escrito e publicado Entretanto com freqüência ele é chamado a dar sua opinião a respeito de assuntos variados e tem aceitado dar algumas entrevistas e depoimentos Um desses casos foram as duas entrevistas que concedeu a Luiz Carlos Jackson em 1996 e que estão incluídas na publicação em livro de sua dissertação de mestrado Provavelmente é nesta entrevista em que o crítico melhor sintetiza e explica as motivações que comandaram suas análises ao longo da vida Como o entrevistador tinha formação sociológica e pouco entendia de literatura Candido acabou dando várias explicações de maneira poderíamos dizer didática O tom da entrevista é de revisão de uma trajetória longa consolidada e respeitada Uma das sínteses valiosas diz respeito à diferença do nacionalismo entre Romantismo e Modernismo Romantismo e Modernismo são dois momentos parecidos devido ao nacionalismo à generosidade dos impulsos literários ao desejo de independência espiritual que não obstante era alimentado pelos modelos europeus Ambos reagiram contra modelos literários cansados e permitiram a liberdade de experiência que é fundamental e ambos promoveram a renovação da palavra a fim de aprofundar os temas locais Foram movimentos de libertação O nacionalismo romântico foi um nacionalismo laudatório enquanto o modernista é um nacionalismo crítico Os românticos inventaram o índio porque era a maneira ideal como disse Roger Bastide de sublimar a mestiçagem brasileira Transformase o índio em cavaleiro medieval dando a ele uma grande nobreza e redimese a mestiçagem enquanto o modernismo tomado em sentido amplo desde vinte até quarenta trouxe a realidade do proletário do imigrante do negro do pobre acabando com a visão paradisíaca do Brasil O realismo já tinha começado neste rumo mas o modernismo deu uma espécie de quase teoria do nacionalismo crítico JACKSON 2002 p 175 Segundo o raciocínio do crítico o nacionalismo romântico parece ter sido decisivo para o nacionalismo modernista O Romantismo de certa forma foi a fonte de inspiração do Modernismo Mas os modernistas perceberam que precisavam reavaliar o 117 espírito de nacionalidade expondo os problemas do país Ambos viam no Brasil uma terra cheia de riquezas mas os modernistas sentiram que não podiam mais aceitar ou endossar uma visão alienante dos problemas sociais era necessário mostrar o paradoxo do país ser tão belo e glorioso enquanto existiam tantas mazelas a serem superadas especialmente em face da realidade estrangeira Foi isso que tornou crítico o nacionalismo modernista foi isso que detonou a tomada de consciência catastrófica do atraso e posteriormente a consciência dilacerada Em entrevista ao professor Luís Augusto Fischer publicada revista Arquipélago em 2005 Candido foi questionado a pensar no papel que o regionalismo desempenhou na literatura brasileira e acabou fazendo um resumo da história do regionalismo literário brasileiro A resposta é longa mas acaba por definir os limites do regionalismo apresentando uma classificação nova a suas idéias com relação ao tema que foram debatidas nos capítulos deste trabalho A questão tem vários aspectos e já escrevi sobre alguns deles Esquematicamente seria possível forçando um pouco identificar três modalidades sucessivas no regionalismo brasileiro Primeira a de predomínio da incorporação segunda a de predomínio da exclusão terceira a de predomínio da sublimação No tempo do Império ele foi um instrumento de revelação do Brasil aos brasileiros incorporando à experiência do leitor das cidades o espetáculo da vida nas regiões afastadas Penso em autores como José de Alencar e Bernardo Guimarães O ânimo de integração por parte deles pode ser verificado na maneira de escrever ambos praticavam uma escrita ajustada à norma culta com o mínimo indispensável de modismos regionais o que aproximava o homem rural do homem urbano mostrando a unidade sob a diferença No tempo da Primeira República e do incremento da urbanização o regionalismo foi ao contrário fator de afastamento e mesmo estranhamento entre ambos como se a intenção dos autores fosse marcar a diferença acentuando o exotismo do homem rural e assim marcando a condição superior do homem urbano Foi um processo de folclorização do regionalismo visível na diferença entre o discurso civilizado do autor e o discurso rústico quase caricatural dos personagens excluídos de certo modo da norma