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Teoria Geral do Direito
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11ª edição Primeira edição 1982 Editora Brasiliense Rua da Consolação 2697 São Paulo SP Fone 011 2801222 ÍNDICE Direito e lei 3 Ideologias jurídicas 7 Principais modelos de ideologia jurídica 14 Sociologia e direito 30 A dialética social do direito 42 Indicações para leitura 59 DIREITO E LEI A maior dificuldade numa apresentação do Direito não será mostrar o que ele é mas dissolver as imagens falsas ou distorcidas que muita gente aceita como retrato fiel Se procurarmos a palavra que mais freqüentemente é associada a Direito veremos aparecer a lei começando pelo inglês em que law designa as duas coisas Mas já deviam servirnos de advertência contra esta confusão as outras línguas em que Direito e lei são indicados por termos distintos lus e lex latim Derecho e léy espanhol Diritto e legge italiano Droit e loí francês Recht e gesetz alemão Pravo e zakon russo Jog e tõrveny húngaro e assim por diante Noutra passagem deste livrinho teremos de enfrentar a sugestão do grego em que nomos lei também não se identifica sem mais com o Direito e Dikaion propõe a questão do Direito justo As relações entre Direito e Justiça constituem aspecto fundamental de nosso tema e também ali muitas nuvens ideológicas recobrem a nua realidade das coisas Em todo caso não se trata dum problema de vocabulário A diversidade das palavras atinge diretamente a noção daquilo que estivermos dispostos a aceitar como Direito Por isso mesmo os autores ingleses e americanos tem de falar em Right e não law quando pretendem referirse exclusivamente ao Direito independente da lei ou até se for o caso contra ela isto não significa note o leitor que o verdadeiro Right não possa ser um Direito legal porém que ele continuaria a ser Direito se a lei não o admitisse A lei sempre emana do Estado e permanece em última análise ligada à classe dominante pois o Estado como sistema de órgãos que regem a sociedade politicamente organizada fica sob o controle daqueles que comandam o processo econômico na qualidade de proprietários dos meios de produção Embora as leis apresentem contradições que não nos permitem rejeitálas sem exame como pura expressão dos interesses daquela classe também não se pode afirmar ingênua ou manhosamente que toda legislação seja Direito autêntico legítimo e indiscutível Nesta última alternativa nós nos deixaríamos embrulhar nos pacotes legislativos ditados pela simples conveniência do poder em exercício A legislação abrange sempre em maior ou menor grau Direito e Antidireito isto é Direito propriamente dito reto e correto e negação do Direito entortado pelos interesses classísticos e caprichos continuístas do poder estabelecido A identificação entre Direito e lei pertence aliás ao repertório ideológico do Estado pois na sua posição privilegiada ele desejaria convencernos de que cessaram as contradições que o poder atende ao povo em geral e tudo o que vem dali é imaculadamente jurídico não havendo Direito a procurar além ou acima das leis Entretanto a legislação deve ser examinada criticamente mesmo num país socialista pois como nota a brilhante colega Marilena Chauí seria utópicoilusão imaginar que socializada a propriedade estivesse feita a transformação social completa Isto é acentuado também com referência ao Direito pelo jurista húngaro Zoltán Péteri quando assinala que as leis dum país socialista podem não exprimir os resultados da evolução social visada pelos padrões atualizadores do socialismo Ali também surgem leis que carecem de autenticidade e adequação e escapam ao que é verdadeiro e correto juridicamente Em que critérios poderemos buscar o meio de avaliação deste elemento jurídico para aplicálo à consideração das leis é precisamente a questão para a qual se encaminha o nosso itinerário neste livrinho e que aparecerá nas suas conclusões Repare o leitor na arrogância com que todo governo mais decididamente autoritário repele a contestação como se as remodelações institucionais não fossem uma proposta admissível e até parcialmente reconhecida em leis no caso das emendas constitucionais por exemplo na pretensão do poder que cedendo à abertura inevitável quer depois controlar o diâmetro a seu gosto na irritação com que fala em radicalismo de toda oposição que ameace trocar mesmo pelas urnas o estado de coisas presente nas salvaguardas com que pretende garantir o status quo isto é na estrutura implantada os esquemas vigentes na astúcia que procura separar os confiáveis isto é os grupos e pessoas que são vinho da mesma pipa e os não confiáveisisto é os grupos e pessoas que propõem alguma forma de reestruturação social mesmo quando o fazem com a recomendação de meios pacíficos Nisto porém o Direito resulta aprisionado em conjunto de normas estatais isto é de padrões de conduta impostos pelo Estado com a ameaça de sanções organizadas meios repressivos expressamente indicados com órgão e procedimento especial de aplicação No entanto como notava o líder marxista italianoGramsci a visão dialética precisa alargar o foco do Direito abrangendo as pressões coletivas e até como veremos as normas não estatais de classe e grupos espoliados e oprimidos que emergem na sociedade civil nas instituições não ligadas ao Estado e adotam posições vanguardeiras como determinados sindicatos partidos setores de igrejas associações profissionais e culturais e outros veículos de engajamento progressista O Direito autêntico e global não pode ser isolado em campos de concentração legislativa pois indica os princípios e normas libertadores considerando a lei um simples acidente no processo jurídico e que pode ou não transportar as melhores conquistas Isto depende é claro de que Estado concretamente surge a legislação se ele é autoritário ou democrático se reveste uma estrutura social espoliativa ou tendente à justiça social efetiva e não apenas demagógica e palavrosa se a classe social que nele prevalece é a trabalhadora ou a capitalista se as bases dominam o processo político ou a burocracia e a tecnocracia servem ao poder incontrolado se os grupos minoritários têm garantido o seu direito à diferença ou um rolo compressor os esmaga se em geral ficam resguardados os Direitos não menos Direitos e até supraestatais isto é com validade anterior e superior a qualquer lei chamados Direitos Humanos Estes como veremos conscientizam e declaram o que vai sendo adquirido nas lutas sociais e dentro da História para transformarse em opção jurídica indeclinável E condenam é evidente qualquer Estado ou legislação que deseje paralisar o constante progresso através das ditaduras burocráticopoliciais sejam elas cínicas e ostensivas ou hipócritas e disfarçadas Uma exata concepção do Direito não poderá desprezar todos esses aspectos do processo histórico em que o círculo da legalidade não coincide sem mais com o da legitimidade como notava entre outros inclusive o grande jurista burguês Hermann Heller Diríamos até que se o Direito é reduzido à pura legalidade já representa a dominação ilegítima por força desta mesma suposta identidade e este Direito passa então das normas estatais castrado morto e embalsamado para o necrotério duma pseudociência que os juristas conservadores não à toa chamam de dogmática Uma ciência verdadeira entretanto não pode fundarse em dogmas que divinizam as normas do Estado transformam essas práticas pseudocientíficas em tarefa de boys do imperialismo e da dominação e degradam a procura do saber numa ladainha de capangas inconscientes ou espertos Em muitos países inclusive no Brasil há dispositivos legais que contrastam com a Declaração Universal dos Direitos do Homem Isto já foi reconhecido entre nós pelo atual presidente do Supremo Tribunal Ministro F M Xavier de Albuquerque quando tentou em voto famoso na justiça eleitoral encaminhar uma jurisprudência decisão uniforme dada pelos Tribunais a questão de Direito que situasse aquela Declaração como é devido acima de qualquer desvio legislativo Acentuou então o destacado juiz liberal que a Declaração dos Direitos do Homem é capítulo duma evidente Constituição de todos os povos que ainda não existe como lei formalizada mas orienta superiormente a captação do Direito Sob o ponto de vista do socialismo não é outro o posicionamento de Ernst Bloch o filósofo marxista alemão quando afirma que a dignidade é impossível sem a libertação econômica mas a libertação econômica é impossível também se desaparece a causa dos Direitos do Homem Estes dois resultados não nascem automaticamente do mesmo ato mas reciprocamente se reportam um ao outro Não há verdadeiro estabelecimento dos Direitos Humanos sem o fim da exploração não há fim verdadeiro da exploração sem o estabelecimento dos Direitos Humanos Daí a importância da revisão crítica inclusive numa legislação socialista Nosso objetivo é perguntar no sentido mais amplo o que é Direito com ou sem leis mas é preciso esclarecer igualmente que nada é num sentido perfeito e acabado que tudo é sendo Queremos dizer com isto que as coisas não obedecem a essências ideais criadas por certos filósofos como espécie de modelo fixo um cabide metafísico em que penduram a realidade dos fenômenos naturais e sociais As coisas ao contrário formamse nestas próprias condições de existência que prevalecem na Natureza e na Sociedade onde ademais se mantêm num movimento constante e contínua transformação E deste modo que elas se entrosam na totalidade dos objetos observáveis e das forças naturais e sociais que os modelam e orientam a sua evolução Cada fenômeno fenômeno é etimologicamente coisa que surge pode então revelar o seu fundamento e sentido que só emerge em função daquela totalidade móvel Isoladamente cada um perde a significação própria e a conexão vital assim como o órgão sem o organismo em que funciona ou o homem sem a sociedade fora da qual ele não existe humanamente e regride na escala zoológica Nesta perspectiva quando buscamos o que o Direito é estamos antes perguntando o que ele vem a ser nas transformações incessantes do seu conteúdo e forma de manifestação concreta dentro do mundo histórico e social Isto não significa porém que é impossível determinar a essência do Direito o que apesar de tudo ele é enquanto vai sendo o que surge de constante na diversidade e que se denomina tecnicamente ontologia Apenas fica ressalvado que uma ontologia dialética tal como indicava o filósofo húngaro Lukács tem base nos fenômenos e é a partir deles que procura deduzir o ser de alguma coisa buscado assim no interior da própria cadeia de transformações IDEOLOGIAS JURÍDICAS Começaremos recapitulando abreviadamente os tipos de ideologia jurídica encontrados no segmento da História que se estende da Antigüidade aos nossos dias no panorama geográfico denominado segundo convenção muito comum de Ocidental A amostra é suficientemente ampla abrangendo mais ou menos 25 séculos para servir como prova de que nas ideologias a essência do Direito vai transparecendo embora de forma incompleta ou distorcida Entretanto vamos abrir uma seção preliminar a fim de esclarecer em que sentido estamos empregando o termo ideologia que é utilizado por diferentes autores numa variedade considerável de significados Desta maneira será possível mostrar que as abordagens diversas não se excluem reciprocamente mas ao contrário se integram representando simplesmente modos distintos de colocarse o observador perante o mesmo fenômeno Ideologia significou primeiramente o estudo da origem e funcionamento das idéias em relação aos signos que as representam mas logo passou a designar essas idéias mesmas o conjunto de idéias duma pessoa ou grupo a estrutura de suas opiniões organizada em certo padrão Todavia o estudo das idéias e seus conjuntos padronizados começou a destacar as deformações do raciocínio pelos seus conteúdos e métodos distorcidos ao sabor de vários condicionamentos fundamentalmente sociais Por outras palavras descobriuse que a imagem mental não corresponde exatamente à realidade das coisas Esta verificação era irresistível na análise das ideologias e por isto mesmo o escritor francês Stendhal ficou muito irritado ante a mera proposta de um estudo desse tipo Não é muito agradável saber que andamos iludidos e Stendhal chegou a desabafarse de forma pitoresca um tratado de ideologia é um desaforo Então pensam que eu não raciocino corretamente Aliás é isto mesmo que ocorre ninguém raciocina com absoluta perfeição e há sempre uma boa margem de deformações a que não escapam as próprias ciências Queremos dizer que também nestas se intromete certo grau de ideologia afetando as premissas princípios que servem de base a um raciocínio e as conclusões a que chegam os cientistas Assim no desenvolvimento de suas pesquisas sobre o que chama discurso competente Marilena Chauí mostrou com acerto de que maneira a ciência não só carrega elementos ideológicos no seu interior mas até serve à dominação social dos donos do poder quando impõem aqueles falsos conteúdos à práxis social Basta pensar por exemplo no que fazem os Chicago boys criados na incubadora do economista Friedman e depois usados como assessores científicos do autoritarismo chileno ou até na política sócio econômica da Sra Thatcher a dama de ferro do conservantismo inglês A partir duma quota fatal de interferências ideológicas de idéias preconcebidas e modeladas conforme os posicionamentos classísticos o estudo das ideologias e a crítica do seu teor e efeitos encaminharamse no sentido de falar da ideologia não mais como simples conjunto de idéias formando um padrão mas apenas no setor desses conjuntos ou em conjuntos inteiros que carregam e transmitem as deformações Desta maneira surgiu o emprego atual mais comum do termo ideologia como uma série de opiniões que não correspondem à realidade Neste ponto é que surgem aquelas diferentes abordagens que já mencionamos Desprezando matizes e sutilezas é talvez possível reunilas em três modelos principais a ideologia como crença b ideologia como falsa consciência c ideologia como instituição Nos dois primeiros ela é considerada em função dos sujeitos que a absorvem e vinculam no terceiro é procurada na sociedade e independentemente dos sujeitos A ideologia como crença mostra em que ordem de fenômenos mentais ela aparece A ideologia como falsa consciência revela o efeito característico de certas crenças como deformação da realidade A ideologia como instituição destaca a origem social do produto e os processos também sociais de sua transmissão a grupos e pessoas Quando se fala na ideologia como crença não se faz referência especial às crenças religiosas embora estas últimas possam estar como efetivamente estão infestadas de elementos ideológicos A ideologia como crença opõe esta última às idéias no sentido que a ambas as palavras dava o pensador espanhol Ortega y Gasset Por mais direitista que fosse nem por isto ele seria incapaz de em muitos pontos acertar o martelo nos pregos em vez de golpear os dedos Fazemos esta observação porque notamos que certas pessoas têm o hábito de discordar em princípio do nome ou da posição social dos autores dispensandose de verificar se com tudo isso o que eles dizem a respeito de um tema é certo ou errado Já lemos um texto em que toda a filosofia de Kant a grande figura do idealismo alemão era explicada resumida e liqüidada em duas palavras pequenoburguesa Embora sejamos adversário de Kant este juízo sumário parecenos inaceitável porque não explica a diferença entre Kant e outro qualquer pequenoburguês não aprecia validamente todas as suas idéias algumas das quais são exatas nem liqüida a sua influência na história do pensamento que vai da direita à esquerda compreendendo inclusive não poucos marxistas Ortega considerava as idéias como algo que adquirimos através dum esforço mental deliberado e com o maior grau possível de senso crítico As crenças ao contrário representariam opiniões préfabricadas que nos vêm pelo contágio do meio da educação e do lugar que ocupamos na estrutura social Diz ele que as idéias nós temos e nas crenças estamos isto é nem nos ocorre discutilas tão óbvias nos parecem E exato que para Ortega as crenças podem ser positivas e negativas ao exame exterior que delas se faça não se discutindo que se alguém crê sem refletir sobre isto que a parede à frente é intransponível pelo seu avantajado corpo faz muito bem quando evita uma topada desastrosa Mas em todo caso a natureza subliminar inconsciente das crenças é que lhes vai dar uma característica favorecedora da ideologia Em síntese diríamos que nem toda a crença é ideologia pode ser um resíduo válido de certezas adquiridas mas toda ideologia se manifesta como crença na medida em que nesta ficamos sem verificar se assim fazendo é adotada a boa ou má posição simplesmente parece que outra qualquer posição é inconcebível e só pode surgir por burrice ignorância ou safadeza dos que a mantêm A ideologia portanto é uma crença falsa uma evidência não refletida que traduz uma deformação inconsciente da realidade Não vemos os subterrâneos de irreflexão em que a fomos buscar e ao contrário ela nos traz a ilusão duma certeza tal que nem achamos necessário demonstrála Raciocinamos a partir dela mas não sobre ela de vez que considerála como objeto de reflexão e fazer incidir sobre aquilo o senso crítico já seria o primeiro passo da direção superadora isto é iniciaria o processo da desideologização Por isso mesmo aceitamos de bom grado a troca de idéias mas suportamos com dificuldade um desafio às crenças Quem remexe nelas arriscase a receber um xingamento ou um coice A ideologia como crença falsa levanos portanto à abordagem da falsa consciência E esta última se exprime com tanto mais vigor quanto mais frágeis listo é falsos são os seus presumidos fundamentos Estes passam a guiar então as nossas atitudes e raciocínios como evidências desvairadas O escritor francês Alain dizia que se trata dum delírio declamatório na medida em que repetimos tranqüilamente e se contestados repetimos exaltadamente os maiores e mais convictos despropósitos Pense o leitor na energia com que o racista proclama a superioridade do branco sobre o negro com que o machista denuncia a inferioridade da mulher diante do homem com que o burguês atribui ao radical o rompimento da paz social que é na verdade o sossego para gozar sem contestação os seus privilégios de classe dominante A falsa consciência introduzse nas análises da ideologia sobretudo a partir das contribuições marxistas Não se trata de má fé assinalam Marx e Engels de vez que a má fé pressupõe uma distorção consciente e voluntária a ideologia é cegueira parcial da inteligência entorpecida pela propaganda dos que a forjaram O discurso competente em que a ciência se corrompe a fim de servir à dominação mantém ligação inextrincável com o discurso conveniente mediante o qual as classes privilegiadas substituem a realidade pela imagem que lhes é mais favorável e tratam de impôla aos demais com todos os recursos de que dispõem órgãos de comunicação de massas ensino instrumentos especiais de controle social de que participam e é claro com forma destacada as próprias leis Mas a esta altura sem dúvida já nos deslocamos da natureza e efeitos da ideologia para as suas origens Nesta ordem de investigações também é grande a influência do marxismo em todo o pensamento contemporâneo Uma disciplina chamada Sociologia do Conhecimento cuja finalidade científica é investigar as raízes sociais de qualquer tipo de saber constitui quer queiram quer não os seus autores um diálogo com o marxismo em que muito mais é recebido do que reelaborado Basicamente foi o marxismo que propôs uma explicação das origens da ideologia apontando os interesses e conveniências dos que controlam a vida social já que nesta se apropriaram dos meios de produção econômica e de tudo o que representa a força e o poder inclusive os meios de comunicações de massas a organização do ensino e a produção das leis As formações ideológicas estariam assim relacionadas com a divisão de classes favorecendo uma privilegiada e se impondo à outra espoliada na própria base da sua existência material Tal dominação evidentemente não será eterna pois as contradições da estrutura acabam rompendo a pirâmide do poder e conscientizados nisto os que carregam o peso da opressão abrese espaço à contestação da ideologia oficial Mas decerto convém matizar este influxo na proporção mesma do processo dialético que está no cerne do marxismo apesar de obscurecerse bastante quando certas derivadas dele se desviam para a visão dogmática e mecânica Engels dizia com bastante ênfase que o materialismo histórico pretende ser um guia para o estudo não uma receita fácil a fim de que se derive sem mais da estrutura social básica tudo o que vier a ocorrer O fato é que não se pode reconduzir em linha reta qualquer fenômeno ideológico à organização sócioeconômica Há produtos ideológicos relativamente solúveis sem troca do modo de produção como os há relativamente indissolúveis mesmo quando a troca se consumou Exemplo disto é o machismo já citado que se vai atenuando em certas sociedades capitalistas e resiste com mais vigor em determinados países de socialismo implantado ao menos quanto à base material das relações de produção Em todo caso as ideologias absorvidas e definidas por este ou aquele sujeito não são por ele criadas mas recebidas É isto que suscita a abordagem da ideologia como instituição como algo que se cria e se manifesta na sociedade e não na cabeça deste ou daquele indivíduo A ideologia é fato social exterior anterior e superior aos indivíduos antes de tornarse um fato psicológico enquanto invade a formação mental entrando sorrateira nas profundezas da mente Porém não se trata propriamente dum aparelho ideológico já que esta metáfora significação duma palavra estendida a outra coisa semelhante ao que ela designa tem o risco de sugerir uma forma também mecânica de atuação Neste caso o homem seria boneco inerte fatalmente preso às determinações externas E quem escaparia para corrigir a deformação ou proclamála incorrigível Aliás existe uma espécie curiosa de maniqueísmo doutrina que vê tudo como uma espécie de banguebangue com os mocinhos dum lado e os bandidos do outro na oposição entre ideologia e ciência que tende a considerar ideologia o saber dos outros e ciência imaculada o saber de tais maniqueus Em verdade as coisas são muito mais complicadas porque ficamos sempre oscilando entre a crença iludida e a ciência retificadora que de qualquer forma nunca se põe definitivamente como perfeita e acabada E coletivamente não participamos duma tragédia em que todos se agitam em vão arrastados para a catástrofe inevitável como um bando de cegos incuráveis participamos ao contrário de um drama em que os personagens buscam o seu itinerário lutando contra barreiras de todo gênero e com a chance duma vitória final contra o destino na medida em que temos a possibilidade de transformar a cegueira em miopia e procurar os óculos mais aperfeiçoados para ver o caminho Marx já lembrava que não somos nem totalmente livres nem totalmente determinados Se podemos superar as determinações elas são portanto antes condicionamentos determinações vencíveis e não fatais e é assim que se entende melhor a posição de Marx ao dizer que a maneira de superar as determinações é conscientizálas A propósito um autor francês Cuvillier já observou que em textos fundamentais do marxismo a flexão alemã bedingt condiciona tende a ser traduzida inexatamente como determina De qualquer maneira a superação das determinações já acentua a participação ativa do homem e não apenas o funcionamento de máquinas e aparelhos Por outro lado há condições sociais que favorecem a conscientização elas emergem quando as contradições duma estrutura social se agravam e a crise mais funda torna claros os contrastes entre a realidade e as ideologias Hoje o operário não tira mais o boné fazendo uma reverência ao sr dr que passa fumando charuto e com a mais valia no bolso Ele já percebeu que existe algo errado no sistema em que o valor dos bens produzidos pelo seu trabalho não corresponde à parte que lhe cabe a título de salário e é precisamente nesta diferença que consiste a maisvalia cujo destino é demasiadamente óbvio para que o trabalhador se conforme com vêla engordar a riqueza do capitalista enquanto a miséria do povo se torna cada vez mais dolorosa A crise econômica e mais amplamente a crise social determinam rachaduras nas paredes institucionais e rompem o verniz das ideologias Dentro deste clima não é mais possível o funcionamento por exemplo daquela crença de que cada um tem o seu lugar como se este fosse imposto pela natureza das coisas por Deus ou pela racional partilha e não pelos interesses entronizados duma classe dominante A propósito de dar a cada um o que é seu como principio jurídico mostrava o grande jurísta João Mangabeira que é expressão muito velha da separação social das classes entre os proprietários e os nãoproprietários entre os dominantes e os espoliados porque se a justiça consiste em dar a cada um o que é seu dêse ao pobre a pobreza ao miserável a miséria ao desgraçado a desgraça que isso é o que é deles Nem era senão por isso que ao escravo se dava a escravidão que era o seu no sistema de produção em que aquela fórmula se criou Mas bem sabeis que esta justiça monstruosa tudo pode ser menos justiça A regra da Justiça deve ser a cada um segundo o seu trabalho como resulta da sentença de São Paulo na carta aos Tessalonicenses enquanto não se atinge o princípio de a cada um segundo a sua necessidade A medida que a crise social desenvolve as contradições do sistema emergem as conscientizações que apontam os seus vícios estruturais e surge um pensamento de vanguarda que vê mais precisamente onde estão os rombos superando a ideologia e fazendo avançar a ciência Um jurista atual não pode mais receber o seu rubi de bacharel repetindo com serenidade a cada um o que é seu como se fosse a serena verdade do Direito A ciência porém não será nunca repetimos definitiva acabada e perfeita A verdade absoluta recordanos o marxista polonês Adam Schaff é apenas um limite ideal como na série matemática um limite que efetivamente vai recuando cada vez mais à medida que avançamos Isto não quer dizer que as verdades relativas alcançadas pelo homem sejam menos objetivas e válidas a opção a fazer nota Schaff é pela verdade mais completa possível na etapa atual e a fim de procurála é preciso combater em sua origem a sociedade injusta e em nós mesmos pela conscientização assentada numa práxis libertadora os fantasmas ideológicos a fim de que não nos transformemos naquele tipo de intelectual atarantado que contesta sem saber bem o quê nem por que Este já foi corretamente visto como a face exótica do poder Em síntese a formação ideológica fatoinstituição social oriunda em termos gerais de contradições da estrutura sócioeconômica mas não exclusivamente redutfvel a estas pois com relativa independência aparece subsiste ou se dissolve cristaliza um repertório de crenças que os sujeitos absorvem e que lhes deforma o raciocínio devido à consciência falsa isto é a inconsciência de que eles são guiados por princípios recebidos como evidências e que na verdade constituem meras conveniências de classe ou grupo encarapitados em posição de privilégio No esforço para nos libertarmos desses condicionamentos floresce por outro lado uma conscientização favorecida em seu impulso crítico pelas crises que manifestam as contradições da estrutura social onde primeiro surgiram as crenças agora contestadas ou de contestação viável se não nos acomodarmos na alienação desligando a mente do que vai em torno O grau desta conscientização a sua própria coerência e persistência dependem sempre do nosso engajamento numa práxis numa participação ativa conseqüente Não adianta ver que o mundo está errado e encolher os ombros fugindo para algum paraíso artificial no porre no embalo no sexo obsessivo ou na transferência de qualquer atuação positiva para mais tarde noutra vida no além E quando falamos em práxis é evidente que ela pode ser também de maior ou menor amplitude mas a atitude modesta limitada mesmo já é uma forma válida de participar pelo discurso pelo voto pela arregimentação pela ajuda material e moral a espoliados e oprimidos Tudo isto se reflete nas ideologias jurídicas Tal como as outras elas aparecem dando expressão em última análise aos posicionamentos de classe tanto é assim que as correntes de idéias aceitas podem mudar e de fato mudam conforme esteja a classe em ascensão relativa estabilidade ou decadência Veremos adiante por exemplo que a burguesia chegou ao poder desfraldando a bandeira ideológica do direito natural com fundamento acima das leis e tendo conquistado o que pretendia trocou de doutrina passando a defender o positivismo jurídico em substância a ideologia da ordem assente Pudera A guitarra legislativa já estava em suas mãos A primeira fase contestou o poder aristocráticofeudal na força do capitalismo em subida para dominar o Estado A segunda fez a digestão da vitória pois já não precisava mais desafiar um poder de que se apossara É daí que surge a transformação do grito libertário invocando direitos supralegais em arroto social de pança cheia não admitindo a existência de Direito senão em suas leis Apesar de tudo as ideologias jurídicas encerram aspectos particularmente interessantes além de traduzirem conquanto deformados elementos da realidade Porque distorção é precisamente isto a imagem alterada não inventada O Direito alongado ou achatado como reflexo numa superfície côncava ou convexa ainda apresenta certas características reconhecíveis Resta desentortar o espelho tornálo tanto quanto possível plano e abrangedor dentro das condições atuais de reexame global Isto se beneficia por outro lado como processo de conscientização da crise do Direito isto é desse direito que ainda aparece nos compêndios nos tratados no ensino e na prática de muitos juristas no discurso do poder e até por lamentável contágio no de certos grupos e pessoas de sincero engajamento progressista Estes últimos desafiam o estreito legalismo como se ali residisse o Direito inteiro e assim com o desaparecimento de leis que representam mera conveniência e interesse duma ilegítima dominação pensam que sumirá o Direito mesmo Procuraremos demonstrar adiante que isto não é exato e que ao contrário andava certo o eminente colega Dalmo Dallari quando noutro volume desta coleção escreveu na realidade o direito usado para dominação e injustiça é um direito ilegítimo um falso direito O que se faz aqui é ampliar desenvolver este excelente ponto de partida esboçando uma abordagem global do Direito sob o ponto de vista dialético PRINCIPAIS MODELOS DE IDEOLOGIA JURÍDICA Não é possível repassar agora todas as ideologias jurídicas uma por uma Vamos portanto simplificar o imenso repertório de doutrinas que aparecem da Antigüidade aos nossos dias Tomaremos apenas dois modelos básicos em torno dos quais se polarizam os diferentes subgrupos ideológicos a que só faremos um breve aceno sem descer a pormenores da posição de autores e movimentos Fundamentalmente aquelas ideologias situamse entre o direito natural e o direito positivo correspondendo às concepções jurisnaturalista e positivista do Direito A estas duas daremos portanto especial atenção porque a maior parte dos juristas ainda hoje adota uma ou a outra como se fora de ambas não houvesse maneira de ver o fenômeno jurídico É certo que muitos autores tradicionais não se julgariam corretamente enquadrados numa dessas duas posições mas quando observamos os alicerces da construção que pretende ser diferente aparece ali a mesma oposição que se pretendia evitar entre direito positivo e direito natural Antes de fazer um exame especial destas duas resistentes concepções que assinalam a grande cisão das ideologias jurídicas de um lado o Direito como ordem estabelecida positivismo e de outro como ordem justa iurisnaturalismo daremos uns exemplos daquelas doutrinas que supostamente fugiram ao dilema Assim Miguel Reale entre outros recusaria a classificação como positivista e no entanto para este filósofo do Direito é na ordem que se encontra a raiz de toda a elaboração jurídica em toda a comunidade é mister que uma ordem jurídica declare em última instância o que é lícito ou ilícito E para mais enfatizar este posicionamento o mesmo destacado pensador da direita repete e endossa uma frase de Hauriou no sentido de que a ordem social representa o minimum de existência e a justiça social é um luxo até certo ponto dispensável Não se poderia fixar mais claramente a opção positivista Depois disto qualquer acréscimo ou matizamento é secundário permanece no âmago o compromisso com a ordem estabelecida e as barreiras que ela opõe ao Direito justo não seriam jamais transponíveis porque na verdade para o positivista a ordem é a Justiça Por outro lado o jurista alemão Hans Welzel afirma expressamente que não é iurisnaturalista e no entanto admite certos princípios fixos inalteráveis anteriores e superiores às leis e que nenhum legislador pode modificar validamente Por isso mesmo é comumente classificado como um adepto do direito natural Somente uma nova teoria realmente dialética do Direito evita a queda numa das pontas da antítese teses radicalmente opostas entre direito positivo e direito natural Isto é claro como em toda superação dialética importa em conservar os aspectos válidos de ambas as posições rejeitando os demais e reenquadrando os primeiros numa visão superior Assim veremos que a positividade do Direito não conduz fatalmente ao positivismo e que o direito justo integra a dialética jurídica sem voar para nuvens metafísicas isto ésem desligarse das lutas sociais no seu desenvolvimento histórico entre espoliados e oprimidos de um lado e espoliadores e opressores de outro Esta síntese dialética será exposta nas conclusões deste livrinho Por enquanto vejamos o panorama tal como ele se apresenta nas ideologias jurídicas duma tradição que ainda empolga e divide em facções opostas os cultores rotineiros do Direito pois antes de esboçar um passo adiante é preciso ter em mente o caminho percorrido pelos antecessores e que decerto não foi inútil nem mesmo quando representou uma deformação ideológica E a própria tábua sobre a qual se balançaram e balançam ainda tantos juristas ilustres que há de servirnos como trampolim para o salto dialético Embora o jurisnaturalismo a ideologia do direito natural seja a posição mais antiga e de nenhum modo inteiramente liquidada é o positivismo que hoje predomina entre os juristas do nosso tempo seja ele o que assenta na ordem burguesa e capitalista seja o que como legalismo socialista representou aquele mesmo tipo de congelamento característico por exemplo no stalinismo e que ainda prevalece na URSS Tal congelamento aliás tende a desaparecer nas mais avançadas construções de uma filosofia jurídica realmente dialética Esta intenção superadora ainda hesitante é muito nítida nos mais avançados escritores atuais da teoria socialista do Direito que combatem o estreito legalismo tanto nos países de modelo socialista implantado em termos sócioeconômicos como é o caso de Imre Szabó ou Zoltán Péteri na Hungria quanto em autores socialistas que trabalham nos países de estrutura fundada no capitalismo como era o caso de Ernst Bloch na Alemanha até a sua morte e ainda é o de Michel Miaille na França em obras mais recentes A estes dois últimos faremos referência especial a propósito de uma tensa limitada mas fecunda recolocação da problemática do direito natural sob o ponto de vista do marxismo De qualquer forma trataremos em primeiro lugar do positivismo