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ANTROPOLOGIA ROTEIRO DE REGIME ESPECIAL ETAPAS a Ler o arquivo anexo do livro O que faz o brasil Brasil b Ler o arquivo anexo produzindo resenha c Elaborar uma resenha da obra seguindo as normas ABNT Observações O trabalho deve seguir as normas da ABNT O trabalho vale de 0 a 10 Nota mínima de 700 para aprovação do aluno Cópias não serão aceitas trabalhos plagiados serão devolvidos e zerados COMO PRODUZIR UMA RESENHA Siga estes 3 passos preliminares Antes de iniciar a produção do texto há alguns passos importantes que você deve considerar para que a qualidade do seu trabalho possa atingir um patamar de excelência 1 Leia a obra a ser resenhada Chega a ser ridículo ter que colocar este ponto mas já vi MUITA gente fazendo resenhas de livros que nunca leu de filmes que nunca assistiu ou de palestras às quais não compareceu Soou familiar É uma realidade crescente entre os estudantes universitários Mas você não pretende ser um desses certo Então o primeiro passo é conhecer o objeto que será resenhado Um detalhe importante essa sua leitura deve ser rápida com o objetivo de conhecer a obra como um todo Portanto não faça anotações e nem sublinhe nada 2 Releia Ok você vai achar que estou exagerando Porém o fato é que na primeira leitura que fazemos de qualquer coisa há muitos elementos que passam despercebidos É nessa etapa que devemos lentamente analisar aspectos mais pontuais da obra que será alvo da resenha Use a técnica de sublinhar fazer esquemas com as ideias principais tanto da obra quanto de cada capítulo e tente estabelecer relações entre tudo isso Algo que eu faço e que ajuda muito fazer perguntas e anotálas no canto das páginas se você estiver resenhando um material escrito claro Isso força você a pensar sobre o material que tem em mãos 3 Pare para pensar Muitos já começam a escrever a resenha logo após a leitura do material ERRADO Você deve para um tempo para pensar sobre tudo rever suas anotações formar uma opinião e quem sabe até buscar outras fontes que tratem dos mesmos assuntos para poder fazer contrapontos em seu texto Se possível essa pausa deve durar mais de 24h mas não ultrapasse as 72h para que as ideias não lhe fujam da memória Faça mais anotações e já tente formular os argumentos que utilizará em seu texto Comece a escrever a resenha Partindo de tudo que foi dito talvez você já tenha uma boa ideia sobre o que escrever em sua resenha e até mesmo sobre a estrutura que deve seguir Mas vamos falar especificamente de uma das perguntas que eu mais ouço dos alunos Como começar uma resenha Há uma série de questões que você deve tentar responder em sua introdução Veja De que trata o livrotexto Ele tem alguma característica especial De que modo o assunto é abordado Qual é a tese do autor Qual a intenção do autor Que conhecimentos prévios são exigidos para entendêlo A que tipo de leitor se dirige o autor O tratamento dado ao tema é compreensível O livro foi escrito de modo interessante e agradável As ilustrações foram bem escolhidas O livro foi bem organizado O leitor que é a quem o livrotexto se destina irá achálo útil Comparando essa obra com outras similares e com outros trabalhos do mesmo autor a que conclusões chegamos Evidentemente você não precisa responder a todas essas questões sendo elas sugestões que você pode utilizar no início de sua resenha Atente para a escrita da conclusão Outro ponto em que muitos têm dúvidas é na hora de escrever a conclusão Esse espaço final da resenha serve para expor sua avaliação geral sobre a obra Até aqui você já deve ter discutido os argumentos do autor e como ele os defende assim como ter avaliado a qualidade e a eficiência de diversos aspectos do livro ou artigo Agora é o momento de avaliar o trabalho como um todo determinando coisas como se o autor conseguiu ou não atingir os objetivos propostos e se a obra contribui de maneira significante para a área de conhecimento da qual faz parte Ao escrever a conclusão você pode considerar as seguintes perguntas A obra usa graus de objetividade ou subjetividade apropriados à proposta inicial do autor O autor consegue manter o foco da obra sem incorrer em excesso de opinião própria ou falta de fontes que comprovem seus argumentos Em algum momento o autor deixa de considerar aspectos relevantes de sua área como outros pontos de vista ou teorias contrárias às dele O autor conseguiu atender aos objetivos a que se propôs ao iniciar a obra Que contribuições a obra traz para sua área de conhecimento ou grupo específico de leitores É possível justificar o uso dessa obra no contexto em que foi indicada uma disciplina da universidade por exemplo Qual o comentário final mais importante que você faria a respeito dessa obra Você tem sugestões para futuras pesquisas nessa área De que maneiras lerassistir essa obra contribuiu para sua formação Como fazer a resenha de um texto acadêmico Quando falamos de textos acadêmicos pouca coisa muda em relação aos demais tipos de materiais livros filmes palestras etc Você deve considerar no entanto que um texto acadêmico deve ser impessoal seus verbos nunca serão escritos em primeira pessoa eu nós Portanto ao resenhar esse tipo de texto siga as dicas já expostas acima mas tenha um cuidado ainda maior com a linguagem e atente para as normas da ABNT Conclusão Fazer uma resenha parece muito fácil à primeira vista mas devemos tomar muito cuidado pois dependendo do lugar resenhistas podem fazer um livro mofar nas prateleiras ou transformar um filme em um verdadeiro fracasso As resenhas são ainda além de um ótimo guia para os apreciadores da arte em geral uma ferramenta essencial para acadêmicos que precisam selecionar quantidades enormes de conteúdo em um tempo relativamente pequeno Agora é questão de colocar a mão na massa e começar a produzir suas próprias resenhas Referência bibliográfica DIDIO Lucie Leitura e produção de textos 1ª edição São Paulo Atlas 2013 Roberto DaMatta O que faz o brasil Brasil 2 Roberto DaMatta O que faz o brasil Brasil Rocco Rio de Janeiro 1986 3 Copyright 1984 by Roberto Augusto Damatta Direitos para a língua portuguesa reservados com exclusividade para o Brasil à EDITORA ROCCO LTDA Rua Visconde de Pirajá 414 Gr 1405 CEP 22410 Rio de Janeiro RJ Tel 2871493 Printed in BrazilImpresso no Brasil Ilustrações Jimmy Scott Este Livro foi composto pela Memphis Produções Gráficas Ltda Rua Visconde de Inhaúma 64 2 andar Centro Rio RJ e impresso pela Gráfica Portinho Cavalcanti Ltda Rua de Santana 136 Centro Rio RJ em agosto de 1986 para a Editora Rocco Ltda 4 Em memória de Francisca Schurig Vieira Keller minha saudosa amiga que tantas vezes fez a pergunta deste livro Em memória de Daniel Rodrigues na sua generosidade portuguesa e brasileira Para D Dalila Pereira da Costa Agostinho da Silva e D Maria Violante todos portugueses todos brasileiros E para Almir Bruneti na sua nobre hospitalidade 5 Índice com a numeração das páginas no original O que faz o brasil Brasil A questão da identidade 9 A casa a rua e o trabalho 21 A ilusão das relações raciais 35 Sobre comidas e mulheres 49 O carnaval ou o mundo como teatro e prazer 65 As festas da ordem 79 O modo de navegação social a malandragem e o jeitinho 93 Os caminhos para Deus 107 Palavras finais 119 Roberto DaMatta por ele mesmo 123 A propósito do ilustrador 126 Texto da contracapa O QUE FAZ O BRASIL BRASIL Este livro escrito por um dos mais importantes antropólogos brasileiros não pretende trazer uma definição exaustiva ou uma versão definitiva do que é o Brasil Mas nos proporciona a surpresa do verdadeiro encontro pois O que faz o brasil Brasil é justamente aquilo que faz com que nos reconheçamos como brasileiros nos mínimos e mais variados gestos Múltiplo e rico o Brasil é o país do carnaval e do feijão com arroz da mistura e da fantasia Mas também do jeitinho que dribla a lei e da hierarquia velada pela cordialidade Somos brasileiros na devoção e no sincretismo no culto à ordem e na malandragem no trabalho duro e na preguiça O Brasil maiúsculo que Roberto DaMatta apresenta não é um conjunto de instituições ou de fatos históricos e sim o fundamento de nossa identidade Nossa brasilidade é um estilo uma maneira particular de construir e perceber a realidade 7 1 O que faz o brasil Brasil A questão da identidade Devo começar explicando o meu enigmático título É que será preciso estabelecer uma distincão radical entre um brasil escrito com letra minúscula nome de um tipo de madeira de lei ou de uma feitoria interessada em explorar uma terra como outra qualquer e o Brasil que designa um povo uma nação um conjunto de valores escolhas e ideais de vida O brasil com o b minúsculo é apenas um objeto sem vida autoconsciência ou pulsação interior pedaço de coisa que morre e não tem a menor condição de se reproduzir como sistema como aliás queriam alguns teóricos sociais do século XIX que viam na terra um pedaço perdido de Portugal e da Europa um conjunto doentio e condenado de raças que misturandose ao sabor de 8 uma natureza exuberante e de um clima tropical estariam fadadas à degenerarão e à morte biológica psicológica e social Mas o Brasil com B maiúsculo é algo muito mais complexo É país cultura local geográfico fronteira e território reconhecidos internacionalmente e também casa pedaço de chão calçado com o calor de nossos corpos lar memória e consciência de um lugar com o qual se tem uma ligação especial única totalmente sagrada É igualmente um tempo singular cujos eventos são exclusivamente seus e também temporalidade que pode ser acelerada na festa do carnaval que pode ser detida na morte e na memória e que pode ser trazida de volta na boa recordação da saudade Tempo e temporalidade de ritmos localizados e assim insubstituíveis Sociedade onde pessoas seguem certos valores e julgam as ações humanas dentro de um padrão somente seu Não se trata mais de algo inerte mas de uma entidade viva cheia de autoreflexão e consciência algo que se soma e se alarga para o futuro e para o passado num movimento próprio que se chama História Aqui o Brasil é um ser parte conhecido e parte misterioso como um grande e poderoso espírito Como um Deus que está em todos os lugares e em nenhum mas que também precisa dos homens para que possa se saber superior e onipotente Onde quer que haja um brasileiro adulto existe com ele o Brasil e no entanto tal como acontece com as divindades será preciso produzir e provocar a sua manifestação para que se possa sentir sua concretude e seu poder Caso contrário sua presença é tão inefável como a do ar que se respira e dela não se teria consciência a não ser pela comparação pelo contraste e pela percepção de algumas de suas manifestações mais contundentes Os deuses conforme sabemos existem somente para serem vistos em certos momentos e dentro de certas molduras O mesmo ocorre com as sociedades Geralmente estamos habituados a tomar conhecimento das sociedades e sobretudo da nossa sociedade por meio de suas manifestações mais oficiais e mais nobres Tal como ocorre às divindades que só são encontradas nas igrejas também as sociedades só são normalmente percebidas quando surgem nas suas vozes mais cultas Para os tradicionalistas aqueles que têm olhos e não vêem os deuses se acham nos sacrários nas capelas e nos livros sagrados de reza e devoção Para os observadores menos imaginativos e sensíveis uma sociedade está nas suas ciências letras e artes A visão oficial contradiz a voz a visão do povo e ainda a experiência da condição humana que generosamente enxerga Deus em toda parte no rito pomposo e solene da catedral e na visão tresloucada do místico nu e faminto em sua cela de preocupações com o destino dos 9 homens e sobrecarregado pelo peso fantástico dos múltiplos sentidos desta vida Neste livro com ajuda de uma Antropologia Social praticada com destemor e que proporciona uma visão da sociedade aberta e relativizada pela comparação queremos examinar alguns aspectos da sociedade brasileira que o povo encara e certamente ama como uma divindade Porque aqui como lá o Brasil está em toda parte Nas leis e nas nobres artes da política e da economia das quais temos que falar sempre num idioma oficial e dobrando a língua mas também na comida que comemos na roupa que vestimos na casa onde moramos e na mulher que amamos e adoramos Para essa perspectiva o Brasil deve ser procurado nos rituais nobres dos palácios de justiça dos fóruns das câmaras e das pretorias onde a letra clara da lei define suas instituições mais importantes mas também no jeitinho malandro que soma a lei com a pessoa na sua vontade escusa de ganhar embora a regra fria e dura como o mármore da Justiça não a tenha tomado em consideração Aqui portanto o Brasil está em toda parte ou melhor pode ser encontrado em toda parte O erro foi procuralo onde ele não gostava de estar ou simplesmente não podia nem devia estar Como se uma sociedade pudesse ser definida como uma máquina a partir de uma planta de engenharia dada de fora Na certeza de que as visões do Brasil a partir de suas coisas oficiais sagradas sérias e legais são as mais correntes e familiares quero aqui revelalo por meio de outros ângulos e de outras questões Não se trata mais da visão exclusivamente oficial e bemcomportada dos manuais de história social que se vendem em todas as livrarias e os professores discutem nas escolas Mas de uma leitura do Brasil que deseja ser maiúsculo por inteiro o BRASIL do povo e das suas coisas Da comida da mulher da religião que não precisa de teologia complicada nem de padres estudados Das leis da amizade e do parentesco que atuam pelas lágrimas pelas emoções do dar e do receber e dentro das sombras acolhedoras das casas e quartos onde vivemos o nosso quotidiano Dos jogos espertos e vivos da malandragem e do carnaval onde podemos vadiar sem sermos criminosos e assim fazendo experimentamos a sublime marginalidade que tem hora para começar e terminar Deste Brasil que de algum modo se recusa a viver de forma totalmente planificada e hegemonicamente padronizada pelo dinheiro das contas bancárias ou pelos planos qüinqüenais dos ministérios encantados pelos vários tecnocratas e ideólogos que aí estão à espera de um chamado BRASIL com 10 maiúsculas que sabe tão bem conjugar lei com grei indivíduo com pessoa evento com estrutura comida farta com pobreza estrutural hino sagrado com samba apócrifo e relativizador de todos os valores carnaval com comício político homem com mulher e até mesmo Deus com o Diabo Por tudo isso é que estamos interessados em responder nas páginas que seguem esta pergunta que embarga e que emociona afinal de contas o que faz o brasil BRASIL Notese que se trata de uma pergunta relacional que tal como faz a própria sociedade brasileira quer juntar e não dividir Não queremos ver um Brasil pequeno e outro grande já feito Não Queremos isto sim descobrir como é que eles se ligam entre si como é que cada um depende do outro e como os dois formam uma realidade única que existe concretamente naquilo que chamamos de pátria Numa linguagem mais precisa e mais sociológica dirseia que o primeiro brasil é dado nas possibilidades humanas mas que o segundo Brasil é feito de uma combinação especial dessas possibilidades universais O mistério dessa escolha é imenso mas a relação é importante Porque ela define um estilo um modo de ser um jeito de existir que não obstante estar fundado em coisas universais é exclusivamente brasileiro Assim o ponto de partida deste ensaio é o seguinte tanto os homens como as sociedades se definem por seus estilos seus modos de fazer as coisas Se a condição humana determina que todos os homens devem comer dormir trabalhar reproduzirse e rezar essa determinação não chega ao ponto de especificar também que comida ingerir de que modo produzir com que mulher ou homem acasalarse e para quantos deuses ou espíritos rezar É precisamente aqui nessa espécie de zona indeterminada mas necessária que nascem as diferenças e nelas os estilos os modos de ser e estar os jeitos de cada qual Porque cada grupo humano cada coletividade concreta só pode pôr em prática algumas dessas possibilidades de atualizar o que a condição humana apresenta como universal As restantes ficam como uma espécie de fantasma a nos recriminar pelo fato de as termos deixado nos bastidores como figuras banidas de nosso palco embora estejam de algum modo presentes na peça e no teatro No fundo essa questão do relacionamento dos universais de qualquer sistema com um sistema específiço é das mais apaixonantes de quantas existem no panorama das Ciências Humanas Tratase sempre da questão da identidade De saber quem somos e como somos de saber por que somos Sobretudo 11 quando nos damos conta de que o homem se distingue dos animais por ter a capacidade de se identificar justificar e singularizar de saber quem ele é De fato a identidade social é algo tão importante que o conhecerse a si mesmo através dos outros deixou os livros de filosofia para se constituir numa busca antropologicamente orientada Mas o mistério como se pode adivinhar não fica na questão do saber quem somos Pois será necessário descobrir como construímos nossas identidades Sei que sou José da Silva brasileiro casado funcionário público torcedor do Flamengo carnavalesco da Mangueira apreciador incondicional das mulatas católico e umbandista jogador esperançoso e inveterado da loto porque acredito em destino e não outra pessoa qualquer Em sendo José não sou Napoleão ou William Smith cidadão americano de Nova York ou Ivan Ivanovich patriota soviético Posso distinguirme assim porque me associo intensamente a uma série de atributos especiais e porque com eles e através deles formo uma história a minha história Mas como é que sei o que sou Como posso discutir a passagem do ser humano que nasci para o brasileiro que sou Como se constrói uma identidade social Como um povo se transforma em Brasil A pergunta na sua discreta singeleza permite descobrir algo muito importante É que no meio de uma multidão de experiências dadas a todos os homens e sociedades algumas necessárias à própria sobrevivência como comer dormir morrer reproduzirse etc outras acidentais ou superficiais históricas para ser mais preciso o Brasil foi descoberto por portugueses e não por chineses a geografia do Brasil tem certas características como as montanhas na costa do CentroSul sofremos pressão de certas potências européias e não de outras falamos português e não francês a família real transferiuse para o Brasil no início do século XIX etc Cada sociedade e cada ser humano apenas se utiliza de um número limitado de coisas e de experiências para construirse como algo único maravilhoso divino e legal Sei então que sou brasileiro e não norteamericano porque gosto de comer feijoada e não hambúrguer porque sou menos receptivo a coisas de outros países sobretudo costumes e idéias porque tenho um agudo sentido de ridículo para roupas gestos e relações sociais porque vivo no Rio de Janeiro e não em Nova York porque falo português e não inglês porque ouvindo música popular sei distinguir imediatamente um frevo de um samba porque futebol para mim é um jogo que se pratica com os pés e não com as mãos porque vou à praia para ver e conversar com os amigos ver as mulheres e 12 tomar sol jamais para praticar um esporte porque sei que no carnaval trago à tona minhas fantasias sociais e sexuais porque sei que não existe jamais um não diante de situações formais e que todas admitem um jeitinho pela relação pessoal e pela amizade porque entendo que ficar malandramente em cima do muro é algo honesto necessário e prático no caso do meu sistema porque acredito em santos católicos e também nos orixás africanos porque sei que existe destino e no entanto tenho fé no estudo na instrução e no futuro do Brasil porque sou leal a meus amigos e nada posso negar a minha família porque finalmente sei que tenho relações pessoais que não me deixam caminhar sozinho neste mundo como fazem os meus amigos americanos que sempre se vêem e existem como indivíduos Pois bem somando esses traços formase uma seqüência que permite dizer quem sou em contraste com o que seria um americano aqui definido pelas ausências ou negativas que a mesma lista efetivamente comporta A construção de uma identidade social então como a construção de uma sociedade é feita de afirmativas e de negativas diante de certas questões Tome uma lista de tudo o que você considera importante leis idéias relativas a família casamento e sexualidade dinheiro poder político religião e moralidade artes comida e prazer em geral e com ela você poderá saber quem é quem Não é de outro modo que se realizam as pesquisas antropológicas e sociológicas Descobrindo como as pessoas se posicionam e atualizam as coisas desta lista você fará um inventário de identidades sociais e de sociedades Isso lhe permitirá descobrir o estilo e o jeito de cada sistema Ou como se diz em linguagem antropológica a cultura ou ideologia de cada sociedade Porque para mim a palavra cultura exprime precisamente um estilo um modo e um jeito repito de fazer coisas Mas é preciso não esquecer que essas escolhas seguem uma ordem É certo que eu inventei um brasileiro e um americano que o acompanhava por contraste linhas atrás mas quem me garante que aquilo que disse é convincente para definir um brasileiro foi a própria sociedade brasileira Ou seja quando eu defini o brasileiro como sendo amante do futebol da música popular do carnaval da comida misturada dos amigos e parentes dos santos e orixás etc usei uma fórmula que me foi fornecida pelo Brasil O que faz um ser humano realizarse concretamente como brasileiro é a sua disponibilidade de ser assim Caso eu falasse em elegância no vestir e no falar no gosto pelas artes plásticas na visita sistemática a museus no amor pela música clássica na falta de riso nas anedotas no horror ao carnaval e 13 ao futebol etc certamente estaria definindo outro povo e outro homem Isso indica claramente que é a sociedade que nos dá a fórmula pela qual traçamos esses perfis e com ela fazemos desenhos mais ou menos exatos Tudo isso nos leva a descobrir que existem dois modos básicos de construir a identidade brasileira o de fazer o brasil Brasil Num deles utilizamos dados precisos as estatísticas demográficas e econômicas os dados do PIB PNB e os números da renda per capita e da inflação que sempre nos assusta e apavora Falamos também dos dados relativos ao sistema político e educacional do país apenas para constatar que o Brasil não é aquele país que gostaríamos que fosse Essa classificação permite construir uma identidade social moderna de acordo com os critérios estabelecidos pelo Ocidente europeu a partir da Revolução Francesa e da Revolução Industrial Aqui somos definidos por meio de critérios objetivos quantitativos e claros É assim sabemos e descobrimos com surpresa que algumas sociedades se definem Realmente a Inglaterra a França a Alemanha e sobretudo os Estados Unidos são quase exclusivamente definidos por meio deste eixo classificatório que é ele mesmo invenção sua Mas no caso do Brasil e de outras sociedades o problema é que existe outro modo de classificação A identidade se constrói duplamente Por meio dos dados quantitativos onde somos sempre uma coletividade que deixa a desejar e por meio de dados sensíveis e qualitativos onde nos podemos ver a nós mesmos como algo que vale a pena Aqui o que faz o brasil Brasil não é mais a vergonha do regime ou a inflação galopante e sem vergonha mas a comida deliciosa a música envolvente a saudade que humaniza o tempo e a morte e os amigos que permitem resistir a tudo É uma descoberta importante creio dizer que nós temos dado muito mais atenção a um só desses eixos classificatórios querendo discutir o Brasil apenas como uma questão de modernidade e de economia e política ou ao contrário reduzindo sua realidade a um problema de família de relações pessoais e de cordialidade Para mim não se trata nem de uma coisa nem de outra mas das duas que são dadas de modo simultâneo e complexo Nessa perspectiva que é a deste pequeno livro a chave para entender a sociedade brasileira é uma chave dupla De um lado ela é moderna e eletrônica mas de outro é uma chave antiga e trabalhada pelos anos É típica de nosso sistema essa capacidade de misturar e acasalar as coisas que tenho discutido no meu trabalho como uma atividade relacional de ligar e descobrir um ponto central 14 Conhecemos e convivemos com suas manifestações políticas a negociação e a conciliação e econômicas uma economia que é estatizante e ao mesmo tempo segue as linhas mestras do capitalismo clássico mas de certo modo não discutimos as suas implicações sociológicas mais profundas E para mim essas implicações se escondem nesta ligação ou capacidade relacional do antigo com o moderno que tipifica e singulariza a sociedade brasileira Assim conforme tentarei mostrar nas páginas que seguem e com a ajuda do talento gráfico de Jimmy Scott o que faz o brasil Brasil é uma imensa uma inesgotável criatividade acasaladora Sustento que enquanto não formos capazes de discernir essas duas faces de uma mesma nação e sociedade estaremos fadados a um jogo cujo resultado já se sabe de antemão Pois como ocorre com as moedas ou teremos como jogada um brasil pequeno e defasado das potências mundiais Brasil que nos leva a uma autoflagelação desanimadora ou teremos como jogada o Brasil dos milagres e dos autoritarismos políticos e econômicos que periodicamente entra numa crise Será preciso portanto discutir o Brasil como uma moeda Como algo que tem dois lados E mais como uma realidade que nos tem iludido precisamente porque nunca lhe propusemos esta questão relacional e reveladora afinal de contas como se ligam as duas faces de uma mesma moeda O que faz o brasil Brasil É o que veremos a seguir 15 2 A casa a rua e o trabalho Observese uma cidade brasileira Nela há um nítido movimento rotineiro Do trabalho para casa de casa para o trabalho A casa e a rua interagem e se complementam num ciclo que é cumprido diariamente por homens e mulheres velhos e crianças Pelos que ganham razoavelmente e até mesmo pelos que ganham muito bem Uns fazem o percurso casaruacasa a pé outros seguem de bicicleta Muitos andam de trens ônibus e automóveis mas todos fazem e refazem essa viagem que constitui de certo modo o esqueleto da nossa rotina diária Há uma divisão clara entre dois espaços sociais fundamentais que dividem a vida social brasileira o mundo da casa e o mundo da rua onde estão teoricamente o trabalho o movimento a surpresa e a tentação 16 É claro que a rua serve também como o espaço típico do lazer Mas ela como um conceito inclusivo e básico da vida social como rua é o lugar do movimento em contraste com a calma e a tranqüilidade da casa o lar e a morada De fato na casa ou em casa somos membros de uma família e de um grupo fechado com fronteiras e limites bem definidos Seu núcleo é constituído de pessoas que possuem a mesma substância a mesma carne o mesmo sangue e conseqüentemente as mesmas tendências Tal substância física se projeta em propriedades e muitas outras coisas comuns A idéia de um destino em conjunto e de objetos relações valores as chamadas tradições de família que todos do grupo sabem que importa resguardar e preservar Disse que isso se chamava tradição e é assim que normalmente falamos desses símbolos coletivos que distinguem uma residência dandolhe certo estilo e certa maneira de ser e estar Mas tais valores podem também ser chamados de honra e vergonha pois as famílias bemdefinidas e com alto sentido de casa e grupo são coletividades que atuam com uma personalidade coletiva bemdefinida De tal ordem que elas são uma pessoa moral algo que age unitária e corporativamente como um indivíduo entre outros Daí a idéia tão corrente mesmo no nosso Brasil urbano e moderno da proteção das fronteiras da casa seja de suas soleiras materiais quem não está preocupado com o fechamento de suas portas e janelas todas as noites seja principalmente de suas entradas e saídas morais Por tudo isso o grupo que ocupa uma casa tem alto sentido de defesa de seus bens móveis e imóveis e junto com isso da proteção de seus membros mais frágeis como as crianças as mulheres e seus servidores Pois diferentemente de outros países modernos aqui no Brasil as casas possuem serviçais que em certo sentido lhes pertencem E cuidase de seu bemestar porque a idéia de residência é um fato social totalizante conforme diria Márcel Mauss Ou seja quando falamos da casa não estamos nos referindo simplesmente a um local onde dormimos comemos ou que usamos para estar abrigados do vento do frio ou da chuva Mas isto sim estamos nos referindo a um espaça profundamente totalizado numa forte moral Uma dimensão da vida social permeada de valores e de realidades múltiplas Coisas que vêm do passado e objetos que estão no presente pessoas que estão saindo deste mundo e pessoas que a ele estão chegando gente que está relacionada ao lar desde muito tempo e gente que se conhece de agora Não se trata de um lugar físico mas de um lugar moral esfera onde nos realizamos basicamente como seres humanos que têm um 17 corpo físico e também uma dimensão moral e social Assim na casa somos únicos e insubstituíveis Temos um lugar singular numa teia de relações marcadas por muitas dimensões sociais importantes como a divisão de sexo e de idade Mas se em casa somos classificados pela idade e pelo sexo como respectivamente mais velhos ou mais moços e como homens e mulheres e aqui temos dimensões sociais que são provavelmente as primeiras que aprendemos na sociedade brasileira nela somos também determinados por tudo o que a honra a vergonha e o respeito esses valores grupais acabam determinando Quero referirme ao amor filial e familial que se deve estender pelos compadres e pelos amigos para quem as portas de nossas casas estão sempre abertas e nossa mesa está sempre posta e farta A conjunção de tudo isso faz com que nós brasileiros tenhamos uma percepção de nossas moradas como lugares singulares espaços exclusivos Pois cada casa embora tenha os mesmos espaços e basicamente os mesmos objetos de todas as outras é diferente delas Todas são únicas se não como espaço físico de morada pelo menos como domínio onde se realiza uma convivialidade social profunda Daí a possibilidade de diferenciar 18 profundamente a casa ou a morada o prédio do lar Mesmo quando são residências baratas ou casas de vila construídas de modo idêntico algo marca e revela sua identidade e com isso a identidade do grupo que a ocupa um pedaço de azulejo estrategicamente colocado próximo de uma janela um nome singelo na parte de cima da soleira da porta flores e jardins a cor de suas janelas e portas Por ser um espaço assim inclusivo e simultaneamente exclusivo a casa pode ter também seus agregados Pessoas que vivem no domicílio mas que não são parte da família Um parente que veio do Norte em busca de médico ou segurança psicológica um amigo em dificuldade financeira ou crise matrimonial um velho empregado que não tem para onde ir nem lugar para ficar um compadre que precisa de emprego e necessita falar com uma autoridade da grande cidade um amigo que precisa de um santuário para evitar a prisão motivada por idéias e convicções políticas uma mulher que temporariamente foge do pai ou irmão para acertar definitivamente sua nova filiação social Até mesmo os animais domésticos podem incluirse nessa definição pois de fato participam do espaço positivo da residência ajudando a conceituala de modo socialmente positivo ou negativo Não é à toa que falamos que nosso cachorro é mais manso e mais esperto que nosso gato tem o pêlo mais luzidio e a preguiça mais bonita e gostosa e que nosso passarinho canta mais bonito e mais alto Tudo afinal de contas que está no espaço da nossa casa é bom é belo e é sobretudo decente Até mesmo as nossas plantas são mais viçosas que as dos vizinhos e amigos E como não podemos por causa de uma proibição extremamente moral aquilo que nós antropólogos chamamos de tabu comer nossos animais domésticos noto que entre os astecas os cães eram comidos e vendidos no mercado nem nossas plantas caseiras eles cumprem uma função estritamente simbólica De fato são criados para diferenciar e não para cumprir qualquer função prática Assim são como nós e nos ajudam a estabelecer nossa mais profunda identidade social como membros indiferenciados de um mundo anônimo e asfaltado onde ninguém conhece ninguém esse mundo tenebroso da selva de pedra e como membros diferenciados que residem numa dada parte da cidade e que podem transformar esse local onde moram em algo único especial singular e legal Tudo isso repito que nós diferenciamos como o espaço do lar Algo que contrasta terrivelmente com a morada coletiva das prisões dormitórios alojamentos e hotéis e motéis onde não se pode efetivamente projetar nas paredes nas portas no chão e nas janelas a nossa identidade 19 social Como espaço moral importante e diferenciado a casa se exprime numa rede complexa e fascinante de símbolos que são parte da cosmologia brasileira isto é de sua ordem mais profunda e perene Assim a casa demarca um espaço definitivamente amoroso onde a harmonia deve reinar sobre a confusão a competição e a desordem Em casa sabemos todos como bons brasileiros que somos não devemos comprar vender ou trocar O comércio está excluído da casa como o Diabo se exclui do bom Deus Do mesmo modo as discussões políticas que revelam e indicam posições individualizadas e quase sempre discordantes dos membros de uma família estão banidas da mesa e das salas íntimas sobretudo dos quartos Se elas são inevitáveis transcorrem certamente nas varandas e quintais locais marginais da casa posto que situados entre o seu interior cujo calor revela a igualdade de substância e de opiniões das pessoas que ali residem e a rua o mundo exterior que se mede pela luta pela competição e pelo anonimato cruel de individualidades e individualismos Daí por que em casa e no código da família brasileira existe uma tendência de produzir sempre um discurso conservador onde os valores morais tradicionais são defendidos pelos mais velhos e pelos homens Daí também por que na casa podemos ter de tudo como se ali o espaço fosse marcado por um supremo reconhecimento pessoal uma espécie de supercidadania que contrasta terrivelmente com a ausência total de reconhecimento que existe na rua Em casa portanto tenho tudo e sou reconhecido nos meus mais ínfimos desejos e vontades Sou membro perpétuo de uma corporação a família brasileira que não morre e que com sua rede de compadres empregados servidores e amigos tem muito mais vitalidade e permanência do que o governo e a administração pública que sempre competem com ela pelo respeito do cidadão Digo que a casa por tudo isso provê uma leitura especial do mundo brasileiro É certo que toda sociedade moderna tem casa e rua Mas o meu argumento aqui é no sentido de salientar que a casa entre nós ordena um mundo à parte Universo onde o tempo não é histórico mas cíclico tempo que vive de durações que não se medem por relógios mas por retratos amarelados e corroídos pelas traças como naquela poesia de Drummond Um tempo que é medido pela morte dos mais velhos e pelo batizado dos mais novos Um tempo cuja duração e experiência podem ser revertidas pela doce saudade dos dias em que a família estava toda reunida em torno de alguma figura importante para a sua unidade e sobrevivência enquanto grupo uno e integrado Quer dizer quando observamos que a casa contém todas essas dimensões temos que nos dar conta de que vivemos numa 20 sociedade onde casa e rua são mais que meros espaços geográficos São modos de ler explicar e falar do mundo Mas como é o espaço da rua Bem já sabemos que ela é local de movimento Como um rio a rua se move sempre num fluxo de pessoas indiferenciadas e desconhecidas que nós chamamos de povo e de massa As palavras são reveladoras Em casa temos as pessoas e todos lá são gente nossa gente Mas na rua temos apenas grupos desarticulados de indivíduos a massa humana que povoa as nossas cidades e que remete sempre à exploração e a uma concepção de cidadania e de trabalho que é nitidamente negativa De fato falamos da rua como um lugar de luta de batalha espaço cuja crueldade se dá no fato de contrariar frontalmente todas as nossas vontades Daí por que dizemos que a rua é equivalente à dura realidade da vida O fluxo da vida com suas contradições durezas e surpresas está certamente na rua onde o tempo é medido pelo relógio e a história se faz acrescentando evento a evento numa cadeia complexa e infinita Na rua então o tempo corre voa e passa Muito mais que no lar onde ele está suspenso entre as relações prazerosas e amorosas de todos com todos Mas aqui no negro do asfalto no calor da caminhada para se chegar a algum lugar no nervosismo do confronto com o policial imbuído de sua autoridade legal que nos trata como coisas e como indivíduos sem nome nem face o reino é sinônimo de luta e sangue Na rua não há teoricamente nem amor nem consideração nem respeito nem amizade É local perigoso conforme atesta o ritual aflitivo e complexo que realizamos quando um filho nosso sai sozinho pela primeira vez para ir ao cinema ao baile ou à escola Que insegurança nos possui quando um pedaço de nosso sangue e de nossa casa vai ao encontro desse oceano de maldade e insegurança que é a rua brasileira Não é pois ao léu que damos conselhos quando alguém se aventura nesta selva Lá falamos sempre e nosso próprio comportamento na rua acaba confirmando nossas piores e mais sombrias profecias estamos no reino do engano da confusão e do logro Local onde ninguém nos respeita como gente ou pessoa como entidade moral dotada de rosto e vontade A rua compensa a casa e a casa equilibra a rua No Brasil casa e rua são como os dois lados de uma mesma moeda O que se perde de um lado ganhase do outro o que é negado em casa como o sexo e o trabalho temse na rua Não creio ser necessário chamar a atenção para o fato significativo de que em nossa classificação de eventos relações e pessoas a casa e a rua entram como um eixo dos mais fundamentais Assim se a mulher é da rua ela deve ser vista e tratada de um 21 modo Tratase para ser mais preciso das chamadas mulheres da vida pois rua e vida formam uma equação importante no nosso sistema de valores Do mesmo modo se a discussão foi na rua então é quase certo que pode degenerar em conflito Em casa pode promover um alto entendimento Também falamos que comida de rua é ruim ou venenosa enquanto a comida caseira é boa ou deve ser assim por definição Até mesmo objetos e pessoas como crianças podem ser diferentemente interpretados caso sejam da rua ou de casa Por tudo isso o universo da rua tal como ocorre com o mundo da casa é mais que um espaço físico demarcado e universalmente reconhecido Pois para nós brasileiros a rua forma uma espécie de perspectiva pela qual o mundo pode ser lido e interpretado Uma perspectiva repito oposta mas complementar à da casa e onde predominam a desconfiança e a insegurança Aqui quem governa não é mais o pai o irmão o marido a mulher e as redes de parentesco e amizade que nos têm como uma pessoa e um amigo Ao contrário o comando é dado à autoridade que governa com a lei a qual torna todo mundo igual no propósito de desautorizar e até mesmo explorar de forma impiedosa Todos sabemos por experiência respeitável e profunda que na rua não se deve brincar com quem representa a ordem pois naquele espaço se corre o grave risco de ser confundido com quem é ninguém E entre ser alguém e ser ninguém há um mundo no caso brasileiro Um universo ou abismo que passa pela construção do espaço da casa com seu aconchego e sua rede imperativa de relações calorosas e o espaço da rua com seu anonimato e sua insegurança suas leis e sua polícia Daí por que na rua tendemos a ser todos revolucionários e revoltados membros destituídos de uma massa de anônimos trabalhadores Mas além disso tudo a rua é espaço que permite a mediação pelo trabalho o famoso batente nome já indicativo de um obstáculo que temos que cruzar ultrapassar ou tro peçar Trabalho que no nosso sistema é concebido como castigo E o nome diz tudo pois a palavra deriva do latim tripaliare que significa castigar com o tripaliu instrumento que na Roma Antiga era um objeto de tortura consistindo numa espécie de canga usada para supliciar escravos Entre a casa onde não deve haver trabalho e curiosa e erroneamente não tomamos o trabalho doméstico como tal mas como serviço ou até mesmo prazer ou favor e a rua o trabalho duro é visto no Brasil como algo bíblico Muito diferente da concepção anglosaxã que equaciona trabalho work com agir e fazer de acordo com sua concepção 22 original Entre nós porém perdura a tradição católica romana e não a tradição reformadora de Calvino que transformou o trabalho como castigo numa ação destinada à salvação Mas nós brasileiros que não nos formamos nessa tradição calvinista achamos que o trabalho é um horror Não é à toa que o nosso panteão de heróis oscila entre uma imagem deificada do malandro aquele que vive na rua sem trabalhar e ganha o máximo com um mínimo de esforço o renunciador ou o santo aquele que abandona o trabalho neste e deste mundo e vai trabalhar para o outro como fazem os santos e líderes religiosos e o caxias que talvez não seja o trabalhador mas o cumpridor de leis que devem obrigar os outros a trabalhar O fato é que não temos a glorificação do trabalhador nem a idéia de que a rua e o trabalho são locais onde se pode honestamente enriquecer e ganhar dignidade Para nós esses espaços e essa mediação entre casa e rua pelo trabalho são algo muito complexo Mas poderia ser de outro jeito numa sociedade em que até outro dia havia escravos e onde as pessoas decentes não saíam à rua nem podiam trabalhar com as mãos É claro que não No nosso sistema tão fortemente marcado pelo trabalho escravo as relações entre patrões e empregados ficaram definitivamente confundidas Não era algo apenas econômico mas também uma relação moral onde não só um tirava o trabalho do outro mas era seu representante e dono perante a sociedade como um todo O patrão num sistema escravocrata é mais que um explorador de trabalho sendo dono e até mesmo responsável moral pelo escravo Essas relações são complicadas e dizem os especialistas muito difíceis de serem mantidas em nível produtivo Pois aqui a relação vai do econômico ao moral totalizandose em muitas dimensões e atingindo diversas camadas sociais Creio que isso embebeu de tal modo as nossas concepções de trabalho e suas relações que até hoje misturamos uma relação puramente econômica com laços pessoais de simpatia e amizade o que confunde o empregado e permite ao patrão exercer duplo controle da situação Ele assim pode governar o trabalho pois é quem oferece o emprego e pode controlar as reivindicações dos empregados pois apela para a moralidade das relações pessoais que em muitos casos e sobretudo nas pequenas empresas e no comércio tende a ofuscar a relação patrão empregado O caso mais típico e mais claro dessa problemática muito complexa e a meu ver ainda pouco estudada é o das chamadas empregadas domésticas as quais são pessoas que vivendo nas casas dos seus patrões realizam aquilo que em casa está banido por definição o trabalho Nessa 23 situação elas repetem a mesma situação dos escravos da casa de antigamente permitindo confundir relações morais de intimidade e simpatia com uma relação puramente econômica quase sempre criando um conjunto de dramas que estão associados a esse tipo de relação de trabalho onde o econômico está subordinado ao político e ao moral ou neles embebido Tal como deve ocorrer quando a casa se mistura com a rua O fato porém é que a concepção de trabalho fica confundida num sistema onde as mediações entre casa e rua são tão complexas E onde como vimos casa e rua são mais que locais físicos São também espaços de onde se pode julgar classificar medir avaliar e decidir sobre ações pessoas relações e moralidades Compensandose mutuamente e sendo ambas complementadas pelo espaço do outro mundo onde residem deuses e espíritos casa e rua formam os espaços básicos através dos quais circulamos na nossa sociabilidade Sobretudo porque o que falta na rua existe em abundância na casa E ainda porque eles não podem ser confundidos sob pena de grandes confusões e desordens 24 3 A ilusão das relações raciais No século XVIII Antonil percebeu algo interessante numa sociedade dividida entre senhores e escravos e escreveu O Brasil é um inferno para os negros um purgatório para os brancos e um paraíso para os mulatos A frase foi como sempre acontece com as coisas profundas que são faladas com simplicidade mal entendida É que quase todos os seus intérpretes viram nela uma afirmativa ao pé da letra algo que se referia exclusivamente a um fenômeno biológico e racial quando de fato ela diz muito mais de fatos sociológicos básicos Na verdade penso que caso se queira ter uma compreensão mais profunda e original das relações raciais que existem no Brasil será necessário tomar essa expressão nos seus sentidos velados considerando todas as suas implicações morais e políticas E elas conforme 25 veremos a seguir nos levam muito longe de uma mera questão fisiológica de raças Digo que a frase de Antonil tem um sentido sociológico e simbólico profundo porque no contexto das teorias raciais do momento ela é no mínimo contraditória Realmente não custa relembrar que as teorias racistas européias e norte americanas não eram tanto contra o negro ou o amarelo o índio genericamente falando também discriminado como inferior que eram nítida e injustamente inferiorizados relativamente ao branco mas que também eram vistos como donos de poucas qualidades positivas enquanto raça O problema maior dessas doutrinas o horror que declaravam era isso sim contra a mistura ou miscigenação das raças É certo diziam elas que havia uma nítida ordem natural que graduava escalonava e hierarquizava as raças humanas conforme ocorria com as espécies de animais e as plantas é certo também afirmavam tais teorias que o branco se situava no alto da escala com o branco da Europa Ocidental assumindo indiscutível posição de liderança na criação animal e humana do planeta Mas era também seguro que amarelos e negros tinham qualidades que a mistura denegria e levava ao extermínio Saber por que tais teorias tinham esse horror à miscigenação é conduzir a curiosidade intelectual para um dos pontoschaves que distinguem e esclarecem o racismo à européia ou à americana e o nosso conhecido dissimulado e disseminado racismo à brasileira Tomese o exemplo mais famoso dessas idéias o Conde de Gobineau que inclusive residiu no Rio de Janeiro como cônsul da França e se tornou amigo e interlocutor intelectual de nosso Imperador D Pedro II Ele diz claramente num livro célebre pelas idéias racistas e pelos erros no que diz respeito à Antropologia das diferenciações humanas que é possível dividir