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Psicologia ·

Psicologia Social

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Brasil Sumário Psicologia USP Artigos originais Psicol USP 9 2 1998 httpsdoiorg101590S010365641998000200002 COPIAR Humilhação social um problema político em psicologia Social Humiliation a Political problem into psychology Resumos Este artigo opera com resultados de uma pesquisa de psicologia social desenvolvida em regime participante e envolvendo mulheres que na Vila Joanisa SP assumiram comunitariamente o trabalho de Centros de Juventude Dedicamonos aqui ao exame de um problema político e psicológico a humilhação social uma modalidade de angústia disparada pelo impacto traumático da desigualdade de classes para assim caracterizálo recorremos à investigação marxista e à psicanálise Classe trabalhadora Privação social Ansiedade social Psicologia social This paper is based upon participant research carried out in Vila Joanisa a disenfranchised and poor district of São Paulo As a social psychologist the author has worked in Youth Centers communitybased groups both organized and coordinated by women The aim of this paper is to discribe and discuss social humiliation defined as a singular kind of anguish triggered by class inequality trauma The psychological and political concepts of social humiliation were integrated into a theoretical framework informed by marxism and psychoanalisis Working class Social deprivation Social anxiety Social Psychology UMILHAÇÃO SOCIAL UM PROBLEMA POLÍTICO EM PSICOLOGIA José Moura Gonçalves Filho Brasil Instituto de Psicologia USP Psicologia USP Este artigo opera com resultados de uma pesquisa de psicologia social desenvolvida em regime participante e envolvendo mulheres que na Vila Joanisa SP assumiram comunitariamente o trabalho de Centros de Juventude Dedicamonos aqui ao exame de um problema político e psicológico a humilhação social uma modalidade de angústia disparada pelo impacto traumático da desigualdade de classes para assim caracterizálo recorremos à investigação marxista e à psicanálise Descritores Classe trabalhadora Privação social Ansiedade social Psicologia social As companhias de Marx e de Freud nem rivalidade nem equivalência Marxismo e Psicanálise O tema contou entre os mais enfrentados por fertilíssimos pensadores que atravessaram e ultrapassaram a Segunda Grande Guerra em Frankfurt ou em Paris exilados na Inglaterra ou nos Estados Unidos Quem desejasse retomar as possibilidades e dificuldades do assunto em seu detalhe filosófico certamente deveria recorrer àqueles escritores de grande envergadura dialética e que interrogaramse sobre Freud enquanto liam O Capital ou interrogaramse sobre Marx enquanto liam O malestar na Cultura Que portanto o leitor não se engane quanto ao limite dos parágrafos seguintes Tratase de um estudo de psicologia social Esforçase apenas para indicar um problema político a humilhação social que para ser ainda hoje discutito e superado não deveria dispensar as antigas companhias de Marx e de Freud Dentre as três palavras marxismo el psicanálise talvez a mais anódina entre elas aparentemente insignificante esta partícula el uma conjunção aditiva é que merecesse desde já polarizar nossa atenção Dizemos marxismo e psicanálise Encontramonos assim não perante uma alternativa marxismo ou psicanálise Tampouco deparamonos com associações híbridas psicanálise marxista ou freudomarxismo expressões que não hesitaram formularse na Europa e na Argentina reivindicando uma espécie de pesquisa combinada nem sempre bem sucedida No caso de marxismo ou psicanálise supõese a concorrência entre dois regimes de investigação como se tivéssemos que nos decidir entre duas visões de mundo ou cosmovisões Foi sempre esta a convicção entre determinados marxistas como também entre certos psicanalistas toda vez que para uns e outros as obras de Marx ou de Freud deixavam de valer pela especificidade do fenômeno enfrentado a formação do modo de produção capitalista no caso de Marx a formação da sexualidade humana no caso de Freud e passavam a contar como obras de ciência geral como sistemas completos e fechados para cada sistema o outro valendo como redutível à lógica absorvente do sistema eleito Já não se disse entre marxistas que a Psicanálise contaria como ideologia ou como refinada e dangerous expressão do individualismo moderno Já não ouvimos entre psicanalistas que os militantes empenhariam em sua adesão ao socialismo as mesmas motivações de um neurótico qualquer seu engajamento público nunca superando as compulsões de um sintoma Para que as razões que nos levassem a adotar Marx se prestassem ao mesmo tempo para a exclusão de Freud para que as razões que nos levassem a adotar Freud se prestassem ao mesmo tempo para a exclusão de Marx seria necessário que a obra de um ou outro deixasse de contar como obra de pensamento e se impusesse como trabalho morto para falar como marxista ou como objeto fálico para falar como psicanalista Desnecessário insistir sobre este ponto se estivéssemos diante de Marx ou Freud como perante uma alternativa excludente perderíamos o sopro de ambos O caso de uma solução eclética justapondo fundiendo ou equiparando noções marxistas e freudianas costuma implicar um rebaixamento terminológico generalizado a descaracterização de conceitos distintivos tudo isto assiduamente conduzindo o que é ainda mais grave à simplificação dos fenômenos em causa Foi assim por exemplo quando se pretendeu sem mediações vincular formações inconsistentes em sua acepção freudiana a formações políticoculturais como se os dinamismos e estruturas intraspíquicos fossem continuamente homólogos aos societários Os processos políticos informam a subjetividade desdobramse internamente desdobramse para dentro mas um tal desdobramento sofre metabolismo pessoal e assume figura singular metabolismo e figura que exigem detida consideração e consideração diferenciada A apresentação de João ou Maria ainda prossegue depois que se completou a descrição de seus lugares na divisão burguesa do trabalho E desde então dificilmente progrediríamos com Marx sem o recurso outro a Freud e a investigadores da vida psíquica Inversamente também são conhecidos os riscos de uma tradução exaustiva em termos freudianos de um problema marxista por excelência como aquele da reificação Hoje não se cansam referências ao fetichismo da mercadoria como a um fenômeno autoerótico ou narcísico todo explicado em termos de nossas atrações a objetos parciais ou a objetos especulares O problema da reificação em Marx sempre encontra sua determinação essencialmente política Entretanto reduzido às medidas do fetichismo sexual o processo de reificação prestase a um exame em níveis puramente psicoculturais em nenhum momento considerado nestes termos o enfrentamento da reificação precisaria supor o enfrentamento da desigualdade de classes Assim despolitizado o problema da reificação esgotase no problema da personalidade fetichista e abstraído de suas violentas condições históricas invalidando as medidas de uma transformação social arrisca ser inteiramente neutralizado não há mudança efetiva de mentalidade quando a mudança de mentalidade perdendo o mundo desenvolvese apenas em seu próprio registro sem implicar engajamento e perturbação material sem implicar ação sem fundação de novos relacionamentos A triste figura do consumidor isolado homem retraído para o cuidado de si e de seus agregados vivendo do trabalho como de mero instrumento para perseguição de rendas e para compra de mercadorias não poderá ser ultrapassada enquanto prescindirmos a fundação de uma cidade sem patrões Esta imprescindível condição para a liberdade dificilmente entrevemos com Freud sem o recurso outro a Marx e a investigadores da vida política O exame de processos psíquicos beneficiase do recurso ao seu tempo social um recurso à maneira pela qual cada época geralmente organizou as relações dos homens com outros homens com a cidade e também com a natureza Esta disciplina de fronteira a Psicologia Social caracterizase não pela consideração do indivíduo pela focalização da subjetividade no homem separado mas pela exigência de encontrar o homem na cidade o homem no meio dos homens a subjetividade como aparição singular vertical no campo intersubjetivo e horizontal das experiências Não o homem separado o indivíduo mas sempre um homem a subjetividade realizandose intersubjetivamente uma revelação tratase sempre do modo mais ou menos singular por que um homem aparece em companhia de outros A pessoa sofre e habita a experiência comum em alguma medida sofrendoa vem afetála por traços originais por qualidades surpreendentes que tornam irredutível a fisionomia de cada homem Impossível tomar o rosto e a voz de um homem como expressões sob perfeito condicionamento Os temas da Psicologia Social justamente incidem sobre problemas intermediários difíceis de considerar apenas pelo lado do indivíduo ou apenas pelo lado da sociedade É este o caso para o problema da humilhação social Sem dúvida tratase de um fenômeno histórico A humilhação crônica longamente sofrida pelos pobres e seus ancestrais é efeito da desigualdade política indica a exclusão recorrente de uma classe inteira de homens para fora do âmbito intersubjetivo da iniciativa e da palavra Mas é também de dentro que no humilhado a humilhação vem atacar A humilhação vale como uma modalidade de angústia e nesta medida assume internamente como um impulso mórbido o corpo o gesto a imaginação e a voz do humilhado Esta situação intermediária situação ambígua da humilhação fenômeno externointerno é o que nos faz encontrar tanto a Marx quanto a Freud beneficiandonos do fato essencial de que tanto Marx atento às determinações econômicas quanto Freud atento às determinações pulsionais afinal ensinaramnos a encontrar o homem em situação interhumana o homem havendose com os outros homens mais do que com mecanismos O mecanísmico no homem que em Marx vem com a mercantilização das relações sociais e em Freud com a formação das pressões inconscientes o mecanísmico no homem não é um fato natural mas histórico e intersubjetivo A humilhação social conhece em seu mecanismo determinações econômicas e inconscientes Deveremos propôla como uma modalidade de angústia disparada pelo enigma da desigualdade de classes Como tal tratase de um fenômeno ao mesmo tempo psicológico e político O humilhado atravessa uma situação de impedimento para sua humanidade uma situação reconhecível nele mesmo em seu corpo e gestos em sua imaginação e em sua voz e também reconhecível em seu mundo em seu trabalho e em seu bairro O morador impedido A visão dos bairros pobres parece às vezes ainda mais impiedosa do que a visão de ambientes arruinados não são bairros que o tempo veio corroer ou as guerras vieram abalar são bairros que mal puderam nascer para o tempo e para a história Um bairro proletário não é feito de ruínas Ocorre que ali o trabalho humano sobre a natureza e sobre a cidade parece interceptado As formas de um bairro pobre não figuram como destroços ou como edifícios decaídos realidades fúnebres mas em que podem restar impressionantes qualidades arqueológicas em suas linhas corroídas e em suas formas parcialmente quebradas pode persistir a memória de uma gente No bairro pobre menos de ruína o espetáculo mais parece feito de interrupção as linhas e as formas estão incompletas não puderam se perfazer Os meios os recursos sobre os quais o homo faber investe o seu poder inventivo foram perdidos ou nunca foram alcançados o resultado destas carências e frustrações é que os poderes mesmos da fabricação humana ficam perdidos ou nunca são alcançados lançamse em situações sem suporte gastamse no ar sem resposta são neutralizados Faltam os instrumentos faltam os materiais que suportariam o trabalho humano para a configuração de um mundo para a fisionomia de uma cultura Gradualmente chega a faltar o animus faber A montagem de novas formas de vida fica emperrada Para a carpintaria pode faltar madeira ou formão um martelo um alicate A alvenaria é sempre adiada interminável a compra de tijolos areia massa e uma janela às vezes consumiria o salário de mais de cinco meses e a maioria dos moradores pobres ainda não conhece para isso a solução dos mutirões A cozinheira quando não está simplesmente sem comida ressentese da falta de panelas ou condimentos A educação das crianças ressentese da falta de cadernos e livros O bordado e o crochê ressentemse da pouca linha da falta de novelos e agulhas com gancho Nos Centros de Juventude CJ da Vila Joanisa já vi gente pelejando tricotar com corda fina e barbante Como pensar no amanho de uma pequena horta se quando não falta o quintal faltam as sementes e o adubo A terra que se prestaria para um canteiro comunitário é terra loteada e proibida ou é terra raspada esterilizada sem húmus um projeto de rua largado As rodas do samba ou os forrós contentamse às vezes com um só pandeiro podem terminar muito cedo por causa da vitrolinha que ninguém conseguia escutar As procissões vão sem velas e nas festas do padroeiro pode faltar a imagem do santo 04082023 1440 SciELO Brasil Humilhação social um problema político em psicologia Humilhação social um problema político em psic httpswwwscielobrjpuspas63y4NmBfsHYpwm3gtw4wFDlangptformathtml 537 Eis o que ouvimos de Ecléa Bosi 1994 p443 a mobilidade extrema e insegura das famílias pobres migrantes ou nômadeurbanas impede a sedimentação do passado Os retratos o retrato de casamento os panos e peças do enxoval os objetos herdados toda esta coleção de bens biográficos não logra acompanhar a odisséia dos miseráveis São transferidos são abandonados ou são vendidos a preços irrisórios A espoliação econômica manifestase ao mesmo tempo como espoliação do passado não há memória para aqueles a quem nada pertence Tudo o que se trabalhou criou lutou a crônica da família ou do indivíduo vão cair no anonimato ao fim de seu percurso errante A violência que separou suas articulações desconjuntou seus esforços esbofeteou sua esperança espoliou também a lembrança de seus feitos Bosi E 1981 p23 O despojamento material e simbólico vem de longe Começa no campo começa por exemplo pela monocultura e pelas pastagens intensivas formas recorrentes de exploração nos países dependentes como o Brasil O arroz a soja a cana provocam tão forte imigração de lavradores que constituem genocídio pelo número dos que vêm morrendo no caminho para o Sul O arrozal em Goiás despojou o pequeno lavrador Avançando destruiu sua roça derrubou a mata extinguiu a caça e a lenha secou o olhodágua invadiu seu cercado de galinhas e criações formas de vida incompatíveis com a monotonia exclusiva do arroz Transformouo num bóiafria O migrante perde a paisagem natal a roça as águas as matas a caça a lenha os animais a casa os vizinhos as festas a sua maneira de vestir o entoado nativo de falar de viver de louvar a seu Deus Suas múltiplas raízes se partem Na cidade a sua fala é chamada código restrito pelos lingüistas seu jeito de viver carência cultural sua religião crendice ou folclore Bosi E 1987 p17 Formações culturais muito singulares uma vez perdidas não podem mais retornar não podem prescindir da situação total e estrutural irreversível em que eram viáveis Bosi E 1982 p62 Este costuma ser o saldo das conquistas predatórias foi como no Brasil se estabeleceu o encontro com os povos nativos e com os povos africanos Quando