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115 BAKHTINIANA São Paulo v 1 n 1 p 115126 1o sem 2009 A construção da identidade nacional brasileira The construction of the brazilian national identity José Luiz Fiorin RESUMO A identidade nacional é construída dialogicamente a partir de uma autodescrição da cultura Dois grandes princípios regem as culturas o da exclusão e o da participação Com base neles elas autodescrevemse como culturas da mistura ou da triagem A cultura brasileira considera se uma cultura da mistura Este trabalho tem o objetivo de mostrar como essa autodescrição foi criada e como opera constituindo a iden tidade nacional PALAVRASCHAVE Identidade nacional cultura da mistura princípio da ex clusão dialogismo naturalização da cultura ABSTRACT National identities are dialogically constructed from an autodescription of culture Cultures are ruled by two major principles that of exclusion and that of participation Based on these principles the cultures autodescribe themselves as cultures of mixture or cultures of triage Brazilian culture identifi es itself as a culture of mixture This paper aims to show how this autodescription was created and how it operates in the construction of the national identity KEYWORDS National identity Culture of mixture Principle of exclusion Dialogism Naturalization of culture Professor da Universidade de São Paulo USP jolufi uolcombr 116 BAKHTINIANA São Paulo v 1 n 1 p115126 1o sem 2009 Brasil meu Brasil brasileiro Meu mulato inzoneiro Vou cantarte nos meus versos Ary Barroso Aquarela do Brasil A identidade nacional é uma criação moderna Começa a ser construída no século XVIII e desenvolvese plenamente no século XIX Antes dessa época não se pode falar em nações propriamente ditas nem na Europa nem em outras partes do mundo Contase como aprendemos em nossos livros de História do Brasil que D João VI ao deixar o Brasil despediuse de seu fi lho dizendo Pedro se o Brasil vier a separarse de Portugal põe a Coroa sobre tua cabeça que hás de me respeitar antes que algum aventureiro lance mão dela Obser vese que D João como aliás qualquer outro rei europeu não tinha nenhum sentimento nacional tinha um sentimento dinástico Renan mostra que uma nação é feita de um rico legado de lem branças que é aceito por todos 1947 p 903 Ela é uma herança simbólica e material THIESSE 1999 p 12 Assim pertencer a uma nação é ser um dos herdeiros desse patrimônio comum reconhecê lo reverenciálo THIESSE 1999 p 12 A nacionalidade é por tanto uma identidade O processo de formação identitária consistiu então na determinação do patrimônio de cada nação e na difusão de seu culto THIESSE 1999 p 12 O primeiro trabalho era estabelecer um patrimônio comum às diversas regiões de um país quais seriam por exemplo os ancestrais comuns de fl uminenses pernambucanos baianos paulistas e gaúchos Para criar de fato um mundo de nações não bastava fazer o inventário de sua herança nem sempre ela existia era preciso pois antes de tudo inventála THIESSE 1999 p 13 Era necessário buscar algo que pudesse ser um vivo testemunho de um passado prestigioso e a representação eminente da coesão nacional THIESSE 1999 p 13 Essa é uma tarefa ampla longa e coletiva A nação nasce pois de um postulado e de uma invenção THIES SE 1999 p 14 Ela condensase numa alma nacional que deve ser elaborada Uma nação deve apresentar um conjunto de elementos simbólicos e materiais uma história que estabelece uma continuida de com os ancestrais mais antigos uma série de herois modelos das virtudes nacionais uma língua monumentos culturais um folclore lugares importantes e uma paisagem típica representações ofi ciais 117 BAKHTINIANA São Paulo v 1 n 1 p 115126 1o sem 2009 como hino bandeira escudo identifi cações pitorescas como costu mes especialidades culinárias animais e árvoressímbolo THIESSE 1999 p 14 A identidade nacional é um discurso e por isso ela como qual quer outro discurso é constituída dialogicamente BAKHTIN 1970 p 3436 1988 8688 e 96 100 1992 p 319 e 353358 O Brasil representou uma das primeiras experiências bemsuce didas de criar uma nação fora da Europa A nação é vista como uma comunidade de destino acima das classes acima das regiões acima das raças Para isso é preciso adquirir uma consciência de unidade a identidade e ao mesmo tempo é necessário ter consciência da diferença em relação aos outros a alteridade O grande outro sem trocadilhos lacanianos mas visto bakhtinianamente da criação da nacionalidade brasileira é Portugal No entanto a constituição da nação brasileira apresenta um problema já que a independência é proclamada por um príncipe português herdeiro do trono de Portu gal Não houve portanto uma ruptura completa com a antiga me trópole O trabalho de construção da nacionalidade começa então com a nacionalização do monarca Pedro I é mostrado como alguém que renuncia a Portugal e assume a nacionalidade brasileira Nossos livros de História repetem incessantemente o episódio do Dia do Fico em que o Príncipe afronta as Cortes Portuguesa para fazer o bem de todos e a felicidade geral da Nação Na célebre representação da independência produzida por Pedro Américo D Pedro do alto de um cavalo no ponto mais elevado da colina do Ipiranga está com a espada desembainhada apontada para o céu gritando Indepen dência ou Morte A descrição desse fato nos manuais de História diz que D Pedro antes do grito inaugural de nossa nacionalidade arrancou fora os laços portugueses Confrontese essa representação do episódio da Independência cujos contornos épicos são marcados pela majestosa iconografi a do Parque do Ipiranga em São Paulo com aquela apresentada pelo diário do Padre Belchior confessor de D Pedro Na construção da identidade brasileira teria que ser leva da em conta a herança portuguesa e ao mesmo tempo apresentar o brasileiro como alguém diferente do lusitano É isso que explica o modelo adotado para descrever a cultura brasileira Com base em proposta de Zilberberg e Fontanille feita para mos trar como os valores tomam forma e circulam no discurso podese dizer que