as raças de acordo com três critérios fundamentais o intelecto as propensões animais e as manifestações morais No curso dessa obra significativamente intitulada A diversidade moral e intelectual das raças publicada em 1856 Gobineau entretanto não realiza um exercício simplista no sentido de dizer que a raça branca era superior em tudo Há muita inteligência nos preconceitos e nos autoritarismos Muito ao contrário ao comparar por exemplo brancos e amarelos no que diz respeito às suas propensões animais ele situa os primeiros abaixo dos segundos Quem não se salva porém como infelizmente acontece até hoje na nossa sociedade são os negros sempre e em tudo situados abaixo de brancos e amarelos 26 Mas onde Gobineau realmente excedeu a si mesmo e ousou com confiança inusitada mesmo para quem estava imbuído de uma ideologia autoritária de sua própria superioridade foi na previsão de que o Brasil levaria menos de 200 anos para se acabar como povo Por quê Ora simplesmente porque ele via com seus próprios olhos e escrevia revoltado a seus amigos franceses o quanto a nossa sociedade permitia a mistura insana de raças Essa miscigenação e esse acasalamento é que o certificavam do nosso fim como povo e como processo biológico Seu problema conforme estou revelando não era a existência de raças diferentes desde que essas raças obviamente ficassem no seu lugar e naturalmente não se misturassem Gobineau como se vê foi o pai ou melhor o verdadeiro genitor de um dos valores mais caros ao preconceito racial de qualquer sociedade hierarquizada Refirome ao fato de que ele não se colocou contra a hierarquia que governava conforme supunha a diversidade humana no que diz respeito aos seus traços biológicos mas foi terminantemente contrário ao contato social íntimo entre elas E é precisamente isso conforme sabe mas não expressa todo racista que implica a idéia de miscigenação já que ela importa contato e contato íntimo posto que sexual entre pessoas que na teoria racista são vistas e classificadas como pertencendo a espécies diferentes Daí a palavra mulato que vem de mulo o animal ambíguo e híbrido por excelência aquele que é incapaz de reproduzir se enquanto tal pois é o resultado de um cruzamento entre tipos genéticos altamente diferenciados Mas no seu horror ao mulatismo e ao contato íntimo e amoroso entre os tipos humanos Gobineau não estava só Outros teóricos importantes como Buckle Couty e Agassiz para ficarmos com aqueles que foram influentes entre os teóricos do racismo no Brasil também exprimiram esse medo da mistura e trataram a nossa população como um todo potencialmente degenerado de híbridos incapazes de criarem alguma coisa forte ou positiva Nesse contexto vale a pena citar um trecho escrito por Agassiz opinando precisamente sobre a nossa sociedade Que qualquer um que duvida dos males dessa mistura de raças e se inclina por malentendida filantropia a botar abaixo todas as barreiras que as separam venha ao Brasil Não poderá negar a deterioração decorrente do amálgama de raças mais geral aqui do que em qualquer outro pais do mundo e que vai apagando rapidamente as melhores qualidades do branco do negro e do índio deixando um tipo indefinido híbrido deficiente em energia física e mental O célebre zoólogo de Harvard fecha com Gobineau postulando um futuro terrível para o Brasil É que certamente não 27 havia descoberto o valor positivo do mulatismo e sobretudo a capacidade brasileira de recuperar e trabalhar o ambíguo como dado positivo na glorificação da mulata e do mestiço como sendo no fundo uma síntese perfeita do melhor que pode existir no negro no branco e no índio E agora suponho estamos em posição para retornarmos à frase notável de Antonil a fim de entendêla em toda a sua profundidade Noto primeiramente que Antonil não fala de branco negro e mulato numa equação biológica Ao contrário com eles constrói uma associação social ou normal pois que relaciona o branco com o purgatório o negro com o inferno e o mulato com o paraíso Creio ser a primeira vez que se estabelece um triângulo para o entendimento da sociedade brasileira e isso sustento é significativo e importante Significativo porque eu mesmo tenho repetido seguidamente que o Brasil não é um país dual onde se opera somente com uma lógica do dentro ou fora do certo ou errado do homem ou mulher do casado ou separado de Deus ou Diabo do preto ou branco Ao contrário no caso de nossa sociedade a dificuldade parece ser justamente a de aplicar esse dualismo de caráter exclusivo ou seja uma oposição que determina a inclusão de um termo e a automática exclusão do outro como é comum no racismo 28 americano ou sulafricano que nós brasileiros consideramos brutal porque no nosso caso tudo se passa conforme Antonil maravilhosamente intuiu Isto é entre o preto e o branco que nos sistemas anglosaxão e sulafricano são termos exclusivos1 nós temos um conjunto infinito e variado de categorias intermediárias em que o mulato representa uma cristalização perfeita De modo plenamente coerente com essa ordenação hierarquizada das categorias diferenciais do gênero humano Antonil as equaciona simultaneamente a três espaços sagrados críticos na cosmologia católica romana o paraíso o inferno e o purgatório Não será preciso notar que a correlação aqui é igualmente perfeita Se o mulato é um ser intermediário e ambíguo uma espécie de Dona Flor das relações raciais brasileiras categoria que existe de fato e de direito na ideologia social da sociedade e se legitima precisamente por instituir o intermediário e a síntese dos opostos como algo positivo sua associação com o Paraíso nos ajuda a entender a genial sensibilidade de Antonil para os valores mais profundos da nossa sociedade Porque não há dúvida alguma de que ele percebeu o valor positivo que associamos ao intermediário a categoria que fica no meio ao ser situado entre os extremos e que por isso mesmo permite a sua associação e a negação de suas tendências e características antagônicas Quem inventou ou melhor percebeu a positividade da mulata da mulataria e das categorias intermediárias em geral foi um jesuíta que muito acertadamente equacionou esse valor altamente positivo atribuído a tal categoria na nossa sociedade ao próprio Paraíso Tal associação permite dizer que no Brasil ao contrário do que aconteceu em outros países e eu penso aqui sobretudo nos Estados Unidos não ficamos com uma classificação racial formalizada em preto e branco ou talvez mais precisamente em preto ou branco com aqueles conhecidos refinamentos ideológicos que na legislação norteamericana eram pródigos em descobrir porções ínfimas daquilo que a lei chamava de sangue negro nas veias de pessoas de cor branca que assim passavam a ser consideradas pretas mesmo que sua fenotipia ou aparência externa fosse inconfundivelmente branca Tratase conforme já apontou um sociólogo brasileiro Oracy Nogueira de um tipo de preconceito racial que considera básicas as origens das pessoas e não somente a marca do tipo racial como ocorre no caso brasileiro Desse modo o nosso preconceito seria muito mais contextualizado e sofisticado do que o norteamericano que é direto e formal A conseqüência disso sabemos bem é a dificuldade de combater o nosso preconceito que em certo sentido 29 tem pelo fato de ser variável enorme e vantajosa invisibilidade Na realidade acabamos por desenvolver o preconceito de ter preconceito conforme disse Florestan Fernandes numa frase lapidar O fato de existir uma legislação rígida racista e dualística nos Estados Unidos um conjunto de leis que até bem pouco tempo impediam o movimento de quem era considerado negro em certas áreas urbanas escolas restaurantes hotéis bares e muitas outras instituições sociais revela esse dualismo claro que indica sem maiores embaraços quem está dentro ou fora quem tem direitos e quem não tem quem é branco ou é preto Mas aqui conforme sabemos há uma radical exclusão de todas as categorias intermediárias que são absorvidas com todos os riscos e penalidades às duas categorias principais em franca oposição e em aberta distinção Aqui o mulato não está no paraíso de Antonil mas no inferno E os motivos dessa equação são exatamente opostos É que numa sociedade igualitária e protestante como são os Estados Unidos o intermediário representa tudo o que deve ser excluído da realidade social Dentro de uma sociedade que tentou eliminar a tradição imemorial das leis implícitas aquelas que podiam ser aplicadas ou não que podiam ser lembradas ou não que podiam variar de acordo com quem praticava o crime ou não o mulato o intermediário representava a negação viva de tudo aquilo que a lei estabelecia positivamente Ele mostrava o pecado e o perigo da intimidade entre camadas sociais que deveriam permanecer diferenciadas mesmo que fossem teoricamente consideradas iguais Além disso ele indicava a presença objetiva de uma relação entre camadas que não podiam comunicarse sexual ou afetivamente Do mesmo modo que as leis de uma sociedade igualitária e liberal não admitem o jeitinho ou o mais ou menos as relações entre grupos sociais não podem admitir é intermediação E o mulato é precisamente essa possibilidade que nesses sistemas é definida como imoralidade Lá então diferentemente daqui o negativo é aquele que está entre as coisas e as pessoas O que se busca eliminar é a relação pois a ênfase da ideologia social e dos valores é sempre no papel do indivíduo como o centro e a razão de ser da sociedade A igualdade jurídica e constitucional dos membros da sociedade americana forma uma poderosa tradição que chegou àquele país com os Puritanos ingleses e se consolidou nas doutrinas liberais que marcaram o nascimento e a expansão da sociedade americana como nação Nesse sistema de indivíduos teoricamente iguais a experiência da escravidão E das hierarquias que ela certamente determina por sua própria natureza enquanto sistema pois há escravos da casa e do eito escravos 30 educados e sem instrução escravos que ficam mais perto ou mais longe dos seus senhores e isso engendra uma gradação que atua de modo informal contrabalançando a rigidez das categorias jurídicas que tudo separam entre senhor e escravo foi certamente muito mais problemática do que no caso do Brasil Por quê Primeiro conforme estou revelando pela existência da tradição igualitária que no universo social anglosaxão era muito mais forte que em Portugal ou no Brasil Noto que foi a Inglaterra que deu forma moderna à idéia econômica de mercado e de capitalismo E com isso veio a prática de equacionar todos como iguais perante as leis Foi ali também que variantes radicais do protestantismo como o puritanismo e o calvinismo ganharam amplo terreno Isso tudo conduziu a um individualismo radical possessivo no dizer de um teórico dessas questões o cientista político C B Macpherson Tal ideologia social nega as relações sociais e com isso a presença das redes imperativas de amizade e de parentesco que sustentavam a chamada moral tradicional ou seja aquela moralidade que afirma a importância do todo ou da sociedade sobre o individuo Dentro dela a pessoa é importante porque pertence a uma família e tem compadres e amigos É a relação que ajuda a definila como ser humano e como entidade social significativa Na moralidade individualista moderna porém inaugurada com a Reforma e com a Revolução Industrial a família e a sociedade é que eram constituídas de indivíduos tal como os clubes as paróquias e os partidos políticos Aqui o indivíduo não é possuído ou englobado por sua família ou por seus pais confessores ou patrões Ao contrário é dono de si mesmo e pode em conseqüência dispor de sua força de trabalho individualmente num mercado de homens livres mercado esse que desvincula moralmente quem oferece de quem faz o trabalho Pois bem todos esses fatores tornavam difícil a convivência da escravidão com essa ideologia que no caso dos Estados Unidos é dominante È certamente isso que explica a localização geográfica da economia escravocrata nos Estados da Sul De fato até o advento da Guerra Civil que começa em 1861 e vai até 1865 fazendo mais de 617 mil mortes os Estados Unidos são como se fossem duas sociedades distintas em política economia e sobretudo ideologia e valores Há um Norte igualitário e individualista que não pode admitir a escravidão e um Sul hierarquizado aristocrático e relacional onde 31 existe uma sociedade cheia de nuances parecido nisso tudo com o Brasil A diferença é que nos Estados Unidos o Sul perdeu e o Norte estabeleceu por todo o país sua hegemonia moral e política A contradição gerada pelo negro livre numa sociedade que pregava uma igualdade de todos com todos foi o preconceito racial radical sustentado não somente por costumes e atitudes veladas e muitas vezes secretas de brancos ou de mulatos mas por uma série de leis que explicitamente impediam a competição econômica de negros e brancos como iguais num mercado de trabalhadores livres Tudo isso nos conduz a algumas correlações interessantes que permitem elucidar o caso do racismo à brasileira e do nosso famoso triângulo racial É que primeiramente devemos ressaltar como as sociedades igualitárias engendraram formas de preconceito muito claras porque sua ideologia negava o intermediário a gradação e a relação entre grupos que deveriam permanecer separados embora pudessem ser considerados teoricamente iguais Tal fato não existiu na sociedade brasileira e até hoje tem débil aceitação social Realmente estou convencido de que a sociedade brasileira ainda não se viu como sistema altamente hierarquizado onde a posição de negros índios e brancos está ainda tragicamente de acordo com a hierarquia das raças Numa sociedade onde não há igualdade entre as pessoas o preconceito velado é forma muito mais eficiente de discriminar pessoas de cor desde que elas fiquem no seu lugar e saibam qual é ele Finalmente ao lado disso temos um triângulo racial que impede uma visão histórica e social da nossa formação como sociedade É que quando acreditamos que o Brasil foi feito de negros brancos e índios estamos aceitando sem muita crítica a idéia de que esses contingentes humanos se encontraram de modo espontâneo numa espécie de carnaval social e biológico Mas nada disso é verdade O lato contundente de nossa história é que somos um país feito por portugueses brancos e aristocráticos uma sociedade hierarquizada e que foi formada dentro de um quadro rígido de valores discriminatórios Os portugueses já tinham uma legislação discriminatória contra judeus mouros e negros muito antes de terem chegado ao Brasil e quando aqui chegaram apenas ampliaram essas formas de preconceito A mistura de raças foi um modo de esconder a profunda injustiça social contra negros índios e mulatos pois situando no biológico uma questão profundamente social econômica e política deixavase de lado a problemática mais básica da sociedade De fato é mais fácil dizer que o Brasil foi formado por um triângulo de raças o que nos conduz ao mito da 32 democracia racial do que assumir que somos uma sociedade hierarquizada que opera por meio de gradações e que por isso mesmo pode admitir entre o branco superior e o negro pobre e inferior uma série de critérios de classificação Assim podemos situar as pessoas pela cor da pele ou pelo dinheiro Pelo poder que detêm ou pela feiúra de seus rostos Pelos seus pais e nome de família ou por sua conta bancária As possibilidades são ilimitadas e isso apenas nos diz de um sistema com enorme e até agora inabalável confiança no credo segundo o qual dentro dele cada um sabe muito bem o seu lugar É claro que podemos ter uma democracia racial no Brasil Mas ela conforme sabemos terá que estar fundada primeiro numa positividade jurídica que assegure a todos as brasileiros o direito básico de toda a igualdade o direito de ser igual perante a lei Enquanto isso não for descoberto ficaremos sempre usando a nossa mulataria e os nossos mestiços como modo de falar de um processo social marcado pela desigualdade como se tudo pudesse ser transcrito no plano do biológico e do racial Na nossa ideologia nacional temos um mito de três raças formadoras Não se pode negar o mito Mas o que se pode indicar é que o mito é precisamente isso uma forma sutil de esconder uma sociedade que ainda não se sabe hierarquizada e dividida entre múltiplas possibilidades de classificação Assim o racismo à brasileira paradoxalmente torna a injustiça algo tolerável e a diferença uma questão de tempo e amor Eis numa cápsula o segredo da fábula das três raças 33 4 Sobre comidas e mulheres A sociedade manifestase por meio de muitos espelhos e vários idiomas Um dos mais importantes no caso do Brasil é sem dúvida o código da comida em seus desdobramentos morais que acabam ajudando a situar também a mulher e o feminino no seu sentido talvez mais tradicional Comidas e mulheres assim exprimem teoricamente a sociedade tanto quanto a política a economia a família o espaço e o tempo em suas preocupações e certamente em suas contradições 34 Creio que foi o antropólogo francês Claude LéviStrauss quem chamou a atenção para dois processos naturais o cru e o cozido não somente como dois estados pelos quais passam todos os alimentos mas como modalidades pelas quais se pode falar de transformações sociais importantíssimas De fato o cru e o cozido o alimento e a comida o doce e o salgado ajudam a classificar coisas pessoas e até mesmo ações morais importantes no nosso mundo Assim é que equacionamos simbolicamente a mulher com a comida e o doce com o feminino deixando o salgado e o indigesto para estarem associados a tudo o que nos cheira a coisas duras e cruéis Ao mundo difícil da vida da rua e do trabalho em geral esses universos que são profundamente masculinos e por conseguinte estão longe das cozinhas dos temperos e das boas mesas e camas onde só pode exercer uma comensalidade enriquecedora Num plano mais filosófico e universal sabemos que cru se liga a um estado de selvageria a um estado de natureza ao passo que o cozido se relaciona ao universo socialmente elaborado que toda sociedade humana define como sendo o de sua cultura e ideologia Sabendo que o cru e o cozido exprimem mais que dois processos naturais podemos agora entender por que falamos que o apressado come cru É que com tal metáfora ou associação entre o cru e a pressa estamos nos referindo a esse elo entre a selvageria ou sofreguidão da pressa e o lado selvagem ruim ou cru das coisas e da vida O calmo pode se dizer complementando o provérbio revelador come sempre cozido pois quem tem calma possui um elemento da civilização e a civilização fundase precisamente num saber esperar Mas o que é também interessante na oposição entre o cru e o cozido é descobrir que o universo da comida permite pensar o mundo integrando o intelectual com o sensível Quer dizer qualquer refeição mais bem preparada ou mais caprichada conforme falamos coloquialmente pode e deve promover essa união ou casamento entre o olhar que remete ao intelecto e naturalmente o gosto e o cheiro que indicam o caminho do nariz da boca e do estômago Tudo que leva ao corpo à sensualidade e à pança ou barriga conforme falamos no Brasil Assim encher a barriga ou encher a pança é um ato concreto destinado à saciedade do corpo mas é também um modo de se referir a uma ação simbólica A tudo que foi capaz de satisfazer plenamente uma pessoa Mas é básico continuar enfatizando que a comida com suas possibilidades simbólicas permite realizar uma importante mediação entre cabeça e barriga entre corpo e alma permitindo operar simultaneamente com uma série de 35 códigos culturais que normalmente estão separados como o gustativo que distingue o salgado do doce e do amargo o gostoso do péssimo o quente do frio o código de odores que permite separar dos outros o alimento que tem bom cheiro e está sadio e bom o código visual que nos faz comer ou não algum alimento com os olhos ou recusálo por sua aparência tendo ou não olho maior do que a barriga e ainda um código digestivo posto que no Brasil também classificamos os alimentos por sua capacidade de permitir ou não uma digestão fácil e agradável Ora é precisamente essa possibilidade de síntese e de equilíbrio entre o olho e a barriga a parte de cima do corpo e sua parte de baixo que a relação entre o cru e o cozido ajuda e consegue entre nós realizar Mas esses estados e suas concepções variam Para europeus e norte americanos cru e cozido alimento e comida são categorias científicas nem sempre levadas em conta no próprio ato de comer conforme nos revelam as imensas saladas e as comidas naturais que são digeridas em países como Estados Unidos e Inglaterra como pratos principais algo bem recente no Brasil Para nós o cru e o cozido podem significar com muito mais facilidade um universo complexo uma área do nosso sistema onde podemos nos enxergar como formidáveis e nos levar finalmente muito a sério Aqui contamos uma história para nós mesmos e essa é uma narrativa que admiramos e que nos permite que admiremos a nós mesmos para usarmos a fórmula de Clifford Geertz um sofisticado antropólogo americano Sabemos que somos tão bons em comida quanto em mulher ou futebol Aqui afirmamos entre sorrisos somos os melhores do mundo E como não poderia deixar de ser o mundo das comidas nos leva para casa para os nossos parentes e amigos para os nossos companheiros de teto e de mesa Essas pessoas que compartilham intensamente de nossa vida e intimidade Intimidade que se faz na casa e na mesa onde somos sempre e necessariamente tratados como alguém e temos direitos perpétuos de cidadania Nesse sentido o cru seria tudo que está fora dessa área da casa onde somos vistos e tratados com amor carinho e consideração podendo conseqüentemente escolher a comida Ou seja o cru é tudo aquilo que está fora do controle da casa Tudo que pode até mesmo estar oposto ao mundo da casa como uma área cruel e dura do mundo social Um espaço repleto de movimento contraditório onde as pessoas não se harmonizam entre si mas 36 disputam na competição uma espécie de batalha que se revela sobretudo no trabalho Já o cozido é algo social por definição Não é somente o nome de um processo físico o cozimento das coisas pelo fogo mas sobretudo o nome de um prato sagrado dentro da nossa culinária Prato aliás que diz tudo dessas metáforas que as comidas permitem realizar e que fazem desta sociedade o Brasil De fato no cozido temos o alimento que junta vegetais legumes e carnes variadas num prato que tem peso social muito importante pois que inventa a sua própria ocasião social Quando se come um cozido não se come um prato qualquer É que há no Brasil certos alimentos ou pratos que abrem uma brecha definitiva no mundo diário engendrando ocasiões em que as relações sociais devem ser saboreadas e prazerosamente desfrutadas como as comidas que elas estão celebrando E de modo tão intenso que não se sabe no fim se foi a comida que celebrou as relações sociais estando a serviço delas ou se foram os elos de parentesco compadrio e amizade que estiveram a serviço da boa mesa Tudo isso revela que a nossa concepção do cozido em oposição ao cru estabelece uma distinção entre coisas que são separadas e estanques individualizadas umas das outras e tudo isso é o cru ou faz parte do que é cru E o cozido é concebido como algo que permite a relação e a mistura de coisas do mundo que estavam eventualmente separadas Voltarei a esse problema mais adiante Agora é importante falar de outra distinção que segue a mesma estrada do cru e do cozido Quero me referir à distinção entre comida e alimento que é tão importante no sistema social brasileiro Realmente para nós saber comer é algo muito mais refinado do que o simples ato de alimentarse Os americanos sabemos inventaram a chamada fastfood alimento rápido e por causa disso mesmo podem comer em pé sentados com estranhos ou amigos sós ou acompanhados Comem também misturando o doce com o salgado e uma de suas preocupações básicas é com raras exceções comer para viver comer entre eles é um ato que pode ser profundamente individual Para nós brasileiros nem tudo que alimenta é sempre bom ou socialmente aceitável Do mesmo modo nem tudo que é alimento é comida Alimento é tudo aquilo que pode ser ingerido para manter uma pessoa viva comida é tudo que se come com prazer de acordo com as regras mais sagradas de comunhão 37 e comensalidade Em outras palavras o alimento é como uma grande moldura mas a comida é o quadro aquilo que foi valorizado e escolhido dentre os alimentos aquilo que deve ser visto e saboreado com os olhos e depois com a boca o nariz a boa companhia e finalmente a barriga O alimento é algo universal e geral Algo que diz respeito a todos os seres humanos amigos ou inimigos gente de perto ou de longe da rua ou de casa do céu ou da terra Mas a comida é algo que define um domínio e põe as coisas em foco Assim a comida é correspondente ao famoso e antigo de comer expressão equivalente à refeição como de resto é a palavra comida Por outro lado comida se refere a algo costumeiro e sadio alguma coisa que ajuda a estabelecer uma identidade definindo por isso mesmo um grupo classe ou pessoa É por termos essa concepção que nós brasileiros podemos dizer que queijo para nós é alimento mas é comida de ratos Logo rato queijo Falar de queijo então é implicar a idéia de rato já que esse alimento é algo irresistível para os ratos marcando sua identidade e personalidade Pela mesma lógica leite é alimento para os seres humanos mas é comida para nenéns E osso é comida de cachorro milho de galinha e sanduíche de americano Do mesmo modo sabemos que churrasco é comida de gaúcho prato que se come com os amigos e que requer certa intimidade e certo estar àvontade Mas qual é a comida brasileira básica Certamente que se trata do feijãocom arroz essa comida que é até mesmo usada como metáfora para a rotina do mundo diário Mas é preciso notar que tanto no arroz quanto no feijão temos um alimento que é cozinhado E que é comido como se come um cozido misturandose as duas porções num só prato e assim formando uma massa indiferenciada que assume as propriedades gustativas dos dois elementos De tal modo que o feijão que é preto deixa de ser preto e o arroz que é branco deixa também de ser branco A síntese é uma papa ou pirão que reúne definitivamente arroz e feijão construindo algo como um ser intermediário desses que a sociedade brasileira tanto admira e valoriza positivamente Comer arrozcomfeijão então é misturar o preto e o branco a cama e a mesa fazendo parte de um mesmo processo lógico e cultural Temos então alimento e temos comida Comida não é apenas uma substância alimentar mas é também um modo um estilo e um jeito de alimentarse E o jeito de comer define não só aquilo que é ingerido como também aquele que 38 ingere De fato nada mais rico na nossa língua que os vários significados do verbo comer em suas conotações Existem várias metáforas onde se usa a palavra comer ou comida e onde o ato de alimentar se tem significados precisos Assim falamos em pãoduro referindo nos a quem é avarento e para economizar come o pão dormido que fica obviamente duro Usamos a imagem do pão pão queijo queijo para separar coisas acontecimentos e pessoas pois não haveria nada mais distinto que o pão de origem vegetal e agrícola que vai ao forno e o queijo de origem animal e que se fabrica por meio de um processo de fermentação 39 natural Falamos também que alguém pode comer gato por lebre quando há uma confusão e uma mistura de pessoas coisas eventos Além disso podemos ter água na boca quando desejamos muito alguma coisa podemos ser apanhados com a boca na botija e quando somos vitoriosos estamos com a faca e o queijo na mão imagem que como aquela outra que fala de quem está por cima da carneseca indica a propriedade de recursos de poder e força Ademais podemos ser convidados para comes e bebes e sempre que falamos alguma coisa que não deve ser levada a sério falamos da boca pra fora O processo de ingestão equivalente lógico a falar da boca pra dentro é tão impossível representando uma metáfora de tudo que é inatingível ou absurdo O fato é que o comer a comida e os alimentos formam um código complexo uma verdadeira boca rica social que nos permite compreender como é que a sociedade brasileira se funde enquanto tal Assim comer do bom e do melhor denota mais do que alimentarse indicando um passadio de rico uma vida boa gostosa nobre Vida de político ou de milionário que vive em palácio e tem gasolina paga pelo erário público ou pela firma A comida vale tanto para indicar uma operação universal o ato de alimentarse quanto para definir e marcar identidades pessoais e grupais estilos regionais e nacionais de ser fazer estar e viver Em nossas casas sabemos perfeitamente bem quem gosta do quê e como esse alguém gosta de comer alguma coisa É ato de amor familial e conjugal servir o pai o irmão a mulher e os filhos mas também os subordinados e até mesmo visitantes esporádicos levando em conta o modo como gostam de comer os ovos o bife o arroz a salada e o feijão E chegando mesmo ao requinte de saber como as pessoas gostam de ter seus pratos arrumados arte que a mãe ou a donade casa conduz com precisão solicitude e enorme paciência Vovó adora pimenta papai gosta de carne no ponto titio só come com o arroz em cima do feijão dona Maria detesta tomate na sua salada Os exemplos poderiam ser multiplicados para indicar como a comida define as pessoas e também as relações que as pessoas mantêm entre si Nós brasileiros sentimos saudade de certas comidas e poderíamos perfeitamente dizer dizeme o que comes e dir teei quem és Mas há comida e comidas Falamos que mulher oferecida não é comida num trocadilho chulo mas revelador da associação intrigante para estrangeiros entre o ato sexual e o ato de ingerir alimentos Entre a mulher da rua a prostituta ou a mulher que controla e é dona de sua capacidade de sedução e sexualidade e certos tipos de alimento Assim a mulher que põe à 40 disposição do grupo da família seus serviços domésticos seus favores sexuais e sua capacidade reprodutiva tornamse a fonte de virtude que na sociedade brasileira se define de modo pastoral e santificado É a virgem a esposa e a mãe que reside nas casas e que jamais é comida ou poderá virar comida presa fácil de homens que se definem como sexualmente vorazes Ou melhor tais mulheres podem ser comidas mas primeiro são transformadas em noivas e esposas O bolo do casamento e o banquete que segue a cerimônia podem muito bem ser vistos como um símbolo dessa comida que será a noiva algo elaborado e sobretudo socialmente aprovado pelos homens do seu grupo Ora a mulher da rua essa que é a comida de todos é algo muito diferente conforme já assinalei acima Em contraste com a mãe a virgem e a boa esposa ela surge como aquela mulher que pode literalmente causar indigestão nos homens provocando a sua perturbação moral Dessas mulheres devese fugir diz a moral brasileira tradicional mas sem elas reza paradoxalmente essa mesma ética o mundo seria insosso como uma comida sem sal As mulheres da vida na nobre metáfora brasileira estão para as mulheres da morte assim como as comidas fáceis e potencialmente indigestas mas deliciosas na sua ingestão escondida e apaixonada estariam para as comidas caseiras que eventualmente podem perder a capacidade de deleitar servindo tãosomente para alimentar O fato é que as comidas se associam à sexualidade de tal modo que o ato sexual pode ser traduzido como um ato do comer abarcar englobar ingerir ou circunscrever totalmente aquilo que é ou foi comido A comida como a mulher ou o homem em certas situações desaparece dentro do comedor ou do comilão Essa é a base da metáfora para o sexo indicando que o comido é totalmente abraçado pelo comedor A relação sexual e o ato da comer portanto aproximamse num sentido tal que indica de que modo nós brasileiros concebemos a sexualidade e a vemos não como um encontro de opostos e iguais o homem e a mulher que seriam indivíduos donos de si mesmos mas como um modo de resolver essa igualdade pela absorção simbolicamente consentida em termos sociais de um pelo outro Assim a relação sexual na concepção brasileira coloca a diferença e a radical heterogeneidade para logo em seguida hierarquizalas no englobamento de um comedor e um comido E não se pode deixar de observar para quem estiver lendo estas linhas um tanto desavisado que o englobador tanto pode ser um homem esse seria o modelo ideal a formulação tradicional como também uma mulher se for ela quem atua buscando e querendo a relação 41 exercendo com isso um papel ativo Assim podese dizer que nas suas relações com as virgens e esposas ou mulheres que assim se definem socialmente os homens é que são os comedores mas nas suas relações com as mulheres do mundo e da vida ou com aquelas que se definem como independentes e individualizadamente eles são comidos O resultado é algo que reproduz em outro nível e outro plano a dialética da casa e da rua deste mundo e do outro da lei e da pessoa do malandro e do caxias da ordem rígida e do jeitinho que tudo resolve Num sentido muito geral e culturalmente valorizado falase sempre que quem come é o homem a mulher cozinha e dá os alimentos e a comida Mas como sugeri linhas atrás pode haver casos contrários onde o homem cai na panela de comida tal como na história de Dom Ratão que caiu na panela de feijão o conto de fadas sendo significativo para indicar de que modo a gula o desejo incontrolado pode levar o comedor a tornarse comida Mas podese afirmar sem correr o risco do exagero que mesmo hoje nesta era de transformação e mudanças rápidas o homem é o englobador do mundo da rua do mercado do trabalho da política e das leis ao passo que a mulher engloba o mundo da casa da família das regras e costumes relativos à mesa e à hospitalidade E isso se faz no simbolismo da cozinha espaço da casa teoricamente vedado aos homens e onde eles não devem entrar porque como diz a música popular é lugar só de mulher Não é pois por acaso que muitas figuras de nosso panteão mitológico são mulheres cozinheiras ou que sabiam usar as artes da culinária para conseguir uma posição social importante Gabriela e Dona Flor são cozinheiras de rara capacidade e estilo também Xica da Silva na criação cinematográfica de Cacá Diegues foi genial articuladora de temperos que usava como arma e requinte e sexualidade para transformar em dominado o dominantebranco comedor Gabriela cravo e canela O nome é suficiente para inspirar essas formas de fazer e esses estilos de preparar que os poderosos ignoram e só os fracos podem conhecer São segredos que permitem uma inversão do mundo fazendo com que a cabeça seja trocada pelo estômago e pelo sexo onde todos os homens se igualam e se deleitam Quero sugerir que essa equação de dois processos tão valorizados na sociedade brasileira com as mulheres é algo a ser pensado com muito cuidado Porque entre nós como em muitas outras sociedades a sexualidade e a arte de comer sobretudo a comensalidade que deve acompanhar a ação de ingerir 42 o alimento ainda não se transformaram em assuntos inteiramente individuais São ao contrário coisas fundamentalmente coletivas atos críticos de relacionamento e reprodução social Como verdadeiras comunhões onde o encontro transforma as pessoas nele engajadas porque faz com que todos participem de uma mesma substância comum o prato comido ou a pessoa amada que sabemos vira comida em nossa sociedade E as mulheres desempenham conforme sabemos um papel básico nesses dois processos Sobretudo nas nobres artes de comer nas quais aprendemos a exercer um gosto que nos vai acompanhar o resto da vida E comer é gostar e comer é também viver Daí a nossa forma especial de comer Nosso jeito brasileiro de apreciar a mesa grande faria alegre e harmoniosa Mesa que congrega liberdade respeito e satisfação Momento que permite orquestrar todas as diferenças e cancelar as mais drásticas oposições Na mesa realmente e através da comida comum comungamos uns com os outros num ato festivo e certamente sagrado Ato que celebra as nossas relações mais que nossas individualidades Daí por que ligamos intensamente a comida com os amigos Pois quem nos ampara quando comemos da banda podre e quem nos pode conseguir uma boca ou uma comilança no Estado ou no Governo Certamente que são os amigos esses nossos eternos companheiros de bródio gosto e mesa Companheiros O nome é rico para o que falamos Pois há quem diga que a palavra deriva do latim com pão quer dizer aqueles que juntos comem o pão E por isso estão relacionados Do mesmo modo será preciso indicar como é que nós brasileiros sempre privilegiamos comidas nacionais e preferimos sempre os alimentos cozidos Do cozido à peixada e à feijoada Da farofa ao pirão e aos molhos guisados e mexidos às dobradinhas e papas Parece que temos especial predileção pelo alimento que fica entre o líquido e sólido evitando nessas grandes refeições onde se celebram as amizades o assado alimento que não permite a mistura Daí também por que temos sempre que usar a farinha de mandioca em sua forma simples ou como farofa em todas as refeições De fato a farinha serve como o cimento a ligar todos os pratos e todas as comidas Enquanto ingleses e franceses usam molhos para pratos específicos nós temos comidas que são múltiplas com seus caldos molhos e sucos Mas é importante acentuar que a comida misturada é uma espécie de imagem perfeita da própria situação que 43 ela mesma engendra e ajuda a saborear E isso é desses traços mais importantes a transformar o ato de comer num gesto brasileiro Assim entre o sólido que caracteriza o prato principal das comidas européias e americanas e o líquido preferimos uma forma intermediária O cozido é sólido e líquido Entre a carne e a verdura que entram nos pratos europeus como comidas principais e secundárias somos muito mais dados a uma ligação entre os dois E o cozido e a feijoada certamente realizam isso de modo perfeito junto com a moqueca e a peixada onde também se pode reunir de tudo É claro que isso nos foi legado pelo mundo Ibérico que de fato enquadra toda a nossa cena culinária Mas também é claro que essa preferência denota uma forma evidente de escolha Tal como somos ligados à idéia de sermos um pais de três raças um pais mestiço e mulato onde tudo que é contrário lá fora aqui dentro fica combinado nossa comida revela essa mesma lógica Temos então uma culinária relacional que expressa de modo privilegiado uma sociedade igualmente relacional Isto é um sistema onde as relações são mais que mero resultado de ações desejos e encontros individuais pois aqui entre nós elas se constituem em muitas ocasiões em verdadeiros sujeitos das situações trazendo para elas o seu ponto de vista Um ponto de vista claro está que sintetiza sempre as posições de quem está engajado na própria relação No nosso mundo culinário o que privilegiamos não é o prato separado como na China ou no Japão nem a combinação de pratos separados que são fortes e descontínuos como na França e na Inglaterra mas isto sim a possibilidade de estabelecer também pela comida gradações e hierarquias permitindo escolhas entre uma comida ou prato que é central e dada de uma vez por todas a comida principal e seus coadjuvantes ou ingredientes periféricos que servem para juntar e misturar Temos então na nossa cozinha na nossa comida e no nosso modo de comer uma obsessão pelo código culinário relacional e intermediário Um código marcado pela ligação Do mesmo modo que na vida e na sociedade somos obcecados pelo amigo único certo e seguro nas horas em que precisamos de amparo e que jamais nos pode decepcionar cuspindo no prato em que comeu 44 5 O carnaval ou o mundo como teatro e prazer Todas as sociedades alternam suas vidas entre rotinas e ritos trabalho e festa corpo e alma coisas dos homens e assunto dos deuses períodos ordinários onde a vida transcorre sem problemas e as festas os rituais as comemorações os milagres e as ocasiões extraordinárias onde tudo pode ser iluminado e visto por novo prisma posição perspectiva ângulo Vivemos sempre entre esses momentos como passageiros que estão saindo de um evento rotineiro para a ocorrência fora do comum que por sua vez logo 45 pode tornarse novamente rotineira e fazer parte da paisagem do nosso irreflexivo cotidiano A viagem da rotina para o extraordinário porém depende de uma série de fatores Ela pode variar de sociedade para sociedade e pode ser realizada tanto coletiva quanto individualmente Nossa biografia se faz precisamente pela alternância de situações que foram esquecidas com situações que guardamos como tesouros ou cicatrizes em nossa cabeça e que formam o que denominamos memória De fato tal idéia traduz de maneira muito precisa essa verdadeira dialética entre o que é lembrado com saudade como maravilhoso formidável ou poético ao lado de tudo que foi vivido como doloroso trágico e ruim aquilo que na nossa existência entra como extraordinário positiva ou negativamente valorizado e os outros eventos que simplesmente não são lembrados perdendose nas sombras do passado e do tempo vivido e jamais recuperado Há pois um tempo lembrado que vira memória e saudade e um tempo simplesmente vivido que se vai e morre na distância do passado As sociedades e os grupos fazem coisas parecidas E a memória social isso que vulgarmente se chama tradição ou cultura que é sempre feita de uma história com H maiúsculo é também marcada por meio desses momentos que permitem alternâncias certas entre o que foi concebido e vivido como rotineiro e habitual e tudo aquilo que foi vivenciado como crise acidente festa ou milagre Pois o homem é o único animal que se constrói pela lembrança pela recordação e pela saudade e se desconstrói pelo esquecimento e pelo modo ativo com que consegue deixar de lembrar No Brasil como em muitas outras sociedades o rotineiro é sempre equacionado ao trabalho ou a tudo aquilo que remete a obrigações e castigos a tudo que se é obrigado a realizar ao passo que o extraordinário como próprio nome indica evoca tudo que é fora do comum e exatamente por isso pode ser inventado e criado por meio de artifícios e mecanismos Cada um desses lados permite esquecer o outro como as duas faces de uma mesma moeda E no entanto os dois fazem parte e constituem expressões ou reflexões de uma mesma totalidade uma mesma coisa Ou melhor tanto a festa quanto a rotina são modos que a sociedade tem de exprimirse de atualizarse concretamente deixando ver a sua alma ou o seu coração Na nossa sociedade temos grande consciência dessa alternância de tal modo que a vida para a maioria de nós se define sempre pela oscilação entre rotinas e 46 festas trabalho e feriado despreocupações e chateações dias felizes e momentos dolorosos vida e morte os dias de dureza e trabalho duro do mundo real e os dias de alegria e fantasia desse outro lado da vida constituído pela festa pelo feriado e pela ausência de trabalho para o outro o patrão o Governo o chefe o dono do negócio etc Realmente na festa comemos rimos e vivemos o mito ou utopia da ausência de hierarquia poder dinheiro e esforço físico Aqui todos se harmonizam por meio de conversas amenas e na construção da festa a música que congrega e iguala no seu ritmo e na sua melodia é algo absolutamente fundamental no caso brasileiro No trabalho porém estamos martelando e construindo batendo massa ou batendo perna para a companhia para a família para a mulher e os filhos para a honra da firma ou de alguma coisa que efetivamente exige o nosso sacrifício Para nós brasileiros a festa é sinônimo de alegria o trabalho é eufemismo de castigo dureza suor O trabalho sempre indica a idéia ou ideal da construção do homem pelo homem Um controle da vida e do mundo pela sociedade Todas as rotinas produtivas sobretudo nas sociedades protestantes e plenamente industrializadas são marcadas pela previsão e pela racionalidade Há um mínimo de interferência de fatores internos as emoções de quem trabalha são inteiramente controladas e externos o tempo e o espaço são igualmente mapeados com grande precisão de modo que o local de trabalho fica longe da casa É algo produzido para o próprio trabalho como uma fábrica ou usina Até mesmo no caso da produção agrícola ocorre essa diagramação de modo que a tentativa é sempre de criar uma seqüência onde o controle é total Não deve haver surpresas não deve haver acidentes não deve haver coisa alguma de extraordinário exceto obviamente o aumento da produção Quando ocorre algo que não diga respeito a esse fator então foi porque um acidente ocorreu E os acidentes aqui são medidos e estudados dentro da ideologia de segurança e controle que preside a todo triunfo da economia no nosso sistema De fato dentro dessa perspectiva podese até mesmo dizer que o grande acidente que hoje atinge uma fábrica é a greve ou seja o extraordinário criado por um dos fatores de produção a força de trabalho Na sociedade industrial a ausência de movimento é sintoma de malestar social O acidente aquilo que não foi planejado ou previsto é também sinal de que algo está indo mal Apesar de todas as medidas contra o extraordinário contra o acidente e contra a coincidência negativa porém sabemos que ela 47 acontece A palavra catástrofe que tanto usamos para definir tais situações significa precisamente reviravolta de modo que é perfeita para esses casos Aqui conforme estamos percebendo estamos diante de extraordinários não planejados e nãoprevistos pela sociedade Escapando do seu controle consciente esses eventos surgem como tragédias que nos atingem como catástrofes que colocam em causa nossa capacidade de organização e nossa possibilidade de sobrevivência como coletividade Furacões tempestades enchentes terremotos pestes inundações e coisas do gênero são situações fora da rotina mas são situações nãoplanejadas Quando o mundo é vivido desse modo ele deixa de fazer o sentido comum dando a impressão de que está no fim É a reviravolta do Dia do Juízo podemos pensar Mas é preciso acentuar que tais situações também promovem o encontro e a solidariedade entre os homens De fato diante da revolta imensa da natureza todos podem unirse fora de suas posições sociais e políticas rotineiras e assim fazendo podem encontrarse como irmãos de infortúnio ou seres humanos fazendo face à tremenda indiferença da natureza em relação à sociedade e não mais como patrões e empregados ricos e pobres homens e mulheres oprimidos e opressores Ao lado porém desses extraordinários que são acidentais que ninguém desejou e que não foram planejados pela sociedade existem momentos especiais que o próprio grupo planeja constrói inventa e espera Ambos é claro constróem a memória da sociedade mas são os segundos que servem como as verdadeiras roupagens pelas quais a sociedade cria e recria sua identidade social e suas tradições O momento fora do comum que é planejado e tem tempo marcado para acontecer portanto é um espelho muito importante pelo qual a sociedade se vê a si mesma e pode ser vista por quem quer que