duas culturas se defrontam não como predador e presa mas como diferentes formas de existir uma é para a outra como uma revelação Mas essa experiência raramente acontece fora dos pólos submissãodomínio A cultura dominada perde os meios materiais de expressar sua originalidade não se está pensando em isolar um meio social de influências externas Se hoje se luta pela demarcação de territórios pela autonomia cultural do indígena é porque não existe um todo social de que ele participaria mas uma sociedade dividida em antagonismos onde ele entraria fatalmente como presa Isolálo do predador é defesa de sua cultura e de sua sobrevida Bosi E 1987 p167 Para os Sudaneses e Bantos brutalmente arrastados para o Brasil o despojamento começou pela escravidão nos engenhos nas minas e nos cafezais Queiroz 1987 No trabalho escravo a vida dos africanos era reduzida para a média dos sete a dez anos Moura 1989 p14 54 Quando não a morte física era a morte cultural que os espreitava o banzo a saudade da Brasil Psicologia USP África a saudade letal Freire 1975 p464 Houve negros que se suicidaram comendo terra enforçandose envenenandose com ervas e potagens Houve os que caíram no estupor melancólico e vagavam ausentes assombrando as fazendas com seu rosto fantasmatizado Houve os que definharam recusando comida a comida insossa a comida estranha a comida que vinha pela mão que açoitava seus pais e seus filhos Nos quilombos a liberdade sempre se escooru na apropriação de um território Mas a emancipação dos escravos agenciada pelo Estado Brasileiro não foi acompanhada pelas reformas agrária e urbana Os negros sem terra seguiram agregados aos seus senhores ou liberaramse para as cidades sem casa caindo na indigência das favelas e no aviltamento dos serviços proletários sob o mando de novos senhores Para as grandes cidades industriais foi carreada uma multidão de despossuídos herdeiros sem herança vítimas da expropriação que se abateu sobre seus avós roceiros sobre os avós negros os avós mulatos os avós indígenas os avós caboclos Agora nos bairros pobres a espoliação prossegue seu curso desta vez não tanto destruindo cultura como tolhedno a construção cultural retendo as iniciativas populares num estado de inanição inanição por privação de bens mundanos O trabalhador impedido Aqui você tem que trabalhar porque tudo depende do trabalho aqui em São Paulo Você não tem da onde adquirir nada Nem pra comer Nem pra nada Tudo aqui tem que ser com dinheiro aqui em São Paulo Se você não tiver o dinheiro se acabou o mundo Porque aqui você não tem colega aqui você não só o se for da família um irmão pra dar uma força pra você um pai alguém da família Porque ninguém estranho dá a mão pra ninguém aqui em São Paulo Gerônimo trabalhador frentista em São Paulo trecho de um depoimento recolhido por Ruth Rosenthal A ubiquidade do dinheiro O malestar na cidade capitalista aparece ostensivamente na consciência do frentista As relações sociais estão despersonalizadas refreando a solidariedade para o âmbito privado da família Toda e qualquer aquisição material e simbólica foi transformada em moeda se você não tiver o dinheiro se acabou o mundo Numa cidade em que os laços públicos tendem a perder suas qualidades concretas e humanas absorvidas que estão por imperativos do mercado este reconhecimento queixoso do frentista encontraria a confirmação de Goldmann 1979 numa tradição de investigações que remonta a Marx e Engels passando por Georg Lukács Em seu depoimento o trabalhador migrante vindo de Arapiraca no sertão Alagoano não deixava dúvida sobre a exploração já conhecida e de que todos pretendiam escapar O pai trabalhou numa empreiteira de estradas pessoas que só veve fazendo o asfalto e depois tornouse comerciante meu pai tem comércio na casa mesmo onde ele mora Gerônimo veio para São Paulo Meus pais não são rico são umas pessoas igual a mim uma pessoas que tem um bocado pra comer mas vai levando a vida tocando do jeito que eu toco a minha aqui Gerônimo a despeito da pobreza sertaneja não teria conhecido um mundo de solidariedade familial e interfamiliar Sua ênfase ao indicar que em São Paulo nem a comida vem sem dinheiro fica de certo modo explicada quando mais adiante ao lembrar os mais abastados a madrinha e as tias declara É um pessoal um pouco meio atrasado que mora num sítio num mora nem numa cidade mora num sítio lá no estado de Alagoas mas graças a Deus vai tudo bem tem sua vaquinha tem Cria seus porco suas galinha veve tudo bem graças a Deus A maneira assertiva como frisa o fato de que aqui em São Paulo as coisas são como são na primeira citação emprega sete vezes a palavra aqui parece sugerir a memória de uma economia atrasada mas abençoada que comportaria algum dom e leite tirado da vaca os ovos da galinha leite e ovos quem sabe às vezes recebidos da madrinha de um compadre e que circulariam sem dinheiro para além da família Tudo contrastando com a economia metropolitana em que leite e ovos são só comprados ou só vendidos circulando como mercadorias entre negociantes Do depoimento o que sabemos com certeza é que em Arapiraca Gerônimo nunca teria conhecido o aluguel viveria da casa paterna É com ressentimento que se queixa de um colega paulistano seu primeiro hospedeiro mas já no terceiro dia exigindo que o recémchegado se retirasse Você passa três dias como eu já passei aqui em São Paulo quando eu cheguei três dias na casa de um colega depois de três dias ele já começou que eu arrumasse uma pensão que eu arrumasse alguma coisa porque lá não dava pra mim por causa que a casa já era pequena arrumasse outro tipo de vida Foi o que arrumou e não se arrepende Parece chocado com a inospitalidade da cidade mas a solidariedade antiga não compensaria a pobreza em Alagoas onde seus pais sofrem muita dificuldade ganha pouco veve do trabalho também Já que em toda parte vivese de trabalho a vida de trabalho pareceulhe mais promissora em São Paulo A voz mistura tristeza e protesto já resignados quando identifica a lei na cidade progressista ninguém estranho dá a mão pra ninguém aqui em São Paulo A voz do poeta também se reuniria à do frentista somos irmãos de nossso irmãos e de nossos amigos os demais são sócios indiferentes ou inimigos competidores Na cidade vendedores ou compradores deixamos entre parênteses quaisquer outros traços da vida comum No campo público normas privatizantes ganham o caráter de hábito a consideração da necessidade dos outros deve manterse abaixo dos esquemas pecuniários As ações públicas não se cumprem tanto por simpatia ou por dever éticopolítico quanto por motivos interesseiros Enquanto concentrados no circuito das relações de compra e venda o cálculo ocupa com quase exclusividade a consciência dos indivíduos Apenas entre familiares ou amigos no retiro dos lares encapsulados mais ou menos protegidos contra a atração redutora dos mercados é que as coisas podem reaparecer aquém e além dos preços circulando gratuitamente segundo sua aptidão não em render mas em satisfazer necessidades fraternas necessidades vitais ou simbólicas necessidades do estômago ou do coração Goldmann 1979 Os direitos humanos deixam de valer como o resultado de colaboração e tornamse tarefa do indivíduo isolado De agora em diante salvo iniciativas em contrário o homem valorizará o seu ingresso em instituições sociais apenas considerando vantagens a título privado a conveniência nenhum motivo a mais tornase a magra justificativa do homem burguês para ainda tolerar sua dedicação à cidade e aos outros homens A liberdade é desde então afirmada como um valor individual e a noção de justiça é forjada como direito reconhecido a cada indivíduo de fazer na esfera de sua liberdade privada tudo que não interfira na liberdade dos outros Goldmann 1979 Estabelecese assim uma falsa Existe uma condição social inteira e continuamente presa ao dinheiro é a do assalariado sobretudo desde que o salário por empreitada obriga cada operário a ter sua atenção sempre voltada para a contagem dos tostões Nessa condição social é que a doença do desenraizamento é mais aguda Weil 1979 p349 Já não levei muita chance com esse governo novo que entrou Mas eu vivo tô trabalhando tô trabalhando graças a Deus tô com saúde a minha mulher tá com saúde também temos meus três filhos que tá com saúde De hoje cuidante fazer minha vida continuar trabalhando graças a Deus tô com saúde então a gente com saúde adquire tudo Então eu acho que vai melhorar pra mim Qualquer forma ou outra vai melhorar pra mim A gente que é um povo trabalhador que depende do serviço Do jeito que está as coisa hoje em dia a gente ganhando uma mixaria que a gente ganha não dá nem pra viver Tem que trabalhar pra adquirir aquilo que eu perdi se bem que eu não perdi tudo que eu tô com a minha saúde Então eu acho que vai dar tudo certo tá todo mundo com saúde Deus queira que continua do jeito que está Eu tenho um salário pouco mas o pouco que eu ganho dá pra viver Também não pago mais aluguel É Minha casa é própria Então graças a Deus já dá pra adquirir mais alguma coisa Vamos esperar que dê graças a Deus dê tudo certo Também não posso falar que está meio ruim pro meu lado Porque eu tô com saúde graças a Deus com esse governo que tá aí com os plano que ele tá todo mundo tá apoiando porque a gente tem que dá uma ajuda porque ele só não vai conseguir dominar a nação a gente tem que dar uma ajuda pro lado dele eu acho que melhora as coisa Que seja um bom presidente que ele veja o lado das pessoa de todo mundo o rico e o pobre então pedir sorte a Deus que esse desemprego que tá dando aí essa pessoa da classe rica que tem indústria que tem comércio não ponha muita gente pra rua mandando todo mundo embora porque aí a coisa fica pior cada dia que se passa fica pior o pai de família às vezes adoece um filho não tem dinheiro pra gastar com aquele filho tem que ir pro INPS O INPS de hoje em dia vocês estão vendo que não é nada Você vai lá e se a pessoa estiver doente vai morrer Por causa que eles não atende de maneira alguma Se a gente fala Ah vamos fazer uma consulta particular daí é outros quinhento Vai passar no meio de todo mundo Ali você é bem atendido Passa uns quinze minuto vinte minuto conversando com a pessoa Enquanto você vai pelo INPS passa dois três minuto Chega lá a criança tá doente passa um remédio e acabou a conversa Então nesse mundo que a gente tá vivendo nesse departamento aí principalmente de saúde tá péssimo Você vê aí que tá triste mesmo é gente morrendo cada dia que se passa e o governo falando é vamos ajeitar vamos ajeitar o lado da saúde Mas não até hoje cada dia que se passa é pior Então acho que tem que ver essas parte também principalmente o lado da saúde Porque se o pobre se o pobre além de ser pobre não tem o lado que o governo veja o lado dos pobre principalmente o lado da saúde que sempre a gente precisa de um médico A gente não vai viver sempre numa boa com saúde sempre uma vez um filho da gente adoece a esposa da gente um avô uma tia uma madrinha a gente tem que correr pra onde Uma pessoa da classe média como a gente é ganhando dez mil cruzeiro por mês vai ter que correr pelo INPS Pô eles não sabe descontar da gente Porque todo mês eles sabe descontar do salário da gente todo da folha de pagamento já vem descontado Se a gente tivesse condição de pagar um médico particular a gente não ia correr pro INPS mas com o salário que a gente ganha hoje em dia tem que correr O único lugar que tem que correr com um filho da gente um moleque qualquer uma pessoa é pro INPS Chega lá é mal atendido Às vezes o camarada entra lá no hospital às vezes sai morto Não tem condição então eu acho que ele tem que ver principalmente essa de salário pra melhorar a situação dos pobre porque o salário mínimo é uma desgraça cinco mil cruzeiro hoje você gasta de pão e leite pra três filho Se eu pagasse aluguel de cinco mil cruzeiro não podia viver tinha que correr pra minha terra porque na minha terra eu não ia pagar aluguel o que eu ganhava aqui dava pra mim viver com a minha família Mas aqui já é completamente diferente Aqui você tem que trabalhar porque tudo depende do trabalho aqui em São Paulo Você não tem da onde adquirir nada Nem pra comer Nem pra nada Tudo aqui tem que ser com dinheiro aqui em São Paulo Se você não tiver o dinheiro se acabou o mundo Porque aqui você não tem colega aqui você não só o se for da família um irmão pra dar uma força pra você um pai alguém da família Porque ninguém estranho dá a mão pra ninguém aqui em São Paulo Mas graças a Deus fiquei aqui estou onde eu estou não estou bem mas estou levando uma vida dá pra viver O que vem pela frente é lucro então vamos esperar que meus planos dê certo O ano que vem eu continuo viajando visitando minha família e se não der certo vou ficar onde eu estou mesmo trabalhando e sobrevivendo do meu trabalho Então é tudo o que eu tenho pra dizer pra senhora a senhora é uma pessoa ótima maravilhosa eu sou uma pessoa também que não entendo muito de entrevista Obrigado Se não valeu nada minha palestra tá certo Tudo o que eu tenho que dizer pra senhora é isso Os poderes da palavra de Gerônimo são amordaçados pela forçosa concentração nos problemas de salário preços e saúde Vai para os preços volta para os salários vai para a saúde volta para os preços vai para os salários volta para a saúde O discurso é circular e aflito A repetição chega a entediar A escuta ou a leitura tornamse saturantes Nossa atenção se embota e enfraquece Fica difícil pensar a não ser de um modo muito genérico tratase de um trabalhador como outros denunciando suas necessidades de dinheiro O trabalho que sidera o trabalhador sidera também os seus interlocutores Esvazia Um discurso abstrato tende a girar e a girar como um animal engaiolado Esgotados alguns ciclos da conversa sobre salários preços e saúde o depoimento se interrompe abruptamente Não há mais nada Então é tudo o que eu tenho pra dizer pra senhora E no entanto uns instantes antes havíamos ouvido o migrante de Arapiraca resumir de um modo tão impressionante o regime da cidade grande As possibilidades de pensamento e de iniciativas daí derivadas ficam sem realização para quem não conta com a audição dos outros de um grupo comunitário de um grupo sindical de uma classe organizada de uma cidade igualitária de um Estado Democrático e Socialista Se outra vez recorremos a Simone Weil e suas observações sobre a condição operária deveríamos dizer que o discurso abstrato é como o trabalho com máquinas industriais é não tanto circular quanto pendular O círculo é como belo retorno símbolo daquilo que se completa para ser diferentemente retomado cada retomada enriquecendo o ciclo anterior e modificandose no seguinte progredindo como os discos de uma espiral O pêndulo entretanto é movimento binário repetitivo e sem progressão figura atroz da monotonia o tictac dos relógios mecânicos O círculo e o pêndulo o tempo ultrapassado e o tempo esterilizado diz Simone Weil O trabalho mercantilizado quer absorver o trabalhador sua ação mas também sua consciência suas mãos mas também suas palavras na gangorra da alienação O trabalho faz experimentar de uma forma extenuante o fenômeno da finalidade devolvida como uma bola trabalhar para comer comer para trabalhar Se consideramos um dos dois como um fim ou ambos separadamente estamos perdidos O ciclo contém a verdade A grande dor do trabalho manual é que somos obrigados a nos esforçar por longas horas seguidas simplesmente para existir O escravo é aquele a quem