há culturas que se veem como unidade e outras como mis 118 BAKHTINIANA São Paulo v 1 n 1 p115126 1o sem 2009 tura o que signifi ca que há dois mecanismos a regêlas o princípio de exclusão e o princípio da participação 2001 p 27 Esses princípios criam dois grandes regimes de funcionamento cultural O primeiro é o da exclusão cujo operador é a triagem Nele quando o processo de relação entre valores atinge seu termo leva à confrontação do exclusi vo e do excluído As culturas reguladas por esse regime confrontam o puro e o impuro O segundo regime é o da participação cujo operador é a mistura o que leva ao cotejo entre o igual e o desigual A igual dade pressupõe grandezas intercambiáveis a desigualdade implica grandezas que se opõem como superior e inferior 2001 p 29 Assim há dois tipos fundamentais de cultura as da exclusão e as da participação ou em outras palavras as da triagem e as da mistura A cultura da triagem tem um aspecto descontínuo e tende a res tringir a circulação cultural que será pequena ou mesmo nula e de qualquer maneira desacelerada pela presença do exclusivo e do excluído É uma cultura do interdito Já a cultura da mistura apresenta um aspecto contínuo favorecendo o comércio cultural Nela o andamento é rápido É a cultura do permitido FONTANILLE e ZILBERBERG 2001 p 2030 A triagem e a mistura variam em termos de tonicidade átona e tônica Há triagens mais ou menos drásticas e misturas mais ou me nos homogêneas o que daria o seguinte esquema Triagem Mistura Tônica unidadenulidade universalidade Átona totalidade diversidade FONTANILLE e ZILBERBERG 2001 p 33 Cada uma dessas culturas opera com um tipo de valor diferente as da triagem criam valores de absoluto que são os da intensidade as da mistura valores de universo que são os da extensidade As primeiras são mais fechadas tendendo a concentrar os valores de sejáveis e a excluir os indesejáveis as segundas são mais abertas procurando a expansão e a participação FONTANILLE e ZILBERBERG 2001 p 5354 No trabalho de constituição da nacionalidade a literatura teve um papel fundamental Os autores românticos com especial desta que para Alencar estiveram na linha de frente da construção da iden 119 BAKHTINIANA São Paulo v 1 n 1 p 115126 1o sem 2009 tidade nacional Entre todos os livros de Alencar o mais importante para determinar esse patrimônio identitário é sem dúvida O guara ni Nele determinase a paisagem típica do Brasil o espaço da eterna primavera onde não ocorrem cataclismos naturais como furacões tornados terremotos etc a singularidade de sua língua mas prin cipalmente o casal ancestral dos brasileiros Além disso começase a elaborar um modelo explicativo da singularidade da cultura brasilei ra pois é essa especifi cidade que constituiria o Brasil como uma na ção Observese que se trata de uma autodescrição da cultura que é evidentemente parcial No entanto ela é vista como uma explicação totalizante e real da cultura Como dizia Marx quando uma ideia se apodera da consciência das massas ela se torna uma força material 2001 p 53 Por isso os modelos explicativos das autodescrições culturais exercem um papel muito importante nas diferentes forma ções sociais Começase no Romantismo a construir a noção de que cultura brasileira se assenta na mistura O romance O guarani de José de Alencar concebe um mito de origem da nação brasílica Peri e Cecília constituem seu casal inicial formado por um índio que aceitara os valores cristãos 1995 p 268279 e por uma portuguesa que acolhe ra os valores da natureza do Novo Mundo 1995 p 279280 Essa nação teria portanto um caráter cultural lusotupi O mito de ori gem de nosso país opera com a união da natureza com a cultura ou seja dos valores americanos com os europeus O Brasil seria assim a síntese do velho e do novo mundo construída depois da destruição do edifício colonial e dos elementos perversos da natureza Os ele mentos lusitanos permanecem mas modifi cados pelos valores da na tureza americana A nação brasileira aparece depois de um dilúvio em cuja descrição se juntam os mitos das duas civilizações constitu tivas de nosso povo o de Noé e o de Tamandaré 1995 p 291296 O guarani mostra além da fundação da nacionalidade outra fundação a da língua falada no Brasil A identidade desse idioma é correlata à do homem brasileiro 1995 p 116117 cuja origem o romance descreveu Não se trata do português tal como é falado em Portugal mas de um português modifi cado pela natureza brasileira A língua falada no novo país é um refl exo na sintaxe e no léxico das suavidades e asperezas da natureza da América É uma fusão tam bém da cultura com a natureza Alencar não preconiza que se fale tupi mas esse português modifi cado no Brasil Com essa concepção 120 BAKHTINIANA São Paulo v 1 n 1 p115126 1o sem 2009 do povo e da língua do Brasil ele não poderia nunca admitir que a literatura brasileira reproduzisse os cânones linguísticos portugue ses Deveria ela incorporar a variedade linguística que se falava no país então independente A independência linguística dos padrões portugueses era tão importante quanto a independência política Na primeira metade do século XX há outro movimento de cons trução identitária que se assenta também sobre a mistura pois con sidera a mestiçagem como o jeito de ser brasileiro O que distingue o Brasil é a assimilação com a consequente modifi cação do que é signifi cativo e importante das outras culturas Não é sem razão que Oswald de Andrade erigiu a antropofagia como o princípio consti tutivo da cultura brasileira 1990 Em CasaGrande Senzala de Gilberto Freyre 1954 considerase eufórica a mistura a colonização portuguesa é vista como tolerante aberta suave o que levou à mes tiçagem racial que não ocorreu nos países colonizados pelos ingleses ou pelos franceses por exemplo O Brasil celebra a mistura da con tribuição de brancos negros e índios na formação da nacionalidade exaltando o enriquecimento cultural e a ausência de fronteiras de nossa cultura De nosso ponto de vista o misturado é completo o puro é incompleto é pobre Insistese no fato de que se está