tal qual ele se apresenta nas ideologias burguesas já que é por assim dizer o trivial variado da cozinha jurídica no mundo capitalista que aí temos à nossa frente Faremos aqui apenas a ressalva de que o legalismo socialista apresenta diferenças resultantes do fato de que é socialista revestindo portanto uma estrutura diversa e socialmente mais avançada enquanto esquema ou modelo contudo vem a dar na mesma pois que apresenta uma redução à ordem posta e portanto ordem do Estado aceita sem mais e subsiste a restrição que como tese jurídica já decai por isso mesmo no pensamento de vanguarda Assim como este do ponto de vista social mais amplo tende a procurar outro sistema de reestruturação socialista de baixo para cima antes no caminho da autogestão de que participa o povo mais diretamente do que na pesada maquinaria autoritária burocráticaestatal que estabelece um domínio de cima para baixo a reflexão socialista mais moderna tende igualmente a buscar uma teoria jurídica mais flexível e afinal propriamente dialética em que se liberte daquela noção de Direito como antes de tudo direito estatal ordem estatal leis e controle incontrolado É na medida em que o socialismo pende para o democrático que a teoria correspondente do Direito pende e avança para o combate ao seu confinamento em estatismo com a subsistência de opressões várias por exemplo a grupos minoritários étnicos ou sexuais Vimos que as duas palavraschave definidoras do positivismo e do iurisnaturalismo são para o primeiro ordem e para o segundo Justiça Isto se esclarece bem nas duas proposições latinas que simbolizam o dilema aparentemente insolúvel entre ambas as posições íustum quia iussum justo porque ordenado que define o positivismo enquanto este não vê maneira de inserir na sua teoria do Direito a crítica à injustiça das normas limitandose ou a proclamar que estas contêm toda justiça possível ou dizer que o problema da injustiça não é jurídico e iussum quia iustum ordenado porque justo que representa o jurisnaturalismo para o qual as normas devem obediência a algum padrão superior sob pena de não serem corretamente jurídicas Este padrão tende por sua vez a apresentarse já dissemos como fixo inalterável e superior a toda legislação mesmo quando sé fala num direito natural de conteúdo variável Este que aparece com o jurista alemão Stammler também não altera a postura uma vez que o conteúdo é concebido apenas como variação material de normas dentro de uma ordem de princípios universais de ordenação Isto reduz o número de princípios de direito natural que entretanto permanecem fixos e abre caminho a toda espécie de particularização que acaba entregando os pontos ao Estado mas tal vicio não é apenas da construção do Stammler e sim como veremos de praticamente todo o direito natural O positivismo de qualquer sorte é uma redução do Direito à ordem estabelecida o iurisnaturalismo é ao contrário um desdobramento em dois planos o que se apresenta nas normas e o que nelas deve apresentarse para que sejam consideradas boas válidas e legítimas Em que medida o jurisnaturalismo cria não a superação do positivismo porém antinomia contradição insolúvel entre dois princípios entre a ordem justa e a ordem estabelecida e por outro lado se ele consegue ou não fundamentar convincentemente o plano jurídico superior que serve de estalão para medir as normas jurídicas encontradas na vida social eis aí duas questões que examinaremos quando vier à consideração o próprio direito natural Por enquanto verifiquemos as posições e barreiras do positivismo Ele sempre capta o Direito quando já vertido em normas seu limite é ordem estabelecida que se garante diretamente com normas sociais nãolegisladas o costume da classe dominante por exemplo ou se articula no Estado como órgão centralizador do poder através do qual aquela ordem e classe dominante passam a exprimirse neste caso ao Estado é deferido o monopólio de produzir ou controlar a produção de normas jurídicas mediante leis que só reconhecem os limites por elas mesmas estabelecidos De todo modo as normas isto é como vimos os padrões de conduta impostos pelo poder social com ameaça de sanções organizadas medidas repressivas expressamente indicadas com órgão e procedimento especiais de aplicação constituem para o positivismo o completo Direito E notese que no caso se trata das normas da classe dominante revestindo a estrutura social estabelecida porque a presença de outras normas de classe ou grupos dominados não é reconhecida pelo positivismo como elemento jurídico exceto na medida em que não se revelam incompatíveis com o sistema portanto único a valer acima de tudo e todos daquela ordem classe e grupos prevalecentes Quando o positivista fala em Direito referese a este último e único sistema de normas para ele válidas como se ao pensamento e prática jurídicas interessasse apenas o que certos órgãos do poder social a classe e grupos dominantes ou por elas o Estado impõem e rotulam como Direito É claro que vai nisto uma confusão pois tal posicionamento equivale a deduzir todo Direito de certas normas que supostamente o exprimem como quem dissesse que açúcar é aquilo que achamos numa lata com a etiqueta açúcar ainda que um gaiato lá tenha colocado pódearroz ou um perverso tenha enchido o recipiente com arsênico Há porém várias espécies de positivismo Destacaremos no mínimo três o positivismo legalista o positivismo historicista ou sociologista o positivismo psicologista Vamos explicar brevemente em que consistem eles O positivismo legalista voltase para a lei e mesmo quando incorpora outro tipo de norma como por exemplo o costume dá à lei total superioridade tudo ficando subordinado ao que ela determina e jamais sendo permitido de novo a título de exemplo invocar um costume contra a lei Não é este contudo o único positivismo Há também o positivismo historicista ou sociologista A modalidade historicista recua um passo e prefere voltarse para as formações jurídicas prélegislativas isto é anteriores à lei Mergulha então nas normas jurídicas não escritas não organizadas em leis e códigos mas admitidas como uma espécie de produto espontâneo do que se chama espírito do povo Acontece que este fantasma utilíssimo à ordem dominante atribui ao povo os costumes principais aqueles mores indicados pelos antropólogos e que são os costumes considerados essenciais para a manutenção da ordem social Ora estes mores são sempre os da classe e grupos dominantes mascarados pelo historicismo positivista sob o rótulo de produtos do espírito do povo Desta maneira não importa muito que se desloque o foco da legislação imposto pelo Estado para os mores de vez que estes sendo focalizados em termos de mores da classe e grupos dominantes e o Estado sendo expressão da mesma classe é também à mesma ordem a que ambos historicismo e legalismo se referem e consideram inatacável De qualquer forma quando aparece a legislação estatal aquelas formulações prélegislativas tendem a ceder precedência às leis e só se aplicam supletivamente isto é nas áreas em que não há disciplina legislativa E o caso por exemplo do common law angloamericano direito consuetudinário dos costumes que não prevalece contra lei expressa A modalidade sociologista de positivismo tem ligação íntima com a historicista por isto foram citadas num só grupo uma vez que é apenas uma generalização do historicismo Queremos dizer que em vez de focalizar um direito costumeiro afinal engolido pelas leis estatais quando aparecem estas o sociologismo propõe o esquema da abordagem historicista generalizandoo Assim ele se volta para o sistema de controle social que reveste a ordem estabelecida e na qual o Estado seria apenas um representante daquela ordem que lhe dá substância validade e fundamento De certo modo ainda mais se destaca aqui a dominação classística pois fica bem clara a natureza e posição dos grupos e pessoas que encarnam a ordem listo é antes de tudo a classe dominante de que o Estado é visto como simples portavoz A presença de outros projetos outras instituições oriundas de outra classe e grupos não dominantes é desprezada O Direito aparece tãosó como forma de controle social ligado à organização do poder classístico que tanto pode exprimirse através das leis como desprezálas rasgar constituições derrubar titulares e órgãos do Estado legal tomando diretamente as rédeas do poder Estas contradições da classe dominante no entanto acabam reforçando a dominação pois o que invoca o novo grupo do poder é a mesma ordem social que entendia mal defendida pelos seus representantes É assim como se o mandante cassasse os mandatos de seus procuradores mais ou menos infiéis com receio de que estes entreguem o ouro aos banidos do poder isto é os dominados que devem continuar dominados Vêse então que as contradições à superfície representam uma coerência mais profunda a da dominação é claro No positivismo sociologista é a classe dominante a que ele não alude por motivos óbvios como tal preferindo falar na sociedade como se esta por presunção inatacável estivesse bem defendida por aquela classe que pretende exprimir a cultura e traçar a organização social a resguardar pelos mecanismos de controle e segurança desta ordem estabelecida O comportamento divergente dos grupos e classe dominados seus padrões de conduta com normas opostas às normas do sistema são vistos como subculturas comportamentos aberrantes antijurídicos uma patologia que constitui problema social a ser tratado com medidas repressivoeducativas para conduzir os transviados ao bom caminho Se cresce a contestação a atitude anômica isto é que contesta o nomos as normas da ordem estabelecida as hipocrisias paternalistas logo tiram a máscara abandonam o mito da educação dos dominados segundo os padrões da classe e grupos dominantes e para melhor servilos e saem para a ignorância no sentido popular da palavra isto é recorrem à porrada que os donos do poder e seus dóceis servidores consideram perfeitamente jurídica Noutras palavras o positivismo legalista historicista ou sociologista os dois últimos reforçando o primeiro a que se acabam rendendo canoniza a ordem social estabelecida que só poderia ser alterada dentro das regras do jogo que esta própria estabelece para que não haja alteração fundamental Aliás se as regras do jogo apesar de todas as cautelas e salvaguardas trazem o risco de vitória mesmo pelas urnas e dentro das canais da lei de correntes reestruturadoras o poder em exercício pressionado pelas forças do sistema e pelo seu próprio gosto de ficar no topo da pirâmide trata de mudar as ditas regras do jogo empacotando outro conjunto de normas legais É assim como se o árbitro criasse um novo caso de impedimento no meio da partida Isto quando o time que não lhe é simpático já via toda defesa adversária furar e cair diante do jogador mais ágil que está sozinho diante do goleiro e na iminência de fazer gol Aliás sé os representantes da ordem estabelecida chegando ao poder estatal hesitam ou se revelam mais receptivos à pressão popular pelas reestruturações sociais a mesma classe dominadora não teme substituílos por outros mais enérgicos ainda que para isto rompa todo um ciclo de legalidade e substitua a legalidade feita por outra então considerada intocável E durante esta substituição os juristas do positivismo ficam no terrível suspense esperando para ver quem vai dar as cartas do jogo isto é as novas leis que tais rábulas diplomados e endomingados interpretarão e aplicarão com a maior cara de pau e todos os balangandãs da técnica jurídica Se porém a situação interna se transmuda e a classe dominante é derrotada mesmo nas urnas chegando as forças progressistas ao poder o sistema imperialista de controle internacional não tarda a intervir fomentando a resistência a isto sé chama desestabilizar governos desprezando o princípio de autodeterminação dos povos e mandando dinheiro e armas para manter a ordem nos quintais de sua zona de influência No meio deste jogo violento o positivismo psicologista desempenha o papel de inocente útil Nele o espírito do povo não fica pairando na sociedade baixa na cuca de um ou mais sujeitos privilegiados São estes que pretendem 1 haver descoberto o direito livre dentro de suas belas almas revelando um sentimento do direito ou 2 que deferem aos juízes como no judgemade law o direito criado pela magistratura de certas ideologias norteamericanas o poder judicial de construir normas além e acima do que está nas leis um direito mais rápido realista e concreto do que o dos códigos ou ainda 3 vão à busca duma essência fenomenológica do direito que não tem o romantismo do direito livre ou o pragmatismo neste o critério da verdade é o sucesso do direito dos juízes mas também não rende mais do que umas fumaças pretensiosas Dá tudo no mesmo e o que este buquê de ideologias tem de comum de psicologista é a transferência de foco passando daquele panorama exterior de leis controle social espírito objetivo do povo para as cabeças dos ideólogos Vejamos um pouco mais de perto o positivismo do terceiro grupo os positivismos psicologistas O sentimento do direito procurado numa intuição livre acaba descobrindo e não por mera coincidência na alma dos pesquisadores a ideologia jurídica peculiar à sua classe e seu grupo isto é os princípios perfeitamente compatíveis com a ordem estabelecida Começando nas belas almas em que a ideologia brota como uma flor e idealizando romanticamente a dominação o sentimento do direito acaba amadurecendo nos mesmos frutos repressivos Nem os senhores delicados do sentimento nem por outro lado os senhores práticos do direito criado por juízes realistas sequer intentam uma crítica real e profunda de pressupostos estabelecidos pela ordem social dominante Ao contrário eles procuram melhor servila apenas achando que a legislação é um caminho muito estreito bruto para os sentimentais ou atrasado para os realistas em relação às exigências de manter a estrutura em perfeito funcionamento com um pouco de água com açúcar ou pondo óleo e peças novas na máquina Restam os artifícios da fenomenologia que é também um positivismo psicologista Aqui há pretensões menos românticas mas o processo nem por isto deixa de parecernos uma espécie de mágica besta Sua intenção declarada aliás seria ultrapassar o psicologismo ir às coisas mesmas aos fenômenos e por assim dizer descascálos até que revelem no âmago a própria essência Mas perguntemos quais são os fenômenos assim descascados São os fatos de dominação que os legalismos historicismos e sociologismos apresentaram como jurídicos isto é de novo e sempre a ordem estabelecida e seus instrumentos de controle social Este não é jamais questionado e sim trabalhado mentalmente pelo fenomenólogo até que só reste a essência da dominação E qual o processo utilizado para extrair a essência Como é que o fenomenólogo pretende atingir as coisas mesmas Com a sua visão individual que acaba transferindo para o objeto os próprios elementos ideológicos do observador Lukács observa que se trata duma abertura para o mundo de um sujeito que na verdade não sai de si mesmo Dizendo que se libertou da psicologia e das representações mentais para ver as coisas no que essencialmente são o fenomenólogo toma as coisas no caso os fenômenos jurídicos tal como as apresentou um fato de dominação e busca a essência dele numa laboriosa visão que esquece de tirar os óculos de lentes deformadoras que a ideologia pôs no seu nariz Finalmente e muito entusiasmado grita que já morou na essência daquilo Nem foi à toa que as mais laboriosas pretensões fenomenológicas na teoria do Direito acabaram casando com a teoria pura de Hans Kelsen isto é a fenomenologia jurídica de Kaufmann ou de Schreier não passa de um caminho complicado para o positivismo legalista de Kelsen Todas as formas do positivismo assim rodam num círculo porque a partir do legalismo giram por diversos graus para chegarem ao mesmo ponto de partida que é a lei e o Estado Em todo esse jogo de positividades manhosas entretanto a argúcia de Radbruch apontou um limite é que mesmo no plano ideológico o positivismo que diviniza a lei e a ordem como se ali estivesse o Direito inteiro há de oferecer um qualquer fundamento jurídico para tal ordem tal Estado produtor de leis tal privilégio e exclusividade de produzir leis que seria do Estado E Radbruch o grande iurisfilósofo alemão com certeira malícia nos mostra que o positivismo neste empenho pressupõe um preceito jurídico de direito natural na base de todas as suas construções isto é um preceito jurídico anterior e superior ao direito positivo O que se pretende afirmar assim é que ou o positivismo se descobre como nãojurídico fazendo derivar o Direito do simples fato de dominação ou para tentar a legitimação da ordem e do poder que nela se entroniza recorre a um princípio que não é o direito positivo este direito já feito e imposto em substância pelo Estado pois a função daquele princípio é precisamente dar fundamento jurídico ao direito positivo Afinal de contas por que se atribui ao Estado o monopólio de produzir Direito com a legislação Que razão jurídica legitimaria este privilégio Nenhum positivista escapa a esta questão no máximo ele a transfere para outra sede isto é procura oferecer à sua ideologia jurídica o aval de sua ideologia política o que não deixa de ser engraçado em quem se afirma objetivo isento até neutro politicamente Um caso extremo é o de Kelsen a que aludiremos brevemente porque ele nos conduz aos limites do paradoxo na sua teimosia positivista Assim é que para conservar aquele mito da neutralidade afirma que o Direito é apenas uma técnica de organizar a força do poder mas desta maneira deixa o poder sem justificação como que nu e pronto a ferrar todo o mundo mas de calças arriadas com perigo para sua dignidade portanto o mesmo Kelsen acrescenta que a força é empregada enquanto monopólio da comunidade e para realizar a paz social Desta maneira opta pela teoria polftica liberal que equipara Estado e comunidade como se aquele representasse todo o povo ocultando deste modo a dominação classística e dos grupos associados a tais classes Chamase então de paz social a ordem estabelecida em proveito dos dominadores e tentando disfarçar a luta de classes e grupos Ora este artifício que põe no Estado sempre a paz e o interesse da comunidade é mais do que poderia engolir um iurisnaturalista consciente Onde ficam perante isso o Direito de resistência à tirania ao poder usurpado E a guerra justa contra os Estados imperialistas que atacam nações mais fracas como o lobo ao cordeiro Junto à questão do Estado emerge a da segurança jurídica outro mimo da ideologia positivista Afirmase que há segurança para os cidadãos tendose em vista que as preceituações legais estabelecem como todos devem pautar a sua conduta a fim de evitar as sanções estabelecidas no caso dum descumprimento dos deveres que as leis impõem Mas haverá maior insegurança do que uma determinação sem limites através da legislação do que é permitido ou proibido além do mais realizada por um certo poder que se dispensa de provar a própria legitimidade Este poder ao contrário se presume legítimo a partir do fato de que está em exercício e chegou á posição desempenhada seguindo os processos que ele próprio estabelece altera e de todas as formas controla a seu belprazer Um círculo de legalidade aliás provindo de uma ruptura mais próxima ou mais remota de outra legalidade não é em si prova de coisa alguma quanto à legitimidade do poder já o repetia entre outros Heller conforme lembramos Qualquer tirania pagava com gosto e paga mesmo este pequeno tributo que é cobrir de leis o corpo nu do poder pensando que isto basta para tornálo inatacavelmente jurídico Radbruch que teve de enfrentar a perseguição de Hitler advertia também que uma legalidade não é suficiente pois em situações comuns ela é em todo caso o revestimento duma estrutura de dominação que é preciso avaliar criticamente e em situações extremas pode ser constituída pelos editos de um paranóico isto é pelas leis de um doente mental com mania de grandeza Volta sempre a questão da fonte suprema de qualquer Direito inclusive do direito de produzir normas legais A idolatria da ordem nunca elimina apenas tenta disfarçar o problema da Justiça Que será entretanto esta Justiça que se põe no centro das preocupações iurisnaturalistas De que maneira mesmo a este nível ideológico emerge a dialética da ordem e da Justiça Ressalvemos que neste ponto estamos fazendo abstração do posicionamento concreto e realmente dialético do problema que só pode ser focalizado a partir da dialética social e não apenas ideológica do Direito O nosso objetivo por enquanto é mostrar que as ideologias jurídicas refletem apesar de tudo algo mais profundo nelas também relativamente deformado O direito natural apresentase fundamentalmente sob três formas todas elas procurando estabelecer o padrão jurídico destinado a validar as normas eventualmente produzidas ou explicar por que elas não são válidas As três formas são a o direito natural cosmológico b o direito natural teológico c o direito natural antropológico A primeira ligase ao cosmo o universo físico a segunda voltase para Deus a terceira gira em torno do homem Dizem que o direito natural tem origem na própria natureza das coisas na ordem cósmica do universo e daí vem a expressão direito natural isto é buscado na natureza Entretanto se nos aproximarmos das concepções do que é tomado como natureza das coisas verificamos que esta é apenas invocada para justificar uma determinada ordem social estabelecida ou revelar o choque de duas ordens também sociais Notemos por exemplo no primeiro caso a atribuição ao direito natural isto é à natureza das coisas da escravidão naquelas sociedades em que o escravagismo é o modo de produção econômica e portanto a base da estrutura assente No segundo caso temos por exemplo o conflito entre os costumes tradicionais religiosos invocados por Antígona na tragédia grega de Sófocles e a lei da CidadeEstado representada por Creonte Desde este último ponto se esboça a especial tensão do iurisnaturalismo que vive oscilando entre os dois pólos já entrevistos por Mannheim sociólogo alemão e mais recentemente focalizados pelo marxista Miaille o direito natural conservador e o direito natural de combate Porque nota este último autor todos os movimentos sociais fundaram se num Direito que exprimia a sua própria situação e reivindicações Assim é que Miaille vai recomendar um novo direito natural de combate e concentrado na luta de classes e na liberação de grupos oprimidos Temos insistido invariavelmente nesta referência a classes e grupos e é preciso explicar que ela distingue o aspecto básico da oposição entre uma classe dominante espoliadora e uma classe dominada espoliada paralelamente à oposição entre grupos opressores e oprimidos esta última oposição não estando diretamente ligada à outra Assim é que Miaille recorda os conflitos de grupos em termos de minorias exigindo o direito à diferença um contraste colateral de alcance jurídico mas não vinculado à questão sócio econômica apenas minorias regionalistas minorias sexuais minorias étnicas Assim como deixamos registrado quanto às ideologias o contraste não representa sem mais um choque classístico podendo dissolverse ou subsistir independentemente da troca do modo de produção Citamos por exemplo o machismo que mantém a opressão da mulher ou dos homossexuais em sociedades cuja base econômica já alterou o sistema classístico e a espoliação maior da injusta distribuição da propriedade As limitações que um novo direito natural apresentaria serão indicadas no final deste capítulo mas de qualquer forma o direito natural de combate pretende fundar um quarto modelo que se poderia chamar de direito natural históricosocial e que nada tem a ver com os tipos tradicionais cosmológicos teológico e antropológico Vimos em que consiste a forma cosmológica a teológica pretende deduzir o direito natural da lei divina Esta iria descendo como que por uma escada Deus manda o sacerdote abençoa o soberano o soberano dita a particularização dos preceitos divinos em suas leis humanas e o povo A este só cumpriria aceitar crer e obedecer É claro que sempre fica admitida em tese a possibilidade dum erro dedutivo em que a lei humana por malícia ou cegueira em vez de concretizar os vagos preceitos da lei de Deus disporia escandalosamente contra esses preceitos Mas isto é minimizado seja porque como em São Tomás de Aquino ao poder social é deferida uma larga discrição no estabelecer o justo particularizado é a tradição que vem de Aristóteles seja porque como em Santo Agostinho se admite que criado e mantido pela Providência Divina o poder social extrai desta investidura uma espécie de apoio moral de Deus para todos os seus abusos O que Deus criou e mantém se entende que exprime o que Deus quer e consagra De outra forma o Senhor destronaria o soberano com um divino pontapé no traseiro Em nosso tempo o filósofo católico Maritain demonstra bem a tendência a minimizar o conflito entre lei divina e lei humana recomendando ao oprimido a coragem de sofrer a paciência diante da dominação interna ou externa o Estado que oprime o povo ou imperialismo que submete este último e até o Estado à dominação estrangeira Assim à força física prepotente nada mais se oporia do que a força moral o que é muito conveniente para o dominador que jamais deu bola para tal superioridade Aliás o direito natural teológico prevalecendo na Idade Média servia muito bem à estrutura aristocráticofeudal geralmente fazendo de Deus uma espécie de político situacionista Mesmo quando a Igreja e o soberano não esqueçamos de que a Igreja era Estado também andavam às turras estas pugnas de gigantes poderosos nada tinham a ver com o povo nem contestavam as bases espoliativas da ordem sócioeconômica Era de novo uma cobertura ideológica para o modo de produção Tanto assim que a burguesia no alvorecer do capitalismo já tendo adquirido o poder econômico partiu para a conquista do poder político adotando outro tipo de iurisnaturalismo o mesmo que as nações emergentes como a Holanda invocavam pata quebrar a partilha do mundo entre as nações católicas dentro da linha traçada pelo Vaticano A contestação burguesa da ordem aristocráticofeudal internamente assim como do sistema internacional montado recorreu então à forma de direito natural que denominamos antropológico isto é do homem que extraía os princípios supremos de sua própria razão de sua inteligência Estes princípios e de novo não por mera coincidência eram evidentemente os que favoreciam as posições e reivindicações da classe em ascensão a burguesia e das nações em que capitalismo e protestantismo davam as mãos para a conquista do seu lugar ao sol Está visto que chegando ao poder a burguesia como já acentuamos descartou o seu iurisnaturalismo passando a defender a tese positivista já tinha conquistado a máquina de fazer leis e por que então apelar para um Direito Superior Bastava a ordem estabelecida Por outro lado no plano internacional as novas correlações de forças iam formarse para a ordem em que o liberal o burguês o capitalista ontem execrados ganhassem trânsito extravasassem nos imperialismos e acabassem até obtendo o reconhecimento do Vaticano que repitamos é também um Estado e como Estado se tornou capitalista Na verdade o direito natural não é tanto imobilista apesar de suas pretensões a critério eterno e fixo de avaliação jurídica como bastante manhoso ele sempre deixa lugar para as concretizações em que os preceitos atribuídos à natureza a Deus ou ao próprio esforço racional tendem a conciliar o padrão absoluto e as leis vigentes Todavia o mero dualismo oposição de direito natural e direito positivo tem uma certa dinâmica que ao menos conserva a idéia potencial duma confrontação É por isto aliás que nas horas de intoleráveis tensões em que o poder instituído vai aumentando a intensidade da prepotência e sua autoridade desgastada vai também fazendo aumentar a intensidade da contestação costuma reaparecer com especial atrativo o velho direito natural Já se falou por isto em eterno retorno diante da longevidade iurisnaturalista Na falta duma visão dialética o jurista não sabe para que apelar quando aparecem as situações monstruosas que a ninguém mais permitem engolir os sapos inevitáveis os sapos tornaramse indeglutíveis Assim é que na Alemanha Ocidental durante o nazismo para a resistência ou após ele para a restauração liberal democrática o iurisnaturalismo ressurgiu com extraordinário vigor Depois de ficar subjacente a todo o julgamento dos criminosos levados ao Tribunal de Nuremberg onde foram julgados após a 2ª Guerra Mundial os dirigentes nazistas o direito natural serviu de fundamento a sentenças da Justiça alemã anulando velhas decisões baseadas em leis nazistas e empolgou as cátedras universitárias daquele país O Direito de resistência à tirania o Direito à guerra de libertação nacional o Direito à guerra justa em geral uma certa preocupação com a legitimidade não só a legalidade do poder têm nítido sabor iurisnaturalísta e esta ideologia se revigora como dissemos a todo instante de maior tensão O mal é que nela as questões vêm tratadas no plano ideal da abstração no sentido de que não conseguem ligar a elaboração teórica aos grupos classes dominações e impulsos libertários sistemas de normas estatais e pluralidade de ordenamentos listo é outros conjuntos de normas jurídicas nãoestatais institucionalizadas e funcionando em círculos de atuação dos grupos oprimidos e classes espoliadas Por outro lado o direito natural fica preso à noção de princípios imortais da natureza de Deus ou da razão humana e quando eles descem à particularização tendem a confundirse com o direito positivo do Estado ou dos grupos e classes prevalecentes Apesar de tudo é possível distinguir naquela dinâmica dos dois direitos o que aparece na ordem estatal ou costumeira e o que surge como direito superior um germe da contestação possível que torna o direito natural afeiçoável às reivindicações supralegais acima das leis a até contra elas e em conseqüência muito propício à utilização nas horas de crise do direito positivo pela classe e grupos dominados É por esse motivo como vimos que Mannheim fala num direito natural progressista perante o conservador e autores marxistas como Ernst Bloch ou Miaille não hesitam em adotálo sob o ângulo dum direito natural de combate Ernst Bloch chegou mesmo a fazer uma longa investigação histórica sobre essa ideologia procurando mostrar que o germe de contestação a que aludimos é muito mais forte do que comumente se pensa Entretanto permanece o dualismo direito positivo e direito natural como uma antinomia uma contradição insolúvel que parte o Direito num ângulo que só vê a ordem e noutro que invoca uma Justiça cujo fundamento não é adequadamente assentado nas próprias lutas sociais e sim em princípios abstratos Por esse motivo era perfeitamente compreensível a irritação de Engels contra Lassalle quando este cogitava dum Direito absoluto uma idéia de Direito pairando acima do processo histórico e suas lutas concretas Engels afirmou então que tal idéia do Direito nada mais era do que o processo histórico mesmo sua direção superadora e libertadora Mas decerto aí podemos discernir não só a práxis dos grupos e classe em ascensão porém na medida em que estas formulam os objetivos de sua luta uma série de reivindicações jurídicas também Isto desde que por Direito não se tome nem o que a ordem dominante estabelece nem um conjunto de princípios que não revelam bem de que fonte extraem substância e validade e por que mudam historicamente ficando uns superados como vimos quanto ao dar a cada um o que é seu e outros aparecendo no horizonte como por exemplo o direito de todos a um nível de vida adequado que emerge na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 consagrando um princípio ganho nas lutas sociais mais modernas Só um fôlego dialético poderia unificar dentro da totalidade do processo histórico e na sua perpétua transformação os aspectos polarizadores de positividade e Justiça de elaboração de normas e padrão avaliador da legitimidade Muitos autores têm reconhecido como Dujardin e Michel que ainda não existe uma teoria dialética de Direito perfeitamente elaborada e que é insuficiente o positivismo de esquerda a equiparação do Direito às normas estatais às leis com o acréscimo de uma explicação em geral bastante mecanicista deste direito pela chamada infraestrutura sócioconômica Dentro desta perspectiva o máximo que se pode fazer é o uso alternativo do direito positivo e estatal como propõem Barcellona e seus seguidores isto é explorar as contradições do direito positivo e estatal em proveito não da classe e grupos dominantes mas dos espoliados e oprimidos A tarefa é de não pequena importância mas também não supre as lacunas da concepção positivista do Direito que analisamos neste capítulo E foi isto que viram os marxistas de outra orientação isto é os que voltaram para um novo tipo de direito natural Entretanto já apontamos o problema de um novo direito natural o iurisnaturalismo de combate ele quer evitar o tipo fixo abstrato de princípios eternos mas não consegue nem dar uma noção global de Direito em que positividade e Justiça se entrosem nem mostrar de que modo o processo histórico mesmo ganha um perfil jurídico O inconveniente aliás vem de que tratam de dois direitos o positivo e o natural sem reperguntar o que é Direito como noção que unifique esses tipos opostos ou seja não chegam à visão históricosocial do Direito mas apenas à oposição históricosocial de dois direitos que não sabem muito bem por que seriam jurídicos Isto fica muito claro em Miaille quando ele fala em direito natural de combate pondo assim entre aspas a palavra Direito como se não fosse um Direito propriamente dito e traindo um vestígio do positivismo de esquerda que só vê Direito sem aspas no direito estatal Em síntese o próprio exame da problemática a nível ideológico mostrounos que o direito positivo é insustentável sem um complemento que o jurista vai buscar no direito natural com todos os defeitos deste porque não vê onde se busque outro apoio nada obstante indispensável Para realizar a nova construção seriam necessários outros materiais e sobretudo outra atitude propriamente dialética que por sêlo não tolera aquela antinomia contradição insolúveis de direito positivo e natural tomados como unidades isoladas estanques e desligadas da totalidade jurídica na totalidade maior históricosocial Numa página célebre a que já fizemos referência João Mangabeira notava que o Direito existe antes do Estado nas sociedades primitivas e que mesmo admitindo o desaparecimento do Estado numa sociedade em que o governo das pessoas seja substituído pela administração das coisas e pela direção do processo de produção o que desaparece é o Estado não o Direito Entretanto se quisermos demonstrar o que este vem a ser nessas transformações da sociedade primitiva à sociedade futura antes do Estado perante o Estado e até depois do Estado qual o fio da meada As ideologias jurídicas deramnos com seus reflexos distorcidos uma visão dos problemas que surgem quando o homem pensa abstratamente sobre o Direito esses problemas entretanto constituem a imagem da realidade da práxis humana da atividade histórica e social do homem no seu ângulo jurídico O caminho para corrigir as distorções das ideologias começa no exame não do que o homem pensa sobre o Direito mas do que juridicamente ele faz Poderemos chegar nisto à dialética do Direito não já como simples repercussão mental na cabeça dos ideólogos porém como fato social ação concreta e constante donde brota a repercussão mental A Sociologia Jurídica é a