culta Era o tempo dos detestáveis ocê tá bão e da redução reificadora do campesino a elemento pitoresco da paisagem Penso em autores como o Coelho Neto de Sertão Depois de 1930 houve uma fecundação do regionalismo em duas direções que ocorreram sucessivamente A primeira foi devida sobretudo a ficcionistas do Nordeste e consistiu em superar a alienação folclórica por meio da consciência social que problematizou a vida rural e por outro lado procurou aproximar o homem rústico do homem da cidade invertendo de certo modo a natureza do discurso da fase anterior ao 118 tentar uma injeção equilibrada da simplicidade coloquial na norma culta A segunda direção que denominei superregionalismo pensando em surrealismo ou superrealismo foi uma literatura de sublimação na medida em que incorporou o experimentalismo modernista Um autor como Guimarães Rosa privilegiou a função poética da linguagem e viu a sua tarefa como invenção não reprodução pitoresca Coisa paralela se deu em outras literaturas da América Latina o que levou o saudoso crítico uruguaio Angel Rama a apontar a inesperada originalidade dessa solução paradoxal consistente em fundir as práticas de vanguarda que encaram o presente e são esteticamente revolucionárias com os temas regionais que tendem ao realismo e a uma preservação conservadora do passado A tipologia acima é aproximativa e visa sobretudo às predominâncias mas é preciso lembrar que as três tendências podem ocorrer em grau maior ou menor Pensemos por exemplo que na fase dominada pelo pitoresco alienante Simões Lopes Neto prenuncia a etapa posterior graças à sua inventividade peculiar FISCHER 2005 p 3334 A consciência amena do atraso correspondente à noção de país novo engloba a primeira modalidade do regionalismo a de predomínio da incorporação A consciência catastrófica que corresponde à época da Primeira República e à segunda modalidade apontada pelo crítico tem no regionalismo literário o predomínio da exclusão Na consciência dilacerada do atraso dentro da terceira modalidade que ocorre a partir da chegada ao poder de Getulio Vargas há um predomínio da sublimação no regionalismo em duas direções a primeira com a dos romancistas de 30 e a segunda com a obra de Guimarães Rosa e outros escritores latinoamericanos Notese todavia que na primeira e na terceira modalidades há segundo Candido uma aproximação do homem rústico do homem da cidade Aí poderia residir uma contradição mas o que o crítico tem em mente é que no primeiro caso ocorre uma demonstração da unidade sob a diferença No segundo correspondente ao regionalismo dos romancistas do Nordeste há uma tentativa de injetar equilibradamente a simplicidade coloquial na norma culta E aqui temos uma visão renovada também sobre a obra de Guimarães Rosa que privilegiou a função poética da linguagem e viu a sua tarefa como invenção não reprodução pitoresca Candido relembra Angel Rama que explicou essa mudança de rumo como a fusão das práticas de vanguarda que encaram o presente e são esteticamente revolucionárias com os temas regionais que tendem ao realismo e a uma preservação conservadora do passado Portanto sem a renovação modernista provavelmente não existiria a consciência dilacerada do atraso E Candido retoma a expressão superregionalismo ao falar de Guimarães Rosa embora pouco explique o 119 que significa um escritor superregionalista Sobre isso podemos registrar que em depoimento recente incluído no Dvd Nonada da edição comemorativa de 50 anos de Grande sertão veredas o crítico reflete a respeito do surgimento de Sagarana e de Grande sertão Guimarães Rosa não é um regionalista propriamente dito porque através do homem do sertão havia uma presença dos problemas universais A gente sentia que o regionalismo dele não era de cunho pitoresco O pitoresco havia evidentemente mas já havia uma universalidade dos temas havia uma espécie de vibração espiritual uma vibração em relação aos grandes problemas que atormentam o homem que o fazia ter uma coisa diferente Não era propriamente um regionalista Depois quando saiu Grande sertão veredas eu estudei isso mais detalhadamente Quando saiu Grande sertão veredas eu falei se não me engano em romance metafísico Não se tratava mais de regionalismo E não se tratava mais de regionalismo porque o que eu entendo que se pode considerar como regionalista propriamente dito é o romance o conto em