não se propõe nenhum bem como finalidade dos seus cansaços a não ser a simples existência Ele deve então ou ser desapegado ou cair no nível vegetativo Weil 1993 p2023 Ford o inventor das linhas de montagem construídas não para que se trabalhase melhor mas para que se trabalhasse mais velozmente dizia não poder passar nem sequer um dia num mesmo trabalho da fábrica mas que era preciso acreditar que seus operários fossem diferentes porque recusavam um trabalho mais variado A linha de montagem em que se realiza não um trabalho qualificado mas cinco ou seis movimentos simples e repetitivos submete os trabalhadores a uma intensidade extraordinária de operação multiplicando várias vezes o ritmo de fabricação Contanos Braverman 1987 p1312 que quando foi inaugurada a primeira esteira rolante na Ford Motor Company em Highland Park 1914 o tempo de montagem foi reduzido a um décimo do tempo tradicional Em 1925 produziase por dia um número de carros quase equivalente à produção anterior de um ano inteiro Entretanto no período em que a cidade ofertava muitos outros empregos a reação dos trabalhadores foi vigorosa o abandono de trabalho na Ford elevouse a 380 no ano de 1913 nesta ocasião toda vez que a companhia precisasse contar com mais 100 homens na fábrica tinha que admitir 963 Escreve Simone Weil O patrão tem não apenas a propriedade da fábrica das máquinas não apenas o monopólio dos processos de fabricação e dos conhecimentos financeiros e comerciais a respeito de sua fábrica como pretende ainda ter o monopólio do trabalho e dos tempos de trabalho O que resta aos operários Restalhes a energia que permite fazer um movimento o equivalente à força elétrica e a energia operária é utilizada exatamente como se utiliza a eletricidade a monotonia no trabalho começa sempre por ser um sofrimento Se chegase ao hábito é à custa de uma diminuição moral Os operários da Ford não tinham o direito de falar Weil 1979 p1245 Nós nos precipitaríamos considerando que a palavra de Gerônimo assume caráter pendular por tratarse de um sintoma de reificação e nada mais Seria antes necessário perguntarmonos se os pobres falam quando falam conosco O esvaziamento da palavra proletária é muitas vezes aquilo que a própria entrevista ajuda a manter O encontro do pesquisador com o oprimido é freqüentemente a repercussão em forma interpessoal do encontro de duas classes relacionadas em forma desigual e predatória Que discurso se pode esperar de quem fala com o patrão É verdade que o caráter pendular da palavra pode ser o sintoma de uma vida socialmente pendular interceptada neutralizada precisando sempre recomeçar situação de quem foi reduzido a força muscular que se reproduz e se reproduz gastandose sem desenvolvimento Mas as próprias condições de nosso encontro com o trabalhador podem produzir pendularidade Para que a palavra se modificasse e se distendesse alargandose seria preciso supor entre nós e o trabalhador um campo intersubjetivo alargado em que a palavra espiralasse Um campo difícil de estabelecer Impossível no intervalo de uma entrevista Gerônimo conosco não se encontra A palavra do patrão dirigida ao empregado no mais das vezes é pequena coleção de imperativos Faça isso Não faça isso Eu lhe pedi que fizesse Eu não lhe pedi que fizesse e assunto encerrado É a conversa econômica nas duas acepções do termo a conversa das tarefas assalariadas e a conversa breve que economiza palavras Ninguém se demora nisso a não ser nas negociações freqüentemente intermináveis embora importantes que não deixam de simplificar o diálogo pela concentração nos temas trabalhistas salários férias carteira INPS database salários inflação salários O que encolhe a visão do rosto dos pobres encolhe também as palavras que lhes dirigimos a conversa vem carecer da tonalidade psicológica da tonalidade política o que desejamos saber deles é se cumprem o serviço ponto final A palavra do empregado dirigida ao patrão é a conversa de pequenas consultas ou a conversa defensiva Faço isso Não Mas foi o senhor quem mandou Mas o senhor não mandou Ora a palavra do empregado No mais das vezes a posição do homem servilizado é simplesmente a de quem foi reduzido ao silêncio não o silêncio dos mudos mas dos emudecidos não o silêncio dos monastérios mas o silêncio dos que rezam para não perder o emprego As orações do proletário nas duas acepções do termo suas frases e suas preces são freqüentemente também econômicas São as frases e as preces do homem reduzido à tarefa ou à força muscular Faço o que mandam Deus me dê saúde para trabalhar Quando Ruth encontrou o nosso depoente dois outros frentistas já haviam sido consultados sobre a possibilidade de uma entrevista O primeiro alegou não saber falar O segundo confidenciou Gerônimo temeu que a entrevista se prestasse a uma fiscalização a uma delação nós os entrevistadores comparecendo como representantes do dono do posto O cidadão impedido Há uma praça na Vila Joanisa periferia sul de São Paulo Uma única pracinha E não parece pertencer aos joanisenses Pequena demais e muito cimentada sem bancos sem coreto e sem marquises Mal convém chamála praça vale como parada de ônibus em que se faz fila e onde motoristas e cobradores encontram intervalo rápido entre uma viagem e outra Pracinha para passar não para passear Suas grandes árvores cinco ou seis são apenas toleradas já não suscitam nenhum círculo de brincadeira ou namoro à sua volta Ninguém pensa em descansar à sua sombra Quem passa tem pressa Para que valessem como árvores seria necessário que a própria praça valesse como praça No bairro as árvores que restam como as da pracinha estão geralmente cercadas pelo cimento E que lamentável poder possui o cimento que as sufoca de também inutilizálas não porque viessem a desfalecer sem área por onde espraiarse Não as árvores são tantas vezes robustas e várias delas mantêmse graves mesmo ali onde foram cercadas por matéria dura Mas é que o cimento vem tornálas inconvenientes O cimento é lançado por motivos funcionais regula o limite entre calçada e rua disciplinando os pedestres estes justamente são tidos como homens em marcha marcha para o trabalho marcha para as compras Na cidade o excesso de pavimentação a sobrecarga do concreto do betume dos asfaltos é sempre índice de que não se pensa nos cidadãos como seres que se detêm que se demoram ou sossegam mas que estão em trânsito A terra e as árvores amortecem os passos refreiam a correria ondulam a caminhada distraem solicitam do andarilho a observação podem fazer tropeçar A grama e a luz temperadas pelas copas dão vontade de sentar e até deitar A lógica dos cimentos contamina o relacionamento com as árvores e com a relva melhor seria que fossem cortadas e cobertas para o benefício do tráfego para a consumação sem transtorno dos ritmos citadinos A aceleração dos dias contraria as árvores estes seres de repouso que apenas balançam Ultrapassadas pela reificação dos ambientes e dos encontros sociais as árvores sobram ali às vezes nem como enfeites apenas ali não pareceria absurdo dar cabo delas quem daria pela falta A alteração da fisionomia esqualida dependeria de uma viva resistência informada por um protesto ambientalista muito consciente o que ainda não é traço sólido na cultura joanisense Quando esfriam os ambientes quando a aura se desmancha se uma resposta ecológica não é notável algum aquecimento é todavia possível um calor trazido pelos dias de ocupação comunitária do bairro dias festivos o carnaval um comício em que o morador poupado das pressões cotidianas e ainda que não suficientemente atento para as árvores encontrase outra vez no sentimento de ser gente em meio a seus irmãos de classe Uma esperança desponta aí para os que almejam contar com os trabalhadores na preservação da natureza o ecologista sabe que a amizade pela natureza guarda decisiva raiz na amizade pelo companheiro esta parece sempre iminente nos movimentos populares organizados um gosto pela convivência igualitária apenas aguardando sua oportunidade suas iscas Nas lembranças de Natil coordenadora do Centro de Juventude São João brilha a recordação dos dias felizes em que a prefeitura associandose à gente do bairro fechou a pracinha para a máquina da cidade abriu a pracinha para os cidadãos O carnaval que teve aqui no ano passado nossa Fui em todos dançamo até Aqui na Joanisa Teve programação pela prefeitura teve carnaval na rua Aqui tem uma escola de samba uma escola de bairro chama Pé Grande Teve apresentação deles e teve várias escolas Ih Cê acha que eu perdi Naquele tempo a Penha tinha restaurante em que vendia pastel lá em cima tinha terraço Nós subia lá em cima E tava a Penha tava a Márcia tava a Adriana tava um monte de gente lá a Luzia Tava o pessoal tudinho dançando Eles fecharam a pracinha até bem perto da subida que vai pro México Fecharam lá e Perpétuo da Glória fecharam todo aquele pedaço E tinha gente pra caramba A Luzia é que tava comandando o Beto pessoal do PT Eu tava no meio de gente como gente Eu tava como se diz no meio de gente como a gente mesmo Não é que tô discriminando eu sei que você entendeu tava no meio do pessoal Porque a coisa mais bonita que eu acho é a massa organizada expressando o que sente Então quando isso quando ia num comício do PT aquilo não sei o quê aquilo me dava assim uma satisfação porque aquilo tem uma energia uma força aquela massa todinha Nossa Senhora Então eu ficava assim extasiada de ver aquilo lá ver aquelas pessoas E isso me dá prazer estar ali no meio Por isso que não perco porque quem sabe quem descobre que tem a força ali no meio não perde fixavamse ao chão como entre viseiras abandonando toda visão lateral toda contemplação Quando cruzavam os nossos os olhos fechavamse ou piscavam de um modo esquisito e epiléti São fenômenos disparados em ambientes públicos onde a presença dos pobres não pode contar a não ser como a presença de subalternos a serviço dos que despendem dinheiro e ordens Quando se vai ao cinema ou ao teatro onde costumamos aguardar o encontro com os pobres Na portaria onde um deles estará concentrado no depósito de bilhetes São os faxineiros os lanterninhas os bilheteiros Frequentemente não assistiram ao filme sequer imaginam o espetáculo Quando saio com Léia Rose e Natil nunca deixam de reservar atenção àqueles seres laterais seres das margens uma atenção que se torna logo triste quando não descamba facilmente para a angústia paralisante catatônica Uma vez entrando com Rose em cinema da avenida Paulista ela perguntou à senhora da urna se o filme era bom A mulher achou graça Não sei não minha filha assisti não as letrinhas escapam respondeu rapidamente fazendonos rir um riso amarelo e apressando a fila A última vez que Natil e Rose vieram a minha casa dezembro decidimos jantar fora No caminho passamos pela Faria Lima e diante do Shopping Iguatemi avistamos as grandes árvores com tronco e galhos inteiramente cobertos por minúsculas lampadazinhas jaboticabas de luz branca como se o brilho viesse de dentro Ficaram como duas meninazinhas trêmulas e de olhar arregalado Caindo em compaixão dispararam a lembrar um sem número de amigos e familiares que precisavam estar ali Ah mas o Renato devia estar aqui A Penha tinha que ver isso Por que que a gente não carregou a Roseli Aos poucos como fosse o espetáculo demasiadamente reservado vedado aos companheiros e aos irmãos a fruição daquelas árvores ensolaradas foi se tornando sombria O sabor a alegria misturaramse ao fel da desigualdade ao sentimento de que a cidade é fechada para os pobres No restaurante tudo se repetiu Reparavam inquietas no garçom que nos atendia A prestimosidade do moço só servia para envergonhálas Quando chegou a refeição consultaramlhe o senhor está servido Quando se deteve conosco por uns instantes numa conversa sem trejeitos serviçais foi só então que nelas apareceu o apetite À cordialidade do rapaz respondiam com cordialidade redobrada Como não fosse possível sentálo à mesa amargavam a refeição separatista Ambientes que poderiam parecer atrativos tornamse lamentáveis para os pobres quando carregam os signos da exclusão Natil que se alegra na festa da praça popular sofre e se entristece nos Shopping Centers e na bela cidadezinha de Nova Lima Minas Gerais Como eu saí eu acho que a minha família tinha que sair também Eu acho assim se eu estou aproveitando que nem eu estava lá em Nova Lima mas meu pensamento não saía daqui eu achava que o que eu estou vivendo a minha família tinha que viver também Então não consigo me desligar totalmente Acho assim que é um direito meu mas deveria ser um direito dos outros também Mas como não deu pra todo mundo estar indo então fico assim meia não fico totalmente realizada Se eu tivesse mais condição todo mundo teria ido Tem um lugar que eu não posso ir Eu me sinto totalmente Tenho uma expressão que eu usei Para quem que eu usei Foi quando a gente estava vindo no caminho de Contagem para Belo Horizonte Até comentei com o Carlos e a Santa que quando eu saio volto e eu despenco na minha realidade Sempre falo isso eu despenco na minha realidade E um lugar que eu sinto isso muito forte é quando por exemplo eu vou no Shopping Então você vê aquelas coisa é que nem um conto de fada Imagina você uma criança um conto de fada você tudo maravilhado Eu sou adulta ainda me conformo Não é que eu me conformo eu entendo como é que é formada as coisa Como diz eu não posso ter aquilo no momento mas quem sabe se eu trabalhar e não sei o quê Agora imagino uma criança totalmente carente num lugar desse como que ela se sente Então me sinto mal de ir no Shopping de ver aquelas coisa muito bonitas e ver que aquela criança não vai ter aquilo que ela vai ficar só na ilusão de estar vendo aquelas beleza toda e nunca vai ter Então me sinto mal Agora com o tempo que fiz um trabalho comigo é que tô conseguindo ir no Shopping e não voltar desse jeito Já tive problemas seríssimos Problema sério de não aceitar essa realidade de eu ir lá e não aceitar de estar lá de pensar naquelas crianças que não estão lá esses sentimentos Não sei por quê E eu tenho muito disso Se eu for num lugar muito belo que eu queria que outras pessoa tivesse desfrutando eu falo tô despencaaannndo na minha realidade Eu choco com a realidade É difícil eu estar num lugar Eu não consigo assim imaginar é difícil imaginar que na mesma hora que eu tô num lugar belo lindo aí é como se fosse uma mágica eu tivesse aqui de novo Que nem eu tava em Nova Lima aquilo lá é lindo aquilo lá Aí você despenca dentro dessa realidade você despenca mesmo Entendeu É uma coisa que te choca é uma magia É impressionante como você pode estar no lugar e depois de não sei quantas horas depois de 9 horas de Nova Lima pra cá ficar me deliciando de saber que já estava dentro da minha casa que eu já estava com a minha família que estava tudo bem que aquilo lá era só recordação já não era mais já não podia ser mais aquilo que aconteceu Essa passagem eu passo Eu passei essa passagem na hora que a Léia me deixou que eu tomei o ônibus aí eu vi aquela passagem Foi dolorosa pra mim Deixar a Léia ali e ir pra Contagem pra Belo Horizonte Aquele sentimento todinho eu fui vivendo Eu sei que eu sou masoquista eu sei que eu sou Mas eu sei que eu fui vivendo aquilo eu marco todinho todinho impressionante O pecado da realidade o pecado da realidade Não é que eu não curto eu curto quando tô num lugar diferente eu vivo não tem nada contra Só que foi muito bom estar indo lá Sabe quando você nós