falando de autodescrição da cultura brasileira Há então todo um culto à mu lata representante por excelência da raça brasileira do sincretismo religioso sinal de tolerância do convívio harmônico de culturas que se digladiam em outras partes do mundo como a árabe e a judaica A beleza e a sensualidade da mulata a mistura poderia ser exemplifi cada com Rita Baiana 1957 p 87 que se opõe à sensa boria da branca a pura que poderia ser ilustrada com Piedade de Jesus 1957 61 ambas de O cortiço de Aluísio Azevedo Em Dona Flor e seus dois maridos de Jorge Amado 1967 a personagem central poderia ser vista como a síntese da cultura bra sileira a mistura do princípio do sonho e da realidade do prazer e do dever da irresponsabilidade folgazona e do trabalho duro fi gurativi zados por Vadinho e por Teodoro O protótipo da habilidade política no Brasil é o político mineiro que concilia todos os contrários Um importante exemplar desse tipo de político era Tancredo Neves São marcantes nesse sentido algumas anedotas a respeito dele Quando estava buscando fundar o Partido Popular que ele dizia que seria centrista perguntaramlhe o que era um partido de centro Respondeu que nele estariam a direita da es 121 BAKHTINIANA São Paulo v 1 n 1 p 115126 1o sem 2009 querda e a esquerda da direita Uma vez em Salvador na campanha para a Presidência a polícia soltou cães sobre os participantes de um comício Num hotel irritado Tancredo afi rmou que iria reagir dura mente mostrando ao General Figueiredo que política era uma coisa para macho A Deputada Ruth Escobar que estava presente protes tou imediatamente lembrando o papel das mulheres na redemocrati zação do país Tancredo disse Não não estou desdenhando do papel das mulheres macho é uma palavra unissex Mesmo os livros que buscaram estudar o caráter nacional na primeira metade do século XX e que tinham certo viés pessimista continuam a adotar esse modelo explicativo como faz por exemplo Paulo Prado em Retrato do Brasil 1999 Essa concepção da mistura como o jeito de ser brasileiro apode rase das consciências das massas por meio do futebol MELO 2006 p 281285 e da música popular VIANA 1995 José Lins do Rego 2002 e Mário Filho 2003 inicialmente e depois Nélson Rodrigues 1993 1994 mostram que a mestiçagem é que dá a genialidade do futebol brasileiro Esse esporte é um refl exo do jeito de ser brasileiro que une efi ciência e malandragem objetividade e transgressão Apolo e Dionísio As ideias da ginga e do jogo de cintura aí estão presen tes Nélson Rodrigues dizia que a seleção nacional era a pátria em chuteiras Essas ideias são difundidas pelos meios de comunicação de massa e pela música popular A concepção de que a mistura rege nossa cultura e portanto de que o brasileiro é simpático acolhedor tolerante naturalizase pou co a pouco No entanto as coisas no interior da cultura se passam de modo diferente Primeiramente é preciso notar que a mistura não é indiscri minada Há sistemas que não são aceitos na mistura Por exemplo no período de construção da nacionalidade não há a ideia da mis cigenação das três raças que hoje se diz terem constituído a nação brasileira mas somente a dos índios e brancos Os negros estavam excluídos Essa mistura não era desejável pois afi nal tratavamse de escravos Mais tarde surge a ideologia do branqueamento que presidiu ao estímulo às grande imigrações europeias de italianos de alemães de espanhóis de poloneses etc Observase em O mulato de Aluísio Azevedo que é preciso acabar com o preconceito contra o mulato porque a mistura do negro com o branco é um melhora mento e não uma piora como pensava a tacanha e preconceituosa 122 BAKHTINIANA São Paulo v 1 n 1 p115126 1o sem 2009 sociedade de São Luís O melhoramento era o afastamento do negro considerado rude sem cultura incivilizado e a aproximação com o branco modelo da sociedade brasileira a piora era a aproximação com o negro O romance considera a escravidão um mal porque era a fonte dos defeitos dos indivíduos e da sociedade brasileira Ao contrário da elite branca da capital maranhense que considera o mulato um quase negro o narrador o vê como um quase branco em quem pre domina a superioridade da raça branca AZEVEDO 1973 p 222 O discurso antirracista de O mulato não está fundado na ideia de igualdade das raças mas na tese de que o preconceito não permite ao mulato integrarse à sociedade europeizarse deixar vir à tona sua porção branca Como nota JeanYves Mérien o romancista aceita o princípio de desigualdade das raças mas vê na mestiçagem e o caráter exemplar de seu personagem é a prova disto um dos remédios contra a tara que representava a raça negra no Brasil O mulato símbolo do embranquecimento progressivo é o homem que coloca o princípio necessário à evolução da sociedade brasileira em direção a uma etapa mais avançada de civi lização 1988 p 316 Aluísio verbera o preconceito racial porque ele impede a reali zação do clareamento racial que deveria ser acompanhado de um embranquecimento cultural MÉRIEN 1988 p 317 O princípio do branqueamento é que rege o incentivo à grande imigração europeia ocorrida entre 1887 e 1930 O discurso racista da sociedade de São Luís representada no romance estabelece valores do universo há de um lado o puro que é o exclusivo e de outro o negro ou o misturado que é o excluído Essas grandezas opõemse como superior e inferior O discurso an tirracista exalta a mistura No entanto a mistura é vista como um processo de melhoramento que aproxima o negro do branco Não se celebra a mistura em si mesma mas como uma maneira de aproxi marse da pureza do branco Esse discurso da mescla não deixa de apresentar uma fronteira onde se dá a triagem dela está excluído o negro Ademais as coisas no interior da cultura não são regidas sempre por um único princípio Como diz Lotman na diacronia opera um 123 BAKHTINIANA São Paulo v 1 n 1 p 115126 1o sem 2009 princípio de assimetria 1996 p 59 um movimento pendular que leva no nosso caso do princípio de mistura ao da triagem e assim sucessivamente Fora dos períodos de construção identitária e mesmo na primeira