única base sólida para iniciarmos a nova reflexão a nova Filosofia Jurídica a fim de que esta última não se transforme num jogo de fantasmas ideológicos perdendo nas nuvens o que vem da terra As ideologias jurídicas são filosofia corrompida infestada de crenças falsas e falsificada consciência do que é jurídico pela intromissão de produtos forjados pelos dominadores Para uma concepção dialética do Direito teremos de rever antes de tudo a concepção dialética da sociedade onde o Estado e o direito estatal são a bem dizer um elemento não desprezível mas secundário É ali também que se há de precisar e desentortar a consideração do que apesar de tudo ficou bem claro no exame das ideologias jurídicas e que consiste nas duas vertentes do Direito não como elas continuam a focalizar os dois direitos opostos e separados a positividade manifestada em conjuntos de normas vários conjuntos que conflitam e vêm de classes e grupos em luta e os padrões de legitimidade que nos permitem assumir posição ante aqueles conjuntos sem nos perdermos nalguma idéia de Justiça que voa nas nuvens ou nos voltarmos para uma Justiça Social ainda vaga uma resultante do processo histórico da luta de classes e grupos que não sabe distinguir a face jurídica desse processo O primeiro passo rumo à concepção dialética do Direito será deste modo a Sociologia Jurídica O filósofo alemão Erich Fechner falava na Filosofia Jurídica enquanto Sociologia e metafísica do Direito Para vencer a metafísica do Direito que é ideologia também vamos traçar o esboço duma Sociologia Jurídica que nada fique devendo por outro lado à metafísica da Sociedade uma apresentação desta que utiliza idéias abstratas e falsas crenças mas ao contrário se funde numa ciência dos fatos sociais Sociologia e Filosofia Jurídica se completam pois como assinala Marilena Chauí inspirandose em Merleau não há razão para uma rivalidade entre filósofos e sociólogos os primeiros considerandose possuidores da verdade porque defensores da idéia e os segundos reivindicando para si a posse do verdadeiro porque conhecedores do fato Esta rivalidade priva o filósofo do contato com o mundo e entregao às ideologias e priva o sociólogo da interpretação do sentido de sua investigação o que conduz a sociologia a outros desvios ideológicos também A concepção dialética há de repensálo em totalidade e transformações numa Filosofia Jurídica que é Sociologia e não sociologismo positivista uma ideologia que já criticamos aqui e Ontologia do Direito no sentido que evocamos inicialmente com Lukács e que nada tem de metafísico Para a visão dialética do Direito é necessária uma Sociologia dialética No capítulo seguinte procuraremos explicar em que consiste esta Sociologia SOCIOLOGIA E DIREITO Vimos que as ideologias refletem certas características do Direito embora deformadas porque tendem a polarizarse em torno de duas visões unilaterais e redutoras Os positivistas conservam a tendência a enxergar todo o Direito na ordem social estabelecida pela classe e grupos dominantes diretamente com suas normas costumeiras ou através das leis do Estado Os iurisnaturalistas insistem na necessidade dum critério de avaliação dessas mesmas normas para medirlhes a Justiça isto é a legitimidade da origem e conteúdo entretanto não conseguem determinar satisfatoriamente o padrão da medida Vimos em seguida que só um fôlego dialético poderia superar a oposição assim criada entre o direito positivo castrador e o direito natural que muitas vezes se limita a legitimar a ordem posta e imposta por falta dum real e autêntico estalão crítico A antítese ideológica direito positivo direito natural só se dissolverá como acentuamos quando for buscado no processo históricosocial aquele estalão Mas isto não importa em identificar simplesmente Direito e processo histórico e sim procurar neste o aspecto peculiar da práxis jurídica como algo que surge na vida social e fora dela não tem qualquer fundamento ou sentido Em síntese colhemos na abordagem das ideologias certo material preliminar que agora cumpre rever sem distorções e entrosado na totalidade em movimento onde se manifesta a procurada essência do fenômeno jurídico Não se trata é claro de recapitular na sua imensa variedade o Direito de todos os povos um por um através dos tempos inclusive porque este recorte nos daria uma série de retratos mais ou menos sugestivos mas não o processo de formação transformação e substituição de normas jurídicas bem como dos critérios por que elas podem ser avaliadas sem recurso a medidas ideais prévias fixas e eternas A essência do Direito para não se perder em especulações metafísicas nem se dissolver num monte de pormenores irrelevantes exige a mediação duma perspectiva científica em que os retratos históricos se ponham em movimento seguindo o modelo geral da constituição de cada uma daquelas imagens A História é um labirinto onde nos perderemos às voltas com fatos isolados se não carregarmos uma bússola capaz de orientarnos a respeito da posição de cada um deles na estrutura e no processo Contudo entre a variedade dos fatos e o esquema condutor também não podemos trocar a bússola por um mapa préfabricado que deseje ver em cada episódio a confirmação fatal dum roteiro teórico É por isto que Engels já o lembramos combatia os que se limitavam a submeter os fatos sociais a esquemas prévios e mecânicos tachandoos de ignorantes e preguiçosos por chegarem à História com uma pseudociência feita e acabada Mas por outro lado nem Marx nem Engels jamais sustentaram que bastasse colher ao acaso fatinhos soltos para com isto chegar à ciência visada Eles ao contrário procuravam a conexão necessária de fatos relevantes seguindo uma hipótese de trabalho Esta formulada ao contacto dos processos sociais num exame preliminar era depois submetida a pacientes e constantes verificações metódicas Desta forma os modelos não passavam nem deviam passar de arranjos duma primeira abordagem depois conferidos e aperfeiçoados perante os fenômenos mesmos Basta lembrar por exemplo como ilustração dessa troca fenômenos hipótese de trabalho verificação ante os fenômenos reajuste da hipótese os tipos de modo de produção comunidade primitiva escravagismo feudalismo capitalismo socialismo corrigido pelo encontro do modo de produção asiático Este último emergia na investigação histórica e Marx o registrou como tipo especial embora até hoje alguns de seus discípulos o omitam carregando os cinco outros como um fetiche dogmático a que tem de ajustar se tudo o que for encontrado assim como teriam de chegar a um comunismo final que é simples previsão isto é outra hipótese neste caso prefiguradora e também sujeita à prova histórica Naquele procedimento circular que entra no ofício histórico trazendo hipóteses e modelos resultantes de exame anterior sobre o material acumulado para submetêlos depois ao crivo de novas verificações Marx e Engels faziam História Social isto é voltavam à História com a bússola duma Sociologia Não nos referimos aqui á Sociologia burguesa tal como a concebeu Comte na Física Social mas à Sociologia Histórica de que precisamente são precursores Marx e Engels embora não usassem esta etiqueta Porque é Sociologia a disciplina mediadora que constrói sobre o monte de fatos históricos os modelos que os arrumam com a ressalva de emendas ao novo contacto com o processo A História registra o concretosingular a Sociologia o aborda na multiplicidade generalizada em modelos segundo os traços comuns Assim a análise da Revolução Francesa em suas causas e peripécias apresentase ao historiador que a reconstitui cientificamente Mas por outro lado registrando o fenômeno duma revolução em especial e para não se perder na massa informe de relevâncias e irrelevâncias de dados importantes e insignificantes o historiador há de empregar os modelos que a Sociologia ministra no exame coordenado das revoluções em geral Isto lhe permitirá inclusive mostrar que alguns episódios cujos protagonistas chamam de revolução na verdade não o são como por exemplo no caso duma revolução cujos propósitos e comportamento fossem manter e resguardar uma estrutura Um golpe de Estado de índole conservadora não é uma revolução é uma forma brusca de conservar As abordagens histórica e sociológica são portanto complementares e se escoram reciprocamente Por isso mesmo toda História realmente científica e não apenas crônica de fatos isolados ou biografias coordenadas de homens ilustres é História Social e toda Sociologia realmente científica e não apenas manipulação ideológica de formas ideais é Sociologia Histórica empenhada sempre em determinar a origem os antecedentes das formas sociais que não são desovadas no mundo por algum espírito criador ou líder excepcional nem deduzidas pela inteligência pura de algum teórico de gênio Aplicandose ao Direito uma abordagem sociológica será então possível esquematizar os pontos de integração do fenômeno jurídico na vida social bem como perceber a sua peculiaridade distintiva a sua essência verdadeira Cabe entretanto uma ressalva aqui sobre duas maneiras de ver as relações entre Sociologia e Direito a que origina uma Sociologia Jurídica e a que produz uma Sociologia do Direito Estas duas expressões são comumente tomadas como sinônimas porém a questão é mais séria do que um problema de rótulo Elas constituem abordagens diferentes apesar de interligadas num intercâmbio constante O fato é que resulta possível olhar o Direito sociologicamente sob mais de um ponto de vista e está nesta possibilidade a diferença das abordagens citadas Falamos em Sociologia do Direito enquanto se estuda a base social de um direito específico Por exemplo é Sociologia do Direito a análise da maneira por que o nosso direito estatal reflete a sociedade brasileira em suas linhas gerais de poucas contradições e mínima flexibilidade dado o sistema ainda visceralmente autoritário de pequenas aberturas controladas como um queijo suíço perpetuamente a enrijecerse no receio de que os ratinhos da oposição alarguem os buracos Toda aquela velha estrutura então se desvenda como elemento condicionante que pesa sobre o país obstaculizando as remodelações sob a pressão simultânea das classes e grupos nacionais dominantes e das correlações de forças internacionais interessadas em que ao imperialismo não escape tão gordo quinhão Sociologia Jurídica por outro lado seria o exame do Direito em geral como elemento do processo sociológico em qualquer estrutura dada Pertence à Sociologia Jurídica por exemplo o estudo do Direito como instrumento ora de controle ora de mudança sociais da pluralidade de ordens normativas decorrente da cisão básica em classes com normas jurídicas diversas no direito estatal e no direito dos espoliados formando conjuntos competitivos de normas no contraste entre o direito dessas classes até de grupos oprimidos como vimos e o que a ordem dominante pretende manter É claro repetimos que a Sociologia do Direito e a Sociologia Jurídica realizam uma espécie de intercâmbio permanente mas é difícil admitir que sejam idênticas as duas tarefas científicas À base do que acima ficou assentado quanto à diferença entre Sociologia e História diríamos inclusive que a Sociologia do Direito como estudo particular de casos sociológicos é mais propriamente capítulo da História Social História Social do Direito no que a nós interessa aqui e a Sociologia Jurídica é capítulo da Sociologia Geral versando sobre o aspecto jurídico da vida em sociedade De qualquer forma a Sociologia Geral ou Jurídica também não é uma disciplina unívoca de um sentido ou direção apenas já que nesta ciência há diferentes orientações que correspondem ao posicionamento do cientista no processo históricosocial em que ele é simultaneamente ator e observador Esta divisão notemos de passagem é apenas mais clara nas ciências sociais onde o homem também está mais diretamente empenhado porém ela existe em todas as ciências traduzindo interferências ideológicas a que nenhuma escapa Nas matemáticas por exemplo racionalismo empirismo e operacionalismo defrontamse como diferentes concepções produzindo diversos resultados como é o caso da admissão ou negação da estrutura axiomática proposições que parecem racionais evidentes e eternas desafiada pela dialética segundo a qual já se vê o declínio dos absolutos lógicos Da mesma forma há finalismos e vitalismos que desafiam a concepção lógicoestatística dos fenômenos estudados pela Biologia com a séria conseqüência interna de que defendem a existência de leis teleonômicas agrupamento segundo um sentido ou finalidade negadas entretanto pelos que discernem nos fatos biológicos apenas relações estatísticas sem finalidade alguma A análise dos vínculos e suas mediações desde a situação do cientista e sua quota de ideologia até o padrão das doutrinas e teorias por tal situação afetadas é objetivo da Sociologia do Conhecimento que constitui sob certo aspecto Sociologia ao quadrado Partindo do fato de que o conhecimento qualquer que seja o sentido é sempre obra social com participações individuais a Sociologia do Conhecimento cujas raízes mergulham na contribuição marxista procura a razão e o modo de influência do engajamento expresso ou implícito do homem no saber inclusive sociológico que ele produz Faz por isto a Sociologia da Sociologia também isto é uma Sociologia como dissemos ao quadrado Já nos referimos no capítulo sobre ideologias à verdadeprocesso isto é à verdade que se desenvolve sem chegar nunca a um conhecimento absoluto e irretocável o que não desmoraliza nem invalida as verdades relativas e possíveis a cada etapa uma vez que nelas podemos optar como observava Adam Schaff pela que mais amplamente explica e compreende os fenômenos e é portanto real e objetivamente a que à altura dada se pode ver e proclamar com mais acerto Ademais o avanço a superação do ponto de vista dialético não envolve o aniquilamento mas a ultrapassagem que conserva os aspectos positivos e as conquistas de etapas anteriores Sob tal ângulo é muito instrutivo notar a aplicação prática deste princípio demonstrando a sua eficácia tal como faz Marx nO Capital quando vai buscar a nova e mais completa focalização da maisvalia num roteiro que incorpora e transcende as teorias anteriores de mercantilistas fisiocratas intuições de Adam Smith colocações de Ricardo e assim por diante Um saber definitivo global e irretocável é mistificação de ciência degenerada que transfere o ardor religioso das revelações divinas dos místicos para a boca dos profetas duma outra religião o cientificismo Esta põe no lugar da Bíblia a Enciclopédia Britânica hoje aliás americana trocando de edição à medida que os novos teólogos vão trocando de teoria É possível discernir a esta altura duas posições fundamentais na Sociologia Geral e portanto na Sociologia Jurídica ambas fortemente sobrecarregadas de elementos ideológicos Um dos mais finamente matreiros dentre os sociólogos burgueses Ralf Dahrendorf definiu aquelas posições como a Sociologia da estabilidade harmonia e consenso e b Sociologia da mudança conflito e coação A primeira diríamos nós é a Sociologia do burguês mais franco a segunda pertence à pequena burguesia que se dedica às tempestades num copo dágua ou melhor às revoluções num copo de uísque A Sociologia a da estabilidade harmonia e consenso poderia resumirse na forma seguinte Em determinado espaço social isto é numa certa base geográfica onde se travam as relações sociais uma variedade de grupos estabelece determinados padrões estáveis de relacionamento Este relacionamento é governado por normas escalonadas numa faixa de crescente intensidade As normas isto é os padrões de conduta exigível sob ameaça de sanções os meios repressivos que vão das sanções difusas não organizadas às sanções organizadas com órgão próprio e ritual específico de aplicação distribuemse em usos práticas consagradas pela mera repetição costumes práticas consagradas pela força da tradição ativa e militante como necessidade coletiva e portanto obrigação indeclinável de todos folkways costumes peculiares que definem o modo de ser dum povo e mores o setor mais vigoroso dos costumes julgados indispensáveis para a ordem social estabelecida e que por isso mesmo se resguardam com normas e sanções mais severas e melhor organizadas O uso pode ser por exemplo vestir certo traje adequado a locais e ocasiões Um costume pode ser por exemplo a deferência aos mais velhos nos folkways pode estar por exemplo a valorização dos mais velhos ou dos mais moços como orientadores sábios ou condutores vigorosos nos mores residem por exemplo as relações de propriedade ou as formas de acesso ao poder e governo Está visto que no modelo a considerado aqui todas essas normas pertencem a um só bloco presumido consensual isto é que teria sido adotado pelo consentimento da coletividade O arcabouço de normas fixase nas instituições sociais armação estabilizada e sistemática das práticas normadas formando um tipo de organização cuja legitimidade é também presumida e que por isso mesmo se reserva os instrumentos de controle social para evitar que a pirâmide se desconjunte e vá por terra Estes meios materiais de controle revestem a ordem com sistemas de crenças ideologias consideradas válidas úteis e eminentemente saudáveis e que são por assim dizer a alma das instituições estabelecidas isto é o espírito da ordem social com a máscara de cultura do povo Esta pretensão cultural da classe dominante identifica as suas conveniências e princípios com os da sociedade inteira tal como nas autocracias eles se encarnam no Rei Luiz XIV é sabido afirmava O Estado sou eu Mais pitorescamente o czar Paulo da Rússia depois dum porre gigantesco olhava a cara no espelho ao despertar e afirmava O Império amanheceu de ressaca assim como se os efeitos da bebedeira se comunicassem a todos os seus súditos Neste contexto qualquer tipo de mudança social é limitado e controlado e os ataques de qualquer dissidência considerados aberrações do comportamento patologias de subculturas que se apresentam como problema a ser resolvido pela reeducação ou sendo esta ineficaz na porrada mesmo Esta se justifica pela cultura é exigida pela defesa das instituições e exercida pelo direito que neste caso é visto apenas como a parte mais atuante e violenta dos mores repressivos atribuídos ao povo e na verdade ligados à classe e grupos dominantes Está aí a raiz social dos positivismos jurídicos Eles divinizam a ordem e fazem do jurista o servidor cego e submisso de toda e qualquer lei A OAB recentemente no seu projeto de reforma do ensino jurídico definiu bem o positivismo como uma das pragas universitárias nacionais Para destacar melhor toda a construção do modelo a desta sociologia da estabilidade harmonia e consenso vejamos como ela se apresenta num esquema e à luz das explicações dadas Está visto que aqui se omitem não à toa a base sócioeconômica as classes radicalmente contrapostas espoliada e espoliadora a existência de grupos oprimidos a contestação válida as normas de espoliados e oprimidos seus Direitos e o reduzido direito fica oscilando entre as posições I e II normalmente nas leis e costumes consagrados pelo Estado enquanto este é o lugar social do controle exercido pela classe e grupos dominantes mas excepcionalmente se a classe e grupos dominantes receiam que os seus representantes no poder estejam muito débeis ou sensíveis à reforma de base o sistema reassume diretamente invocando um direito supralegal isto é as normas supremas da organização social estabelecida até contra a lei maior que é a Constituição Obtido o equilíbrio tornam à função vigilante restabelecendose um novo esquema legislativo o direito positivo intocável depois do remanejamento que o enrijeceu Por outro lado também não aparece nesta Sociologia o influxo externo a presença de forças estabilizadoras da ordem conveniente ou desestabilizadoras de qualquer ordem mais aberta à mudança mais flexível e porosa de acordo com os interesses imperialistas da área de influencia Recentemente um órgão conservador imprimia a advertência de que a autodeterminação dos povos tem limites e que o sistema continental isto é os Estados Unidos não poderia tolerar qualquer irrupção socialista ali bem pertinho de seu dedão do pé geográfico Tudo isto recobre mais fundos interesses econômicos as semicolônias colônias disfarçadas por soberanias de fachada não devem escapar à metrópole O segundo modelo isto é a Sociologia b da mudança conflito e coação representa uma espécie de negativo fotográfico do modelo anterior a Enquanto este último é centrípeto aquele outro é centrífugo mas centrífugo com as mesmas lacunas e escamoteações um sumiço disfarçado e engenhoso de elementos essenciais de tal sorte que em vez de dilatar a estrutura conservadora é por ela absorvido como veremos sem maior dano para a dominação Segundo o modelo b o espaço social é ocupado por uma série de grupos em conflito em relação cuja instabilidade decorre de séries múltiplas de costumes folkways e mores divergentes e competitivos tornando precário e de legitimidade muito discutível o bloco dominante de normas sobretudo porque as subculturas engendram contrainstituições Estas são animadas por verdadeiro ímpeto contracultural inassimilável à cultura dominante Conseqüentemente a organização social estabelecida tem de haverse com ataques constantes de anomia contestação das normas impostas pela ordem prevalecente que reivindica mudança em padrões de comportamento abertamente desafiador e também instituído em setores mais ou menos amplos da sociedade não oficial Tal análise força a ordem estabelecida a desmascararse como nua coação mas já veremos não conduz os desafios à raiz espoliativa do poder classístico nem à ligação deste com a opressão de grupos O modelo a é muito favorecido pelas condições de vitalidade e equilíbrio da estrutura queremos dizer assim que ele medra nas ideologias sociológicas desde que peculiares condições de crise contradições aguçadas decadência do sistema ainda não tenham precipitado a conscientização à maneira de Hamlet na tragédia de Shakespeare de que há algo de podre no reino da Dinamarca ou em qualquer outro reino Não à toa o modelo a surge como o mais antigo na Sociologia burguesa Esta nasceu como se sabe na crista do capitalismo recémchegado ao poder Foi uma espécie de digestão científica dos princípios sociais que à burguesia convêm e que na sociedade ela firmara com pretensões à eterna duração A época de Comte reputado fundador da ciência sociológica era o marxismo em elaboração e não a física social comteana que preparava o amadurecimento da Sociologia como ciência e fazia estudo sociológico embora sem adotar o rótulo especial Está visto que o marxismo permanecendo como a grande influência sobre o pensamento sociológico mais avançado embora não fechado irretocável e dogmático como desejava o sectarismo de alguns não pertence ao modelo a nem ao b A contribuição autêntica do marxismo nãodogmático nem os seus criadores o desejavam como tal vai introduzirse num terceiro modelo que começa a despontar na fase atual quando já o dissemos noutro escrito o marxismo ultrapassa a fase católica com papas infalíveis dogmas igreja e igrejinhas Santo Ofício index de livros e idéias proibidas e até Inquisição Os próprios marxistas hoje tendem ao protestantismo e não ao catolicismo isto é querem ler e interpretar a Bíblia sem tutores distribuemse em diferentes seitas interpretam livremente as escrituras emendam avançam e nisto se mantêm mais fiéis ao espírito da construção marxiana que é de livre exame do que os teólogos presos aos textos às vezes expurgados O modelo b ainda é burguês apenas pequeno burguês Foi o agravamento dá crise social do capitalismo que mostrou as rachaduras no edifício a de consenso e estabilidade mitológicos Mas nesta outra visão b tanto quanto na a são igualmente escamoteados elementos essenciais que a análise marxista já estabelecera à margem da ciência sociológica das universidades tradicionais e seus pequenos grupos de contestação inconseqüente O modelo a é em síntese a resposta triunfalista da burguesia assente antes de se precipitar na crise de que não pode mais sair O modelo b traduz apenas a inquietação de superfície da pequena burguesia e pode exprimirse num gráfico paralelo ao do outro modelo mais ou menos desta forma Neste panorama o Direito perde a nitidez positivista do modelo a ganhando um difuso colorido iurisnaturalista dada a insistente reivindicação de direitos opostos de grupos contrários à law and order a lei e a ordem do establishment o sistema dominante Assim haveria b I um direito estatal assentando num direito da organização social b II e um outro direito expresso nas contrainstituições b III Mas tal como no iurisnaturalismo os padrões de crítica e avaliação das normas dominantes continuam muito vagos e assim como os tipos tradicionais falavam numa certa ordem justa meio nebulosa a contestação do modelo b fala em certa liberdade anárquica dos grupos de timbre individualista cada um procurando a sua que pode escandalizar o burguesão quadrado mas é logo absorvida e manipulada pelos mais espertos Com uma das mãos a classe e grupo dominantes reprimem um tanto contraditoriamente mas com a outra chegam a tolerar e até disfarçadamente estimular a contestação desbundada As grandes organizações econômicas inclusive faturam sobre tais curtições barulhentas multicores mas inofensivas à dominação fundamental Não estamos aqui patrulhando as curtições de ninguém achamos até legítimo curtir mas é preciso não confundir isto com um tipo conseqüente e eficaz de contestação O que há de comum nos modelos a e b é a tentativa consciente ou inconsciente de afastar o aprofundamento dialético o modelo a esconde a evidência da espoliação e opressão o modelo b omite ou despreza a espoliação fala muito em opressão mas opõe a ela um circo em lugar dum programa coerente de ação e objetivos nítidos de reorganização social a começar pelo fato de que a reorganização pressupõe a idéia de ordenação a que é rebelde o individualismo anarquista estéril e afinal tendente a ressacas conformistas depois dos porres de agitação sem objetivo E um nilismo coreográfico e tecnicolor que não incomoda mais o poder dominante do que o bichodepé do matuto dá até uma coceirinha voluptuosa A inquietação pequenoburguesa de superfície não conduz a nada Mais ela contribui para aquele domínio burguês dissolvendo os mais agudos instrumentos conceituais que a dialética movimenta assim reforça a operação ideológica de desatar a noção de classe das contradições e oposições geradas pelo modo de produção capitalista Por isto é assimilável aos padrões tradicionais O sociólogo alemão Weber disfarçava a idéia de luta de classes lisonjeando a estrutura capitalista com uma suposta expansão crescente da classe aquisitiva emburguesada O seu astuto patrício atual Dahrendorf diante da crise que desmente esse otimismo weberiano volta à idéia de que um neocapitalismo bonzinho houvesse desfeito o conflito radical adornando isto com a aceitação liberal do modelo b que é precisamente o tipo da contestação sem dentes Assim leva a vantagem de explicar a crise pelo que menos importa e sem conduzila ao condicionamento básico vindo do modo de produção Dá portanto um ar de tolerância ao mesmo esquema estabelecido O modelo b não cancela o modelo a e por isso mesmo Dahrendorf sugere que sejam empregados pelo sociólogo os dois A incorporação do modelo b pelo modelo a tem todas as largas facilidades inerentes ao superficionalismo do tipo de contestação mais farrista do que autêntico Assim os sociólogos conservadores na aparência de modernidade não têm o receio de cravar mais este prego na ferradura do seu cavalo de batalha teórico ele dá às cavalgadas de classes e grupos dominantes junto com o rei príncipes e duques um alegre colorido de bobos da corte Se por momentos o mau humor do poder os chicoteia prende ou expulsa noutras horas eles até são bemvindos para quebrar o tédio da corte e a monotonia das bajulações dos cortesãos Por outro lado absorvendo teoricamente o modelo b os sociólogos burgueses mais lúcidos procuraram mostrarse na onda por dentro gente boa sem maiores riscos de vez que põem no traje negro da direita umas lantejoulas emprestadas pela esquerda que late mas não morde Esses dois modelos a e b não poderiam servir evidentemente à visão social dialética nem por via de conseqüência à análise da dialética social do Direito Entretanto aqui poderemos ver de novo como as ideologias mesmas no caso as sociológicas emprestam á abordagem mais exata elementos que souberam registrar embora com deformações Substancialmente nos apelos centrípeto modelo a e centrífugo modelo b há uma parte da verdade Nenhuma estrutura social jamais se formaria sem alguma força de coesão e estamos vendo aí que elas se formam e atuam até com o mais sufocante vigor Portanto o modelo a compendiando a visão conservadora demonstra um ponto real de aglutinação existe uma ordem na estrutura social o que falta na escamoteação burguesa é mostrar donde vem tal ordem e para que ela se impõe A legitimidade presumida é evidentemente um mito e o modelo b se encarrega de quebrar a solenidade da poder com algumas vaias Por mais inconseqüentes que sejam tais apelações elas resultam igualmente sintomáticas isto é apontam dois outros aspectos reais o questionamento da legitimidade e a presença de várias ordens ou séries de normas em contrainstituições e contracultura que denunciam as situações opressivo repressivas Não chegam porém a leválas à raiz da espoliação básica mergulhada nos fundamentos da sociedade com ramificações que atingem o núcleo da cisão de classes privilegiadas e desprotegidas a partir de um modo de produção em que elas se formaram Por outro lado vimos também que o problema social e seu aspecto jurídico não se limitam ao modo de produção isto é como assinalamos com Miaille pode haver opressões não diretamente derivadas do modo de produção nem corrigidas apenas com a sua troca Sobre isto citamos logo no início de nossa exposição as observações muito lúcidas de Marilena Chauí sobre a utopia ilusão de se pensar que mudando o modo de produção toda a questão social e também jurídica está resolvida A tarefa a realizar numa visão da dialética social do Direito exige portanto que se delineie ainda que toscamente para aperfeiçoamento constante um modelo sociológico dialético É o que vamos ensaiar nesta investigação metódica por etapas da essência do Direito quando chegarmos ao capítulo final do nosso itinerário Vamos edificando com andaimes a nossa reconstrução ao cabo eles serão afastados para exibir a construção no termo da jornada e em tal empreendimento dificílimo um pouco já é bastante Está visto que termo significará o ponto final desta obra e não a idéia presunçosa de que se oferece aqui a essência do Direito para não haver mais o que tirar nem pôr em tal abordagem Se ao menos avançamos um tanto se dissipamos em trânsito certos equívocos a que aludíamos no primeiro parágrafo deste livro já não foi de todo inútil o esforço O Direito afinal buscado não é as normas em que se pretende vazálo não confundamos o biscoito e a embalagem pois em tal caso como o positivismo acabaríamos comendo a lata como se fosse a bolacha e tirando estranhas conclusões sobre o sabor consistência e ingredientes de tal produto Aliás não existe uma diferença nítida entre as normas jurídicas e morais porque todas as características distintivas apresentadas se revelam imprecisas isto é tanto aparecem nas normas jurídicas quanto nas morais Não há porém espaço aqui para desenvolver este ponto que temos focalizado em outros escritos nossos O importante é notar que Direito e Moral distinguemse pelo que são independentemente das normas em que se exprimem e cuja forma é bem semelhante há códigos morais há Direito fora das leis por exemplo os chamados Códigos de Ética ou o Direito Internacional A DIALÉTICA SOCIAL DO DIREITO Temos de começar numa órbita muito dilatada porque nenhuma sociedade vive completa e eternamente no isolamento Hoje em dia aliás dáse o contrário com a rapidez do sistema de transportes e de comunicação à distancia o contacto é imediato e universal Não são apenas os jogos de futebol que nos chegam ao vivo ou enlatados pela TV mas toda uma série de imagens significativas geradas no estrangeiro e trazendo inclusive os produtos ideológicos As nações politicamente organizadas e tendo à sua disposição a necessária tecnologia projetamse além das fronteiras com a sua mensagem que vem a desempenhar um papel importante no encadeamento dos fatos sociais E tal mensagem tanto pode ser boa quanto má Desta maneira é que os imperialistas revigoram a sua presença moldando cultura e faturando royalties ao mesmo tempo assim como os povos libertados ou em vias de libertação procuram dar alento ás forças progressistas inspirálas e nelas influir positivamente Por isso mesmo o imperialismo externamente procura fechar os canais e internamente se desencadeiam os mecanismos da censura As dominações modernas daquém e dalém fronteiras é que nos visitam em casa sem bater à porta aparecendo no vídeo que por isto mesmo controlam com a vigilância dum Falcão Esse background penetrante inscrevese na dinâmica das estruturas nacionais porém sua raiz está fora Existe uma sociedade internacional e também nela uma dialética Sua estrutura modelase ademais conforme a própria infraestrutura sócioeconômica cindida nas dominações imperialistas e nas lutas de libertação nacional dos povos colonízados e semicolonizados E a partir deste núcleo que se recortam as áreas de influência com as suas vizinhanças intrometidas A sociedade internacional desenvolve igualmente as superestruturas peculiares onde repercute a correlação de forças e ecoa a divisão dos mundos capitalista socialista nãoalinhado terceiro mundo Desde logo se note é claro que tal superestrutura não está livre de contradições assim como não estão os Estados internamente na dialética de poder e contestação de acomodações e confrontações A infraestrutura internacional é entretanto diferente pois ela se caracteriza pela coexistência pacífica ou violenta de modos de produção distintos ainda mais complicada pelo desigual nível das unidades desenvolvidas ou em vias de desenvolvimento Por outro lado as instituições de âmbito internacional como as internas distribuemse em veículos oficiais e marginais contrainstituições que se articulam entre povos oprimidos a fim de pressionarem o mecanismo perro das outras em função de reivindicações comuns dos que ficam por fora ou por baixo Dentro deste panorama é que surgem as sociedades individualmente consideradas e sujeitas à penetrante interferência do sistema externo As sociedades nacionais têm é claro o seu único e próprio modo de produção a sua infraestrutura é homogênea e em conseqüência dela as classes se dividem já que não estamos aqui considerando as comunidades primitivas Assim é que aparecem o domínio classista e as divisões grupais Mantemos a distinção explicada noutro capítulo para marcar a diferença do posicionamento de grupos como os grupos étnicos religiosos sexuais de bastante importância na dialética do Direito e não diretamente ligados à oposição sócio econômica e jurídica das classes que por outro lado e como veremos continuam a digladiar se mesmo nas sociedades socialistas já implantadas A luta de classes e grupos que cinde o bloco demográfico da população as oposições de espoliados e espoliadores de oprimidos e opressores movimenta a dialética social e nela a vertente jurídica incompreensível e inexplicável fora deste contexto O socialismo é claro envolve em princípio a superação dos conflitos radicais mas entre este compromisso e a realidade dos sistemas socialistas já