deseje conhecêla Todos os sistemas constróem suas festas de muitos modos No caso do Brasil a maior e mais importante mais livre e mais criativa mais irreverente e Mais popular de todas é sem dúvida o carnaval Aliás nessa festa a própria definição já perturba pois exclui de modo sistemático todos os elementos que nenhuma festa pode dispensar e que são importantes para o seu próprio desenrolar Quero referir me a todos os elementos de ordem de economia e política que o carnaval certamente implica como todo evento especial mas que ficam 48 necessariamente excluídos de sua definição De fato conforme sabemos como brasileiros o carnaval não pode ser sério Senão não seria um carnaval Mas como definir o carnaval Não seria exagero dizer é uma ocasião em que a vida diária deixa de ser operativa e por causa disso um momento extraordinário é inventado Ou seja como toda festa o carnaval cria uma situação em que certas coisas são possíveis e outras devem ser evitadas Não posso realizar um carnaval com tristeza do mesmo modo que não posso ter um funeral com alegria Certas ocasiões sociais requerem determinados sentimentos para que possam ocorrer como tais Tragédias são definidas como 49 eventos tristes e tudo que nelas ocorre de cômico deve ser inibido ou simplesmente ignorado Carnavais e comédias ao contrário são episódios em que o triste e o trágico é que devem ser banidos do evento como as roupas do rei que estava nu e não podia ser visto como tal Mas como é que o povo define e vê o Brasil no carnaval Qual a receita para o carnaval brasileiro Sabemos que o carnaval é definido como liberdade e como possibilidade de viver uma ausência fantasiosa e utópica de miséria trabalho obrigações pecado e deveres Numa palavra tratase de um momento onde se pode deixar de viver a vida como fardo e castigo É no fundo a oportunidade de fazer tudo ao contrário viver e ter uma experiência do mundo como excesso mas agora como excesso de prazer de riqueza ou de luxo como se fala no Rio de Janeiro de alegria e de riso de prazer sensual que fica finalmente ao alcance de todos A catástrofe que o carnaval brasileiro possibilita é a da distribuição teórica do prazer sensual para todos Tal como o desastre distribui o malefício ou a infelicidade para a sociedade sem escolher entre ricos e pobres como acontece normalmente o carnaval faz o mesmo só que ao contrário O Rei Momo Dioniso o Rei da Inversão da Antiestrutura e do Desregramento coloca agora uma possibilidade curiosa e por isso mesmo carnavalesca e impossível no mundo real das coisas serias e planificadas pelo trabalho E que ele sugere um universo social onde a regra é praticar sistematicamente todos os excessos Entre nós brasileiros realizar isso é poder descobrir que o carnaval é percebido como algo que vem de fora como uma onda irresistível que nos domina controla e melhor ainda seduz inapelavelmente Algo que chega até nós periodicamente sem que haja possibilidade de resistir É também descobrir que por causa disso mesmo todos são iguais ou podem ser iguais perante o carnaval Desse modo o carnaval com suas regras de inversão fica como que deslocado da realidade cotidiana podendo ser vivido como algo de fora e daí como algo que surge como uma regra ou lei natural que teria validade para todos independentemente de sua posição na estrutura social Ou apesar dela Ou por causa dela Mas que é isso que o carnaval consegue fazer com o Brasil Que extraordinário é esse que chamamos coletivamente de carnaval 50 Penso que o carnaval é basicamente uma inversão do mundo Uma catástrofe Só que é uma reviravolta positiva esperada planificada e por tudo isso vista como desejada e necessária em nosso mundo social Nele conforme sabemos trocamos a noite pelo dia ou o que é ainda mais inverossímil fazemos uma noite em pleno dia substituindo os movimentos da rotina diária pela dança e pelas harmonias dos movimentos coletivos que desfilam num conjunto ritmado como uma coletividade indestrutível e corporificada na música e no canto No carnaval trocamos o trabalho que castiga o corpo o velho tripalium ou canga romana que subjugava escravos pelo uso do corpo como instrumento de beleza e de prazer No trabalho estragamos submetemos e gastamos o corpo No carnaval isso também ocorre mas de modo inverso Aqui o corpo é gasto pelo prazer Daí por que falamos que nos esbaldamos ou liquidamos no carnaval Aqui usamos o corpo para nos dar o máximo de prazer e alegria Pela mesma lógica o carnaval permite a troca e a substituição dos uniformes pelas fantasias Sabemos que o uniforme como todas as vestes formais do mundo diário cria a ordem O uniforme é uma roupa que uniformiza isto é faz com que todos fiquem iguais sujeitos a uma mesma ordenação ou princípio de governo Mas a fantasia permite a invenção e a troca de posições Notese que no Brasil não falamos em máscaras mas em fantasias O nosso termo é mais abrangente em pelo menos dois sentidos muito precisos Primeiro ele diz mais do que algo que serviria apenas para tapar ou disfarçar o rosto ou o nariz Depois porque a palavra fantasia tem duplo sentido É algo em que se pode pensar acordado o sonho que se tem quando a rotina mais nos escraviza e revolta e também a roupa que só se usa no carnaval ou para uma situação carnavalizadora Assim ela permite que possamos ser tudo o que queríamos mas que a vida não permitiu Com ela e jamais com o uniforme conseguimos uma espécie de compromisso entre o que realmente somos e o que gostaríamos de ser O uniforme achata ordena e hierarquiza A fantasia liberta desconstrói abre caminho e promove a passagem para outros lugares e espaços sociais Ela permite e ajuda o livre trânsito das pessoas por dentro de um espaço social que o mundo cotidiano torna proibitivo com as repressões da hierarquia e dos preconceitos estabelecidos É a fantasia que permite passar de ninguém a alguém de marginal do mercado de trabalho a figura mitológica de uma história absolutamente essencial para a 51 criação do momento mágico do carnaval Se no mundo diário estamos todos limitados pelo dinheiro que se ganha ou não se ganha pelas leis da sociedade do mercado da casa e da família no carnaval e na fantasia temos a possibilidade do disfarce e da liberação Há a possibilidade de virar onipotente e ser tudo o que se tem vontade Ora é precisamente por estar vivendo num mundo assim constituído onde as regras do mundo diário estão temporariamente de cabeça para baixo que posso ganhar e realmente sentir uma incrível sensação de liberdade Sensação de liberdade que me parece fundamental numa sociedade cuja rotina é dominada pelas hierarquias que sujeitam a todos a uma escala complexa de direitos e deveres vindos de cima para baixo dos superiores para os inferiores dos elementos que entram na fila e das pessoas que jamais são vistas em público como comuns Realmente se no mundo diário somos governados pelo ditado e pela lógica social que diz cada macaco no seu ganho e também um lugar pra cada coisa cada coisa em seu lugar no carnaval criamos um cenário e uma atmosfera social onde tudo isso pode ser trocado de lugar invertido e subvertido pelas leis que comandam o reinado de Momo Não é por simples acaso que chamamos o carnaval e a cena carnavalesca de loucura O termo loucura aqui surge porque no carnaval tudo estaria fora de lugar carnavalizado como diz Bakhtin que introduziu esse conceito no estudo das manifestações do carnaval europeu para exprimir intelectualmente suas múltiplas vozes e textos De fato no caso do Brasil andamos pelas ruas do centro comercial de nossas cidades com a roupa que queremos e em pleno dia sem a menor preocupação de sermos atropelados ou vistos por nossos patrões pais ou amigos aristocráticos Muito pelo contrário ao sermos vistos eles é que correm o risco de serem seduzidos pela nossa investida carnavalesca Comemos e bebemos nas ruas trocando a casa pelo mundo público e ali realizando ações que são banidas do mundo social aberto Dormimos no asfalto em plena rua local perigoso e maldito com seu cotidiano cruel e movimentado mas estranhamente pacifico e seguro no carnaval Podemos até mesmo fazer amor com proteção oficial e policial pois Governo e polícia que durante todo o ano nos cobrem de impostos e compostura agora nos defendem e compreendem com simpatia o nosso desejo e a nossa humanidade carnavalesca ou melhor protegida pelo carnaval No carnaval nós cantamos e nos harmonizamos movimentando nossos corpos em ritmos acasalados em vez de reclamar discursar ou escrever Aqui a mensagem deixa de ser importante e o que vale é também o canto pelo canto a música pela música a 52 alegria pela alegria Como os fogos de artifício que explodem para o deleite dos olhos o discurso carnavalesco está também autoreferenciado Todos podemos assim virar poetas Além disso o carnaval obriga a uma grave sinceridade Não se pode freqüentar o carnaval sem vontade De fato posso ir a uma cerimônia oficial como uma formatura posse ou casamento sem sentir nada até mesmo achando tudo aquilo aborrecido e maçante Mas não posso fazer o mesmo se vou a um baile de carnaval onde corpo e alma devem estar juntos e serei punido se me mostrar bem comportado No carnaval nós brasileiros cantamos e geralmente podemos fazer o que cantamos o que permite que as pessoas se olhem e subitamente se vejam em sua unidade como pessoas e em sua diversidade como membros de uma comunidade social e politicamente diferenciada O diverso o diferente o universo da individualidade que é tão temido na vida diária é moeda corrente no carnaval onde todos podem surgir como indivíduos e como singularidade exercendo o direito de interpretar o mundo do seu jeito e a seu modo Igualmente a critica social que pode dar em prisão e censura é realizada abertamente tanto quanto a competição que todos temem como algo monstruoso mas é também aceita em todos os carnavais brasileiros feitos de inúmeros concursos De fato essa competição é tão aberta que há competição para tudo músicas fantasias maior capacidade de exibirse e naturalmente a disputa dos blocos e escolas de samba sobretudo no caso do Rio de Janeiro Aqui o mundo fica mesmo de cabeça para baixo Não somente porque as escolas são de gente pobre e que vive nos morros e subúrbios do Rio zonas que congregam a massa dos subempregados locais mas talvez por estarmos aqui para assistir a um monumental concurso público a uma fantástica competição onde tanto os jurados oficiais quanto o público em geral conhecem todas as regras e todos os meios de perder e vencer Coisa do outro mundo Algo extraordinário Claro que sim Numa sociedade que jamais vive a si mesma como um jogo ou concurso em que as pessoas podem mudar de lugar pelo próprio desempenho tudo isso é fora do comum Basta observar que nós brasileiros somos um povo marcado e dividido pelas ordens tradicionais o nome de família o titulo de doutor a cor da pele o bairro onde moramos o nome do padrinho as relações pessoais o ser amigo do Rei Chefe Político ou Presidente Tudo isso nos classifica socialmente de modo irremediável Jamais utilizamos o concurso público e a competição como algo normal entre nós daí o trabalho que é fazer uma eleição honesta e disputada Ela implica inclusive algo que evitamos dar opiniões e disputar 53 vontades revelando abertamente as nossas mais legítimas e ocultas diferenciações sociais Mas que coisa milagrosa Agora em plena festa carnavalesca podemos finalmente nos abrir para as nossas aspirações e associações revelando legitimamente os nossos desejos e vontades É o que faz esse concurso de escolas de samba que sabemos só pode ser ganho no pé Na base do desempenho do élan e da vontade de vencer Aqui os apadrinhamentos são policiados e o povo age como jamais pode realmente operar como juiz supremo que conhece as regras do jogo e as aplica com gana e justiça Carnaval pois é inversão porque é competição numa sociedade marcada pela hierarquia É movimento numa sociedade que tem horror à mobilidade sobretudo à mobilidade que permite trocar efetivamente de posição social É exibição numa ordem social marcada pelo falso recato de quem conhece o seu lugar algo sempre usado para o mais forte controlar o mais fraco em todas as situações É feminino num universo social e cosmológico marcado pelos homens que controlam tudo o que é externo e jurídico como os negócios a religião oficial e a política Por tudo isso o carnaval é a possibilidade utópica de mudar de lugar de trocar de posição na estrutura social De realmente inverter o mundo em direção à alegria à abundância à liberdade e sobretudo à igualdade de todos perante a sociedade Pena que tudo isso só sirva para revelar o seu justo e exato oposto 54 6 As festas da ordem As festas permitem descobrir oscilações entre uma visão alegre e uma leitura soturna da vida Permitem igualmente inventar temporalidades diferenciadas pois promovem uma duração muito rápida com tudo podendo acontecer no momento da festa como é o caso do carnaval ou muito lenta e pesada como acontece com quase todos os rituais da ordem ou formalidades Todas as festas ou ocasiões extraordinárias recriam e resgatam o tempo o espaço e as relações sociais Nelas aquilo que passa despercebido ou nem mesmo é visto como algo maravilhoso ou digno de reflexão estudo ou desprezo no quotidiano é ressaltado realçado alcançando um plano distinto Assim é na festa que tomamos consciência de coisas gratificantes e dolorosas Que não podemos comparecer porque não somos da mesma classe social que não podemos desempenhar papel importante porque não somos daquela corporação que somos bons dançarinos e que valsamos com graça e leveza pois na festa alguém assim nos disse que aquela moça é realmente linda 55 porque assim se apresentou no baile de formatura que nosso amigo é excelente orador porque foi a festa que o destacou como tal Como se observa são inúmeras as situações em que a festa promove a descoberta do talento da beleza da classe social do preconceito e da alegria Não seria possível esgotá las Mas posso distinguir e assim devo proceder as festas da ordem daquelas que promovem a desordem ou a orgia que fica no limite do crime e da revolta Sustento que no caso brasileiro todas as solenidades permitem ligar a casa a rua e outro mundo Só que cada uma delas faz essa ligação de modo específico e a partir de posições diferentes O carnaval liga casa rua e outro mundo querendo e propondo a abertura de todas as portas e de todas as muralhas e paredes Os ritos cívicos e religiosos as festas da ordem por excelência fazem o mesmo mas suas propostas são diferentes De fato nos carnavais e orgias o propósito básico parece ser o de igualar e juntar Seu objetivo é abolir todas as diferenças ou pelo menos foi assim que viu Bakhtin nas sociedades hierarquizadas Mas no caso das festas da ordem ou seja das formalidades sociais em que se celebram as relações sociais tal como elas operam no mundo diário as diferenças são mantidas Aqui ao contrário do carnaval o que se está celebrando é a própria ordem social com suas diferenças e gradações seus poderes e hierarquias Não se deseja virar o mundo de pernas para o ar colocandoo de cabeça para baixo mas o que se pretende é precisamente celebrar o mundo tal como ele é no quotidiano Daí por que em outro lugar no meu livro Carnavais malandros e heróis chamei os carnavais de ritos de inversão e os festivais da ordem de ritos de reforço Minha idéia era salientar essas propriedades estruturais de um e outro momento solene o carnaval promovendo a igualdade e a supressão de fronteiras e as festas cívicas e religiosas promovendo a sua glorificação e manutenção Desse modo os rituais religiosos partem de igrejas e locais sagrados pretendendo ordenar o mundo de acordo com os valores que são ali articulados como os mais básicos O mundo de Deus representado pela Igreja Católica e pelas formas de religiosidade que a ela se referem é um universo onde as coisas se ordenam de modo plenamente vertical De cima para baixo e de baixo para cima Com Deus a Virgem Maria os santos os anjos os mártires os beatos os sacerdotes e os fiéis formando uma cadeia do altarmor onde essa verticalidade está instituída até o adro da igreja onde as pessoas se espalham misturando o profano com o sagrado Aqui a ordem é 56 paradoxalmente salientada e ao mesmo tempo negada pois conforme sabemos a Igreja declara explicitamente que seu reino não é deste mundo mas do outro E Deus os santos e a Virgem podem interceder e agraciar com sua ajuda qualquer pessoa Eles são patrocinados pelas igrejas mas a Igreja ou igrejas não os possui nem pode controlar suas ações Ela pode interpretá los mas suas vozes têm códigos próprios que a própria Igreja pode desconhecer embora deva saber reconhecer Desse modo o espaço religioso demarca uma área onde é possível encontrar o rico e o pobre o poderoso e o fraco o sadio e o aleijado o homem e a mulher o adulto e a criança o santo e o pecador o crente fervoroso e o freqüentador esporádico e distante O patrocínio ou patronagem dos santos e deuses cria essas regiões neutras mas hierarquicamente ordenadas onde existe uma espécie de carnaval devoto ou terra de ninguém já que todos podem encontrarse com todos dentro desse espaço Mas é preciso acentuar que essa carnavalização ou troca de lugar nada tem a ver com excessos ou com a possibilidade de virar o mundo de cabeça para baixo Ao contrário nos ritos da ordem em geral e nos rituais religiosos em particular o comportamento é marcado pela contrição e pela solenidade que se concretizam nas contenções corporais e verbais O corpo então na Igreja e nas solenidades da ordem é marcado pela rigidez dos gestos e por formas obrigatórias de gesticulação São maneiras de marcar a contenção e de promover a uniformidade e a tranqüila obediência dos fiéis ou servidores já que tudo isso conduz a uma visão ordenada da própria ocasião formal Também é possível que tais formas de ritualização pretendam assegurar o respeito a qualquer preço pois a contenção do corpo significa de certo modo a liberdade do espírito que pode ou não estar presente com a mesma convicção na solenidade Assim eu posso estar ajoelhado numa igreja mas ter meu espírito muito longe dali o que no caso de um ritual orgiástico é impossível dada a solicitação em que o corpo e o espírito estão implicados De fato num almoço com os amigos ou num baile de carnaval não posso deixar de me envolver A festa carnavalesca requer tudo de mim meu corpo e minha alma minha vontade e minha energia Mas as festas da ordem parecem dispensar essa motivação totalizada Daí talvez essas regras rígidas de contenção corporal verbal e gestual nos ritos da ordem O poder do sagrado conforme dizia o sociólogo francês Émile Durkheim é um poder que permite distinguir o mundo diário com suas rotinas automáticas e que tendem a uma inércia e uma indiferenciação cada vez maiores esse sistema de coisas que eram chamadas de profanas das coisas e do universo 57 de Deus e do Alto Para separar um dos outros nada melhor que os sinais de respeito e de contenção física e social andar na ponta dos pés falar baixinho usar uma linguagem diferente exótica ou morta como o latim ou o hebraico vestir roupas especiais também antigas ou totalmente diferentes dos costumes do mundo diário roupas que transformam o masculino em algo ambíguo ou o feminino em alguma coisa neutra A leitura da sociedade facultada pelos ritos da ordem então é uma leitura onde o corpo deve ser contido ou até mesmo neutralizado A continência militar é excelente exemplo disso pois os ritos da ordem incluem também as grandes comemorações militares como as paradas que são formas típicas de comemoração social em que o universo da sociedade é lido ou apresentado a partir do código do Estado na sua vertente mais forte mais ordenada e talvez por isso mesmo mais patriótica a de suas Forcas Armadas que desfilam em saudação formal às autoridades constituídas De acordo com isso lembro que a palavra continência significa um ato cujo sentido profundo é precisamente ode conterse controlarse dominarse Tudo isso é salientado com precisão em todos os ritos da ordem sejam cívicos ou religiosos onde a idéia de sacrificar o corpo um centro de prazer dado imediatamente pela experiência humana pela pátria por Deus ou por um partido político acaba se exprimindo pela noção de dever de devoção e de ordem O que contrasta tremendamente com os rituais carnavalescos onde ocorre exatamente o oposto já que no carnaval os valores salientados são o prazer pelo corpo daí sua capacidade igualitária e grotesca e com isso a desordem obtida através dele que conduz a uma radical transformação temporária mas intensa da estrutura social Nas festas da ordem a ênfase é sempre colocada na ordem na regularidade na repetição na marcha ordeira no cântico cadenciado no controle do corpo que repito remete à idéia de sacrifício e disciplina esses dois ingredientes básicos da promessa Aqui o mundo é englobado e apresentado pelas posições sociais que a sociedade considera importantes Seu foco é nas autoridades de Deus Pátria Saúde Educação e Instrução Nisso eles revelam ampliando as diferenciações sociais já existentes no mundo diário onde as pessoas eletivamente se distinguem por meio de cadeias hierárquicas que indicam e revelam sua importância na reprodução da ordem social conhecida Desse modo se uma pessoa é presidente governador senador deputado secretário juiz ou professor é exatamente assim que deve aparecer nos ritos da ordem 58 Pela mesma lógica e seguindo o mesmo principio do reforço e da ampliação se a pessoa não tem qualquer autoridade ou posição social e faz parte daquilo a que chamamos genericamente povo é deste lado que deve ficar Entre autoridades e povo nessas ocasiões solenes e formais há uma clara divisão Seja uma cerca seja um espaço vazio seja um palanquim ou outra construção qualquer que permita imediatamente saber quem é quem pois os ritos da ordem não admitem a confusão de papéis ou posições Tais distinções ocorrem até mesmo nas grandes procissões onde uma grossa corda separa o santo ou santa e as autoridades eclesiásticas civis e militares que estão em sua volta geralmente carregando juntas o andor do povo em geral que está ao redor e que forma um oceano generalizado de devotos que se misturam Foi por perceber esse centro tão ordenado e esse resto tão carnavalescamente desordenado que eu já afirmei anteriormente que aqui tínhamos uma estrutura de tipo cometa Algo que possuía um centro voltado para a ligação formal entre o céu e a terra mas por meio das autoridades constituídas que por sua vez se ligavam ao povo em geral na forma de uma bela se não contundente dramatização da hierarquia e da autoridade Daí por que nas procissões o povo força a corda para passar para o lado das autoridades e para perto do santo De fato pular a corda ou passar por ela significa nesse contexto simbólico uma mudança significativa de posição social Se os ritos da desordem promovem temporárias desconstruções ou re arrumações sociais os ritos da ordem marcam de forma taxativa quem é ator e quem é espectador Aqui não há a menor possibilidade de trocar de lugar exceto é claro pela quebra do protocolo E realmente a palavra protocolo revela esse código rígido que todos devem seguir para que o cerimonial possa dar certo Ou seja para que o ritual possa ser um momento coerente de ordem perfeita e sem aquelas dissonâncias que o mundo diário é mestre em nos apresentar É justamente esse resgate da ordem que tais rituais pretendem realizar por meio dessas dramatizações Daí certamente a associação entre cerimonial e poder É que o ritual reveste o poder dandolhe uma forma exterior solene e legitima De modo que todos os rituais sempre assumem a forma básica de um desfile procissão ou parada militar formas de apresentação social desinibida e exuberante onde as corporações que passam e se apresentam revelamse em todo o seu esplendor ou miséria No Brasil significativamente usamos a palavra desfile para o caso do carnaval parada para as comemorações cívicas ligadas à nossa Independência e procissão para as festividades religiosas Todas elas têm 59 sempre um ponto de partida formalizado e preestabelecido e um ponto de chegada igualmente fixado Nas procissões como nas paradas militares a partida é um centro físico e social de autoridade e poder religioso ou militar uma igreja ou quartel Seu roteiro por outro lado marca uma área onde se sacraliza um dado espaço da cidade que por isso mesmo acaba se tornando nobre ou sagrado É um espaço que deve ficar aberto ao ritual e em conseqüência fechado às atividades de rotina do mundo diário No caso do Rio de Janeiro cidade que vou tomar como exemplo as paradas militares quase sempre se realizam em frente ao Panteão do Exército Nacional local situado em frente ao Ministério da Guerra onde estão sepultados os restos mortais do Duque de Caxias patrono do Exército Brasileiro e das Forças Armadas em geral Não poderia existir local mais sagrado que esse em termos da nossa História Além disso o desfile militar apresenta uma dramatização da guerra do mesmo modo que a procissão dramatiza as hierarquias celestes De fato no desfile os soldados se apresentam com suas armas comandados por seus superiores mas de modo rigorosamente ordeiro Dão uma demonstração de obediência disciplina e ordem como a revelar a sua disposição de cumprir seu dever de defender a Pátria a qualquer custo se isso for realmente necessário Todos os Estados nacionais modernos têm essas formas de desfile embora apresentem importantes variações que denunciam diversidades políticas e sociais significativas Por exemplo o dia da pátria nos Estados Unidos é uma festa pública sem dúvida mas que raramente é comemorada com um desfile ou parada militar Lá sua forma mais comum de celebração são os piqueniques realizados por famílias que juntas vão para os parques e jardins das cidades acenar bandeiras disparar foguetes ou simplesmente comer e calmamente conversar No caso brasileiro as paradas militares são ponto importante daquilo que denominei triângulo ritual De fato na nossa sociedade temos o desfile militar para as autoridades ou melhor como rito destinado a celebrar a relação do Estado com o povo Temos as procissões que focalizam as relações dos homens com Deus através da Igreja E temos finalmente o desfile do carnaval que faz o povo ser ao mesmo tempo espectador e ator Em todos os casos a sociedade celebra aquilo que certamente considera fundamental para a sua estrutura social e o que é interessante apontar no caso brasileiro para cada instituição importante há um lugar e uma forma dramática de apresentação ritual Temos então numa fórmula muito simplificada o Estado com seu poder visitando o povo Deus e os seus santos saindo da esfera 60 sagrada para também visitarem o mundo profano das cidades e finalmente o povo apresentandose a si mesmo como alegre forte galante elegante e luxuoso nos desfiles carnavalescos Nada me parece mais funcional que essa forma de vivenciar os valores Mas os rituais da ordem não se esgotam nessas festas grandiosas em que o mundo social é reafirmado e englobado pelo Estado e pela Igreja Eles também estão presentes em situações muito mais familiares a todos nós como as festas de formatura e os ritos de posse em cargos públicos em que uma mesa geralmente separa as pessoas que são o foco do cerimonial e os seus convidados e em todas as crises de vida e ritos de passagem em geral como nascimentos batizados crismas casamentos e funerais Nessas ocasiões que também são solenes a troca de discursos o uso de roupas especiais a existência de representantes duplos como ocorre nas festas de formatura permitem descobrir esses mesmos elementos que exageram a ordem social constituída e aparente e também a contenção dos gestos e do comportamento em geral Também aqui há um idioma especial facilmente aprendido nos lugarescomuns de uma retórica que todo adulto pode repetir sem esforço E há também os gestos típicos e os objetos indispensáveis como o anel de grau no caso das formaturas as alianças no caso dos casamentos e o bolo de aniversário no caso da passagem de idade Em geral todas essas festas comemoram ou celebram alguma coisa que supomos realmente aconteceu A vida de um santo é uma história exemplar a ser imitada pelos homens e a procissão que ao santo se dedica diz um pouco dessa caminhada terrena para o Céu reproduzindoa numa espécie de teatro cristão que é o ritual religioso Do mesmo modo em formaturas e aniversários casamentos e funerais resgatase sempre algum tipo de exemplo alguma forma de modelo seja para o aniversariante ou formando seguir seja para que seus parentes e amigos possam ser consolados O homem é um animal que busca o sentido em tudo esta é sua sina E tais ocasiões são situações privilegiadas em que os grupos se comprazem na busca de um sentido profundo para suas vidas Sentido que assegura de certo modo a continuidade da vida coletiva mesmo quando ameaçada pela extinção como é o caso dos rituais funerários As festas patrocinadas pelo Estado como as comemorações da Independência também celebram uma ocorrência real o nascimento de uma nação e por isso são eventos paradigmáticos que justificam a importância da data Aqui 61 estamos diante de um rito de calendário coletivo um aniversário e uma formatura nacional Evento que congrega simultaneamente numa espécie de síntese uma série de ritos de passagem É morte de uma relação o elo colonial é nascimento de outra vida o país que se torna independente É também carnaval libertador cerimonial instaurador e inaugurador É solenidade profana ligada ao poder e à vontade dos homens e igualmente rito sagrado onde se agradece a ajuda de Deus pelo desfecho favorável de um movimento de ruptura que geralmente é marcado pela violência Tudo isso permite notar que os ritos da ordem têm um centro Seja um evento seja um personagem seja um objeto neles existe como centro uma cena básica que deve estruturar o rito como um todo além de ações e cenários periféricos Isso fica muito claro em aniversários formaturas e funerais onde há um centro e um momento culminante sem o qual não se tem nem mesmo a necessidade de proceder ao drama O caso da festa de aniversário é um bom exemplo disso pois a mesa e o bolo são aqui personagens centrais sendo parte de seu ponto culminante que tem a ver com a forma ritualizada como se ingere um produto profundamente identificado com o aniversariante sendo seu representante simbólico Desse modo o bolo do aniversariante e o número de velas que o enfeitam e que queimam correspondem ao número de anos que foram queimados na própria vida de quem está sendo homenageado Bolo e pessoa assim são uma só pessoa moral E essa pessoa é comida simbolicamente por todos num ato pleno de comunhão e de divisão física que vem cimentar ritualmente os elos sociais entre aniversariante e convidados De interesse aqui é indicar que as pessoas estão todas distribuídas ao longo desse centro que ao contrário do carnaval onde o mundo é fragmentado e descentralizado e muita coisa ocorre ao mesmo tempo possui um sincronismo uma coordenação com o evento central Isto é ludo acontece de modo orquestrado e em equilíbrio com o evento centralizador de todas as atenções Assim enquanto não se pode jamais chegar atrasado a uma festa carnavalesca pois o evento começa quando se chega nos ritos da ordem se corre sempre o risco dessa perda Isso prova que tais solenidades talvez sejam mais legitimadoras do que simplesmente comemorativas donde a importância da presença e da atenção de todos a seus eventos centrais Tudo isso nos fala de um ritmo social um movimento que indica algo como um oscilar entre forma e conteúdo centro e periferia continência física e excesso Como o tiquetaque de um relógio ou a batida de um coração ou o 62 bumbo de carnaval ou as máscaras que são postas e tiradas na revelação de que os homens vivem entre as coisas Eternos ritualizados sempre passageiros 63 7 O modo de navegação social a malandragem e o jeitinho Entre a desordem carnavalesca que permite e estimula o excesso e a ordem que requer a continência e a disciplina pela obediência estrita às leis como é que nós brasileiros ficamos Qual a nossa relação e a nossa atitude para com e diante de uma lei universal que teoricamente deve valer para todos Como procedemos diante da norma geral se fomos criados numa casa onde desde a mais tenra idade aprendemos que há sempre um modo de satisfazer nossas vontades e desejos mesmo que isso vá de encontro às normas do bom senso e da coletividade em geral 64 Num livro que escrevi Carnavais malandros e heróis lancei a tese de que o dilema brasileiro residia numa trágica oscilação entre um esqueleto nacional feito de leis universais cujo sujeito era o indivíduo e situações onde cada qual se salvava e se despachava como podia utilizando para isso o seu sistema de relações pessoais Haveria assim nessa colocacão um verdadeiro combate entre leis que devem valer para todos e relações que evidentemente só podem funcionar para quem as tem O resultado é um sistema social dividido e até mesmo equilibrado entre duas unidades sociais básicas o indivíduo o sujeito das leis universais que modernizam a sociedade e a pessoa o sujeito das relações sociais que conduz ao pólo tradicional do sistema Entre os dois o coração dos brasileiros balança E no meio dos dois a malandragem o jeitinho e o famoso e antipático sabe com quem está falando seriam modos de enfrentar essas contradições e paradoxos de modo tipicamente brasileiro Ou seja fazendo uma mediação também pessoal entre a lei a situação onde ela deveria aplicarse e as pessoas nela implicadas de tal sorte que nada se modifique apenas ficando a lei um pouco desmoralizada mas como ela é insensível e não é gente como nós todo mundo fica como se diz numa boa e a vida retorna ao seu normal 65 De fato como é que reagimos diante de um proibido estacionar proibido fumar ou diante de uma fila quilométrica Como é que se faz diante de um requerimento que está sempre errado Ou diante de um prazo que já se esgotou e conduz a uma multa automática que não foi divulgada de modo apropriado pela autoridade pública Ou de uma taxação injusta e abusiva que o Governo novamente decidiu instituir de modo drástico e sem consulta Nos Estados Unidos na França e na Inglaterra somente para citar três bons exemplos as regras ou são obedecidas ou não existem Nessas sociedades sabese que não há prazer algum em escrever normas que contrariam e em alguns casos aviltam o bom senso e as regras da própria sociedade abrindo caminho para a corrupção burocrática e ampliando a desconfiança no poder público Assim diante dessa enorme coerência entre a regra jurídica e as práticas da vida diária o inglês o francês e o norteamericano param diante de uma placa de trânsito que ordena parar o que para nós parece um absurdo lógico e social pelas razões já indicadas Ficamos pois sempre confundidos e ao mesmo tempo fascinados com a chamada disciplina existente nesses países Aliás é curioso que a nossa percepção dessa obediência às leis universais seja traduzida em termos de civilização e disciplina educação e ordem quando na realidade ela é decorrente de uma simples e direta adequação entre a prática social e o mundo constitucional e jurídico É isso que faz a obediência que tanto admiramos e também engendra aquela confiança de que tanto sentimos falta Porque nessas sociedades a lei não é feita para explorar ou submeter o cidadão ou como instrumento para corrigir e reinventar a sociedade Lá a lei é um instrumento que faz a sociedade funcionar bem e isso começamos a enxergar já é um bocado Claro está que um dos resultados dessa confiança é uma aplicação segura da lei que por ser norma universal não pode pactuar com o privilégio ou com a lei privada aquela norma que se aplica diferencialmente se o crime ou a falta foi cometida por pessoas diferencialmente situadas na escala social Isso que ocorre diariamente no Brasil quando digamos um bacharel comete um assassinato e tem direito a prisão especial e um operário diante da mesma lei não tem tal direito porque não é obviamente bacharel A destruição do privilégio engendrou uma justiça ágil e operativa na base do certo ou errado Uma justiça que não aceita o maisoumenos e as indefectíveis gradações e hierarquias que normalmente acompanham a ritualização legal brasileira que 66 para todos os delitos estabelece virtualmente um peso e uma escala Assim aqui todos podem ser primários ou não e os crimes admitem graus de execução estando de acordo com o princípio hierárquico que governa a sociedade Sustento que é precisamente essa possibilidade de gradação que permite a interferência das relações pessoais com a lei universal dandolhe em cada caso uma espécie de curvatura específica que impede sua aplicabi lidade universal que tanto clamamos e reclamamos Por tudo isso somos um país onde a lei sempre significa o não pode formal capaz de tirar todos os prazeres e desmanchar todos os projetos e iniciativas De fato é alarmante constatar que a legislação diária do Brasil é uma regulamentação do não pode a palavra não que submete o cidadão ao Estado sendo usada de forma geral e constante Ora é precisamente por tudo isso que conseguimos descobrir e aperfeiçoar um modo um jeito um estilo de navegação social que passa sempre nas entrelinhas desses peremptórios e autoritários não pode Assim entre o pode e o não pode escolhemos de modo chocantemente antilógico mas singularmente brasileiro a junção do pode com o não pode Pois bem é essa junção que produz todos os tipos de jeitinhos e arranjos que fazem com que possamos operar um sistema legal que quase sempre nada tem a ver com a realidade social O jeito é um modo e um estilo de realizar Mas que modo é esse É lógico que ele indica algo importante É sobretudo um modo simpático desesperado ou humano de relacio nar o impessoal com o pessoal nos casos ou no caso de permitir juntar um problema pessoal atraso falta de dinheiro ignorância das leis por falta de divulgação confusão legal ambigüidade do texto da lei má vontade do agente da norma ou do usuário injustiça da própria lei feita para uma dada situação mas aplicada universalmente etc com um problema impessoal Em geral o jeito é um modo pacífico e até mesmo legítimo de resolver tais problemas provocando essa junção inteiramente casuística da lei com a pessoa que a está utilizando O processo é simples e até mesmo tocante Consta de um drama em três atos que todos conhecem 1 Ato Uma pessoa que não é vista por ninguém ignorada em razão de sua aparência e modo de apresentação chega a um local para ser atendida por um servidor público que é uma autoridade e dela está imbuído A autoridade não sabe quem é a pessoa que chegou e nem quer saber Essa distinção entre 67 a humildade de quem chega e a superioridade de quem está protegido pelo balcão da instituição é aliás um elemento forte na hierarquização das posições sociais Pois bem o humilde cidadão chega e pede o que deseja 2 Ato O funcionário custa a atender a solicitação Diz que não pode ser assim e ainda complica mais as coisas indicando as confusões do solicitante e as penalidades legais a que poderá estar sujeito Criase então um impasse Diante de um usuário honesto há a opinião do funcionário que re presenta a lei e por isso mesmo não enxerga qualquer razão pessoal ou humana para tratar o solicitante de modo agradável De fato a lei e o fato de ele ser o seu representante cegao completamente para essas razões humanitárias que decerto estabeleceriam e seriam parte e parcela de uma concepção de cidadania positiva isto é uma cidadania na qual os indivíduos têm os seus direitos assegurados e respeitados em todas as situações Nessa situação o solicitante não é nada É apenas um indivíduo qualquer que como um número um caso complicado um estorvo ou um requerimento solicita algo Temos aqui um alguém que é ninguém Ele obviamente representa o humano e o pessoal numa situação impessoal e geral 3 Ato Diante do impasse pois o funcionário diz que não pode e o cidadão deseja resolver o seu caso há a solução que denuncia e ajuda a ver o mapa de navegação social Nos países igualitários não há muita discussão ou se pode fazer ou não se pode No Brasil porém entre o pode e o não pode encontramos um jeito Na forma clássica do jeitinho solicitase precisamente isso um jeitinho que possa conciliar todos os interesses criando uma relação aceitável entre o solicitante o funcionárioautoridade e a lei universal Geralmente isso se dá quando as motivações profundas de ambas as partes são conhecidas ou imediatamente quando ambos descobrem um elo em comum Tal elo pode ser banal torcer pelo mesmo time ou especial um amigo comum ou uma instituição pela qual ambos passaram ou ainda o fato de se ter nascido na mesma cidade A verdade é que a invocação da relação pessoal da regionalidade do gosto da religião e de outros fatores externos àquela situação poderá provocar uma resolução satisfatória ou menos injusta Essa é a forma típica do jeitinho e há pessoas especialistas nela Uma de suas primeiras regras e não usar o argumento igualmente autoritário o que também pode ocorrer mas que leva a um reforço da má 68 vontade do funcionário De fato quando se deseja utilizar o argumento ou melhor contraargumento da autoridade contra o funcionário o jeitinho é um ato de força que no Brasil é conhecido como o famoso e escondido sabe com quem está falando Aqui ao contrário do jeitinho e quase como o seu simétrico e inverso não se busca uma igualdade simpática ou uma relação contínua com o agente da lei que está por trás do balcão Mas isso sim buscase uma hierarquização inapelável entre o usuário e o atendente De tal modo que diante do não pode do funcionário encontrase um não pode do não pode feito pela invocação do sabe com quem está falando Sou filho do Ministro e pronto gerase logo um tremendo impasse auto ritário que dependerá para a sua solução dos devidos trunfos de quem está implicado no drama De qualquer modo um jeito foi dado Uma forma de resolução foi obtida E a ligação entre a lei e o caso concreto fica realizada satisfatoriamente para ambas as partes Jeitinho e você sabe com quem está falando são pois os dois pólos de uma mesma situação Um é um modo harmo nioso de resolver a disputa o outro é um modo conflituoso e um tanto direto de realizar a mesma coisa O jeito tem muito de cantada de harmonização de interesses aparentemente opostos tal como ocorre quando uma mulher encontra um homem e ambos interessados num encontro romântico devem discutir a forma que esse encontro deverá assumir O sabe com quem está falando por seu lado afirma um estilo diferente onde a autoridade é reafirmada mas com a indicação de que o sistema é escalonado e não tem uma finalidade muito certa ou precisa Há sempre outra autoridade ainda mais alta a quem se poderá recorrer E assim as cartas são lançadas A malandragem como outro nome para a forma de navegação social nacional faz precisamente o mesmo O malandro portanto seria um profissional do jeitinho e da arte de sobreviver nas situações mais difíceis Aqui também temos esse relacionamento complexo e criativo entre o talento pessoal e as leis que engendram no caso da malandragem o uso de expedientes de histórias e de contosdovigário artifícios pessoais que nada mais são que modos engenhosos de tirar partido de certas situações igualmente usando o argumento da lei ou da norma que vale para todos como ocorre no conto da venda do bilhete de loteria premiado Aqui o malandro deseja vender um bilhete premiado pela quarta parte do seu preço justo e arma uma situação onde será fatalmente a vítima Mas o fato é que o 69 comprador é que será roubado A situação se arma precisamente pelo uso abusivo e desonesto das listas oficiais da loteria que legitimam o prêmio e pelos deveres de parentesco que obrigam na história do malandro a uma viagem inesperada donde a necessidade de vender um bilhete premiado Nessa estrutura típica de um contodovigário notase a mesma contradição entre a impessoalidade da loteria e da sorte e a pessoalidade das relações pessoais que se dão em vários níveis O drama reside precisamente no modo especial de conjugar o pessoa com o impessoal Do lado do malandro e como o seu oposto social temos a figura do despachante esse especialista em entrar em contato com as repartições oficiais para a obtenção de documentos que normalmente implicam as confusões que mencionei linhas antes ao descrever detalhadamente o jeitinho O despachante como figura sociológica só pode ser visto em sua enorme importância quando novamente nos damos conta dessa enorme dificuldade brasileira de juntar a lei com a realidade social diária Assim o despachante parece mais um padrinho Tal como o padrinho ele é um mediador entre a lei e uma pessoa Do mesmo modo que um patrão deve dar emprego e boas condições de trabalho a seus empregados o despachante deve guiar seus clientes pelos estreitos e perigosos meandros das repartições oficiais fazendo com que sigam o caminho certo Só que o despachante é um padrinho para baixo Digo para baixo porque as classes média e alta do Brasil têm verdadeira aversão a tudo que a faça sentirse como pessoa comum indivíduo sujeito a rejeições e desagradáveis encontros com autoridades sem o menor traco de boa vontade Assim se não se tem um amigo ou uma relação que possa imediatamente facultar o jeitinho contratase um despachante que realiza precisamente essa tarefa Por tudo isso não há no Brasil quem não conheça a malandragem que não é só um tipo de ação concreta situada entre a lei e a plena desonestidade mas também e sobretudo é uma possibilidade de proceder socialmente um modo tipicamente brasileiro de cumprir ordens absurdas uma forma ou estilo de conciliar ordens impossíveis de serem cumpridas com situações específicas e também um modo ambíguo de burlar as leis e as normas sociais mais gerais A possibilidade de agir como malandro se dá em todos os lugares Mas há uma área onde certamente ela é privilegiada Quero referirme à região do prazer e da sensualidade zona onde o malandro é o concretizador da boêmia 70 e o sujeito especial da boa vida Aquela existência que permite desejar o máximo de prazer e bemestar com um mínimo de trabalho e esforço O malandro então conforme tenho acentuado em meus estudos é uma personagem nacional É um papel social que está à nossa disposição para ser vivido no momento em que acharmos que a lei pode ser esquecida ou até mesmo burlada com certa classe ou jeito No Brasil então podemos ser caxias ou autoritários como personagens típicos do mundo das leis e da ordem podemos ser renunciadores e beatos que querem estar fora deste mundo quando somos religiosos e pretendemos fundar um modo de existência paralelo e podemos também ser malandros e jeitosos políticos hábeis e sagazes quando não enfrentamos a lei com a sua modificação ou rejeição frontal mas apenas a dobramos ou simplesmente passamos por cima dela Quer dizer tal como acontece