que o que sobressai é o choque de exotismo A mim me pareceu que em Guimarães Rosa isso era apenas um ingrediente e que o importante eram os grandes problemas do homem Além do mais a linguagem dele não era propriamente uma linguagem documentária que acontece no regionalismo A impressão que se tinha era de que ele estava criando uma linguagem Eu senti que ele estava inventando uma linguagem que ao mesmo tempo era plantada na região mas estava ligada ao passado da língua portuguesa ROSA 2006 Dvd Aqui Candido é mais claro ao explicar por que não considera Guimarães Rosa um autor regionalista A universalidade dos temas a transcendência do regional através da exploração dos grandes problemas do homem o exotismo tratado apenas como ingrediente e a criação de uma nova linguagem fizeram a obra de Rosa segundo o crítico ultrapassar todos os limites até então impostos pelo próprio regionalismo Tanto que Candido acabou criando essa categoria completamente diferente a do super regionalismo Uma coisa importante pra se assinalar a respeito de regionalismo que eu acho fundamental e faltou falar é o seguinte o grande milagre do Guimarães Rosa que é a ambigüidade suprema que neste caso está não apenas no livro mas nele também é o seguinte ele tomou uma tendência muito cansada da literatura brasileira que é o regionalismo por causa do pitoresco da linguagem do arcaísmo do tema caipira do tema regional do tema do jagunço do tema do caboclo Isso já era uma coisa muito sovada muito gasta praticamente consideravase que a literatura brasileira já tinha saído disso No momento em que a crítica pensava 120 mais ou menos isso surge um homem fechado hermeticamente dentro do universo do sertão com uma exuberância verbal extraordinária com aquilo que é considerado ruim da tradição brasileira que era a exuberância de linguagem com aquilo que era considerado ruim que era o regionalismo com aquilo que era considerado perigoso que era o pitoresco Ele parte de tudo isso e consegue fazer uma coisa inteiramente nova consegue fazer uma ficção como eu disse de tipo universal com todos os grandes problemas do homem Tanto assim que pensando neste caso eu pensei como é que se pode resolver esse paradoxo de um regionalismo que não é regionalismo de uma universalidade que é a mais particular possível Ele fez o livro que supera o regionalismo através do regionalismo Do ponto de vista da composição literária a meu ver isso é um paradoxo supremo Tanto assim que eu me senti obrigado a criar uma nova categoria que é transregionalismo ou surregionalismo ROSA 2006 Dvd A categoria do superregionalismo foi criada segundo o crítico pensandose no surrealismo E essa categoria engloba ainda outros autores latinoamericanos que surgiram na mesma época de Rosa como os já citados Gabriel Garcia Márquez Juan Rulfo Mario Vargas Llosa e outros porque também estão enraizados universalmente em suas regiões porque também criaram uma linguagem nova e ao mesmo tempo com tradição Nesse sentido em gêneros literários diferentes poderíamos pensar também em João Cabral de Melo Neto com Morte e Vida Severina e Ariano Suassuna com O Auto da Compadecida Para Candido portanto existiram três fases do Regionalismo na literatura brasileira Assim como essas fases podemos identificar senão fases como rechaça o crítico na correspondência com ele trocada alguns momentos em que suas análises mudaram de maneira substancial e facilmente identificável No início de sua carreira era um crítico jovem consciente dos problemas sociais do país mas ainda limitado quanto a sua exposição analítica embora tenha escrito textos muito interessantes como vimos A década de 50 marcada pela conclusão dos trabalhos dOs Parceiros e das Formação representa um marco na obra de Candido Se havia ingenuidade ao abordar Sagarana e classificála como uma obra de alcance universal apesar da superação de Rosa em Grande sertão aí não havia espaço para uma definição assim O crítico sentiu a necessidade de uma nova classificação diante do romance rosiano Mas essa caracterização só surgiu mais tarde já na década de 1970 momento em que a situação social brasileira atingiu contrastes impensáveis Com essas reflexões podemos observar que a literatura regionalista brasileira teve ela mesma uma formação própria A literatura urbana teve seu ápice com Machado 121 de Assis que como refletiu Candido em trecho reproduzido