implantados há de fato um grande fosso mostrando que nem tudo se encaminha sem tropeços para aquele desiderato assim formulado por Bloch o avanço da construção socialista dentro dum quadro de solidariedade aliás na situação presente a palavra solidariedade ganha um matiz irônico Sobre a dupla base interpenetrante das infraestruturas internacional e nacional é que se armam os aspectos derivados e superestruturais de um lado estabelecendo a coesão e de outro a dispersão Se uma sociedade não tivesse o mínimo de força centrípeta para garantir e própria coesão explodiria como bola de borracha soprada pela anarquia se por outro lado não revelasse um coeficiente de forças centrífugas seria como iludidos sempre esperam os donos do poder uma estrutura inalterável e eternamente impeditiva de qualquer mudança verdadeira Daí as visões centrípeta e centrífuga notadas nos esquemas A e B capítulo 4 que entretanto sonegam a dupla base já referida sem a qual não se explica em função de que a estabilidade e a mudança constantemente se defrontam e conflitam com maior ou menor intensidade isto é conforme se trate da estrutura jovem e ascendente ou de estrutura caduca trocando esta em ranzinzice e prepotência o que lhe falta em energia progressista e criativa Ponhamos então num ramo as forças centrípetas Travamse as relações sociais dentro do modelo infraestrutural estas relações adquirem certa uniformidade e a classe e grupos dominantes exprimemnas em usos costumes folkways e mores que já aparecem no esquema A eles constituem os veículos da dominação e se entrosam nas instituições sociais invocando princípios ideológicos Tais princípios integram o mesmo domínio sob o rótulo de cultura como se aquilo fosse a legítima e harmoniosa compilação do que sente e deseja todo o povo Na verdade este último pode ser iludido pela ideologia mas como já dizia Lincoln enganase uma parte do povo todo o tempo todo o povo uma parte do tempo nunca porém todo o povo todo o tempo O conjunto das instituições e a ideologia que a pretende legitimar a ideologia da classe e grupos dominantes padronizamse numa organização social que se garante com instrumentos de controle social o controle é a central de operações das normas dinamizadas dentro do ramo centrípeto a fim de combater a dispersão que desconjuntaria a sociedade e comprometeria a segurança da dominação Neste ramo é evidente só se pode falar em mudança social amarrada pois o sistema de controle apenas absorve a qüota de mudança que não lhe altere a organização posta e imposta e por isto dita normativamente até as regras de jogo da mudança Como vimos ao menor risco de se acentuar um desvio mesmo dentro das regras o poder enrijece o controle alarmado ou o sistema subjacente demite o seu débil representante para colocar um outro mais enérgico na direção Vejamos agora o ramo centrífugo As cristalizações de normas das classes e grupos espoliados e oprimidos produzem as instituições próprias cuja presença na estrutura é fator de maior ou menor desorganização social envolvendo a atividade anômica a contestação das normas do ramo dominante seja espontânea sem maior coesão e ordem de militança seja organizadamente ao revés com grupos adestrados e coesos estratégia e táticas bem articuladas Essa atividade contestadora pode ser de dois tipos reformista isto é visando reabsorverse no ramo centrípeto que se acomode para recebêla sem mudar a estrutura global ou revolucionário visando remodelar toda a estrutura a partir das bases A ação reformista ou revolucionária não é necessariamente pacífica ou violenta Há meras reformas que desencadeiam luta sangrenta há totais revoluções que preconizam ao contrário os meios incruentos sem derramamento de sangue e nãoditatoriais Exemplo das primeiras é entre nós a Guerra dos Farrapos Exemplo da segunda é a estratégia do socialismo democrático O perigo desta última evidentemente é a acomodação que dissolve os próprios objetivos revolucionários A expressão socialismo democrático é aliás muito ambígua Nós não a empregamos senão com a advertência de que nela se procura designar uma superação evitando quer os desvios aburguesados quer os congelamentos ditatoriais Desta maneira é que ela se revigorou no panorama atual com a rejeição do socialismo bem comportado e confiável que a burguesia absorve e também dos socialismos burocráticorepressivos de cúpula que prevalecem nas repúblicas onde o trabalhador não tenha efetivamente canais de participação no governo e defesa eficaz contra os burocratas O socialismo democrático portanto vai hoje ganhando o sentido da procura duma alternativa perante o capitalismo espoliativo e o socialismo gorado As explicações até agora oferecidas permitemnos assim resumir a visão social dialética num esquema diferente das focalizações A e B já criticadas Notará o leitor que foram inseridos além dos elementos já mencionados os algarismos romanos I a IX que assinalam os pontos onde surge o aspecto jurídico Estes pontos vão servirnos para deduzir a essência do Direito sem partir de nuvens metafísicas ou da amputação de um que outro aspecto por simples capricho ideológico Por isso mesmo estamos empregando a palavra Direito em sentido aliás pluralidade aparente de sentidos apenas nominal e nas suas ligações com o processo sociológico única fonte onde podemos ir buscar uma visão nem idealista nem mutilada do Direito mesmo Queremos dizer com isto que aparecerão assim todos os ângulos do Direito focalizados por sociólogos antropólogos historiadores e não somente este ou aquele ângulo privilegiado pelo preconceito duma ou de outra corrente e especialidade Vários autores tomam ora um ora outro daqueles pontos como base e assim produzem obviamente definições diversas e inconciliáveis Faltalhes a abordagem global Encaminhando as nossas conclusões sobre a essência do Direito enquanto parte de dialética social demarquemos especialmente cada um dos nove pontos assinalados I O Direito não se limita a aspecto interno do processo histórico Ele tem raiz internacional pois é nesta perspectiva que se definem os padrões de atualização jurídica segundo os critérios mais avançados Veremos isto no ponto IX Mas desde logo cumpre acentuar que a correta visão jurídica não pode fazer caso omisso das instituições internacionais sob a alegação de que o Direito Internacional não é jurídico porque as soberanias dos diferentes países não toleram repercussões internas senão quando aderem aos pactos internacionais O princípio de autodeterminação dos povos e as soberanias nacionais que aliás o imperialismo a todo instante ofende escandalosamente não impedem a atuação até das sanções internacionais na hipótese das mais graves violações do Direito II A verdade entretanto é que o direito entre nações luta para não ficar preso ao sistema de forças dominantes e em que pesem as felizes contradições a sua forma interestatal entre Estados reproduz no ângulo externo a obstrução que veremos no ponto VI quanto ao direito estatal Daí a expressão jurídica paralela em uma dialética estabelecida pelos povos oprimidos e espoliados Exemplo disto é o conjunto de princípios jurídicos consagrados na carta de Argel 1977 em que os povos oprimidos formularam a sua quota de direitos postergados III IV Afora as comunidades primitivas de que não estamos cuidando aqui como já foi advertido cada sociedade em particular no instante mesmo em que estabelece o seu modo de produção inaugura com cisão em classes uma dialética jurídica também já que por exemplo o estabelecimento da propriedade privada dos meios de produção espolia o trabalhador cujos direitos então contradizem o direito ali radicado da burguesia capitalista A oposição começa na infraestrutura Mesmo numa sociedade socialista não são suprimidos os problemas do conflito de direitos Ali subsistem classes socialismo não é comunismo para o qual certas repúblicas do socialismo autoritário dizem estar em trânsito embora não apresentem há muito o menor passo nesta direção Não fica eliminada a problemática de classe nem os limites jurídicos em que um regime socialista há de conter os processos de construção para não desnaturar o próprio socialismo De qualquer maneira em sistema capitalista ou socialista a questão classista não esgota a problemática do Direito permanecem aspectos de opressão dos grupos cujos Direitos Humanos são postergados por normas inclusive legais Já citamos a questão das raças religião sexos que hoje preocupam os juristas do marxismo nãodogmático Quando falamos em Direito e Antidireito obviamente não nos referimos a duas entidades abstratas e sim ao processo dialético do Direito em que as suas negações objetivadas em normas constituem um elo do processo mesmo e abrem campo à síntese à superação no itinerário progressivo O grande equívoco dos iurisnaturalistas é precisamente oscilar entre a rendição ao direito positivo a título de particularização dos preceitos naturais e a oposição irresolúvel entre direito natural e direito positivo como se fossem duas coisas separadas o Direito que eles não conseguem fundamentar pois arrancam esse ideal para fora do processo e a multiplicidade dos conjuntos de normas jurídicas que não sabem ver como parte do processo de realização dialética do Direito V A organização social que padroniza o conjunto de instituições dominantes adquire também um perfil jurídico na medida em que apresente um arranjo legítimo ou ilegítimo espoliativo opressor esmagando direitos de classes e grupos dominados É assim que se insere o problema jurídico do sistema a questão da legitimidade ou da ilegitimidade global da estrutura Não basta para resolvêla o simples fato dum status quo a existência nua e crua da dominação como não basta igualmente o tipo de consenso presumido que se baseia da passividade das massas intoxicadas pela ideologia e sempre consultadas com restrições isto é dentro de leis eleitoreiras que não permitem o despertar da consciência possível libertadora exclusão de pessoas e correntes de opinião do pleito restrições à propaganda nos veículos de comunicações de massas e toda a casuística dos estrategistas da reação A passividade das massas não legitima por si só uma organização social assim como o estabelecimento duma legalidade não importa por si só na legitimidade do poder Caso contrário teríamos de afirmar que o nazifascismo e os regimes semelhantes como os de Franco Salazar e quejandos eram legítimos enquanto viveram e se agüentaram no poder ou da mesma forma que as ditaduras subsistentes são legítimas somente porque ainda se agüentam á ferro e a fogo Por outro lado para que as garantias formais da consulta ao povo sejam legitimadoras é preciso não só que se façam sem as restrições capciosas de leis cheias de manhas como também que permitam o trabalho de conscientização popular pelos líderes progressistas sem restrições de pessoas e correntes no acesso livre aos meios de comunicação e organização de massas Isto é uma questão jurídica também De toda sorte a garantia democrática é parte do problema da realização do Direito e não basta substituir a disciplina legal da propriedade para chegar ao socialismo autêntico resta saber que posição real têm as classes na determinação do sistema em que medida os trabalhadores efetivamente comandam o processo e que canais políticos ficam abertos para evitar o enrijecimento do Estado e o domínio burocráticopolicial da estrutura por um conjunto de agentes repressores Isto já preocupava Lênin quando redigiu as Instruções de 1922 a respeito da organização multiforme das massas para controle sobre os aparelhos do Estado e sobre os próprios comunistas A conseqüência de se desprezar essa problemática foi a criação do Estadoaparelho nãocapitalista como patrão absoluto da sociedade que é hoje combatido pelo movimento da autogestão socialista o controle sócio econômico de baixo para cima VI O controle social global isto é como dissemos a central de operações das normas dominantes do e no setor centrípeto dinamiza em aspectos não isentos de contradições a organização social militante Aí é que surgem as leis de todo o tipo inclusive as anômalas que rompem para a garantia da organização subjacente o próprio sistema legal quando classe e grupos dominantes se assustam com a possibilidade mais ou menos próxima de verem escapar o controle social da mão das elites do poder O ponto VI na sua teia de normas em ação é o único focalizado pelo positivismo como se ali estivesse todo o Direito quando nada obstante as eventuais contradições a espoliação e a opressão neste ponto descobrem a sede privilegiada de atuação É importante examinar sem rejeição indiscriminada todo o direito estatal que pode inclusive servir para o uso alternativo de que cogitam o jurista Barcellona e seu grupo voltar as leis do Estado contra o próprio objetivo dominador operação de grande alcance teórico e prático Mas obviamente é preciso enfatizar com muita energia que o Direito não está aí o Direito está no processo global e sua resultante Localizar o Direito neste ponto VI exclusivamente equivale a transformar a sua positividade a sua força de disciplinar a práxis jurídica em positivismo a concepção legalista do Direito que é outra coisa VII É óbvio que se persiste a cisão de grupos e classes em dominadores e dominados a dialética vem a criar paralelamente à organização social um processo de desorganização que interfere naquela mostrando a ineficácia relativa e a ilegitimidade das normas dominantes e propondo outras efetivamente vividas em setores mais ou menos amplos da vida social No plano político assim se estabelece o que os cientistas políticos denominam o poder dual isto é mais de um poder social na dialética de conflito No plano das contrainstituições jurídicas vêse emergir o que o sociólogo português Boaventura de Souza Santos estudou na sua admirável tese Direito dos Oprimidos com material de pesquisa de campo realizada nas favelas brasileiras Escreve o notável colega português uma vez que a coesão ideológica de uma sociedade de classes superpõese a inconciliáveis conflitos classistas criados pelas relações de produção as classes dominadas ou grupos específicos dentro delas tendem a desenvolver subculturas legais que em certas circunstâncias podem estar ligadas a uma práxis institucional mais ou menos autônoma de variável meta e nível de organização Reconhecer esta práxis como jurídica e este direito como direito paralelo isto é caracterizar a situação como pluralismo jurídico e adotar uma perspectiva teórica julgando esse Direito não inferior ao direito estatal envolve uma opção tanto científica quanto política Ela implica a negação do monopólio radical de produção e circulação do Direito pelo Estado moderno A opção científica a que alude o eminente sociólogo é obviamente a dialética a opção política é não menos obviamente a socialista e socialista democrática em oposição ao estatismo e legalismo não só capitalista mas do socialismo autoritárioburocrático repressivo VIII Parece então claro que a coexistência conflitual de séries de normas jurídicas dentro da estrutura social pluralismo dialético leva à atividade anômica de contestação na medida em que grupos e classes dominados procuram o reconhecimento de suas formações contrainstitucionais em desafio às normas dominantes anomia Este projeto entretanto pode ser de dois tipos ou se revela apenas reformista enquanto visa a absorção de seus princípios e normas pela central do ramo centrípeto ponto VI sem atingir as bases da estrutura e os demais aspectos da normação dominadora ou se mostra revolucionário isto é delineia o contraste fundamental com uma série de princípios e normas que são proposta e prática reestruturadora atingindo a infraestrutura e tudo o que sobre ela assenta Reforma ou revolução representam o enlace jurídicopolítico isto é só politicamente se instrumentalizam e tem chance de triunfar mas só juridicamente podem fundamentarse a dinamização é política a substância é jurídica E a fundamentação jurídica é indispensável para validar inclusive o apelo revolucionário e introduz ao mais amplo círculo do Direito que por isto mesmo no esquema dialético pusemos numa chave envolvente com a designação de IX IX Radica neste ponto o critério de avaliação dos produtos jurídicos contrastantes na competição de ordenamentos as diferentes séries de normas entrosadas É a síntese jurídica Seus critérios porém não são cristalizações ideológicas de qualquer essência metafísica mas o vetor históricosocial resultante do estado do processo indicando o que se pode ver a cada instante como direção do progresso da humanidade na sua caminhada histórica Esta resultante final final não no sentido de eterna mas de síntese abrangedora do aspecto jurídico naquele processo históricosocial em sua totalidade e transformações se reinsere imediatamente no processo mesmo uma vez que a história não pára A síntese não está por cima ou por baixo num esquema prévio ou posterior mas DENTRO DO PROCESSO AQUI E AGORA A meta foi anteontem a conquista liberal quando a burguesia ascendente indicava o rumo do progresso e todos sonhavam com a Revolução Francesa foi ontem a vitória do socialismo no plano econômico quando principiou a série dos avanços proletários e todos sonhavam com a Revolução Russa mas é hoje o socialismo democrático quando as revoluções socialistas estão esclerosadas doença de enrijecimento em países que lhe deram somente uma feição autoritárioburocrático repressiva esta última desnatura o socialismo e oprime externa e internamente nos seus blocos dominados as próprias massas que se propunha libertar O ponto IX é então a chave de abóbada para a análise do Direito e a sede onde emergem os Direitos Humanos Notese que não nos referimos às declarações dos Direitos Humanos que desejam exprimir o ponto IX porém a este mesmo ponto que nelas aproximadamente se reflete a cada etapa Já tivemos a declaração das revoluções americana e francesa cuja focalização representa a burguesia ascendente Na declaração mais recente repercute a luta social avançada em que a igualdade formal dos homens perante o direito estatal se corrige com a remodelação jurídica inspirada pelo socialismo de igualdade substancial sem a espoliação do trabalhador pelo capitalista ou a opressão dos grupos minoritários pelo poder instituído Para termos uma idéia da diferença entre as declarações dos Direitos Humanos e estes mesmos Direitos basta pensar que a declaração oficial mais recente já é inatual na medida em que ainda não incorpora outros aspectos da libertação surgidos em lutas sociais posteriores Por exemplo a marca do social na Declaração dos Direitos Humanos ainda é muito vaga e incompleta e não dá expressão plena às metas socialistas do Direito contemporâneo autêntico Aliás este envelhecimento das declarações foi percebido até pelo filósofo francês bem reacionário que era Jacques Maritain quando acentuou à ocasião em que foi redigida a última declaração oficial que ela devia ser revista pelo menos de 15 em 15 anos Eis em síntese o que tomado como dissemos o Direito nominalmente dele nos surge na dialética social e no processo histórico A essência do jurídico há de abranger todo esse conjunto de dados em movimento sem amputar nenhum dos aspectos como fazem as ideologias jurídicas nem situar a dialética nas nuvens idealistas ou na oposição insolúvel nãodialética tomando Direito e Antidireito como blocos estanques e omitindo a negação da negação É com esta que as contradições de Direito e Antidireito fazem explodir com mediação da práxis jurídica progressista a ostra normativa para que se extraia a pérola da superação A falta de um senso deste processo é que leva em desespero de causa certos autores marxistas a aderirem ao direito natural diante dos legalismos prepotentes à la Vichinski o teórico soviético do legalismo socialista É fácil ler Marx e Engels como positivista ou iurisnaturalista A leitura soviética é legalista não à toa Heller que já citamos insinua por outro lado um iurisnaturalismo de base na medida em que o Direito de revolução é por assim dizer o carro chefe de todo o materialismo histórico O fato é que entre marxistas e marxólogos cada um cita os clássicos no trecho que lhe interessa assim como os teólogos citam a Bíblia para cá e para lá eles sempre descobrem umas frases conservadoras ou progressistas puritanas ou permissivas até mesmo machistas ou gayCatar frases é um passatempo de quem só faz negócio com assinatura de avalista e vive procurando uma firma célebre e desprevenida para as suas promissórias Um pensamento uma filosofia é um organismo em movimento uma resposta intelectual aos estímulos duma práxis e cada noção conceito proposição têm de ser não pinçados mas inseridos no movimento da obra Por isso mesmo é que em vez de ler Marx ou Engels vertendoos em garrafinhas que não mostram a grandeza e marés do oceano é preciso repensar Marx e Engels com a leitura dos textos que são marcos dum itinerário inacabado e não repositório da ciência feita para criar o dogma e abonar qualquer linha justa amanhã revista com outras citações na hora de bater nas peitos e fazer autocrítica Marx e Engels foram os constantes revisionistas de si mesmos Prestamos homenagem maior e até mais fiel ao gênio marxiano retomando o itinerário não porque sejamos mais inteligentes do que Marx e sim porque estamos um século adiante Mas onde fica então diante daquele panorama a essência do Direito no sentido em que a vimos buscando isto é na postura dialética explicada no capítulo 1 Que noção que conceito ao mesmo tempo abrangedor e preciso consegue resumir todo o processo contemplado na síntese móvel do ponto IX e desdobrado nas contradições dos pontos I II III IV V VII e VI VIII Marx afirmou que a liberdade é a essência do homem e não há incompatibilidade entre esta frase e outra que ele escreveu mais tarde mostrando que a essência do homem é o conjunto das relações sociais isto é as relações entre as pessoas dentro dos grupos e classes e na forma que estes modelam Porque este ser real este homem na sociedade não é apenas um boneco sem vida que as forças sociais movimentam Ele se conscientiza reage e se liberta dos condicionamentos As relações sociais inclusive as relações de produção constituem relações entre homens e não entre peças duma só máquina Aliás se não fosse assim se tudo fosse aparelho precisaríamos de um Deus dos aparelhos para movimentar a História e fazer com que a máquina funcionasse O que é essencial no homem é a sua capacidade de libertação que se realiza quando ele conscientizado descobre quais são as forças da natureza e da sociedade que o determinariam se ele se deixasse levar por elas Lembramos com Marx que consciência é conscientização e também que liberdade é libertação isto é consciência não é uma coisa que nós temos porém que vamos construindo vamos livrando do que os nossos dominadores botam lá ideologia e liberdade também não é uma coisa que nós possuímos pelo contrário ela vive amarrada e nós temos de cortar os nós O processo social a História é um processo de libertação constante se não fosse estávamos até hoje parados numa só estrutura sem progredir mas é claro há avanços e recuos quebras do caminho que não importam pois o rio acaba voltando ao leito seguindo em frente e rompendo as represas Dentro do processo histórico o aspecto jurídico representa a articulação dos princípios básicos da Justiça Social atualizada segundo padrões de reorganização da liberdade que se desenvolvem nas lutas sociais do homem Quando falamos em Justiça entretanto não nos estamos referindo àquela imagem ideológica da Justiça ideal metafísica abstrata vaga que a classe e grupos dominantes invocam para tentar justificar as normas os costumes as leis os códigos da sua dominação Não é o idealismo iurisnaturalista que ou se rende ao direito positivo às normas de dominação porque a este concede o poder de definir em especial o que a Justiça é nas situações particulares e concretas nem aquele outro iurisnaturalismo progressista de combate que continua entretanto pondo de um lado o direito ideal e de outro o direito real A contradição entre a injustiça real das normas que apenas se dizem justas e a injustiça que nelas se encontra pertence ao processo à dialética da realização do Direito que é uma luta constante entre progressistas e reacionários entre grupos e classes espoliados e oprimidos e grupos e classes espoliadores e opressores Esta luta faz parte do Direito porque o Direito não é uma coisa fixa parada definitiva e eterna mas um processo de libertação permanente Como já dissemos o Direito não é ele vem a ser Por isso mesmo é que o revolucionário de ontem é o conservador de hoje e o reacionário de amanhã Reparem por exemplo no caso da burguesia como classe ascendente quando estava na vanguarda enriqueceu o patrimônio jurídico da humanidade Quando chegou ao poder deu a coisa por finda isto é quis deter o processo para gozar os benefícios e se recusou a extrair as conseqüências de sua revolta contra a aristocracia e o feudalismo Ficou portanto uma contradição entre a libertação parcial que favoreceu os burgueses e o prosseguimento da libertação que daria vez aos trabalhadores A burguesia saiu com o povo à rua contra os aristocratas mas depois de tomar o lugar destes achou gostoso e mandou prender o povo a fim de curtir uma boa que é o poder Como o povo se recusava a parar e cada vez que era enxotado teimava em reaparecer a burguesia baixou o pau A luta continuou Aquela altura um burguês já triunfante disse que é fácil colocar o povo na rua difícil é fazêlo voltar para casa este queria parar a História mas a História é teimosa A locomotiva amarrada acaba rompendo as amarras e passando por cima de quem quiser se encostar à frente e parála com a bunda E o destino dos ditadores aí está que não nos deixa mentir E a luta social constante com suas expressões de vanguarda e suas resistências e sacanagens reacionárias com suas forças contraditórias de progresso e conservantismo com suas classes e grupos ascendentes e libertários e suas classes e grupos decadentes e opressores é todo o processo que define o Direito em cada etapa na procura das direções de superação E preciso notar inclusive que as contradições não se dão apenas entre blocos de normas porém dentro desses blocos Assim por exemplo o direito estatal as leis que exprimem em linhas gerais o domínio de classe e grupos privilegiados têm elementos que podem ser utilizados pelas classes e grupos libertadores porque na hipocrisia de fazer o contrário do que dizem isto é dizer que vão construir a Justiça nas normas enquanto fazem das normas uma proteção injusta de seus privilégios a classe e grupos dominadores muitas vezes se contradizem deixam buracos nas suas leis e costumes por onde os mais hábeis juristas de vanguarda podem enfiar à alavanca do progresso explorando a contradição De toda a sorte a força a evidência de que o Direito compendia a cada momento a soma das conquistas libertárias ponto IX do nosso esquema fica provada por dois fatos Em primeiro lugar nenhum legislador mesmo o pior dos ditadores diz em tese que vai fazer a norma injusta Isto contraria a essência do Direito como já notava Engels A expressão brutal intransigente da supremacia de uma classe lembrou ele vai por si só contra conceito de Direito Mas é claro que o conceito de Direito não é aquela idéia metafísica abstrata e sim o Direito como um aspecto do processo social mesmo Em segundo lugar os direitos já conquistados geralmente não são desafiados pelo dominador a dominação é já o dissemos hipócrita Então o dominador vai absorvendo o discurso de liberdade para negálo de fato nas normas espoliativas e repressoras Hoje por exemplo já não se fala em manter o colonialismo que continua existindo ou em resolver a questão social com a polícia que aliás entra a toda hora na luta chamada pelo burguês que tem medo do povo Ao menos não se confessa abertamente essas violências o que significa que nem o opressor pode negar o Direito apenas entortálo dizendo uma coisa e fazendo outra Inclusive quando uma estrutura socialista degenera em opressão ela continua falando em socialismo e invoca o Direito da classe proletária para fazer calar prender e agredir o trabalhador A dominação soviética por exemplo está sempre falando em defesa do socialismo tal como a burguesia está sempre falando em defesa da democracia isto mesmo quando a defesa do socialismo é acabar com a pretensão à liberdade do país vizinho Da mesma forma e no outro lado falase no princípio de autodeterminação dos povos mas logo em nome da defesa da democracia os EEUU vão criando polícia continental na América Latina para manter a semicolonização econômica determinada peloimperialismo regional que não é menos hipócrita A grande inversão que se produz no pensamento jurídico tradicional é tomar as normas como Direito e depois definir o Direito pelas normas limitando estas às normas do Estado e da classe e grupos que o dominam Ora a doutrina que fecha todo o fenômeno jurídico enquanto simples norma da classe e grupos dominantes ou mesmo de grupos dissidentes retrógrados do tipo de Tradição Família e Propriedade que é mais realista do que o rei subtrai toda dialética Por outro lado cada perfil atualizado do Direito autêntico é um instante do processo de sua eterna reconstituição do seu avanço que vai desvendando áreas novas de libertação A contribuição dos primeiros socialistas foi contestar as normas do direito burguês oporlhes princípios jurídicos mais avançados lutando para que se remodelassem as normas Alguns daqueles princípios acharam o seu escaninho nas repúblicas socialistas de vários matizes Porém depois do avanço de 1917 o poder soviético e mais tarde dos seus satélites foi engordando tanto que se deitou na cama estatal e dormiu sobre o colchão de instituições domesticadas acordando assustado toda vez que algum socialista herege e contestador berrava que ali ou na casa do vizinho havia algo de errado O legalismo é sempre a ressaca social de um impulso criativo jurídico Os princípios se acomodam em normas e envelhecem e as normas esquecem de que são meios de expressão do Direito móvel em constante progresso e não Direito em si Com o vício de rodar a manivela o Estado troca na sua Casa da Moeda os papéis com lastro de ouro pelos papéis desvalorizados na inflação das leis e acaba usando a guitarra a máquina de fazer dinheiro falso para enganar os tolos Direito e Justiça caminham enlaçados lei e Direito é que se divorciam com freqüência Onde está a Justiça no mundo perguntase Que Justiça é esta proclamada por um bando de filósofos idealistas que depois a entregam a um grupo de juristas deixando que estes devorem o povo A Justiça não é evidentemente esta coisa degradada Isto é negação da Justiça uma negação que lhe rende apesar de tudo a homenagem de usar seu nome pois nenhum legislador prepotente administrador ditatorial ou juiz formalista jamais pensou em dizer que o direito deles não está cuidando de ser justo Porém onde fica a Justiça verdadeira Evidentemente não é cá nem lá não é nas leis embora às vezes nelas se misture em maior ou menor grau nem é nos princípios ideais abstratos embora às vezes também algo dela ali se transmita de forma imprecisa a Justiça real está no processo histórico de que é resultante no sentido de que é nele que se realiza progressivamente Justiça é Justiça Social antes de tudo é atualização dos princípios condutores emergindo nas lutas sociais para levar à criação duma sociedade em que cessem a exploração e opressão do homem pelo homem e o Direito não é mais nem menos do que a expressão daqueles princípios supremos enquanto modelo avançado de legítima organização social da liberdade Mas até a injustiça como também o Antidireito isto é a constituição de normas ilegítimas e sua imposição em sociedades mal organizadas fazem parte do processo pois nem a sociedade justa nem a Justiça corretamente vista nem o Direito mesmo o legítimo nascem dum berço metafísico ou são presente generoso dos deuses eles brotam nas oposições no conflito no caminho penoso do progresso com avanços e recuos momentos solares e terríveis eclipses Direito é processo dentro do processo histórico não é uma coisa feita perfeita e acabada é aquele viraser que se enriquece nos movimentos de libertação das classes e grupos ascendentes e que definha nas explorações e opressões que o contradizem mas de cujas próprias contradições brotarão as novas conquistas Quando a burguesia em avanço e subida desafiou as discriminações aristocráticofeudais ela colocou o problema da igualdade e quando essa mesma burguesia se encarapitou no poder e negou a igualdade real em suas leis desencadeando a crítica marxista que mostrava a fonte das desigualdades foi a contradição apontada que indicou o caminho para o socialismo quando o socialismo degenera em opressão burocráticoautoritária falando em nome duma classe proletária a que mecanismos estatais negam a real participação no poder é também esta contradição que gera o movimento para democratizar o socialismo implantado que se deixou engordar em dominaçãorepressão À injustiça que um sistema institua e procure garantir opõese o desmentido da Justiça Social conscientizada às normas em que aquele sistema verta os interesses de classes e grupos dominadores opõemse outras normas e instituições jurídicas oriundos de classes e grupos dominados e também vigem e se propagam e tentam substituir os padrões dominantes de convivência impostos pelo controle social ilegítimo isto é tentam generalizarse rompendo os diques da opressão estrutural As duas elaborações entrecruzam se atritamse acomodamse momentaneamente e afinal chegam a novos momentos de ruptura integrando e movimentando a dialética do Direito Uma ordenação se nega para que outra a substitua no itinerário libertador O ponto de referência IX que pusemos no esquema C da visão social dialética é aquele em que a Justiça se identifica enquanto substância atualizada do Direito isto é na quota de libertação alcançada em perspectiva progressista ao nível histórico presente Nunca se pode aferir a Justiça em abstrato e sim concretamente pois as quotas de libertação achamse no processo histórico são o que nele se revela à vanguarda às classes e grupos ascendentes o aspecto jurídico do processo é o que delineia a forma positivada alcance próprio dos princípios da práxis social justa e do controle social legitimo com a indicação das normas em que ele venha a se organizar no modelo atualizado e vanguardeiro de organização social da liberdade E isto se resume repetimos com o filósofo marxista Ernst Bloch em determinar a instauração da faculdade de agir das classes e grupos sem alienação nas normas de agir duma comunidade enfim não alienada Por isso mesmo no socialismo o aspecto jurídico ao invés de sumir ganha mais relevo como dizia ainda Bloch enquanto os Direitos Humanos não serão menos militantes como direito à crítica inexoravelmente objetiva e prática pelo avanço da construção socialista dentro dum quadro de solidariedade A simples troca do modo de produção o fim de certo tipo de exploração e opressão não é o fim da História é uma etapa No processa histórico de libertação perante as dominações ilegítimas o Direito modela o padrão organizador que resulta do processo mesmo Mas ele não é apenas a seara da liberdade é igualmente a antítese da anarquia que deseja trocar a repressão ilegítima pelo caos e da ação bruta não contida por princípios de legitimidade e na qual o objetivo libertador poderá descaracterizarse dentro de um caminho que não respeite os direitos fundamentais hoje por exemplo a tortura já é definida como crime de Direito Internacional e continuará sendo crime quer seja instrumento do conservantismo violento quer seja aplicada