temos o direito de hoje ir jantar fora nós põe na cabeça a conta ficou cara mas nós temos o direito nós trabalhou pra ter isso você está naquele lugar mas você não dá o direito de estar naquele lugar sente que não pode estar ali Você está lá num muito momento agradável mas você fica falando assim por que esse crânio não vive também por que não tem essas pessoas será que eles tem essa oportunidade de experimentar isso Eu vivo muito isso por que que o outro não está lá Vivo muito esse negócio Passando em cada rua vendo os enfeites das árvores parece conto de fada muito enfeitada Diz bem baixinho Ai você despenca A impossibilidade de compartilhar o mundo faz despencar Na clínica winnicottiana a vertigem a angústia de cair é freqüentemente reconhecida como o sentimento de não existir no meio dos outros não existir para os outros ou não consentir a própria existência A vida comunitária não é a condição determinante daquela amargura nos espaços nãodemocráticos separatistas e racistas Apenas vem aprofundála Pode temperála Mas a amargura chega para toda a gente para qualquer um de nós e especialmente para aqueles que se sabem sistematicamente excluídos do direito à cidade Para aqueles que sabem que a festa dos outros freqüentemente repousa no trabalho de pessoas que são como seu pai ou sua mãe seu irmão ou seus amigos pobres A fruição de um bem público que venha corrompida pela desigualdade não pode sem dificuldades trazer ao humilhado quando então nela é incluído de um modo passageiro ou discricionário o sentimento de simplesmente usufruir de um direito inédito o que costumeiramente lhe vem é o sentimento tantas vezes não reconhecível de agora ele também beneficiarse para sua satisfação da exclusão dos que o servem seus irmãos de classe Despenca sem saber por quê a fruição tornase insustentável Insistir na satisfação sem dividirse dependeria do esforço por identificarse plenamente com o patrão Esforço quase impossível para o homem pobre a não ser de um modo bizarro sempre maneirista Será preciso renunciar ao pensamento das condições para o prazer privilegiado dos ricos se chega a este ponto certamente torna mais fácil enriquecerse algumas vezes deixando de importarse até mesmo com a pobreza de parentes próximos ou no máximo limitandose à preocupação com estes e com mais ninguém O novo rico busca consolarse com o pensamento de que sua fortuna vem do trabalho como se nunca houvesse dependido também do trabalho alheio A fortuna dos que enriquecem ou dos que nascem ricos encontra sempre a classe dos que a sustentam A riqueza material e simbólica não é nunca um bem a título privado Algumas vezes para quem necessite apaziguar suas culpas o consolo pode vir pela filantropia esporádica e ostensiva Para as mulheres dos CJ para as que conheceram e compreenderam a vida comunitária 10 o consolo só vem pelo serviço aos outros sem servilismo e pela luta por uma cidade aberta igualitária distributiva É preciso que haja algo de imparcial no mundo para que seja possível usufruílo os bens mundanos precisam parecer em alguma medida nossos abertos a todos para que possam parecer meus Esta possibilidade é criada pela situação intersubjetiva toda vez que for atravessada pela participação comum e pela distribuição de rendas Esta possibilidade é o que fica também reprimida pela situação intersubjetiva toda vez que se assenta no privatismo capitalista O sabor de um bem parcial é dependente de seu caráter imparcial do mesmo modo que a propriedade privada para que não se torne um apego obsediante e paranóide é dependente de sua acessibilidade democrática e socialista São muitos os lados por onde o pobre é golpeado Não sei de nada mais alarmante do que o sentimento de não possuir direitos Informa o sentimento de despencar Natil comenta o sofrimento Vêm aqueles pensamento de que não é pra mim de que não posso estar ali penso que tenho o direito mas o pensamento não ajuda Você vai ficando pequena Não sei o que é uma sensação estranha Saindo do dentista terça de manhã eu acho ou talvez quinta de manhã e subindo no ônibus reação estranha Como eu a escrava posso entrar neste ônibus usálo graças a meus 12 centavos como qualquer um Que favor extraordinário Se me obrigassem brutalmente a descer dele dizendo que meios de locomoção tão cômodos não são para mim que eu só devo andar a pé acho que me pareceria natural A escravidão me fez perder totalmente o sentimento de ter direitos Parece um favor ter momentos em que não preciso aguentar a brutalidade humana Weil 1979 p87 Cadê a Rose Você não entendeu Foi ao banheiro Não Não Que aconteceu Teria se ofendido com meu atraso Revoltouse com o lugar desfavorável Rosto desconsolado O que foi que eu fiz desta vez Você não quis sentar ao lado dela Você não quis sentar ao lado dela Revelei o motivo Nossa foi isso pausa Depois você conversa com ela Isso passa Léia vamos pra baixo Dali se vê melhor Tem lugares vagos Aqui está bom É tão bonito este teatro Estou me sentindo uma rainha Pois então vamos ao balcão dos nobres Uma rainha precisa sentarse bem Vem gente Vamos Podem vir não tem problema É hora do intervalo Os lugares não estão marcados Vocês não reparam que o pessoal do teatro quer muito que vocês aproveitem Vamos Puxa não foi que a prefeita fez que fez e conseguiu o teatro pra gente Teatro Municipal Rose Fui irônico E o que tem Ué Teatro Municipal Rose naquela ocasião era estudante numa faculdade de Letras O problema não era semântico E daí Soletei fazendo chacota Rose Teatro Municipal Ah Compreendeu rindo de sua distração E não é que é mesmo As lições de Freud não podem ser esquecidas também fora dos divãs em plena praça pública a transferência atualizando o impacto do passado não é encenação mentirosa e estéril pede palavra uma abertura por onde aí sim é que mais nos aproximamos da alma do outro Não se deve apenas lamentar os vínculos negativos e alertar o humilhado para o fato de que o mal que praticamos foi involuntário quando o foi Muito menos sugerirlhe que seu sofrimento é apenas subjetivo foi você que se fez sofrer por meu intermédio Não é o caso de desdudilo sobre nossa vontade de rebaixálo alías quem numa sociedade de classes em que nossa inteligência confia em compromissos políticos e diz sim ao oprimido mas nosso procedimento nossos conhecimentos nossas roupas o sapato imaginese o que quiser tudo volta a lembrar como disco riscado que esta cidade não é para todos que a igualdade política ainda está por se consolidar Bosi E 1981 O humilhado tem sempre alguma razão talvez a razão mais profunda para considerar que o expulsamos de casa voluntária ou involuntariamente É preciso atinar com ele na razão profunda não é o humilhado que carece deste esclarecimento e as libertações dele decorrentes o ânimo que revigora nós todos somos carentes disso Nós todos senhores e escravos carecemos a igualdade e a liberdade Os que interrogam radicalmente a servidão humana concordam que se trata de um fenômeno essencialmente político na sua origem e em seus desdobramentos Só os homens elevam os homens à dignidade humana só os homens excluem os homens da dignidade humana Efeito da desigualdade política a humilhação social é um fato psicossocial que reconduz sempre o homem ao outro homem Seus determinantes mais variados sua generalizada cristalização nos fatos de reificação não deviam elidirnos sua indeterminação de base a desigualdade não pode nunca dispensar os homens para que se mantenha Não poderá igualmente dispensálos para que seja neutralizada e cancelada A desigualdade só vive de seus mecanismos e de sua inércia enquanto a visão do homem pelo homem mantiverse embotada O problema da desigualdade é problema humano dos mais enigmáticos e talvez o mais urgente entre eles aquele cuja solução precede a de todos os outros Reificação e aparição A reificação afeta o regime da aparência a aparência deixa de valer como meio de aparição pessoal e tornase coisa com a qual a pessoa é confundida e com que ela própria tende a confundirse O outro lá está aparece Quando entretanto a aparição assume objetivação desmedida tornase reificante cria antagonismo rompe a simpatia rompe a visão vira cegueira 11 Se há algo de poderoso nos fatos de reificação é que não apenas fazem funcionar como coisa quem é humano mas tendem a obscurecer a visão de que a coisa ali é na verdade um homem O poder da reificação entretanto não vai além do obscurecimento do olhar a visão do homem pelo homem esta experiência de que diante do outro não nos encontramos diante de matéria bruta ou de mero organismo mantém seu caráter irredutível Permanece latente Em condições propícias pode reavivarse A visão de um outro homem pelo homem é acontecimento originário ainda mais originário do que as forças que se impõem entre nós e os outros e tendem a cegarnos todos Se o outro tornase invisível não é porque a visão do outro seja acontecimento secundário formado a posteriori mas é porque a máquina social e a máquina inconsciente interpõemse entre nós e impedem a irrupção do que vem por si mesmo A vida comunitária a amizade interhumana menos a formação da visão dos homens pelos homens é o que vem liberála Desembaça para que possamos ver Necessitamos as aparências dos bens mundanos necessitamos a aparência do mundo e de seus seres a aparência dos homens necessitamos as aparências como um meio de aparição Necessitamos a aparição o surgimento da natureza o surgimento dos seres e de modo decisivo o surgimento dos outros homens Há aparências bloqueadas em que se amarrou violentamente o poder de sua aparição Aparências retidas num ponto em que só dificilmente cumprem sua aparição retidas num ponto em que como coisas dificilmente podem realizar sua aparição metafísica dificilmente podem transcender as formas abstratas em que foram politicamente congeladas A reificação age como um bloqueador de aparências interrompe nos objetos nos bichos nos homens o seu poder de aparição Um mundo de aparições é experiência compreendida não que os marxistas chamam o concreto viver concretamente é viver num mundo de aparições aparições das coisas dos outros e de nós mesmos Viver de maneira abstrata viver na reificação entre coisascoisas é viver num mundo de aparências bloqueadas um mundo de aparências sem aparição A aparição a concreção de um mundo e dos outros encontra condições materiais apenas numa comunidade de homens livres iguais e singulares Quando somos incluídos no trabalho comunitário escrevo como forasteiro que se associou aos CJ joanisenses a colaboração parece quebrar hábitos de classe e parece incluirnos numa rede de relacionamentos em que o mandonismo perde sua evidência e tranqüilidade Espantamonos com o modo inconsciente pelo qual até então vínhamos tão espontaneamente contando com a obediência e o silêncio dos pobres agora toda influência depende do assentimento dos outros assentimento nunca perfeito depende da conversa em que todos são ouvidos a coordenadora mas também a cozinheira as monitoras mas também a faxineira o psicólogo mas também o marceneiro Nas conversas interessa a multiplicação de pontos de vista e não o seu nivelamento o encontro e desencontro de pensamentos não sua igualação Os nomes de cada um são mais empregados do que o nome de seus cargos perante as crianças de que nos ocupamos somos todos companheiros a seu serviço cada qual a sua maneira Estamos a serviço uns dos outros não do cargo Não somos operários intercambiáveis tampouco empregados que se limitam ao raio de sua função agindo segundo as restrições do cargo A fixação de cargos confere uma espécie de segurança sabese até onde ir e cumprimos o prescrito entretanto tolhe iniciativas cumprimos apenas o prescrito e deixamos de cumprir o que ninguém mandou Fica embotada a livre discriminação da ação requerida Autoridade e obediência se formalizam quanto mais ordens e proibições quanto maior a separação de competências mais se encobre o que é essencial menos atinamos no que é dispensável e no que é indispensável Autoridade e obediência deixam de circular o governo do trabalho não é mais o governo de todos Nos CJ joanisenses a situação comunitária impele não segundo o cargo mas segundo o que é urgente fazer pelas crianças e a partir de nossas idéias e talentos variados Somos todos cidadãos não somos funcionários Como descrever a alegria de ver estendido a todos aos mais rebaixados e envergonhados o campo da iniciativa e da palavra Quem lamentaria libertarse da couraça dos chefes dos comandantes dos diretores Nada é comparável à alegria de finalmente testemunharmos a desinibição do pobre em dirigirse a nós como a um companheiro e de finalmente lhe correspondermos na mesma forma com a mesma desinibição também a ele nos dirigirmos como a um companheiro Alegria da igualdade Alegria da amizade diria La Boétie 1982 Alegria contra a qual nas sociedades de classe ativamos as mais variadas resistências as mais variadas racionalizações Os estudantes de Psicologia Social na USP foram solicitados a uma experiência de trabalho Deveriam assumir por um dia a tarefa de um trabalhador pobre Encontraram emprego como porteiros e lanterninhas de cinema garis plaqueiros são os homenssanduíche geralmente trabalhadores aposentados que carregam placas de anúncio no centro de São Paulo empacotadores de supermercado operários numa fábrica de bandeiras gandulas de tênis parceiros de motoristas nas viaturas do IML camareiros jardineiros seguranças em Show de Rock garçons ajudantes de cozinha vendedores de rua Menciono observações de alguns deles aparentemente contraditórias Um estudante Fernando Braga da Costa foi gari na Cidade Universitária disse haver se sentido invisível Explicou vestiu o uniforme laranja trabalhou de manhã no meio da tarde passou uniformizado pelo Instituto de Psicologia Entrou no prédio e reparou uma espécie de desaparecimento dos gestos e palavras que quando estudante são comuns entre ele e quem cruza Surpreendeuse especialmente nas vezes em que passou despercebido por pessoas que estudam com ele não o viram passaram ao largo sem cumprimentos Era um uniforme que perambulava estava invisível Márcia Ferreira Amêndola foi empacotadora em supermercado disse haver se sentido demais visível Não teve problemas com os compradores foram até cordiais Outras estudantes também empacotadoras é que mencionaram as senhoras que apressavam os embrulhos irritandose facilmente enchendoas de exigências e reclamações sobre os pacotes Nestas horas sentiamse entregues ao mando e desmando Desejavam sumir possuir alguma coisa que não fosse acessível ao comando dos outros Márcia deuse mal foi com os próprios colegas de ofício um fiscal solicitou com safanão os seus serviços no caixa vizinho a mocinha deste caixa levantoulhe o mau humor quando ordenou com indiferença e de modo bem desagradável que buscasse um copo dágua Não havia contradição nas observações o que reduz o trabalhador à visibilidade bruta do papel servil afastando a visibilidade recôndita de sua humanidade é também o que faz passar despercebido o gari apagando o homem na tarefa desumanizada Apagando o corpo humano corpo sensível e ao mesmo tempo não sensível graça do corpo nu que invisível se vê disse uma vez Fernando Pessoa corpo que se vê sem que se possa fixálo como na visão de uma coisa A pessoa excessivamente visível não pode aparecer naquilo que dela faz apenas uma aparência Desaparição do homem na tarefa serviçal em que só aparece o uniforme Desigualdade e angústia A realidade da sociedade de