com o seu modo de andar o malandro é aquele que como todos nós sempre escolhe ficar no meio do caminho juntando de modo quase sem pre humano a lei impessoal e impossível com a amizade e a relação pessoal que dizem que cada homem é um caso e cada caso deve ser tratado de modo especial Mas não ficamos somente nisso Temos grandes arquétipos da malandragem figuras que desenharam como ninguém o papel e o tipo Gente como Pedro Malasartes que foi capaz de realizar uma série de transformações impossíveis ao homem comum Assim ele superou a exploração econômica e política do seu trabalho condenando o fazendeiro que o espoliava Conseguiu também transformar a imobilidade da miséria numa venturosa vida de viajante sem pouso ou casa situação de onde pode sempre enxergar tudo e ganhar novas experiências Pedro Malasartes foi também capaz de proezas incríveis como explorar os ricos vender merda como se fosse riqueza e levar a honestidade ao meio de pessoas desonestas Suas aventuras nos indicam que a vida contém sempre o bom e o mau o lado humano e o desumano estando misturados de modo irremediável em todos e tudo Assim Pedro Malasartes como todos os malandros talvez nos diga que é preciso tomar consciência desses dois lados para poder escolher uma vida humanamente digna A malandragem assim não é simplesmente uma singularidade inconseqüente de todos nós brasileiros Ou uma revelação de cinismo e gosto pelo grosseiro e pelo desonesto É muito mais que isso De fato 71 tratase mesmo de um modo jeito ou estilo profundamente original e brasileiro de viver e às vezes sobreviver num sistema em que a casa nem sempre fala com a rua e as leis formais da vida pública nada têm a ver com as boas regras da moralidade costumeira que governam a nossa honra o respeito e sobretudo a lealdade que devemos aos amigos aos parentes e aos compadres Num mundo tão profundamente dividido a malandragem e o jeitinho promovem uma esperanca de tudo juntar numa totalidade harmoniosa e concreta Essa é a sua importância esse é o seu aceno Aí está a sua razão de existir como valor social Antes de ser um acidente ou mero aspecto da vida social brasileira coisa sem conseqüência a malandragem é um modo possível de ser Algo muito sério contendo suas regras espaços e paradoxos Isso está bem de acordo com o que nos disse Pero Vaz de Caminha no finalzinho de sua carta histórica fundadora do nosso modo de ser depois de dar ao rei as maravilhosas notícias da terra brasileira Ali naquele pedaço terminal e naquela hora de arremate Caminha arrisca malandramente o seguinte E nesta maneira Senhor dou aqui a Vossa Alteza conta do que nesta terra vi E se algum pouco me alonguei Ela me perdoe pois o desejo que tinha de tudo vos dizer mo fez por assim pelo miúdo E pois que Senhor é certo que assim neste cargo que levo como em outra qualquer coisa que de Vosso serviço for Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida a Ela peço que por me fazer graça especial mande vir da Ilha de São Tomé a Jorge de Osorio meu genro o que dela receberei em muita mercê E conclui Caminha como até hoje manda o nosso figurino de malandragem Beijo as mãos de Vossa Alteza Deste Porto Seguro de Vossa Ilha de Vera Cruz hoje sextafeira primeiro dia de maio de 1500 Pero Vaz de Caminha Será que é preciso dizer mais alguma coisa 72 8 Os caminhos para Deus Nós brasileiros marcamos certos espaços como referências especiais da nossa sociedade A casa onde moramos comemos e dormimos vivemos enfim A rua onde trabalhamos e ganhamos a luta pela vida A cada um desses espaços onde convivemos com parentes amigos e colegas de trabalho devemos somar um outro não menos referencial e crítico Quero referirme ao espaço do outro mundo essa área demarcada por igrejas capelas ermidas terreiros centros espíritas sinagogas templos cemitérios e tudo aquilo que 73 faz parte e sinaliza as fronteiras entre o mundo em que vivemos e esse outro mundo onde um dia também iremos habitar Esse mundo habitado por mortos fantasmas almas santos anjos orixás deuses Deus a Virgem Maria e Jesus Cristo para onde todos vão e de onde ninguém retorna ou pelo menos retorna com facilidade Se na casa e na rua utilizamos o idioma do dinheiro e a linguagem das cifras dos números dos salários dos cálculos e das coisas práticas deste mundo no universo da religião estamos muito mais interessados em conversar com Deus com os santos com a Virgem Maria e Jesus Cristo e com toda a legião de entidades que ali habitam Nosso modo de relacionamento aqui é diferente Em vez de discursar rezamos em vez de ordenar pedimos em vez de simplesmente falar como fazemos habitualmente conjugamos a forma da mensagem com seu conteúdo suplicamos O modo de comunicação com o além e seus habitantes assim é formalizado e suplicante Feito de preces rezas e discursos onde se acentuam a cândida sinceridade a honesta súplica a nobre humildade e naturalmente a formidável promessa de renunciar ao mundo com suas pompas e honras Existem formas de falar com o mundo de Deus que são solitárias e outras que são coletivas Coletivamente o modo mais comum é através da cantoria onde a prece faz com que se juntem todos os pedidos num só que deve subir aos céus levado pelas harmonias das vozes que o entoam De fato no nosso modo de conceber o espaço religioso a linha vertical e hierarquizada que relaciona o céu com a terra e o alto com o baixo é algo dominante e critico O alto conforme sabemos muito bem é tudo que é superior tudo que deve ser mais nobre e mais forte tudo que tem mais poder É lá nessa esfera situada em cima que moram os anjos os santos e todas as entidades que nos podem proteger e guiar os destinos O baixo é a terra em que vivemos vale de lágrimas onde sofremos trabalhamos e finalmente morremos A reza a festividade religiosa e o canto propiciatório coletivo são meios de se chegar até essas regiões superiores ligando o aqui e agora como além e o infinito Seria até mesmo possível nesta linha de abordagem dizer que certas rezas ou formas de comunicação com o sobrenatural seriam mais fortes ou mais fracas que outras tudo dentro da nossa lógica de gradação dominante Assim as formas que implicam o envolvimento da maioria dos sentidos seriam provavelmente mais fortes e irresistíveis aos santos deuses e espíritos do que as modalidades em que apenas um sentido está envolvido As formas 74 individuais por sua vez seriam normalmente as mais fracas embora a fé a esperança e a caridade de cada um sejam também elementos importantes no atendimento de suas súplicas ou preces Do mesmo modo as súplicas acompanhadas de objetos na forma de promessas oferendas e sacrifícios são naturalmente mais fortes que um simples pedido verbal pois que elas implicam um ato de cometimento muito mais denso e dramático às vezes exigindo o gasto de parcelas de dinheiro que são críticas em termos da economia doméstica e pessoal do ofertante Além disso a promessa é um pacto que obriga os dois lados a alguma ação positiva no sentido de resolver o problema apresentado Se eu assim peço uma graça e logo em seguida me sacrifico com a oferta de algo precioso para o santo ou santa de minha devoção a lógica social faz com que ele ou ela também se obrigue a resolver meu problema atendendo cortesmente a minha súplica Tudo indica que o santo atende melhor e reconhece mais claramente o esforço dos mortais quando o pedido se faz de modo solene e respeitoso com algum formalismo As rezas e os pedidos assim sobem melhor quando há um sinal visível de comunicação com o alto algo que cristalize essa ligação como a fumaça do incenso ou as luzes das velas queimando Mas por que se fala com Deus As respostas são muito variadas Um fator sociológico básico porém é que existe a necessidade de construir esse grande espelho a que chamamos religião para dar a todos e a cada um de nós um sentimento de comunhão com o universo como um todo A religião assim seria um modo de permitir uma relação globalizada não só com os deuses mas também com todos os homens e com os seres vivos que formam o nosso mundo Também pensamos na religião como um meio de explicação para os infortúnios as coincidências negativas como acidentes e doenças pois a religião pode explicar porque uma pessoa ligada a nós ficou doente sofreu um acidente fatal ou é vitima indefesa e gratuita de desesperadora aflição A religião nesse sentido apresentaria a possibilidade de resgatar a indiferença do mundo e das coisas do mundo relativamente à nossa consciência e à sua necessidade de dar um sentido preciso a tudo ordenando a vida e as relações entre as coisas da vida Falamos também de religião quando estamos pensando no modo pelo qual a sociedade precisa legitimar ou justificar a sua organização a sua maneira de ser e os seus estilos de fazer Assim a religião pode explicar também por que existem ricos e pobres fortes e fracos doentes e sãos dando sentido pleno às 75 diferenciações de poder que percebemos como parte do nosso mundo social Assim como há uma diferenciação no Céu haveria também uma diferenciação na terra muito embora aos olhos do Criador todos sejam singulares e amados igualmente Nesse sentido ou melhor em todos esses sentidos a religião serve para explicar e certamente o faz de modo mais satisfatório que a filosofia ou a ciência pois há sofrimento doença calamidade injustiça e aflição neste mundo E mais ela pode até mesmo dizer por que certa pessoa está sofrendo o que sofre o que não deixa de ser enorme consolo para quem vive e acompanha a aflição Num certo sentido portanto a religião oferece respostas a perguntas que rigorosamente não podem ser respondidas pela ciência ou pela tecnologia Mas além disso a religião marca e ajuda a fixar momentos importantes na vida de todos nós Desse modo nascimentos batizados crismas comunhões casamentos e funerais todos os momentos que assinalam dramaticamente uma crise de vida e uma passagem na escala da existência social são marcados pela presença da religião que legitima com o aval divino ou sobrenatural uma passagem que se deseja necessária algo que esteja inscrito não apenas numa convenção inventada pelos homens mas no próprio projeto divino Essas formas de marcar entradas e saídas do universo religioso são em geral dramáticas exigindo ritos especiais e trabalhados que operam como mediadores Tal como acontece no nosso conhecido ritual do batismo em que a criança entra na Igreja Católica e ao mesmo tempo na sociedade ganhando simultaneamente pais adotivos que reforçam como padrinhos suas obrigações como ser social Assim embora a pessoa seja concebida por genitores os seus pais biológicos há uma exigência de padrinhos ou pais sociais para que ela possa penetrar no cerne da vida social o que no mundo católico se realiza através da Igreja e do ritual apropriado do batismo O mesmo ocorre num casamento onde também existem padrinhos mediadores marcando e indicando que a cerimônia é algo público algo definitivamente social Todos esses aspectos formam aquilo a que chamamos religião num sentido amplo A palavra como se sabe vem do latim e tem no sentido original a idéia de laço aliança pacto contrato e relação que deve nortear os elos entre deuses e homens e por isso mesmo dos homens entre si Mas além desses aspectos a religião é um modo de ordenar o mundo facultando nossa 76 compreensão para coisas muito complexas como a idéia de tempo a idéia de eterno e a idéia de perda e desaparecimento esses mistérios perenes da existência humana Podese dizer nessa perspectiva que o homem é o único ser que tem consciência de sua própria morte e por isso mesmo tem enorme e definitiva necessidade de domesticar o tempo e de problematizar a eternidade Mas como se chega a Deus no Brasil Aqui como em outros lugares temos uma religião dominante e que até bem pouco tempo até 1890 para ser preciso foi oficial Tratase conforme sabemos do Catolicismo Romano denominação religiosa formadora da própria sociedade brasileira e naturalmente de um conjunto de valores que são essenciais no Brasil Naturalmente que tal forma de denominação religiosa é acompanhada de outras que a ela estão referidas mas que dela se diferenciam por meio do culto da teologia do tipo de sacerdócio e de atitudes gerais A variedade de experiências religiosas brasileiras é assim ao mesmo tempo ampla e limitada É ampla porque ao Catolicismo Romano e às várias denominações Protestantes somamse outras variedades de religiões Ocidentais e Orientais além das variedades brasileiras de cultos de possessão cuja tradição é uma constelação variada de valores e concepções De um lado existe incontestavelmente a África dos escravos com seus terreiros tambores idiomas secretos orixás e ritos de sacrifício onde as coisas pertencem ao mundo do sensível Do outro há o Espiritismo kardecista em que o culto dos mortos é uma forma dominante e o ritual se faz sem cantos nem tambores Se nas chamadas religiões AfroBrasileiras e no Espiritismo a relação e o culto dos mortos o contato com Os deuses orixás é algo rotineiro se entre a Umbanda e o Kardecismo existem também crenças em encarnação e na teoria do Karma que vem da Índia há igualmente diferenças entre todas essas formas já que na Umbanda o contato é muito mais com os deuses do que com os espíritos desencarnados dos mortos Por outro lado o Espiritismo considerase codificado ao passo que a Umbanda é uma religião sem codificação e com uma teologia aberta a muitas variações Mas apesar de todas essas diferenças a variedade é limitada porque essas formas mais diversas coexistem tendo como ponto focal a idéia de relação e a possibilidade de comunicação entre homens e deuses homens e espíritos homens e ancestrais Ou seja em todas as formas de religiosidade brasileiras há uma enorme e densa ênfase na relação entre este mundo e o outro de modo 77 que a domesticação da morte e do tempo é elemento fundamental em todas essas variedades ou jeitos de se chegar a Deus Por Outro lado a forma pela qual essa comunicação se realiza é sempre através de um elo pessoal Nós brasileiros temos intimidade com certos santos que são nossos protetores e padroeiros nossos santos patrões do mesmo modo que temos como guias certos orixás ou espíritos do além que são nossos protetores A relação pode ter forma diferenciada mas a sua lógica estrutural é a mesma Em todos os casos a relação existe e é pessoal isto é fundada na simpatia e na lealdade dos representantes deste mundo e do outro Somos fiéis devotos de santos e também cavalos de santo de orixás e com cada um deles nos entendemos muito bem pela linguagem direta da patronagem ou do patrocínio místico por meio de preces promessas oferendas despachos súplicas e obrigações que a despeito de diferenças aparentes constituem uma linguagem ou código de comunicação com o além que é obviamente comum e brasileira Do mesmo modo que temos pais padrinhos e patrões temos também entidades sobrenaturais que nos protegem E elas podem ser de duas tradições religiosas aparentemente divergentes Isso realmente não importa O que para um norteamericano calvinista um inglês puritano ou um francês católico seria sinal de superstição e até mesmo de cinismo ou ignorância para nós é modo de ampliar as nossas possibilidades de proteção É também penso um modo de enfatizar essa enorme e comovente fé que todos nós temos no sentido e na eternidade da vida Assim essas experiências religiosas são todas complementares entre si nunca mutuamente excludentes O que uma delas fornece em excesso a outra nega E o que uma permite a outra pode proibir O que uma intelectualiza a outra traduz num código de sensual devoção Aqui também nós brasileiros buscamos o ambíguo e a relação entre esse mundo e o outro O que pode parecer singular no caso brasileiro então é que cada uma dessas formas de religiosidade seja suplementar às outras mantendo com elas uma relação de plena complementaridade Assim a Igreja Romana costura e dá sentido ao mundo e às experiências humanas pelo seu ângulo externo e formal sendo acionada para legitimar importantes crises de vida como o casamento o batizado o nascimento e a morte A Igreja assim é uma forma básica de religião marcando talvez o lado impessoal de nossas relações com Deus Um lado de fato onde a intimidade eventualmente pode ceder lugar às regras 78 fixas que conduzem a uma impessoalidade sobretudo nos cultos que legitimam de qualquer modo as crises de vida Mas ao lado dessas formas impessoais e mais politizadas e socialmente aceitas de comportamento religioso existem formas pessoais de ligação com o outro mundo Formas e estilos vale destacar que são tão populares como o milagre Realmente que é o milagre senão uma resposta dos deuses a uma súplica desesperada dos homens na forma de um atendimento pessoal e intransferível O milagre é prova de um ciclo de troca que envolve pessoas e entidades sobrenaturais na forma de desejos motivações sentimentos e vários objetos alguns inclusive com a forma da parte que foi curada prova cabal da realização do milagre ou da graça finalmente obtida Essa pessoalidade existente no catolicismo popular como vemos é singular Ela parece produzir no plano religioso essa enorme ênfase nas relações pessoais que dão um sentido profundo ao nosso mundo social Tudo isso revela que é clara essa forma de comunicação familiar e intima direta e pessoal entre homens e deuses no caso brasileiro Assim em vez de opor a religião popular à religião oficial ou erudita será melhor entender que suas relações são complementares Como as vertentes de um mesmo rio ou as duas faces de uma mesma moeda Desse modo o oficial contém tudo o que pode legalizar atuando a partir de fora Mas o popular contém todas as formas que lidam com as emoções em estado vivo atuando por dentro Nessa modalidade sentimentos e idéias ligamse em dramas visíveis e concretos muito diferentes das formas eruditas de religiosidade onde o culto salienta uma comunicação disciplinada e oficial com a divindade Num caso a relação com Deus é por assim dizer limpa tratase de uma comunicação educada No outro a comunicação é sensível concreta e dramática O milagre para nós brasileiros é a nãoexclusão de qualquer dessas formas como necessárias à vida religiosa Mas a adoção de ambas como modos legítimos de se chegar a Deus Assim se no Natal vamos sempre à Missa do Galo no dia 31 de dezembro vamos todos à praia vestidos de branco festejar o nosso orixá ou receber os bons fluidos da atmosfera de esperança que lá se forma Somos todos mentirosos Claro que não Somos isso sim profundamente religiosos 79 Realmente se o mundo real exige um comportamento coerente e uma conduta marcada pela exclusividade não posso ter dois sexos nem duas mulheres nem duas cidadanias nem dois partidos políticos ao mesmo tempo no caminho para Deus e na relação com o outro mundo posso juntar muita coisa Nele posso ser católico e umbandista devoto de Ogum e de São Jorge Posso juntar somar relacionar coisas que tradicional e oficialmente as autoridades apresentam como diferenciadas ao extremo Tudo aqui se junta e se torna sincrético revelando talvez que no sobrenatural nada é impossível A linguagem religiosa do nosso país é pois uma linguagem da relação e da ligação Um idioma que busca o meiotermo o meio caminho a possibilidade de salvar todo o mundo e de em todos os locais encontrar alguma coisa boa e digna Uma linguagem de fato que permite a um povo destituído de tudo que não consegue comunicarse com seus representantes legais falar ser ouvido e receber os deuses em seu próprio corpo Somos um povo que acredita profundamente num outro mundo E o outro mundo brasileiro é um plano onde tudo pode finalmente fazer sentido Lá não haveria mais sofrimento miséria poder e impessoalidades desumanas Todos seriam reconhecidos como pessoas e ao mesmo tempo leis universais como a lei da generosidade e a do eterno retorno quem dá recebe e quem faz algum mal recebe de volta esse mal seriam válidas para todos Todos teriam valor porque o valor não seria dado na formalidade ou no sexo mas na fé e na sinceridade de cada um e de todos O outro mundo tem muitas formas e são vários os caminhos de se chegar até ele no Brasil Mas por detrás de todas as diferenças sabemos que lá nesse céu à brasileira é possível uma relação perfeita de todos os espaços Essa pelo menos é a esperança que se imprime nas formas mais populares de religiosidade 80 Palavras finais Seria possível concluir um livro cuja motivação maior foi sugerir uma certa leitura do Brasil Claro que não Seria possível por outro lado alinhavar certas lições que o caso brasileiro ensina Algo como a busca de uma ética para essa história que contamos brevemente nas páginas anteriores Claro que sim Ao longo deste pequeno ensaio demonstramos que a sociedade brasileira não poderia ser entendida de modo unitário na base de uma só causa ou de um só princípio social Ao contrário dos domínios que tomamos para estudo e investigação todos se revelaram como que possuídos por uma lógica comum Uma lógica que chamei de relacional e que na política aparece com o nome de negociação e conciliação Que no mundo econômico surge na curiosa combinacao de uma economia altamente estatizada com uma iniciativa privada vigorosa e ainda importante Que na religião aparece com a intrigante mistura de catolicismo com religiões afropopulares E que na cosmologia em geral e aqui estou pensando na literatura popular e erudita do Brasil aparece sob uma certa ânsia de criar personagens intermediários gente que pode permitir a conciliação de tudo o que a sociedade mantém irremediavelmente dividido por um movimento inconsciente Por que isso é assim Minha resposta indica que o Brasil é uma sociedade interessante Ela é moderna e tradicional Combinou no seu curso histórico e social o indivíduo e a pessoa a família e a classe social a religião e as formas econômicas mais modernas Tudo isso faz surgir um sistema com espaços internos muito bem divididos e que por isso mesmo não permitem qualquer código hegemônico ou dominante Assim conforme tive que repetir inúmeras vezes somos uma pessoa em casa outra na rua e ainda outra no outro mundo Mudamos nesses espaços de modo obrigatório porque em cada um deles somos submetidos a valores e visões de mundo diferenciados que permitem uma leitura especial do Brasil como um todo A esfera de casa inventa uma leitura pessoal a da rua uma leitura universal Já a visão pelo outro mundo é um discurso conciliador e fundamentalmente moralista e esperançoso Entre essas três esferas colocamos um mundo de relações e situações formais São as 81 nossas festas e a nossa moralidade que como disse se fundam na verdadeira obsessão pela ligação E não poderia deixar de ser assim numa sociedade tão tematizada pela divisão interna Mas qual é afinal a moral desta história Não será preciso ir muito longe para apreciála A História do Brasil tem mostrado como sempre insistimos em ler e interpretar o país pela via exclusiva da linguagem oficial que se forma no espaço generalizado da rua espaço das nossas instituições públicas e que sempre apresenta um discurso politicamente sedutor pois que sistematicamente normativo Ou seja desse ponto de vista a fala sempre diz o que fazer para resolver a questão Mas não é precisamente isso que temos feito em toda a nossa História moderna a partir da Independência e da República E por que as coisas não dão certo Só Deus pode saber isso precisamente Mas a visão antropológica da qual este ensaio é um pequeno exemplo permite que se discutam algumas coisas importantes para uma resposta sugestiva a essa pergunta É possível por exemplo argumentar que nada pode dar certo se a crítica social e política é sempre incompleta pois só leva em consideração um dado da questão De fato como se pode corrigir o mundo público brasileiro por meio de leis impessoais se não se faz simultaneamente uma série crítica das redes de amizade e compadrio que embebem toda a nossa vida política institucional e jurídica Nosso resultado então é que à crítica prática que fala com o idioma da economia e da política pelo mundo da rua seria preciso somar a linguagem da casa e da família e com ela o idioma dos valores religiosos que também operam e por isso determinam grande parte do comportamento profundo do nosso povo Tudo isso diria eu no sentido de somar um pouco mais a casa a rua e o outro mundo aproximando um pouco mais essas esferas Junto com isso que certamente importaria corrigir seria necessário resgatar como coisa altamente positiva como patrimônio realmente invejável toda essa nossa capacidade de sintetizar relacionar e conciliar criando com isso zonas e valores ligados á alegria ao futuro e à esperança Num mundo que cada vez mais se desencanta consigo mesmo e institui um individualismo sem limites que reduz os valores coletivos a mero apêndice da felicidade pessoal a capacidade de ainda deslumbrarse com a sociedade é algo muito importante algo positivo E aqui sem dúvida 82 podemos novamente sintetizar de modo criativo e relacional o indivíduo com as suas exigencias e direitos fundamentais com a sociedade com a sua ordem seus valores e necessidades Talvez a sociedade brasileira seja missionária dessa possibilidade que já se está esgotando no mundo ocidental E por quê Simplesmente porque conseguimos até agora manter nossa fé no indivíduo com os seus espaços internos e também na sociedade com as suas leis de complementaridade e reciprocidade Descobrimos também que o indivíduo relações família e partido político instituições econômicas e esferas de produção e consumo tudo pode ter o seu espaço Se hoje eles estão muito separados entre si isso não significa a impossibilidade de se juntarem mais no futuro na síntese positiva que atualmente só realizamos no mundo das festas sobretudo no carnaval Seria preciso carnavalizar um pouco mais a sociedade como um todo introduzindo os valores dessa festa relacional em outras esferas de nossa vida social Com isso poderíamos finalmente aprofundar as possibilidades de mediação de que estou seguro o mundo contemporâneo tanto precisa Nem tanto o desencanto crítico que conduz a um primado cego do individualismo como valor absoluto e nem tanto o primado igualmente cego da sociedade e do coletivo que esmaga a criatividade humana e sufoca o conflito e a chama das contribuições pessoais Talvez algo no meio Algo que permita ter um pouco mais da casa na rua e da rua na casa Algo que permita ter aqui neste mundo as esperanças que temos no outro Algo que permita fazer do mundo diário com seu trabalho duro e sua falta de recursos uma espécie de carnaval que inventa a esperança de dias melhores Acho que é um pouco desse tipo de reflexão que nos falta E para que ela possa ser ampliada discutida corrigida e finalmente implementada como mecanismo social precisamos realizar a crítica destemida de nós mesmos por meio de instrumentos suficientemente agudos e capazes Para tanto será preciso começar sempre com a pergunta o que faz o brasil Brasil E em seguida promover sua resposta ainda que tímida imprecisa e certamente discutível Pois não foi outra coisa que quisemos realizar aqui Jardim Ubá junho de 1984 83 Roberto DaMatta por ele mesmo Meu nome completo é Roberto Augusto da Matta e tive muito encabulamento com essa marca de família porque na escola eu sempre virava o roberto mata e todo mundo queria saber quem eram as vítimas Tímido e calado reprimido por autoprojeto de perfeição e santidade cheguei até mesmo a pensar em ser padre Esse plano durou até nossa saída de Juiz de Fora para São João Nepomuceno onde conheci o esporte os bailes da primavera os amigos do peito e as primeiras namoradas Nasci porém em Niterói em 1936 onde moro até hoje pensando que Niterói é uma cidade especial que confere a alguns dos seus moradores esse mistério de uma associação periférica com o Rio de Janeiro dos grandes acontecimentos mas que situa a todos numa espécie de meiadistância crítica de tudo Essa é uma posição antropológica por excelência que suponho seja também a marca de outros niteroienses sensíveis gente como Sergio Mendes e Walter Lima Jr Em Niterói enterrei meu coração e o renovei quando conheci minha mulher Celeste numa tarde bonita de vestibular num pátio sombreado da então Faculdade Fluminense de Filosofia onde ambos cursamos um bacharelato de História Em Niterói também fiz minha casa nasceram meus filhos e foi onde me descobri professorpesquisador É desta base que saio todos os anos para lecionar em outros centros do Brasil e do exterior Minhas primeiras aspirações intelectuais foram na área das artes Queria ser pintor e desenhista depois escritor Aprendendo seriamente as Ciências Sociais descobri que seria possível conciliar o desejo de inventar com o comentário realístico e inteligente das motivações e relações humanas Fiquei interessado em Antropologia Cultural ou Social porque estava sempre fascinado com a semelhança e a diferenças entre os homens e as sociedades Logo em 1959 quando tinha 23 anos iniciei um estágio profissional no Departamento de Antropologia do Museu Nacional na Quinta da Boa Vista de onde jamais saí De estagiário passei a bolsista e depois a pesquisador e professor tendo contribuído naquela instituição com um bocado do meu sangue suor e lágrimas para a fixação definitiva do seu hoje conhecido Programa de PósGraduação em Antropologia Social do qual fui Coordenador durante alguns anos aqueles anos duros da repressão dos 84 novecentos e setenta Fui também nesta mesma época Chefe do Departamento papel que me deixou muitas vezes a matutar no meu pendor inusitado a um certo masoquismo Mas mesmo envolvido na mais densa e cruel selva administrativa não deixei de lado minhas fontes de serenidade e inspiração e continuei realizando pesquisas e publicando livros Neste Museu Nacional tenho orientado inúmeras teses de mestrado e doutorado e dado aulas cursos e seminários Sempre li entre fascinado e respeitoso os clássicos do pensamento sociológico francês alemão e inglês No início dos anos 60 já iniciando os meus primeiros passos como profissional de antropologia tive dois encontros importantes Um deles com a América do Norte via Universidade de Harvard O outro com a Antropologia Social na sua prática de campo por meio dos índios Gaviões e Apinayé do Brasil Central Por meio desta associação realizei pesquisas acadêmicas e teóricas imaginando por um momento um futuro trancado na ciência e no saber Mas a distância do Brasil a que a experiência norteamericana me conduziu fezme um observador crítico da sociedade brasileira e seus costumes iniciandome como pesquisador e comentador de minha própria sociedade Assim é que meu primeiro livro individual Ensaios de Antropologia Social Vozes é marcado pela diversidade de interesses de quem estava como que buscando um objeto definitivo de trabalho Ali naquele pequeno volume de ensaios eu falo de mitologia indígena encaro uma crítica literária a nada menos que Edgar Alan Poe discuto o problema da másorte na Amazônia e pela primeira vez abor do o carnaval dentro de uma perspectiva antropológica Isso é muito diverso do meu primeiro livro Índios e castanheiros Paz e Terra escrito a quatro mãos com Roque Laraia que é relato descritivo de uma situação de contato intercultural onde os índios conforme se sabe têm levado sistematicamente a pior Se ali eu tinha um objeto apaixonado de discurso no outro livro eu estava buscando o Brasil Meu terceiro livro é o resultado do trabalho acadêmico desenvolvido durante dez anos no Museu e em Harvard É o livro Um mundo dividido a estrutura social dos índios Apinayé Vozes que também foi traduzido e publicado em inglês pela Harvard Univ Press Meu quarto livro é o ensaio Carnavais malandros e heróis para uma sociologia do dilema brasileiro Zahar traduzido para o francês onde decidi retomar o ensaio como instrumento de interpretação do Brasil Em seguida a ele publiquei Universo do carnaval imagens e reflexões Pinakhoteke organizei 85 Universo do futebol Pinakhoteke e E R Leach Ática e escrevi uma introdução à Antropologia Social chamada Relativizando Vozes que tem tido uma acolhida generosa entre estudiosos e estudantes de Antropologia no Brasil e no exterior Ao lado destes livros tenho feito muitos artigos e ensaios que vão da violência à sexualidade no Brasil Hoje fico cada dia mais certo de que a Antropologia Social é também um código literário e que só nos faltam a ousadia temática e aquela capacidade de observação e articulação que de resto os grandes mestres da Etnologia do passado tinham Afinal o prêmio não é somente pela prática da ciência mas pela perseverança em praticála sempre mesmo vivendo num mundo que nos leva para todos os lugares Recentemente iniciei uma experiência na televisão escrevendo e apresentando a série Os brasileiros R DaMatta Niterói Jardim Ubá Agosto de 1984 86 A propósito do ilustrador Jimmy Scott nasceu em 5 de janeiro de 1936 em Santiago do Chile Preparase para ser técnico industrial Muda rumos e ingressa na Faculdade de BelasArtes da Universidade do Chile onde estuda Artes Plásticas Seu começo profissional na ilustração foi em 1958 ao publicar seus primeiros trabalhos na revista infantil El Peneca e logo depois na revista de humor político Topaze duas publicações tradicionais do Chile hoje desaparecidas que divulgaram largamente seu traço Os convites sucederamse e em pouco tempo suas charges e caricaturas apareciam em diversos jornais e revistas de Santiago e Concepción Ilustrou textos didáticos para a Librairie Française e Editorial Universitaria de Santiago Chega ao Brasil em 1970 Até 1979 é contratado pela AGGS Indústrias Gráficas Hoje divide seu tempo entre algumas editoras o jornal O Globo e a publicidade Resenha de O que faz o Brasil Brasil de Roberto DaMatta Introdução A tese central de Roberto DaMatta em O que faz o Brasil Brasil é que a sociedade brasileira é marcada por uma lógica relacional onde a negociação e a conciliação desempenham papéis cruciais Ele argumenta que essa lógica relacional se manifesta em todas as esferas da vida brasileira incluindo política economia religião e cultura DaMatta enfatiza que essa abordagem de conciliação é uma resposta à complexidade e à diversidade da sociedade brasileira que não pode ser compreendida de maneira simplista ou unitária Ele desafia a ideia de uma identidade cultural uniforme e destaca a capacidade do Brasil de sintetizar elementos culturais diversos em uma única identidade nacional A intenção do autor ao escrever O que faz o Brasil Brasil é fornecer uma análise aprofundada e crítica da sociedade brasileira e de sua identidade cultural DaMatta deseja desafiar concepções simplistas e estereotipadas sobre o Brasil e oferecer uma visão mais complexa e matizada da nação Ele busca promover uma compreensão mais profunda das dinâmicas sociais e culturais que moldam o país a fim de contribuir para uma reflexão crítica sobre a sociedade brasileira Em adição DaMatta incentiva a análise e a crítica das redes de amizade e compadrio que permeiam a vida política e institucional do Brasil argumentando que essa análise é essencial para promover mudanças positivas na sociedade brasileira Sua intenção é portanto estimular o pensamento crítico e a reflexão sobre o Brasil e sua identidade cultural única O que faz o Brasil Brasil é uma obra seminal escrita pelo renomado antropólogo brasileiro Roberto DaMatta Publicado em 1984 o livro busca desvendar a complexidade da sociedade brasileira e explorar as características únicas que moldam a identidade cultural do país Por meio de uma análise antropológica profunda DaMatta explora as dinâmicas sociais políticas econômicas e culturais que definem o Brasil e delineiam o que significa ser brasileiro A obra é uma contribuição valiosa para o campo da antropologia fornecendo insights profundos sobre a alma o espírito e a coletividade que compõem a identidade nacional do Brasil DaMatta examina como a cultura brasileira é influenciada por uma mistura complexa de elementos incluindo tradições indígenas influências africanas valores religiosos e a interação entre o público e o privado Desenvolvimento No decorrer da obra Roberto DaMatta aborda a ideia fundamental de que a sociedade brasileira não pode ser entendida de maneira simplista e unitária Em vez disso ele argumenta que o Brasil é uma sociedade complexa e multifacetada caracterizada por uma lógica relacional essa lógica relacional se manifesta em várias esferas da vida brasileira incluindo política economia religião e cosmovisão DaMatta destaca a importância da negociação e da conciliação como elementos centrais da política brasileira Ele observa que a política no Brasil é frequentemente caracterizada pela busca de acordos e compromissos em vez de conflitos abertos Na esfera econômica DaMatta analisa a combinação peculiar de uma economia altamente estatizada com uma iniciativa privada vigorosa Ele destaca como essa interação entre o público e o privado cria uma dinâmica única na economia brasileira No campo religioso o autor explora a fusão intrigante entre o catolicismo e as religiões afropopulares no Brasil Ele argumenta que essa combinação religiosa é um reflexo da capacidade brasileira de sintetizar elementos culturais diversos em uma única identidade DaMatta também examina a literatura popular e erudita do Brasil e identifica uma ânsia por criar personagens intermediários que possam conciliar as divisões sociais e culturais Ele sugere que essa busca por intermediários reflete a natureza conciliadora da sociedade brasileira DaMatta explora a relação entre a casa a rua e o outro mundo na vida do brasileiro Ele observa como as pessoas mudam de comportamento e valores ao se moverem entre esses espaços refletindo a influência das esferas pública privada e religiosa Conclusão Em sua obra O que faz o Brasil Brasil Roberto DaMatta oferece uma análise profunda e abrangente da sociedade brasileira destacando sua complexidade e diversidade Ele desafia a ideia de uma identidade cultural uniforme argumentando que o Brasil é uma nação que se caracteriza pela convivência de múltiplas influências e elementos culturais DaMatta destaca a importância da negociação da conciliação e da síntese como elementos fundamentais da cultura brasileira Ele argumenta que a capacidade de mediar e conciliar diferenças é uma característica distintiva da sociedade brasileira A obra também enfatiza a necessidade de uma análise crítica da sociedade brasileira levando em consideração não apenas aspectos políticos e econômicos mas também valores religiosos e culturais DaMatta sugere que essa análise crítica é essencial para promover mudanças positivas na sociedade brasileira Em O que faz o Brasil Brasil Roberto DaMatta realiza uma análise antropológica profunda e perspicaz da sociedade brasileira explorando as complexidades que definem a identidade nacional DaMatta demonstra um equilíbrio notável entre objetividade e subjetividade Embora sua análise seja fundamentada em observações etnográficas e exemplos concretos ele também compartilha suas perspectivas e interpretações enriquecendo a obra com sua experiência pessoal O autor consegue manter a atenção do leitor por meio de um equilíbrio adequado entre opiniões pessoais e evidências Ele sustenta seus argumentos com exemplos da vida cotidiana no Brasil tornando seus pontos de vista acessíveis e convincentes De todo modo em alguns momentos DaMatta poderia ter dado mais espaço a perspectivas alternativas ou críticas Embora ele ofereça uma visão já abrangente da sociedade brasileira uma discussão mais aprofundada de pontos de vista divergentes poderia enriquecer ainda mais a obra Essa obra é bemvinda nos contextos acadêmicos em disciplinas de antropologia cultural sociologia estudos culturais e ciências sociais em geral Além disso é uma leitura valiosa para qualquer pessoa que deseje compreender melhor a riqueza e a complexidade da cultura brasileira Resumidamente O que faz o Brasil Brasil é uma leitura essencial para aqueles que desejam compreender a complexidade da identidade cultural brasileira e as dinâmicas que moldam a sociedade brasileira A obra de Roberto DaMatta continua a ser uma referência valiosa para estudiosos da antropologia e interessados na cultura e na identidade brasileiras Bibliografia MATTA Roberto da O que faz o brasil Brasil 2 ed Rio de Janeiro Rocco 1986 126 p Resenha de O que faz o Brasil Brasil de Roberto DaMatta Introdução A tese central de Roberto DaMatta em O que faz o Brasil Brasil é que a sociedade brasileira é marcada por uma lógica relacional onde a negociação e a conciliação desempenham papéis cruciais Ele argumenta que essa lógica relacional se manifesta em todas as esferas da vida brasileira incluindo política economia religião e cultura DaMatta enfatiza que essa abordagem de conciliação é uma resposta à complexidade e à diversidade da sociedade brasileira que não pode ser compreendida de maneira simplista ou unitária Ele desafia a ideia de uma identidade cultural uniforme e destaca a capacidade do Brasil de sintetizar elementos culturais diversos em uma única identidade nacional A intenção do autor ao escrever O que faz o Brasil Brasil é fornecer uma análise aprofundada e crítica da sociedade brasileira e de sua identidade cultural DaMatta deseja desafiar concepções simplistas e estereotipadas sobre o Brasil e oferecer uma visão mais complexa e matizada da nação Ele busca promover uma compreensão mais profunda das dinâmicas sociais e culturais que moldam o país a fim de contribuir para uma reflexão crítica sobre a sociedade brasileira Em adição DaMatta incentiva a análise e a crítica das redes de amizade e compadrio que permeiam a vida política e institucional do Brasil argumentando que essa análise é essencial para promover mudanças positivas na sociedade brasileira Sua intenção é portanto estimular o pensamento crítico e a reflexão sobre o Brasil e sua identidade cultural única O que faz o Brasil Brasil é uma obra seminal escrita pelo renomado antropólogo brasileiro Roberto DaMatta Publicado em 1984 o livro busca desvendar a complexidade da sociedade brasileira e explorar as características únicas que moldam a identidade cultural do país Por meio de uma análise antropológica profunda DaMatta explora as dinâmicas sociais políticas econômicas e culturais que definem o Brasil e delineiam o que significa ser brasileiro A obra é uma contribuição valiosa para o campo da antropologia fornecendo insights profundos sobre a alma o espírito e a coletividade que compõem a identidade nacional do Brasil DaMatta examina como a cultura brasileira é influenciada por uma mistura complexa de elementos incluindo tradições indígenas influências africanas valores religiosos e a interação entre o público e o privado Desenvolvimento No decorrer da obra Roberto DaMatta aborda a ideia fundamental de que a sociedade brasileira não pode ser entendida de maneira simplista e unitária Em vez disso ele argumenta que o Brasil é uma sociedade complexa e multifacetada caracterizada por uma lógica relacional essa lógica relacional se manifesta em várias esferas da vida brasileira incluindo política economia religião e cosmovisão DaMatta destaca a importância da negociação e da conciliação como elementos centrais da política brasileira Ele observa que a política no Brasil é frequentemente caracterizada pela busca de acordos e compromissos em vez de conflitos abertos Na esfera econômica DaMatta analisa a combinação peculiar de uma economia altamente estatizada com uma iniciativa privada vigorosa Ele destaca como essa interação entre o público e o privado cria uma dinâmica única na economia brasileira No campo religioso o autor explora a fusão intrigante entre o catolicismo e as religiões afropopulares no Brasil Ele argumenta que essa combinação religiosa é um reflexo da capacidade brasileira de sintetizar elementos culturais diversos em uma única identidade DaMatta também examina a literatura popular e erudita do Brasil e identifica uma ânsia por criar personagens intermediários que possam conciliar as divisões sociais e culturais Ele sugere que essa busca por intermediários reflete a natureza conciliadora da sociedade brasileira DaMatta explora a relação entre a casa a rua e o outro mundo na vida do brasileiro Ele observa como as pessoas mudam de comportamento e valores ao se moverem entre esses espaços refletindo a influência das esferas pública privada e religiosa Conclusão Em sua obra O que faz o Brasil Brasil Roberto DaMatta oferece uma análise profunda e abrangente da sociedade brasileira destacando sua complexidade e diversidade Ele desafia a ideia de uma identidade cultural uniforme argumentando que o Brasil é uma nação que se caracteriza pela convivência de múltiplas influências e elementos culturais DaMatta destaca a importância da negociação da conciliação e da síntese como elementos fundamentais da cultura brasileira Ele argumenta que a capacidade de mediar e conciliar diferenças é uma característica distintiva da sociedade brasileira A obra também enfatiza a necessidade de uma análise crítica da sociedade brasileira levando em consideração não apenas aspectos políticos e econômicos mas também valores religiosos e culturais DaMatta sugere que essa análise crítica é essencial para promover mudanças positivas na sociedade brasileira Em O que faz o Brasil Brasil Roberto DaMatta realiza uma análise antropológica profunda e perspicaz da sociedade brasileira explorando as complexidades que definem a identidade nacional DaMatta demonstra um equilíbrio notável entre objetividade e subjetividade Embora sua análise seja fundamentada em observações etnográficas e exemplos concretos ele também compartilha suas perspectivas e interpretações enriquecendo a obra com sua experiência pessoal O autor consegue manter a atenção do leitor por meio de um equilíbrio adequado entre opiniões pessoais e evidências Ele sustenta seus argumentos com exemplos da vida cotidiana no Brasil tornando seus pontos de vista acessíveis e convincentes De todo modo em alguns momentos DaMatta poderia ter dado mais espaço a perspectivas alternativas ou críticas Embora ele ofereça uma visão já abrangente da sociedade brasileira uma discussão mais aprofundada de pontos de vista divergentes poderia enriquecer ainda mais a obra Essa obra é bemvinda nos contextos acadêmicos em disciplinas de antropologia cultural sociologia estudos culturais e ciências sociais em geral Além disso é uma leitura valiosa para qualquer pessoa que deseje compreender melhor a riqueza e a complexidade da cultura brasileira Resumidamente O que faz o Brasil Brasil é uma leitura essencial para aqueles que desejam compreender a complexidade da identidade cultural brasileira e as dinâmicas que moldam a sociedade brasileira A obra de Roberto DaMatta continua a ser uma referência valiosa para estudiosos da antropologia e interessados na cultura e na identidade brasileiras Bibliografia MATTA Roberto da O que faz o brasil Brasil 2 ed Rio de Janeiro Rocco 1986 126 p