a pretexto de facilitar o trabalho de libertação O Direito em resumo se apresenta como positivação da liberdade conscientizada e conquistada nas lutas sociais e formula os princípios supremos da Justiça Social que nelas se desvenda Por isso é importante não confundilo com as normas em que venha a ser vazado com nenhuma das séries contraditórias de normas que aparecem na dialética social Estas últimas pretendem concretizar o Direito realizar a Justiça mas nelas pode estar a oposição entre a Justiça mesma a Justiça Social atualizada na História e a justiça de classes e grupos dominadores cuja ilegitimidade então desvirtua o direito que invocam Também é um erro ver o Direito como pura restrição à liberdade pois ao contrário ele constitui a afirmação da liberdade conscientizada e viável na coexistência social e as restrições que impõe à liberdade de cada um legitimamse apenas na medida em que garantem a liberdade de todos A absoluta liberdade de todos obviamente redundaria em liberdade para ninguém pois tantas liberdades particulares atropelariam a liberdade geral Esta a razão por que o Direito não se confunde com a Moral A Moral é também processo também está inserida na dialética social também se transmite a séries múltiplas de normas conforme as classes e grupos em que se divide a estrutura social também gera obrigações exigíveis e estabelece órgãos e procedimentos para a sua aplicação coercitiva ela é portanto bilateral como o Direito o que não é entretanto é recíproca Recíproco é só o direito Na Moral se armam deveres que cada um há de cumprir em relação aos demais e até a si mesmo Todavia os princípios sociais e históricos da vida honesta não dependem da reciprocidade Queremos dizer com isto que os deveres morais de cada um não dependem dos deveres morais dos outros para se tornarem obrigatórios nem no sentido de que estes últimos cumpram ou deixem de cumprir os seus próprios deveres nem no sentido de que os preceitos morais se destinem a garantir o equilíbrio recíproco do exercício da liberdade A Moral visa o aperfeiçoamento de cada um dentro da honestidade O Direito visa ao desdobramento da liberdade dentro dos limites da coexistência Mesmo quando no Direito Criminal por exemplo se rejeita a compensação de culpas isto não desmente antes confirma a reciprocidade pois o que é juridicamente cobrado a ambos os sujeitos juridicamente culpados é o recíproco dever de não lesarem um ao outro nem juntos assim ofenderem a comunidade Se falta a lesão o dano ou sequer o perigo para as liberdades em coexistência crime não há Deste modo é que atualmente se demonstra que são ilegítimas as definições legais de crime sem vítima como por exemplo a autodestruição física ou psíquica pelo suicídio pelo consumo de drogas pela degradação moral da prostituição Estes procedimentos não deixam de ser todos eles reprováveis moralmente porém o Direito veio a reconhecer que nada têm a ver com os deveres de reciprocidade e assim vão desaparecendo aquelas incriminações injustificáveis A Moral entretanto permanece como estabelecimento de restrições à nossa liberdade em si mesmas tidas como necessárias para tornarnos pessoas socialmente melhores enquanto que o Direito só nos restringe a liberdade para garantir o que nela afete aos demais Mesmo quando a Moral se volta para a disciplina dos nossos prazeres a chamada Moral hedonista admitindo a curtição de cada um segundo o seu gosto continua a levar uma restrição intrínseca de autoaperfeiçoamento na medida em que o próprio hedonismo ensina a não abusarmos desordenadamente dos prazeres ensina a controlar os apetites e a maneira de gozar em todos os sentidos da palavra Direito é o reino da libertação cujos limites são determinados pela própria liberdade Moral é o reino da contensão em que a liberdade é domada Nenhum dos dois é claro tolera os dogmas os princípios eternos ou se extrai de fontes ideais o que é abstratas ou sobrehumanas Ambos são ao revés conquistas sociais históricas e fortemente condicionadas pela estrutura social onde emergem na oposição no contraste de modelos diversos conforme a divisão de classes e grupos dominadores e dominados cujas normas estão sujeitas aos critérios de legitimidade histórica também isto é definida pelo padrão mais avançado ao nível do tempo presente Marx dizia com humor que ninguém luta contra a liberdade no máximo luta contra a liberdade dos outros E aí está o que faz toda sociedade espoliativa e opressora em que classes e grupos dominadores cuidam de si à custa dos demais Porém o princípio jurídico fundamental isto é a matriz de todos os outros que se vão desvendando no processo libertador e inspiram a avaliação de qualquer norma já foi conscientizado e expresso no tempo histórico para guiarnos como bússola da luta pelo Direito e desmentido a qualquer ordem que de jurídica tenha somente o nome falsamente invocado Foi Marx igualmente quem o registrou assinando juntamente com Engels um documento célebre no qual se lê o livre desenvolvimento de cada um é condição para o livre desenvolvimento de todos Isto é que é Direito na essência modelo e finalidade Tudo o mais ou é conseqüência a determinar no itinerário evolutivo ou é deturpação a combater como obstáculo ao progresso jurídico da humanidade INDICAÇÕES PARA LEITURA Especialmente recomendáveis para o iniciante pelas informações atualizadas clareza da exposição e enfoque progressista são A Ciência do Direito Conceito Objeto Método de Agostinho Ramalho Marques Neto Rio Editora Forense 19821 e Para uma Crítica da Eficácia do Direito de José Geraldo de Sousa Júnior Brasília edição particular 1981 pedidos para a Caixa Postal 131957 CEP 70259 Brasília DF Uma das figuras mais importantes da teoria e pesquisa jurídicas modernas é o sociólogo português Boaventura de Souza Santos cuja notável tese de doutoramento The Law of the Oppressed O Direito dos Oprimidos Law Society Review vol 12 n 1 1957 p 51261 infelizmente ainda não tem edição disponível em nosso idioma foi escrita originariamente em inglês e defendida na Universidade de Yale Mas quem quiser conhecer algo desse eminente autor pode consultar em português O Discurso e o Poder Coimbra Separata do Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra 1979 O monumental estudo de Ernst Bloch Naturrecht und Menschliche Würde Frankfurt am Main Surkhamp 1961 com tradução francesa Droit Naturel et Dignité Humaine Paris Payot 1976 também não foi vertido para o português Entretanto têse algo dele em matéria jurídica no breve ensaio incluído na coletânea organizada por Erich Fromm Humanismo Socialista Lisboa Edições 70 1976 p 226234 O único trabalho de Michel Miaille até hoje aparecido no Brasil não é representativo da evolução deste excelente autor cujo melhor trabalho se acha na obra coletiva de M Bourjol outros Pour une Critipue du Droit Paris Maspéro 1978 p 114146 Sob o ponto de vista histórico é estimulante a leitura do livro de Michael Tigar Madeleine Levy O Direito e a Ascensão do Capitalismo Rio Zahar 1978 e quanto às ligações com a Ciência Política têm especial destaque duas obras de Ralph Miliband O Estado na Sociedade Capitalista Rio Zahar 1972 e Marxismo e Política Rio Zahar 1979 Sob vários ângulos correlatos é importante meditar sobre as colocações de Marilena Chauí na sua magnífica série de ensaios reunidos em Cultura e Democracia São Paulo Editora Moderna 1981 Não devem ser desprezadas as páginas clássicas dos grandes precursores nacionais como João Mangabeira a exemplo do vigoroso parecer que marca a sua primeira definição socialista no terreno jurídico R Verdadeira Igualdade e a Socialização do Direito em 1930 e a belíssima Oração aos Bacharelados da Faculdade de Direito da Bahia em 1944 ambos os textos constantes da obra organizada por Francisco de Assis Barbosa As Idéias Políticas de João Mangabeira BrasíliaRio Senado Federal Casa Rui Barbosa MEC 1980 3 vols vol 1 p 491504 vot 3 p 1518 Outros volumes já publicados ou a publicar nesta mesma coleção Primeiros Passos cuidam de temas jurídicos tal como o no 49 Direitos da Pessoa da muito ilustre e corajoso prof Dalma Dallari wwwesnipscomuserdireitounisulma
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11ª edição Primeira edição 1982 Editora Brasiliense Rua da Consolação 2697 São Paulo SP Fone 011 2801222 ÍNDICE Direito e lei 3 Ideologias jurídicas 7 Principais modelos de ideologia jurídica 14 Sociologia e direito 30 A dialética social do direito 42 Indicações para leitura 59 DIREITO E LEI A maior dificuldade numa apresentação do Direito não será mostrar o que ele é mas dissolver as imagens falsas ou distorcidas que muita gente aceita como retrato fiel Se procurarmos a palavra que mais freqüentemente é associada a Direito veremos aparecer a lei começando pelo inglês em que law designa as duas coisas Mas já deviam servirnos de advertência contra esta confusão as outras línguas em que Direito e lei são indicados por termos distintos lus e lex latim Derecho e léy espanhol Diritto e legge italiano Droit e loí francês Recht e gesetz alemão Pravo e zakon russo Jog e tõrveny húngaro e assim por diante Noutra passagem deste livrinho teremos de enfrentar a sugestão do grego em que nomos lei também não se identifica sem mais com o Direito e Dikaion propõe a questão do Direito justo As relações entre Direito e Justiça constituem aspecto fundamental de nosso tema e também ali muitas nuvens ideológicas recobrem a nua realidade das coisas Em todo caso não se trata dum problema de vocabulário A diversidade das palavras atinge diretamente a noção daquilo que estivermos dispostos a aceitar como Direito Por isso mesmo os autores ingleses e americanos tem de falar em Right e não law quando pretendem referirse exclusivamente ao Direito independente da lei ou até se for o caso contra ela isto não significa note o leitor que o verdadeiro Right não possa ser um Direito legal porém que ele continuaria a ser Direito se a lei não o admitisse A lei sempre emana do Estado e permanece em última análise ligada à classe dominante pois o Estado como sistema de órgãos que regem a sociedade politicamente organizada fica sob o controle daqueles que comandam o processo econômico na qualidade de proprietários dos meios de produção Embora as leis apresentem contradições que não nos permitem rejeitálas sem exame como pura expressão dos interesses daquela classe também não se pode afirmar ingênua ou manhosamente que toda legislação seja Direito autêntico legítimo e indiscutível Nesta última alternativa nós nos deixaríamos embrulhar nos pacotes legislativos ditados pela simples conveniência do poder em exercício A legislação abrange sempre em maior ou menor grau Direito e Antidireito isto é Direito propriamente dito reto e correto e negação do Direito entortado pelos interesses classísticos e caprichos continuístas do poder estabelecido A identificação entre Direito e lei pertence aliás ao repertório ideológico do Estado pois na sua posição privilegiada ele desejaria convencernos de que cessaram as contradições que o poder atende ao povo em geral e tudo o que vem dali é imaculadamente jurídico não havendo Direito a procurar além ou acima das leis Entretanto a legislação deve ser examinada criticamente mesmo num país socialista pois como nota a brilhante colega Marilena Chauí seria utópicoilusão imaginar que socializada a propriedade estivesse feita a transformação social completa Isto é acentuado também com referência ao Direito pelo jurista húngaro Zoltán Péteri quando assinala que as leis dum país socialista podem não exprimir os resultados da evolução social visada pelos padrões atualizadores do socialismo Ali também surgem leis que carecem de autenticidade e adequação e escapam ao que é verdadeiro e correto juridicamente Em que critérios poderemos buscar o meio de avaliação deste elemento jurídico para aplicálo à consideração das leis é precisamente a questão para a qual se encaminha o nosso itinerário neste livrinho e que aparecerá nas suas conclusões Repare o leitor na arrogância com que todo governo mais decididamente autoritário repele a contestação como se as remodelações institucionais não fossem uma proposta admissível e até parcialmente reconhecida em leis no caso das emendas constitucionais por exemplo na pretensão do poder que cedendo à abertura inevitável quer depois controlar o diâmetro a seu gosto na irritação com que fala em radicalismo de toda oposição que ameace trocar mesmo pelas urnas o estado de coisas presente nas salvaguardas com que pretende garantir o status quo isto é na estrutura implantada os esquemas vigentes na astúcia que procura separar os confiáveis isto é os grupos e pessoas que são vinho da mesma pipa e os não confiáveisisto é os grupos e pessoas que propõem alguma forma de reestruturação social mesmo quando o fazem com a recomendação de meios pacíficos Nisto porém o Direito resulta aprisionado em conjunto de normas estatais isto é de padrões de conduta impostos pelo Estado com a ameaça de sanções organizadas meios repressivos expressamente indicados com órgão e procedimento especial de aplicação No entanto como notava o líder marxista italianoGramsci a visão dialética precisa alargar o foco do Direito abrangendo as pressões coletivas e até como veremos as normas não estatais de classe e grupos espoliados e oprimidos que emergem na sociedade civil nas instituições não ligadas ao Estado e adotam posições vanguardeiras como determinados sindicatos partidos setores de igrejas associações profissionais e culturais e outros veículos de engajamento progressista O Direito autêntico e global não pode ser isolado em campos de concentração legislativa pois indica os princípios e normas libertadores considerando a lei um simples acidente no processo jurídico e que pode ou não transportar as melhores conquistas Isto depende é claro de que Estado concretamente surge a legislação se ele é autoritário ou democrático se reveste uma estrutura social espoliativa ou tendente à justiça social efetiva e não apenas demagógica e palavrosa se a classe social que nele prevalece é a trabalhadora ou a capitalista se as bases dominam o processo político ou a burocracia e a tecnocracia servem ao poder incontrolado se os grupos minoritários têm garantido o seu direito à diferença ou um rolo compressor os esmaga se em geral ficam resguardados os Direitos não menos Direitos e até supraestatais isto é com validade anterior e superior a qualquer lei chamados Direitos Humanos Estes como veremos conscientizam e declaram o que vai sendo adquirido nas lutas sociais e dentro da História para transformarse em opção jurídica indeclinável E condenam é evidente qualquer Estado ou legislação que deseje paralisar o constante progresso através das ditaduras burocráticopoliciais sejam elas cínicas e ostensivas ou hipócritas e disfarçadas Uma exata concepção do Direito não poderá desprezar todos esses aspectos do processo histórico em que o círculo da legalidade não coincide sem mais com o da legitimidade como notava entre outros inclusive o grande jurista burguês Hermann Heller Diríamos até que se o Direito é reduzido à pura legalidade já representa a dominação ilegítima por força desta mesma suposta identidade e este Direito passa então das normas estatais castrado morto e embalsamado para o necrotério duma pseudociência que os juristas conservadores não à toa chamam de dogmática Uma ciência verdadeira entretanto não pode fundarse em dogmas que divinizam as normas do Estado transformam essas práticas pseudocientíficas em tarefa de boys do imperialismo e da dominação e degradam a procura do saber numa ladainha de capangas inconscientes ou espertos Em muitos países inclusive no Brasil há dispositivos legais que contrastam com a Declaração Universal dos Direitos do Homem Isto já foi reconhecido entre nós pelo atual presidente do Supremo Tribunal Ministro F M Xavier de Albuquerque quando tentou em voto famoso na justiça eleitoral encaminhar uma jurisprudência decisão uniforme dada pelos Tribunais a questão de Direito que situasse aquela Declaração como é devido acima de qualquer desvio legislativo Acentuou então o destacado juiz liberal que a Declaração dos Direitos do Homem é capítulo duma evidente Constituição de todos os povos que ainda não existe como lei formalizada mas orienta superiormente a captação do Direito Sob o ponto de vista do socialismo não é outro o posicionamento de Ernst Bloch o filósofo marxista alemão quando afirma que a dignidade é impossível sem a libertação econômica mas a libertação econômica é impossível também se desaparece a causa dos Direitos do Homem Estes dois resultados não nascem automaticamente do mesmo ato mas reciprocamente se reportam um ao outro Não há verdadeiro estabelecimento dos Direitos Humanos sem o fim da exploração não há fim verdadeiro da exploração sem o estabelecimento dos Direitos Humanos Daí a importância da revisão crítica inclusive numa legislação socialista Nosso objetivo é perguntar no sentido mais amplo o que é Direito com ou sem leis mas é preciso esclarecer igualmente que nada é num sentido perfeito e acabado que tudo é sendo Queremos dizer com isto que as coisas não obedecem a essências ideais criadas por certos filósofos como espécie de modelo fixo um cabide metafísico em que penduram a realidade dos fenômenos naturais e sociais As coisas ao contrário formamse nestas próprias condições de existência que prevalecem na Natureza e na Sociedade onde ademais se mantêm num movimento constante e contínua transformação E deste modo que elas se entrosam na totalidade dos objetos observáveis e das forças naturais e sociais que os modelam e orientam a sua evolução Cada fenômeno fenômeno é etimologicamente coisa que surge pode então revelar o seu fundamento e sentido que só emerge em função daquela totalidade móvel Isoladamente cada um perde a significação própria e a conexão vital assim como o órgão sem o organismo em que funciona ou o homem sem a sociedade fora da qual ele não existe humanamente e regride na escala zoológica Nesta perspectiva quando buscamos o que o Direito é estamos antes perguntando o que ele vem a ser nas transformações incessantes do seu conteúdo e forma de manifestação concreta dentro do mundo histórico e social Isto não significa porém que é impossível determinar a essência do Direito o que apesar de tudo ele é enquanto vai sendo o que surge de constante na diversidade e que se denomina tecnicamente ontologia Apenas fica ressalvado que uma ontologia dialética tal como indicava o filósofo húngaro Lukács tem base nos fenômenos e é a partir deles que procura deduzir o ser de alguma coisa buscado assim no interior da própria cadeia de transformações IDEOLOGIAS JURÍDICAS Começaremos recapitulando abreviadamente os tipos de ideologia jurídica encontrados no segmento da História que se estende da Antigüidade aos nossos dias no panorama geográfico denominado segundo convenção muito comum de Ocidental A amostra é suficientemente ampla abrangendo mais ou menos 25 séculos para servir como prova de que nas ideologias a essência do Direito vai transparecendo embora de forma incompleta ou distorcida Entretanto vamos abrir uma seção preliminar a fim de esclarecer em que sentido estamos empregando o termo ideologia que é utilizado por diferentes autores numa variedade considerável de significados Desta maneira será possível mostrar que as abordagens diversas não se excluem reciprocamente mas ao contrário se integram representando simplesmente modos distintos de colocarse o observador perante o mesmo fenômeno Ideologia significou primeiramente o estudo da origem e funcionamento das idéias em relação aos signos que as representam mas logo passou a designar essas idéias mesmas o conjunto de idéias duma pessoa ou grupo a estrutura de suas opiniões organizada em certo padrão Todavia o estudo das idéias e seus conjuntos padronizados começou a destacar as deformações do raciocínio pelos seus conteúdos e métodos distorcidos ao sabor de vários condicionamentos fundamentalmente sociais Por outras palavras descobriuse que a imagem mental não corresponde exatamente à realidade das coisas Esta verificação era irresistível na análise das ideologias e por isto mesmo o escritor francês Stendhal ficou muito irritado ante a mera proposta de um estudo desse tipo Não é muito agradável saber que andamos iludidos e Stendhal chegou a desabafarse de forma pitoresca um tratado de ideologia é um desaforo Então pensam que eu não raciocino corretamente Aliás é isto mesmo que ocorre ninguém raciocina com absoluta perfeição e há sempre uma boa margem de deformações a que não escapam as próprias ciências Queremos dizer que também nestas se intromete certo grau de ideologia afetando as premissas princípios que servem de base a um raciocínio e as conclusões a que chegam os cientistas Assim no desenvolvimento de suas pesquisas sobre o que chama discurso competente Marilena Chauí mostrou com acerto de que maneira a ciência não só carrega elementos ideológicos no seu interior mas até serve à dominação social dos donos do poder quando impõem aqueles falsos conteúdos à práxis social Basta pensar por exemplo no que fazem os Chicago boys criados na incubadora do economista Friedman e depois usados como assessores científicos do autoritarismo chileno ou até na política sócio econômica da Sra Thatcher a dama de ferro do conservantismo inglês A partir duma quota fatal de interferências ideológicas de idéias preconcebidas e modeladas conforme os posicionamentos classísticos o estudo das ideologias e a crítica do seu teor e efeitos encaminharamse no sentido de falar da ideologia não mais como simples conjunto de idéias formando um padrão mas apenas no setor desses conjuntos ou em conjuntos inteiros que carregam e transmitem as deformações Desta maneira surgiu o emprego atual mais comum do termo ideologia como uma série de opiniões que não correspondem à realidade Neste ponto é que surgem aquelas diferentes abordagens que já mencionamos Desprezando matizes e sutilezas é talvez possível reunilas em três modelos principais a ideologia como crença b ideologia como falsa consciência c ideologia como instituição Nos dois primeiros ela é considerada em função dos sujeitos que a absorvem e vinculam no terceiro é procurada na sociedade e independentemente dos sujeitos A ideologia como crença mostra em que ordem de fenômenos mentais ela aparece A ideologia como falsa consciência revela o efeito característico de certas crenças como deformação da realidade A ideologia como instituição destaca a origem social do produto e os processos também sociais de sua transmissão a grupos e pessoas Quando se fala na ideologia como crença não se faz referência especial às crenças religiosas embora estas últimas possam estar como efetivamente estão infestadas de elementos ideológicos A ideologia como crença opõe esta última às idéias no sentido que a ambas as palavras dava o pensador espanhol Ortega y Gasset Por mais direitista que fosse nem por isto ele seria incapaz de em muitos pontos acertar o martelo nos pregos em vez de golpear os dedos Fazemos esta observação porque notamos que certas pessoas têm o hábito de discordar em princípio do nome ou da posição social dos autores dispensandose de verificar se com tudo isso o que eles dizem a respeito de um tema é certo ou errado Já lemos um texto em que toda a filosofia de Kant a grande figura do idealismo alemão era explicada resumida e liqüidada em duas palavras pequenoburguesa Embora sejamos adversário de Kant este juízo sumário parecenos inaceitável porque não explica a diferença entre Kant e outro qualquer pequenoburguês não aprecia validamente todas as suas idéias algumas das quais são exatas nem liqüida a sua influência na história do pensamento que vai da direita à esquerda compreendendo inclusive não poucos marxistas Ortega considerava as idéias como algo que adquirimos através dum esforço mental deliberado e com o maior grau possível de senso crítico As crenças ao contrário representariam opiniões préfabricadas que nos vêm pelo contágio do meio da educação e do lugar que ocupamos na estrutura social Diz ele que as idéias nós temos e nas crenças estamos isto é nem nos ocorre discutilas tão óbvias nos parecem E exato que para Ortega as crenças podem ser positivas e negativas ao exame exterior que delas se faça não se discutindo que se alguém crê sem refletir sobre isto que a parede à frente é intransponível pelo seu avantajado corpo faz muito bem quando evita uma topada desastrosa Mas em todo caso a natureza subliminar inconsciente das crenças é que lhes vai dar uma característica favorecedora da ideologia Em síntese diríamos que nem toda a crença é ideologia pode ser um resíduo válido de certezas adquiridas mas toda ideologia se manifesta como crença na medida em que nesta ficamos sem verificar se assim fazendo é adotada a boa ou má posição simplesmente parece que outra qualquer posição é inconcebível e só pode surgir por burrice ignorância ou safadeza dos que a mantêm A ideologia portanto é uma crença falsa uma evidência não refletida que traduz uma deformação inconsciente da realidade Não vemos os subterrâneos de irreflexão em que a fomos buscar e ao contrário ela nos traz a ilusão duma certeza tal que nem achamos necessário demonstrála Raciocinamos a partir dela mas não sobre ela de vez que considerála como objeto de reflexão e fazer incidir sobre aquilo o senso crítico já seria o primeiro passo da direção superadora isto é iniciaria o processo da desideologização Por isso mesmo aceitamos de bom grado a troca de idéias mas suportamos com dificuldade um desafio às crenças Quem remexe nelas arriscase a receber um xingamento ou um coice A ideologia como crença falsa levanos portanto à abordagem da falsa consciência E esta última se exprime com tanto mais vigor quanto mais frágeis listo é falsos são os seus presumidos fundamentos Estes passam a guiar então as nossas atitudes e raciocínios como evidências desvairadas O escritor francês Alain dizia que se trata dum delírio declamatório na medida em que repetimos tranqüilamente e se contestados repetimos exaltadamente os maiores e mais convictos despropósitos Pense o leitor na energia com que o racista proclama a superioridade do branco sobre o negro com que o machista denuncia a inferioridade da mulher diante do homem com que o burguês atribui ao radical o rompimento da paz social que é na verdade o sossego para gozar sem contestação os seus privilégios de classe dominante A falsa consciência introduzse nas análises da ideologia sobretudo a partir das contribuições marxistas Não se trata de má fé assinalam Marx e Engels de vez que a má fé pressupõe uma distorção consciente e voluntária a ideologia é cegueira parcial da inteligência entorpecida pela propaganda dos que a forjaram O discurso competente em que a ciência se corrompe a fim de servir à dominação mantém ligação inextrincável com o discurso conveniente mediante o qual as classes privilegiadas substituem a realidade pela imagem que lhes é mais favorável e tratam de impôla aos demais com todos os recursos de que dispõem órgãos de comunicação de massas ensino instrumentos especiais de controle social de que participam e é claro com forma destacada as próprias leis Mas a esta altura sem dúvida já nos deslocamos da natureza e efeitos da ideologia para as suas origens Nesta ordem de investigações também é grande a influência do marxismo em todo o pensamento contemporâneo Uma disciplina chamada Sociologia do Conhecimento cuja finalidade científica é investigar as raízes sociais de qualquer tipo de saber constitui quer queiram quer não os seus autores um diálogo com o marxismo em que muito mais é recebido do que reelaborado Basicamente foi o marxismo que propôs uma explicação das origens da ideologia apontando os interesses e conveniências dos que controlam a vida social já que nesta se apropriaram dos meios de produção econômica e de tudo o que representa a força e o poder inclusive os meios de comunicações de massas a organização do ensino e a produção das leis As formações ideológicas estariam assim relacionadas com a divisão de classes favorecendo uma privilegiada e se impondo à outra espoliada na própria base da sua existência material Tal dominação evidentemente não será eterna pois as contradições da estrutura acabam rompendo a pirâmide do poder e conscientizados nisto os que carregam o peso da opressão abrese espaço à contestação da ideologia oficial Mas decerto convém matizar este influxo na proporção mesma do processo dialético que está no cerne do marxismo apesar de obscurecerse bastante quando certas derivadas dele se desviam para a visão dogmática e mecânica Engels dizia com bastante ênfase que o materialismo histórico pretende ser um guia para o estudo não uma receita fácil a fim de que se derive sem mais da estrutura social básica tudo o que vier a ocorrer O fato é que não se pode reconduzir em linha reta qualquer fenômeno ideológico à organização sócioeconômica Há produtos ideológicos relativamente solúveis sem troca do modo de produção como os há relativamente indissolúveis mesmo quando a troca se consumou Exemplo disto é o machismo já citado que se vai atenuando em certas sociedades capitalistas e resiste com mais vigor em determinados países de socialismo implantado ao menos quanto à base material das relações de produção Em todo caso as ideologias absorvidas e definidas por este ou aquele sujeito não são por ele criadas mas recebidas É isto que suscita a abordagem da ideologia como instituição como algo que se cria e se manifesta na sociedade e não na cabeça deste ou daquele indivíduo A ideologia é fato social exterior anterior e superior aos indivíduos antes de tornarse um fato psicológico enquanto invade a formação mental entrando sorrateira nas profundezas da mente Porém não se trata propriamente dum aparelho ideológico já que esta metáfora significação duma palavra estendida a outra coisa semelhante ao que ela designa tem o risco de sugerir uma forma também mecânica de atuação Neste caso o homem seria boneco inerte fatalmente preso às determinações externas E quem escaparia para corrigir a deformação ou proclamála incorrigível Aliás existe uma espécie curiosa de maniqueísmo doutrina que vê tudo como uma espécie de banguebangue com os mocinhos dum lado e os bandidos do outro na oposição entre ideologia e ciência que tende a considerar ideologia o saber dos outros e ciência imaculada o saber de tais maniqueus Em verdade as coisas são muito mais complicadas porque ficamos sempre oscilando entre a crença iludida e a ciência retificadora que de qualquer forma nunca se põe definitivamente como perfeita e acabada E coletivamente não participamos duma tragédia em que todos se agitam em vão arrastados para a catástrofe inevitável como um bando de cegos incuráveis participamos ao contrário de um drama em que os personagens buscam o seu itinerário lutando contra barreiras de todo gênero e com a chance duma vitória final contra o destino na medida em que temos a possibilidade de transformar a cegueira em miopia e procurar os óculos mais aperfeiçoados para ver o caminho Marx já lembrava que não somos nem totalmente livres nem totalmente determinados Se podemos superar as determinações elas são portanto antes condicionamentos determinações vencíveis e não fatais e é assim que se entende melhor a posição de Marx ao dizer que a maneira de superar as determinações é conscientizálas A propósito um autor francês Cuvillier já observou que em textos fundamentais do marxismo a flexão alemã bedingt condiciona tende a ser traduzida inexatamente como determina De qualquer maneira a superação das determinações já acentua a participação ativa do homem e não apenas o funcionamento de máquinas e aparelhos Por outro lado há condições sociais que favorecem a conscientização elas emergem quando as contradições duma estrutura social se agravam e a crise mais funda torna claros os contrastes entre a realidade e as ideologias Hoje o operário não tira mais o boné fazendo uma reverência ao sr dr que passa fumando charuto e com a mais valia no bolso Ele já percebeu que existe algo errado no sistema em que o valor dos bens produzidos pelo seu trabalho não corresponde à parte que lhe cabe a título de salário e é precisamente nesta diferença que consiste a maisvalia cujo destino é demasiadamente óbvio para que o trabalhador se conforme com vêla engordar a riqueza do capitalista enquanto a miséria do povo se torna cada vez mais dolorosa A crise econômica e mais amplamente a crise social determinam rachaduras nas paredes institucionais e rompem o verniz das ideologias Dentro deste clima não é mais possível o funcionamento por exemplo daquela crença de que cada um tem o seu lugar como se este fosse imposto pela natureza das coisas por Deus ou pela racional partilha e não pelos interesses entronizados duma classe dominante A propósito de dar a cada um o que é seu como principio jurídico mostrava o grande jurísta João Mangabeira que é expressão muito velha da separação social das classes entre os proprietários e os nãoproprietários entre os dominantes e os espoliados porque se a justiça consiste em dar a cada um o que é seu dêse ao pobre a pobreza ao miserável a miséria ao desgraçado a desgraça que isso é o que é deles Nem era senão por isso que ao escravo se dava a escravidão que era o seu no sistema de produção em que aquela fórmula se criou Mas bem sabeis que esta justiça monstruosa tudo pode ser menos justiça A regra da Justiça deve ser a cada um segundo o seu trabalho como resulta da sentença de São Paulo na carta aos Tessalonicenses enquanto não se atinge o princípio de a cada um segundo a sua necessidade A medida que a crise social desenvolve as contradições do sistema emergem as conscientizações que apontam os seus vícios estruturais e surge um pensamento de vanguarda que vê mais precisamente onde estão os rombos superando a ideologia e fazendo avançar a ciência Um jurista atual não pode mais receber o seu rubi de bacharel repetindo com serenidade a cada um o que é seu como se fosse a serena verdade do Direito A ciência porém não será nunca repetimos definitiva acabada e perfeita A verdade absoluta recordanos o marxista polonês Adam Schaff é apenas um limite ideal como na série matemática um limite que efetivamente vai recuando cada vez mais à medida que avançamos Isto não quer dizer que as verdades relativas alcançadas pelo homem sejam menos objetivas e válidas a opção a fazer nota Schaff é pela verdade mais completa possível na etapa atual e a fim de procurála é preciso combater em sua origem a sociedade injusta e em nós mesmos pela conscientização assentada numa práxis libertadora os fantasmas ideológicos a fim de que não nos transformemos naquele tipo de intelectual atarantado que contesta sem saber bem o quê nem por que Este já foi corretamente visto como a face exótica do poder Em síntese a formação ideológica fatoinstituição social oriunda em termos gerais de contradições da estrutura sócioeconômica mas não exclusivamente redutfvel a estas pois com relativa independência aparece subsiste ou se dissolve cristaliza um repertório de crenças que os sujeitos absorvem e que lhes deforma o raciocínio devido à consciência falsa isto é a inconsciência de que eles são guiados por princípios recebidos como evidências e que na verdade constituem meras conveniências de classe ou grupo encarapitados em posição de privilégio No esforço para nos libertarmos desses condicionamentos floresce por outro lado uma conscientização favorecida em seu impulso crítico pelas crises que manifestam as contradições da estrutura social onde primeiro surgiram as crenças agora contestadas ou de contestação viável se não nos acomodarmos na alienação desligando a mente do que vai