classes atravessada pela desigualdade política participa de um círculo de mensagens enigmáticas e traumáticas As crianças pobres freqüentemente se chocam por exemplo quando sua mãe é obrigada a entrar pelos fundos no prédio em que vai fazer faxina ou quando seu pai mostrase inferior e calado diante da brutalidade de um superior Quem poderia facilmente explicar às crianças o que se passa A divisão política é um fato dos mais sobredeterminados empenhou a economia e a cultura a tecnologia e as ciências o trabalho e as artes a arquitetura e a demografia a religião e a filosofia sedimentouse nas máquinas e nos livros nas casas e na praça pública nas oficinas e na cidade na escola e nos hospitais nos escritórios e nos presídios nos restaurantes e nos teatros assumiu o psiquismo e os mecanismos a mentalidade e as instituições o trabalho e os sonhos a espontaneidade e os hábitos as coisas e os símbolos as imagens e as palavras Tão antiga sua origem e determinação perderamse de vista encontramse bem fora e bem antes da cena atual onde são cegamente retomados onde se renovam e se deformam onde tão tranqüilamente representamos os papéis de tiranos tiranetes e tiranizados como se tratando de um roteiro universal A humilhação é uma modalidade de angústia que se dispara a partir do enigma da desigualdade de classes Angústia que os pobres conhecem bem e que entre eles inscrevese no núcleo de sua submissão Os pobres sofrem freqüentemente o impacto dos maus tratos Psicologicamente sofrem continuamente o impacto de uma mensagem estranha misteriosa vocês são inferiores E o que é profundamente grave a mensagem passa a ser esperada mesmo nas circunstâncias em que para nós outros observadores externos não pareceria razoável esperála Para os pobres a humilhação ou é uma realidade em ato ou é freqüentemente sentida como uma realidade iminente sempre a espreitarlhes onde quer que esteja com quem quer que estejam O sentimento de não possuírem direitos de parecerem desprezíveis e repugnantes tornaselhes compulsivo movemse e falam quando falam como seres que ninguém vê Santa Rita e São Bernardo Psicologia USP Certa vez no CJ Santa Rita as mulheres encontravamse em grande malestar Cismavam que Rose a coordenadora vinha dando uma de patroa Nada de alguém protestar a não ser pela cara amuada má vontade o trabalho se desarrumando Rose angustiada convoca reuniões para saber o que se passa As seis monitoras são convocadas as duas cozinheiras a faxineira o marceneiro e também o psicólogo Decidimos propor a todos que lembrassem seus últimos dias no CJ cada um buscando os momentos marcantes leves ou pesados E que não houvesse discussão enquanto nos ouvísemos só depois A primeira reunião foi tensa Ninguém dizia nada Mas havia o gosto de poder falar cada qual em seu ritmo Alguém finalmente ousou começar e assim foi indo Uns emperravam e eram provocados ou embalados pelos outros Ah Eu falei você tem que falar também Conta do seu jeito mesmo Não tem pressa nóis pode precisar quantas reunião precisar precisamos se ouvi É só lembrar não precisa dizer pensamento bonito O jogo foi se abrindo Apareceu o problema Depois de três reuniões veio a discussão O grupo inquieto não conseguia atinar diferenças entre ser patroa e ser coordenadora Uns opinavam que talvez não houvesse diferença e que a gente tinha era de se conformar Outros protestavam se é assim melhor não ter patroa nem coordenadora Todos entretanto sabiam que as coordenadoras em cada grupo eram pessoas ligadas à fundação comunitária ou à história de formação dos CJ Ninguém queria dispensálas Que fazer Foi então que Marinete uma das cozinheiras enchendose de coragem tomou a palavra e prosseguiu lembrando Quando eu trabalhava de diarista em casa de família teve um dia Ai Era uma mocinha sabe Patroa moça Chegou e me disse Marinete quero que você me passe ácido no quintal que é pra tirar o cimento que pingou na cerâmica Foi o dia inteiro esfregando No fim do dia quando a moça voltou me pegou ainda na cozinha aquilo tinha atrasado todo serviço E não é que veio com desaforo Eu não te falei pra limpar o quintal Acabei de passar por ali e está ainda cheio de mancha Pensa que eu te pago pra matar o dia na cozinha Marinete sem perceber ergueuse no meio do grupo e dramatizava o caso o rosto estava tomado siderado pela lembrança Ah quando ouvi aquilo não tive dúvida Peguei o balde dágua Vassoura Peguei o ácido Não houve um nesta hora que não recusasse na cadeira todos assustados temendo que Marinete tivesse feito alguma bobagem apavorado imaginei o ácido escorrendo na cara da patroa Virei pra dona e falei A senhora pega isso e vai me fazer o favor de limpar por mim duvido que renda numa semana o que eu rendi num dia E vé logo minhas conta que já não aguento mais Marinete voltando do transe pôsse a chorar chorou muito Patroa é assim Nunca estima a gente Às vezes estima mas não estima o duro que a gente dá Psicologia USP Estimar de que jeito Nunca experimentou E vai mandando na gente não quer nem saber A discussão se montou Marinete ainda teve ânimo para mais Voltandose para Rose disse muito suavemente É isso Rose as coisa anda assim Cê chega na cozinha vai mandando o cardápio não quer saber se dá não quer saber o que tem se vai precisar de ajuda Na penúltima reunião arrisquei lição de meus professores marxistas uma coisa é o trabalho em que alguém manda nos outros outra um trabalho em que ninguém manda em ninguém e todo mundo de sua parte manda no trabalho Mal sabiam elas que a lição estava aprendendo ali mesmo A idéia serviu Na última reunião definiram o papel da coordenadora é quem faz o grupo mandar no trabalho não manda em ninguém e trabalha também Na situação comunitária os obstáculos surgem a qualquer momento Quem vive a situação comunitária testemunha também o seu impedimento em si mesmo ou nos outros Mas este fato ao invés de fazer aplicar à situação comunitária as medidas do imaginário do insólito confirma sua realidade devemos considerar como interior à vivência de igualdade aquilo que dela nos afasta A situação comunitária também se faz disso daquilo que a contradiz Justamente assim a vivência profunda da igualdade sem evitálo permite não cristalizar aquilo que a desfaz E pode desfazer A vontade férrea de evitar o risco vem sempre reeditar a violência que se pretendia superar por meio da vida comunitária É quando a vida comunitária ao invés de moverse endurece adquire um caráter voluntarioso e artificial O risco do que divide os homens está aí para ser atravessado mais do que evitado Não apenas atravessado mas enfrentado Não apenas enfrentado mas assimilado Há que assimilálo a igualdade não possui garantias fora de seu exercício continuado Um exercício em que todos temos a nossa hora e a nossa vez Uns dias depois reencontrei todas elas na cozinha O almoço estava atrasado Em torno da Marinete trabalhavam em mutirão Rose no meio delas Estavam felizes Também me deram trabalho descasquei batatas enquanto vinham as broncas da Penha Mas não sabe mesmo hein Agora sei O almoço ficou pronto a tempo A vida do homem transcendendo a mera condição de quem está vivo deita raízes em condições coletivas bem determinadas O homem não simplesmente está vivo mas existe E existência em sua mais rica acepção psicossocial supõe participação no mundo A participação vem com o que Simone Weil chamou enraizamento O enraizamento é talvez a necessidade mais importante e mais desconhecida da alma humana E uma das mais difíceis de definir Um ser humano possui uma raiz por sua participação real ativa e natural na existência de uma coletividade que conserva vivos certos tesouros do passado e certos pressentimentos do futuro Weil 1979 p347 O homem tem uma raiz por meio de sua participação em grupos que conservam heranças e que ao mesmo tempo conservam abertura para o futuro Grupos que conservam heranças conservam determinados bens que vinculam o homem a homens que o precederam vinculam o presente ao passado e conservam informações de outro tempo a memória continuamente 04082023 1440 SciELO Brasil Humilhação social um problema político em psicologia Humilhação social um problema político em psic httpswwwscielobrjpuspas63y4NmBfsHYpwm3gtw4wFDlangptformathtml 2837 retomada pelas narrativas de acontecimentos pregressos e que se transmite oralmente dos mais velhos aos mais jovens Grupos que ao mesmo tempo conservam abertura para o futuro conservam abertura para iniciativas abertura para a recriação do que é dado e transmitido Eis os grupos que apoiam o enraizamento do homem na humanidade São grupos como adverte Simone Weil em que a participação dos homens não se desenvolva em formas insólitas aéreas tampouco em formas rigidamente fixadas mas grupos de participação ao mesmo tempo informada consistente e espontânea Com Arendt 1993 enfatizaríamos que as condições para a vida humana são decisivamente condições que garantem a comunicação do homem com os outros homens e com o mundo são condições que garantem a palavra e o seu mais livre exercício Palavra pela qual os homens retomam e ressignificam pessoalmente o sentido de suas ações e de seu mundo comum A palavra é ingrediente decisivo na realização da vida humana Em resumo entre os homens as condições para a participação são condições intersubjetivas especiais condições em que o encontro do homem com o homem não se forme por meios violentos condições em que não falte vínculo criativo com o passado a iniciativa para novas fundações e o livre exercício da palavra As circunstâncias de um desenraizamento podem quem sabe ser então esclarecidas pela maneira como foram prejudicadas a liberdade a igualdade e a pluralidade podem ser esclarecidas pela maneira como foram prejudicados o vínculo com o passado o campo das iniciativas e o campo da palavra Em 1932 Simone Weil trabalhou numa mina de Sardou interior da França Dez anos mais tarde quando escreve sobre o desenraizamento 1979 p357 ainda tem na memória a lembrança dessa mina e da horrenda britadora que agita com sacudidas ininterruptas durante oito horas o homem que está agarrado nela Esta máquina de ritmo binário e uniforme não regulável pelo mineiro deixa evidente que foi feita para rachar e esfarelar pedras e que não foi feita para acompanhar o ritmo circular e multiforme do corpo humano Bosi E 1982 p25 Para Simone Weil uma mudança na relação das classes sociais será inconsistente enquanto não for acompanhada pela invenção de novas máquinas Do ponto de vista operário uma máquina deveria poder ser manejada sem esgotar e sem mutilar a carne deveria ter múltiplos usos evitando a monotonia e o tédio deveria corresponder a um trabalho profissional qualificado e não a trabalhos bestiais e mecânicos O progresso industrial se representou maior liberdade dos homens em relação às forças da natureza representou também ele mesmo uma nova força de moer trabalhadores O progresso que conhecemos insiste Simone Weil 1979 foi obtido pela criação de uma amarga separação a separação entre a dimensão intelectual do trabalho e sua dimensão manual O que é pior esta separação foi obtida pela criação de duas categorias de homens os que mandam e os que obedecem Duas categorias que se estranham mutuamente e que não podem mais se reconhecer como iguais Houve degradação dos dois lados quem manda deixou de lado suas mãos quem obedece obedece por medo e em situação de humilhação deixando de lado seu espírito É pelas mãos que nos pomos em relação com a matéria do mundo Alfredo Bosi Quem lida com a terra ou com instrumentos mecânicos enfrenta o obstáculo da natureza e das coisas 1992 p325 Quem trabalha com as mãos e ao mesmo tempo reflete sobre a sua obra do primeiro gesto à última demão sabe que está lutando com forças em tensão desafiando resistências no trato com a matéria 1988 p86 As mãos misturam paciência e atividade Donde um realismo uma praticidade um vivo senso dos limites e das possibilidades da ação Considerese o caso do escultor e a pedra matéria que quer elevar à dignidade de obra O escultor conjugando espírito ao olho e à mão sabe que uma estátua não será mero resultado de operações voluntariosas contra a pedra Pode por Brasil Psicologia USP exemplo desejar obter uma ondulação mas ao aplicar o cinzel pode a pedra responderlhe com linha angulosa ou rachaduras Será preciso auscultar adotar incorporar as maneiras da pedra Se insistir na vontade de ondulação deverá quem sabe escolher outro cinzel ou deverá aplicálo sob outro ângulo e mais suavemente A pedra assim de certo modo fala empenhase no processo A atenção do escultor vai sendo temperada pela firme presença da coisa que não se presta imediatamente à manipulação A escultura será só alcançada ao preço de encontros e desencontros Mas o obrador também sabe que a obra não é resultado do pesado imperativo das coisas contra os homens A matéria limita o gesto criador mas ao limitálo não o suprime quantas direções não se insinua e distendem o diálogo com a pedra Do pressentimento de resultados vários o pressentimento assumido e perseguido pelo artista Ao final obra acabada repousam o homem provado pela pedra e a pedra habitada por mãos humanas será indiferente então dizer que a obra é o homem materializado ou a matéria humanizada Pois bem os homens que mandam deixando de lado as mãos agem como se não houvesse obstáculos a vencer Não hesitarão reduzir também outros homens a uma coisa inerte sem limites sem resistência sem presença Quem manda arrasta E arrasta porque é arrastado pela embriaguez de um poder ilimitado que imagina possuir Do outro lado o lado dos comandados o operário esmagado pela dura pressão das ordens e das máquinas A sujeição Nunca fazer nada por menos que seja que se constitua numa iniciativa Cada gesto é simplesmente a execução de uma ordem Pelo menos para operadores da máquina Numa máquina burguesa para uma série de peças cinco ou seis movimentos simples são indicados e basta apenas repetilos a toda velocidade Até quando Até que se receba ordem para fazer outra coisa A cada momento estamos na contingência de receber uma ordem A gente é uma coisa entregue à vontade de outro Como não é natural para um homem transformarse em coisa e como não há coação visível chicote correntes é preciso dobrarse a si próprio em direção a esta passividade Que vontade de poder largar a alma no cartão de entrada e só retomala à saída Mas não é possível A alma vai com a gente para a fábrica É preciso o tempo todo fazêla calarse Na saída muitas vezes não a temos mais porque estamos cansados em excesso Ou se a temos ainda que sofrimento quando chega a noite reparar no que fomos durante oito horas nesse dia e que no dia seguinte serão ainda oito horas e também no dia seguinte do dia seguinte Weil 1979 p104 O operário é marcado pela contínua necessidade de não desagradar Deve responder às palavras brutais sem sinais de mau humor até mesmo com deferência quando se trata do patrão um superior nunca está errado o medo das broncas Muitos sofrimentos são aceitos só para evitar uma bronca A menor delas é uma humilhação dura porque não se ousa responder E quantas coisas podem provocar uma bronca A máquina foi mal regulada pelo regulador uma ferramenta é de aço ruim impossível colocar bem as peças vem a bronca Vaise procurar o chefe pela seção para ter serviço o que se consegue é ser barrado Se o tivesse esperado na gaiola seria também uma bronca Queixarse de um trabalho pesado demais ou de um ritmo impossível de acompanhar vêm brutalmente lembrarlhe que está