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ANTROPOLOGIA ROTEIRO DE REGIME ESPECIAL ETAPAS a Ler o arquivo anexo do livro O que faz o brasil Brasil b Ler o arquivo anexo produzindo resenha c Elaborar uma resenha da obra seguindo as normas ABNT Observações O trabalho deve seguir as normas da ABNT O trabalho vale de 0 a 10 Nota mínima de 700 para aprovação do aluno Cópias não serão aceitas trabalhos plagiados serão devolvidos e zerados COMO PRODUZIR UMA RESENHA Siga estes 3 passos preliminares Antes de iniciar a produção do texto há alguns passos importantes que você deve considerar para que a qualidade do seu trabalho possa atingir um patamar de excelência 1 Leia a obra a ser resenhada Chega a ser ridículo ter que colocar este ponto mas já vi MUITA gente fazendo resenhas de livros que nunca leu de filmes que nunca assistiu ou de palestras às quais não compareceu Soou familiar É uma realidade crescente entre os estudantes universitários Mas você não pretende ser um desses certo Então o primeiro passo é conhecer o objeto que será resenhado Um detalhe importante essa sua leitura deve ser rápida com o objetivo de conhecer a obra como um todo Portanto não faça anotações e nem sublinhe nada 2 Releia Ok você vai achar que estou exagerando Porém o fato é que na primeira leitura que fazemos de qualquer coisa há muitos elementos que passam despercebidos É nessa etapa que devemos lentamente analisar aspectos mais pontuais da obra que será alvo da resenha Use a técnica de sublinhar fazer esquemas com as ideias principais tanto da obra quanto de cada capítulo e tente estabelecer relações entre tudo isso Algo que eu faço e que ajuda muito fazer perguntas e anotálas no canto das páginas se você estiver resenhando um material escrito claro Isso força você a pensar sobre o material que tem em mãos 3 Pare para pensar Muitos já começam a escrever a resenha logo após a leitura do material ERRADO Você deve para um tempo para pensar sobre tudo rever suas anotações formar uma opinião e quem sabe até buscar outras fontes que tratem dos mesmos assuntos para poder fazer contrapontos em seu texto Se possível essa pausa deve durar mais de 24h mas não ultrapasse as 72h para que as ideias não lhe fujam da memória Faça mais anotações e já tente formular os argumentos que utilizará em seu texto Comece a escrever a resenha Partindo de tudo que foi dito talvez você já tenha uma boa ideia sobre o que escrever em sua resenha e até mesmo sobre a estrutura que deve seguir Mas vamos falar especificamente de uma das perguntas que eu mais ouço dos alunos Como começar uma resenha Há uma série de questões que você deve tentar responder em sua introdução Veja De que trata o livrotexto Ele tem alguma característica especial De que modo o assunto é abordado Qual é a tese do autor Qual a intenção do autor Que conhecimentos prévios são exigidos para entendêlo A que tipo de leitor se dirige o autor O tratamento dado ao tema é compreensível O livro foi escrito de modo interessante e agradável As ilustrações foram bem escolhidas O livro foi bem organizado O leitor que é a quem o livrotexto se destina irá achálo útil Comparando essa obra com outras similares e com outros trabalhos do mesmo autor a que conclusões chegamos Evidentemente você não precisa responder a todas essas questões sendo elas sugestões que você pode utilizar no início de sua resenha Atente para a escrita da conclusão Outro ponto em que muitos têm dúvidas é na hora de escrever a conclusão Esse espaço final da resenha serve para expor sua avaliação geral sobre a obra Até aqui você já deve ter discutido os argumentos do autor e como ele os defende assim como ter avaliado a qualidade e a eficiência de diversos aspectos do livro ou artigo Agora é o momento de avaliar o trabalho como um todo determinando coisas como se o autor conseguiu ou não atingir os objetivos propostos e se a obra contribui de maneira significante para a área de conhecimento da qual faz parte Ao escrever a conclusão você pode considerar as seguintes perguntas A obra usa graus de objetividade ou subjetividade apropriados à proposta inicial do autor O autor consegue manter o foco da obra sem incorrer em excesso de opinião própria ou falta de fontes que comprovem seus argumentos Em algum momento o autor deixa de considerar aspectos relevantes de sua área como outros pontos de vista ou teorias contrárias às dele O autor conseguiu atender aos objetivos a que se propôs ao iniciar a obra Que contribuições a obra traz para sua área de conhecimento ou grupo específico de leitores É possível justificar o uso dessa obra no contexto em que foi indicada uma disciplina da universidade por exemplo Qual o comentário final mais importante que você faria a respeito dessa obra Você tem sugestões para futuras pesquisas nessa área De que maneiras lerassistir essa obra contribuiu para sua formação Como fazer a resenha de um texto acadêmico Quando falamos de textos acadêmicos pouca coisa muda em relação aos demais tipos de materiais livros filmes palestras etc Você deve considerar no entanto que um texto acadêmico deve ser impessoal seus verbos nunca serão escritos em primeira pessoa eu nós Portanto ao resenhar esse tipo de texto siga as dicas já expostas acima mas tenha um cuidado ainda maior com a linguagem e atente para as normas da ABNT Conclusão Fazer uma resenha parece muito fácil à primeira vista mas devemos tomar muito cuidado pois dependendo do lugar resenhistas podem fazer um livro mofar nas prateleiras ou transformar um filme em um verdadeiro fracasso As resenhas são ainda além de um ótimo guia para os apreciadores da arte em geral uma ferramenta essencial para acadêmicos que precisam selecionar quantidades enormes de conteúdo em um tempo relativamente pequeno Agora é questão de colocar a mão na massa e começar a produzir suas próprias resenhas Referência bibliográfica DIDIO Lucie Leitura e produção de textos 1ª edição São Paulo Atlas 2013 Roberto DaMatta O que faz o brasil Brasil 2 Roberto DaMatta O que faz o brasil Brasil Rocco Rio de Janeiro 1986 3 Copyright 1984 by Roberto Augusto Damatta Direitos para a língua portuguesa reservados com exclusividade para o Brasil à EDITORA ROCCO LTDA Rua Visconde de Pirajá 414 Gr 1405 CEP 22410 Rio de Janeiro RJ Tel 2871493 Printed in BrazilImpresso no Brasil Ilustrações Jimmy Scott Este Livro foi composto pela Memphis Produções Gráficas Ltda Rua Visconde de Inhaúma 64 2 andar Centro Rio RJ e impresso pela Gráfica Portinho Cavalcanti Ltda Rua de Santana 136 Centro Rio RJ em agosto de 1986 para a Editora Rocco Ltda 4 Em memória de Francisca Schurig Vieira Keller minha saudosa amiga que tantas vezes fez a pergunta deste livro Em memória de Daniel Rodrigues na sua generosidade portuguesa e brasileira Para D Dalila Pereira da Costa Agostinho da Silva e D Maria Violante todos portugueses todos brasileiros E para Almir Bruneti na sua nobre hospitalidade 5 Índice com a numeração das páginas no original O que faz o brasil Brasil A questão da identidade 9 A casa a rua e o trabalho 21 A ilusão das relações raciais 35 Sobre comidas e mulheres 49 O carnaval ou o mundo como teatro e prazer 65 As festas da ordem 79 O modo de navegação social a malandragem e o jeitinho 93 Os caminhos para Deus 107 Palavras finais 119 Roberto DaMatta por ele mesmo 123 A propósito do ilustrador 126 Texto da contracapa O QUE FAZ O BRASIL BRASIL Este livro escrito por um dos mais importantes antropólogos brasileiros não pretende trazer uma definição exaustiva ou uma versão definitiva do que é o Brasil Mas nos proporciona a surpresa do verdadeiro encontro pois O que faz o brasil Brasil é justamente aquilo que faz com que nos reconheçamos como brasileiros nos mínimos e mais variados gestos Múltiplo e rico o Brasil é o país do carnaval e do feijão com arroz da mistura e da fantasia Mas também do jeitinho que dribla a lei e da hierarquia velada pela cordialidade Somos brasileiros na devoção e no sincretismo no culto à ordem e na malandragem no trabalho duro e na preguiça O Brasil maiúsculo que Roberto DaMatta apresenta não é um conjunto de instituições ou de fatos históricos e sim o fundamento de nossa identidade Nossa brasilidade é um estilo uma maneira particular de construir e perceber a realidade 7 1 O que faz o brasil Brasil A questão da identidade Devo começar explicando o meu enigmático título É que será preciso estabelecer uma distincão radical entre um brasil escrito com letra minúscula nome de um tipo de madeira de lei ou de uma feitoria interessada em explorar uma terra como outra qualquer e o Brasil que designa um povo uma nação um conjunto de valores escolhas e ideais de vida O brasil com o b minúsculo é apenas um objeto sem vida autoconsciência ou pulsação interior pedaço de coisa que morre e não tem a menor condição de se reproduzir como sistema como aliás queriam alguns teóricos sociais do século XIX que viam na terra um pedaço perdido de Portugal e da Europa um conjunto doentio e condenado de raças que misturandose ao sabor de 8 uma natureza exuberante e de um clima tropical estariam fadadas à degenerarão e à morte biológica psicológica e social Mas o Brasil com B maiúsculo é algo muito mais complexo É país cultura local geográfico fronteira e território reconhecidos internacionalmente e também casa pedaço de chão calçado com o calor de nossos corpos lar memória e consciência de um lugar com o qual se tem uma ligação especial única totalmente sagrada É igualmente um tempo singular cujos eventos são exclusivamente seus e também temporalidade que pode ser acelerada na festa do carnaval que pode ser detida na morte e na memória e que pode ser trazida de volta na boa recordação da saudade Tempo e temporalidade de ritmos localizados e assim insubstituíveis Sociedade onde pessoas seguem certos valores e julgam as ações humanas dentro de um padrão somente seu Não se trata mais de algo inerte mas de uma entidade viva cheia de autoreflexão e consciência algo que se soma e se alarga para o futuro e para o passado num movimento próprio que se chama História Aqui o Brasil é um ser parte conhecido e parte misterioso como um grande e poderoso espírito Como um Deus que está em todos os lugares e em nenhum mas que também precisa dos homens para que possa se saber superior e onipotente Onde quer que haja um brasileiro adulto existe com ele o Brasil e no entanto tal como acontece com as divindades será preciso produzir e provocar a sua manifestação para que se possa sentir sua concretude e seu poder Caso contrário sua presença é tão inefável como a do ar que se respira e dela não se teria consciência a não ser pela comparação pelo contraste e pela percepção de algumas de suas manifestações mais contundentes Os deuses conforme sabemos existem somente para serem vistos em certos momentos e dentro de certas molduras O mesmo ocorre com as sociedades Geralmente estamos habituados a tomar conhecimento das sociedades e sobretudo da nossa sociedade por meio de suas manifestações mais oficiais e mais nobres Tal como ocorre às divindades que só são encontradas nas igrejas também as sociedades só são normalmente percebidas quando surgem nas suas vozes mais cultas Para os tradicionalistas aqueles que têm olhos e não vêem os deuses se acham nos sacrários nas capelas e nos livros sagrados de reza e devoção Para os observadores menos imaginativos e sensíveis uma sociedade está nas suas ciências letras e artes A visão oficial contradiz a voz a visão do povo e ainda a experiência da condição humana que generosamente enxerga Deus em toda parte no rito pomposo e solene da catedral e na visão tresloucada do místico nu e faminto em sua cela de preocupações com o destino dos 9 homens e sobrecarregado pelo peso fantástico dos múltiplos sentidos desta vida Neste livro com ajuda de uma Antropologia Social praticada com destemor e que proporciona uma visão da sociedade aberta e relativizada pela comparação queremos examinar alguns aspectos da sociedade brasileira que o povo encara e certamente ama como uma divindade Porque aqui como lá o Brasil está em toda parte Nas leis e nas nobres artes da política e da economia das quais temos que falar sempre num idioma oficial e dobrando a língua mas também na comida que comemos na roupa que vestimos na casa onde moramos e na mulher que amamos e adoramos Para essa perspectiva o Brasil deve ser procurado nos rituais nobres dos palácios de justiça dos fóruns das câmaras e das pretorias onde a letra clara da lei define suas instituições mais importantes mas também no jeitinho malandro que soma a lei com a pessoa na sua vontade escusa de ganhar embora a regra fria e dura como o mármore da Justiça não a tenha tomado em consideração Aqui portanto o Brasil está em toda parte ou melhor pode ser encontrado em toda parte O erro foi procuralo onde ele não gostava de estar ou simplesmente não podia nem devia estar Como se uma sociedade pudesse ser definida como uma máquina a partir de uma planta de engenharia dada de fora Na certeza de que as visões do Brasil a partir de suas coisas oficiais sagradas sérias e legais são as mais correntes e familiares quero aqui revelalo por meio de outros ângulos e de outras questões Não se trata mais da visão exclusivamente oficial e bemcomportada dos manuais de história social que se vendem em todas as livrarias e os professores discutem nas escolas Mas de uma leitura do Brasil que deseja ser maiúsculo por inteiro o BRASIL do povo e das suas coisas Da comida da mulher da religião que não precisa de teologia complicada nem de padres estudados Das leis da amizade e do parentesco que atuam pelas lágrimas pelas emoções do dar e do receber e dentro das sombras acolhedoras das casas e quartos onde vivemos o nosso quotidiano Dos jogos espertos e vivos da malandragem e do carnaval onde podemos vadiar sem sermos criminosos e assim fazendo experimentamos a sublime marginalidade que tem hora para começar e terminar Deste Brasil que de algum modo se recusa a viver de forma totalmente planificada e hegemonicamente padronizada pelo dinheiro das contas bancárias ou pelos planos qüinqüenais dos ministérios encantados pelos vários tecnocratas e ideólogos que aí estão à espera de um chamado BRASIL com 10 maiúsculas que sabe tão bem conjugar lei com grei indivíduo com pessoa evento com estrutura comida farta com pobreza estrutural hino sagrado com samba apócrifo e relativizador de todos os valores carnaval com comício político homem com mulher e até mesmo Deus com o Diabo Por tudo isso é que estamos interessados em responder nas páginas que seguem esta pergunta que embarga e que emociona afinal de contas o que faz o brasil BRASIL Notese que se trata de uma pergunta relacional que tal como faz a própria sociedade brasileira quer juntar e não dividir Não queremos ver um Brasil pequeno e outro grande já feito Não Queremos isto sim descobrir como é que eles se ligam entre si como é que cada um depende do outro e como os dois formam uma realidade única que existe concretamente naquilo que chamamos de pátria Numa linguagem mais precisa e mais sociológica dirseia que o primeiro brasil é dado nas possibilidades humanas mas que o segundo Brasil é feito de uma combinação especial dessas possibilidades universais O mistério dessa escolha é imenso mas a relação é importante Porque ela define um estilo um modo de ser um jeito de existir que não obstante estar fundado em coisas universais é exclusivamente brasileiro Assim o ponto de partida deste ensaio é o seguinte tanto os homens como as sociedades se definem por seus estilos seus modos de fazer as coisas Se a condição humana determina que todos os homens devem comer dormir trabalhar reproduzirse e rezar essa determinação não chega ao ponto de especificar também que comida ingerir de que modo produzir com que mulher ou homem acasalarse e para quantos deuses ou espíritos rezar É precisamente aqui nessa espécie de zona indeterminada mas necessária que nascem as diferenças e nelas os estilos os modos de ser e estar os jeitos de cada qual Porque cada grupo humano cada coletividade concreta só pode pôr em prática algumas dessas possibilidades de atualizar o que a condição humana apresenta como universal As restantes ficam como uma espécie de fantasma a nos recriminar pelo fato de as termos deixado nos bastidores como figuras banidas de nosso palco embora estejam de algum modo presentes na peça e no teatro No fundo essa questão do relacionamento dos universais de qualquer sistema com um sistema específiço é das mais apaixonantes de quantas existem no panorama das Ciências Humanas Tratase sempre da questão da identidade De saber quem somos e como somos de saber por que somos Sobretudo 11 quando nos damos conta de que o homem se distingue dos animais por ter a capacidade de se identificar justificar e singularizar de saber quem ele é De fato a identidade social é algo tão importante que o conhecerse a si mesmo através dos outros deixou os livros de filosofia para se constituir numa busca antropologicamente orientada Mas o mistério como se pode adivinhar não fica na questão do saber quem somos Pois será necessário descobrir como construímos nossas identidades Sei que sou José da Silva brasileiro casado funcionário público torcedor do Flamengo carnavalesco da Mangueira apreciador incondicional das mulatas católico e umbandista jogador esperançoso e inveterado da loto porque acredito em destino e não outra pessoa qualquer Em sendo José não sou Napoleão ou William Smith cidadão americano de Nova York ou Ivan Ivanovich patriota soviético Posso distinguirme assim porque me associo intensamente a uma série de atributos especiais e porque com eles e através deles formo uma história a minha história Mas como é que sei o que sou Como posso discutir a passagem do ser humano que nasci para o brasileiro que sou Como se constrói uma identidade social Como um povo se transforma em Brasil A pergunta na sua discreta singeleza permite descobrir algo muito importante É que no meio de uma multidão de experiências dadas a todos os homens e sociedades algumas necessárias à própria sobrevivência como comer dormir morrer reproduzirse etc outras acidentais ou superficiais históricas para ser mais preciso o Brasil foi descoberto por portugueses e não por chineses a geografia do Brasil tem certas características como as montanhas na costa do CentroSul sofremos pressão de certas potências européias e não de outras falamos português e não francês a família real transferiuse para o Brasil no início do século XIX etc Cada sociedade e cada ser humano apenas se utiliza de um número limitado de coisas e de experiências para construirse como algo único maravilhoso divino e legal Sei então que sou brasileiro e não norteamericano porque gosto de comer feijoada e não hambúrguer porque sou menos receptivo a coisas de outros países sobretudo costumes e idéias porque tenho um agudo sentido de ridículo para roupas gestos e relações sociais porque vivo no Rio de Janeiro e não em Nova York porque falo português e não inglês porque ouvindo música popular sei distinguir imediatamente um frevo de um samba porque futebol para mim é um jogo que se pratica com os pés e não com as mãos porque vou à praia para ver e conversar com os amigos ver as mulheres e 12 tomar sol jamais para praticar um esporte porque sei que no carnaval trago à tona minhas fantasias sociais e sexuais porque sei que não existe jamais um não diante de situações formais e que todas admitem um jeitinho pela relação pessoal e pela amizade porque entendo que ficar malandramente em cima do muro é algo honesto necessário e prático no caso do meu sistema porque acredito em santos católicos e também nos orixás africanos porque sei que existe destino e no entanto tenho fé no estudo na instrução e no futuro do Brasil porque sou leal a meus amigos e nada posso negar a minha família porque finalmente sei que tenho relações pessoais que não me deixam caminhar sozinho neste mundo como fazem os meus amigos americanos que sempre se vêem e existem como indivíduos Pois bem somando esses traços formase uma seqüência que permite dizer quem sou em contraste com o que seria um americano aqui definido pelas ausências ou negativas que a mesma lista efetivamente comporta A construção de uma identidade social então como a construção de uma sociedade é feita de afirmativas e de negativas diante de certas questões Tome uma lista de tudo o que você considera importante leis idéias relativas a família casamento e sexualidade dinheiro poder político religião e moralidade artes comida e prazer em geral e com ela você poderá saber quem é quem Não é de outro modo que se realizam as pesquisas antropológicas e sociológicas Descobrindo como as pessoas se posicionam e atualizam as coisas desta lista você fará um inventário de identidades sociais e de sociedades Isso lhe permitirá descobrir o estilo e o jeito de cada sistema Ou como se diz em linguagem antropológica a cultura ou ideologia de cada sociedade Porque para mim a palavra cultura exprime precisamente um estilo um modo e um jeito repito de fazer coisas Mas é preciso não esquecer que essas escolhas seguem uma ordem É certo que eu inventei um brasileiro e um americano que o acompanhava por contraste linhas atrás mas quem me garante que aquilo que disse é convincente para definir um brasileiro foi a própria sociedade brasileira Ou seja quando eu defini o brasileiro como sendo amante do futebol da música popular do carnaval da comida misturada dos amigos e parentes dos santos e orixás etc usei uma fórmula que me foi fornecida pelo Brasil O que faz um ser humano realizarse concretamente como brasileiro é a sua disponibilidade de ser assim Caso eu falasse em elegância no vestir e no falar no gosto pelas artes plásticas na visita sistemática a museus no amor pela música clássica na falta de riso nas anedotas no horror ao carnaval e 13 ao futebol etc certamente estaria definindo outro povo e outro homem Isso indica claramente que é a sociedade que nos dá a fórmula pela qual traçamos esses perfis e com ela fazemos desenhos mais ou menos exatos Tudo isso nos leva a descobrir que existem dois modos básicos de construir a identidade brasileira o de fazer o brasil Brasil Num deles utilizamos dados precisos as estatísticas demográficas e econômicas os dados do PIB PNB e os números da renda per capita e da inflação que sempre nos assusta e apavora Falamos também dos dados relativos ao sistema político e educacional do país apenas para constatar que o Brasil não é aquele país que gostaríamos que fosse Essa classificação permite construir uma identidade social moderna de acordo com os critérios estabelecidos pelo Ocidente europeu a partir da Revolução Francesa e da Revolução Industrial Aqui somos definidos por meio de critérios objetivos quantitativos e claros É assim sabemos e descobrimos com surpresa que algumas sociedades se definem Realmente a Inglaterra a França a Alemanha e sobretudo os Estados Unidos são quase exclusivamente definidos por meio deste eixo classificatório que é ele mesmo invenção sua Mas no caso do Brasil e de outras sociedades o problema é que existe outro modo de classificação A identidade se constrói duplamente Por meio dos dados quantitativos onde somos sempre uma coletividade que deixa a desejar e por meio de dados sensíveis e qualitativos onde nos podemos ver a nós mesmos como algo que vale a pena Aqui o que faz o brasil Brasil não é mais a vergonha do regime ou a inflação galopante e sem vergonha mas a comida deliciosa a música envolvente a saudade que humaniza o tempo e a morte e os amigos que permitem resistir a tudo É uma descoberta importante creio dizer que nós temos dado muito mais atenção a um só desses eixos classificatórios querendo discutir o Brasil apenas como uma questão de modernidade e de economia e política ou ao contrário reduzindo sua realidade a um problema de família de relações pessoais e de cordialidade Para mim não se trata nem de uma coisa nem de outra mas das duas que são dadas de modo simultâneo e complexo Nessa perspectiva que é a deste pequeno livro a chave para entender a sociedade brasileira é uma chave dupla De um lado ela é moderna e eletrônica mas de outro é uma chave antiga e trabalhada pelos anos É típica de nosso sistema essa capacidade de misturar e acasalar as coisas que tenho discutido no meu trabalho como uma atividade relacional de ligar e descobrir um ponto central 14 Conhecemos e convivemos com suas manifestações políticas a negociação e a conciliação e econômicas uma economia que é estatizante e ao mesmo tempo segue as linhas mestras do capitalismo clássico mas de certo modo não discutimos as suas implicações sociológicas mais profundas E para mim essas implicações se escondem nesta ligação ou capacidade relacional do antigo com o moderno que tipifica e singulariza a sociedade brasileira Assim conforme tentarei mostrar nas páginas que seguem e com a ajuda do talento gráfico de Jimmy Scott o que faz o brasil Brasil é uma imensa uma inesgotável criatividade acasaladora Sustento que enquanto não formos capazes de discernir essas duas faces de uma mesma nação e sociedade estaremos fadados a um jogo cujo resultado já se sabe de antemão Pois como ocorre com as moedas ou teremos como jogada um brasil pequeno e defasado das potências mundiais Brasil que nos leva a uma autoflagelação desanimadora ou teremos como jogada o Brasil dos milagres e dos autoritarismos políticos e econômicos que periodicamente entra numa crise Será preciso portanto discutir o Brasil como uma moeda Como algo que tem dois lados E mais como uma realidade que nos tem iludido precisamente porque nunca lhe propusemos esta questão relacional e reveladora afinal de contas como se ligam as duas faces de uma mesma moeda O que faz o brasil Brasil É o que veremos a seguir 15 2 A casa a rua e o trabalho Observese uma cidade brasileira Nela há um nítido movimento rotineiro Do trabalho para casa de casa para o trabalho A casa e a rua interagem e se complementam num ciclo que é cumprido diariamente por homens e mulheres velhos e crianças Pelos que ganham razoavelmente e até mesmo pelos que ganham muito bem Uns fazem o percurso casaruacasa a pé outros seguem de bicicleta Muitos andam de trens ônibus e automóveis mas todos fazem e refazem essa viagem que constitui de certo modo o esqueleto da nossa rotina diária Há uma divisão clara entre dois espaços sociais fundamentais que dividem a vida social brasileira o mundo da casa e o mundo da rua onde estão teoricamente o trabalho o movimento a surpresa e a tentação 16 É claro que a rua serve também como o espaço típico do lazer Mas ela como um conceito inclusivo e básico da vida social como rua é o lugar do movimento em contraste com a calma e a tranqüilidade da casa o lar e a morada De fato na casa ou em casa somos membros de uma família e de um grupo fechado com fronteiras e limites bem definidos Seu núcleo é constituído de pessoas que possuem a mesma substância a mesma carne o mesmo sangue e conseqüentemente as mesmas tendências Tal substância física se projeta em propriedades e muitas outras coisas comuns A idéia de um destino em conjunto e de objetos relações valores as chamadas tradições de família que todos do grupo sabem que importa resguardar e preservar Disse que isso se chamava tradição e é assim que normalmente falamos desses símbolos coletivos que distinguem uma residência dandolhe certo estilo e certa maneira de ser e estar Mas tais valores podem também ser chamados de honra e vergonha pois as famílias bemdefinidas e com alto sentido de casa e grupo são coletividades que atuam com uma personalidade coletiva bemdefinida De tal ordem que elas são uma pessoa moral algo que age unitária e corporativamente como um indivíduo entre outros Daí a idéia tão corrente mesmo no nosso Brasil urbano e moderno da proteção das fronteiras da casa seja de suas soleiras materiais quem não está preocupado com o fechamento de suas portas e janelas todas as noites seja principalmente de suas entradas e saídas morais Por tudo isso o grupo que ocupa uma casa tem alto sentido de defesa de seus bens móveis e imóveis e junto com isso da proteção de seus membros mais frágeis como as crianças as mulheres e seus servidores Pois diferentemente de outros países modernos aqui no Brasil as casas possuem serviçais que em certo sentido lhes pertencem E cuidase de seu bemestar porque a idéia de residência é um fato social totalizante conforme diria Márcel Mauss Ou seja quando falamos da casa não estamos nos referindo simplesmente a um local onde dormimos comemos ou que usamos para estar abrigados do vento do frio ou da chuva Mas isto sim estamos nos referindo a um espaça profundamente totalizado numa forte moral Uma dimensão da vida social permeada de valores e de realidades múltiplas Coisas que vêm do passado e objetos que estão no presente pessoas que estão saindo deste mundo e pessoas que a ele estão chegando gente que está relacionada ao lar desde muito tempo e gente que se conhece de agora Não se trata de um lugar físico mas de um lugar moral esfera onde nos realizamos basicamente como seres humanos que têm um 17 corpo físico e também uma dimensão moral e social Assim na casa somos únicos e insubstituíveis Temos um lugar singular numa teia de relações marcadas por muitas dimensões sociais importantes como a divisão de sexo e de idade Mas se em casa somos classificados pela idade e pelo sexo como respectivamente mais velhos ou mais moços e como homens e mulheres e aqui temos dimensões sociais que são provavelmente as primeiras que aprendemos na sociedade brasileira nela somos também determinados por tudo o que a honra a vergonha e o respeito esses valores grupais acabam determinando Quero referirme ao amor filial e familial que se deve estender pelos compadres e pelos amigos para quem as portas de nossas casas estão sempre abertas e nossa mesa está sempre posta e farta A conjunção de tudo isso faz com que nós brasileiros tenhamos uma percepção de nossas moradas como lugares singulares espaços exclusivos Pois cada casa embora tenha os mesmos espaços e basicamente os mesmos objetos de todas as outras é diferente delas Todas são únicas se não como espaço físico de morada pelo menos como domínio onde se realiza uma convivialidade social profunda Daí a possibilidade de diferenciar 18 profundamente a casa ou a morada o prédio do lar Mesmo quando são residências baratas ou casas de vila construídas de modo idêntico algo marca e revela sua identidade e com isso a identidade do grupo que a ocupa um pedaço de azulejo estrategicamente colocado próximo de uma janela um nome singelo na parte de cima da soleira da porta flores e jardins a cor de suas janelas e portas Por ser um espaço assim inclusivo e simultaneamente exclusivo a casa pode ter também seus agregados Pessoas que vivem no domicílio mas que não são parte da família Um parente que veio do Norte em busca de médico ou segurança psicológica um amigo em dificuldade financeira ou crise matrimonial um velho empregado que não tem para onde ir nem lugar para ficar um compadre que precisa de emprego e necessita falar com uma autoridade da grande cidade um amigo que precisa de um santuário para evitar a prisão motivada por idéias e convicções políticas uma mulher que temporariamente foge do pai ou irmão para acertar definitivamente sua nova filiação social Até mesmo os animais domésticos podem incluirse nessa definição pois de fato participam do espaço positivo da residência ajudando a conceituala de modo socialmente positivo ou negativo Não é à toa que falamos que nosso cachorro é mais manso e mais esperto que nosso gato tem o pêlo mais luzidio e a preguiça mais bonita e gostosa e que nosso passarinho canta mais bonito e mais alto Tudo afinal de contas que está no espaço da nossa casa é bom é belo e é sobretudo decente Até mesmo as nossas plantas são mais viçosas que as dos vizinhos e amigos E como não podemos por causa de uma proibição extremamente moral aquilo que nós antropólogos chamamos de tabu comer nossos animais domésticos noto que entre os astecas os cães eram comidos e vendidos no mercado nem nossas plantas caseiras eles cumprem uma função estritamente simbólica De fato são criados para diferenciar e não para cumprir qualquer função prática Assim são como nós e nos ajudam a estabelecer nossa mais profunda identidade social como membros indiferenciados de um mundo anônimo e asfaltado onde ninguém conhece ninguém esse mundo tenebroso da selva de pedra e como membros diferenciados que residem numa dada parte da cidade e que podem transformar esse local onde moram em algo único especial singular e legal Tudo isso repito que nós diferenciamos como o espaço do lar Algo que contrasta terrivelmente com a morada coletiva das prisões dormitórios alojamentos e hotéis e motéis onde não se pode efetivamente projetar nas paredes nas portas no chão e nas janelas a nossa identidade 19 social Como espaço moral importante e diferenciado a casa se exprime numa rede complexa e fascinante de símbolos que são parte da cosmologia brasileira isto é de sua ordem mais profunda e perene Assim a casa demarca um espaço definitivamente amoroso onde a harmonia deve reinar sobre a confusão a competição e a desordem Em casa sabemos todos como bons brasileiros que somos não devemos comprar vender ou trocar O comércio está excluído da casa como o Diabo se exclui do bom Deus Do mesmo modo as discussões políticas que revelam e indicam posições individualizadas e quase sempre discordantes dos membros de uma família estão banidas da mesa e das salas íntimas sobretudo dos quartos Se elas são inevitáveis transcorrem certamente nas varandas e quintais locais marginais da casa posto que situados entre o seu interior cujo calor revela a igualdade de substância e de opiniões das pessoas que ali residem e a rua o mundo exterior que se mede pela luta pela competição e pelo anonimato cruel de individualidades e individualismos Daí por que em casa e no código da família brasileira existe uma tendência de produzir sempre um discurso conservador onde os valores morais tradicionais são defendidos pelos mais velhos e pelos homens Daí também por que na casa podemos ter de tudo como se ali o espaço fosse marcado por um supremo reconhecimento pessoal uma espécie de supercidadania que contrasta terrivelmente com a ausência total de reconhecimento que existe na rua Em casa portanto tenho tudo e sou reconhecido nos meus mais ínfimos desejos e vontades Sou membro perpétuo de uma corporação a família brasileira que não morre e que com sua rede de compadres empregados servidores e amigos tem muito mais vitalidade e permanência do que o governo e a administração pública que sempre competem com ela pelo respeito do cidadão Digo que a casa por tudo isso provê uma leitura especial do mundo brasileiro É certo que toda sociedade moderna tem casa e rua Mas o meu argumento aqui é no sentido de salientar que a casa entre nós ordena um mundo à parte Universo onde o tempo não é histórico mas cíclico tempo que vive de durações que não se medem por relógios mas por retratos amarelados e corroídos pelas traças como naquela poesia de Drummond Um tempo que é medido pela morte dos mais velhos e pelo batizado dos mais novos Um tempo cuja duração e experiência podem ser revertidas pela doce saudade dos dias em que a família estava toda reunida em torno de alguma figura importante para a sua unidade e sobrevivência enquanto grupo uno e integrado Quer dizer quando observamos que a casa contém todas essas dimensões temos que nos dar conta de que vivemos numa 20 sociedade onde casa e rua são mais que meros espaços geográficos São modos de ler explicar e falar do mundo Mas como é o espaço da rua Bem já sabemos que ela é local de movimento Como um rio a rua se move sempre num fluxo de pessoas indiferenciadas e desconhecidas que nós chamamos de povo e de massa As palavras são reveladoras Em casa temos as pessoas e todos lá são gente nossa gente Mas na rua temos apenas grupos desarticulados de indivíduos a massa humana que povoa as nossas cidades e que remete sempre à exploração e a uma concepção de cidadania e de trabalho que é nitidamente negativa De fato falamos da rua como um lugar de luta de batalha espaço cuja crueldade se dá no fato de contrariar frontalmente todas as nossas vontades Daí por que dizemos que a rua é equivalente à dura realidade da vida O fluxo da vida com suas contradições durezas e surpresas está certamente na rua onde o tempo é medido pelo relógio e a história se faz acrescentando evento a evento numa cadeia complexa e infinita Na rua então o tempo corre voa e passa Muito mais que no lar onde ele está suspenso entre as relações prazerosas e amorosas de todos com todos Mas aqui no negro do asfalto no calor da caminhada para se chegar a algum lugar no nervosismo do confronto com o policial imbuído de sua autoridade legal que nos trata como coisas e como indivíduos sem nome nem face o reino é sinônimo de luta e sangue Na rua não há teoricamente nem amor nem consideração nem respeito nem amizade É local perigoso conforme atesta o ritual aflitivo e complexo que realizamos quando um filho nosso sai sozinho pela primeira vez para ir ao cinema ao baile ou à escola Que insegurança nos possui quando um pedaço de nosso sangue e de nossa casa vai ao encontro desse oceano de maldade e insegurança que é a rua brasileira Não é pois ao léu que damos conselhos quando alguém se aventura nesta selva Lá falamos sempre e nosso próprio comportamento na rua acaba confirmando nossas piores e mais sombrias profecias estamos no reino do engano da confusão e do logro Local onde ninguém nos respeita como gente ou pessoa como entidade moral dotada de rosto e vontade A rua compensa a casa e a casa equilibra a rua No Brasil casa e rua são como os dois lados de uma mesma moeda O que se perde de um lado ganhase do outro o que é negado em casa como o sexo e o trabalho temse na rua Não creio ser necessário chamar a atenção para o fato significativo de que em nossa classificação de eventos relações e pessoas a casa e a rua entram como um eixo dos mais fundamentais Assim se a mulher é da rua ela deve ser vista e tratada de um 21 modo Tratase para ser mais preciso das chamadas mulheres da vida pois rua e vida formam uma equação importante no nosso sistema de valores Do mesmo modo se a discussão foi na rua então é quase certo que pode degenerar em conflito Em casa pode promover um alto entendimento Também falamos que comida de rua é ruim ou venenosa enquanto a comida caseira é boa ou deve ser assim por definição Até mesmo objetos e pessoas como crianças podem ser diferentemente interpretados caso sejam da rua ou de casa Por tudo isso o universo da rua tal como ocorre com o mundo da casa é mais que um espaço físico demarcado e universalmente reconhecido Pois para nós brasileiros a rua forma uma espécie de perspectiva pela qual o mundo pode ser lido e interpretado Uma perspectiva repito oposta mas complementar à da casa e onde predominam a desconfiança e a insegurança Aqui quem governa não é mais o pai o irmão o marido a mulher e as redes de parentesco e amizade que nos têm como uma pessoa e um amigo Ao contrário o comando é dado à autoridade que governa com a lei a qual torna todo mundo igual no propósito de desautorizar e até mesmo explorar de forma impiedosa Todos sabemos por experiência respeitável e profunda que na rua não se deve brincar com quem representa a ordem pois naquele espaço se corre o grave risco de ser confundido com quem é ninguém E entre ser alguém e ser ninguém há um mundo no caso brasileiro Um universo ou abismo que passa pela construção do espaço da casa com seu aconchego e sua rede imperativa de relações calorosas e o espaço da rua com seu anonimato e sua insegurança suas leis e sua polícia Daí por que na rua tendemos a ser todos revolucionários e revoltados membros destituídos de uma massa de anônimos trabalhadores Mas além disso tudo a rua é espaço que permite a mediação pelo trabalho o famoso batente nome já indicativo de um obstáculo que temos que cruzar ultrapassar ou tro peçar Trabalho que no nosso sistema é concebido como castigo E o nome diz tudo pois a palavra deriva do latim tripaliare que significa castigar com o tripaliu instrumento que na Roma Antiga era um objeto de tortura consistindo numa espécie de canga usada para supliciar escravos Entre a casa onde não deve haver trabalho e curiosa e erroneamente não tomamos o trabalho doméstico como tal mas como serviço ou até mesmo prazer ou favor e a rua o trabalho duro é visto no Brasil como algo bíblico Muito diferente da concepção anglosaxã que equaciona trabalho work com agir e fazer de acordo com sua concepção 22 original Entre nós porém perdura a tradição católica romana e não a tradição reformadora de Calvino que transformou o trabalho como castigo numa ação destinada à salvação Mas nós brasileiros que não nos formamos nessa tradição calvinista achamos que o trabalho é um horror Não é à toa que o nosso panteão de heróis oscila entre uma imagem deificada do malandro aquele que vive na rua sem trabalhar e ganha o máximo com um mínimo de esforço o renunciador ou o santo aquele que abandona o trabalho neste e deste mundo e vai trabalhar para o outro como fazem os santos e líderes religiosos e o caxias que talvez não seja o trabalhador mas o cumpridor de leis que devem obrigar os outros a trabalhar O fato é que não temos a glorificação do trabalhador nem a idéia de que a rua e o trabalho são locais onde se pode honestamente enriquecer e ganhar dignidade Para nós esses espaços e essa mediação entre casa e rua pelo trabalho são algo muito complexo Mas poderia ser de outro jeito numa sociedade em que até outro dia havia escravos e onde as pessoas decentes não saíam à rua nem podiam trabalhar com as mãos É claro que não No nosso sistema tão fortemente marcado pelo trabalho escravo as relações entre patrões e empregados ficaram definitivamente confundidas Não era algo apenas econômico mas também uma relação moral onde não só um tirava o trabalho do outro mas era seu representante e dono perante a sociedade como um todo O patrão num sistema escravocrata é mais que um explorador de trabalho sendo dono e até mesmo responsável moral pelo escravo Essas relações são complicadas e dizem os especialistas muito difíceis de serem mantidas em nível produtivo Pois aqui a relação vai do econômico ao moral totalizandose em muitas dimensões e atingindo diversas camadas sociais Creio que isso embebeu de tal modo as nossas concepções de trabalho e suas relações que até hoje misturamos uma relação puramente econômica com laços pessoais de simpatia e amizade o que confunde o empregado e permite ao patrão exercer duplo controle da situação Ele assim pode governar o trabalho pois é quem oferece o emprego e pode controlar as reivindicações dos empregados pois apela para a moralidade das relações pessoais que em muitos casos e sobretudo nas pequenas empresas e no comércio tende a ofuscar a relação patrão empregado O caso mais típico e mais claro dessa problemática muito complexa e a meu ver ainda pouco estudada é o das chamadas empregadas domésticas as quais são pessoas que vivendo nas casas dos seus patrões realizam aquilo que em casa está banido por definição o trabalho Nessa 23 situação elas repetem a mesma situação dos escravos da casa de antigamente permitindo confundir relações morais de intimidade e simpatia com uma relação puramente econômica quase sempre criando um conjunto de dramas que estão associados a esse tipo de relação de trabalho onde o econômico está subordinado ao político e ao moral ou neles embebido Tal como deve ocorrer quando a casa se mistura com a rua O fato porém é que a concepção de trabalho fica confundida num sistema onde as mediações entre casa e rua são tão complexas E onde como vimos casa e rua são mais que locais físicos São também espaços de onde se pode julgar classificar medir avaliar e decidir sobre ações pessoas relações e moralidades Compensandose mutuamente e sendo ambas complementadas pelo espaço do outro mundo onde residem deuses e espíritos casa e rua formam os espaços básicos através dos quais circulamos na nossa sociabilidade Sobretudo porque o que falta na rua existe em abundância na casa E ainda porque eles não podem ser confundidos sob pena de grandes confusões e desordens 24 3 A ilusão das relações raciais No século XVIII Antonil percebeu algo interessante numa sociedade dividida entre senhores e escravos e escreveu O Brasil é um inferno para os negros um purgatório para os brancos e um paraíso para os mulatos A frase foi como sempre acontece com as coisas profundas que são faladas com simplicidade mal entendida É que quase todos os seus intérpretes viram nela uma afirmativa ao pé da letra algo que se referia exclusivamente a um fenômeno biológico e racial quando de fato ela diz muito mais de fatos sociológicos básicos Na verdade penso que caso se queira ter uma compreensão mais profunda e original das relações raciais que existem no Brasil será necessário tomar essa expressão nos seus sentidos velados considerando todas as suas implicações morais e políticas E elas conforme 25 veremos a seguir nos levam muito longe de uma mera questão fisiológica de raças Digo que a frase de Antonil tem um sentido sociológico e simbólico profundo porque no contexto das teorias raciais do momento ela é no mínimo contraditória Realmente não custa relembrar que as teorias racistas européias e norte americanas não eram tanto contra o negro ou o amarelo o índio genericamente falando também discriminado como inferior que eram nítida e injustamente inferiorizados relativamente ao branco mas que também eram vistos como donos de poucas qualidades positivas enquanto raça O problema maior dessas doutrinas o horror que declaravam era isso sim contra a mistura ou miscigenação das raças É certo diziam elas que havia uma nítida ordem natural que graduava escalonava e hierarquizava as raças humanas conforme ocorria com as espécies de animais e as plantas é certo também afirmavam tais teorias que o branco se situava no alto da escala com o branco da Europa Ocidental assumindo indiscutível posição de liderança na criação animal e humana do planeta Mas era também seguro que amarelos e negros tinham qualidades que a mistura denegria e levava ao extermínio Saber por que tais teorias tinham esse horror à miscigenação é conduzir a curiosidade intelectual para um dos pontoschaves que distinguem e esclarecem o racismo à européia ou à americana e o nosso conhecido dissimulado e disseminado racismo à brasileira Tomese o exemplo mais famoso dessas idéias o Conde de Gobineau que inclusive residiu no Rio de Janeiro como cônsul da França e se tornou amigo e interlocutor intelectual de nosso Imperador D Pedro II Ele diz claramente num livro célebre pelas idéias racistas e pelos erros no que diz respeito à Antropologia das diferenciações humanas que é possível dividir as raças de acordo com