em torno O grau desta conscientização a sua própria coerência e persistência dependem sempre do nosso engajamento numa práxis numa participação ativa conseqüente Não adianta ver que o mundo está errado e encolher os ombros fugindo para algum paraíso artificial no porre no embalo no sexo obsessivo ou na transferência de qualquer atuação positiva para mais tarde noutra vida no além E quando falamos em práxis é evidente que ela pode ser também de maior ou menor amplitude mas a atitude modesta limitada mesmo já é uma forma válida de participar pelo discurso pelo voto pela arregimentação pela ajuda material e moral a espoliados e oprimidos Tudo isto se reflete nas ideologias jurídicas Tal como as outras elas aparecem dando expressão em última análise aos posicionamentos de classe tanto é assim que as correntes de idéias aceitas podem mudar e de fato mudam conforme esteja a classe em ascensão relativa estabilidade ou decadência Veremos adiante por exemplo que a burguesia chegou ao poder desfraldando a bandeira ideológica do direito natural com fundamento acima das leis e tendo conquistado o que pretendia trocou de doutrina passando a defender o positivismo jurídico em substância a ideologia da ordem assente Pudera A guitarra legislativa já estava em suas mãos A primeira fase contestou o poder aristocráticofeudal na força do capitalismo em subida para dominar o Estado A segunda fez a digestão da vitória pois já não precisava mais desafiar um poder de que se apossara É daí que surge a transformação do grito libertário invocando direitos supralegais em arroto social de pança cheia não admitindo a existência de Direito senão em suas leis Apesar de tudo as ideologias jurídicas encerram aspectos particularmente interessantes além de traduzirem conquanto deformados elementos da realidade Porque distorção é precisamente isto a imagem alterada não inventada O Direito alongado ou achatado como reflexo numa superfície côncava ou convexa ainda apresenta certas características reconhecíveis Resta desentortar o espelho tornálo tanto quanto possível plano e abrangedor dentro das condições atuais de reexame global Isto se beneficia por outro lado como processo de conscientização da crise do Direito isto é desse direito que ainda aparece nos compêndios nos tratados no ensino e na prática de muitos juristas no discurso do poder e até por lamentável contágio no de certos grupos e pessoas de sincero engajamento progressista Estes últimos desafiam o estreito legalismo como se ali residisse o Direito inteiro e assim com o desaparecimento de leis que representam mera conveniência e interesse duma ilegítima dominação pensam que sumirá o Direito mesmo Procuraremos demonstrar adiante que isto não é exato e que ao contrário andava certo o eminente colega Dalmo Dallari quando noutro volume desta coleção escreveu na realidade o direito usado para dominação e injustiça é um direito ilegítimo um falso direito O que se faz aqui é ampliar desenvolver este excelente ponto de partida esboçando uma abordagem global do Direito sob o ponto de vista dialético PRINCIPAIS MODELOS DE IDEOLOGIA JURÍDICA Não é possível repassar agora todas as ideologias jurídicas uma por uma Vamos portanto simplificar o imenso repertório de doutrinas que aparecem da Antigüidade aos nossos dias Tomaremos apenas dois modelos básicos em torno dos quais se polarizam os diferentes subgrupos ideológicos a que só faremos um breve aceno sem descer a pormenores da posição de autores e movimentos Fundamentalmente aquelas ideologias situamse entre o direito natural e o direito positivo correspondendo às concepções jurisnaturalista e positivista do Direito A estas duas daremos portanto especial atenção porque a maior parte dos juristas ainda hoje adota uma ou a outra como se fora de ambas não houvesse maneira de ver o fenômeno jurídico É certo que muitos autores tradicionais não se julgariam corretamente enquadrados numa dessas duas posições mas quando observamos os alicerces da construção que pretende ser diferente aparece ali a mesma oposição que se pretendia evitar entre direito positivo e direito natural Antes de fazer um exame especial destas duas resistentes concepções que assinalam a grande cisão das ideologias jurídicas de um lado o Direito como ordem estabelecida positivismo e de outro como ordem justa iurisnaturalismo daremos uns exemplos daquelas doutrinas que supostamente fugiram ao dilema Assim Miguel Reale entre outros recusaria a classificação como positivista e no entanto para este filósofo do Direito é na ordem que se encontra a raiz de toda a elaboração jurídica em toda a comunidade é mister que uma ordem jurídica declare em última instância o que é lícito ou ilícito E para mais enfatizar este posicionamento o mesmo destacado pensador da direita repete e endossa uma frase de Hauriou no sentido de que a ordem social representa o minimum de existência e a justiça social é um luxo até certo ponto dispensável Não se poderia fixar mais claramente a opção positivista Depois disto qualquer acréscimo ou matizamento é secundário permanece no âmago o compromisso com a ordem estabelecida e as barreiras que ela opõe ao Direito justo não seriam jamais transponíveis porque na verdade para o positivista a ordem é a Justiça Por outro lado o jurista alemão Hans Welzel afirma expressamente que não é iurisnaturalista e no entanto admite certos princípios fixos inalteráveis anteriores e superiores às leis e que nenhum legislador pode modificar validamente Por isso mesmo é comumente classificado como um adepto do direito natural Somente uma nova teoria realmente dialética do Direito evita a queda numa das pontas da antítese teses radicalmente opostas entre direito positivo e direito natural Isto é claro como em toda superação dialética importa em conservar os aspectos válidos de ambas as posições rejeitando os demais e reenquadrando os primeiros numa visão superior Assim veremos que a positividade do Direito não conduz fatalmente ao positivismo e que o direito justo integra a dialética jurídica sem voar para nuvens metafísicas isto ésem desligarse das lutas sociais no seu desenvolvimento histórico entre espoliados e oprimidos de um lado e espoliadores e opressores de outro Esta síntese dialética será exposta nas conclusões deste livrinho Por enquanto vejamos o panorama tal como ele se apresenta nas ideologias jurídicas duma tradição que ainda empolga e divide em facções opostas os cultores rotineiros do Direito pois antes de esboçar um passo adiante é preciso ter em mente o caminho percorrido pelos antecessores e que decerto não foi inútil nem mesmo quando representou uma deformação ideológica E a própria tábua sobre a qual se balançaram e balançam ainda tantos juristas ilustres que há de servirnos como trampolim para o salto dialético Embora o jurisnaturalismo a ideologia do direito natural seja a posição mais antiga e de nenhum modo inteiramente liquidada é o positivismo que hoje predomina entre os juristas do nosso tempo seja ele o que assenta na ordem burguesa e capitalista seja o que como legalismo socialista representou aquele mesmo tipo de congelamento característico por exemplo no stalinismo e que ainda prevalece na URSS Tal congelamento aliás tende a desaparecer nas mais avançadas construções de uma filosofia jurídica realmente dialética Esta intenção superadora ainda hesitante é muito nítida nos mais avançados escritores atuais da teoria socialista do Direito que combatem o estreito legalismo tanto nos países de modelo socialista implantado em termos sócioeconômicos como é o caso de Imre Szabó ou Zoltán Péteri na Hungria quanto em autores socialistas que trabalham nos países de estrutura fundada no capitalismo como era o caso de Ernst Bloch na Alemanha até a sua morte e ainda é o de Michel Miaille na França em obras mais recentes A estes dois últimos faremos referência especial a propósito de uma tensa limitada mas fecunda recolocação da problemática do direito natural sob o ponto de vista do marxismo De qualquer forma trataremos em primeiro lugar do positivismo tal qual ele se apresenta nas ideologias burguesas já que é por assim dizer o trivial variado da cozinha jurídica no mundo capitalista que aí temos à nossa frente Faremos aqui apenas a ressalva de que o legalismo socialista apresenta diferenças resultantes do fato de que é socialista revestindo portanto uma estrutura diversa e socialmente mais avançada enquanto esquema ou modelo contudo vem a dar na mesma pois que apresenta uma redução à ordem posta e portanto ordem do Estado aceita sem mais e subsiste a restrição que como tese jurídica já decai por isso mesmo no pensamento de vanguarda Assim como este do ponto de vista social mais amplo tende a procurar outro sistema de reestruturação socialista de baixo para cima antes no caminho da autogestão de que participa o povo mais diretamente do que na pesada maquinaria autoritária burocráticaestatal que estabelece um domínio de cima para baixo a reflexão socialista mais moderna tende igualmente a buscar uma teoria jurídica mais flexível e afinal propriamente dialética em que se liberte daquela noção de Direito como antes de tudo direito estatal ordem estatal leis e controle incontrolado É na medida em que o socialismo pende para o democrático que a teoria correspondente do Direito pende e avança para o combate ao seu confinamento em estatismo com a subsistência de opressões várias por exemplo a grupos minoritários étnicos ou sexuais Vimos que as duas palavraschave definidoras do positivismo e do iurisnaturalismo são para o primeiro ordem e para o segundo Justiça Isto se esclarece bem nas duas proposições latinas que simbolizam o dilema aparentemente insolúvel entre ambas as posições íustum quia iussum justo porque ordenado que define o positivismo enquanto este não vê maneira de inserir na sua teoria do Direito a crítica à injustiça das normas limitandose ou a proclamar que estas contêm toda justiça possível ou dizer que o problema da injustiça não é jurídico e iussum quia iustum ordenado porque justo que representa o jurisnaturalismo para o qual as normas devem obediência a algum padrão superior sob pena de não serem corretamente jurídicas Este padrão tende por sua vez a apresentarse já dissemos como fixo inalterável e superior a toda legislação mesmo quando sé fala num direito natural de conteúdo variável Este que aparece com o jurista alemão Stammler também não altera a postura uma vez que o conteúdo é concebido apenas como variação material de normas dentro de uma ordem de princípios universais de ordenação Isto reduz o número de princípios de direito natural que entretanto permanecem fixos e abre caminho a toda espécie de particularização que acaba entregando os pontos ao Estado mas tal vicio não é apenas da construção do Stammler e sim como veremos de praticamente todo o direito natural O positivismo de qualquer sorte é uma redução do Direito à ordem estabelecida o iurisnaturalismo é ao contrário um desdobramento em dois planos o que se apresenta nas normas e o que nelas deve apresentarse para que sejam consideradas boas válidas e legítimas Em que medida o jurisnaturalismo cria não a superação do positivismo porém antinomia contradição insolúvel entre dois princípios entre a ordem justa e a ordem estabelecida e por outro lado se ele consegue ou não fundamentar convincentemente o plano jurídico superior que serve de estalão para medir as normas jurídicas encontradas na vida social eis aí duas questões que examinaremos quando vier à consideração o próprio direito natural Por enquanto verifiquemos as posições e barreiras do positivismo Ele sempre capta o Direito quando já vertido em normas seu limite é ordem estabelecida que se garante diretamente com normas sociais nãolegisladas o costume da classe dominante por exemplo ou se articula no Estado como órgão centralizador do poder através do qual aquela ordem e classe dominante passam a exprimirse neste caso ao Estado é deferido o monopólio de produzir ou controlar a produção de normas jurídicas mediante leis que só reconhecem os limites por elas mesmas estabelecidos De todo modo as normas isto é como vimos os padrões de conduta impostos pelo poder social com ameaça de sanções organizadas medidas repressivas expressamente indicadas com órgão e procedimento especiais de aplicação constituem para o positivismo o completo Direito E notese que no caso se trata das normas da classe dominante revestindo a estrutura social estabelecida porque a presença de outras normas de classe ou grupos dominados não é reconhecida pelo positivismo como elemento jurídico exceto na medida em que não se revelam incompatíveis com o sistema portanto único a valer acima de tudo e todos daquela ordem classe e grupos prevalecentes Quando o positivista fala em Direito referese a este último e único sistema de normas para ele válidas como se ao pensamento e prática jurídicas interessasse apenas o que certos órgãos do poder social a classe e grupos dominantes ou por elas o Estado impõem e rotulam como Direito É claro que vai nisto uma confusão pois tal posicionamento equivale a deduzir todo Direito de certas normas que supostamente o exprimem como quem dissesse que açúcar é aquilo que achamos numa lata com a etiqueta açúcar ainda que um gaiato lá tenha colocado pódearroz ou um perverso tenha enchido o recipiente com arsênico Há porém várias espécies de positivismo Destacaremos no mínimo três o positivismo legalista o positivismo historicista ou sociologista o positivismo psicologista Vamos explicar brevemente em que consistem eles O positivismo legalista voltase para a lei e mesmo quando incorpora outro tipo de norma como por exemplo o costume dá à lei total superioridade tudo ficando subordinado ao que ela determina e jamais sendo permitido de novo a título de exemplo invocar um costume contra a lei Não é este contudo o único positivismo Há também o positivismo historicista ou sociologista A modalidade historicista recua um passo e prefere voltarse para as formações jurídicas prélegislativas isto é anteriores à lei Mergulha então nas normas jurídicas não escritas não organizadas em leis e códigos mas admitidas como uma espécie de produto espontâneo do que se chama espírito do povo Acontece que este fantasma utilíssimo à ordem dominante atribui ao povo os costumes principais aqueles mores indicados pelos antropólogos e que são os costumes considerados essenciais para a manutenção da ordem social Ora estes mores são sempre os da classe e grupos dominantes mascarados pelo historicismo positivista sob o rótulo de produtos do espírito do povo Desta maneira não importa muito que se desloque o foco da legislação imposto pelo Estado para os mores de vez que estes sendo focalizados em termos de mores da classe e grupos dominantes e o Estado sendo expressão da mesma classe é também à mesma ordem a que ambos historicismo e legalismo se referem e consideram inatacável De qualquer forma quando aparece a legislação estatal aquelas formulações prélegislativas tendem a ceder precedência às leis e só se aplicam supletivamente isto é nas áreas em que não há disciplina legislativa E o caso por exemplo do common law angloamericano direito consuetudinário dos costumes que não prevalece contra lei expressa A modalidade sociologista de positivismo tem ligação íntima com a historicista por isto foram citadas num só grupo uma vez que é apenas uma generalização do historicismo Queremos dizer que em vez de focalizar um direito costumeiro afinal engolido pelas leis estatais quando aparecem estas o sociologismo propõe o esquema da abordagem historicista generalizandoo Assim ele se volta para o sistema de controle social que reveste a ordem estabelecida e na qual o Estado seria apenas um representante daquela ordem que lhe dá substância validade e fundamento De certo modo ainda mais se destaca aqui a dominação classística pois fica bem clara a natureza e posição dos grupos e pessoas que encarnam a ordem listo é antes de tudo a classe dominante de que o Estado é visto como simples portavoz A presença de outros projetos outras instituições oriundas de outra classe e grupos não dominantes é desprezada O Direito aparece tãosó como forma de controle social ligado à organização do poder classístico que tanto pode exprimirse através das leis como desprezálas rasgar constituições derrubar titulares e órgãos do Estado legal tomando diretamente as rédeas do poder Estas contradições da classe dominante no entanto acabam reforçando a dominação pois o que invoca o novo grupo do poder é a mesma ordem social que entendia mal defendida pelos seus representantes É assim como se o mandante cassasse os mandatos de seus procuradores mais ou menos infiéis com receio de que estes entreguem o ouro aos banidos do poder isto é os dominados que devem continuar dominados Vêse então que as contradições à superfície representam uma coerência mais profunda a da dominação é claro No positivismo sociologista é a classe dominante a que ele não alude por motivos óbvios como tal preferindo falar na sociedade como se esta por presunção inatacável estivesse bem defendida por aquela classe que pretende exprimir a cultura e traçar a organização social a resguardar pelos mecanismos de controle e segurança desta ordem estabelecida O comportamento divergente dos grupos e classe dominados seus padrões de conduta com normas opostas às normas do sistema são vistos como subculturas comportamentos aberrantes antijurídicos uma patologia que constitui problema social a ser tratado com medidas repressivoeducativas para conduzir os transviados ao bom caminho Se cresce a contestação a atitude anômica isto é que contesta o nomos as normas da ordem estabelecida as hipocrisias paternalistas logo tiram a máscara abandonam o mito da educação dos dominados segundo os padrões da classe e grupos dominantes e para melhor servilos e saem para a ignorância no sentido popular da palavra isto é recorrem à porrada que os donos do poder e seus dóceis servidores consideram perfeitamente jurídica Noutras palavras o positivismo legalista historicista ou sociologista os dois últimos reforçando o primeiro a que se acabam rendendo canoniza a ordem social estabelecida que só poderia ser alterada dentro das regras do jogo que esta própria estabelece para que não haja alteração fundamental Aliás se as regras do jogo apesar de todas as cautelas e salvaguardas trazem o risco de vitória mesmo pelas urnas e dentro das canais da lei de correntes reestruturadoras o poder em exercício pressionado pelas forças do sistema e pelo seu próprio gosto de ficar no topo da pirâmide trata de mudar as ditas regras do jogo empacotando outro conjunto de normas legais É assim como se o árbitro criasse um novo caso de impedimento no meio da partida Isto quando o time que não lhe é simpático já via toda defesa adversária furar e cair diante do jogador mais ágil que está sozinho diante do goleiro e na iminência de fazer gol Aliás sé os representantes da ordem estabelecida chegando ao poder estatal hesitam ou se revelam mais receptivos à pressão popular pelas reestruturações sociais a mesma classe dominadora não teme substituílos por outros mais enérgicos ainda que para isto rompa todo um ciclo de legalidade e substitua a legalidade feita por outra então considerada intocável E durante esta substituição os juristas do positivismo ficam no terrível suspense esperando para ver quem vai dar as cartas do jogo isto é as novas leis que tais rábulas diplomados e endomingados interpretarão e aplicarão com a maior cara de pau e todos os balangandãs da técnica jurídica Se porém a situação interna se transmuda e a classe dominante é derrotada mesmo nas urnas chegando as forças progressistas ao poder o sistema imperialista de controle internacional não tarda a intervir fomentando a resistência a isto sé chama desestabilizar governos desprezando o princípio de autodeterminação dos povos e mandando dinheiro e armas para manter a ordem nos quintais de sua zona de influência No meio deste jogo violento o positivismo psicologista desempenha o papel de inocente útil Nele o espírito do povo não fica pairando na sociedade baixa na cuca de um ou mais sujeitos privilegiados São estes que pretendem 1 haver descoberto o direito livre dentro de suas belas almas revelando um sentimento do direito ou 2 que deferem aos juízes como no judgemade law o direito criado pela magistratura de certas ideologias norteamericanas o poder judicial de construir normas além e acima do que está nas leis um direito mais rápido realista e concreto do que o dos códigos ou ainda 3 vão à busca duma essência fenomenológica do direito que não tem o romantismo do direito livre ou o pragmatismo neste o critério da verdade é o sucesso do direito dos juízes mas também não rende mais do que umas fumaças pretensiosas Dá tudo no mesmo e o que este buquê de ideologias tem de comum de psicologista é a transferência de foco passando daquele panorama exterior de leis controle social espírito objetivo do povo para as cabeças dos ideólogos Vejamos um pouco mais de perto o positivismo do terceiro grupo os positivismos psicologistas O sentimento do direito procurado numa intuição livre acaba descobrindo e não por mera coincidência na alma dos pesquisadores a ideologia jurídica peculiar à sua classe e seu grupo isto é os princípios perfeitamente compatíveis com a ordem estabelecida Começando nas belas almas em que a ideologia brota como uma flor e idealizando romanticamente a dominação o sentimento do direito acaba amadurecendo nos mesmos frutos repressivos Nem os senhores delicados do sentimento nem por outro lado os senhores práticos do direito criado por juízes realistas sequer intentam uma crítica real e profunda de pressupostos estabelecidos pela ordem social dominante Ao contrário eles procuram melhor servila apenas achando que a legislação é um caminho muito estreito bruto para os sentimentais ou atrasado para os realistas em relação às exigências de manter a estrutura em perfeito funcionamento com um pouco de água com açúcar ou pondo óleo e peças novas na máquina Restam os artifícios da fenomenologia que é também um positivismo psicologista Aqui há pretensões menos românticas mas o processo nem por isto deixa de parecernos uma espécie de mágica besta Sua intenção declarada aliás seria ultrapassar o psicologismo ir às coisas mesmas aos fenômenos e por assim dizer descascálos até que revelem no âmago a própria essência Mas perguntemos quais são os fenômenos assim descascados São os fatos de dominação que os legalismos historicismos e sociologismos apresentaram como jurídicos isto é de novo e sempre a ordem estabelecida e seus instrumentos de controle social Este não é jamais questionado e sim trabalhado mentalmente pelo fenomenólogo até que só reste a essência da dominação E qual o processo utilizado para extrair a essência Como é que o fenomenólogo pretende atingir as coisas mesmas Com a sua visão individual que acaba transferindo para o objeto os próprios elementos ideológicos do observador Lukács observa que se trata duma abertura para o mundo de um sujeito que na verdade não sai de si mesmo Dizendo que se libertou da psicologia e das representações mentais para ver as coisas no que essencialmente são o fenomenólogo toma as coisas no caso os fenômenos jurídicos tal como as apresentou um fato de dominação e busca a essência dele numa laboriosa visão que esquece de tirar os óculos de lentes deformadoras que a ideologia pôs no seu nariz Finalmente e muito entusiasmado grita que já morou na essência daquilo Nem foi à toa que as mais laboriosas pretensões fenomenológicas na teoria do Direito acabaram casando com a teoria pura de Hans Kelsen isto é a fenomenologia jurídica de Kaufmann ou de Schreier não passa de um caminho complicado para o positivismo legalista de Kelsen Todas as formas do positivismo assim rodam num círculo porque a partir do legalismo giram por diversos graus para chegarem ao mesmo ponto de partida que é a lei e o Estado Em todo esse jogo de positividades manhosas entretanto a argúcia de Radbruch apontou um limite é que mesmo no plano ideológico o positivismo que diviniza a lei e a ordem como se ali estivesse o Direito inteiro há de oferecer um qualquer fundamento jurídico para tal ordem tal Estado produtor de leis tal privilégio e exclusividade de produzir leis que seria do Estado E Radbruch o grande iurisfilósofo alemão com certeira malícia nos mostra que o positivismo neste empenho pressupõe um preceito jurídico de direito natural na base de todas as suas construções isto é um preceito jurídico anterior e superior ao direito positivo O que se pretende afirmar assim é que ou o positivismo se descobre como nãojurídico fazendo derivar o Direito do simples fato de dominação ou para tentar a legitimação da ordem e do poder que nela se entroniza recorre a um princípio que não é o direito positivo este direito já feito e imposto em substância pelo Estado pois a função daquele princípio é precisamente dar fundamento jurídico ao direito positivo Afinal de contas por que se atribui ao Estado o monopólio de produzir Direito com a legislação Que razão jurídica legitimaria este privilégio Nenhum positivista escapa a esta questão no máximo ele a transfere para outra sede isto é procura oferecer à sua ideologia jurídica o aval de sua ideologia política o que não deixa de ser engraçado em quem se afirma objetivo isento até neutro politicamente Um caso extremo é o de Kelsen a que aludiremos brevemente porque ele nos conduz aos limites do paradoxo na sua teimosia positivista Assim é que para conservar aquele mito da neutralidade afirma que o Direito é apenas uma técnica de organizar a força do poder mas desta maneira deixa o poder sem justificação como que nu e pronto a ferrar todo o mundo mas de calças arriadas com perigo para sua dignidade portanto o mesmo Kelsen acrescenta que a força é empregada enquanto monopólio da comunidade e para realizar a paz social Desta maneira opta pela teoria polftica liberal que equipara Estado e comunidade como se aquele representasse todo o povo ocultando deste modo a dominação classística e dos grupos associados a tais classes Chamase então de paz social a ordem estabelecida em proveito dos dominadores e tentando disfarçar a luta de classes e grupos Ora este artifício que põe no Estado sempre a paz e o interesse da comunidade é mais do que poderia engolir um iurisnaturalista consciente Onde ficam perante isso o Direito de resistência à tirania ao poder usurpado E a guerra justa contra os Estados imperialistas que atacam nações mais fracas como o lobo ao cordeiro Junto à questão do Estado emerge a da segurança jurídica outro mimo da ideologia positivista Afirmase que há segurança para os cidadãos tendose em vista que as preceituações legais estabelecem como todos devem pautar a sua conduta a fim de evitar as sanções estabelecidas no caso dum descumprimento dos deveres que as leis impõem Mas haverá maior insegurança do que uma determinação sem limites através da legislação do que é permitido ou proibido além do mais realizada por um certo poder que se dispensa de provar a própria legitimidade Este poder ao contrário se presume legítimo a partir do fato de que está em exercício e chegou á posição desempenhada seguindo os processos que ele próprio estabelece altera e de todas as formas controla a seu belprazer Um círculo de legalidade aliás provindo de uma ruptura mais próxima ou mais remota de outra legalidade não é em si prova de coisa alguma quanto à legitimidade do poder já o repetia entre outros Heller conforme lembramos Qualquer tirania pagava com gosto e paga mesmo este pequeno tributo que é cobrir de leis o corpo nu do poder pensando que isto basta para tornálo inatacavelmente jurídico Radbruch que teve de enfrentar a perseguição de Hitler advertia também que uma legalidade não é suficiente pois em situações comuns ela é em todo caso o revestimento duma estrutura de dominação que é preciso avaliar criticamente e em situações extremas pode ser constituída pelos editos de um paranóico isto é pelas leis de um doente mental com mania de grandeza Volta sempre a questão da fonte suprema de qualquer Direito inclusive do direito de produzir normas legais A idolatria da ordem nunca elimina apenas tenta disfarçar o problema da Justiça Que será entretanto esta Justiça que se põe no centro das preocupações iurisnaturalistas De que maneira mesmo a este nível ideológico emerge a dialética da ordem e da Justiça Ressalvemos que neste ponto estamos fazendo abstração do posicionamento concreto e realmente dialético do problema que só pode ser focalizado a partir da dialética social e não apenas ideológica do Direito O nosso objetivo por enquanto é mostrar que as ideologias jurídicas refletem apesar de tudo algo mais profundo nelas também relativamente deformado O direito natural apresentase fundamentalmente sob três formas todas elas procurando estabelecer o padrão jurídico destinado a validar as normas eventualmente produzidas ou explicar por que elas não são válidas As três formas são a o direito natural cosmológico b o direito natural teológico c o direito natural antropológico A primeira ligase ao cosmo o universo físico a segunda voltase para Deus a terceira gira em torno do homem Dizem que o direito natural tem origem na própria natureza das coisas na ordem cósmica do universo e daí vem a expressão direito natural isto é buscado na natureza Entretanto se nos aproximarmos das concepções do que é tomado como natureza das coisas verificamos que esta é apenas invocada para justificar uma determinada ordem social estabelecida ou revelar o choque de duas ordens também sociais Notemos por exemplo no primeiro caso a atribuição ao direito natural isto é à natureza das coisas da escravidão naquelas sociedades em que o escravagismo é o modo de produção econômica e portanto a base da estrutura assente No segundo caso temos por exemplo o conflito entre os costumes tradicionais religiosos invocados por Antígona na tragédia grega de Sófocles e a lei da CidadeEstado representada por Creonte Desde este último ponto se esboça a especial tensão do iurisnaturalismo que vive oscilando entre os dois pólos já entrevistos por Mannheim sociólogo alemão e mais recentemente focalizados pelo marxista Miaille o direito natural conservador e o direito natural de combate Porque nota este último autor todos os movimentos sociais fundaram se num Direito que exprimia a sua própria situação e reivindicações Assim é que Miaille vai recomendar um novo direito natural de combate e concentrado na luta de classes e na liberação de grupos oprimidos Temos insistido invariavelmente nesta referência a classes e grupos e é preciso explicar que ela distingue o aspecto básico da oposição entre uma classe dominante espoliadora e uma classe dominada espoliada paralelamente à oposição entre grupos opressores e oprimidos esta última oposição não estando diretamente ligada à outra Assim é que Miaille recorda os conflitos de grupos em termos de minorias exigindo o direito à diferença um contraste colateral de alcance jurídico mas não vinculado à questão sócio econômica apenas minorias regionalistas minorias sexuais minorias étnicas Assim como deixamos registrado quanto às ideologias o contraste não representa sem mais um choque classístico podendo dissolverse ou subsistir independentemente da troca do modo de produção Citamos por exemplo o machismo que mantém a opressão da mulher ou dos homossexuais em sociedades cuja base econômica já alterou o sistema classístico e a espoliação maior da injusta distribuição da propriedade As limitações que um novo direito natural apresentaria serão indicadas no final deste capítulo mas de qualquer forma o direito natural de combate pretende fundar um quarto modelo que se poderia chamar de direito natural históricosocial e que nada tem a ver com os tipos tradicionais cosmológicos teológico e antropológico Vimos em que consiste a forma cosmológica a teológica pretende deduzir o direito natural da lei divina Esta iria descendo como que por uma escada Deus manda o sacerdote abençoa o soberano o soberano dita a particularização dos preceitos divinos em suas leis humanas e o povo A este só cumpriria aceitar crer e obedecer É claro que sempre fica admitida em tese a possibilidade dum erro dedutivo em que a lei humana por malícia ou cegueira em vez de concretizar os vagos preceitos da lei de Deus disporia escandalosamente contra esses preceitos Mas isto é minimizado seja porque como em São Tomás de Aquino ao poder social é deferida uma larga discrição no estabelecer o justo particularizado é a tradição que vem de Aristóteles seja porque como em Santo Agostinho se admite que criado e mantido pela Providência Divina o poder social extrai desta investidura uma espécie de apoio moral de Deus para todos os seus abusos O que Deus criou e mantém se entende que exprime o que Deus quer e consagra De outra forma o Senhor destronaria o soberano com um divino pontapé no traseiro Em nosso tempo o filósofo católico Maritain demonstra bem a tendência a minimizar o conflito entre lei divina e lei humana recomendando ao oprimido a coragem de sofrer a paciência diante da dominação interna ou externa o Estado que oprime o povo ou imperialismo que submete este último e até o Estado à dominação estrangeira Assim à força física prepotente nada mais se oporia do que a força moral o que é muito conveniente para o dominador que jamais deu bola para tal superioridade Aliás o direito natural teológico prevalecendo na Idade Média servia muito bem à estrutura aristocráticofeudal geralmente fazendo de Deus uma espécie de político situacionista Mesmo quando a Igreja e o soberano não esqueçamos de que a Igreja era Estado também andavam às turras estas pugnas de gigantes poderosos nada tinham a ver com o povo nem contestavam as bases espoliativas da ordem sócioeconômica Era de novo uma cobertura ideológica para o modo de produção Tanto assim que a burguesia no alvorecer do capitalismo já tendo adquirido o poder econômico partiu para a conquista do poder político adotando outro tipo de iurisnaturalismo o mesmo que as nações emergentes como a Holanda invocavam pata quebrar a partilha do mundo entre as nações católicas dentro da linha traçada pelo Vaticano A contestação burguesa da ordem aristocráticofeudal internamente assim como do sistema internacional montado recorreu então à forma de direito natural que denominamos antropológico isto é do homem que extraía os princípios supremos de sua própria razão de sua inteligência Estes princípios e de novo não por mera coincidência eram evidentemente os que favoreciam as posições e reivindicações da classe em ascensão a burguesia e das nações em que capitalismo e protestantismo davam as mãos para a conquista do seu lugar ao sol Está visto que chegando ao poder a burguesia como já acentuamos descartou o seu iurisnaturalismo passando a defender a tese positivista já tinha conquistado a máquina de fazer leis e por que então apelar para um Direito Superior Bastava a ordem estabelecida Por outro lado no plano internacional as novas correlações de forças iam formarse para a ordem em que o liberal o burguês o capitalista ontem execrados ganhassem trânsito extravasassem nos imperialismos e acabassem até obtendo o reconhecimento do Vaticano que repitamos é também um Estado e como Estado se tornou capitalista Na verdade o direito natural não é tanto imobilista apesar de suas pretensões a critério eterno e fixo de avaliação jurídica como bastante manhoso ele sempre deixa lugar para as concretizações em que os preceitos atribuídos à natureza a Deus ou ao próprio esforço racional tendem a conciliar o padrão absoluto e as leis vigentes Todavia o mero dualismo oposição de direito