ocupando um lugar que centenas de desempregados aceitariam de boa vontade Correse o risco de ser posto para fora É preciso serrar os dentes Agüentarse Como um nadador na água Só que com a perspectiva de nadar sempre até a morte E nenhuma barca que nos possa recolher Se a gente se afunda lentamente se soçobra ninguém no mundo dará por isso O que é que a gente é Uma unidade na força de trabalho A gente não conta Mal existe Weil 1979 p1034 30 Depois de ter vivido sempre dobrado agüentando tudo em silêncio durante meses e anos ousar finalmente levantarse Ficar de pé Chegou a vez de falar de sentirse homem durante alguns dias Independentemente das reivindicações esta greve é em si mesma uma alegria Sim uma alegria Weil 1979 p106 Nenhuma intimidade liga os operários aos lugares e aos objetos entre os quais a sua vida se esgota e a fábrica faz deles e em sua própria terra estrangeiros ou exilados desenraizados É preciso que a vida social esteja corrompida até a medula para que os operários se sintam em suas casas quando fazem greve e estranhos quando trabalham O certo seria o contrário Os operários só se sentirão realmente em suas casas em seu país membros responsáveis pelo país quando se sentirem em casa na fábrica enquanto trabalham Weil 1979 p138 31 Venho da USP Sou professor de psicologia social Estamos organizando um curso que pode interessar a grupos e pessoas que trabalham com movimentos de bairro com movimentos sindicais e com educação popular Desejaria alguns endereços para enviar convites Por favor sabe me dizer onde fica o Sindicato de Metalúrgicos de São Berna Ah sim O Sindicato Olha moço o senhor faça o seguinte aquela instituição era verdadeiro patrimônio na cidade Por favor a senhora saberia me dizer se há alguém aí da diretoria no Sindicato Quer falar com quem meu filho Disse a senhora em tom de avô e apoiandose sobre a vassoura como lavrador sossegado sobre a enxada Arrisco de novo Sabe pra dizer a verdade não é ninguém da diretoria que preciso encontrar É um operário que trabalha na Quem que é meu filho Agora avô levemente impaciente Arrisco mais ainda Ele trabalha na Comissão de Fábrica da Volkswagen e Melão É o Melão Sim senhora É o Melão Monteiro Ih rapaz acabou de sair Mas vem cá que se dá um jeito O gente vocês vão me desculpando mas tem um companheiro aqui coitado veio lá de São Paulo só pra falar com o Melão Quem pode dar um jeito nisso A gente já nem imagina o bichinho assustado que era ela quando veio trabalhar com a gente BOSI A Cultura brasileira e culturas brasileiras In Dialética da colonização São Paulo Companhia das Letras 1992 BOSI A Fenomenologia do olhar In NOVAES A org O olhar São Paulo Companhia das Letras 1988 BOSI E Cultura e desenraizamento In BOSI A org Cultura brasileira temas e situações São Paulo Ática 1987 p1641 BOSI E Memória e sociedade lembranças de velhos São Paulo Companhia das Letras 1994 BOSI E Simone Weil a razão dos vencidos São Paulo Brasiliense 1982 BOSI E Sobre a cultura das classes pobres In Cultura de massa e cultura popular leituras de operárias Petrópolis Vozes 1981 p1323 BRAVERMAN H Trabalho e capital monopolista Rio de Janeiro Guanabara 1987 FREIRE G Casagrande e senzala Rio de Janeiro José Olympio 1975 GOLDMANN L A reificação In Dialética e cultura São Paulo Paz e Terra 1979 LA BOÉTIE E Discurso da servidão voluntária São Paulo Brasiliense 1982 LAPLANCHE J A angústia São Paulo Martins Fontes 1987 LAPLANCHE J La révolution copernicienne inachevée Paris Aubier 1992 LEFORT C O nome de um In LA BOÉTIE E Discurso da servidão voluntária São Paulo Brasiliense 1982 MOURA C História do negro brasileiro São Paulo Ática 1989 QUEIROZ SRR Escravidão negra no Brasil São Paulo Ática 1987 WEIL S A condição operária e outros estudos sobre a opressão Rio de Janeiro Paz e Terra 1979 WEIL S A gravidade e a graça São Paulo Martins Fontes 1993 Vila Joanisa pequeno bairro afastado para a periferia sul de São Paulo avizinhando Diadema Os Centros de Juventude foram fundados na região pela iniciativa dos Clubes de Mães Lígia Assumpção Amaral Maria Angélica Albano Moreira Maria Auxiliadora Teixeira Ribeiro Ruth Rosenthal Sérgio Kodato José Moura Gonçalves Filho O frentista Trabalho de campo para o Curso Indivíduo grupo e sociedade ministrado pela Professsora Arakcy Martins Rodrigues 1990 1º semestre Estávamos em 1990 Gerônimo referiase ao Governo Collor O ano passado é o de 1992 A entrevista com Natil realizouse no ano seguinte 1993 Todas as três moradoras na Vila Joanisa são lá coordenadoras de Centros de Juventude CJ Natil foi por três meses balconista nas Lojas Americanas do Shopping Ibirapuera A este respeito considerese o que será dito nos tópicos Reificação e aparição e Santa Rita e São Bernardo Notação do que ouvi de Ecléa Bosi durante orientação de minha dissertação de mestrado Passagem para a Vila Joanisa uma introdução ao problema da humilhação social Instituto de Psicologia USP 1995 ARENDT H A condição humana Rio de Janeiro Forense Universitária 1993 BOSI A Cultura brasileira e culturas brasileiras In Dialética da colonização São Paulo Companhia das Letras 1992 BOSI A Fenomenologia do olhar In NOVAES A org O olhar São Paulo Companhia das Letras 1988 BOSI E Cultura e desenraizamento In BOSI A org Cultura brasileira temas e situações São Paulo Ática 1987 p1641 BOSI E Memória e sociedade lembranças de velhos São Paulo Companhia das Letras 1994 BOSI E Simone Weil a razão dos vencidos São Paulo Brasiliense 1982 BOSI E Sobre a cultura das classes pobres In Cultura de massa e cultura popular leituras de operárias Petrópolis Vozes 1981 p1323 BRAVERMAN H Trabalho e capital monopolista Rio de Janeiro Guanabara 1987 FREIRE G Casagrande e senzala Rio de Janeiro José Olympio 1975 GOLDMANN L A reificação In Dialética e cultura São Paulo Paz e Terra 1979 LA BOÉTIE E Discurso da servidão voluntária São Paulo Brasiliense 1982 LAPLANCHE J A angústia São Paulo Martins Fontes 1987 LAPLANCHE J La révolution copernicienne inachevée Paris Aubier 1992 LEFORT C O nome de um In LA BOÉTIE E Discurso da servidão voluntária São Paulo Brasiliense 1982 MOURA C História do negro brasileiro São Paulo Ática 1989 QUEIROZ SRR Escravidão negra no Brasil São Paulo Ática 1987 WEIL S A gravidade e a graça São Paulo Martins Fontes 1993 Esta definição possível para o fenômeno da humilhação social apoiase ao mesmo tempo nos nomes de Jean Laplanche e Claude Lefort O primeiro é conhecido pela rigorosa indicação da participação enigmática dos outros homens na arqueologia do inconsciente de cada homem Laplanche 1992 A idéia da desigualdade de classes como a de um enigma por sua vez prendese à leitura lefartiana do Discurso da Servidão Voluntária Lefort 1982 p12571 Carlos Drummond de Andrade em entrevista a O Estado de São Paulo 19 de outubro de 1996 Recentemente ouvi Natil meditando sobre o último Natal com as crianças do São João Eu mudei Sonhar é importante Descobri foi isso Então nóis vestiu a Jesuíta de Papai Noel e ela foi na casa dos menino As criança ficava maravilhada Até os grande os pais A gente nunca fazia isso pra nóis Papai Noel era uma coisa comercial lojista fantasiado Não era assim não antigamente Papai Noel vinha só ele não ficava dando coisa Mudou tudo Nóis não veio a Jesuíta com uma máscara branca que a gente ponhou nela fazia um agrado um abraço uma palavra dizia rôrôrô e as crianças se esbaldava No rôrôrô foi que viram que a voz era de mulher e cisparam que era ela Mas ninguém disse nada Tem uns que até hoje tá com a pulga atrás dorelha Datas de Publicação Publicação nesta coleção 29 Set 1999 Data do Fascículo 1998 Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo Av Prof Mello Moraes 1721 Bloco A sala 202 Cidade Universitária Armando de Salles Oliveira 05508900 São Paulo SP Brazil São Paulo SP Brazil Email revpsicouspbr 04082023 1440 SciELO Brasil Humilhação social um problema político em psicologia Humilhação social um problema político em psic httpswwwscielobrjpuspas63y4NmBfsHYpwm3gtw4wFDlangptformathtml 3737 Leia a Declaração de Acesso Aberto SciELO Scientific Electronic Library Online Rua Dr Diogo de Faria 1087 9º andar Vila Clementino 04037003 São PauloSP Brasil Email scieloscieloorg Brasil Psicologia USP ConScientiae Saúde ISSN 16771028 conscientiaesaudeuninovebr Universidade Nove de Julho Brasil Kunis Márcia Cruz Sheila Amorim Checchia Marcelo Humilhação social análise de uma experiência da desigualdade social ConScientiae Saúde vol 6 núm 2 2007 pp 313322 Universidade Nove de Julho São Paulo Brasil Disponível em httpwwwredalycorgarticulooaid92960214 Como citar este artigo Número completo Mais artigos Home da revista no Redalyc Sistema de Informação Científica Rede de Revistas Científicas da América Latina Caribe Espanha e Portugal Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto Editorial Ponto de vista Artigos Instruções para os autores ConScientiae Saúde São Paulo v 6 n 2 p 313322 2007 313 Neste texto buscase ressaltar e analisar a experiência in dividual da desigualdade social com suas implicações psi cológicas considerando o ponto de vista de quem é opri mido por essa desigualdade por meio do relato de pessoas que viveram e vivem essa experiência cotidianamente Tendo como base o referencial teórico da Psicologia Social utilizouse o conceito de reificação por permitir analisar um dos fatores predominantes na origem da desigualdade entre os homens Objetivase colocar em discussão conteú dos crenças e valores do sistema que determinam formas de relacionamento facilitando a reflexão e conscientização na busca pelo retorno ao humano O estudo foi desenvol vido com participantes que exercem funções operárias na região central da cidade de São Paulo Para coleta de dados foram realizadas entrevistas semidirigidas elaboradas com o método da pesquisa qualitativa Concluise que se trata de uma experiência de humilhação social geradora de angústia decorrente de uma sociedade visivelmente marcada pelas relações capitalistas que freqüentemente tendem a anular a essência do homem Palavraschave Desigualdade social Humilhação social Opressão Psicologia social Humilhação social análise de uma experiência da desigualdade social Márcia Kunis Graduanda do curso de Psicologia Uninove São Paulo SP Brasil mkunisglobocom Sheila Cruz Graduanda do curso de Psicologia Uninove São Paulo SP Brasil shepsiqueyahoocombr sheilacruz70hotmailcom Marcelo Amorim Checchia Professor Uninove São Paulo SP Brasil machuninovebr checchiagmailcom ConScientiae Saúde São Paulo v 6 n 2 p 313322 2007 314 1 Introdução José1 35 anos pedreiro foi solicitado para um serviço num bairro de classe alta na cida de de São Paulo No dia seguinte à solicitação estava presente no local por volta das oito da manhã para fazer levantamento do que utiliza ria no serviço Moreno de pele não muito alto trajando calça jeans e camiseta quando não o uniforme da labuta era um homem de lin guajar comum No segundo dia de trabalho José chegou novamente por volta das oito da manhã tro cou de roupa e reiniciou suas atividades Duas funcionárias do local em que José prestava ser viço tinham o costume de lá almoçar Por ser ele mais uma pessoa presente no ambiente no horário do almoço permaneceu no recinto em companhia das duas mulheres Kelly uma das funcionárias pediu a Ana outra funcionária que chamasse José para fazer a refeição com elas Ana espantouse com o pedido e demons trandose ofendida disse Não me invente histórias Eu não vou di vidir a minha comida com este pedreiro Ele não é meu funcionário Quem o con tratou que lhe dê de comer O espanto de Kelly diante da situação inesperada foi maior ainda Como pode ela que ocupa o mesmo cargo que o meu pensar dessa maneira e ainda verbalizar com tanta ên fase o seu espanto Pensou Kelly chamou José para que viesse almo çar mas ele recusou alegando que precisaria terminar o serviço cedo e ir embora No dia seguinte estavam diante da mes ma situação José precisaria terminar o serviço naquele dia e como no dia anterior chegou por volta das oito da manhã e iniciou seu trabalho Repetindo o que havia vivenciado na situação anterior Kelly recusou a dispensa de José e in sistiu para que comesse com elas Ana enfurecida com a decisão pediu que ele viesse almoçar somente depois de ela sair da mesa Para evitar outra situação desagradável o pedido foi seguido Assim que Ana deixou a mesa Kelly cha mou José para sentarse a seu lado Ele porém recusouse a fazêlo alegando que estava sujo e não poderia sentarse em uma cadeira tão lim pinha Embora tivesse terminado seu serviço e já estivesse trocado sem sua roupa de trabalho o pedreiro parecia amedrontado pois olhava para a porta a todo instante Kelly permaneceu no local como se quisesse deixálo um pouco mais à vontade para almoçar Enquanto Kelly conversava com José ele tratava de comer rápido demonstrando receio de segurar o garfo e a faca Depois de comer pegou o copo que estava na mesa e ignorando o suco levantouse em direção à pia para beber a água da torneira Aquela situação foi comovente José olhou agradecido para Kelly e falou Senhora que Deus te abençoe para continuar com sua bon dade Este é o relato de uma situação que julga mos muito apropriada para introduzir o tema em questão pois descreve de forma evidente a humilhação social que sofre o trabalhador devi do à forma de tratamento preconceituosa neste caso por parte de uma funcionária ela também mais uma pessoa entre tantas outras trabalha doras proletárias inseridas nessa classe É evidente que às vezes um simples olhar como o de Ana que se considerava em situa ção melhor do que a de José que teria cau sado certo desconforto ao pedreiro pode ser su ficiente para apagar um pouco do brilho de uma pessoa simples Um ato ou em outras situações uma verbalização pode fazer uma pessoa sen tirse inferior ou indigna de sentarse à mesa limpa e segurar um talher Portanto toda essa situação bastante co mum e vivenciada por muitas pessoas nos re mete à reflexão do valor do ser humano que deixa de existir quando veste um uniforme ou exerce honestamente algum trabalho O relato nos chama a atenção para duas questões principais como é a experiência da Editorial Ponto de vista Artigos Instruções para os autores ConScientiae Saúde São Paulo v 6 n 2 p 313322 2007 315 desigualdade social de quem é oprimido Quais as suas conseqüências Questões como essas costumam ser tratadas pela Psicologia Social Para dar conta de seu objetivo isto é o de estudar a experiência de um homem entre outros seres humanos a Psicologia Social deve se apoiar em duas teorias social e psicológi ca uma vez que essa experiência é resultado da relação com outras pessoas mas que é vivida interiormente pelos indivíduos Em outras pa lavras a experiência da desigualdade social é decorrente das condições sociais estabelecidas pelos próprios sujeitos mas vivenciada interna mente de forma única pelo indivíduo Pretendese portanto buscar em ambas as teorias os fenômenos que levam o homem a pertencer a uma sociedade Fazer parte de uma sociedade mais do que estar presen te significa ter o direito de falar e principal mente de ser ouvido ou seja o direito de ser percebido Mas será que os oprimidos pela desigual dade social têm esse sentimento de pertenci mento Como vivem essa desigualdade O que falam dessa experiência Quais são seus efeitos psicológicos Este estudo tem como objetivo tratar de tais questões procurando com base nas experi ências reais de vida dos depoentes conhecer os possíveis padrões de