metade do século XX segundo momento de constituição da identida de nacional a literatura brasileira nunca deixou de mostrar que em nossa formação social vige o princípio da exclusão Citemos alguns exemplos Antônio de Alcântara Machado em Brás Bexiga e Barra Funda deixa entrever o preconceito contra o imigrante italiano e sua difícil aceitação social pelas famílias tradicionais No conto A socie dade 1997 p 4145 por exemplo a esposa do conselheiro José Bonifácio de Matos e Arruda não tolera sequer imaginar que a fi lha Teresa Rita venha a casarse com um fi lho de carcamano que é o que acaba por acontecer Já na introdução denominada Artigo de fundo Alcântara Machado revela as difi culdades de integração dos imigrantes na sociedade brasileira No começo a arrogância indígena perguntou meio zangada Carcamano pé de chumbo Calcanhar de frigideira Quem te deu a confi ança De casar com brasileira 1997 p 20 No conto Polaco de Júlia Lopes de Almeida publicado na obra Histórias de nossa terra 1926 p 9697 e em Numa e a ninfa de Lima Barreto 2001 p 482 mostrase o princípio da exclusão a operar já na denominação do imigrante polonês que era chamado de polaco Em Clara dos Anjos Lima Barreto ao narrar a história de uma moça pobre do subúrbio mulata que foi iludida seduzida e desprezada por um rapaz pertencente à burguesia denuncia o preconceito racial e social 2001 p 635748 Em Recordações do escrivão Isaías Caminha Isaías sente a dor do preconceito de cor e de classe 2001 p 113257 O princípio de exclusão social e racial é também tematizado em Vida e morte de M J Gonzaga de Sá 2001 p 553634 O princípio de exclusão que pesava sobre a mulher já aparece na fala que é comentada pelo narrador de Pereira pai da personagem principal do romance Inocência de Taunay Esta obrigação de casar as mulheres é o diabo Se não tomam estado fi cam jururus e fanadinhas se casam 124 BAKHTINIANA São Paulo v 1 n 1 p115126 1o sem 2009 podem cair nas mãos de algum marido malvado E de pois as histórias Ih meu Deus mulheres numa casa é coisa de meter medo São redomas de vidro que tudo pode quebrar Enfi m minha fi lha enquanto solteira honrou o nome de meus pais O Manecão que se aguente quando a tiver por sua Com gente de saia não há que fi ar Cruz Botam famílias inteiras a perder enquanto o demo esfrega um olho Esta opinião injuriosa sobre as mulheres é em geral corrente nos nossos sertões e traz como consequência imediata e prática além da rigorosa clausura em que são mantidas não só o casamento convencionado entre parentes muito chegados para fi lhos de menor idade mas sobretudo os numerosos crimes cometidos mal se suspeita da possibilidade de qualquer intriga amorosa entre pessoa da família e algum estranho 1984 p 30 Outros autores não denunciam o preconceito mas revelamno em suas obras Sirva de exemplo o Bomcrioulo de Adolfo Caminha um dos primeiros romances brasileiros a tratar do homossexualis mo masculino em que o narrador evidencia a exclusão dos homos sexuais ao medicalizar o homoerotismo e condenar as personagens homossexuais Uma sensação de ventura infi nita espalhavaselhe em todo o corpo Começava a sentir no próprio sangue impulsos nunca experimentados uma vontade ingênita de ceder aos caprichos do negro de abandonarselhe para o que ele quisesse uma vaga distensão dos nervos um prurido de passividade Ande logo murmurou apressadamente voltandose E consumouse o delito contra a natureza 1999 p 38 A cultura brasileira euforizou de tal modo a mistura que passou a considerar inexistentes as camadas reais da semiose onde opera o princípio da exclusão por exemplo nas relações raciais de gênero de orientação sexual etc A identidade autodescrita do brasileiro é sempre a que é criada pelo princípio da participação da mistura Daí se descreve o brasileiro como alguém aberto acolhedor cordial agra dável sempre pronto a dar um jeitinho Ocultamse o preconceito a violência que perpassa as relações cotidianas etc Enfi m esconde se o que opera sob o princípio da triagem 125 BAKHTINIANA São Paulo v 1 n 1 p 115126 1o sem 2009 REFERÊNCIAS ALENCAR José de O guarani 19 ed São Paulo Ática 1995 ALMEIDA Júlia Lopes de Histórias da nossa terra Rio de Janeiro Livraria Francisco Alves 1926 AMADO Jorge Dona Flor e seus dois maridos São Paulo Livraria Martins Editora 1967 ANDRADE Oswald de A utopia antropofágica manifestos e teses São Paulo GloboSecretaria do Estado da Cultura 1990 AZEVEDO Aluísio O cortiço 13 ed São Paulo Livraria Martins Editora 1957 O mulato São Paulo Livraria Martins Editora 1973 BAKHTIN Mikhail Loeuvre de François Rabelais et la culture populaire au Moyen Âge et sous la Renaissance Paris Gallimard 1970 Questões de literatura e de estética A teoria do romance São Paulo Hucitec 1988 Estética da criação verbal São Paulo Martins Fontes 1992 BARRETO Lima Prosa seleta Rio de Janeiro Nova Aguilar 2001 CAMINHA Adolfo Bomcrioulo 7 ed São Paulo Ática 1999 FILHO Mário O negro no futebol brasileiro Rio de Janeiro Mauad 2003 FONTANILLE Jacques ZILBERBERG Claude Tensão e signifi cação São Paulo Discurso EditorialHumanitas 2001 FREYRE Gilberto CasaGrande e Senzala Rio de Janeiro José Olympio 1954 LOTMAN Iuri M La semiosfera I Semiótica de la cultura y del texto Edición de Desiderio Navarro Madrid Ediciones Cátedra 1996 MACHADO Antônio de Alcântara Brás Bexiga e Barra Funda São Paulo Klick Editora 1997 MARX Karl Introdução à Crítica da Filosofi a do Direito de Hegel In Manuscritos econômicofilosóficos Trad Alex Marins São Paulo Martin Claret 2001 p 4559 MELO Victor Andrade de Garrinha x Pelé Futebol cinema literatura e a construção da identidade nacional Revista Brasileira de Educação Física e Esporte São Paulo v 20 n 4 p 281285 outdez 2006 MÉRIEN JeanYves Aluísio Azevedo vida e obra Rio de JaneiroBrasí lia Espaço e Tempo Instituto Nacional do Livro 1988 PRADO Paulo Retrato do Brasil São Paulo Companhia das Letras 1999 126 BAKHTINIANA São Paulo v 1 n 1 p115126 1o sem 2009 REGO José Lins do Flamengo é puro amor 111 crônicas escolhidas Rio de Janeiro Jorge Zahar 2002 RENAN Ernest Oeuvres complètes Paris CalmannLévy Éditeurs 1947 t I RODRIGUES Nélson À sombra das chuteiras imortais crônicas de fute bol São Paulo Companhia das Letras 1993 A pátria em chuteiras novas crônicas de futebol São Paulo Companhia das Letras 1994 TAUNAY Alfredo dEscragnolle Inocência 6 ed São Paulo Ática 1984 THIESSE AnneMarie La création des identités nationales Europe XVIIIe XXesiècle Paris Editions du Seuil 1999 VIANA Hermano O mistério do samba Rio de Janeiro Jorge Zahar 1995 Recebido em 18022009 Aprovado em 03082009