natural e direito positivo tem uma certa dinâmica que ao menos conserva a idéia potencial duma confrontação É por isto aliás que nas horas de intoleráveis tensões em que o poder instituído vai aumentando a intensidade da prepotência e sua autoridade desgastada vai também fazendo aumentar a intensidade da contestação costuma reaparecer com especial atrativo o velho direito natural Já se falou por isto em eterno retorno diante da longevidade iurisnaturalista Na falta duma visão dialética o jurista não sabe para que apelar quando aparecem as situações monstruosas que a ninguém mais permitem engolir os sapos inevitáveis os sapos tornaramse indeglutíveis Assim é que na Alemanha Ocidental durante o nazismo para a resistência ou após ele para a restauração liberal democrática o iurisnaturalismo ressurgiu com extraordinário vigor Depois de ficar subjacente a todo o julgamento dos criminosos levados ao Tribunal de Nuremberg onde foram julgados após a 2ª Guerra Mundial os dirigentes nazistas o direito natural serviu de fundamento a sentenças da Justiça alemã anulando velhas decisões baseadas em leis nazistas e empolgou as cátedras universitárias daquele país O Direito de resistência à tirania o Direito à guerra de libertação nacional o Direito à guerra justa em geral uma certa preocupação com a legitimidade não só a legalidade do poder têm nítido sabor iurisnaturalísta e esta ideologia se revigora como dissemos a todo instante de maior tensão O mal é que nela as questões vêm tratadas no plano ideal da abstração no sentido de que não conseguem ligar a elaboração teórica aos grupos classes dominações e impulsos libertários sistemas de normas estatais e pluralidade de ordenamentos listo é outros conjuntos de normas jurídicas nãoestatais institucionalizadas e funcionando em círculos de atuação dos grupos oprimidos e classes espoliadas Por outro lado o direito natural fica preso à noção de princípios imortais da natureza de Deus ou da razão humana e quando eles descem à particularização tendem a confundirse com o direito positivo do Estado ou dos grupos e classes prevalecentes Apesar de tudo é possível distinguir naquela dinâmica dos dois direitos o que aparece na ordem estatal ou costumeira e o que surge como direito superior um germe da contestação possível que torna o direito natural afeiçoável às reivindicações supralegais acima das leis a até contra elas e em conseqüência muito propício à utilização nas horas de crise do direito positivo pela classe e grupos dominados É por esse motivo como vimos que Mannheim fala num direito natural progressista perante o conservador e autores marxistas como Ernst Bloch ou Miaille não hesitam em adotálo sob o ângulo dum direito natural de combate Ernst Bloch chegou mesmo a fazer uma longa investigação histórica sobre essa ideologia procurando mostrar que o germe de contestação a que aludimos é muito mais forte do que comumente se pensa Entretanto permanece o dualismo direito positivo e direito natural como uma antinomia uma contradição insolúvel que parte o Direito num ângulo que só vê a ordem e noutro que invoca uma Justiça cujo fundamento não é adequadamente assentado nas próprias lutas sociais e sim em princípios abstratos Por esse motivo era perfeitamente compreensível a irritação de Engels contra Lassalle quando este cogitava dum Direito absoluto uma idéia de Direito pairando acima do processo histórico e suas lutas concretas Engels afirmou então que tal idéia do Direito nada mais era do que o processo histórico mesmo sua direção superadora e libertadora Mas decerto aí podemos discernir não só a práxis dos grupos e classe em ascensão porém na medida em que estas formulam os objetivos de sua luta uma série de reivindicações jurídicas também Isto desde que por Direito não se tome nem o que a ordem dominante estabelece nem um conjunto de princípios que não revelam bem de que fonte extraem substância e validade e por que mudam historicamente ficando uns superados como vimos quanto ao dar a cada um o que é seu e outros aparecendo no horizonte como por exemplo o direito de todos a um nível de vida adequado que emerge na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 consagrando um princípio ganho nas lutas sociais mais modernas Só um fôlego dialético poderia unificar dentro da totalidade do processo histórico e na sua perpétua transformação os aspectos polarizadores de positividade e Justiça de elaboração de normas e padrão avaliador da legitimidade Muitos autores têm reconhecido como Dujardin e Michel que ainda não existe uma teoria dialética de Direito perfeitamente elaborada e que é insuficiente o positivismo de esquerda a equiparação do Direito às normas estatais às leis com o acréscimo de uma explicação em geral bastante mecanicista deste direito pela chamada infraestrutura sócioconômica Dentro desta perspectiva o máximo que se pode fazer é o uso alternativo do direito positivo e estatal como propõem Barcellona e seus seguidores isto é explorar as contradições do direito positivo e estatal em proveito não da classe e grupos dominantes mas dos espoliados e oprimidos A tarefa é de não pequena importância mas também não supre as lacunas da concepção positivista do Direito que analisamos neste capítulo E foi isto que viram os marxistas de outra orientação isto é os que voltaram para um novo tipo de direito natural Entretanto já apontamos o problema de um novo direito natural o iurisnaturalismo de combate ele quer evitar o tipo fixo abstrato de princípios eternos mas não consegue nem dar uma noção global de Direito em que positividade e Justiça se entrosem nem mostrar de que modo o processo histórico mesmo ganha um perfil jurídico O inconveniente aliás vem de que tratam de dois direitos o positivo e o natural sem reperguntar o que é Direito como noção que unifique esses tipos opostos ou seja não chegam à visão históricosocial do Direito mas apenas à oposição históricosocial de dois direitos que não sabem muito bem por que seriam jurídicos Isto fica muito claro em Miaille quando ele fala em direito natural de combate pondo assim entre aspas a palavra Direito como se não fosse um Direito propriamente dito e traindo um vestígio do positivismo de esquerda que só vê Direito sem aspas no direito estatal Em síntese o próprio exame da problemática a nível ideológico mostrounos que o direito positivo é insustentável sem um complemento que o jurista vai buscar no direito natural com todos os defeitos deste porque não vê onde se busque outro apoio nada obstante indispensável Para realizar a nova construção seriam necessários outros materiais e sobretudo outra atitude propriamente dialética que por sêlo não tolera aquela antinomia contradição insolúveis de direito positivo e natural tomados como unidades isoladas estanques e desligadas da totalidade jurídica na totalidade maior históricosocial Numa página célebre a que já fizemos referência João Mangabeira notava que o Direito existe antes do Estado nas sociedades primitivas e que mesmo admitindo o desaparecimento do Estado numa sociedade em que o governo das pessoas seja substituído pela administração das coisas e pela direção do processo de produção o que desaparece é o Estado não o Direito Entretanto se quisermos demonstrar o que este vem a ser nessas transformações da sociedade primitiva à sociedade futura antes do Estado perante o Estado e até depois do Estado qual o fio da meada As ideologias jurídicas deramnos com seus reflexos distorcidos uma visão dos problemas que surgem quando o homem pensa abstratamente sobre o Direito esses problemas entretanto constituem a imagem da realidade da práxis humana da atividade histórica e social do homem no seu ângulo jurídico O caminho para corrigir as distorções das ideologias começa no exame não do que o homem pensa sobre o Direito mas do que juridicamente ele faz Poderemos chegar nisto à dialética do Direito não já como simples repercussão mental na cabeça dos ideólogos porém como fato social ação concreta e constante donde brota a repercussão mental A Sociologia Jurídica é a única base sólida para iniciarmos a nova reflexão a nova Filosofia Jurídica a fim de que esta última não se transforme num jogo de fantasmas ideológicos perdendo nas nuvens o que vem da terra As ideologias jurídicas são filosofia corrompida infestada de crenças falsas e falsificada consciência do que é jurídico pela intromissão de produtos forjados pelos dominadores Para uma concepção dialética do Direito teremos de rever antes de tudo a concepção dialética da sociedade onde o Estado e o direito estatal são a bem dizer um elemento não desprezível mas secundário É ali também que se há de precisar e desentortar a consideração do que apesar de tudo ficou bem claro no exame das ideologias jurídicas e que consiste nas duas vertentes do Direito não como elas continuam a focalizar os dois direitos opostos e separados a positividade manifestada em conjuntos de normas vários conjuntos que conflitam e vêm de classes e grupos em luta e os padrões de legitimidade que nos permitem assumir posição ante aqueles conjuntos sem nos perdermos nalguma idéia de Justiça que voa nas nuvens ou nos voltarmos para uma Justiça Social ainda vaga uma resultante do processo histórico da luta de classes e grupos que não sabe distinguir a face jurídica desse processo O primeiro passo rumo à concepção dialética do Direito será deste modo a Sociologia Jurídica O filósofo alemão Erich Fechner falava na Filosofia Jurídica enquanto Sociologia e metafísica do Direito Para vencer a metafísica do Direito que é ideologia também vamos traçar o esboço duma Sociologia Jurídica que nada fique devendo por outro lado à metafísica da Sociedade uma apresentação desta que utiliza idéias abstratas e falsas crenças mas ao contrário se funde numa ciência dos fatos sociais Sociologia e Filosofia Jurídica se completam pois como assinala Marilena Chauí inspirandose em Merleau não há razão para uma rivalidade entre filósofos e sociólogos os primeiros considerandose possuidores da verdade porque defensores da idéia e os segundos reivindicando para si a posse do verdadeiro porque conhecedores do fato Esta rivalidade priva o filósofo do contato com o mundo e entregao às ideologias e priva o sociólogo da interpretação do sentido de sua investigação o que conduz a sociologia a outros desvios ideológicos também A concepção dialética há de repensálo em totalidade e transformações numa Filosofia Jurídica que é Sociologia e não sociologismo positivista uma ideologia que já criticamos aqui e Ontologia do Direito no sentido que evocamos inicialmente com Lukács e que nada tem de metafísico Para a visão dialética do Direito é necessária uma Sociologia dialética No capítulo seguinte procuraremos explicar em que consiste esta Sociologia SOCIOLOGIA E DIREITO Vimos que as ideologias refletem certas características do Direito embora deformadas porque tendem a polarizarse em torno de duas visões unilaterais e redutoras Os positivistas conservam a tendência a enxergar todo o Direito na ordem social estabelecida pela classe e grupos dominantes diretamente com suas normas costumeiras ou através das leis do Estado Os iurisnaturalistas insistem na necessidade dum critério de avaliação dessas mesmas normas para medirlhes a Justiça isto é a legitimidade da origem e conteúdo entretanto não conseguem determinar satisfatoriamente o padrão da medida Vimos em seguida que só um fôlego dialético poderia superar a oposição assim criada entre o direito positivo castrador e o direito natural que muitas vezes se limita a legitimar a ordem posta e imposta por falta dum real e autêntico estalão crítico A antítese ideológica direito positivo direito natural só se dissolverá como acentuamos quando for buscado no processo históricosocial aquele estalão Mas isto não importa em identificar simplesmente Direito e processo histórico e sim procurar neste o aspecto peculiar da práxis jurídica como algo que surge na vida social e fora dela não tem qualquer fundamento ou sentido Em síntese colhemos na abordagem das ideologias certo material preliminar que agora cumpre rever sem distorções e entrosado na totalidade em movimento onde se manifesta a procurada essência do fenômeno jurídico Não se trata é claro de recapitular na sua imensa variedade o Direito de todos os povos um por um através dos tempos inclusive porque este recorte nos daria uma série de retratos mais ou menos sugestivos mas não o processo de formação transformação e substituição de normas jurídicas bem como dos critérios por que elas podem ser avaliadas sem recurso a medidas ideais prévias fixas e eternas A essência do Direito para não se perder em especulações metafísicas nem se dissolver num monte de pormenores irrelevantes exige a mediação duma perspectiva científica em que os retratos históricos se ponham em movimento seguindo o modelo geral da constituição de cada uma daquelas imagens A História é um labirinto onde nos perderemos às voltas com fatos isolados se não carregarmos uma bússola capaz de orientarnos a respeito da posição de cada um deles na estrutura e no processo Contudo entre a variedade dos fatos e o esquema condutor também não podemos trocar a bússola por um mapa préfabricado que deseje ver em cada episódio a confirmação fatal dum roteiro teórico É por isto que Engels já o lembramos combatia os que se limitavam a submeter os fatos sociais a esquemas prévios e mecânicos tachandoos de ignorantes e preguiçosos por chegarem à História com uma pseudociência feita e acabada Mas por outro lado nem Marx nem Engels jamais sustentaram que bastasse colher ao acaso fatinhos soltos para com isto chegar à ciência visada Eles ao contrário procuravam a conexão necessária de fatos relevantes seguindo uma hipótese de trabalho Esta formulada ao contacto dos processos sociais num exame preliminar era depois submetida a pacientes e constantes verificações metódicas Desta forma os modelos não passavam nem deviam passar de arranjos duma primeira abordagem depois conferidos e aperfeiçoados perante os fenômenos mesmos Basta lembrar por exemplo como ilustração dessa troca fenômenos hipótese de trabalho verificação ante os fenômenos reajuste da hipótese os tipos de modo de produção comunidade primitiva escravagismo feudalismo capitalismo socialismo corrigido pelo encontro do modo de produção asiático Este último emergia na investigação histórica e Marx o registrou como tipo especial embora até hoje alguns de seus discípulos o omitam carregando os cinco outros como um fetiche dogmático a que tem de ajustar se tudo o que for encontrado assim como teriam de chegar a um comunismo final que é simples previsão isto é outra hipótese neste caso prefiguradora e também sujeita à prova histórica Naquele procedimento circular que entra no ofício histórico trazendo hipóteses e modelos resultantes de exame anterior sobre o material acumulado para submetêlos depois ao crivo de novas verificações Marx e Engels faziam História Social isto é voltavam à História com a bússola duma Sociologia Não nos referimos aqui á Sociologia burguesa tal como a concebeu Comte na Física Social mas à Sociologia Histórica de que precisamente são precursores Marx e Engels embora não usassem esta etiqueta Porque é Sociologia a disciplina mediadora que constrói sobre o monte de fatos históricos os modelos que os arrumam com a ressalva de emendas ao novo contacto com o processo A História registra o concretosingular a Sociologia o aborda na multiplicidade generalizada em modelos segundo os traços comuns Assim a análise da Revolução Francesa em suas causas e peripécias apresentase ao historiador que a reconstitui cientificamente Mas por outro lado registrando o fenômeno duma revolução em especial e para não se perder na massa informe de relevâncias e irrelevâncias de dados importantes e insignificantes o historiador há de empregar os modelos que a Sociologia ministra no exame coordenado das revoluções em geral Isto lhe permitirá inclusive mostrar que alguns episódios cujos protagonistas chamam de revolução na verdade não o são como por exemplo no caso duma revolução cujos propósitos e comportamento fossem manter e resguardar uma estrutura Um golpe de Estado de índole conservadora não é uma revolução é uma forma brusca de conservar As abordagens histórica e sociológica são portanto complementares e se escoram reciprocamente Por isso mesmo toda História realmente científica e não apenas crônica de fatos isolados ou biografias coordenadas de homens ilustres é História Social e toda Sociologia realmente científica e não apenas manipulação ideológica de formas ideais é Sociologia Histórica empenhada sempre em determinar a origem os antecedentes das formas sociais que não são desovadas no mundo por algum espírito criador ou líder excepcional nem deduzidas pela inteligência pura de algum teórico de gênio Aplicandose ao Direito uma abordagem sociológica será então possível esquematizar os pontos de integração do fenômeno jurídico na vida social bem como perceber a sua peculiaridade distintiva a sua essência verdadeira Cabe entretanto uma ressalva aqui sobre duas maneiras de ver as relações entre Sociologia e Direito a que origina uma Sociologia Jurídica e a que produz uma Sociologia do Direito Estas duas expressões são comumente tomadas como sinônimas porém a questão é mais séria do que um problema de rótulo Elas constituem abordagens diferentes apesar de interligadas num intercâmbio constante O fato é que resulta possível olhar o Direito sociologicamente sob mais de um ponto de vista e está nesta possibilidade a diferença das abordagens citadas Falamos em Sociologia do Direito enquanto se estuda a base social de um direito específico Por exemplo é Sociologia do Direito a análise da maneira por que o nosso direito estatal reflete a sociedade brasileira em suas linhas gerais de poucas contradições e mínima flexibilidade dado o sistema ainda visceralmente autoritário de pequenas aberturas controladas como um queijo suíço perpetuamente a enrijecerse no receio de que os ratinhos da oposição alarguem os buracos Toda aquela velha estrutura então se desvenda como elemento condicionante que pesa sobre o país obstaculizando as remodelações sob a pressão simultânea das classes e grupos nacionais dominantes e das correlações de forças internacionais interessadas em que ao imperialismo não escape tão gordo quinhão Sociologia Jurídica por outro lado seria o exame do Direito em geral como elemento do processo sociológico em qualquer estrutura dada Pertence à Sociologia Jurídica por exemplo o estudo do Direito como instrumento ora de controle ora de mudança sociais da pluralidade de ordens normativas decorrente da cisão básica em classes com normas jurídicas diversas no direito estatal e no direito dos espoliados formando conjuntos competitivos de normas no contraste entre o direito dessas classes até de grupos oprimidos como vimos e o que a ordem dominante pretende manter É claro repetimos que a Sociologia do Direito e a Sociologia Jurídica realizam uma espécie de intercâmbio permanente mas é difícil admitir que sejam idênticas as duas tarefas científicas À base do que acima ficou assentado quanto à diferença entre Sociologia e História diríamos inclusive que a Sociologia do Direito como estudo particular de casos sociológicos é mais propriamente capítulo da História Social História Social do Direito no que a nós interessa aqui e a Sociologia Jurídica é capítulo da Sociologia Geral versando sobre o aspecto jurídico da vida em sociedade De qualquer forma a Sociologia Geral ou Jurídica também não é uma disciplina unívoca de um sentido ou direção apenas já que nesta ciência há diferentes orientações que correspondem ao posicionamento do cientista no processo históricosocial em que ele é simultaneamente ator e observador Esta divisão notemos de passagem é apenas mais clara nas ciências sociais onde o homem também está mais diretamente empenhado porém ela existe em todas as ciências traduzindo interferências ideológicas a que nenhuma escapa Nas matemáticas por exemplo racionalismo empirismo e operacionalismo defrontamse como diferentes concepções produzindo diversos resultados como é o caso da admissão ou negação da estrutura axiomática proposições que parecem racionais evidentes e eternas desafiada pela dialética segundo a qual já se vê o declínio dos absolutos lógicos Da mesma forma há finalismos e vitalismos que desafiam a concepção lógicoestatística dos fenômenos estudados pela Biologia com a séria conseqüência interna de que defendem a existência de leis teleonômicas agrupamento segundo um sentido ou finalidade negadas entretanto pelos que discernem nos fatos biológicos apenas relações estatísticas sem finalidade alguma A análise dos vínculos e suas mediações desde a situação do cientista e sua quota de ideologia até o padrão das doutrinas e teorias por tal situação afetadas é objetivo da Sociologia do Conhecimento que constitui sob certo aspecto Sociologia ao quadrado Partindo do fato de que o conhecimento qualquer que seja o sentido é sempre obra social com participações individuais a Sociologia do Conhecimento cujas raízes mergulham na contribuição marxista procura a razão e o modo de influência do engajamento expresso ou implícito do homem no saber inclusive sociológico que ele produz Faz por isto a Sociologia da Sociologia também isto é uma Sociologia como dissemos ao quadrado Já nos referimos no capítulo sobre ideologias à verdadeprocesso isto é à verdade que se desenvolve sem chegar nunca a um conhecimento absoluto e irretocável o que não desmoraliza nem invalida as verdades relativas e possíveis a cada etapa uma vez que nelas podemos optar como observava Adam Schaff pela que mais amplamente explica e compreende os fenômenos e é portanto real e objetivamente a que à altura dada se pode ver e proclamar com mais acerto Ademais o avanço a superação do ponto de vista dialético não envolve o aniquilamento mas a ultrapassagem que conserva os aspectos positivos e as conquistas de etapas anteriores Sob tal ângulo é muito instrutivo notar a aplicação prática deste princípio demonstrando a sua eficácia tal como faz Marx nO Capital quando vai buscar a nova e mais completa focalização da maisvalia num roteiro que incorpora e transcende as teorias anteriores de mercantilistas fisiocratas intuições de Adam Smith colocações de Ricardo e assim por diante Um saber definitivo global e irretocável é mistificação de ciência degenerada que transfere o ardor religioso das revelações divinas dos místicos para a boca dos profetas duma outra religião o cientificismo Esta põe no lugar da Bíblia a Enciclopédia Britânica hoje aliás americana trocando de edição à medida que os novos teólogos vão trocando de teoria É possível discernir a esta altura duas posições fundamentais na Sociologia Geral e portanto na Sociologia Jurídica ambas fortemente sobrecarregadas de elementos ideológicos Um dos mais finamente matreiros dentre os sociólogos burgueses Ralf Dahrendorf definiu aquelas posições como a Sociologia da estabilidade harmonia e consenso e b Sociologia da mudança conflito e coação A primeira diríamos nós é a Sociologia do burguês mais franco a segunda pertence à pequena burguesia que se dedica às tempestades num copo dágua ou melhor às revoluções num copo de uísque A Sociologia a da estabilidade harmonia e consenso poderia resumirse na forma seguinte Em determinado espaço social isto é numa certa base geográfica onde se travam as relações sociais uma variedade de grupos estabelece determinados padrões estáveis de relacionamento Este relacionamento é governado por normas escalonadas numa faixa de crescente intensidade As normas isto é os padrões de conduta exigível sob ameaça de sanções os meios repressivos que vão das sanções difusas não organizadas às sanções organizadas com órgão próprio e ritual específico de aplicação distribuemse em usos práticas consagradas pela mera repetição costumes práticas consagradas pela força da tradição ativa e militante como necessidade coletiva e portanto obrigação indeclinável de todos folkways costumes peculiares que definem o modo de ser dum povo e mores o setor mais vigoroso dos costumes julgados indispensáveis para a ordem social estabelecida e que por isso mesmo se resguardam com normas e sanções mais severas e melhor organizadas O uso pode ser por exemplo vestir certo traje adequado a locais e ocasiões Um costume pode ser por exemplo a deferência aos mais velhos nos folkways pode estar por exemplo a valorização dos mais velhos ou dos mais moços como orientadores sábios ou condutores vigorosos nos mores residem por exemplo as relações de propriedade ou as formas de acesso ao poder e governo Está visto que no modelo a considerado aqui todas essas normas pertencem a um só bloco presumido consensual isto é que teria sido adotado pelo consentimento da coletividade O arcabouço de normas fixase nas instituições sociais armação estabilizada e sistemática das práticas normadas formando um tipo de organização cuja legitimidade é também presumida e que por isso mesmo se reserva os instrumentos de controle social para evitar que a pirâmide se desconjunte e vá por terra Estes meios materiais de controle revestem a ordem com sistemas de crenças ideologias consideradas válidas úteis e eminentemente saudáveis e que são por assim dizer a alma das instituições estabelecidas isto é o espírito da ordem social com a máscara de cultura do povo Esta pretensão cultural da classe dominante identifica as suas conveniências e princípios com os da sociedade inteira tal como nas autocracias eles se encarnam no Rei Luiz XIV é sabido afirmava O Estado sou eu Mais pitorescamente o czar Paulo da Rússia depois dum porre gigantesco olhava a cara no espelho ao despertar e afirmava O Império amanheceu de ressaca assim como se os efeitos da bebedeira se comunicassem a todos os seus súditos Neste contexto qualquer tipo de mudança social é limitado e controlado e os ataques de qualquer dissidência considerados aberrações do comportamento patologias de subculturas que se apresentam como problema a ser resolvido pela reeducação ou sendo esta ineficaz na porrada mesmo Esta se justifica pela cultura é exigida pela defesa das instituições e exercida pelo direito que neste caso é visto apenas como a parte mais atuante e violenta dos mores repressivos atribuídos ao povo e na verdade ligados à classe e grupos dominantes Está aí a raiz social dos positivismos jurídicos Eles divinizam a ordem e fazem do jurista o servidor cego e submisso de toda e qualquer lei A OAB recentemente no seu projeto de reforma do ensino jurídico definiu bem o positivismo como uma das pragas universitárias nacionais Para destacar melhor toda a construção do modelo a desta sociologia da estabilidade harmonia e consenso vejamos como ela se apresenta num esquema e à luz das explicações dadas Está visto que aqui se omitem não à toa a base sócioeconômica as classes radicalmente contrapostas espoliada e espoliadora a existência de grupos oprimidos a contestação válida as normas de espoliados e oprimidos seus Direitos e o reduzido direito fica oscilando entre as posições I e II normalmente nas leis e costumes consagrados pelo Estado enquanto este é o lugar social do controle exercido pela classe e grupos dominantes mas excepcionalmente se a classe e grupos dominantes receiam que os seus representantes no poder estejam muito débeis ou sensíveis à reforma de base o sistema reassume diretamente invocando um direito supralegal isto é as normas supremas da organização social estabelecida até contra a lei maior que é a Constituição Obtido o equilíbrio tornam à função vigilante restabelecendose um novo esquema legislativo o direito positivo intocável depois do remanejamento que o enrijeceu Por outro lado também não aparece nesta Sociologia o influxo externo a presença de forças estabilizadoras da ordem conveniente ou desestabilizadoras de qualquer ordem mais aberta à mudança mais flexível e porosa de acordo com os interesses imperialistas da área de influencia Recentemente um órgão conservador imprimia a advertência de que a autodeterminação dos povos tem limites e que o sistema continental isto é os Estados Unidos não poderia tolerar qualquer irrupção socialista ali bem pertinho de seu dedão do pé geográfico Tudo isto recobre mais fundos interesses econômicos as semicolônias colônias disfarçadas por soberanias de fachada não devem escapar à metrópole O segundo modelo isto é a Sociologia b da mudança conflito e coação representa uma espécie de negativo fotográfico do modelo anterior a Enquanto este último é centrípeto aquele outro é centrífugo mas centrífugo com as mesmas lacunas e escamoteações um sumiço disfarçado e engenhoso de elementos essenciais de tal sorte que em vez de dilatar a estrutura conservadora é por ela absorvido como veremos sem maior dano para a dominação Segundo o modelo b o espaço social é ocupado por uma série de grupos em conflito em relação cuja instabilidade decorre de séries múltiplas de costumes folkways e mores divergentes e competitivos tornando precário e de legitimidade muito discutível o bloco dominante de normas sobretudo porque as subculturas engendram contrainstituições Estas são animadas por verdadeiro ímpeto contracultural inassimilável à cultura dominante Conseqüentemente a organização social estabelecida tem de haverse com ataques constantes de anomia contestação das normas impostas pela ordem prevalecente que reivindica mudança em padrões de comportamento abertamente desafiador e também instituído em setores mais ou menos amplos da sociedade não oficial Tal análise força a ordem estabelecida a desmascararse como nua coação mas já veremos não conduz os desafios à raiz espoliativa do poder classístico nem à ligação deste com a opressão de grupos O modelo a é muito favorecido pelas condições de vitalidade e equilíbrio da estrutura queremos dizer assim que ele medra nas ideologias sociológicas desde que peculiares condições de crise contradições aguçadas decadência do sistema ainda não tenham precipitado a conscientização à maneira de Hamlet na tragédia de Shakespeare de que há algo de podre no reino da Dinamarca ou em qualquer outro reino Não à toa o modelo a surge como o mais antigo na Sociologia burguesa Esta nasceu como se sabe na crista do capitalismo recémchegado ao poder Foi uma espécie de digestão científica dos princípios sociais que à burguesia convêm e que na sociedade ela firmara com pretensões à eterna duração A época de Comte reputado fundador da ciência sociológica era o marxismo em elaboração e não a física social comteana que preparava o amadurecimento da Sociologia como ciência e fazia estudo sociológico embora sem adotar o rótulo especial Está visto que o marxismo permanecendo como a grande influência sobre o pensamento sociológico mais avançado embora não fechado irretocável e dogmático como desejava o sectarismo de alguns não pertence ao modelo a nem ao b A contribuição autêntica do marxismo nãodogmático nem os seus criadores o desejavam como tal vai introduzirse num terceiro modelo que começa a despontar na fase atual quando já o dissemos noutro escrito o marxismo ultrapassa a fase católica com papas infalíveis dogmas igreja e igrejinhas Santo Ofício index de livros e idéias proibidas e até Inquisição Os próprios marxistas hoje tendem ao protestantismo e não ao catolicismo isto é querem ler e interpretar a Bíblia sem tutores distribuemse em diferentes seitas interpretam livremente as escrituras emendam avançam e nisto se mantêm mais fiéis ao espírito da construção marxiana que é de livre exame do que os teólogos presos aos textos às vezes expurgados O modelo b ainda é burguês apenas pequeno burguês Foi o agravamento dá crise social do capitalismo que mostrou as rachaduras no edifício a de consenso e estabilidade mitológicos Mas nesta outra visão b tanto quanto na a são igualmente escamoteados elementos essenciais que a análise marxista já estabelecera à margem da ciência sociológica das universidades tradicionais e seus pequenos grupos de contestação inconseqüente O modelo a é em síntese a resposta triunfalista da burguesia assente antes de se precipitar na crise de que não pode mais sair O modelo b traduz apenas a inquietação de superfície da pequena burguesia e pode exprimirse num gráfico paralelo ao do outro modelo mais ou menos desta forma Neste panorama o Direito perde a nitidez positivista do modelo a ganhando um difuso colorido iurisnaturalista dada a insistente reivindicação de direitos opostos de grupos contrários à law and order a lei e a ordem do establishment o sistema dominante Assim haveria b I um direito estatal assentando num direito da organização social b II e um outro direito expresso nas contrainstituições b III Mas tal como no iurisnaturalismo os padrões de crítica e avaliação das normas dominantes continuam muito vagos e assim como os tipos tradicionais falavam numa certa ordem justa meio nebulosa a contestação do modelo b fala em certa liberdade anárquica dos grupos de timbre individualista cada um procurando a sua que pode escandalizar o burguesão quadrado mas é logo absorvida e manipulada pelos mais espertos Com uma das mãos a classe e grupo dominantes reprimem um tanto contraditoriamente mas com a outra chegam a tolerar e até disfarçadamente estimular a contestação desbundada As grandes organizações econômicas inclusive faturam sobre tais curtições barulhentas multicores mas inofensivas à dominação fundamental Não estamos aqui patrulhando as curtições de ninguém achamos até legítimo curtir mas é preciso não confundir isto com um tipo conseqüente e eficaz de contestação O que há de comum nos modelos a e b é a tentativa consciente ou inconsciente de afastar o aprofundamento dialético o modelo a esconde a evidência da espoliação e opressão o modelo b omite ou despreza a espoliação fala muito em opressão mas opõe a ela um circo em lugar dum programa coerente de ação e objetivos nítidos de reorganização social a começar pelo fato de que a reorganização pressupõe a idéia de ordenação a que é rebelde o individualismo anarquista estéril e afinal tendente a ressacas conformistas depois dos porres de agitação sem objetivo E um nilismo coreográfico e tecnicolor que não incomoda mais o poder dominante do que o bichodepé do matuto dá até uma coceirinha voluptuosa A inquietação pequenoburguesa de superfície não conduz a nada Mais ela contribui para aquele domínio burguês dissolvendo os mais agudos instrumentos conceituais que a dialética movimenta assim reforça a operação ideológica de desatar a noção de classe das contradições e oposições geradas pelo modo de produção capitalista Por isto é assimilável aos padrões tradicionais O sociólogo alemão Weber disfarçava a idéia de luta de classes lisonjeando a estrutura capitalista com uma suposta expansão crescente da classe aquisitiva emburguesada O seu astuto patrício atual Dahrendorf diante da crise que desmente esse otimismo weberiano volta à idéia de que um neocapitalismo bonzinho houvesse desfeito o conflito radical adornando isto com a aceitação liberal do modelo b que é precisamente o tipo da contestação sem dentes Assim leva a vantagem de explicar a crise pelo que menos importa e sem conduzila ao condicionamento básico vindo do modo de produção Dá portanto um ar de tolerância ao mesmo esquema estabelecido O modelo b não cancela o modelo a e por isso mesmo Dahrendorf sugere que sejam empregados pelo sociólogo os dois A incorporação do modelo b pelo modelo a tem todas as largas facilidades inerentes ao superficionalismo do tipo de contestação mais farrista do que autêntico Assim os sociólogos conservadores na aparência de modernidade não têm o receio de cravar mais este prego na ferradura do seu cavalo de batalha