três critérios fundamentais o intelecto as propensões animais e as manifestações morais No curso dessa obra significativamente intitulada A diversidade moral e intelectual das raças publicada em 1856 Gobineau entretanto não realiza um exercício simplista no sentido de dizer que a raça branca era superior em tudo Há muita inteligência nos preconceitos e nos autoritarismos Muito ao contrário ao comparar por exemplo brancos e amarelos no que diz respeito às suas propensões animais ele situa os primeiros abaixo dos segundos Quem não se salva porém como infelizmente acontece até hoje na nossa sociedade são os negros sempre e em tudo situados abaixo de brancos e amarelos 26 Mas onde Gobineau realmente excedeu a si mesmo e ousou com confiança inusitada mesmo para quem estava imbuído de uma ideologia autoritária de sua própria superioridade foi na previsão de que o Brasil levaria menos de 200 anos para se acabar como povo Por quê Ora simplesmente porque ele via com seus próprios olhos e escrevia revoltado a seus amigos franceses o quanto a nossa sociedade permitia a mistura insana de raças Essa miscigenação e esse acasalamento é que o certificavam do nosso fim como povo e como processo biológico Seu problema conforme estou revelando não era a existência de raças diferentes desde que essas raças obviamente ficassem no seu lugar e naturalmente não se misturassem Gobineau como se vê foi o pai ou melhor o verdadeiro genitor de um dos valores mais caros ao preconceito racial de qualquer sociedade hierarquizada Refirome ao fato de que ele não se colocou contra a hierarquia que governava conforme supunha a diversidade humana no que diz respeito aos seus traços biológicos mas foi terminantemente contrário ao contato social íntimo entre elas E é precisamente isso conforme sabe mas não expressa todo racista que implica a idéia de miscigenação já que ela importa contato e contato íntimo posto que sexual entre pessoas que na teoria racista são vistas e classificadas como pertencendo a espécies diferentes Daí a palavra mulato que vem de mulo o animal ambíguo e híbrido por excelência aquele que é incapaz de reproduzir se enquanto tal pois é o resultado de um cruzamento entre tipos genéticos altamente diferenciados Mas no seu horror ao mulatismo e ao contato íntimo e amoroso entre os tipos humanos Gobineau não estava só Outros teóricos importantes como Buckle Couty e Agassiz para ficarmos com aqueles que foram influentes entre os teóricos do racismo no Brasil também exprimiram esse medo da mistura e trataram a nossa população como um todo potencialmente degenerado de híbridos incapazes de criarem alguma coisa forte ou positiva Nesse contexto vale a pena citar um trecho escrito por Agassiz opinando precisamente sobre a nossa sociedade Que qualquer um que duvida dos males dessa mistura de raças e se inclina por malentendida filantropia a botar abaixo todas as barreiras que as separam venha ao Brasil Não poderá negar a deterioração decorrente do amálgama de raças mais geral aqui do que em qualquer outro pais do mundo e que vai apagando rapidamente as melhores qualidades do branco do negro e do índio deixando um tipo indefinido híbrido deficiente em energia física e mental O célebre zoólogo de Harvard fecha com Gobineau postulando um futuro terrível para o Brasil É que certamente não 27 havia descoberto o valor positivo do mulatismo e sobretudo a capacidade brasileira de recuperar e trabalhar o ambíguo como dado positivo na glorificação da mulata e do mestiço como sendo no fundo uma síntese perfeita do melhor que pode existir no negro no branco e no índio E agora suponho estamos em posição para retornarmos à frase notável de Antonil a fim de entendêla em toda a sua profundidade Noto primeiramente que Antonil não fala de branco negro e mulato numa equação biológica Ao contrário com eles constrói uma associação social ou normal pois que relaciona o branco com o purgatório o negro com o inferno e o mulato com o paraíso Creio ser a primeira vez que se estabelece um triângulo para o entendimento da sociedade brasileira e isso sustento é significativo e importante Significativo porque eu mesmo tenho repetido seguidamente que o Brasil não é um país dual onde se opera somente com uma lógica do dentro ou fora do certo ou errado do homem ou mulher do casado ou separado de Deus ou Diabo do preto ou branco Ao contrário no caso de nossa sociedade a dificuldade parece ser justamente a de aplicar esse dualismo de caráter exclusivo ou seja uma oposição que determina a inclusão de um termo e a automática exclusão do outro como é comum no racismo 28 americano ou sulafricano que nós brasileiros consideramos brutal porque no nosso caso tudo se passa conforme Antonil maravilhosamente intuiu Isto é entre o preto e o branco que nos sistemas anglosaxão e sulafricano são termos exclusivos1 nós temos um conjunto infinito e variado de categorias intermediárias em que o mulato representa uma cristalização perfeita De modo plenamente coerente com essa ordenação hierarquizada das categorias diferenciais do gênero humano Antonil as equaciona simultaneamente a três espaços sagrados críticos na cosmologia católica romana o paraíso o inferno e o purgatório Não será preciso notar que a correlação aqui é igualmente perfeita Se o mulato é um ser intermediário e ambíguo uma espécie de Dona Flor das relações raciais brasileiras categoria que existe de fato e de direito na ideologia social da sociedade e se legitima precisamente por instituir o intermediário e a síntese dos opostos como algo positivo sua associação com o Paraíso nos ajuda a entender a genial sensibilidade de Antonil para os valores mais profundos da nossa sociedade Porque não há dúvida alguma de que ele percebeu o valor positivo que associamos ao intermediário a categoria que fica no meio ao ser situado entre os extremos e que por isso mesmo permite a sua associação e a negação de suas tendências e características antagônicas Quem inventou ou melhor percebeu a positividade da mulata da mulataria e das categorias intermediárias em geral foi um jesuíta que muito acertadamente equacionou esse valor altamente positivo atribuído a tal categoria na nossa sociedade ao próprio Paraíso Tal associação permite dizer que no Brasil ao contrário do que aconteceu em outros países e eu penso aqui sobretudo nos Estados Unidos não ficamos com uma classificação racial formalizada em preto e branco ou talvez mais precisamente em preto ou branco com aqueles conhecidos refinamentos ideológicos que na legislação norteamericana eram pródigos em descobrir porções ínfimas daquilo que a lei chamava de sangue negro nas veias de pessoas de cor branca que assim passavam a ser consideradas pretas mesmo que sua fenotipia ou aparência externa fosse inconfundivelmente branca Tratase conforme já apontou um sociólogo brasileiro Oracy Nogueira de um tipo de preconceito racial que considera básicas as origens das pessoas e não somente a marca do tipo racial como ocorre no caso brasileiro Desse modo o nosso preconceito seria muito mais contextualizado e sofisticado do que o norteamericano que é direto e formal A conseqüência disso sabemos bem é a dificuldade de combater o nosso preconceito que em certo sentido 29 tem pelo fato de ser variável enorme e vantajosa invisibilidade Na realidade acabamos por desenvolver o preconceito de ter preconceito conforme disse Florestan Fernandes numa frase lapidar O fato de existir uma legislação rígida racista e dualística nos Estados Unidos um conjunto de leis que até bem pouco tempo impediam o movimento de quem era considerado negro em certas áreas urbanas escolas restaurantes hotéis bares e muitas outras instituições sociais revela esse dualismo claro que indica sem maiores embaraços quem está dentro ou fora quem tem direitos e quem não tem quem é branco ou é preto Mas aqui conforme sabemos há uma radical exclusão de todas as categorias intermediárias que são absorvidas com todos os riscos e penalidades às duas categorias principais em franca oposição e em aberta distinção Aqui o mulato não está no paraíso de Antonil mas no inferno E os motivos dessa equação são exatamente opostos É que numa sociedade igualitária e protestante como são os Estados Unidos o intermediário representa tudo o que deve ser excluído da realidade social Dentro de uma sociedade que tentou eliminar a tradição imemorial das leis implícitas aquelas que podiam ser aplicadas ou não que podiam ser lembradas ou não que podiam variar de acordo com quem praticava o crime ou não o mulato o intermediário representava a negação viva de tudo aquilo que a lei estabelecia positivamente Ele mostrava o pecado e o perigo da intimidade entre camadas sociais que deveriam permanecer diferenciadas mesmo que fossem teoricamente consideradas iguais Além disso ele indicava a presença objetiva de uma relação entre camadas que não podiam comunicarse sexual ou afetivamente Do mesmo modo que as leis de uma sociedade igualitária e liberal não admitem o jeitinho ou o mais ou menos as relações entre grupos sociais não podem admitir é intermediação E o mulato é precisamente essa possibilidade que nesses sistemas é definida como imoralidade Lá então diferentemente daqui o negativo é aquele que está entre as coisas e as pessoas O que se busca eliminar é a relação pois a ênfase da ideologia social e dos valores é sempre no papel do indivíduo como o centro e a razão de ser da sociedade A igualdade jurídica e constitucional dos membros da sociedade americana forma uma poderosa tradição que chegou àquele país com os Puritanos ingleses e se consolidou nas doutrinas liberais que marcaram o nascimento e a expansão da sociedade americana como nação Nesse sistema de indivíduos teoricamente iguais a experiência da escravidão E das hierarquias que ela certamente determina por sua própria natureza enquanto sistema pois há escravos da casa e do eito escravos 30 educados e sem instrução escravos que ficam mais perto ou mais longe dos seus senhores e isso engendra uma gradação que atua de modo informal contrabalançando a rigidez das categorias jurídicas que tudo separam entre senhor e escravo foi certamente muito mais problemática do que no caso do Brasil Por quê Primeiro conforme estou revelando pela existência da tradição igualitária que no universo social anglosaxão era muito mais forte que em Portugal ou no Brasil Noto que foi a Inglaterra que deu forma moderna à idéia econômica de mercado e de capitalismo E com isso veio a prática de equacionar todos como iguais perante as leis Foi ali também que variantes radicais do protestantismo como o puritanismo e o calvinismo ganharam amplo terreno Isso tudo conduziu a um individualismo radical possessivo no dizer de um teórico dessas questões o cientista político C B Macpherson Tal ideologia social nega as relações sociais e com isso a presença das redes imperativas de amizade e de parentesco que sustentavam a chamada moral tradicional ou seja aquela moralidade que afirma a importância do todo ou da sociedade sobre o individuo Dentro dela a pessoa é importante porque pertence a uma família e tem compadres e amigos É a relação que ajuda a definila como ser humano e como entidade social significativa Na moralidade individualista moderna porém inaugurada com a Reforma e com a Revolução Industrial a família e a sociedade é que eram constituídas de indivíduos tal como os clubes as paróquias e os partidos políticos Aqui o indivíduo não é possuído ou englobado por sua família ou por seus pais confessores ou patrões Ao contrário é dono de si mesmo e pode em conseqüência dispor de sua força de trabalho individualmente num mercado de homens livres mercado esse que desvincula moralmente quem oferece de quem faz o trabalho Pois bem todos esses fatores tornavam difícil a convivência da escravidão com essa ideologia que no caso dos Estados Unidos é dominante È certamente isso que explica a localização geográfica da economia escravocrata nos Estados da Sul De fato até o advento da Guerra Civil que começa em 1861 e vai até 1865 fazendo mais de 617 mil mortes os Estados Unidos são como se fossem duas sociedades distintas em política economia e sobretudo ideologia e valores Há um Norte igualitário e individualista que não pode admitir a escravidão e um Sul hierarquizado aristocrático e relacional onde 31 existe uma sociedade cheia de nuances parecido nisso tudo com o Brasil A diferença é que nos Estados Unidos o Sul perdeu e o Norte estabeleceu por todo o país sua hegemonia moral e política A contradição gerada pelo negro livre numa sociedade que pregava uma igualdade de todos com todos foi o preconceito racial radical sustentado não somente por costumes e atitudes veladas e muitas vezes secretas de brancos ou de mulatos mas por uma série de leis que explicitamente impediam a competição econômica de negros e brancos como iguais num mercado de trabalhadores livres Tudo isso nos conduz a algumas correlações interessantes que permitem elucidar o caso do racismo à brasileira e do nosso famoso triângulo racial É que primeiramente devemos ressaltar como as sociedades igualitárias engendraram formas de preconceito muito claras porque sua ideologia negava o intermediário a gradação e a relação entre grupos que deveriam permanecer separados embora pudessem ser considerados teoricamente iguais Tal fato não existiu na sociedade brasileira e até hoje tem débil aceitação social Realmente estou convencido de que a sociedade brasileira ainda não se viu como sistema altamente hierarquizado onde a posição de negros índios e brancos está ainda tragicamente de acordo com a hierarquia das raças Numa sociedade onde não há igualdade entre as pessoas o preconceito velado é forma muito mais eficiente de discriminar pessoas de cor desde que elas fiquem no seu lugar e saibam qual é ele Finalmente ao lado disso temos um triângulo racial que impede uma visão histórica e social da nossa formação como sociedade É que quando acreditamos que o Brasil foi feito de negros brancos e índios estamos aceitando sem muita crítica a idéia de que esses contingentes humanos se encontraram de modo espontâneo numa espécie de carnaval social e biológico Mas nada disso é verdade O lato contundente de nossa história é que somos um país feito por portugueses brancos e aristocráticos uma sociedade hierarquizada e que foi formada dentro de um quadro rígido de valores discriminatórios Os portugueses já tinham uma legislação discriminatória contra judeus mouros e negros muito antes de terem chegado ao Brasil e quando aqui chegaram apenas ampliaram essas formas de preconceito A mistura de raças foi um modo de esconder a profunda injustiça social contra negros índios e mulatos pois situando no biológico uma questão profundamente social econômica e política deixavase de lado a problemática mais básica da sociedade De fato é mais fácil dizer que o Brasil foi formado por um triângulo de raças o que nos conduz ao mito da 32 democracia racial do que assumir que somos uma sociedade hierarquizada que opera por meio de gradações e que por isso mesmo pode admitir entre o branco superior e o negro pobre e inferior uma série de critérios de classificação Assim podemos situar as pessoas pela cor da pele ou pelo dinheiro Pelo poder que detêm ou pela feiúra de seus rostos Pelos seus pais e nome de família ou por sua conta bancária As possibilidades são ilimitadas e isso apenas nos diz de um sistema com enorme e até agora inabalável confiança no credo segundo o qual dentro dele cada um sabe muito bem o seu lugar É claro que podemos ter uma democracia racial no Brasil Mas ela conforme sabemos terá que estar fundada primeiro numa positividade jurídica que assegure a todos as brasileiros o direito básico de toda a igualdade o direito de ser igual perante a lei Enquanto isso não for descoberto ficaremos sempre usando a nossa mulataria e os nossos mestiços como modo de falar de um processo social marcado pela desigualdade como se tudo pudesse ser transcrito no plano do biológico e do racial Na nossa ideologia nacional temos um mito de três raças formadoras Não se pode negar o mito Mas o que se pode indicar é que o mito é precisamente isso uma forma sutil de esconder uma sociedade que ainda não se sabe hierarquizada e dividida entre múltiplas possibilidades de classificação Assim o racismo à brasileira paradoxalmente torna a injustiça algo tolerável e a diferença uma questão de tempo e amor Eis numa cápsula o segredo da fábula das três raças 33 4 Sobre comidas e mulheres A sociedade manifestase por meio de muitos espelhos e vários idiomas Um dos mais importantes no caso do Brasil é sem dúvida o código da comida em seus desdobramentos morais que acabam ajudando a situar também a mulher e o feminino no seu sentido talvez mais tradicional Comidas e mulheres assim exprimem teoricamente a sociedade tanto quanto a política a economia a família o espaço e o tempo em suas preocupações e certamente em suas contradições 34 Creio que foi o antropólogo francês Claude LéviStrauss quem chamou a atenção para dois processos naturais o cru e o cozido não somente como dois estados pelos quais passam todos os alimentos mas como modalidades pelas quais se pode falar de transformações sociais importantíssimas De fato o cru e o cozido o alimento e a comida o doce e o salgado ajudam a classificar coisas pessoas e até mesmo ações morais importantes no nosso mundo Assim é que equacionamos simbolicamente a mulher com a comida e o doce com o feminino deixando o salgado e o indigesto para estarem associados a tudo o que nos cheira a coisas duras e cruéis Ao mundo difícil da vida da rua e do trabalho em geral esses universos que são profundamente masculinos e por conseguinte estão longe das cozinhas dos temperos e das boas mesas e camas onde só pode exercer uma comensalidade enriquecedora Num plano mais filosófico e universal sabemos que cru se liga a um estado de selvageria a um estado de natureza ao passo que o cozido se relaciona ao universo socialmente elaborado que toda sociedade humana define como sendo o de sua cultura e ideologia Sabendo que o cru e o cozido exprimem mais que dois processos naturais podemos agora entender por que falamos que o apressado come cru É que com tal metáfora ou associação entre o cru e a pressa estamos nos referindo a esse elo entre a selvageria ou sofreguidão da pressa e o lado selvagem ruim ou cru das coisas e da vida O calmo pode se dizer complementando o provérbio revelador come sempre cozido pois quem tem calma possui um elemento da civilização e a civilização fundase precisamente num saber esperar Mas o que é também interessante na oposição entre o cru e o cozido é descobrir que o universo da comida permite pensar o mundo integrando o intelectual com o sensível Quer dizer qualquer refeição mais bem preparada ou mais caprichada conforme falamos coloquialmente pode e deve promover essa união ou casamento entre o olhar que remete ao intelecto e naturalmente o gosto e o cheiro que indicam o caminho do nariz da boca e do estômago Tudo que leva ao corpo à sensualidade e à pança ou barriga conforme falamos no Brasil Assim encher a barriga ou encher a pança é um ato concreto destinado à saciedade do corpo mas é também um modo de se referir a uma ação simbólica A tudo que foi capaz de satisfazer plenamente uma pessoa Mas é básico continuar enfatizando que a comida com suas possibilidades simbólicas permite realizar uma importante mediação entre cabeça e barriga entre corpo e alma permitindo operar simultaneamente com uma série de 35 códigos culturais que normalmente estão separados como o gustativo que distingue o salgado do doce e do amargo o gostoso do péssimo o quente do frio o código de odores que permite separar dos outros o alimento que tem bom cheiro e está sadio e bom o código visual que nos faz comer ou não algum alimento com os olhos ou recusálo por sua aparência tendo ou não olho maior do que a barriga e ainda um código digestivo posto que no Brasil também classificamos os alimentos por sua capacidade de permitir ou não uma digestão fácil e agradável Ora é precisamente essa possibilidade de síntese e de equilíbrio entre o olho e a barriga a parte de cima do corpo e sua parte de baixo que a relação entre o cru e o cozido ajuda e consegue entre nós realizar Mas esses estados e suas concepções variam Para europeus e norte americanos cru e cozido alimento e comida são categorias científicas nem sempre levadas em conta no próprio ato de comer conforme nos revelam as imensas saladas e as comidas naturais que são digeridas em países como Estados Unidos e Inglaterra como pratos principais algo bem recente no Brasil Para nós o cru e o cozido podem significar com muito mais facilidade um universo complexo uma área do nosso sistema onde podemos nos enxergar como formidáveis e nos levar finalmente muito a sério Aqui contamos uma história para nós mesmos e essa é uma narrativa que admiramos e que nos permite que admiremos a nós mesmos para usarmos a fórmula de Clifford Geertz um sofisticado antropólogo americano Sabemos que somos tão bons em comida quanto em mulher ou futebol Aqui afirmamos entre sorrisos somos os melhores do mundo E como não poderia deixar de ser o mundo das comidas nos leva para casa para os nossos parentes e amigos para os nossos companheiros de teto e de mesa Essas pessoas que compartilham intensamente de nossa vida e intimidade Intimidade que se faz na casa e na mesa onde somos sempre e necessariamente tratados como alguém e temos direitos perpétuos de cidadania Nesse sentido o cru seria tudo que está fora dessa área da casa onde somos vistos e tratados com amor carinho e consideração podendo conseqüentemente escolher a comida Ou seja o cru é tudo aquilo que está fora do controle da casa Tudo que pode até mesmo estar oposto ao mundo da casa como uma área cruel e dura do mundo social Um espaço repleto de movimento contraditório onde as pessoas não se harmonizam entre si mas 36 disputam na competição uma espécie de batalha que se revela sobretudo no trabalho Já o cozido é algo social por definição Não é somente o nome de um processo físico o cozimento das coisas pelo fogo mas sobretudo o nome de um prato sagrado dentro da nossa culinária Prato aliás que diz tudo dessas metáforas que as comidas permitem realizar e que fazem desta sociedade o Brasil De fato no cozido temos o alimento que junta vegetais legumes e carnes variadas num prato que tem peso social muito importante pois que inventa a sua própria ocasião social Quando se come um cozido não se come um prato qualquer É que há no Brasil certos alimentos ou pratos que abrem uma brecha definitiva no mundo diário engendrando ocasiões em que as relações sociais devem ser saboreadas e prazerosamente desfrutadas como as comidas que elas estão celebrando E de modo tão intenso que não se sabe no fim se foi a comida que celebrou as relações sociais estando a serviço delas ou se foram os elos de parentesco compadrio e amizade que estiveram a serviço da boa mesa Tudo isso revela que a nossa concepção do cozido em oposição ao cru estabelece uma distinção entre coisas que são separadas e estanques individualizadas umas das outras e tudo isso é o cru ou faz parte do que é cru E o cozido é concebido como algo que permite a relação e a mistura de coisas do mundo que estavam eventualmente separadas Voltarei a esse problema mais adiante Agora é importante falar de outra distinção que segue a mesma estrada do cru e do cozido Quero me referir à distinção entre comida e alimento que é tão importante no sistema social brasileiro Realmente para nós saber comer é algo muito mais refinado do que o simples ato de alimentarse Os americanos sabemos inventaram a chamada fastfood alimento rápido e por causa disso mesmo podem comer em pé sentados com estranhos ou amigos sós ou acompanhados Comem também misturando o doce com o salgado e uma de suas preocupações básicas é com raras exceções comer para viver comer entre eles é um ato que pode ser profundamente individual Para nós brasileiros nem tudo que alimenta é sempre bom ou socialmente aceitável Do mesmo modo nem tudo que é alimento é comida Alimento é tudo aquilo que pode ser ingerido para manter uma pessoa viva comida é tudo que se come com prazer de acordo com as regras mais sagradas de comunhão 37 e comensalidade Em outras palavras o alimento é como uma grande moldura mas a comida é o quadro aquilo que foi valorizado e escolhido dentre os alimentos aquilo que deve ser visto e saboreado com os olhos e depois com a boca o nariz a boa companhia e finalmente a barriga O alimento é algo universal e geral Algo que diz respeito a todos os seres humanos amigos ou inimigos gente de perto ou de longe da rua ou de casa do céu ou da terra Mas a comida é algo que define um domínio e põe as coisas em foco Assim a comida é correspondente ao famoso e antigo de comer expressão equivalente à refeição como de resto é a palavra comida Por outro lado comida se refere a algo costumeiro e sadio alguma coisa que ajuda a estabelecer uma identidade definindo por isso mesmo um grupo classe ou pessoa É por termos essa concepção que nós brasileiros podemos dizer que queijo para nós é alimento mas é comida de ratos Logo rato queijo Falar de queijo então é implicar a idéia de rato já que esse alimento é algo irresistível para os ratos marcando sua identidade e personalidade Pela mesma lógica leite é alimento para os seres humanos mas é comida para nenéns E osso é comida de cachorro milho de galinha e sanduíche de americano Do mesmo modo sabemos que churrasco é comida de gaúcho prato que se come com os amigos e que requer certa intimidade e certo estar àvontade Mas qual é a comida brasileira básica Certamente que se trata do feijãocom arroz essa comida que é até mesmo usada como metáfora para a rotina do mundo diário Mas é preciso notar que tanto no arroz quanto no feijão temos um alimento que é cozinhado E que é comido como se come um cozido misturandose as duas porções num só prato e assim formando uma massa indiferenciada que assume as propriedades gustativas dos dois elementos De tal modo que o feijão que é preto deixa de ser preto e o arroz que é branco deixa também de ser branco A síntese é uma papa ou pirão que reúne definitivamente arroz e feijão construindo algo como um ser intermediário desses que a sociedade brasileira tanto admira e valoriza positivamente Comer arrozcomfeijão então é misturar o preto e o branco a cama e a mesa fazendo parte de um mesmo processo lógico e cultural Temos então alimento e temos comida Comida não é apenas uma substância alimentar mas é também um modo um estilo e um jeito de alimentarse E o jeito de comer define não só aquilo que é ingerido como também aquele que 38 ingere De fato nada mais rico na nossa língua que os vários significados do verbo comer em suas conotações Existem várias metáforas onde se usa a palavra comer ou comida e onde o ato de alimentar se tem significados precisos Assim falamos em pãoduro referindo nos a quem é avarento e para economizar come o pão dormido que fica obviamente duro Usamos a imagem do pão pão queijo queijo para separar coisas acontecimentos e pessoas pois não haveria nada mais distinto que o pão de origem vegetal e agrícola que vai ao forno e o queijo de origem animal e que se fabrica por meio de um processo de fermentação 39 natural Falamos também que alguém pode comer gato por lebre quando há uma confusão e uma mistura de pessoas coisas eventos Além disso podemos ter água na boca quando desejamos muito alguma coisa podemos ser apanhados com a boca na botija e quando somos vitoriosos estamos com a faca e o queijo na mão imagem que como aquela outra que fala de quem está por cima da carneseca indica a propriedade de recursos de poder e força Ademais podemos ser convidados para comes e bebes e sempre que falamos alguma coisa que não deve ser levada a sério falamos da boca pra fora O processo de ingestão equivalente lógico a falar da boca pra dentro é tão impossível representando uma metáfora de tudo que é inatingível ou absurdo O fato é que o comer a comida e os alimentos formam um código complexo uma verdadeira boca rica social que nos permite compreender como é que a sociedade brasileira se funde enquanto tal Assim comer do bom e do melhor denota mais do que alimentarse indicando um passadio de rico uma vida boa gostosa nobre Vida de político ou de milionário que vive em palácio e tem gasolina paga pelo erário público ou pela firma A comida vale tanto para indicar uma operação universal o ato de alimentarse quanto para definir e marcar identidades pessoais e grupais estilos regionais e nacionais de ser fazer estar e viver Em nossas casas sabemos perfeitamente bem quem gosta do quê e como esse alguém gosta de comer alguma coisa É ato de amor familial e conjugal servir o pai o irmão a mulher e os filhos mas também os subordinados e até mesmo visitantes esporádicos levando em conta o modo como gostam de comer os ovos o bife o arroz a salada e o feijão E chegando mesmo ao requinte de saber como as pessoas gostam de ter seus pratos arrumados arte que a mãe ou a donade casa conduz com precisão solicitude e enorme paciência Vovó adora pimenta papai gosta de carne no ponto titio só come com o arroz em cima do feijão dona Maria detesta tomate na sua salada Os exemplos poderiam ser multiplicados para indicar como a comida define as pessoas e também as relações que as pessoas mantêm entre si Nós brasileiros sentimos saudade de certas comidas e poderíamos perfeitamente dizer dizeme o que comes e dir teei quem és Mas há comida e comidas Falamos que mulher oferecida não é comida num trocadilho chulo mas revelador da associação intrigante para estrangeiros entre o ato sexual e o ato de ingerir alimentos Entre a mulher da rua a prostituta ou a mulher que controla e é dona de sua capacidade de sedução e sexualidade e certos tipos de alimento Assim a mulher que põe à 40 disposição do grupo da família seus serviços domésticos seus favores sexuais e sua capacidade reprodutiva tornamse a fonte de virtude que na sociedade brasileira se define de modo pastoral e santificado É a virgem a esposa e a mãe que reside nas casas e que jamais é comida ou poderá virar comida presa fácil de homens que se definem como sexualmente vorazes Ou melhor tais mulheres podem ser comidas mas primeiro são transformadas em noivas e esposas O bolo do casamento e o banquete que segue a cerimônia podem muito bem ser vistos como um símbolo dessa comida que será a noiva algo elaborado e sobretudo socialmente aprovado pelos homens do seu grupo Ora a mulher da rua essa que é a comida de todos é algo muito diferente conforme já assinalei acima Em contraste com a mãe a virgem e a boa esposa ela surge como aquela mulher que pode literalmente causar indigestão nos homens provocando a sua perturbação moral Dessas mulheres devese fugir diz a moral brasileira tradicional mas sem elas reza paradoxalmente essa mesma ética o mundo seria insosso como uma comida sem sal As mulheres da vida na nobre metáfora brasileira estão para as mulheres da morte assim como as comidas fáceis e potencialmente indigestas mas deliciosas na sua ingestão escondida e apaixonada estariam para as comidas caseiras que eventualmente podem perder a capacidade de deleitar servindo tãosomente para alimentar O fato é que as comidas se associam à sexualidade de tal modo que o ato sexual pode ser traduzido como um ato do comer abarcar englobar ingerir ou circunscrever totalmente aquilo que é ou foi comido A comida como a mulher ou o homem em certas situações desaparece dentro do comedor ou do comilão Essa é a base da metáfora para o sexo indicando que o comido é totalmente abraçado pelo comedor A relação sexual e o ato da comer portanto aproximamse num sentido tal que indica de que modo nós brasileiros concebemos a sexualidade e a vemos não como um encontro de opostos e iguais o homem e a mulher que seriam indivíduos donos de si mesmos mas como um modo de resolver essa igualdade pela absorção simbolicamente consentida em termos sociais de um pelo outro Assim a relação sexual na concepção brasileira coloca a diferença e a radical heterogeneidade para logo em seguida hierarquizalas no englobamento de um comedor e um comido E não se pode deixar de observar para quem estiver lendo estas linhas um tanto desavisado que o englobador tanto pode ser um homem esse seria o modelo ideal a formulação tradicional como também uma mulher se for ela quem atua buscando e querendo a relação 41 exercendo com isso um papel ativo Assim podese dizer que nas suas relações com as virgens e esposas ou mulheres que assim se definem socialmente os homens é que são os comedores mas nas suas relações com as mulheres do mundo e da vida ou com aquelas que se definem como independentes e individualizadamente eles são comidos O resultado é algo que reproduz em outro nível e outro plano a dialética da casa e da rua deste mundo e do outro da lei e da pessoa do malandro e do caxias da ordem rígida e do jeitinho que tudo resolve Num sentido muito geral e culturalmente valorizado falase sempre que quem come é o homem a mulher cozinha e dá os alimentos e a comida Mas como sugeri linhas atrás pode haver casos contrários onde o homem cai na panela de comida tal como na história de Dom Ratão que caiu na panela de feijão o conto de fadas sendo significativo para indicar de que modo a gula o desejo incontrolado pode levar o comedor a tornarse comida Mas podese afirmar sem correr o risco do exagero que mesmo hoje nesta era de transformação e mudanças rápidas o homem é o englobador do mundo da rua do mercado do trabalho da política e das leis ao passo que a mulher engloba o mundo da casa da família das regras e costumes relativos à mesa e à hospitalidade E isso se faz no simbolismo da cozinha espaço da casa teoricamente vedado aos homens e onde eles não devem entrar porque como diz a música popular é lugar só de mulher Não é pois por acaso que muitas figuras de nosso panteão mitológico são mulheres cozinheiras ou que sabiam usar as artes da culinária para conseguir uma posição social importante Gabriela e Dona Flor são cozinheiras de rara capacidade e estilo também Xica da Silva na criação cinematográfica de Cacá Diegues foi genial articuladora de temperos que usava como arma e requinte e sexualidade para transformar em dominado o dominantebranco comedor Gabriela cravo e canela O nome é suficiente para inspirar essas formas de fazer e esses estilos de preparar que os poderosos ignoram e só os fracos podem conhecer São segredos que permitem uma inversão do mundo fazendo com que a cabeça seja trocada pelo estômago e pelo sexo onde todos os homens se igualam e se deleitam Quero sugerir que essa equação de dois processos tão valorizados na sociedade brasileira com as mulheres é algo a ser pensado com muito cuidado Porque entre nós como em muitas outras sociedades a sexualidade e a arte de comer sobretudo a comensalidade que deve acompanhar a ação de ingerir 42 o alimento ainda não se transformaram em assuntos inteiramente individuais São ao contrário coisas fundamentalmente coletivas atos críticos de relacionamento e reprodução social Como verdadeiras comunhões onde o encontro transforma as pessoas nele engajadas porque faz com que todos participem de uma mesma substância comum o prato comido ou a pessoa amada que sabemos vira comida em nossa sociedade E as mulheres desempenham conforme sabemos um papel básico nesses dois processos Sobretudo nas nobres artes de comer nas quais aprendemos a exercer um gosto que nos vai acompanhar o resto da vida E comer é gostar e comer é também viver Daí a nossa forma especial de comer Nosso jeito brasileiro de apreciar a mesa grande faria alegre e harmoniosa Mesa que congrega liberdade respeito e satisfação Momento que permite orquestrar todas as diferenças e cancelar as mais drásticas oposições Na mesa realmente e através da comida comum comungamos uns com os outros num ato festivo e certamente sagrado Ato que celebra as nossas relações mais que nossas individualidades Daí por que ligamos intensamente a comida com os amigos Pois quem nos ampara quando comemos da banda podre e quem nos pode conseguir uma boca ou uma comilança no Estado ou no Governo Certamente que são os amigos esses nossos eternos companheiros de bródio gosto e mesa Companheiros O nome é rico para o que falamos Pois há quem diga que a palavra deriva do latim com pão quer dizer aqueles que juntos comem o pão E por isso estão relacionados Do mesmo modo será preciso indicar como é que nós brasileiros sempre privilegiamos comidas nacionais e preferimos sempre os alimentos cozidos Do cozido à peixada e à feijoada Da farofa ao pirão e aos molhos guisados e mexidos às dobradinhas e papas Parece que temos especial predileção pelo alimento que fica entre o líquido e sólido evitando nessas grandes refeições onde se celebram as amizades o assado alimento que não permite a mistura Daí também por que temos sempre que usar a farinha de mandioca em sua forma simples ou como farofa em todas as refeições De fato a farinha serve como o cimento a ligar todos os pratos e todas as comidas Enquanto ingleses e franceses usam molhos para pratos específicos nós temos comidas que são múltiplas com seus caldos molhos e sucos Mas é importante acentuar que a comida misturada é uma espécie de imagem perfeita da própria situação que 43 ela mesma engendra e ajuda a saborear E isso é desses traços mais importantes a transformar o ato de comer num gesto brasileiro Assim entre o sólido que caracteriza o prato principal das comidas européias e americanas e o líquido preferimos uma forma intermediária O cozido é sólido e líquido Entre a carne e a verdura que entram nos pratos europeus como comidas principais e secundárias somos muito mais dados a uma ligação entre os dois E o cozido e a feijoada certamente realizam isso de modo perfeito junto com a moqueca e a peixada onde também se pode reunir de tudo É claro que isso nos foi legado pelo mundo Ibérico que de fato enquadra toda a nossa cena culinária Mas também é claro que essa preferência denota uma forma evidente de escolha Tal como somos ligados à idéia de sermos um pais de três raças um pais mestiço e mulato onde tudo que é contrário lá fora aqui dentro fica combinado nossa comida revela essa mesma lógica Temos então uma culinária relacional que expressa de modo privilegiado uma sociedade igualmente relacional Isto é um sistema onde as relações são mais que mero resultado de ações desejos e encontros individuais pois aqui entre nós elas se constituem em muitas ocasiões em verdadeiros sujeitos das situações trazendo para elas o seu ponto de vista Um ponto de vista claro está que sintetiza sempre as posições de quem está engajado na própria relação No nosso mundo culinário o que privilegiamos não é o prato separado como na China ou no Japão nem a combinação de pratos separados que são fortes e descontínuos como na França e na Inglaterra mas isto sim a possibilidade de estabelecer também pela comida gradações e hierarquias permitindo escolhas entre uma comida ou prato que é central e dada de uma vez por todas a comida principal e seus coadjuvantes ou ingredientes periféricos que servem para juntar e misturar Temos então na nossa cozinha na nossa comida e no nosso modo de comer uma obsessão pelo código culinário relacional e intermediário Um código marcado pela ligação Do mesmo modo que na vida e na sociedade somos obcecados pelo amigo único certo e seguro nas horas em que precisamos de amparo e que jamais nos pode decepcionar cuspindo no prato em que comeu 44 5 O carnaval ou o mundo como teatro e prazer Todas as sociedades alternam suas vidas entre rotinas e ritos trabalho e festa corpo e alma coisas dos homens e assunto dos deuses períodos ordinários onde a vida transcorre sem problemas e as festas os rituais as comemorações os milagres e as ocasiões extraordinárias onde tudo pode ser iluminado e visto por novo prisma posição perspectiva ângulo Vivemos sempre entre esses momentos como passageiros que estão saindo de um evento rotineiro para a ocorrência fora do comum que por sua vez logo 45 pode tornarse novamente rotineira e fazer parte da paisagem do nosso irreflexivo cotidiano A viagem da rotina para o extraordinário porém depende de uma série de fatores Ela pode variar de sociedade para sociedade e pode ser realizada tanto coletiva quanto individualmente Nossa biografia se faz precisamente pela alternância de situações que foram esquecidas com situações que guardamos como tesouros ou cicatrizes em nossa cabeça e que formam o que denominamos memória De fato tal idéia traduz de maneira muito precisa essa verdadeira dialética entre o que é lembrado com saudade como maravilhoso formidável ou poético ao lado de tudo que foi vivido como doloroso trágico e ruim aquilo que na nossa existência entra como extraordinário positiva ou negativamente valorizado e os outros eventos que simplesmente não são lembrados perdendose nas sombras do passado e do tempo vivido e jamais recuperado Há pois um tempo lembrado que vira memória e saudade e um tempo simplesmente vivido que se vai e morre na distância do passado As sociedades e os grupos fazem coisas parecidas E a memória social isso que vulgarmente se chama tradição ou cultura que é sempre feita de uma história com H maiúsculo é também marcada por meio desses momentos que permitem alternâncias certas entre o que foi concebido e vivido como rotineiro e habitual e tudo aquilo que foi vivenciado como crise acidente festa ou milagre Pois o homem é o único animal que se constrói pela lembrança pela recordação e pela saudade e se desconstrói pelo esquecimento e pelo modo ativo com que consegue deixar de lembrar No Brasil como em muitas outras sociedades o rotineiro é sempre equacionado ao trabalho ou a tudo aquilo que remete a obrigações e castigos a tudo que se é obrigado a realizar ao passo que o extraordinário como próprio nome indica evoca tudo que é fora do comum e exatamente por isso pode ser inventado e criado por meio de artifícios e mecanismos Cada um desses lados permite esquecer o outro como as duas faces de uma mesma moeda E no entanto os dois fazem parte e constituem expressões ou reflexões de uma mesma totalidade uma mesma coisa Ou melhor tanto a festa quanto a rotina são modos que a sociedade tem de exprimirse de atualizarse concretamente deixando ver a sua alma ou o seu coração Na nossa sociedade temos grande consciência dessa alternância de tal modo que a vida para a maioria de nós se define sempre pela oscilação entre rotinas e 46 festas trabalho e feriado despreocupações e chateações dias felizes e momentos dolorosos vida e morte os dias de dureza e trabalho duro do mundo real e os dias de alegria e fantasia desse outro lado da vida constituído pela festa pelo feriado e pela ausência de trabalho para o outro o patrão o Governo o chefe o dono do negócio etc Realmente na festa comemos rimos e vivemos o mito ou utopia da ausência de hierarquia poder dinheiro e esforço físico Aqui todos se harmonizam por meio de conversas amenas e na construção da festa a música que congrega e iguala no seu ritmo e na sua melodia é algo absolutamente fundamental no caso brasileiro No trabalho porém estamos martelando e construindo batendo massa ou batendo perna para a companhia para a família para a mulher e os filhos para a honra da firma ou de alguma coisa que efetivamente exige o nosso sacrifício Para nós brasileiros a festa é sinônimo de alegria o trabalho é eufemismo de castigo dureza suor O trabalho sempre indica a idéia ou ideal da construção do homem pelo homem Um controle da vida e do mundo pela sociedade Todas as rotinas produtivas sobretudo nas sociedades protestantes e plenamente industrializadas são marcadas pela previsão e pela racionalidade Há um mínimo de interferência de fatores internos as emoções de quem trabalha são inteiramente controladas e externos o tempo e o espaço são igualmente mapeados com grande precisão de modo que o local de trabalho fica longe da casa É algo produzido para o próprio trabalho como uma fábrica ou usina Até mesmo no caso da produção agrícola ocorre essa diagramação de modo que a tentativa é sempre de criar uma seqüência onde o controle é total Não deve haver surpresas não deve haver acidentes não deve haver coisa alguma de extraordinário exceto obviamente o aumento da produção Quando ocorre algo que não diga respeito a esse fator então foi porque um acidente ocorreu E os acidentes aqui são medidos e estudados dentro da ideologia de segurança e controle que preside a todo triunfo da economia no nosso sistema De fato dentro dessa perspectiva podese até mesmo dizer que o grande acidente que hoje atinge uma fábrica é a greve ou seja o extraordinário criado por um dos fatores de produção a força de trabalho Na sociedade industrial a ausência de movimento é sintoma de malestar social O acidente aquilo que não foi planejado ou previsto é também sinal de que algo está indo mal Apesar de todas as medidas contra o extraordinário contra o acidente e contra a coincidência negativa porém sabemos que ela 47 acontece A palavra catástrofe que tanto usamos para definir tais situações significa precisamente reviravolta de modo que é perfeita para esses casos Aqui conforme estamos percebendo estamos diante de extraordinários não planejados e nãoprevistos pela sociedade Escapando do seu controle consciente esses eventos surgem como tragédias que nos atingem como catástrofes que colocam em causa nossa capacidade de organização e nossa possibilidade de sobrevivência como coletividade Furacões tempestades enchentes terremotos pestes inundações e coisas do gênero são situações fora da rotina mas são situações nãoplanejadas Quando o mundo é vivido desse modo ele deixa de fazer o sentido comum dando a impressão de que está no fim É a reviravolta do Dia do Juízo podemos pensar Mas é preciso acentuar que tais situações também promovem o encontro e a solidariedade entre os homens De fato diante da revolta imensa da natureza todos podem unirse fora de suas posições sociais e políticas rotineiras e assim fazendo podem encontrarse como irmãos de infortúnio ou seres humanos fazendo face à tremenda indiferença da natureza em relação à sociedade e não mais como patrões e empregados ricos e pobres homens e mulheres oprimidos e opressores Ao lado porém desses extraordinários que são acidentais que ninguém desejou e que não foram planejados pela sociedade existem momentos especiais que o próprio grupo planeja constrói inventa e espera Ambos é claro constróem a memória da sociedade mas são os segundos que servem como as verdadeiras roupagens pelas quais a sociedade cria e recria sua identidade social e suas tradições O momento fora do comum que é planejado e tem tempo marcado para acontecer portanto é um espelho muito importante pelo qual a sociedade se vê a si mesma e pode ser vista por quem quer que deseje conhecêla Todos os