repetição dessa desigual dade social que está tão claramente embutida na sociedade em geral 2 Método A melhor maneira de apreender o signi ficado que uma pessoa dá às suas experiências é aproximarse dela vivenciálas em conjunto e escutar o que diz Tal método exige grande dedicação por parte do pesquisador pois deve doar boa parte de seu tempo senão o tempo in tegral ao pesquisado Devido às dificuldades de realização im postas por esse método optouse aqui pela rea lização de uma entrevista semidirigida com o depoente utilizando o método da pesquisa qualitativa Seguiramse os procedimentos nor mativos e éticos visando não expor os entre vistados a situações constrangedoras caso não concordassem em relatar suas histórias respei tandose o sigilo durante a coleta dos dados preservando seus nomes e dessa forma suas identidades Esta pesquisa foi realizada na região cen tral da cidade de São Paulo com operários durante três meses Para selecionar os partici pantes utilizouse como critério sua classe so cioeconômica e a vivência de situações de desi gualdade As questões utilizadas na pesquisa nas cem da relação de convivência entre pesquisa dor e depoente numa situação em que ambos estejam livres para relatar Uma relação entre companheiros de ambas as partes Uma relação que traz alegria A memória do depoente é o instrumen to de maior importância na aplicação do ques tionário tanto que sua narrativa estará direta mente relacionada a uma experiência vivida e não a algo suposto ou fantasiado A descrição do que foi vivenciado exige respostas da relação com o determinado e o indeterminado Neste trabalho optouse pela realização de entrevista semidirigida Foi levantado um roteiro de questões de modo que o depoente relatasse experiências relacionadas com o tema de pesquisa 3 A entrevista A entrevista foi realizada na cidade de São Paulo em uma tarde de sábado em frente a entrada do local de trabalho do entrevistado ao término de seu expediente Uma das entrevista doras por ser funcionária da empresa em que o entrevistado trabalhava já o conhecia o que facilitou a conversa De maneira descontraída e sem dificuldades ele se mostrou muito entu siasmado com a possibilidade de falar e contar experiências de si mesmo ConScientiae Saúde São Paulo v 6 n 2 p 313322 2007 316 Jorge tem 39 anos é pernambucano ca sado tem duas filhas é eletricista e trabalha desde os 18 anos Aos oito anos veio com seus pais e irmão para São Paulo e foi morar em Guarulhos SP Lá ele e o irmão conseguiram estudar até o colegial No entanto Jorge que já trabalhava como ajudante geral em linha de montagem numa metalúrgica e gostava muito de trabalhos ligados à eletrônica resolveu fa zer um curso técnico de eletricista na escola do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial Senai interrompendo o colegial O entrevistado declarou ser uma pessoa com vontade de mudar e melhorar apesar da falta de tempo e da rotina corrida Dividindo seu tempo entre o trabalho diário e o curso no turno ainda assim conseguia destacarse no tra balho por sua rapidez e facilidade em aprender recebendo promoções e ascendendo a cargos na linha de montagem Foi promovido de ajudan te de montador a montador e posteriormente a montador classe A esta na sua opinião uma promoçãozinha besta Depois de algum tempo nessa metalúrgi ca seguiu para outra uma empresa bem con ceituada em suas palavras na qual ele aprecia va muito trabalhar Aí como resultado de seu desempenho chegou a receber uma homena gem de mérito e reconhecimento Consideravase bem tratado na empresa o chefe sempre lhe dava um tapinha nas costas que para ele indicava que havia algum interes se maior da chefia em sua atividade Jorge relatou que o chefe dava todo incen tivo ao trabalhador mas em caso de doença era descartado como uma coisa qualquer como se fosse um objeto com defeito Tinha consciên cia de ser também descartável como as outras pessoas Passaramse os anos Jorge arriscou traba lhar por conta própria com um amigo mas em razão da falta de dinheiro para investir a expe riência não deu certo por isso resolveu empre garse em outro lugar Perguntamos sobre situações desagradá veis por que havia passado ou se em algum dos ambientes de trabalho que freqüentou fora discriminado por usar uniforme ou por algum outro tipo de preconceito Contou que certa vez estava com sua maleta de ferramentas no elevador de um prédio quando uma pessoa ao vêlo decidiu não entrar para ele era gente de escritório Tomou essa postura como falta de educação salientando que se todos fossem educados haveria igualdade afinal essa educa ção vem do berço Como essas situações ocor rem com certa freqüência procura evitálas Jorge pensa mais um pouco e diz É in consciente As pessoas olham de baixo para cima Olham primeiro o uniforme antes de ver a pessoa E diz mais Isso é próprio da educa ção A pessoa bem educada trata os outros com igualdade e não pela primeira vista Não é isto o uniforme que vai fazer diferença Ao perguntamos sobre seus sonhos e se gostaria de exercer outra atividade comenta que desejava ver suas filhas adultas estudando para que tivessem condições de ser vistas e pudessem prepararse para disputar o merca do de trabalho Relatou que aprecia muito o que faz e que se não fosse eletricista seria me cânico Manifestou também a opinião de que atualmente com a terceirização as condições de trabalho são ruins o salário diminuiu uma empresa passou a depender da outra o cara fica preso No momento em que finalizávamos essa conversa explicandolhe a importância de seu depoimento e nossa satisfação pela entrevista Jorge disse ter mais algumas situações para re latar Iniciou com o seguinte ao ser contratado para trabalhar na manutenção de um carguei ro em São Sebastião litoral norte do Estado de São Paulo encontrou seu encarregado e um engenheiro da obra que ao vêlo lhe disse ram Esse aí sem chance magrelo desse jeito não vai agüentar o serviço Jorge lembrouse de ter ficado quieto na hora e de haver con seguido realizar um bom trabalho apesar da mágoa que o comentário lhe causara Seu de sempenho agradou tanto que lá permaneceu dez anos Para finalizar contounos de sua ex Editorial Ponto de vista Artigos Instruções para os autores ConScientiae Saúde São Paulo v 6 n 2 p 313322 2007 317 periência em outra empresa destacando que apesar da boa produtividade seu trabalho não era reconhecido pois quem ganhava bonifica ção em dinheiro pela boa performance eram os superiores hierárquicos Atualmente executa um trabalho que considera mamão com açúcar faz manuten ção num edifício com carga horária reduzida e gosta muito de sua atividade 4 Análise da entrevista A entrevista com Jorge foi bastante rica Diversos aspectos merecem análise e reflexão à luz de conceitos utilizados em Psicologia Social a ideologia a reificação o desenraizamento e por fim a humilhação social 41 A ideologia Embora Jorge tenha conversado bastan te ressaltando suas opiniões percebemos que havia certa dificuldade de falar sobre desigual dade social Ao ser questionado a respeito das situações desagradáveis falou rapidamente em tom sério e demonstrando certa ansiedade sem a espontaneidade e a descontração demonstra das ao tratar de suas conquistas O psicólogo social José Moura Gonçalves Filho nos explica essa dificuldade apontando algumas conse qüências psicológicas da desigualdade social Os pobres sofrem freqüentemen te o impacto dos maus tratos Psicologicamente sofrem continua mente o impacto de uma mensagem estranha misteriosa vocês são infe riores E o que é profundamente gra ve a mensagem passa a ser esperada mesmo nas circunstâncias em que para nós outros observadores exter nos não pareceria razoável esperála Para os pobres a humilhação ou é uma realidade em ato ou é freqüentemente sentida como uma realidade iminente sempre a espreitarlhes onde quer que estejam com quem quer que estejam O sentimento de não possuírem direitos de parecerem desprezíveis e repugnan tes tornaselhes compulsivo movem se e falam quando falam como seres que ninguém vê GONÇALVES FILHO 1998 p 53 A partir dessas considerações tornase compreensível a reação de Jorge ao falar de ex periências que o remetem à desigualdade social Tratar desse assunto implica entrar em contato com o sofrimento decorrente dessa desigualda de É possível entender também o uso de alguns discursos ideológicos que têm dupla função a defesa contra o sofrimento e o ocultamento da responsabilidade dos homens pelas condições sociais estabelecidas que levam a esse sofri mento A ideologia é um discurso que distorce a realidade vivida e impede que a dominação seja percebida nesse processo A ideologia tem sua origem na divisão social do trabalho e iniciouse no momento em que houve dicotomia entre o trabalho braçal e o intelectual Essa divisão gerou a falsa idéia de que o trabalho intelectual seria independente e mais importante que o braçal O resultado é obviamente a desvalorização não só do traba lho braçal mas também e principalmente do trabalhador que o realiza Nasce agora a ideologia propriamen te dita isto é o sistema ordenado de idéias ou representações e das normas e regras como algo separado e inde pendente das condições materiais vis to que seus produtores os teóricos os ideológicos os intelectuais não estão diretamente vinculados à produção material das condições de existência E sem perceber exprimem essa des vinculação ou separação através de suas idéias Ou seja as idéias aparecem como produzidas somente pelo pensa ConScientiae Saúde São Paulo v 6 n 2 p 313322 2007 318 mento porque os seus pensadores es tão distanciados da produção material CHAUÍ 2006 p 62 No entanto essa realidade precisa ser velada para que se mantenha o domínio da classe dos intelectuais sobre a dos trabalha dores braçais Isso fica evidente por exemplo quando Jorge fala de suas conquistas Embora tenha havido reconhecimento de seu trabalho notase que este serve apenas de motivação e de instrumento de dominação para que ele continue exercendo sua função com dedicação Outrossim constatase esse mesmo estratage ma no fato de que nosso ator jamais tenha sido promovido para cargos de comando apesar de sua reconhecida capacidade de aprendizado desempenho envolvimento e responsabilidade com o trabalho Jorge é portanto vítima da ideologia que corrobora um sistema políticoeconômico que busca conquistar seus trabalhadores por meio do discurso da valorização para assegurar a lu cratividade dos empreendimentos e a manuten ção do status quo 42 A reificação No discurso de Jorge é possível observar o que denominamos reificação que Gonçalves Filho descreve bem a seguir A ubiqüidade do dinheiro As re lações sociais estão despersonalizadas refreando a solidariedade para o âmbi to privado da família Toda e qualquer aquisição material e simbólica foi transformada em moeda se você não tiver o dinheiro acabou o mundo A reificação afeta o regime da aparência a aparência deixa de valer como meio de projeção pessoal e tornase a coisa com a qual a pessoa é confundida e com que ela própria tende a se confundir Há aparências bloqueadas em que se amarrou violentamente o poder de sua aparição Aparências retidas num ponto em que só dificilmente cumprem sua aparição retidas num ponto em que como coisas dificilmente podem realizar sua aparição metafísica difi cilmente podem transcender as formas abstratas em que foram politicamente congeladas A reificação age como um bloqueador de aparências interrompe nos objetos nos bichos nos homens o seu poder de aparição GONÇALVES FILHO 1998 p 20 4849 A reificação é a coisificação do homem isto é a redução dos homens à qualidade de objeto sem características pessoais Em um mercado ca pitalista o homem é transformado em número o valor de troca necessário para fabricação de uma mercadoria Não interessa ao capitalismo o ca ráter ou as qualidades pessoais do trabalhador mas apenas sua capacidade de produzir Para os produtores as relações que ligam os trabalhos de um indivíduo com os trabalhos dos demais surgem não como relações sociais diretas en tre pessoas que trabalham mas como o que realmente são isto é como rela ções semelhantes a coisas entre pesso as e como relações sociais entre coisas Para os produtores sua própria ação social toma a forma de ação de coisas que governam os produtores em lugar de serem por elas governa das BOTTOMORE 2001 p 315 Jorge expressa essa característica da so ciedade ao falar da postura da empresa quan do um funcionário adoece demonstrando uma mistura de raiva e desânimo por saber que pode ser trocado a qualquer momento O tema da saúde é inclusive apontado por Gonçalves Filho como recorrente no depoimento dos tra balhadores pois Editorial Ponto de vista Artigos Instruções para os autores ConScientiae Saúde São Paulo v 6 n 2 p 313322 2007 319 A saúde é virtude corporal por ex celência E o corpo é apanágio do homem proletarizado aquele que foi espoliado oferece o que resta da sua força muscular como mercado ria para a venda em troca de salário A saúde do corpo desde então vem necessariamente polarizar sua segu rança psicossocial Um pai não pode adoecer quando sua doença implica ria facilmente num desastre familiar GONÇALVES FILHO 1998 p 26 Ainda segundo esse autor a reificação im pede a visão das qualidades humanas tornan do invisível a especificidade do ser A visão de um outro homem pelo ho mem é acontecimento originário ainda mais originário do que as forças que se impõem entre nós e os outros e tendem a cegarnos todos Se o outro tornase invisível não é porque a visão do ou tro seja acontecimento secundário for mado a posteriori mas é porque a má quina social e a máquina inconsciente interpõemse entre nós e impedem a irrupção do que vem por si mesmo GONÇALVES FILHO 1998 p 49 Estar invisível não é ficar apenas à mar gem do direito de falar e de ser ouvido No caso de Jorge por exemplo a invisibilidade está pre sente na hora que ele afirma desejar melhores condições de vida para suas filhas para que elas sejam vistas Ele é mais uma vítima de um sistema que ofusca e oculta a realidade que promete desta car e fazer crescer aquele que se esforça muito e consegue desempenhar satisfatoriamente suas funções Um sistema que necessita do traba lhador braçal mas que torna invisível o valor de seu trabalho por prestigiar apenas os que controlam o trabalho alheio donos do saber e do capital Como afirma Gonçalves Filho 1998 p 52 a pessoa excessivamente visível não pode aparecer naquilo que dela faz apenas uma aparência Desaparição do homem na tarefa serviçal em que só aparece o uniforme A reificação é portanto o processo histórico de longa du ração através dos qual as sociedades modernas fundaram seus alicerces sob o princípio das determinações mer cantis Os mecanismos tornaramse entre nós destacados e hegemônicos A reificação configurase como processo pelo qual nas sociedades industriais o valor do que quer que seja pessoas relações interhumanas objetos instituições vem apresentar se à consciência dos homens como valor sobretudo econômico valor de troca tudo passa a contar primaria mente como mercadoria Assim por exemplo o trabalho reificado aparece por suas qualidades trabalho concre to mas como trabalho abstrato traba lho para ser vendido A sociedade que vive à custa desse mecanismo produz perpetua e apresenta relações sociais como relações entre coisas O homem fica apagado é mantido à sombra COSTA 2004 p 63 43 O desenraizamento Quando Jorge diz achar normal o trata mento diferenciado