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Brazilian culture identifi es itself as a culture of mixture This paper aims to show how this autodescription was created and how it operates in the construction of the national identity KEYWORDS National identity Culture of mixture Principle of exclusion Dialogism Naturalization of culture Professor da Universidade de São Paulo USP jolufi uolcombr 116 BAKHTINIANA São Paulo v 1 n 1 p115126 1o sem 2009 Brasil meu Brasil brasileiro Meu mulato inzoneiro Vou cantarte nos meus versos Ary Barroso Aquarela do Brasil A identidade nacional é uma criação moderna Começa a ser construída no século XVIII e desenvolvese plenamente no século XIX Antes dessa época não se pode falar em nações propriamente ditas nem na Europa nem em outras partes do mundo Contase como aprendemos em nossos livros de História do Brasil que D João VI ao deixar o Brasil despediuse de seu fi lho dizendo Pedro se o Brasil vier a separarse de Portugal põe a Coroa sobre tua cabeça que hás de me respeitar antes que algum aventureiro lance mão dela Obser vese que D João como aliás qualquer outro rei europeu não tinha nenhum sentimento nacional tinha um sentimento dinástico Renan mostra que uma nação é feita de um rico legado de lem branças que é aceito por todos 1947 p 903 Ela é uma herança simbólica e material THIESSE 1999 p 12 Assim pertencer a uma nação é ser um dos herdeiros desse patrimônio comum reconhecê lo reverenciálo THIESSE 1999 p 12 A nacionalidade é por tanto uma identidade O processo de formação identitária consistiu então na determinação do patrimônio de cada nação e na difusão de seu culto THIESSE 1999 p 12 O primeiro trabalho era estabelecer um patrimônio comum às diversas regiões de um país quais seriam por exemplo os ancestrais comuns de fl uminenses pernambucanos baianos paulistas e gaúchos Para criar de fato um mundo de nações não bastava fazer o inventário de sua herança nem sempre ela existia era preciso pois antes de tudo inventála THIESSE 1999 p 13 Era necessário buscar algo que pudesse ser um vivo testemunho de um passado prestigioso e a representação eminente da coesão nacional THIESSE 1999 p 13 Essa é uma tarefa ampla longa e coletiva A nação nasce pois de um postulado e de uma invenção THIES SE 1999 p 14 Ela condensase numa alma nacional que deve ser elaborada Uma nação deve apresentar um conjunto de elementos simbólicos e materiais uma história que estabelece uma continuida de com os ancestrais mais antigos uma série de herois modelos das virtudes nacionais uma língua monumentos culturais um folclore lugares importantes e uma paisagem típica representações ofi ciais 117 BAKHTINIANA São Paulo v 1 n 1 p 115126 1o sem 2009 como hino bandeira escudo identifi cações pitorescas como costu mes especialidades culinárias animais e árvoressímbolo THIESSE 1999 p 14 A identidade nacional é um discurso e por isso ela como qual quer outro discurso é constituída dialogicamente BAKHTIN 1970 p 3436 1988 8688 e 96 100 1992 p 319 e 353358 O Brasil representou uma das primeiras experiências bemsuce didas de criar uma nação fora da Europa A nação é vista como uma comunidade de destino acima das classes acima das regiões acima das raças Para isso é preciso adquirir uma consciência de unidade a identidade e ao mesmo tempo é necessário ter consciência da diferença em relação aos outros a alteridade O grande outro sem trocadilhos lacanianos mas visto bakhtinianamente da criação da nacionalidade brasileira é Portugal No entanto a constituição da nação brasileira apresenta um problema já que a independência é proclamada por um príncipe português herdeiro do trono de Portu gal Não houve portanto uma ruptura completa com a antiga me trópole O trabalho de construção da nacionalidade começa então com a nacionalização do monarca Pedro I é mostrado como alguém que renuncia a Portugal e assume a nacionalidade brasileira Nossos livros de História repetem incessantemente o episódio do Dia do Fico em que o Príncipe afronta as Cortes Portuguesa para fazer o bem de todos e a felicidade geral da Nação Na célebre representação da independência produzida por Pedro Américo D Pedro do alto de um cavalo no ponto mais elevado da colina do Ipiranga está com a espada desembainhada apontada para o céu gritando Indepen dência ou Morte A descrição desse fato nos manuais de História diz que D Pedro antes do grito inaugural de nossa nacionalidade arrancou fora os laços portugueses Confrontese essa representação do episódio da Independência cujos contornos épicos são marcados pela majestosa iconografi a do Parque do Ipiranga em São Paulo com aquela apresentada pelo diário do Padre Belchior confessor de D Pedro Na construção da identidade brasileira teria que ser leva da em conta a herança portuguesa e ao mesmo tempo apresentar o brasileiro como alguém diferente do lusitano É isso que explica o modelo adotado para descrever a cultura brasileira Com base em proposta de Zilberberg e Fontanille feita para mos trar como os valores tomam forma e circulam no discurso podese dizer que há culturas que se veem como unidade e outras como mis 118 BAKHTINIANA São Paulo v 1 n 1 p115126 1o sem 2009 tura o que signifi ca que há dois mecanismos a regêlas o princípio de exclusão e o princípio da participação 2001 p 27 Esses princípios criam dois grandes regimes de funcionamento cultural O primeiro é o da exclusão cujo operador é a triagem Nele quando o processo de relação entre valores atinge seu termo leva à confrontação do exclusi vo e do excluído As culturas reguladas por esse regime