sistemas constróem suas festas de muitos modos No caso do Brasil a maior e mais importante mais livre e mais criativa mais irreverente e Mais popular de todas é sem dúvida o carnaval Aliás nessa festa a própria definição já perturba pois exclui de modo sistemático todos os elementos que nenhuma festa pode dispensar e que são importantes para o seu próprio desenrolar Quero referir me a todos os elementos de ordem de economia e política que o carnaval certamente implica como todo evento especial mas que ficam 48 necessariamente excluídos de sua definição De fato conforme sabemos como brasileiros o carnaval não pode ser sério Senão não seria um carnaval Mas como definir o carnaval Não seria exagero dizer é uma ocasião em que a vida diária deixa de ser operativa e por causa disso um momento extraordinário é inventado Ou seja como toda festa o carnaval cria uma situação em que certas coisas são possíveis e outras devem ser evitadas Não posso realizar um carnaval com tristeza do mesmo modo que não posso ter um funeral com alegria Certas ocasiões sociais requerem determinados sentimentos para que possam ocorrer como tais Tragédias são definidas como 49 eventos tristes e tudo que nelas ocorre de cômico deve ser inibido ou simplesmente ignorado Carnavais e comédias ao contrário são episódios em que o triste e o trágico é que devem ser banidos do evento como as roupas do rei que estava nu e não podia ser visto como tal Mas como é que o povo define e vê o Brasil no carnaval Qual a receita para o carnaval brasileiro Sabemos que o carnaval é definido como liberdade e como possibilidade de viver uma ausência fantasiosa e utópica de miséria trabalho obrigações pecado e deveres Numa palavra tratase de um momento onde se pode deixar de viver a vida como fardo e castigo É no fundo a oportunidade de fazer tudo ao contrário viver e ter uma experiência do mundo como excesso mas agora como excesso de prazer de riqueza ou de luxo como se fala no Rio de Janeiro de alegria e de riso de prazer sensual que fica finalmente ao alcance de todos A catástrofe que o carnaval brasileiro possibilita é a da distribuição teórica do prazer sensual para todos Tal como o desastre distribui o malefício ou a infelicidade para a sociedade sem escolher entre ricos e pobres como acontece normalmente o carnaval faz o mesmo só que ao contrário O Rei Momo Dioniso o Rei da Inversão da Antiestrutura e do Desregramento coloca agora uma possibilidade curiosa e por isso mesmo carnavalesca e impossível no mundo real das coisas serias e planificadas pelo trabalho E que ele sugere um universo social onde a regra é praticar sistematicamente todos os excessos Entre nós brasileiros realizar isso é poder descobrir que o carnaval é percebido como algo que vem de fora como uma onda irresistível que nos domina controla e melhor ainda seduz inapelavelmente Algo que chega até nós periodicamente sem que haja possibilidade de resistir É também descobrir que por causa disso mesmo todos são iguais ou podem ser iguais perante o carnaval Desse modo o carnaval com suas regras de inversão fica como que deslocado da realidade cotidiana podendo ser vivido como algo de fora e daí como algo que surge como uma regra ou lei natural que teria validade para todos independentemente de sua posição na estrutura social Ou apesar dela Ou por causa dela Mas que é isso que o carnaval consegue fazer com o Brasil Que extraordinário é esse que chamamos coletivamente de carnaval 50 Penso que o carnaval é basicamente uma inversão do mundo Uma catástrofe Só que é uma reviravolta positiva esperada planificada e por tudo isso vista como desejada e necessária em nosso mundo social Nele conforme sabemos trocamos a noite pelo dia ou o que é ainda mais inverossímil fazemos uma noite em pleno dia substituindo os movimentos da rotina diária pela dança e pelas harmonias dos movimentos coletivos que desfilam num conjunto ritmado como uma coletividade indestrutível e corporificada na música e no canto No carnaval trocamos o trabalho que castiga o corpo o velho tripalium ou canga romana que subjugava escravos pelo uso do corpo como instrumento de beleza e de prazer No trabalho estragamos submetemos e gastamos o corpo No carnaval isso também ocorre mas de modo inverso Aqui o corpo é gasto pelo prazer Daí por que falamos que nos esbaldamos ou liquidamos no carnaval Aqui usamos o corpo para nos dar o máximo de prazer e alegria Pela mesma lógica o carnaval permite a troca e a substituição dos uniformes pelas fantasias Sabemos que o uniforme como todas as vestes formais do mundo diário cria a ordem O uniforme é uma roupa que uniformiza isto é faz com que todos fiquem iguais sujeitos a uma mesma ordenação ou princípio de governo Mas a fantasia permite a invenção e a troca de posições Notese que no Brasil não falamos em máscaras mas em fantasias O nosso termo é mais abrangente em pelo menos dois sentidos muito precisos Primeiro ele diz mais do que algo que serviria apenas para tapar ou disfarçar o rosto ou o nariz Depois porque a palavra fantasia tem duplo sentido É algo em que se pode pensar acordado o sonho que se tem quando a rotina mais nos escraviza e revolta e também a roupa que só se usa no carnaval ou para uma situação carnavalizadora Assim ela permite que possamos ser tudo o que queríamos mas que a vida não permitiu Com ela e jamais com o uniforme conseguimos uma espécie de compromisso entre o que realmente somos e o que gostaríamos de ser O uniforme achata ordena e hierarquiza A fantasia liberta desconstrói abre caminho e promove a passagem para outros lugares e espaços sociais Ela permite e ajuda o livre trânsito das pessoas por dentro de um espaço social que o mundo cotidiano torna proibitivo com as repressões da hierarquia e dos preconceitos estabelecidos É a fantasia que permite passar de ninguém a alguém de marginal do mercado de trabalho a figura mitológica de uma história absolutamente essencial para a 51 criação do momento mágico do carnaval Se no mundo diário estamos todos limitados pelo dinheiro que se ganha ou não se ganha pelas leis da sociedade do mercado da casa e da família no carnaval e na fantasia temos a possibilidade do disfarce e da liberação Há a possibilidade de virar onipotente e ser tudo o que se tem vontade Ora é precisamente por estar vivendo num mundo assim constituído onde as regras do mundo diário estão temporariamente de cabeça para baixo que posso ganhar e realmente sentir uma incrível sensação de liberdade Sensação de liberdade que me parece fundamental numa sociedade cuja rotina é dominada pelas hierarquias que sujeitam a todos a uma escala complexa de direitos e deveres vindos de cima para baixo dos superiores para os inferiores dos elementos que entram na fila e das pessoas que jamais são vistas em público como comuns Realmente se no mundo diário somos governados pelo ditado e pela lógica social que diz cada macaco no seu ganho e também um lugar pra cada coisa cada coisa em seu lugar no carnaval criamos um cenário e uma atmosfera social onde tudo isso pode ser trocado de lugar invertido e subvertido pelas leis que comandam o reinado de Momo Não é por simples acaso que chamamos o carnaval e a cena carnavalesca de loucura O termo loucura aqui surge porque no carnaval tudo estaria fora de lugar carnavalizado como diz Bakhtin que introduziu esse conceito no estudo das manifestações do carnaval europeu para exprimir intelectualmente suas múltiplas vozes e textos De fato no caso do Brasil andamos pelas ruas do centro comercial de nossas cidades com a roupa que queremos e em pleno dia sem a menor preocupação de sermos atropelados ou vistos por nossos patrões pais ou amigos aristocráticos Muito pelo contrário ao sermos vistos eles é que correm o risco de serem seduzidos pela nossa investida carnavalesca Comemos e bebemos nas ruas trocando a casa pelo mundo público e ali realizando ações que são banidas do mundo social aberto Dormimos no asfalto em plena rua local perigoso e maldito com seu cotidiano cruel e movimentado mas estranhamente pacifico e seguro no carnaval Podemos até mesmo fazer amor com proteção oficial e policial pois Governo e polícia que durante todo o ano nos cobrem de impostos e compostura agora nos defendem e compreendem com simpatia o nosso desejo e a nossa humanidade carnavalesca ou melhor protegida pelo carnaval No carnaval nós cantamos e nos harmonizamos movimentando nossos corpos em ritmos acasalados em vez de reclamar discursar ou escrever Aqui a mensagem deixa de ser importante e o que vale é também o canto pelo canto a música pela música a 52 alegria pela alegria Como os fogos de artifício que explodem para o deleite dos olhos o discurso carnavalesco está também autoreferenciado Todos podemos assim virar poetas Além disso o carnaval obriga a uma grave sinceridade Não se pode freqüentar o carnaval sem vontade De fato posso ir a uma cerimônia oficial como uma formatura posse ou casamento sem sentir nada até mesmo achando tudo aquilo aborrecido e maçante Mas não posso fazer o mesmo se vou a um baile de carnaval onde corpo e alma devem estar juntos e serei punido se me mostrar bem comportado No carnaval nós brasileiros cantamos e geralmente podemos fazer o que cantamos o que permite que as pessoas se olhem e subitamente se vejam em sua unidade como pessoas e em sua diversidade como membros de uma comunidade social e politicamente diferenciada O diverso o diferente o universo da individualidade que é tão temido na vida diária é moeda corrente no carnaval onde todos podem surgir como indivíduos e como singularidade exercendo o direito de interpretar o mundo do seu jeito e a seu modo Igualmente a critica social que pode dar em prisão e censura é realizada abertamente tanto quanto a competição que todos temem como algo monstruoso mas é também aceita em todos os carnavais brasileiros feitos de inúmeros concursos De fato essa competição é tão aberta que há competição para tudo músicas fantasias maior capacidade de exibirse e naturalmente a disputa dos blocos e escolas de samba sobretudo no caso do Rio de Janeiro Aqui o mundo fica mesmo de cabeça para baixo Não somente porque as escolas são de gente pobre e que vive nos morros e subúrbios do Rio zonas que congregam a massa dos subempregados locais mas talvez por estarmos aqui para assistir a um monumental concurso público a uma fantástica competição onde tanto os jurados oficiais quanto o público em geral conhecem todas as regras e todos os meios de perder e vencer Coisa do outro mundo Algo extraordinário Claro que sim Numa sociedade que jamais vive a si mesma como um jogo ou concurso em que as pessoas podem mudar de lugar pelo próprio desempenho tudo isso é fora do comum Basta observar que nós brasileiros somos um povo marcado e dividido pelas ordens tradicionais o nome de família o titulo de doutor a cor da pele o bairro onde moramos o nome do padrinho as relações pessoais o ser amigo do Rei Chefe Político ou Presidente Tudo isso nos classifica socialmente de modo irremediável Jamais utilizamos o concurso público e a competição como algo normal entre nós daí o trabalho que é fazer uma eleição honesta e disputada Ela implica inclusive algo que evitamos dar opiniões e disputar 53 vontades revelando abertamente as nossas mais legítimas e ocultas diferenciações sociais Mas que coisa milagrosa Agora em plena festa carnavalesca podemos finalmente nos abrir para as nossas aspirações e associações revelando legitimamente os nossos desejos e vontades É o que faz esse concurso de escolas de samba que sabemos só pode ser ganho no pé Na base do desempenho do élan e da vontade de vencer Aqui os apadrinhamentos são policiados e o povo age como jamais pode realmente operar como juiz supremo que conhece as regras do jogo e as aplica com gana e justiça Carnaval pois é inversão porque é competição numa sociedade marcada pela hierarquia É movimento numa sociedade que tem horror à mobilidade sobretudo à mobilidade que permite trocar efetivamente de posição social É exibição numa ordem social marcada pelo falso recato de quem conhece o seu lugar algo sempre usado para o mais forte controlar o mais fraco em todas as situações É feminino num universo social e cosmológico marcado pelos homens que controlam tudo o que é externo e jurídico como os negócios a religião oficial e a política Por tudo isso o carnaval é a possibilidade utópica de mudar de lugar de trocar de posição na estrutura social De realmente inverter o mundo em direção à alegria à abundância à liberdade e sobretudo à igualdade de todos perante a sociedade Pena que tudo isso só sirva para revelar o seu justo e exato oposto 54 6 As festas da ordem As festas permitem descobrir oscilações entre uma visão alegre e uma leitura soturna da vida Permitem igualmente inventar temporalidades diferenciadas pois promovem uma duração muito rápida com tudo podendo acontecer no momento da festa como é o caso do carnaval ou muito lenta e pesada como acontece com quase todos os rituais da ordem ou formalidades Todas as festas ou ocasiões extraordinárias recriam e resgatam o tempo o espaço e as relações sociais Nelas aquilo que passa despercebido ou nem mesmo é visto como algo maravilhoso ou digno de reflexão estudo ou desprezo no quotidiano é ressaltado realçado alcançando um plano distinto Assim é na festa que tomamos consciência de coisas gratificantes e dolorosas Que não podemos comparecer porque não somos da mesma classe social que não podemos desempenhar papel importante porque não somos daquela corporação que somos bons dançarinos e que valsamos com graça e leveza pois na festa alguém assim nos disse que aquela moça é realmente linda 55 porque assim se apresentou no baile de formatura que nosso amigo é excelente orador porque foi a festa que o destacou como tal Como se observa são inúmeras as situações em que a festa promove a descoberta do talento da beleza da classe social do preconceito e da alegria Não seria possível esgotá las Mas posso distinguir e assim devo proceder as festas da ordem daquelas que promovem a desordem ou a orgia que fica no limite do crime e da revolta Sustento que no caso brasileiro todas as solenidades permitem ligar a casa a rua e outro mundo Só que cada uma delas faz essa ligação de modo específico e a partir de posições diferentes O carnaval liga casa rua e outro mundo querendo e propondo a abertura de todas as portas e de todas as muralhas e paredes Os ritos cívicos e religiosos as festas da ordem por excelência fazem o mesmo mas suas propostas são diferentes De fato nos carnavais e orgias o propósito básico parece ser o de igualar e juntar Seu objetivo é abolir todas as diferenças ou pelo menos foi assim que viu Bakhtin nas sociedades hierarquizadas Mas no caso das festas da ordem ou seja das formalidades sociais em que se celebram as relações sociais tal como elas operam no mundo diário as diferenças são mantidas Aqui ao contrário do carnaval o que se está celebrando é a própria ordem social com suas diferenças e gradações seus poderes e hierarquias Não se deseja virar o mundo de pernas para o ar colocandoo de cabeça para baixo mas o que se pretende é precisamente celebrar o mundo tal como ele é no quotidiano Daí por que em outro lugar no meu livro Carnavais malandros e heróis chamei os carnavais de ritos de inversão e os festivais da ordem de ritos de reforço Minha idéia era salientar essas propriedades estruturais de um e outro momento solene o carnaval promovendo a igualdade e a supressão de fronteiras e as festas cívicas e religiosas promovendo a sua glorificação e manutenção Desse modo os rituais religiosos partem de igrejas e locais sagrados pretendendo ordenar o mundo de acordo com os valores que são ali articulados como os mais básicos O mundo de Deus representado pela Igreja Católica e pelas formas de religiosidade que a ela se referem é um universo onde as coisas se ordenam de modo plenamente vertical De cima para baixo e de baixo para cima Com Deus a Virgem Maria os santos os anjos os mártires os beatos os sacerdotes e os fiéis formando uma cadeia do altarmor onde essa verticalidade está instituída até o adro da igreja onde as pessoas se espalham misturando o profano com o sagrado Aqui a ordem é 56 paradoxalmente salientada e ao mesmo tempo negada pois conforme sabemos a Igreja declara explicitamente que seu reino não é deste mundo mas do outro E Deus os santos e a Virgem podem interceder e agraciar com sua ajuda qualquer pessoa Eles são patrocinados pelas igrejas mas a Igreja ou igrejas não os possui nem pode controlar suas ações Ela pode interpretá los mas suas vozes têm códigos próprios que a própria Igreja pode desconhecer embora deva saber reconhecer Desse modo o espaço religioso demarca uma área onde é possível encontrar o rico e o pobre o poderoso e o fraco o sadio e o aleijado o homem e a mulher o adulto e a criança o santo e o pecador o crente fervoroso e o freqüentador esporádico e distante O patrocínio ou patronagem dos santos e deuses cria essas regiões neutras mas hierarquicamente ordenadas onde existe uma espécie de carnaval devoto ou terra de ninguém já que todos podem encontrarse com todos dentro desse espaço Mas é preciso acentuar que essa carnavalização ou troca de lugar nada tem a ver com excessos ou com a possibilidade de virar o mundo de cabeça para baixo Ao contrário nos ritos da ordem em geral e nos rituais religiosos em particular o comportamento é marcado pela contrição e pela solenidade que se concretizam nas contenções corporais e verbais O corpo então na Igreja e nas solenidades da ordem é marcado pela rigidez dos gestos e por formas obrigatórias de gesticulação São maneiras de marcar a contenção e de promover a uniformidade e a tranqüila obediência dos fiéis ou servidores já que tudo isso conduz a uma visão ordenada da própria ocasião formal Também é possível que tais formas de ritualização pretendam assegurar o respeito a qualquer preço pois a contenção do corpo significa de certo modo a liberdade do espírito que pode ou não estar presente com a mesma convicção na solenidade Assim eu posso estar ajoelhado numa igreja mas ter meu espírito muito longe dali o que no caso de um ritual orgiástico é impossível dada a solicitação em que o corpo e o espírito estão implicados De fato num almoço com os amigos ou num baile de carnaval não posso deixar de me envolver A festa carnavalesca requer tudo de mim meu corpo e minha alma minha vontade e minha energia Mas as festas da ordem parecem dispensar essa motivação totalizada Daí talvez essas regras rígidas de contenção corporal verbal e gestual nos ritos da ordem O poder do sagrado conforme dizia o sociólogo francês Émile Durkheim é um poder que permite distinguir o mundo diário com suas rotinas automáticas e que tendem a uma inércia e uma indiferenciação cada vez maiores esse sistema de coisas que eram chamadas de profanas das coisas e do universo 57 de Deus e do Alto Para separar um dos outros nada melhor que os sinais de respeito e de contenção física e social andar na ponta dos pés falar baixinho usar uma linguagem diferente exótica ou morta como o latim ou o hebraico vestir roupas especiais também antigas ou totalmente diferentes dos costumes do mundo diário roupas que transformam o masculino em algo ambíguo ou o feminino em alguma coisa neutra A leitura da sociedade facultada pelos ritos da ordem então é uma leitura onde o corpo deve ser contido ou até mesmo neutralizado A continência militar é excelente exemplo disso pois os ritos da ordem incluem também as grandes comemorações militares como as paradas que são formas típicas de comemoração social em que o universo da sociedade é lido ou apresentado a partir do código do Estado na sua vertente mais forte mais ordenada e talvez por isso mesmo mais patriótica a de suas Forcas Armadas que desfilam em saudação formal às autoridades constituídas De acordo com isso lembro que a palavra continência significa um ato cujo sentido profundo é precisamente ode conterse controlarse dominarse Tudo isso é salientado com precisão em todos os ritos da ordem sejam cívicos ou religiosos onde a idéia de sacrificar o corpo um centro de prazer dado imediatamente pela experiência humana pela pátria por Deus ou por um partido político acaba se exprimindo pela noção de dever de devoção e de ordem O que contrasta tremendamente com os rituais carnavalescos onde ocorre exatamente o oposto já que no carnaval os valores salientados são o prazer pelo corpo daí sua capacidade igualitária e grotesca e com isso a desordem obtida através dele que conduz a uma radical transformação temporária mas intensa da estrutura social Nas festas da ordem a ênfase é sempre colocada na ordem na regularidade na repetição na marcha ordeira no cântico cadenciado no controle do corpo que repito remete à idéia de sacrifício e disciplina esses dois ingredientes básicos da promessa Aqui o mundo é englobado e apresentado pelas posições sociais que a sociedade considera importantes Seu foco é nas autoridades de Deus Pátria Saúde Educação e Instrução Nisso eles revelam ampliando as diferenciações sociais já existentes no mundo diário onde as pessoas eletivamente se distinguem por meio de cadeias hierárquicas que indicam e revelam sua importância na reprodução da ordem social conhecida Desse modo se uma pessoa é presidente governador senador deputado secretário juiz ou professor é exatamente assim que deve aparecer nos ritos da ordem 58 Pela mesma lógica e seguindo o mesmo principio do reforço e da ampliação se a pessoa não tem qualquer autoridade ou posição social e faz parte daquilo a que chamamos genericamente povo é deste lado que deve ficar Entre autoridades e povo nessas ocasiões solenes e formais há uma clara divisão Seja uma cerca seja um espaço vazio seja um palanquim ou outra construção qualquer que permita imediatamente saber quem é quem pois os ritos da ordem não admitem a confusão de papéis ou posições Tais distinções ocorrem até mesmo nas grandes procissões onde uma grossa corda separa o santo ou santa e as autoridades eclesiásticas civis e militares que estão em sua volta geralmente carregando juntas o andor do povo em geral que está ao redor e que forma um oceano generalizado de devotos que se misturam Foi por perceber esse centro tão ordenado e esse resto tão carnavalescamente desordenado que eu já afirmei anteriormente que aqui tínhamos uma estrutura de tipo cometa Algo que possuía um centro voltado para a ligação formal entre o céu e a terra mas por meio das autoridades constituídas que por sua vez se ligavam ao povo em geral na forma de uma bela se não contundente dramatização da hierarquia e da autoridade Daí por que nas procissões o povo força a corda para passar para o lado das autoridades e para perto do santo De fato pular a corda ou passar por ela significa nesse contexto simbólico uma mudança significativa de posição social Se os ritos da desordem promovem temporárias desconstruções ou re arrumações sociais os ritos da ordem marcam de forma taxativa quem é ator e quem é espectador Aqui não há a menor possibilidade de trocar de lugar exceto é claro pela quebra do protocolo E realmente a palavra protocolo revela esse código rígido que todos devem seguir para que o cerimonial possa dar certo Ou seja para que o ritual possa ser um momento coerente de ordem perfeita e sem aquelas dissonâncias que o mundo diário é mestre em nos apresentar É justamente esse resgate da ordem que tais rituais pretendem realizar por meio dessas dramatizações Daí certamente a associação entre cerimonial e poder É que o ritual reveste o poder dandolhe uma forma exterior solene e legitima De modo que todos os rituais sempre assumem a forma básica de um desfile procissão ou parada militar formas de apresentação social desinibida e exuberante onde as corporações que passam e se apresentam revelamse em todo o seu esplendor ou miséria No Brasil significativamente usamos a palavra desfile para o caso do carnaval parada para as comemorações cívicas ligadas à nossa Independência e procissão para as festividades religiosas Todas elas têm 59 sempre um ponto de partida formalizado e preestabelecido e um ponto de chegada igualmente fixado Nas procissões como nas paradas militares a partida é um centro físico e social de autoridade e poder religioso ou militar uma igreja ou quartel Seu roteiro por outro lado marca uma área onde se sacraliza um dado espaço da cidade que por isso mesmo acaba se tornando nobre ou sagrado É um espaço que deve ficar aberto ao ritual e em conseqüência fechado às atividades de rotina do mundo diário No caso do Rio de Janeiro cidade que vou tomar como exemplo as paradas militares quase sempre se realizam em frente ao Panteão do Exército Nacional local situado em frente ao Ministério da Guerra onde estão sepultados os restos mortais do Duque de Caxias patrono do Exército Brasileiro e das Forças Armadas em geral Não poderia existir local mais sagrado que esse em termos da nossa História Além disso o desfile militar apresenta uma dramatização da guerra do mesmo modo que a procissão dramatiza as hierarquias celestes De fato no desfile os soldados se apresentam com suas armas comandados por seus superiores mas de modo rigorosamente ordeiro Dão uma demonstração de obediência disciplina e ordem como a revelar a sua disposição de cumprir seu dever de defender a Pátria a qualquer custo se isso for realmente necessário Todos os Estados nacionais modernos têm essas formas de desfile embora apresentem importantes variações que denunciam diversidades políticas e sociais significativas Por exemplo o dia da pátria nos Estados Unidos é uma festa pública sem dúvida mas que raramente é comemorada com um desfile ou parada militar Lá sua forma mais comum de celebração são os piqueniques realizados por famílias que juntas vão para os parques e jardins das cidades acenar bandeiras disparar foguetes ou simplesmente comer e calmamente conversar No caso brasileiro as paradas militares são ponto importante daquilo que denominei triângulo ritual De fato na nossa sociedade temos o desfile militar para as autoridades ou melhor como rito destinado a celebrar a relação do Estado com o povo Temos as procissões que focalizam as relações dos homens com Deus através da Igreja E temos finalmente o desfile do carnaval que faz o povo ser ao mesmo tempo espectador e ator Em todos os casos a sociedade celebra aquilo que certamente considera fundamental para a sua estrutura social e o que é interessante apontar no caso brasileiro para cada instituição importante há um lugar e uma forma dramática de apresentação ritual Temos então numa fórmula muito simplificada o Estado com seu poder visitando o povo Deus e os seus santos saindo da esfera 60 sagrada para também visitarem o mundo profano das cidades e finalmente o povo apresentandose a si mesmo como alegre forte galante elegante e luxuoso nos desfiles carnavalescos Nada me parece mais funcional que essa forma de vivenciar os valores Mas os rituais da ordem não se esgotam nessas festas grandiosas em que o mundo social é reafirmado e englobado pelo Estado e pela Igreja Eles também estão presentes em situações muito mais familiares a todos nós como as festas de formatura e os ritos de posse em cargos públicos em que uma mesa geralmente separa as pessoas que são o foco do cerimonial e os seus convidados e em todas as crises de vida e ritos de passagem em geral como nascimentos batizados crismas casamentos e funerais Nessas ocasiões que também são solenes a troca de discursos o uso de roupas especiais a existência de representantes duplos como ocorre nas festas de formatura permitem descobrir esses mesmos elementos que exageram a ordem social constituída e aparente e também a contenção dos gestos e do comportamento em geral Também aqui há um idioma especial facilmente aprendido nos lugarescomuns de uma retórica que todo adulto pode repetir sem esforço E há também os gestos típicos e os objetos indispensáveis como o anel de grau no caso das formaturas as alianças no caso dos casamentos e o bolo de aniversário no caso da passagem de idade Em geral todas essas festas comemoram ou celebram alguma coisa que supomos realmente aconteceu A vida de um santo é uma história exemplar a ser imitada pelos homens e a procissão que ao santo se dedica diz um pouco dessa caminhada terrena para o Céu reproduzindoa numa espécie de teatro cristão que é o ritual religioso Do mesmo modo em formaturas e aniversários casamentos e funerais resgatase sempre algum tipo de exemplo alguma forma de modelo seja para o aniversariante ou formando seguir seja para que seus parentes e amigos possam ser consolados O homem é um animal que busca o sentido em tudo esta é sua sina E tais ocasiões são situações privilegiadas em que os grupos se comprazem na busca de um sentido profundo para suas vidas Sentido que assegura de certo modo a continuidade da vida coletiva mesmo quando ameaçada pela extinção como é o caso dos rituais funerários As festas patrocinadas pelo Estado como as comemorações da Independência também celebram uma ocorrência real o nascimento de uma nação e por isso são eventos paradigmáticos que justificam a importância da data Aqui 61 estamos diante de um rito de calendário coletivo um aniversário e uma formatura nacional Evento que congrega simultaneamente numa espécie de síntese uma série de ritos de passagem É morte de uma relação o elo colonial é nascimento de outra vida o país que se torna independente É também carnaval libertador cerimonial instaurador e inaugurador É solenidade profana ligada ao poder e à vontade dos homens e igualmente rito sagrado onde se agradece a ajuda de Deus pelo desfecho favorável de um movimento de ruptura que geralmente é marcado pela violência Tudo isso permite notar que os ritos da ordem têm um centro Seja um evento seja um personagem seja um objeto neles existe como centro uma cena básica que deve estruturar o rito como um todo além de ações e cenários periféricos Isso fica muito claro em aniversários formaturas e funerais onde há um centro e um momento culminante sem o qual não se tem nem mesmo a necessidade de proceder ao drama O caso da festa de aniversário é um bom exemplo disso pois a mesa e o bolo são aqui personagens centrais sendo parte de seu ponto culminante que tem a ver com a forma ritualizada como se ingere um produto profundamente identificado com o aniversariante sendo seu representante simbólico Desse modo o bolo do aniversariante e o número de velas que o enfeitam e que queimam correspondem ao número de anos que foram queimados na própria vida de quem está sendo homenageado Bolo e pessoa assim são uma só pessoa moral E essa pessoa é comida simbolicamente por todos num ato pleno de comunhão e de divisão física que vem cimentar ritualmente os elos sociais entre aniversariante e convidados De interesse aqui é indicar que as pessoas estão todas distribuídas ao longo desse centro que ao contrário do carnaval onde o mundo é fragmentado e descentralizado e muita coisa ocorre ao mesmo tempo possui um sincronismo uma coordenação com o evento central Isto é ludo acontece de modo orquestrado e em equilíbrio com o evento centralizador de todas as atenções Assim enquanto não se pode jamais chegar atrasado a uma festa carnavalesca pois o evento começa quando se chega nos ritos da ordem se corre sempre o risco dessa perda Isso prova que tais solenidades talvez sejam mais legitimadoras do que simplesmente comemorativas donde a importância da presença e da atenção de todos a seus eventos centrais Tudo isso nos fala de um ritmo social um movimento que indica algo como um oscilar entre forma e conteúdo centro e periferia continência física e excesso Como o tiquetaque de um relógio ou a batida de um coração ou o 62 bumbo de carnaval ou as máscaras que são postas e tiradas na revelação de que os homens vivem entre as coisas Eternos ritualizados sempre passageiros 63 7 O modo de navegação social a malandragem e o jeitinho Entre a desordem carnavalesca que permite e estimula o excesso e a ordem que requer a continência e a disciplina pela obediência estrita às leis como é que nós brasileiros ficamos Qual a nossa relação e a nossa atitude para com e diante de uma lei universal que teoricamente deve valer para todos Como procedemos diante da norma geral se fomos criados numa casa onde desde a mais tenra idade aprendemos que há sempre um modo de satisfazer nossas vontades e desejos mesmo que isso vá de encontro às normas do bom senso e da coletividade em geral 64 Num livro que escrevi Carnavais malandros e heróis lancei a tese de que o dilema brasileiro residia numa trágica oscilação entre um esqueleto nacional feito de leis universais cujo sujeito era o indivíduo e situações onde cada qual se salvava e se despachava como podia utilizando para isso o seu sistema de relações pessoais Haveria assim nessa colocacão um verdadeiro combate entre leis que devem valer para todos e relações que evidentemente só podem funcionar para quem as tem O resultado é um sistema social dividido e até mesmo equilibrado entre duas unidades sociais básicas o indivíduo o sujeito das leis universais que modernizam a sociedade e a pessoa o sujeito das relações sociais que conduz ao pólo tradicional do sistema Entre os dois o coração dos brasileiros balança E no meio dos dois a malandragem o jeitinho e o famoso e antipático sabe com quem está falando seriam modos de enfrentar essas contradições e paradoxos de modo tipicamente brasileiro Ou seja fazendo uma mediação também pessoal entre a lei a situação onde ela deveria aplicarse e as pessoas nela implicadas de tal sorte que nada se modifique apenas ficando a lei um pouco desmoralizada mas como ela é insensível e não é gente como nós todo mundo fica como se diz numa boa e a vida retorna ao seu normal 65 De fato como é que reagimos diante de um proibido estacionar proibido fumar ou diante de uma fila quilométrica Como é que se faz diante de um requerimento que está sempre errado Ou diante de um prazo que já se esgotou e conduz a uma multa automática que não foi divulgada de modo apropriado pela autoridade pública Ou de uma taxação injusta e abusiva que o Governo novamente decidiu instituir de modo drástico e sem consulta Nos Estados Unidos na França e na Inglaterra somente para citar três bons exemplos as regras ou são obedecidas ou não existem Nessas sociedades sabese que não há prazer algum em escrever normas que contrariam e em alguns casos aviltam o bom senso e as regras da própria sociedade abrindo caminho para a corrupção burocrática e ampliando a desconfiança no poder público Assim diante dessa enorme coerência entre a regra jurídica e as práticas da vida diária o inglês o francês e o norteamericano param diante de uma placa de trânsito que ordena parar o que para nós parece um absurdo lógico e social pelas razões já indicadas Ficamos pois sempre confundidos e ao mesmo tempo fascinados com a chamada disciplina existente nesses países Aliás é curioso que a nossa percepção dessa obediência às leis universais seja traduzida em termos de civilização e disciplina educação e ordem quando na realidade ela é decorrente de uma simples e direta adequação entre a prática social e o mundo constitucional e jurídico É isso que faz a obediência que tanto admiramos e também engendra aquela confiança de que tanto sentimos falta Porque nessas sociedades a lei não é feita para explorar ou submeter o cidadão ou como instrumento para corrigir e reinventar a sociedade Lá a lei é um instrumento que faz a sociedade funcionar bem e isso começamos a enxergar já é um bocado Claro está que um dos resultados dessa confiança é uma aplicação segura da lei que por ser norma universal não pode pactuar com o privilégio ou com a lei privada aquela norma que se aplica diferencialmente se o crime ou a falta foi cometida por pessoas diferencialmente situadas na escala social Isso que ocorre diariamente no Brasil quando digamos um bacharel comete um assassinato e tem direito a prisão especial e um operário diante da mesma lei não tem tal direito porque não é obviamente bacharel A destruição do privilégio engendrou uma justiça ágil e operativa na base do certo ou errado Uma justiça que não aceita o maisoumenos e as indefectíveis gradações e hierarquias que normalmente acompanham a ritualização legal brasileira que 66 para todos os delitos estabelece virtualmente um peso e uma escala Assim aqui todos podem ser primários ou não e os crimes admitem graus de execução estando de acordo com o princípio hierárquico que governa a sociedade Sustento que é precisamente essa possibilidade de gradação que permite a interferência das relações pessoais com a lei universal dandolhe em cada caso uma espécie de curvatura específica que impede sua aplicabi lidade universal que tanto clamamos e reclamamos Por tudo isso somos um país onde a lei sempre significa o não pode formal capaz de tirar todos os prazeres e desmanchar todos os projetos e iniciativas De fato é alarmante constatar que a legislação diária do Brasil é uma regulamentação do não pode a palavra não que submete o cidadão ao Estado sendo usada de forma geral e constante Ora é precisamente por tudo isso que conseguimos descobrir e aperfeiçoar um modo um jeito um estilo de navegação social que passa sempre nas entrelinhas desses peremptórios e autoritários não pode Assim entre o pode e o não pode escolhemos de modo chocantemente antilógico mas singularmente brasileiro a junção do pode com o não pode Pois bem é essa junção que produz todos os tipos de jeitinhos e arranjos que fazem com que possamos operar um sistema legal que quase sempre nada tem a ver com a realidade social O jeito é um modo e um estilo de realizar Mas que modo é esse É lógico que ele indica algo importante É sobretudo um modo simpático desesperado ou humano de relacio nar o impessoal com o pessoal nos casos ou no caso de permitir juntar um problema pessoal atraso falta de dinheiro ignorância das leis por falta de divulgação confusão legal ambigüidade do texto da lei má vontade do agente da norma ou do usuário injustiça da própria lei feita para uma dada situação mas aplicada universalmente etc com um problema impessoal Em geral o jeito é um modo pacífico e até mesmo legítimo de resolver tais problemas provocando essa junção inteiramente casuística da lei com a pessoa que a está utilizando O processo é simples e até mesmo tocante Consta de um drama em três atos que todos conhecem 1 Ato Uma pessoa que não é vista por ninguém ignorada em razão de sua aparência e modo de apresentação chega a um local para ser atendida por um servidor público que é uma autoridade e dela está imbuído A autoridade não sabe quem é a pessoa que chegou e nem quer saber Essa distinção entre 67 a humildade de quem chega e a superioridade de quem está protegido pelo balcão da instituição é aliás um elemento forte na hierarquização das posições sociais Pois bem o humilde cidadão chega e pede o que deseja 2 Ato O funcionário custa a atender a solicitação Diz que não pode ser assim e ainda complica mais as coisas indicando as confusões do solicitante e as penalidades legais a que poderá estar sujeito Criase então um impasse Diante de um usuário honesto há a opinião do funcionário que re presenta a lei e por isso mesmo não enxerga qualquer razão pessoal ou humana para tratar o solicitante de modo agradável De fato a lei e o fato de ele ser o seu representante cegao completamente para essas razões humanitárias que decerto estabeleceriam e seriam parte e parcela de uma concepção de cidadania positiva isto é uma cidadania na qual os indivíduos têm os seus direitos assegurados e respeitados em todas as situações Nessa situação o solicitante não é nada É apenas um indivíduo qualquer que como um número um caso complicado um estorvo ou um requerimento solicita algo Temos aqui um alguém que é ninguém Ele obviamente representa o humano e o pessoal numa situação impessoal e geral 3 Ato Diante do impasse pois o funcionário diz que não pode e o cidadão deseja resolver o seu caso há a solução que denuncia e ajuda a ver o mapa de navegação social Nos países igualitários não há muita discussão ou se pode fazer ou não se pode No Brasil porém entre o pode e o não pode encontramos um jeito Na forma clássica do jeitinho solicitase precisamente isso um jeitinho que possa conciliar todos os interesses criando uma relação aceitável entre o solicitante o funcionárioautoridade e a lei universal Geralmente isso se dá quando as motivações profundas de ambas as partes são conhecidas ou imediatamente quando ambos descobrem um elo em comum Tal elo pode ser banal torcer pelo mesmo time ou especial um amigo comum ou uma instituição pela qual ambos passaram ou ainda o fato de se ter nascido na mesma cidade A verdade é que a invocação da relação pessoal da regionalidade do gosto da religião e de outros fatores externos àquela situação poderá provocar uma resolução satisfatória ou menos injusta Essa é a forma típica do jeitinho e há pessoas especialistas nela Uma de suas primeiras regras e não usar o argumento igualmente autoritário o que também pode ocorrer mas que leva a um reforço da má 68 vontade do funcionário De fato quando se deseja utilizar o argumento ou melhor contraargumento da autoridade contra o funcionário o jeitinho é um ato de força que no Brasil é conhecido como o famoso e escondido sabe com quem está falando Aqui ao contrário do jeitinho e quase como o seu simétrico e inverso não se busca uma igualdade simpática ou uma relação contínua com o agente da lei que está por trás do balcão Mas isso sim buscase uma hierarquização inapelável entre o usuário e o atendente De tal modo que diante do não pode do funcionário encontrase um não pode do não pode feito pela invocação do sabe com quem está falando Sou filho do Ministro e pronto gerase logo um tremendo impasse auto ritário que dependerá para a sua solução dos devidos trunfos de quem está implicado no drama De qualquer modo um jeito foi dado Uma forma de resolução foi obtida E a ligação entre a lei e o caso concreto fica realizada satisfatoriamente para ambas as partes Jeitinho e você sabe com quem está falando são pois os dois pólos de uma mesma situação Um é um modo harmo nioso de resolver a disputa o outro é um modo conflituoso e um tanto direto de realizar a mesma coisa O jeito tem muito de cantada de harmonização de interesses aparentemente opostos tal como ocorre quando uma mulher encontra um homem e ambos interessados num encontro romântico devem discutir a forma que esse encontro deverá assumir O sabe com quem está falando por seu lado afirma um estilo diferente onde a autoridade é reafirmada mas com a indicação de que o sistema é escalonado e não tem uma finalidade muito certa ou precisa Há sempre outra autoridade ainda mais alta a quem se poderá recorrer E assim as cartas são lançadas A malandragem como outro nome para a forma de navegação social nacional faz precisamente o mesmo O malandro portanto seria um profissional do jeitinho e da arte de sobreviver nas situações mais difíceis Aqui também temos esse relacionamento complexo e criativo entre o talento pessoal e as leis que engendram no caso da malandragem o uso de expedientes de histórias e de contosdovigário artifícios pessoais que nada mais são que modos engenhosos de tirar partido de certas situações igualmente usando o argumento da lei ou da norma que vale para todos como ocorre no conto da venda do bilhete de loteria premiado Aqui o malandro deseja vender um bilhete premiado pela quarta parte do seu preço justo e arma uma situação onde será fatalmente a vítima Mas o fato é que o 69 comprador é que será roubado A situação se arma precisamente pelo uso abusivo e desonesto das listas oficiais da loteria que legitimam o prêmio e pelos deveres de parentesco que obrigam na história do malandro a uma viagem inesperada donde a necessidade de vender um bilhete premiado Nessa estrutura típica de um contodovigário notase a mesma contradição entre a impessoalidade da loteria e da sorte e a pessoalidade das relações pessoais que se dão em vários níveis O drama reside precisamente no modo especial de conjugar o pessoa com o impessoal Do lado do malandro e como o seu oposto social temos a figura do despachante esse especialista em entrar em contato com as repartições oficiais para a obtenção de documentos que normalmente implicam as confusões que mencionei linhas antes ao descrever detalhadamente o jeitinho O despachante como figura sociológica só pode ser visto em sua enorme importância quando novamente nos damos conta dessa enorme dificuldade brasileira de juntar a lei com a realidade social diária Assim o despachante parece mais um padrinho Tal como o padrinho ele é um mediador entre a lei e uma pessoa Do mesmo modo que um patrão deve dar emprego e boas condições de trabalho a seus empregados o despachante deve guiar seus clientes pelos estreitos e perigosos meandros das repartições oficiais fazendo com que sigam o caminho certo Só que o despachante é um padrinho para baixo Digo para baixo porque as classes média e alta do Brasil têm verdadeira aversão a tudo que a faça sentirse como pessoa comum indivíduo sujeito a rejeições e desagradáveis encontros com autoridades sem o menor traco de boa vontade Assim se não se tem um amigo ou uma relação que possa imediatamente facultar o jeitinho contratase um despachante que realiza precisamente essa tarefa Por tudo isso não há no Brasil quem não conheça a malandragem que não é só um tipo de ação concreta situada entre a lei e a plena desonestidade mas também e sobretudo é uma possibilidade de proceder socialmente um modo tipicamente brasileiro de cumprir ordens absurdas uma forma ou estilo de conciliar ordens impossíveis de serem cumpridas com situações específicas e também um modo ambíguo de burlar as leis e as normas sociais mais gerais A possibilidade de agir como malandro se dá em todos os lugares Mas há uma área onde certamente ela é privilegiada Quero referirme à região do prazer e da sensualidade zona onde o malandro é o concretizador da boêmia 70 e o sujeito especial da boa vida Aquela existência que permite desejar o máximo de prazer e bemestar com um mínimo de trabalho e esforço O malandro então conforme tenho acentuado em meus estudos é uma personagem nacional É um papel social que está à nossa disposição para ser vivido no momento em que acharmos que a lei pode ser esquecida ou até mesmo burlada com certa classe ou jeito No Brasil então podemos ser caxias ou autoritários como personagens típicos do mundo das leis e da ordem podemos ser renunciadores e beatos que querem estar fora deste mundo quando somos religiosos e pretendemos fundar um modo de existência paralelo e podemos também ser malandros e jeitosos políticos hábeis e sagazes quando não enfrentamos a lei com a sua modificação ou rejeição frontal mas apenas a dobramos ou simplesmente passamos por cima dela Quer dizer tal como acontece com o seu modo de andar