acima mostrava desde os anos de 1880 a fragilidade do descritivismo e da cor local que baniu dos seus livros extraordinariamente requintados A literatura urbana portanto teve de se apoiar na regionalista para atingir sua maturidade A literatura regionalista parece ter se valido exclusivamente dos autores que a exploraram para constituir sua tradição e chegar ao auge com Guimarães Rosa É possível notar essa continuidade começada ainda pelos poetas árcades como o crítico observou em Jagunços Mineiros passando por José de Alencar Bernardo Guimarães Franklin Távora Visconde de Taunay Valdomiro Silveira Hugo de Carvalho Ramos Afonso Arinos Coelho Neto Domingos Olímpio Manuel de Oliveira Paiva Simões Lopes Neto e depois de Rosa João Ubaldo Ribeiro As questões que se apresentam diante da situação dizem respeito ao momento contemporâneo Qual consciência de atraso temos hoje Que autores estariam exprimindo melhor essa consciência Essas perguntas são de difícil resposta e provavelmente o máximo que se poderia fazer são suposições Mas uma pergunta que também devese ter em mente é o regionalismo literário acabou Ainda existem autores regionalistas escrevendo e publicando regularmente Alguns dos maiores problemas da vida no campo parecem ter sido superados luz elétrica saneamento básico etc Hoje o mundo rural está cada vez mais próximo do mundo urbano Se existe alguma obra ou algum autor que está explorando a consciência contemporânea do atraso e é claro que existem mas não importa aqui pensar em seus nomes provavelmente é um autor de literatura urbana diferente do que aconteceu nos três estágios apontados por Candido que tinham em geral autores regionalistas expressando as consciências De qualquer forma a exuberância da linguagem regional certamente acabou influenciando escritores urbanos que tratam da violência nas grandes cidades como Paulo Lins em Cidade de Deus que procuram retratar o linguajar dos criminosos cariocas com suas gírias Mesmo assim é interessante notar que o Brasil ainda têm muitos problemas tradicionalmente regionais como o da reforma agrária Não só isso perambulando pelo nordeste e pelo centro do país não é difícil encontrar famílias de retirantes em busca de vida melhor Dito de outra forma os embustes do subdesenvolvimento persistem mas a literatura parece mais preocupada com os dramas sociais da cidade O tema do regionalismo vem sendo explorado pelo cinema nacional Deus é Brasileiro de Cacá Diegues Narradores de Javé de Eliane Caffé Cinema Aspirinas e Urubus de Marcelo Gomes e até em telenovelas O Rei do Gado de Benedito Ruy Barbosa mas a 122 literatura parece ter abandonado completamente o assunto A criação de um mundo extremamente regional e ao mesmo tempo universal o mundo de Grande sertão veredas parece mesmo ter marcado o fim desse mundo Antes de finalizar é importante reconsiderar outras posições de Candido com relação aos assuntos que discutiu ao longo da vida Ao exercer a crítica literária Candido não estava apenas preocupado em explicar o fenômeno literário mas também o Brasil a partir da literatura Em O direito à literatura de 1988 incluído em Vários Escritos o crítico defende a idéia de que não basta proporcionar o acesso à educação básica para a população carente além dos outros direitos humanos essenciais como casa comida e saúde Para Candido é fundamental apresentar a literatura a essa fatia da sociedade brasileira o acesso à cultura e à instrução refinada deve ser encarado como mais um dos direitos humanos O crítico previa em Literatura e Subdesenvolvimento que as massas acabariam procurando a distração diretamente na televisão e nas histórias em quadrinhos quando chegassem a um estágio razoável de instrução A hipótese não apenas se confirmou como se mostrou muito pior do que o crítico poderia imaginar Agora também temos bestsellers videogames internet e cinema de mau gosto chamando a atenção de jovens e adultos afastandoos de uma cultura exigente mas humanizadora Todo professor de literatura e de língua portuguesa precisa estar ciente dessa situação para conseguir combatêla Como sugeriu certa vez o professor Luís Augusto Fischer a obra de Antonio Candido para isso serve como uma espécie de oração a ser rezada diariamente pelos professores 123 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CANDIDO Antonio Brigada Ligeira 3ª ed Rio de Janeiro Ouro