confrontam o puro e o impuro O segundo regime é o da participação cujo operador é a mistura o que leva ao cotejo entre o igual e o desigual A igual dade pressupõe grandezas intercambiáveis a desigualdade implica grandezas que se opõem como superior e inferior 2001 p 29 Assim há dois tipos fundamentais de cultura as da exclusão e as da participação ou em outras palavras as da triagem e as da mistura A cultura da triagem tem um aspecto descontínuo e tende a res tringir a circulação cultural que será pequena ou mesmo nula e de qualquer maneira desacelerada pela presença do exclusivo e do excluído É uma cultura do interdito Já a cultura da mistura apresenta um aspecto contínuo favorecendo o comércio cultural Nela o andamento é rápido É a cultura do permitido FONTANILLE e ZILBERBERG 2001 p 2030 A triagem e a mistura variam em termos de tonicidade átona e tônica Há triagens mais ou menos drásticas e misturas mais ou me nos homogêneas o que daria o seguinte esquema Triagem Mistura Tônica unidadenulidade universalidade Átona totalidade diversidade FONTANILLE e ZILBERBERG 2001 p 33 Cada uma dessas culturas opera com um tipo de valor diferente as da triagem criam valores de absoluto que são os da intensidade as da mistura valores de universo que são os da extensidade As primeiras são mais fechadas tendendo a concentrar os valores de sejáveis e a excluir os indesejáveis as segundas são mais abertas procurando a expansão e a participação FONTANILLE e ZILBERBERG 2001 p 5354 No trabalho de constituição da nacionalidade a literatura teve um papel fundamental Os autores românticos com especial desta que para Alencar estiveram na linha de frente da construção da iden 119 BAKHTINIANA São Paulo v 1 n 1 p 115126 1o sem 2009 tidade nacional Entre todos os livros de Alencar o mais importante para determinar esse patrimônio identitário é sem dúvida O guara ni Nele determinase a paisagem típica do Brasil o espaço da eterna primavera onde não ocorrem cataclismos naturais como furacões tornados terremotos etc a singularidade de sua língua mas prin cipalmente o casal ancestral dos brasileiros Além disso começase a elaborar um modelo explicativo da singularidade da cultura brasilei ra pois é essa especifi cidade que constituiria o Brasil como uma na ção Observese que se trata de uma autodescrição da cultura que é evidentemente parcial No entanto ela é vista como uma explicação totalizante e real da cultura Como dizia Marx quando uma ideia se apodera da consciência das massas ela se torna uma força material 2001 p 53 Por isso os modelos explicativos das autodescrições culturais exercem um papel muito importante nas diferentes forma ções sociais Começase no Romantismo a construir a noção de que cultura brasileira se assenta na mistura O romance O guarani de José de Alencar concebe um mito de origem da nação brasílica Peri e Cecília constituem seu casal inicial formado por um índio que aceitara os valores cristãos 1995 p 268279 e por uma portuguesa que acolhe ra os valores da natureza do Novo Mundo 1995 p 279280 Essa nação teria portanto um caráter cultural lusotupi O mito de ori gem de nosso país opera com a união da natureza com a cultura ou seja dos valores americanos com os europeus O Brasil seria assim a síntese do velho e do novo mundo construída depois da destruição do edifício colonial e dos elementos perversos da natureza Os ele mentos lusitanos permanecem mas modifi cados pelos valores da na tureza americana A nação brasileira aparece depois de um dilúvio em cuja descrição se juntam os mitos das duas civilizações constitu tivas de nosso povo o de Noé e o de Tamandaré 1995 p 291296 O guarani mostra além da fundação da nacionalidade outra fundação a da língua falada no Brasil A identidade desse idioma é correlata à do homem brasileiro 1995 p 116117 cuja origem o romance descreveu Não se trata do português tal como é falado em Portugal mas de um português modifi cado pela natureza brasileira A língua falada no novo país é um refl exo na sintaxe e no léxico das suavidades e asperezas da natureza da América É uma fusão tam bém da cultura com a natureza Alencar não preconiza que se fale tupi mas esse português modifi cado no Brasil Com essa concepção 120 BAKHTINIANA São Paulo v 1 n 1 p115126 1o sem 2009 do povo e da língua do Brasil ele não poderia nunca admitir que a literatura brasileira reproduzisse os cânones linguísticos portugue ses Deveria ela incorporar a variedade linguística que se falava no país então independente A independência linguística dos padrões portugueses era tão importante quanto a independência política Na primeira metade do século XX há outro movimento de cons trução identitária que se assenta também sobre a mistura pois con sidera a mestiçagem como o jeito de ser brasileiro O que distingue o Brasil é a assimilação com a consequente modifi cação do que é signifi cativo e importante das outras culturas Não é sem razão que Oswald de Andrade erigiu a antropofagia como o princípio consti tutivo da cultura brasileira 1990 Em CasaGrande Senzala de Gilberto Freyre 1954 considerase eufórica a mistura a colonização portuguesa é vista como tolerante aberta suave o que levou à mes tiçagem racial que não ocorreu nos países colonizados pelos ingleses ou pelos franceses por exemplo O Brasil celebra a mistura da con tribuição de brancos negros e índios na formação da nacionalidade exaltando o enriquecimento cultural e a ausência de fronteiras de nossa cultura De nosso ponto de vista o misturado é completo o puro é incompleto é pobre Insistese no fato de que se está falando de autodescrição da cultura brasileira Há então todo um culto à mu lata representante por excelência da raça brasileira do sincretismo religioso sinal de tolerância do convívio harmônico de culturas que se digladiam em outras partes do mundo como a árabe e a judaica A beleza e a sensualidade da mulata a mistura poderia ser exemplifi cada com Rita Baiana 1957 p 87 que se opõe à sensa boria da branca a pura que poderia ser ilustrada com Piedade de Jesus 1957 61 ambas de O cortiço de Aluísio