o malandro é aquele que como todos nós sempre escolhe ficar no meio do caminho juntando de modo quase sem pre humano a lei impessoal e impossível com a amizade e a relação pessoal que dizem que cada homem é um caso e cada caso deve ser tratado de modo especial Mas não ficamos somente nisso Temos grandes arquétipos da malandragem figuras que desenharam como ninguém o papel e o tipo Gente como Pedro Malasartes que foi capaz de realizar uma série de transformações impossíveis ao homem comum Assim ele superou a exploração econômica e política do seu trabalho condenando o fazendeiro que o espoliava Conseguiu também transformar a imobilidade da miséria numa venturosa vida de viajante sem pouso ou casa situação de onde pode sempre enxergar tudo e ganhar novas experiências Pedro Malasartes foi também capaz de proezas incríveis como explorar os ricos vender merda como se fosse riqueza e levar a honestidade ao meio de pessoas desonestas Suas aventuras nos indicam que a vida contém sempre o bom e o mau o lado humano e o desumano estando misturados de modo irremediável em todos e tudo Assim Pedro Malasartes como todos os malandros talvez nos diga que é preciso tomar consciência desses dois lados para poder escolher uma vida humanamente digna A malandragem assim não é simplesmente uma singularidade inconseqüente de todos nós brasileiros Ou uma revelação de cinismo e gosto pelo grosseiro e pelo desonesto É muito mais que isso De fato 71 tratase mesmo de um modo jeito ou estilo profundamente original e brasileiro de viver e às vezes sobreviver num sistema em que a casa nem sempre fala com a rua e as leis formais da vida pública nada têm a ver com as boas regras da moralidade costumeira que governam a nossa honra o respeito e sobretudo a lealdade que devemos aos amigos aos parentes e aos compadres Num mundo tão profundamente dividido a malandragem e o jeitinho promovem uma esperanca de tudo juntar numa totalidade harmoniosa e concreta Essa é a sua importância esse é o seu aceno Aí está a sua razão de existir como valor social Antes de ser um acidente ou mero aspecto da vida social brasileira coisa sem conseqüência a malandragem é um modo possível de ser Algo muito sério contendo suas regras espaços e paradoxos Isso está bem de acordo com o que nos disse Pero Vaz de Caminha no finalzinho de sua carta histórica fundadora do nosso modo de ser depois de dar ao rei as maravilhosas notícias da terra brasileira Ali naquele pedaço terminal e naquela hora de arremate Caminha arrisca malandramente o seguinte E nesta maneira Senhor dou aqui a Vossa Alteza conta do que nesta terra vi E se algum pouco me alonguei Ela me perdoe pois o desejo que tinha de tudo vos dizer mo fez por assim pelo miúdo E pois que Senhor é certo que assim neste cargo que levo como em outra qualquer coisa que de Vosso serviço for Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida a Ela peço que por me fazer graça especial mande vir da Ilha de São Tomé a Jorge de Osorio meu genro o que dela receberei em muita mercê E conclui Caminha como até hoje manda o nosso figurino de malandragem Beijo as mãos de Vossa Alteza Deste Porto Seguro de Vossa Ilha de Vera Cruz hoje sextafeira primeiro dia de maio de 1500 Pero Vaz de Caminha Será que é preciso dizer mais alguma coisa 72 8 Os caminhos para Deus Nós brasileiros marcamos certos espaços como referências especiais da nossa sociedade A casa onde moramos comemos e dormimos vivemos enfim A rua onde trabalhamos e ganhamos a luta pela vida A cada um desses espaços onde convivemos com parentes amigos e colegas de trabalho devemos somar um outro não menos referencial e crítico Quero referirme ao espaço do outro mundo essa área demarcada por igrejas capelas ermidas terreiros centros espíritas sinagogas templos cemitérios e tudo aquilo que 73 faz parte e sinaliza as fronteiras entre o mundo em que vivemos e esse outro mundo onde um dia também iremos habitar Esse mundo habitado por mortos fantasmas almas santos anjos orixás deuses Deus a Virgem Maria e Jesus Cristo para onde todos vão e de onde ninguém retorna ou pelo menos retorna com facilidade Se na casa e na rua utilizamos o idioma do dinheiro e a linguagem das cifras dos números dos salários dos cálculos e das coisas práticas deste mundo no universo da religião estamos muito mais interessados em conversar com Deus com os santos com a Virgem Maria e Jesus Cristo e com toda a legião de entidades que ali habitam Nosso modo de relacionamento aqui é diferente Em vez de discursar rezamos em vez de ordenar pedimos em vez de simplesmente falar como fazemos habitualmente conjugamos a forma da mensagem com seu conteúdo suplicamos O modo de comunicação com o além e seus habitantes assim é formalizado e suplicante Feito de preces rezas e discursos onde se acentuam a cândida sinceridade a honesta súplica a nobre humildade e naturalmente a formidável promessa de renunciar ao mundo com suas pompas e honras Existem formas de falar com o mundo de Deus que são solitárias e outras que são coletivas Coletivamente o modo mais comum é através da cantoria onde a prece faz com que se juntem todos os pedidos num só que deve subir aos céus levado pelas harmonias das vozes que o entoam De fato no nosso modo de conceber o espaço religioso a linha vertical e hierarquizada que relaciona o céu com a terra e o alto com o baixo é algo dominante e critico O alto conforme sabemos muito bem é tudo que é superior tudo que deve ser mais nobre e mais forte tudo que tem mais poder É lá nessa esfera situada em cima que moram os anjos os santos e todas as entidades que nos podem proteger e guiar os destinos O baixo é a terra em que vivemos vale de lágrimas onde sofremos trabalhamos e finalmente morremos A reza a festividade religiosa e o canto propiciatório coletivo são meios de se chegar até essas regiões superiores ligando o aqui e agora como além e o infinito Seria até mesmo possível nesta linha de abordagem dizer que certas rezas ou formas de comunicação com o sobrenatural seriam mais fortes ou mais fracas que outras tudo dentro da nossa lógica de gradação dominante Assim as formas que implicam o envolvimento da maioria dos sentidos seriam provavelmente mais fortes e irresistíveis aos santos deuses e espíritos do que as modalidades em que apenas um sentido está envolvido As formas 74 individuais por sua vez seriam normalmente as mais fracas embora a fé a esperança e a caridade de cada um sejam também elementos importantes no atendimento de suas súplicas ou preces Do mesmo modo as súplicas acompanhadas de objetos na forma de promessas oferendas e sacrifícios são naturalmente mais fortes que um simples pedido verbal pois que elas implicam um ato de cometimento muito mais denso e dramático às vezes exigindo o gasto de parcelas de dinheiro que são críticas em termos da economia doméstica e pessoal do ofertante Além disso a promessa é um pacto que obriga os dois lados a alguma ação positiva no sentido de resolver o problema apresentado Se eu assim peço uma graça e logo em seguida me sacrifico com a oferta de algo precioso para o santo ou santa de minha devoção a lógica social faz com que ele ou ela também se obrigue a resolver meu problema atendendo cortesmente a minha súplica Tudo indica que o santo atende melhor e reconhece mais claramente o esforço dos mortais quando o pedido se faz de modo solene e respeitoso com algum formalismo As rezas e os pedidos assim sobem melhor quando há um sinal visível de comunicação com o alto algo que cristalize essa ligação como a fumaça do incenso ou as luzes das velas queimando Mas por que se fala com Deus As respostas são muito variadas Um fator sociológico básico porém é que existe a necessidade de construir esse grande espelho a que chamamos religião para dar a todos e a cada um de nós um sentimento de comunhão com o universo como um todo A religião assim seria um modo de permitir uma relação globalizada não só com os deuses mas também com todos os homens e com os seres vivos que formam o nosso mundo Também pensamos na religião como um meio de explicação para os infortúnios as coincidências negativas como acidentes e doenças pois a religião pode explicar porque uma pessoa ligada a nós ficou doente sofreu um acidente fatal ou é vitima indefesa e gratuita de desesperadora aflição A religião nesse sentido apresentaria a possibilidade de resgatar a indiferença do mundo e das coisas do mundo relativamente à nossa consciência e à sua necessidade de dar um sentido preciso a tudo ordenando a vida e as relações entre as coisas da vida Falamos também de religião quando estamos pensando no modo pelo qual a sociedade precisa legitimar ou justificar a sua organização a sua maneira de ser e os seus estilos de fazer Assim a religião pode explicar também por que existem ricos e pobres fortes e fracos doentes e sãos dando sentido pleno às 75 diferenciações de poder que percebemos como parte do nosso mundo social Assim como há uma diferenciação no Céu haveria também uma diferenciação na terra muito embora aos olhos do Criador todos sejam singulares e amados igualmente Nesse sentido ou melhor em todos esses sentidos a religião serve para explicar e certamente o faz de modo mais satisfatório que a filosofia ou a ciência pois há sofrimento doença calamidade injustiça e aflição neste mundo E mais ela pode até mesmo dizer por que certa pessoa está sofrendo o que sofre o que não deixa de ser enorme consolo para quem vive e acompanha a aflição Num certo sentido portanto a religião oferece respostas a perguntas que rigorosamente não podem ser respondidas pela ciência ou pela tecnologia Mas além disso a religião marca e ajuda a fixar momentos importantes na vida de todos nós Desse modo nascimentos batizados crismas comunhões casamentos e funerais todos os momentos que assinalam dramaticamente uma crise de vida e uma passagem na escala da existência social são marcados pela presença da religião que legitima com o aval divino ou sobrenatural uma passagem que se deseja necessária algo que esteja inscrito não apenas numa convenção inventada pelos homens mas no próprio projeto divino Essas formas de marcar entradas e saídas do universo religioso são em geral dramáticas exigindo ritos especiais e trabalhados que operam como mediadores Tal como acontece no nosso conhecido ritual do batismo em que a criança entra na Igreja Católica e ao mesmo tempo na sociedade ganhando simultaneamente pais adotivos que reforçam como padrinhos suas obrigações como ser social Assim embora a pessoa seja concebida por genitores os seus pais biológicos há uma exigência de padrinhos ou pais sociais para que ela possa penetrar no cerne da vida social o que no mundo católico se realiza através da Igreja e do ritual apropriado do batismo O mesmo ocorre num casamento onde também existem padrinhos mediadores marcando e indicando que a cerimônia é algo público algo definitivamente social Todos esses aspectos formam aquilo a que chamamos religião num sentido amplo A palavra como se sabe vem do latim e tem no sentido original a idéia de laço aliança pacto contrato e relação que deve nortear os elos entre deuses e homens e por isso mesmo dos homens entre si Mas além desses aspectos a religião é um modo de ordenar o mundo facultando nossa 76 compreensão para coisas muito complexas como a idéia de tempo a idéia de eterno e a idéia de perda e desaparecimento esses mistérios perenes da existência humana Podese dizer nessa perspectiva que o homem é o único ser que tem consciência de sua própria morte e por isso mesmo tem enorme e definitiva necessidade de domesticar o tempo e de problematizar a eternidade Mas como se chega a Deus no Brasil Aqui como em outros lugares temos uma religião dominante e que até bem pouco tempo até 1890 para ser preciso foi oficial Tratase conforme sabemos do Catolicismo Romano denominação religiosa formadora da própria sociedade brasileira e naturalmente de um conjunto de valores que são essenciais no Brasil Naturalmente que tal forma de denominação religiosa é acompanhada de outras que a ela estão referidas mas que dela se diferenciam por meio do culto da teologia do tipo de sacerdócio e de atitudes gerais A variedade de experiências religiosas brasileiras é assim ao mesmo tempo ampla e limitada É ampla porque ao Catolicismo Romano e às várias denominações Protestantes somamse outras variedades de religiões Ocidentais e Orientais além das variedades brasileiras de cultos de possessão cuja tradição é uma constelação variada de valores e concepções De um lado existe incontestavelmente a África dos escravos com seus terreiros tambores idiomas secretos orixás e ritos de sacrifício onde as coisas pertencem ao mundo do sensível Do outro há o Espiritismo kardecista em que o culto dos mortos é uma forma dominante e o ritual se faz sem cantos nem tambores Se nas chamadas religiões AfroBrasileiras e no Espiritismo a relação e o culto dos mortos o contato com Os deuses orixás é algo rotineiro se entre a Umbanda e o Kardecismo existem também crenças em encarnação e na teoria do Karma que vem da Índia há igualmente diferenças entre todas essas formas já que na Umbanda o contato é muito mais com os deuses do que com os espíritos desencarnados dos mortos Por outro lado o Espiritismo considerase codificado ao passo que a Umbanda é uma religião sem codificação e com uma teologia aberta a muitas variações Mas apesar de todas essas diferenças a variedade é limitada porque essas formas mais diversas coexistem tendo como ponto focal a idéia de relação e a possibilidade de comunicação entre homens e deuses homens e espíritos homens e ancestrais Ou seja em todas as formas de religiosidade brasileiras há uma enorme e densa ênfase na relação entre este mundo e o outro de modo 77 que a domesticação da morte e do tempo é elemento fundamental em todas essas variedades ou jeitos de se chegar a Deus Por Outro lado a forma pela qual essa comunicação se realiza é sempre através de um elo pessoal Nós brasileiros temos intimidade com certos santos que são nossos protetores e padroeiros nossos santos patrões do mesmo modo que temos como guias certos orixás ou espíritos do além que são nossos protetores A relação pode ter forma diferenciada mas a sua lógica estrutural é a mesma Em todos os casos a relação existe e é pessoal isto é fundada na simpatia e na lealdade dos representantes deste mundo e do outro Somos fiéis devotos de santos e também cavalos de santo de orixás e com cada um deles nos entendemos muito bem pela linguagem direta da patronagem ou do patrocínio místico por meio de preces promessas oferendas despachos súplicas e obrigações que a despeito de diferenças aparentes constituem uma linguagem ou código de comunicação com o além que é obviamente comum e brasileira Do mesmo modo que temos pais padrinhos e patrões temos também entidades sobrenaturais que nos protegem E elas podem ser de duas tradições religiosas aparentemente divergentes Isso realmente não importa O que para um norteamericano calvinista um inglês puritano ou um francês católico seria sinal de superstição e até mesmo de cinismo ou ignorância para nós é modo de ampliar as nossas possibilidades de proteção É também penso um modo de enfatizar essa enorme e comovente fé que todos nós temos no sentido e na eternidade da vida Assim essas experiências religiosas são todas complementares entre si nunca mutuamente excludentes O que uma delas fornece em excesso a outra nega E o que uma permite a outra pode proibir O que uma intelectualiza a outra traduz num código de sensual devoção Aqui também nós brasileiros buscamos o ambíguo e a relação entre esse mundo e o outro O que pode parecer singular no caso brasileiro então é que cada uma dessas formas de religiosidade seja suplementar às outras mantendo com elas uma relação de plena complementaridade Assim a Igreja Romana costura e dá sentido ao mundo e às experiências humanas pelo seu ângulo externo e formal sendo acionada para legitimar importantes crises de vida como o casamento o batizado o nascimento e a morte A Igreja assim é uma forma básica de religião marcando talvez o lado impessoal de nossas relações com Deus Um lado de fato onde a intimidade eventualmente pode ceder lugar às regras 78 fixas que conduzem a uma impessoalidade sobretudo nos cultos que legitimam de qualquer modo as crises de vida Mas ao lado dessas formas impessoais e mais politizadas e socialmente aceitas de comportamento religioso existem formas pessoais de ligação com o outro mundo Formas e estilos vale destacar que são tão populares como o milagre Realmente que é o milagre senão uma resposta dos deuses a uma súplica desesperada dos homens na forma de um atendimento pessoal e intransferível O milagre é prova de um ciclo de troca que envolve pessoas e entidades sobrenaturais na forma de desejos motivações sentimentos e vários objetos alguns inclusive com a forma da parte que foi curada prova cabal da realização do milagre ou da graça finalmente obtida Essa pessoalidade existente no catolicismo popular como vemos é singular Ela parece produzir no plano religioso essa enorme ênfase nas relações pessoais que dão um sentido profundo ao nosso mundo social Tudo isso revela que é clara essa forma de comunicação familiar e intima direta e pessoal entre homens e deuses no caso brasileiro Assim em vez de opor a religião popular à religião oficial ou erudita será melhor entender que suas relações são complementares Como as vertentes de um mesmo rio ou as duas faces de uma mesma moeda Desse modo o oficial contém tudo o que pode legalizar atuando a partir de fora Mas o popular contém todas as formas que lidam com as emoções em estado vivo atuando por dentro Nessa modalidade sentimentos e idéias ligamse em dramas visíveis e concretos muito diferentes das formas eruditas de religiosidade onde o culto salienta uma comunicação disciplinada e oficial com a divindade Num caso a relação com Deus é por assim dizer limpa tratase de uma comunicação educada No outro a comunicação é sensível concreta e dramática O milagre para nós brasileiros é a nãoexclusão de qualquer dessas formas como necessárias à vida religiosa Mas a adoção de ambas como modos legítimos de se chegar a Deus Assim se no Natal vamos sempre à Missa do Galo no dia 31 de dezembro vamos todos à praia vestidos de branco festejar o nosso orixá ou receber os bons fluidos da atmosfera de esperança que lá se forma Somos todos mentirosos Claro que não Somos isso sim profundamente religiosos 79 Realmente se o mundo real exige um comportamento coerente e uma conduta marcada pela exclusividade não posso ter dois sexos nem duas mulheres nem duas cidadanias nem dois partidos políticos ao mesmo tempo no caminho para Deus e na relação com o outro mundo posso juntar muita coisa Nele posso ser católico e umbandista devoto de Ogum e de São Jorge Posso juntar somar relacionar coisas que tradicional e oficialmente as autoridades apresentam como diferenciadas ao extremo Tudo aqui se junta e se torna sincrético revelando talvez que no sobrenatural nada é impossível A linguagem religiosa do nosso país é pois uma linguagem da relação e da ligação Um idioma que busca o meiotermo o meio caminho a possibilidade de salvar todo o mundo e de em todos os locais encontrar alguma coisa boa e digna Uma linguagem de fato que permite a um povo destituído de tudo que não consegue comunicarse com seus representantes legais falar ser ouvido e receber os deuses em seu próprio corpo Somos um povo que acredita profundamente num outro mundo E o outro mundo brasileiro é um plano onde tudo pode finalmente fazer sentido Lá não haveria mais sofrimento miséria poder e impessoalidades desumanas Todos seriam reconhecidos como pessoas e ao mesmo tempo leis universais como a lei da generosidade e a do eterno retorno quem dá recebe e quem faz algum mal recebe de volta esse mal seriam válidas para todos Todos teriam valor porque o valor não seria dado na formalidade ou no sexo mas na fé e na sinceridade de cada um e de todos O outro mundo tem muitas formas e são vários os caminhos de se chegar até ele no Brasil Mas por detrás de todas as diferenças sabemos que lá nesse céu à brasileira é possível uma relação perfeita de todos os espaços Essa pelo menos é a esperança que se imprime nas formas mais populares de religiosidade 80 Palavras finais Seria possível concluir um livro cuja motivação maior foi sugerir uma certa leitura do Brasil Claro que não Seria possível por outro lado alinhavar certas lições que o caso brasileiro ensina Algo como a busca de uma ética para essa história que contamos brevemente nas páginas anteriores Claro que sim Ao longo deste pequeno ensaio demonstramos que a sociedade brasileira não poderia ser entendida de modo unitário na base de uma só causa ou de um só princípio social Ao contrário dos domínios que tomamos para estudo e investigação todos se revelaram como que possuídos por uma lógica comum Uma lógica que chamei de relacional e que na política aparece com o nome de negociação e conciliação Que no mundo econômico surge na curiosa combinacao de uma economia altamente estatizada com uma iniciativa privada vigorosa e ainda importante Que na religião aparece com a intrigante mistura de catolicismo com religiões afropopulares E que na cosmologia em geral e aqui estou pensando na literatura popular e erudita do Brasil aparece sob uma certa ânsia de criar personagens intermediários gente que pode permitir a conciliação de tudo o que a sociedade mantém irremediavelmente dividido por um movimento inconsciente Por que isso é assim Minha resposta indica que o Brasil é uma sociedade interessante Ela é moderna e tradicional Combinou no seu curso histórico e social o indivíduo e a pessoa a família e a classe social a religião e as formas econômicas mais modernas Tudo isso faz surgir um sistema com espaços internos muito bem divididos e que por isso mesmo não permitem qualquer código hegemônico ou dominante Assim conforme tive que repetir inúmeras vezes somos uma pessoa em casa outra na rua e ainda outra no outro mundo Mudamos nesses espaços de modo obrigatório porque em cada um deles somos submetidos a valores e visões de mundo diferenciados que permitem uma leitura especial do Brasil como um todo A esfera de casa inventa uma leitura pessoal a da rua uma leitura universal Já a visão pelo outro mundo é um discurso conciliador e fundamentalmente moralista e esperançoso Entre essas três esferas colocamos um mundo de relações e situações formais São as 81 nossas festas e a nossa moralidade que como disse se fundam na verdadeira obsessão pela ligação E não poderia deixar de ser assim numa sociedade tão tematizada pela divisão interna Mas qual é afinal a moral desta história Não será preciso ir muito longe para apreciála A História do Brasil tem mostrado como sempre insistimos em ler e interpretar o país pela via exclusiva da linguagem oficial que se forma no espaço generalizado da rua espaço das nossas instituições públicas e que sempre apresenta um discurso politicamente sedutor pois que sistematicamente normativo Ou seja desse ponto de vista a fala sempre diz o que fazer para resolver a questão Mas não é precisamente isso que temos feito em toda a nossa História moderna a partir da Independência e da República E por que as coisas não dão certo Só Deus pode saber isso precisamente Mas a visão antropológica da qual este ensaio é um pequeno exemplo permite que se discutam algumas coisas importantes para uma resposta sugestiva a essa pergunta É possível por exemplo argumentar que nada pode dar certo se a crítica social e política é sempre incompleta pois só leva em consideração um dado da questão De fato como se pode corrigir o mundo público brasileiro por meio de leis impessoais se não se faz simultaneamente uma série crítica das redes de amizade e compadrio que embebem toda a nossa vida política institucional e jurídica Nosso resultado então é que à crítica prática que fala com o idioma da economia e da política pelo mundo da rua seria preciso somar a linguagem da casa e da família e com ela o idioma dos valores religiosos que também operam e por isso determinam grande parte do comportamento profundo do nosso povo Tudo isso diria eu no sentido de somar um pouco mais a casa a rua e o outro mundo aproximando um pouco mais essas esferas Junto com isso que certamente importaria corrigir seria necessário resgatar como coisa altamente positiva como patrimônio realmente invejável toda essa nossa capacidade de sintetizar relacionar e conciliar criando com isso zonas e valores ligados á alegria ao futuro e à esperança Num mundo que cada vez mais se desencanta consigo mesmo e institui um individualismo sem limites que reduz os valores coletivos a mero apêndice da felicidade pessoal a capacidade de ainda deslumbrarse com a sociedade é algo muito importante algo positivo E aqui sem dúvida 82 podemos novamente sintetizar de modo criativo e relacional o indivíduo com as suas exigencias e direitos fundamentais com a sociedade com a sua ordem seus valores e necessidades Talvez a sociedade brasileira seja missionária dessa possibilidade que já se está esgotando no mundo ocidental E por quê Simplesmente porque conseguimos até agora manter nossa fé no indivíduo com os seus espaços internos e também na sociedade com as suas leis de complementaridade e reciprocidade Descobrimos também que o indivíduo relações família e partido político instituições econômicas e esferas de produção e consumo tudo pode ter o seu espaço Se hoje eles estão muito separados entre si isso não significa a impossibilidade de se juntarem mais no futuro na síntese positiva que atualmente só realizamos no mundo das festas sobretudo no carnaval Seria preciso carnavalizar um pouco mais a sociedade como um todo introduzindo os valores dessa festa relacional em outras esferas de nossa vida social Com isso poderíamos finalmente aprofundar as possibilidades de mediação de que estou seguro o mundo contemporâneo tanto precisa Nem tanto o desencanto crítico que conduz a um primado cego do individualismo como valor absoluto e nem tanto o primado igualmente cego da sociedade e do coletivo que esmaga a criatividade humana e sufoca o conflito e a chama das contribuições pessoais Talvez algo no meio Algo que permita ter um pouco mais da casa na rua e da rua na casa Algo que permita ter aqui neste mundo as esperanças que temos no outro Algo que permita fazer do mundo diário com seu trabalho duro e sua falta de recursos uma espécie de carnaval que inventa a esperança de dias melhores Acho que é um pouco desse tipo de reflexão que nos falta E para que ela possa ser ampliada discutida corrigida e finalmente implementada como mecanismo social precisamos realizar a crítica destemida de nós mesmos por meio de instrumentos suficientemente agudos e capazes Para tanto será preciso começar sempre com a pergunta o que faz o brasil Brasil E em seguida promover sua resposta ainda que tímida imprecisa e certamente discutível Pois não foi outra coisa que quisemos realizar aqui Jardim Ubá junho de 1984 83 Roberto DaMatta por ele mesmo Meu nome completo é Roberto Augusto da Matta e tive muito encabulamento com essa marca de família porque na escola eu sempre virava o roberto mata e todo mundo queria saber quem eram as vítimas Tímido e calado reprimido por autoprojeto de perfeição e santidade cheguei até mesmo a pensar em ser padre Esse plano durou até nossa saída de Juiz de Fora para São João Nepomuceno onde conheci o esporte os bailes da primavera os amigos do peito e as primeiras namoradas Nasci porém em Niterói em 1936 onde moro até hoje pensando que Niterói é uma cidade especial que confere a alguns dos seus moradores esse mistério de uma associação periférica com o Rio de Janeiro dos grandes acontecimentos mas que situa a todos numa espécie de meiadistância crítica de tudo Essa é uma posição antropológica por excelência que suponho seja também a marca de outros niteroienses sensíveis gente como Sergio Mendes e Walter Lima Jr Em Niterói enterrei meu coração e o renovei quando conheci minha mulher Celeste numa tarde bonita de vestibular num pátio sombreado da então Faculdade Fluminense de Filosofia onde ambos cursamos um bacharelato de História Em Niterói também fiz minha casa nasceram meus filhos e foi onde me descobri professorpesquisador É desta base que saio todos os anos para lecionar em outros centros do Brasil e do exterior Minhas primeiras aspirações intelectuais foram na área das artes Queria ser pintor e desenhista depois escritor Aprendendo seriamente as Ciências Sociais descobri que seria possível conciliar o desejo de inventar com o comentário realístico e inteligente das motivações e relações humanas Fiquei interessado em Antropologia Cultural ou Social porque estava sempre fascinado com a semelhança e a diferenças entre os homens e as sociedades Logo em 1959 quando tinha 23 anos iniciei um estágio profissional no Departamento de Antropologia do Museu Nacional na Quinta da Boa Vista de onde jamais saí De estagiário passei a bolsista e depois a pesquisador e professor tendo contribuído naquela instituição com um bocado do meu sangue suor e lágrimas para a fixação definitiva do seu hoje conhecido Programa de PósGraduação em Antropologia Social do qual fui Coordenador durante alguns anos aqueles anos duros da repressão dos 84 novecentos e setenta Fui também nesta mesma época Chefe do Departamento papel que me deixou muitas vezes a matutar no meu pendor inusitado a um certo masoquismo Mas mesmo envolvido na mais densa e cruel selva administrativa não deixei de lado minhas fontes de serenidade e inspiração e continuei realizando pesquisas e publicando livros Neste Museu Nacional tenho orientado inúmeras teses de mestrado e doutorado e dado aulas cursos e seminários Sempre li entre fascinado e respeitoso os clássicos do pensamento sociológico francês alemão e inglês No início dos anos 60 já iniciando os meus primeiros passos como profissional de antropologia tive dois encontros importantes Um deles com a América do Norte via Universidade de Harvard O outro com a Antropologia Social na sua prática de campo por meio dos índios Gaviões e Apinayé do Brasil Central Por meio desta associação realizei pesquisas acadêmicas e teóricas imaginando por um momento um futuro trancado na ciência e no saber Mas a distância do Brasil a que a experiência norteamericana me conduziu fezme um observador crítico da sociedade brasileira e seus costumes iniciandome como pesquisador e comentador de minha própria sociedade Assim é que meu primeiro livro individual Ensaios de Antropologia Social Vozes é marcado pela diversidade de interesses de quem estava como que buscando um objeto definitivo de trabalho Ali naquele pequeno volume de ensaios eu falo de mitologia indígena encaro uma crítica literária a nada menos que Edgar Alan Poe discuto o problema da másorte na Amazônia e pela primeira vez abor do o carnaval dentro de uma perspectiva antropológica Isso é muito diverso do meu primeiro livro Índios e castanheiros Paz e Terra escrito a quatro mãos com Roque Laraia que é relato descritivo de uma situação de contato intercultural onde os índios conforme se sabe têm levado sistematicamente a pior Se ali eu tinha um objeto apaixonado de discurso no outro livro eu estava buscando o Brasil Meu terceiro livro é o resultado do trabalho acadêmico desenvolvido durante dez anos no Museu e em Harvard É o livro Um mundo dividido a estrutura social dos índios Apinayé Vozes que também foi traduzido e publicado em inglês pela Harvard Univ Press Meu quarto livro é o ensaio Carnavais malandros e heróis para uma sociologia do dilema brasileiro Zahar traduzido para o francês onde decidi retomar o ensaio como instrumento de interpretação do Brasil Em seguida a ele publiquei Universo do carnaval imagens e reflexões Pinakhoteke organizei 85 Universo do futebol Pinakhoteke e E R Leach Ática e escrevi uma introdução à Antropologia Social chamada Relativizando Vozes que tem tido uma acolhida generosa entre estudiosos e estudantes de Antropologia no Brasil e no exterior Ao lado destes livros tenho feito muitos artigos e ensaios que vão da violência à sexualidade no Brasil Hoje fico cada dia mais certo de que a Antropologia Social é também um código literário e que só nos faltam a ousadia temática e aquela capacidade de observação e articulação que de resto os grandes mestres da Etnologia do passado tinham Afinal o prêmio não é somente pela prática da ciência mas pela perseverança em praticála sempre mesmo vivendo num mundo que nos leva para todos os lugares Recentemente iniciei uma experiência na televisão escrevendo e apresentando a série Os brasileiros R DaMatta Niterói Jardim Ubá Agosto de 1984 86 A propósito do ilustrador Jimmy Scott nasceu em 5 de janeiro de 1936 em Santiago do Chile Preparase para ser técnico industrial Muda rumos e ingressa na Faculdade de BelasArtes da Universidade do Chile onde estuda Artes Plásticas Seu começo profissional na ilustração foi em 1958 ao publicar seus primeiros trabalhos na revista infantil El Peneca e logo depois na revista de humor político Topaze duas publicações tradicionais do Chile hoje desaparecidas que divulgaram largamente seu traço Os convites sucederamse e em pouco tempo suas charges e caricaturas apareciam em diversos jornais e revistas de Santiago e Concepción Ilustrou textos didáticos para a Librairie Française e Editorial Universitaria de Santiago Chega ao Brasil em 1970 Até 1979 é contratado pela AGGS Indústrias Gráficas Hoje divide seu tempo entre algumas editoras o jornal O Globo e a publicidade Resenha de O que faz o Brasil Brasil de Roberto DaMatta Introdução A tese central de Roberto DaMatta em O que faz o Brasil Brasil é que a sociedade brasileira é marcada por uma lógica relacional onde a negociação e a conciliação desempenham papéis cruciais Ele argumenta que essa lógica relacional se manifesta em todas as esferas da vida brasileira incluindo política economia religião e cultura DaMatta enfatiza que essa abordagem de conciliação é uma resposta à complexidade e à diversidade da sociedade brasileira que não pode ser compreendida de maneira simplista ou unitária Ele desafia a ideia de uma identidade cultural uniforme e destaca a capacidade do Brasil de sintetizar elementos culturais diversos em uma única identidade nacional A intenção do autor ao escrever O que faz o Brasil Brasil é fornecer uma análise aprofundada e crítica da sociedade brasileira e de sua identidade cultural DaMatta deseja desafiar concepções simplistas e estereotipadas sobre o Brasil e oferecer uma visão mais complexa e matizada da nação Ele busca promover uma compreensão mais profunda das dinâmicas sociais e culturais que moldam o país a fim de contribuir para uma reflexão crítica sobre a sociedade brasileira Em adição DaMatta incentiva a análise e a crítica das redes de amizade e compadrio que permeiam a vida política e institucional do Brasil argumentando que essa análise é essencial para promover mudanças positivas na sociedade brasileira Sua intenção é portanto estimular o pensamento crítico e a reflexão sobre o Brasil e sua identidade cultural única O que faz o Brasil Brasil é uma obra seminal escrita pelo renomado antropólogo brasileiro Roberto DaMatta Publicado em 1984 o livro busca desvendar a complexidade da sociedade brasileira e explorar as características únicas que moldam a identidade cultural do país Por meio de uma análise antropológica profunda DaMatta explora as dinâmicas sociais políticas econômicas e culturais que definem o Brasil e delineiam o que significa ser brasileiro A obra é uma contribuição valiosa para o campo da antropologia fornecendo insights profundos sobre a alma o espírito e a coletividade que compõem a identidade nacional do Brasil DaMatta examina como a cultura brasileira é influenciada por uma mistura complexa de elementos incluindo tradições indígenas influências africanas valores religiosos e a interação entre o público e o privado Desenvolvimento No decorrer da obra Roberto DaMatta aborda a ideia fundamental de que a sociedade brasileira não pode ser entendida de maneira simplista e unitária Em vez disso ele argumenta que o Brasil é uma sociedade complexa e multifacetada caracterizada por uma lógica relacional essa lógica relacional se manifesta em várias esferas da vida brasileira incluindo política economia religião e cosmovisão DaMatta destaca a importância da negociação e da conciliação como elementos centrais da política brasileira Ele observa que a política no Brasil é frequentemente caracterizada pela busca de acordos e compromissos em vez de conflitos abertos Na esfera econômica DaMatta analisa a combinação peculiar de uma economia altamente estatizada com uma iniciativa privada vigorosa Ele destaca como essa interação entre o público e o privado cria uma dinâmica única na economia brasileira No campo religioso o autor explora a fusão intrigante entre o catolicismo e as religiões afropopulares no Brasil Ele argumenta que essa combinação religiosa é um reflexo da capacidade brasileira de sintetizar elementos culturais diversos em uma única identidade DaMatta também examina a literatura popular e erudita do Brasil e identifica uma ânsia por criar personagens intermediários que possam conciliar as divisões sociais e culturais Ele sugere que essa busca por intermediários reflete a natureza conciliadora da sociedade brasileira DaMatta explora a relação entre a casa a rua e o outro mundo na vida do brasileiro Ele observa como as pessoas mudam de comportamento e valores ao se moverem entre esses espaços refletindo a influência das esferas pública privada e religiosa Conclusão Em sua obra O que faz o Brasil Brasil Roberto DaMatta oferece uma análise profunda e abrangente da sociedade brasileira destacando sua complexidade e diversidade Ele desafia a ideia de uma identidade cultural uniforme argumentando que o Brasil é uma nação que se caracteriza pela convivência de múltiplas influências e elementos culturais DaMatta destaca a importância da negociação da conciliação e da síntese como elementos fundamentais da cultura brasileira Ele argumenta que a capacidade de mediar e conciliar diferenças é uma característica distintiva da sociedade brasileira A obra também enfatiza a necessidade de uma análise crítica da sociedade brasileira levando em consideração não apenas aspectos políticos e econômicos mas também valores religiosos e culturais DaMatta sugere que essa análise crítica é essencial para promover mudanças positivas na sociedade brasileira Em O que faz o Brasil Brasil Roberto DaMatta realiza uma análise antropológica profunda e perspicaz da sociedade brasileira explorando as complexidades que definem a identidade nacional DaMatta demonstra um equilíbrio notável entre objetividade e subjetividade Embora sua análise seja fundamentada em observações etnográficas e exemplos concretos ele também compartilha suas perspectivas e interpretações enriquecendo a obra com sua experiência pessoal O autor consegue manter a atenção do leitor por meio de um equilíbrio adequado entre opiniões pessoais e evidências Ele sustenta seus argumentos com exemplos da vida cotidiana no Brasil tornando seus pontos de vista acessíveis e convincentes De todo modo em alguns momentos DaMatta poderia ter dado mais espaço a perspectivas alternativas ou críticas Embora ele ofereça uma visão já abrangente da sociedade brasileira uma discussão mais aprofundada de pontos de vista divergentes poderia enriquecer ainda mais a obra Essa obra é bemvinda nos contextos acadêmicos em disciplinas de antropologia cultural sociologia estudos culturais e ciências sociais em geral Além disso é uma leitura valiosa para qualquer pessoa que deseje compreender melhor a riqueza e a complexidade da cultura brasileira Resumidamente O que faz o Brasil Brasil é uma leitura essencial para aqueles que desejam compreender a complexidade da identidade cultural brasileira e as dinâmicas que moldam a sociedade brasileira A obra de Roberto DaMatta continua a ser uma referência valiosa para estudiosos da antropologia e interessados na cultura e na identidade brasileiras Bibliografia MATTA Roberto da O que faz o brasil Brasil 2 ed Rio de Janeiro Rocco 1986 126 p Resenha de O que faz o Brasil Brasil de Roberto DaMatta Introdução A tese central de Roberto DaMatta em O que faz o Brasil Brasil é que a sociedade brasileira é marcada por uma lógica relacional onde a negociação e a conciliação desempenham papéis cruciais Ele argumenta que essa lógica relacional se manifesta em todas as esferas da vida brasileira incluindo política economia religião e cultura DaMatta enfatiza que essa abordagem de conciliação é uma resposta à complexidade e à diversidade da sociedade brasileira que não pode ser compreendida de maneira simplista ou unitária Ele desafia a ideia de uma identidade cultural uniforme e destaca a capacidade do Brasil de sintetizar elementos culturais diversos em uma única identidade nacional A intenção do autor ao escrever O que faz o Brasil Brasil é fornecer uma análise aprofundada e crítica da sociedade brasileira e de sua identidade cultural DaMatta deseja desafiar concepções simplistas e estereotipadas sobre o Brasil e oferecer uma visão mais complexa e matizada da nação Ele busca promover uma compreensão mais profunda das dinâmicas sociais e culturais que moldam o país a fim de contribuir para uma reflexão crítica sobre a sociedade brasileira Em adição DaMatta incentiva a análise e a crítica das redes de amizade e compadrio que permeiam a vida política e institucional do Brasil argumentando que essa análise é essencial para promover mudanças positivas na sociedade brasileira Sua intenção é portanto estimular o pensamento crítico e a reflexão sobre o Brasil e sua identidade cultural única O que faz o Brasil Brasil é uma obra seminal escrita pelo renomado antropólogo brasileiro Roberto DaMatta Publicado em 1984 o livro busca desvendar a complexidade da sociedade brasileira e explorar as características únicas que moldam a identidade cultural do país Por meio de uma análise antropológica profunda DaMatta explora as dinâmicas sociais políticas econômicas e culturais que definem o Brasil e delineiam o que significa ser brasileiro A obra é uma contribuição valiosa para o campo da antropologia fornecendo insights profundos sobre a alma o espírito e a coletividade que compõem a identidade nacional do Brasil DaMatta examina como a cultura brasileira é influenciada por uma mistura complexa de elementos incluindo tradições indígenas influências africanas valores religiosos e a interação entre o público e o privado Desenvolvimento No decorrer da obra Roberto DaMatta aborda a ideia fundamental de que a sociedade brasileira não pode ser entendida de maneira simplista e unitária Em vez disso ele argumenta que o Brasil é uma sociedade complexa e multifacetada caracterizada por uma lógica relacional essa lógica relacional se manifesta em várias esferas da vida brasileira incluindo política economia religião e cosmovisão DaMatta destaca a importância da negociação e da conciliação como elementos centrais da política brasileira Ele observa que a política no Brasil é frequentemente caracterizada pela busca de acordos e compromissos em vez de conflitos abertos Na esfera econômica DaMatta analisa a combinação peculiar de uma economia altamente estatizada com uma iniciativa privada vigorosa Ele destaca como essa interação entre o público e o privado cria uma dinâmica única na economia brasileira No campo religioso o autor explora a fusão intrigante entre o catolicismo e as religiões afropopulares no Brasil Ele argumenta que essa combinação religiosa é um reflexo da capacidade brasileira de sintetizar elementos culturais diversos em uma única identidade DaMatta também examina a literatura popular e erudita do Brasil e identifica uma ânsia por criar personagens intermediários que possam conciliar as divisões sociais e culturais Ele sugere que essa busca por intermediários reflete a natureza conciliadora da sociedade brasileira DaMatta explora a relação entre a casa a rua e o outro mundo na vida do brasileiro Ele observa como as pessoas mudam de comportamento e valores ao se moverem entre esses espaços refletindo a influência das esferas pública privada e religiosa Conclusão Em sua obra O que faz o Brasil Brasil Roberto DaMatta oferece uma análise profunda e abrangente da sociedade brasileira destacando sua complexidade e diversidade Ele desafia a ideia de uma identidade cultural uniforme argumentando que o Brasil é uma nação que se caracteriza pela convivência de múltiplas influências e elementos culturais DaMatta destaca a importância da negociação da conciliação e da síntese como elementos fundamentais da cultura brasileira Ele argumenta que a capacidade de mediar e conciliar diferenças é uma característica distintiva da sociedade brasileira A obra também enfatiza a necessidade de uma análise crítica da sociedade brasileira levando em consideração não apenas aspectos políticos e econômicos mas também valores religiosos e culturais DaMatta sugere que essa análise crítica é essencial para promover mudanças positivas na sociedade brasileira Em O que faz o Brasil Brasil Roberto DaMatta realiza uma análise antropológica profunda e perspicaz da sociedade brasileira explorando as complexidades que definem a identidade nacional DaMatta demonstra um equilíbrio notável entre objetividade e subjetividade Embora sua análise seja fundamentada em observações etnográficas e exemplos concretos ele também compartilha suas perspectivas e interpretações enriquecendo a obra com sua experiência pessoal O autor consegue manter a atenção do leitor por meio de um equilíbrio adequado entre opiniões pessoais e evidências Ele sustenta seus argumentos com exemplos da vida cotidiana no Brasil tornando seus pontos de vista acessíveis e convincentes De todo modo em alguns momentos DaMatta poderia ter dado mais espaço a perspectivas alternativas ou críticas Embora ele ofereça uma visão já abrangente da sociedade brasileira uma discussão mais aprofundada de pontos de vista divergentes poderia enriquecer ainda mais a obra Essa obra é bemvinda nos contextos acadêmicos em disciplinas de antropologia cultural sociologia estudos culturais e ciências sociais em geral Além disso é uma leitura valiosa para qualquer pessoa que deseje compreender melhor a riqueza e a complexidade da cultura brasileira Resumidamente O que faz o Brasil Brasil é uma leitura essencial para aqueles que desejam compreender a complexidade da identidade cultural brasileira e as dinâmicas que moldam a sociedade brasileira A obra de Roberto DaMatta continua a ser uma referência valiosa para estudiosos da antropologia e interessados na cultura e na identidade brasileiras Bibliografia MATTA Roberto da O que faz o brasil Brasil 2 ed Rio de Janeiro Rocco 1986 126 p

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