sobre Azul 2004 CANDIDO Antonio O Método Crítico de Silvio Romero São Paulo EDUSP 1988 CANDIDO Antonio Literatura e Sociedade estudos de Teoria e História Literária 8ª ed São Paulo T A Queiroz 2002 CANDIDO Antonio Textos de Intervenção Org Vinícius Dantas São Paulo Duas CidadesEd 34 2002 CANDIDO Antonio Tese e Antítese 4ª ed São Paulo T A Queiroz 2002 CANDIDO Antonio Formação da literatura brasileira momentos decisivos 2v 8ª ed Belo Horizonte Itatiaia 1997 CANDIDO Antonio Os Parceiros do Rio Bonito 9ªed São Paulo Duas CidadesEd 34 2001 CANDIDO Antonio Vários escritos 4ª ed Rio de Janeiro Ouro Sobre Azul São Paulo Duas Cidades 2004 CANDIDO Antonio A educação pela noite e outros ensaios 3ª ed São Paulo Ática 2000 CESAR Guilhermino História da Literatura do Rio Grande do Sul 2ªed Porto Alegre Globo 1971 DANTAS Vinícius Bibliografia de Antonio Candido São Paulo Duas CidadesEd 34 2002 FISCHER Luís Agusto Literatura Brasileira Modos de Usar São Paulo Col Para Saber Mais Abril 2003 FISCHER Luís Agusto Uma reflexão sobre a formação regional In Cultura regional língua história literatura Orgs Flávio Loureiro Chaves e Elisa Battisti Caxias do Sul EDUCS 2004 FISCHER Luís Augusto Literatura Gaúcha Porto Alegre Leitura XXI 2004 FISCHER Luís Augusto Antonio Candido Um olhar decisivo sobre o Brasil In Arquipélago Revista de Livros e Idéias nº 1 Porto Alegre mar 2005 JACKSON Luiz Carlos A Tradição Esquecida Os parceiros do Rio Bonito e a sociologia de Antonio Candido Belo Horizonte UFMG São Paulo FAPESP 2002 124 LOPES NETO João Simões Obra Completa Org Paulo Bentancur Porto Alegre Sulina 2003 LUKÁCS Georg Ensaios sôbre literatura 2ª ed Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1968 MORENO César Fernández coord América Latina em sua Literatura São Paulo Perspectiva 1979 PEREIRA Lucia Miguel Prosa de Ficção de 1870 a 1920 Belo Horizonte Itatiaia São Paulo Editora da Universidade de São Paulo 1988 ROSA João Guimarães Grande Sertão Veredas 19ª ed Rio de Janeiro Nova Fronteira 2001 SCHWARZ Roberto Seqüências Brasileiras São Paulo Companhia das Letras 1999 125 ANEXOS Carta a Antonio Candido Porto Alegre 4 de novembro de 2005 Caro professor Antonio Candido Meu nome é Marcelo Frizon tenho 25 anos e sou orientando de mestrado do professor Luís Augusto Fischer na UFRGS Meu trabalho de dissertação é sobre como o senhor discutiu o regionalismo ao longo de sua obra Além disso sou professor de Literatura do Ensino Médio em duas escolas aqui em Porto Alegre Resolvi escrever esta carta porque certo dia lendo a orelha dos Contos de Belazarte escrita por João Etienne Filho fui instigado a fazêlo Ele dizia que não sabia se ainda hoje os moços escrevem aos escritores que admiram pedindo opinião conselhos mandando originais etc etc Então como nunca tive oportunidade de conhecêlo resolvi escrever para compartilhar algumas idéias e tirar algumas dúvidas Se o senhor não tiver tempo de pensar no assunto não se incomode pois eu entenderei Bem venho estudando esse assunto desde o final de minha graduação Devo registrar que o assunto me foi proposto naquela época pelo professor Fischer e desde então tenho dedicado meu tempo de estudos ao tema que me fascina da mesma maneira que há três anos Meu fascínio é tão grande quanto algumas dúvidas que surgiram ao longo da leitura de seus textos Vou ser mais objetivo A impressão que tenho numa visada de conjunto é que a sua visão a respeito do regionalismo na literatura brasileira mudou radicalmente em dois momentos distintos constituindo três fases portanto A primeira após a realização e conclusão da pesquisa que resultou nOs Parceiros do rio Bonito A segunda após o início da ditadura militar especialmente após o AI5 No início de sua carreira de crítico nos anos 40 o assunto aparecia de maneira tímida com uma visão bastante influenciada pelos argumentos de Lucia MiguelPereira penso por exemplo no texto Poesia documento e história incluído em Brigada Ligeira Após Os Parceiros o senhor parece ter alargado a sua visão a respeito do tema provavelmente por ter tido contato com o meio que era tema da literatura de autores como Guimarães Rosa e Graciliano Ramos que estavam publicando sua obra com uma contundência maior do que a dos regionalistas da virada do século XIX para o XX penso nas resenhas de Sagarana e Grande sertão veredas incluídas em Textos de Intervenção Depois durante a