Azevedo Em Dona Flor e seus dois maridos de Jorge Amado 1967 a personagem central poderia ser vista como a síntese da cultura bra sileira a mistura do princípio do sonho e da realidade do prazer e do dever da irresponsabilidade folgazona e do trabalho duro fi gurativi zados por Vadinho e por Teodoro O protótipo da habilidade política no Brasil é o político mineiro que concilia todos os contrários Um importante exemplar desse tipo de político era Tancredo Neves São marcantes nesse sentido algumas anedotas a respeito dele Quando estava buscando fundar o Partido Popular que ele dizia que seria centrista perguntaramlhe o que era um partido de centro Respondeu que nele estariam a direita da es 121 BAKHTINIANA São Paulo v 1 n 1 p 115126 1o sem 2009 querda e a esquerda da direita Uma vez em Salvador na campanha para a Presidência a polícia soltou cães sobre os participantes de um comício Num hotel irritado Tancredo afi rmou que iria reagir dura mente mostrando ao General Figueiredo que política era uma coisa para macho A Deputada Ruth Escobar que estava presente protes tou imediatamente lembrando o papel das mulheres na redemocrati zação do país Tancredo disse Não não estou desdenhando do papel das mulheres macho é uma palavra unissex Mesmo os livros que buscaram estudar o caráter nacional na primeira metade do século XX e que tinham certo viés pessimista continuam a adotar esse modelo explicativo como faz por exemplo Paulo Prado em Retrato do Brasil 1999 Essa concepção da mistura como o jeito de ser brasileiro apode rase das consciências das massas por meio do futebol MELO 2006 p 281285 e da música popular VIANA 1995 José Lins do Rego 2002 e Mário Filho 2003 inicialmente e depois Nélson Rodrigues 1993 1994 mostram que a mestiçagem é que dá a genialidade do futebol brasileiro Esse esporte é um refl exo do jeito de ser brasileiro que une efi ciência e malandragem objetividade e transgressão Apolo e Dionísio As ideias da ginga e do jogo de cintura aí estão presen tes Nélson Rodrigues dizia que a seleção nacional era a pátria em chuteiras Essas ideias são difundidas pelos meios de comunicação de massa e pela música popular A concepção de que a mistura rege nossa cultura e portanto de que o brasileiro é simpático acolhedor tolerante naturalizase pou co a pouco No entanto as coisas no interior da cultura se passam de modo diferente Primeiramente é preciso notar que a mistura não é indiscri minada Há sistemas que não são aceitos na mistura Por exemplo no período de construção da nacionalidade não há a ideia da mis cigenação das três raças que hoje se diz terem constituído a nação brasileira mas somente a dos índios e brancos Os negros estavam excluídos Essa mistura não era desejável pois afi nal tratavamse de escravos Mais tarde surge a ideologia do branqueamento que presidiu ao estímulo às grande imigrações europeias de italianos de alemães de espanhóis de poloneses etc Observase em O mulato de Aluísio Azevedo que é preciso acabar com o preconceito contra o mulato porque a mistura do negro com o branco é um melhora mento e não uma piora como pensava a tacanha e preconceituosa 122 BAKHTINIANA São Paulo v 1 n 1 p115126 1o sem 2009 sociedade de São Luís O melhoramento era o afastamento do negro considerado rude sem cultura incivilizado e a aproximação com o branco modelo da sociedade brasileira a piora era a aproximação com o negro O romance considera a escravidão um mal porque era a fonte dos defeitos dos indivíduos e da sociedade brasileira Ao contrário da elite branca da capital maranhense que considera o mulato um quase negro o narrador o vê como um quase branco em quem pre domina a superioridade da raça branca AZEVEDO 1973 p 222 O discurso antirracista de O mulato não está fundado na ideia de igualdade das raças mas na tese de que o preconceito não permite ao mulato integrarse à sociedade europeizarse deixar vir à tona sua porção branca Como nota JeanYves Mérien o romancista aceita o princípio de desigualdade das raças mas vê na mestiçagem e o caráter exemplar de seu personagem é a prova disto um dos remédios contra a tara que representava a raça negra no Brasil O mulato símbolo do embranquecimento progressivo é o homem que coloca o princípio necessário à evolução da sociedade brasileira em direção a uma etapa mais avançada de civi lização 1988 p 316 Aluísio verbera o preconceito racial porque ele impede a reali zação do clareamento racial que deveria ser acompanhado de um embranquecimento cultural MÉRIEN 1988 p 317 O princípio do branqueamento é que rege o incentivo à grande imigração europeia ocorrida entre 1887 e 1930 O discurso racista da sociedade de São Luís representada no romance estabelece valores do universo há de um lado o puro que é o exclusivo e de outro o negro ou o misturado que é o excluído Essas grandezas opõemse como superior e inferior O discurso an tirracista exalta a mistura No entanto a mistura é vista como um processo de melhoramento que aproxima o negro do branco Não se celebra a mistura em si mesma mas como uma maneira de aproxi marse da pureza do branco Esse discurso da mescla não deixa de apresentar uma fronteira onde se dá a triagem dela está excluído o negro Ademais as coisas no interior da cultura não são regidas sempre por um único princípio Como diz Lotman na diacronia opera um 123 BAKHTINIANA São Paulo v 1 n 1 p 115126 1o sem 2009 princípio de assimetria 1996 p 59 um movimento pendular que leva no nosso caso do princípio de mistura ao da triagem e assim sucessivamente Fora dos períodos de construção identitária e mesmo na primeira metade do século XX segundo momento de constituição da identida de nacional a literatura brasileira nunca deixou de mostrar que em nossa formação social vige o princípio da exclusão Citemos alguns exemplos Antônio de Alcântara Machado em Brás Bexiga e Barra Funda deixa entrever o preconceito contra o imigrante italiano e sua difícil aceitação social pelas famílias tradicionais No conto A socie dade 1997 p 4145 por exemplo a esposa do conselheiro José Bonifácio de Matos e Arruda não tolera sequer