demonstra não ter consci ência muito clara da desigualdade social que para ele está vinculada à educação moral e fa miliar Ao se referir à desigualdade na forma de tratamento entre ele e gente de escritório pensa ser apenas uma questão de educação fa miliar e de valores morais Esse discurso ideo lógico oculta também o sentimento de desen raizamento que é resultado da desigualdade social conceito bem explicado por Gonçalves Filho 1998 que afirma ser raiz a herança da participação que tem o homem em sua socieda ConScientiae Saúde São Paulo v 6 n 2 p 313322 2007 320 de conservando suas memórias e informações tendoas como referência que vincula o passado com o futuro Qual é a forma de participação que Jorge encontra nessa sociedade Talvez ele encontras se o sentimento de enraizamento pelo reconhe cimento do valor de seu trabalho mas isso só ocorre de maneira ideológica Quando o inte resse de uma sociedade é o lucro o trabalho deixa de ser feito para o bemestar dos próprios homens passando a focar o acúmulo de capital de alguns poucos O que resta é uma sensação de trabalho para os outros desvinculado das tradições de sua comunidade e cujo resultado não é usufruído por seus membros Isso leva ao desenraizamento à perda do sentimento de participação ativa na vida em comunidade Conforme Simone Weil 2001 a raiz é ca racterística humana fundamental que traz o pertencimento a esse ser necessidade impor tante e negligenciada da alma humana A auto ra declara que o dinheiro destrói as raízes seja onde for que penetre substituindo todos os es tímulos pelo desejo de ganhar Uma das conseqüências do predomínio dos interesses econômicos ao gerar o desen raizamento consiste em fazer o ser conduzir sua vida de modo automático como aquele que desconhece suas tradições e sua história e que está sujeito a viver com padrões de pensamento vinculados a idéias equivocadas cujas origens históricas não são conhecidas Tudo isso faz do homem um ser sem autonomia conduzindo sua vida de forma escrava e tornandose vulnerável a todos os meios de dominação 44 Humilhação social Tanto no relato de Jorge com a desvalo rização de seu trabalho quanto na situação enfrentada por José descrita ao início em que uma funcionária do local em que ele prestou serviço lhe negou um prato de comida descre vemse exemplos de humilhação social às ve zes motivada tãosomente pela aparência física do indivíduo discriminado Mas então o que é exatamente a humilha ção social Gonçalves Filho propõe Sem dúvida tratase de um fenômeno histórico A humilhação crônica lon gamente sofrida pelos pobres e seus ancestrais é efeito da desigualdade política indica a exclusão recorrente de uma classe inteira de homens para fora do âmbito intersubjetivo da ini ciativa e da palavra Mas é também de dentro que no humilhado a humilha ção vem atacar A humilhação social conhece em seu mecanismo deter minações econômicas e inconscien tes Devemos propôla como uma mo dalidade de angústia disparada pelo enigma da desigualdade de classes Como tal tratase de um fenômeno ao mesmo tempo psicológico e político O humilhado atravessa uma situação de impedimento para sua humanida de uma situação reconhecível nele mesmo em seu corpo e gestos em sua imaginação e em sua voz e tam bém reconhecível em seu mundo em seu trabalho e bairro GONÇALVES FILHO 1998 p 15 Traçando um paralelo entre os relatos ci tados neste trabalho confirmase a definição acima no momento em que José se recusou a sentarse à mesa alegando que estava sujo de pois de se ter trocado e quando Jorge disse que gente do escritório se negara a entrar no ele vador ao vêlo vestido com seu uniforme Em ambos os casos a humilhação vivenciada pela desigualdade de classes sociais é nítida e trans parece nas duas falas A humilhação social é produto da história da desigualdade de classes que segundo Marx resulta do capitalismo burocrático que separa homem e trabalho Outrora o trabalho era vis to como uma maneira encontrada pelo homem Editorial Ponto de vista Artigos Instruções para os autores ConScientiae Saúde São Paulo v 6 n 2 p 313322 2007 321 para sua sobrevivência e de sua família Os ho mens trabalhavam em conjunto para manter a integridade familiar Esse mesmo trabalho que a princípio ser via para subsistência tornouse por conta dos interesses capitais instrumento de dominação A minoria detentora do capital e do poder exer ce esse domínio por meio de leis de controle da maioria assegurando a manutenção desse sta tus quo Essa dominação não se dá sem acarretar conseqüências psicológicas Quando o homem sai de casa para trabalhar encontra um mundo diferente sofre humilhações e volta amargura do para o lar Inconscientemente afastase de sua família Tratase de um problema que de manda urgente resolução A humilhação social caminha com a de sigualdade social que parece ter o poder de controle como se cada ser nascesse predispos to a um cargo na sociedade como se o sujei to estivesse condenado a agir de acordo com o que a comunidade determina Essa é uma for ma de dominação inconsciente como afirma Gonçalves Filho A humilhação age destrutivamente pelos dois extremos do psiquismo Comparece pelo lado dos enigmas que nos vem ferir que infestam a sub jetividade e nela se inscrevem como fonte de processos inconscientes pro cessos primários pulsão angústia GONÇALVES FILHO 1998 p 44 5 Considerações finais Na sociedade capitalista a desigualdade social é conseqüência dos interesses econômi cos pois tudo gira em torno do dinheiro O valor monetário corrompe as relações huma nas anulando conceitos tais como amor ca ráter e respeito Tratase de uma sociedade em que o reconhecimento estético se sobrepõe ao da capacidade do ser Vitalidade e aparência jovial tornamse prioridades Aquele que tem o dever de sustentar uma família estando ou não no mercado de trabalho sofrerá com a ansiedade e a angústia do tempo dada a in segurança que o avançar da idade provoca por ser motivo de desemprego como relata o depoente Tenho medo já tenho trinta e nove anos e Outro fator presente na sociedade capi talista é a alienação do trabalho executamos tarefas e produzimos algo sem que possamos escolher os meios para tal tarefa No final do processo não seremos nós que obteremos o re sultado mas os donos desses meios Nesse pro cesso somos apenas partes de uma engrenagem desconhecendo dessa forma o funcionamento geral do que produzimos Tratase de um con texto em que não existimos como pessoa pois o que conta é aquilo que possuímos A ideologia disseminada pela classe do minante acaba desempenhando bem seu papel de ocultar toda essa realidade Daí a importân cia dos estudos de Psicologia Social destacar a experiência da desigualdade social vivida por quem é oprimido com o fito de conscientizar os indivíduos da origem e das conseqüências psi cológicas dessas condições para que a violência da humilhação social deixe de ser reproduzida e naturalizada Jorge o trabalhador braçal com sua vivência tem muito a nos ensinar Social humiliation analysis of a social inequality experience In this text it is aimed to point out and to analyze the individual experience of social in equality with its psychological implications considering the point of view and report of one who is oppressed one that lived and live that experience daily From the theoretical referential of social psychology the reification concept was used allowing the analysis of the predominant factors in the origin of inequal ity among men It was aimed to discuss con tents creeds and values of the system that de termines forms of relationship facilitating the reflection and understanding concerning the ConScientiae Saúde São Paulo v 6 n 2 p 313322 2007 322 Nota 1 Os nomes dos participantes foram trocados para preservar a integridade das pessoas citadas Referências BOTTOMORE T Dicionário do pensamente marxista Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 2001 CHAUI M O que é ideologia São Paulo Brasiliense 2006 COSTA F B Homens invisíveis relatos de uma humilhação social São Paulo Globo 2004 GONÇALVES FILHO J M Humilhação social um problema político em psicologia Revista Psicologia USP São Paulo v 9 n 2 p 1167 1998 Problemas de método em Psicologia Social algumas notas sobre a humilhação política e o pesquisador participante In BOCK A M B Org Psicologia e compromisso social São Paulo Cortez p 193239 2003 WEIL S O enraizamento Bauru Edusc 2001 Recebido em 13 mar 2006 aprovado em 18 jul 2007 Para referenciar este texto KUNIS M CRUZ S CHECCHIA M A Humilhação social análise de uma experiência da desigualdade social ConScientiae Saúde São Paulo v 6 n 2 p 313322 2007 pursuit of the humans return The study was carried out with participants who are blue collar workers in the central area of the city of São Paulo For collection of data semidirect ed interviews were used elaborated with the qualitative research method It was concluded that there was a social humiliation experience generating anguish once inserted in a society visibly marked by capitalist relationships that frequently tend to annul mans essence Key words Oppression Social inequality Social humiliation Social psychology REFERÊNCIAS GONÇALVES FILHO José Moura Humilhação social um problema político em psicologia Psicologia USP online 1998 v 9 n 2 pp 1167 Disponível em httpsdoiorg101590S010365641998000200002 Epub 29 Set 1999 ISSN 16785177 httpsdoiorg101590S010365641998000200002 Acesso 5 out 2023 CRUZ S KUNIS M CHECCHIA M A Humilhação Social análise de uma experiência da desigualdade social ConScientiae Saúde v 6 p 313322 2007 O presente trabalho consiste em fichamento de 2 artigos científicos sobre desigualdade e humilhação social do ponto de vista da psicologia os quais trazem importantes considerações sobre a temática mencionada No primeiro artigo de José Moura realizada pesquisa participante envolvendo mulheres da Vila Joanisa em São Paulo que assumiram o trabalho de Centros de Juventude O autor destaca que houve exame da humilhação social em caráter de problema político e psicológico gerando transtornos psíquicos e traumas Inicialmente tece considerações sobre o marxismo e a psicanálise p 1 O tema contou entre os mais enfrentados por fertilíssimos pensadores que atravessaram e ultrapassaram a Segunda Grande Guerra em Frankfurt ou em Paris exilados na Inglaterra ou nos Estados Unidos Quem desejasse retomar as possibilidades e dificuldades do assunto em seu detalhe filosófico certamente deveria recorrer àqueles escritores de grande envergadura dialética e que interrogaramse sobre Freud enquanto liam O Capital ou interrogaramse sobre Marx enquanto liam O mal estar na Cultura Acerca da humilhação social e seu mecanismo José Moura explica que p 04 A humilhação social conhece em seu mecanismo determinações econômicas e inconscientes Deveremos propôla como uma modalidade de angústia disparada pelo enigma da desigualdade de classes Como tal tratase de um fenômeno ao mesmo tempo psicológico e político O humilhado atravessa uma situação de impedimento para sua humanidade uma situação reconhecível nele mesmo em seu corpo e gestos em sua imaginação e em sua voz e também reconhecível em seu mundo em seu trabalho e em seu bairro Isso é ainda mais reforçado em bairros de classes mais baixas algo que se inicia desde tempos mais antigos da história brasileira como ocorreu à época da abolição da escravidão com os imigrantes italianos e de outros locais europeus para trabalho nas plantações O trecho de um depoimento de entrevistado retrata bem a realidade ligada ao trabalhador e necessidade de exercício de sua função para garantir apenas o mínimo existencial p 06 Aqui você tem que trabalhar porque tudo depende do trabalho aqui em São Paulo Você não tem da onde adquirir nada Nem pra comer Nem pra nada Tudo aqui tem que ser com dinheiro aqui em São Paulo Se você não tiver o dinheiro se acabou o mundo Porque aqui você não tem colega aqui você não só o se for da família um irmão pra dar uma força pra você um pai alguém da família Porque ninguém estranho dá a mão pra ninguém aqui em São Paulo Gerônimo trabalhador frentista em São Paulo trecho de um depoimento recolhido por Ruth Rosenthal O autor tece demais considerações acerca da opressão pelo trabalho e também sobre desigualdade de classes e a angústia provocada pela realidade de classes Já o segundo artigo há análise sob enfoque da experiência individual da desigualdade social e suas implicações psicológicas tendo em destaque o ponto de vista do oprimido pela desigualdade baseandose na Psicologia Social e o conceito de reificação discutindo crenças e valores do sistema que determinam formas de relacionamento A pesquisa se desenvolveu por meio de entrevistas semidirigidas com operários de São Paulo com a pesquisa qualitativa O artigo inicia já com o relato de uma experiência vivenciada por José pedreiro de 35 anos que realizava serviços em bairro de classe alta em São Paulo que ilustrou bem a humilhação social a que é submetido o trabalhador devido à forma de tratamento preconceituosa neste caso por parte de uma funcionária ela também mais uma pessoa entre tantas outras trabalhadoras inseridas nessa classe p 03 enfatizando que a desigualdade e o sentimento de superioridade não se restringem às classes mais altas Posteriormente seguese o relatório de entrevista realizada com Jorge de 39 anos pernambucano casado e com 2 filhas residindo em GuarulhosSP Trabalhou como montador em uma grande empresa na qual o chefe dava todo incentivo ao trabalhador mas em caso de doença era descartado como uma coisa qualquer como se fosse um objeto com defeito Tinha consciência de ser também descartável como as outras pessoas p 05 O entrevistado também foi questionado se já havia sido vítima de preconceito ou discriminação relatando que certa vez estava com sua maleta de ferramentas no elevador de um prédio quando uma pessoa ao vêlo decidiu não entrar para ele era gente de escritório Tomou essa postura como falta de educação salientando que se todos fossem educados haveria igualdade afinal essa educação vem do berço Como essas situações ocorrem com certa frequência procura evitálas p 5 Em seguida houve a análise da entrevista de Jorge sintetizada em aspectos utilizados pela Psicologia Social como p 6 a ideologia a reificação o desenraizamento e por fim a humilhação social A reificação é observada na medida em que há a consciência da redução do homem à qualidade de objeto algo que ocorreu com Jorge quando comenta sobre a postura da empresa em relação aos trabalhadores que adoecem Além disso o aspecto de humilhação social é bastante presente no relato da entrevista já que tanto no relato inicial quanto o de Jorge percebese que p 9 em ambos os casos a humilhação vivenciada pela desigualdade de classes sociais é nítida e transparece nas duas falas Destacam os autores também que p 9 a humilhação social é produto da história da desigualdade de classes que segundo Marx resulta do capitalismo burocrático que separa homem e trabalho O estudo conclui que na sociedade capitalista a desigualdade social é proveniente dos diversos tipos de interesses econômicos e tal fator acaba por refletirse nas relações sociais entre as classes Assim quem possui menos recursos e está inserido no mercado de trabalho se sente pressionado por exemplo para sustentar a própria família Além disso a alienação do trabalho é fator bastante presente e que contribui fortemente para a humilhação social e o agravamento das desigualdades sociais