ditadura o senhor parece ter resolvido escancarar um problema social que era ignorado pelo governo e pela sociedade e é provável que a sociedade não o percebesse visse porque o governo não deixava enquanto boa parte do Brasil tinha se urbanizado e industrializado algumas 126 regiões do país continuavam vivendo na Idade Média por exemplo Literatura e Subdesenvolvimento O senhor poderia comentar esse quadro Por falar nas resenhas de Sagarana e Grande sertão veredas é curiosíssimo notar que quando da edição de Sagarana o senhor disse que o livro era uma grande obra por transcender o critério regional por meio de uma condensação do material observado Dez anos depois com Grande sertão o senhor dizia que o livro era um jato de força e beleza por apresentar algo que não aparecera em nenhum outro escritor regionalista e mesmo nos livros anteriores de Guimarães Rosa a transcendência do regional Em Literatura e Subdesenvolvimento na quinta e última parte do texto o senhor faz a seguinte afirmação Vem a propósito dizer que o caso do Brasil é talvez peculiar pois aqui o regionalismo inicial que principia com o Romantismo antes dos outros países nunca produziu obras de primeiro plano mesmo pelos contemporâneos tendo sido tendência secundária quando não francamente subliterária em prosa e verso Os melhores produtos da ficção brasileira foram sempre urbanos as mais das vezes desprovidos de qualquer pitoresco o grifo em urbanos é seu Neste trecho os contemporâneos a que o senhor se refere são os do Romantismo Ou os contemporâneos à época em que o seu texto foi escrito Essa passagem me confunde há bastante tempo e já conversei com diversos professores mas não obtive uma resposta unânime No final do primeiro parágrafo da primeira parte do ensaio De Cortiço a Cortiço após a introdução o senhor diz que o nosso regionalismo nasceu em parte como fruto da dificuldade de desdobrar a sociedade urbana em temário variado para o romancista Poderia desenvolver melhor estar idéia Pareceme que o senhor quer dizer que a temática urbana não seria suficiente para os escritores mas como isso pode ser importante para o surgimento do regionalismo Sei que o senhor não disse que é importante mas se não fosse de alguma forma o senhor não teria escrito esse comentário Não concorda Fora isso o senhor poderia me dizer onde está publicado o texto Literatura e consciência nacional A referência que tenho é do Suplemento Literário de MG mas esse texto não aparece citado na sua Bibliografia organizada por Vinicius Dantas Esse texto foi publicado em algum livro Infelizmente não tive acesso a ele ainda Outra dúvida que gostaria de lhe colocar é quando será publicada a nova edição da Formação da Literatura Brasileira E também se O Método Crítico de Silvio Romero está na lista das suas próximas reedições pois este é o último livro seu que me falta Enfim não preciso dizer que além de gostar muito de sua obra e de utilizála bastante em minhas aulas admiro sua trajetória e suas posições Um grande abraço Marcelo Frizon 127 Resposta de Antonio Candido São Paulo 10 de abril de 2006 Caro Professor Marcelo Frizon Desculpe o grande atraso com que respondo a sua carta de 4 de novembro do ano passado Ela chegou num momento particularmente difícil que terminou em dezembro com a morte de minha mulher Só agora começo a pôr um pouco de ordem nas obrigações A sua carta suscita problemas que demandariam muita reflexão para a qual não me sinto capacitado no momento Não sei se tem razão quanto a fases em minha maneira de encarar o regionalismo Ao longo de uma vida tão espichada quanto a minha deve haver mais contradições do que fases Quanto àquele trecho confuso de Literatura e Subdesenvolvimento creio que estava pensando no conjunto das ficções latinoamericanas levando em conta que excluía Guimarães Rosa do regionalismo propriamente dito Quanto ao trecho publicado no Suplemento de Minas é o que está em meu livro A Educação pela Noite com o título Literatura de dois gumes A editora Ouro sobre Azul lançará brevemente novas edições de minha tese sobre Silvio Romero e da Formação da Literatura Brasileira Uma palavra final sobre regionalismo brasileiro considero que a minha posição está formulada de maneira que me satisfaz na entrevista com seu orientador Luís Augusto Fischer Agradecendo as suas palavras de apreço aqui fica muito cordialmente o Antonio Candido