imaginar que a fi lha Teresa Rita venha a casarse com um fi lho de carcamano que é o que acaba por acontecer Já na introdução denominada Artigo de fundo Alcântara Machado revela as difi culdades de integração dos imigrantes na sociedade brasileira No começo a arrogância indígena perguntou meio zangada Carcamano pé de chumbo Calcanhar de frigideira Quem te deu a confi ança De casar com brasileira 1997 p 20 No conto Polaco de Júlia Lopes de Almeida publicado na obra Histórias de nossa terra 1926 p 9697 e em Numa e a ninfa de Lima Barreto 2001 p 482 mostrase o princípio da exclusão a operar já na denominação do imigrante polonês que era chamado de polaco Em Clara dos Anjos Lima Barreto ao narrar a história de uma moça pobre do subúrbio mulata que foi iludida seduzida e desprezada por um rapaz pertencente à burguesia denuncia o preconceito racial e social 2001 p 635748 Em Recordações do escrivão Isaías Caminha Isaías sente a dor do preconceito de cor e de classe 2001 p 113257 O princípio de exclusão social e racial é também tematizado em Vida e morte de M J Gonzaga de Sá 2001 p 553634 O princípio de exclusão que pesava sobre a mulher já aparece na fala que é comentada pelo narrador de Pereira pai da personagem principal do romance Inocência de Taunay Esta obrigação de casar as mulheres é o diabo Se não tomam estado fi cam jururus e fanadinhas se casam 124 BAKHTINIANA São Paulo v 1 n 1 p115126 1o sem 2009 podem cair nas mãos de algum marido malvado E de pois as histórias Ih meu Deus mulheres numa casa é coisa de meter medo São redomas de vidro que tudo pode quebrar Enfi m minha fi lha enquanto solteira honrou o nome de meus pais O Manecão que se aguente quando a tiver por sua Com gente de saia não há que fi ar Cruz Botam famílias inteiras a perder enquanto o demo esfrega um olho Esta opinião injuriosa sobre as mulheres é em geral corrente nos nossos sertões e traz como consequência imediata e prática além da rigorosa clausura em que são mantidas não só o casamento convencionado entre parentes muito chegados para fi lhos de menor idade mas sobretudo os numerosos crimes cometidos mal se suspeita da possibilidade de qualquer intriga amorosa entre pessoa da família e algum estranho 1984 p 30 Outros autores não denunciam o preconceito mas revelamno em suas obras Sirva de exemplo o Bomcrioulo de Adolfo Caminha um dos primeiros romances brasileiros a tratar do homossexualis mo masculino em que o narrador evidencia a exclusão dos homos sexuais ao medicalizar o homoerotismo e condenar as personagens homossexuais Uma sensação de ventura infi nita espalhavaselhe em todo o corpo Começava a sentir no próprio sangue impulsos nunca experimentados uma vontade ingênita de ceder aos caprichos do negro de abandonarselhe para o que ele quisesse uma vaga distensão dos nervos um prurido de passividade Ande logo murmurou apressadamente voltandose E consumouse o delito contra a natureza 1999 p 38 A cultura brasileira euforizou de tal modo a mistura que passou a considerar inexistentes as camadas reais da semiose onde opera o princípio da exclusão por exemplo nas relações raciais de gênero de orientação sexual etc A identidade autodescrita do brasileiro é sempre a que é criada pelo princípio da participação da mistura Daí se descreve o brasileiro como alguém aberto acolhedor cordial agra dável sempre pronto a dar um jeitinho Ocultamse o preconceito a violência que perpassa as relações cotidianas etc Enfi m esconde se o que opera sob o princípio da triagem 125 BAKHTINIANA São Paulo v 1 n 1 p 115126 1o sem 2009 REFERÊNCIAS ALENCAR José de O guarani 19 ed São Paulo Ática 1995 ALMEIDA Júlia Lopes de Histórias da nossa terra Rio de Janeiro Livraria Francisco Alves 1926 AMADO Jorge Dona Flor e seus dois maridos São Paulo Livraria Martins Editora 1967 ANDRADE Oswald de A utopia antropofágica manifestos e teses São Paulo GloboSecretaria do Estado da Cultura 1990 AZEVEDO Aluísio O cortiço 13 ed São Paulo Livraria Martins Editora 1957 O mulato São Paulo Livraria Martins Editora 1973 BAKHTIN Mikhail Loeuvre de François Rabelais et la culture populaire au Moyen Âge et sous la Renaissance Paris Gallimard 1970 Questões de literatura e de estética A teoria do romance São Paulo Hucitec 1988 Estética da criação verbal São Paulo Martins Fontes 1992 BARRETO Lima Prosa seleta Rio de Janeiro Nova Aguilar 2001 CAMINHA Adolfo Bomcrioulo 7 ed São Paulo Ática 1999 FILHO Mário O negro no futebol brasileiro Rio de Janeiro Mauad 2003 FONTANILLE Jacques ZILBERBERG Claude Tensão e signifi cação São Paulo Discurso EditorialHumanitas 2001 FREYRE Gilberto CasaGrande e Senzala Rio de Janeiro José Olympio 1954 LOTMAN Iuri M La semiosfera I Semiótica de la cultura y del texto Edición de Desiderio Navarro Madrid Ediciones Cátedra 1996 MACHADO Antônio de Alcântara Brás Bexiga e Barra Funda São Paulo Klick Editora 1997 MARX Karl Introdução à Crítica da Filosofi a do Direito de Hegel In Manuscritos econômicofilosóficos Trad Alex Marins São Paulo Martin Claret 2001 p 4559 MELO Victor Andrade de Garrinha x Pelé Futebol cinema literatura e a construção da identidade nacional Revista Brasileira de Educação Física e Esporte São Paulo v 20 n 4 p 281285 outdez 2006 MÉRIEN JeanYves Aluísio Azevedo vida e obra Rio de JaneiroBrasí lia Espaço e Tempo Instituto Nacional do Livro 1988 PRADO Paulo Retrato do Brasil São Paulo Companhia das Letras 1999 126 BAKHTINIANA São Paulo v 1 n 1 p115126 1o sem 2009 REGO José Lins do Flamengo é puro amor 111 crônicas escolhidas Rio de Janeiro Jorge Zahar 2002 RENAN Ernest Oeuvres complètes Paris CalmannLévy Éditeurs 1947 t I RODRIGUES Nélson À sombra das chuteiras imortais crônicas de fute bol São Paulo Companhia das Letras 1993 A pátria em chuteiras novas crônicas de futebol São Paulo Companhia das Letras 1994 TAUNAY Alfredo dEscragnolle Inocência 6 ed São Paulo Ática 1984 THIESSE AnneMarie La création des identités nationales Europe XVIIIe XXesiècle Paris Editions du Seuil 1999 VIANA Hermano O mistério do samba Rio de Janeiro Jorge Zahar 1995 Recebido em 18022009 Aprovado em 03082009