teórico ele dá às cavalgadas de classes e grupos dominantes junto com o rei príncipes e duques um alegre colorido de bobos da corte Se por momentos o mau humor do poder os chicoteia prende ou expulsa noutras horas eles até são bemvindos para quebrar o tédio da corte e a monotonia das bajulações dos cortesãos Por outro lado absorvendo teoricamente o modelo b os sociólogos burgueses mais lúcidos procuraram mostrarse na onda por dentro gente boa sem maiores riscos de vez que põem no traje negro da direita umas lantejoulas emprestadas pela esquerda que late mas não morde Esses dois modelos a e b não poderiam servir evidentemente à visão social dialética nem por via de conseqüência à análise da dialética social do Direito Entretanto aqui poderemos ver de novo como as ideologias mesmas no caso as sociológicas emprestam á abordagem mais exata elementos que souberam registrar embora com deformações Substancialmente nos apelos centrípeto modelo a e centrífugo modelo b há uma parte da verdade Nenhuma estrutura social jamais se formaria sem alguma força de coesão e estamos vendo aí que elas se formam e atuam até com o mais sufocante vigor Portanto o modelo a compendiando a visão conservadora demonstra um ponto real de aglutinação existe uma ordem na estrutura social o que falta na escamoteação burguesa é mostrar donde vem tal ordem e para que ela se impõe A legitimidade presumida é evidentemente um mito e o modelo b se encarrega de quebrar a solenidade da poder com algumas vaias Por mais inconseqüentes que sejam tais apelações elas resultam igualmente sintomáticas isto é apontam dois outros aspectos reais o questionamento da legitimidade e a presença de várias ordens ou séries de normas em contrainstituições e contracultura que denunciam as situações opressivo repressivas Não chegam porém a leválas à raiz da espoliação básica mergulhada nos fundamentos da sociedade com ramificações que atingem o núcleo da cisão de classes privilegiadas e desprotegidas a partir de um modo de produção em que elas se formaram Por outro lado vimos também que o problema social e seu aspecto jurídico não se limitam ao modo de produção isto é como assinalamos com Miaille pode haver opressões não diretamente derivadas do modo de produção nem corrigidas apenas com a sua troca Sobre isto citamos logo no início de nossa exposição as observações muito lúcidas de Marilena Chauí sobre a utopia ilusão de se pensar que mudando o modo de produção toda a questão social e também jurídica está resolvida A tarefa a realizar numa visão da dialética social do Direito exige portanto que se delineie ainda que toscamente para aperfeiçoamento constante um modelo sociológico dialético É o que vamos ensaiar nesta investigação metódica por etapas da essência do Direito quando chegarmos ao capítulo final do nosso itinerário Vamos edificando com andaimes a nossa reconstrução ao cabo eles serão afastados para exibir a construção no termo da jornada e em tal empreendimento dificílimo um pouco já é bastante Está visto que termo significará o ponto final desta obra e não a idéia presunçosa de que se oferece aqui a essência do Direito para não haver mais o que tirar nem pôr em tal abordagem Se ao menos avançamos um tanto se dissipamos em trânsito certos equívocos a que aludíamos no primeiro parágrafo deste livro já não foi de todo inútil o esforço O Direito afinal buscado não é as normas em que se pretende vazálo não confundamos o biscoito e a embalagem pois em tal caso como o positivismo acabaríamos comendo a lata como se fosse a bolacha e tirando estranhas conclusões sobre o sabor consistência e ingredientes de tal produto Aliás não existe uma diferença nítida entre as normas jurídicas e morais porque todas as características distintivas apresentadas se revelam imprecisas isto é tanto aparecem nas normas jurídicas quanto nas morais Não há porém espaço aqui para desenvolver este ponto que temos focalizado em outros escritos nossos O importante é notar que Direito e Moral distinguemse pelo que são independentemente das normas em que se exprimem e cuja forma é bem semelhante há códigos morais há Direito fora das leis por exemplo os chamados Códigos de Ética ou o Direito Internacional A DIALÉTICA SOCIAL DO DIREITO Temos de começar numa órbita muito dilatada porque nenhuma sociedade vive completa e eternamente no isolamento Hoje em dia aliás dáse o contrário com a rapidez do sistema de transportes e de comunicação à distancia o contacto é imediato e universal Não são apenas os jogos de futebol que nos chegam ao vivo ou enlatados pela TV mas toda uma série de imagens significativas geradas no estrangeiro e trazendo inclusive os produtos ideológicos As nações politicamente organizadas e tendo à sua disposição a necessária tecnologia projetamse além das fronteiras com a sua mensagem que vem a desempenhar um papel importante no encadeamento dos fatos sociais E tal mensagem tanto pode ser boa quanto má Desta maneira é que os imperialistas revigoram a sua presença moldando cultura e faturando royalties ao mesmo tempo assim como os povos libertados ou em vias de libertação procuram dar alento ás forças progressistas inspirálas e nelas influir positivamente Por isso mesmo o imperialismo externamente procura fechar os canais e internamente se desencadeiam os mecanismos da censura As dominações modernas daquém e dalém fronteiras é que nos visitam em casa sem bater à porta aparecendo no vídeo que por isto mesmo controlam com a vigilância dum Falcão Esse background penetrante inscrevese na dinâmica das estruturas nacionais porém sua raiz está fora Existe uma sociedade internacional e também nela uma dialética Sua estrutura modelase ademais conforme a própria infraestrutura sócioeconômica cindida nas dominações imperialistas e nas lutas de libertação nacional dos povos colonízados e semicolonizados E a partir deste núcleo que se recortam as áreas de influência com as suas vizinhanças intrometidas A sociedade internacional desenvolve igualmente as superestruturas peculiares onde repercute a correlação de forças e ecoa a divisão dos mundos capitalista socialista nãoalinhado terceiro mundo Desde logo se note é claro que tal superestrutura não está livre de contradições assim como não estão os Estados internamente na dialética de poder e contestação de acomodações e confrontações A infraestrutura internacional é entretanto diferente pois ela se caracteriza pela coexistência pacífica ou violenta de modos de produção distintos ainda mais complicada pelo desigual nível das unidades desenvolvidas ou em vias de desenvolvimento Por outro lado as instituições de âmbito internacional como as internas distribuemse em veículos oficiais e marginais contrainstituições que se articulam entre povos oprimidos a fim de pressionarem o mecanismo perro das outras em função de reivindicações comuns dos que ficam por fora ou por baixo Dentro deste panorama é que surgem as sociedades individualmente consideradas e sujeitas à penetrante interferência do sistema externo As sociedades nacionais têm é claro o seu único e próprio modo de produção a sua infraestrutura é homogênea e em conseqüência dela as classes se dividem já que não estamos aqui considerando as comunidades primitivas Assim é que aparecem o domínio classista e as divisões grupais Mantemos a distinção explicada noutro capítulo para marcar a diferença do posicionamento de grupos como os grupos étnicos religiosos sexuais de bastante importância na dialética do Direito e não diretamente ligados à oposição sócio econômica e jurídica das classes que por outro lado e como veremos continuam a digladiar se mesmo nas sociedades socialistas já implantadas A luta de classes e grupos que cinde o bloco demográfico da população as oposições de espoliados e espoliadores de oprimidos e opressores movimenta a dialética social e nela a vertente jurídica incompreensível e inexplicável fora deste contexto O socialismo é claro envolve em princípio a superação dos conflitos radicais mas entre este compromisso e a realidade dos sistemas socialistas já implantados há de fato um grande fosso mostrando que nem tudo se encaminha sem tropeços para aquele desiderato assim formulado por Bloch o avanço da construção socialista dentro dum quadro de solidariedade aliás na situação presente a palavra solidariedade ganha um matiz irônico Sobre a dupla base interpenetrante das infraestruturas internacional e nacional é que se armam os aspectos derivados e superestruturais de um lado estabelecendo a coesão e de outro a dispersão Se uma sociedade não tivesse o mínimo de força centrípeta para garantir e própria coesão explodiria como bola de borracha soprada pela anarquia se por outro lado não revelasse um coeficiente de forças centrífugas seria como iludidos sempre esperam os donos do poder uma estrutura inalterável e eternamente impeditiva de qualquer mudança verdadeira Daí as visões centrípeta e centrífuga notadas nos esquemas A e B capítulo 4 que entretanto sonegam a dupla base já referida sem a qual não se explica em função de que a estabilidade e a mudança constantemente se defrontam e conflitam com maior ou menor intensidade isto é conforme se trate da estrutura jovem e ascendente ou de estrutura caduca trocando esta em ranzinzice e prepotência o que lhe falta em energia progressista e criativa Ponhamos então num ramo as forças centrípetas Travamse as relações sociais dentro do modelo infraestrutural estas relações adquirem certa uniformidade e a classe e grupos dominantes exprimemnas em usos costumes folkways e mores que já aparecem no esquema A eles constituem os veículos da dominação e se entrosam nas instituições sociais invocando princípios ideológicos Tais princípios integram o mesmo domínio sob o rótulo de cultura como se aquilo fosse a legítima e harmoniosa compilação do que sente e deseja todo o povo Na verdade este último pode ser iludido pela ideologia mas como já dizia Lincoln enganase uma parte do povo todo o tempo todo o povo uma parte do tempo nunca porém todo o povo todo o tempo O conjunto das instituições e a ideologia que a pretende legitimar a ideologia da classe e grupos dominantes padronizamse numa organização social que se garante com instrumentos de controle social o controle é a central de operações das normas dinamizadas dentro do ramo centrípeto a fim de combater a dispersão que desconjuntaria a sociedade e comprometeria a segurança da dominação Neste ramo é evidente só se pode falar em mudança social amarrada pois o sistema de controle apenas absorve a qüota de mudança que não lhe altere a organização posta e imposta e por isto dita normativamente até as regras de jogo da mudança Como vimos ao menor risco de se acentuar um desvio mesmo dentro das regras o poder enrijece o controle alarmado ou o sistema subjacente demite o seu débil representante para colocar um outro mais enérgico na direção Vejamos agora o ramo centrífugo As cristalizações de normas das classes e grupos espoliados e oprimidos produzem as instituições próprias cuja presença na estrutura é fator de maior ou menor desorganização social envolvendo a atividade anômica a contestação das normas do ramo dominante seja espontânea sem maior coesão e ordem de militança seja organizadamente ao revés com grupos adestrados e coesos estratégia e táticas bem articuladas Essa atividade contestadora pode ser de dois tipos reformista isto é visando reabsorverse no ramo centrípeto que se acomode para recebêla sem mudar a estrutura global ou revolucionário visando remodelar toda a estrutura a partir das bases A ação reformista ou revolucionária não é necessariamente pacífica ou violenta Há meras reformas que desencadeiam luta sangrenta há totais revoluções que preconizam ao contrário os meios incruentos sem derramamento de sangue e nãoditatoriais Exemplo das primeiras é entre nós a Guerra dos Farrapos Exemplo da segunda é a estratégia do socialismo democrático O perigo desta última evidentemente é a acomodação que dissolve os próprios objetivos revolucionários A expressão socialismo democrático é aliás muito ambígua Nós não a empregamos senão com a advertência de que nela se procura designar uma superação evitando quer os desvios aburguesados quer os congelamentos ditatoriais Desta maneira é que ela se revigorou no panorama atual com a rejeição do socialismo bem comportado e confiável que a burguesia absorve e também dos socialismos burocráticorepressivos de cúpula que prevalecem nas repúblicas onde o trabalhador não tenha efetivamente canais de participação no governo e defesa eficaz contra os burocratas O socialismo democrático portanto vai hoje ganhando o sentido da procura duma alternativa perante o capitalismo espoliativo e o socialismo gorado As explicações até agora oferecidas permitemnos assim resumir a visão social dialética num esquema diferente das focalizações A e B já criticadas Notará o leitor que foram inseridos além dos elementos já mencionados os algarismos romanos I a IX que assinalam os pontos onde surge o aspecto jurídico Estes pontos vão servirnos para deduzir a essência do Direito sem partir de nuvens metafísicas ou da amputação de um que outro aspecto por simples capricho ideológico Por isso mesmo estamos empregando a palavra Direito em sentido aliás pluralidade aparente de sentidos apenas nominal e nas suas ligações com o processo sociológico única fonte onde podemos ir buscar uma visão nem idealista nem mutilada do Direito mesmo Queremos dizer com isto que aparecerão assim todos os ângulos do Direito focalizados por sociólogos antropólogos historiadores e não somente este ou aquele ângulo privilegiado pelo preconceito duma ou de outra corrente e especialidade Vários autores tomam ora um ora outro daqueles pontos como base e assim produzem obviamente definições diversas e inconciliáveis Faltalhes a abordagem global Encaminhando as nossas conclusões sobre a essência do Direito enquanto parte de dialética social demarquemos especialmente cada um dos nove pontos assinalados I O Direito não se limita a aspecto interno do processo histórico Ele tem raiz internacional pois é nesta perspectiva que se definem os padrões de atualização jurídica segundo os critérios mais avançados Veremos isto no ponto IX Mas desde logo cumpre acentuar que a correta visão jurídica não pode fazer caso omisso das instituições internacionais sob a alegação de que o Direito Internacional não é jurídico porque as soberanias dos diferentes países não toleram repercussões internas senão quando aderem aos pactos internacionais O princípio de autodeterminação dos povos e as soberanias nacionais que aliás o imperialismo a todo instante ofende escandalosamente não impedem a atuação até das sanções internacionais na hipótese das mais graves violações do Direito II A verdade entretanto é que o direito entre nações luta para não ficar preso ao sistema de forças dominantes e em que pesem as felizes contradições a sua forma interestatal entre Estados reproduz no ângulo externo a obstrução que veremos no ponto VI quanto ao direito estatal Daí a expressão jurídica paralela em uma dialética estabelecida pelos povos oprimidos e espoliados Exemplo disto é o conjunto de princípios jurídicos consagrados na carta de Argel 1977 em que os povos oprimidos formularam a sua quota de direitos postergados III IV Afora as comunidades primitivas de que não estamos cuidando aqui como já foi advertido cada sociedade em particular no instante mesmo em que estabelece o seu modo de produção inaugura com cisão em classes uma dialética jurídica também já que por exemplo o estabelecimento da propriedade privada dos meios de produção espolia o trabalhador cujos direitos então contradizem o direito ali radicado da burguesia capitalista A oposição começa na infraestrutura Mesmo numa sociedade socialista não são suprimidos os problemas do conflito de direitos Ali subsistem classes socialismo não é comunismo para o qual certas repúblicas do socialismo autoritário dizem estar em trânsito embora não apresentem há muito o menor passo nesta direção Não fica eliminada a problemática de classe nem os limites jurídicos em que um regime socialista há de conter os processos de construção para não desnaturar o próprio socialismo De qualquer maneira em sistema capitalista ou socialista a questão classista não esgota a problemática do Direito permanecem aspectos de opressão dos grupos cujos Direitos Humanos são postergados por normas inclusive legais Já citamos a questão das raças religião sexos que hoje preocupam os juristas do marxismo nãodogmático Quando falamos em Direito e Antidireito obviamente não nos referimos a duas entidades abstratas e sim ao processo dialético do Direito em que as suas negações objetivadas em normas constituem um elo do processo mesmo e abrem campo à síntese à superação no itinerário progressivo O grande equívoco dos iurisnaturalistas é precisamente oscilar entre a rendição ao direito positivo a título de particularização dos preceitos naturais e a oposição irresolúvel entre direito natural e direito positivo como se fossem duas coisas separadas o Direito que eles não conseguem fundamentar pois arrancam esse ideal para fora do processo e a multiplicidade dos conjuntos de normas jurídicas que não sabem ver como parte do processo de realização dialética do Direito V A organização social que padroniza o conjunto de instituições dominantes adquire também um perfil jurídico na medida em que apresente um arranjo legítimo ou ilegítimo espoliativo opressor esmagando direitos de classes e grupos dominados É assim que se insere o problema jurídico do sistema a questão da legitimidade ou da ilegitimidade global da estrutura Não basta para resolvêla o simples fato dum status quo a existência nua e crua da dominação como não basta igualmente o tipo de consenso presumido que se baseia da passividade das massas intoxicadas pela ideologia e sempre consultadas com restrições isto é dentro de leis eleitoreiras que não permitem o despertar da consciência possível libertadora exclusão de pessoas e correntes de opinião do pleito restrições à propaganda nos veículos de comunicações de massas e toda a casuística dos estrategistas da reação A passividade das massas não legitima por si só uma organização social assim como o estabelecimento duma legalidade não importa por si só na legitimidade do poder Caso contrário teríamos de afirmar que o nazifascismo e os regimes semelhantes como os de Franco Salazar e quejandos eram legítimos enquanto viveram e se agüentaram no poder ou da mesma forma que as ditaduras subsistentes são legítimas somente porque ainda se agüentam á ferro e a fogo Por outro lado para que as garantias formais da consulta ao povo sejam legitimadoras é preciso não só que se façam sem as restrições capciosas de leis cheias de manhas como também que permitam o trabalho de conscientização popular pelos líderes progressistas sem restrições de pessoas e correntes no acesso livre aos meios de comunicação e organização de massas Isto é uma questão jurídica também De toda sorte a garantia democrática é parte do problema da realização do Direito e não basta substituir a disciplina legal da propriedade para chegar ao socialismo autêntico resta saber que posição real têm as classes na determinação do sistema em que medida os trabalhadores efetivamente comandam o processo e que canais políticos ficam abertos para evitar o enrijecimento do Estado e o domínio burocráticopolicial da estrutura por um conjunto de agentes repressores Isto já preocupava Lênin quando redigiu as Instruções de 1922 a respeito da organização multiforme das massas para controle sobre os aparelhos do Estado e sobre os próprios comunistas A conseqüência de se desprezar essa problemática foi a criação do Estadoaparelho nãocapitalista como patrão absoluto da sociedade que é hoje combatido pelo movimento da autogestão socialista o controle sócio econômico de baixo para cima VI O controle social global isto é como dissemos a central de operações das normas dominantes do e no setor centrípeto dinamiza em aspectos não isentos de contradições a organização social militante Aí é que surgem as leis de todo o tipo inclusive as anômalas que rompem para a garantia da organização subjacente o próprio sistema legal quando classe e grupos dominantes se assustam com a possibilidade mais ou menos próxima de verem escapar o controle social da mão das elites do poder O ponto VI na sua teia de normas em ação é o único focalizado pelo positivismo como se ali estivesse todo o Direito quando nada obstante as eventuais contradições a espoliação e a opressão neste ponto descobrem a sede privilegiada de atuação É importante examinar sem rejeição indiscriminada todo o direito estatal que pode inclusive servir para o uso alternativo de que cogitam o jurista Barcellona e seu grupo voltar as leis do Estado contra o próprio objetivo dominador operação de grande alcance teórico e prático Mas obviamente é preciso enfatizar com muita energia que o Direito não está aí o Direito está no processo global e sua resultante Localizar o Direito neste ponto VI exclusivamente equivale a transformar a sua positividade a sua força de disciplinar a práxis jurídica em positivismo a concepção legalista do Direito que é outra coisa VII É óbvio que se persiste a cisão de grupos e classes em dominadores e dominados a dialética vem a criar paralelamente à organização social um processo de desorganização que interfere naquela mostrando a ineficácia relativa e a ilegitimidade das normas dominantes e propondo outras efetivamente vividas em setores mais ou menos amplos da vida social No plano político assim se estabelece o que os cientistas políticos denominam o poder dual isto é mais de um poder social na dialética de conflito No plano das contrainstituições jurídicas vêse emergir o que o sociólogo português Boaventura de Souza Santos estudou na sua admirável tese Direito dos Oprimidos com material de pesquisa de campo realizada nas favelas brasileiras Escreve o notável colega português uma vez que a coesão ideológica de uma sociedade de classes superpõese a inconciliáveis conflitos classistas criados pelas relações de produção as classes dominadas ou grupos específicos dentro delas tendem a desenvolver subculturas legais que em certas circunstâncias podem estar ligadas a uma práxis institucional mais ou menos autônoma de variável meta e nível de organização Reconhecer esta práxis como jurídica e este direito como direito paralelo isto é caracterizar a situação como pluralismo jurídico e adotar uma perspectiva teórica julgando esse Direito não inferior ao direito estatal envolve uma opção tanto científica quanto política Ela implica a negação do monopólio radical de produção e circulação do Direito pelo Estado moderno A opção científica a que alude o eminente sociólogo é obviamente a dialética a opção política é não menos obviamente a socialista e socialista democrática em oposição ao estatismo e legalismo não só capitalista mas do socialismo autoritárioburocrático repressivo VIII Parece então claro que a coexistência conflitual de séries de normas jurídicas dentro da estrutura social pluralismo dialético leva à atividade anômica de contestação na medida em que grupos e classes dominados procuram o reconhecimento de suas formações contrainstitucionais em desafio às normas dominantes anomia Este projeto entretanto pode ser de dois tipos ou se revela apenas reformista enquanto visa a absorção de seus princípios e normas pela central do ramo centrípeto ponto VI sem atingir as bases da estrutura e os demais aspectos da normação dominadora ou se mostra revolucionário isto é delineia o contraste fundamental com uma série de princípios e normas que são proposta e prática reestruturadora atingindo a infraestrutura e tudo o que sobre ela assenta Reforma ou revolução representam o enlace jurídicopolítico isto é só politicamente se instrumentalizam e tem chance de triunfar mas só juridicamente podem fundamentarse a dinamização é política a substância é jurídica E a fundamentação jurídica é indispensável para validar inclusive o apelo revolucionário e introduz ao mais amplo círculo do Direito que por isto mesmo no esquema dialético pusemos numa chave envolvente com a designação de IX IX Radica neste ponto o critério de avaliação dos produtos jurídicos contrastantes na competição de ordenamentos as diferentes séries de normas entrosadas É a síntese jurídica Seus critérios porém não são cristalizações ideológicas de qualquer essência metafísica mas o vetor históricosocial resultante do estado do processo indicando o que se pode ver a cada instante como direção do progresso da humanidade na sua caminhada histórica Esta resultante final final não no sentido de eterna mas de síntese abrangedora do aspecto jurídico naquele processo históricosocial em sua totalidade e transformações se reinsere imediatamente no processo mesmo uma vez que a história não pára A síntese não está por cima ou por baixo num esquema prévio ou posterior mas DENTRO DO PROCESSO AQUI E AGORA A meta foi anteontem a conquista liberal quando a burguesia ascendente indicava o rumo do progresso e todos sonhavam com a Revolução Francesa foi ontem a vitória do socialismo no plano econômico quando principiou a série dos avanços proletários e todos sonhavam com a Revolução Russa mas é hoje o socialismo democrático quando as revoluções socialistas estão esclerosadas doença de enrijecimento em países que lhe deram somente uma feição autoritárioburocrático repressiva esta última desnatura o socialismo e oprime externa e internamente nos seus blocos dominados as próprias massas que se propunha libertar O ponto IX é então a chave de abóbada para a análise do Direito e a sede onde emergem os Direitos Humanos Notese que não nos referimos às declarações dos Direitos Humanos que desejam exprimir o ponto IX porém a este mesmo ponto que nelas aproximadamente se reflete a cada etapa Já tivemos a declaração das revoluções americana e francesa cuja focalização representa a burguesia ascendente Na declaração mais recente repercute a luta social avançada em que a igualdade formal dos homens perante o direito estatal se corrige com a remodelação jurídica inspirada pelo socialismo de igualdade substancial sem a espoliação do trabalhador pelo capitalista ou a opressão dos grupos minoritários pelo poder instituído Para termos uma idéia da diferença entre as declarações dos Direitos Humanos e estes mesmos Direitos basta pensar que a declaração oficial mais recente já é inatual na medida em que ainda não incorpora outros aspectos da libertação surgidos em lutas sociais posteriores Por exemplo a marca do social na Declaração dos Direitos Humanos ainda é muito vaga e incompleta e não dá expressão plena às metas socialistas do Direito contemporâneo autêntico Aliás este envelhecimento das declarações foi percebido até pelo filósofo francês bem reacionário que era Jacques Maritain quando acentuou à ocasião em que foi redigida a última declaração oficial que ela devia ser revista pelo menos de 15 em 15 anos Eis em síntese o que tomado como dissemos o Direito nominalmente dele nos surge na dialética social e no processo histórico A essência do jurídico há de abranger todo esse conjunto de dados em movimento sem amputar nenhum dos aspectos como fazem as ideologias jurídicas nem situar a dialética nas nuvens idealistas ou na oposição insolúvel nãodialética tomando Direito e Antidireito como blocos estanques e omitindo a negação da negação É com esta que as contradições de Direito e Antidireito fazem explodir com mediação da práxis jurídica progressista a ostra normativa para que se extraia a pérola da superação A falta de um senso deste processo é que leva em desespero de causa certos autores marxistas a aderirem ao direito natural diante dos legalismos prepotentes à la Vichinski o teórico soviético do legalismo socialista É fácil ler Marx e Engels como positivista ou iurisnaturalista A leitura soviética é legalista não à toa Heller que já citamos insinua por outro lado um iurisnaturalismo de base na medida em que o Direito de revolução é por assim dizer o carro chefe de todo o materialismo histórico O fato é que entre marxistas e marxólogos cada um cita os clássicos no trecho que lhe interessa assim como os teólogos citam a Bíblia para cá e para lá eles sempre descobrem umas frases conservadoras ou progressistas puritanas ou permissivas até mesmo machistas ou gayCatar frases é um passatempo de quem só faz negócio com assinatura de avalista e vive procurando uma firma célebre e desprevenida para as suas promissórias Um pensamento uma filosofia é um organismo em movimento uma resposta intelectual aos estímulos duma práxis e cada noção conceito proposição têm de ser não pinçados mas inseridos no movimento da obra Por isso mesmo é que em vez de ler Marx ou Engels vertendoos em garrafinhas que não mostram a grandeza e marés do oceano é preciso repensar Marx e Engels com a leitura dos textos que são marcos dum itinerário inacabado e não repositório da ciência feita para criar o dogma e abonar qualquer linha justa amanhã revista com outras citações na hora de bater nas peitos e fazer autocrítica Marx e Engels foram os constantes revisionistas de si mesmos Prestamos homenagem maior e até mais fiel ao gênio marxiano retomando o itinerário não porque sejamos mais inteligentes do que Marx e sim porque estamos um século adiante Mas onde fica então diante daquele panorama a essência do Direito no sentido em que a vimos buscando isto é na postura dialética explicada no capítulo 1 Que noção que conceito ao mesmo tempo abrangedor e preciso consegue resumir todo o processo contemplado na síntese móvel do ponto IX e desdobrado nas contradições dos pontos I II III IV V VII e VI VIII Marx afirmou que a liberdade é a essência do homem e não há incompatibilidade entre esta frase e outra que ele escreveu mais tarde mostrando que a essência do homem é o conjunto das relações sociais isto é as relações entre as pessoas dentro dos grupos e classes e na forma que estes modelam Porque este ser real este homem na sociedade não é apenas um boneco sem vida que as forças sociais movimentam Ele se conscientiza reage e se liberta dos condicionamentos As relações sociais inclusive as relações de produção constituem relações entre homens e não entre peças duma só máquina Aliás se não fosse assim se tudo fosse aparelho precisaríamos de um Deus dos aparelhos para movimentar a História e fazer com que a máquina funcionasse O que é essencial no homem é a sua capacidade de libertação que se realiza quando ele conscientizado descobre quais são as forças da natureza e da sociedade que o determinariam se ele se deixasse levar por elas Lembramos com Marx que consciência é conscientização e também que liberdade é libertação isto é consciência não é uma coisa que nós temos porém que vamos construindo vamos livrando do que os nossos dominadores botam lá ideologia e liberdade também não é uma coisa que nós possuímos pelo contrário ela vive amarrada e nós temos de cortar os nós O processo social a História é um processo de libertação constante se não fosse estávamos até hoje parados numa só estrutura sem progredir mas é claro há avanços e recuos quebras do caminho que não importam pois o rio acaba voltando ao leito seguindo em frente e rompendo as represas Dentro do processo histórico o aspecto jurídico representa a articulação dos princípios básicos da Justiça Social atualizada segundo padrões de reorganização da liberdade que se desenvolvem nas lutas sociais do homem Quando falamos em Justiça entretanto não nos estamos referindo àquela imagem ideológica da Justiça ideal metafísica abstrata vaga que a classe e grupos dominantes invocam para tentar justificar as normas os costumes as leis os códigos da sua dominação Não é o idealismo iurisnaturalista que ou se rende ao direito positivo às normas de dominação porque a este concede o poder de definir em especial o que a Justiça é nas situações particulares e concretas nem aquele outro iurisnaturalismo progressista de combate que continua entretanto pondo de um lado o direito ideal e de outro o direito real A contradição entre a injustiça real das normas que apenas se dizem justas e a injustiça que nelas se encontra pertence ao processo à dialética da realização do Direito que é uma luta constante entre progressistas e reacionários entre grupos e classes espoliados e oprimidos e grupos e classes espoliadores e opressores Esta luta faz parte do Direito porque o Direito não é uma coisa fixa parada definitiva e eterna mas um processo de libertação permanente Como já dissemos o Direito não é ele vem a ser Por isso mesmo é que o revolucionário de ontem é o conservador de hoje e o reacionário de amanhã Reparem por exemplo no caso da burguesia como classe ascendente quando estava na vanguarda enriqueceu o patrimônio jurídico da humanidade Quando chegou ao poder deu a coisa por finda isto é quis deter o processo para gozar os benefícios e se recusou a extrair as conseqüências de sua revolta contra a aristocracia e o feudalismo Ficou portanto uma contradição entre a libertação parcial que favoreceu os burgueses e o prosseguimento da libertação que daria vez aos trabalhadores A burguesia saiu com o povo à rua contra os aristocratas mas depois de tomar o lugar destes achou gostoso e mandou prender o povo a fim de curtir uma boa que é o poder Como o povo se recusava a parar e cada vez que era enxotado teimava em reaparecer a burguesia baixou o pau A luta continuou Aquela altura um burguês já triunfante disse que é fácil colocar o povo na rua difícil é fazêlo voltar para casa este queria parar a História mas a História é teimosa A locomotiva amarrada acaba rompendo as amarras e passando por cima de quem quiser se encostar à frente e parála com a bunda E o destino dos ditadores aí está que não nos deixa mentir E a luta social constante com suas expressões de vanguarda e suas resistências e sacanagens reacionárias com suas forças contraditórias de progresso e conservantismo com suas classes e grupos ascendentes e libertários e suas classes e grupos decadentes e opressores é todo o processo que define o Direito em cada etapa na procura das direções de superação E preciso notar inclusive que as contradições não se dão apenas entre blocos de normas porém dentro desses blocos Assim por exemplo o direito estatal as leis que exprimem em linhas gerais o domínio de classe e grupos privilegiados têm elementos que podem ser utilizados pelas classes e grupos libertadores porque na hipocrisia de fazer o contrário do que dizem isto é dizer que vão construir a Justiça nas normas enquanto fazem das normas uma proteção injusta de seus privilégios a classe e grupos dominadores muitas vezes se contradizem deixam buracos nas suas leis e costumes por onde os mais hábeis juristas de vanguarda podem enfiar à alavanca do progresso explorando a contradição De toda a sorte a força a evidência de que o Direito compendia a cada momento a soma das conquistas libertárias ponto IX do nosso esquema fica provada por dois fatos Em primeiro lugar nenhum legislador mesmo o pior dos ditadores diz em tese que vai fazer a norma injusta Isto contraria a essência do Direito como já notava Engels A expressão brutal intransigente da supremacia de uma classe lembrou ele vai por si só contra conceito de Direito Mas é claro que o conceito de Direito não é aquela idéia metafísica abstrata e sim o Direito como um aspecto do processo social mesmo Em segundo lugar os direitos já conquistados geralmente não são desafiados pelo dominador a dominação é já o dissemos hipócrita Então o dominador vai absorvendo o discurso de liberdade para negálo de fato nas normas espoliativas e repressoras Hoje por exemplo já não se fala em manter o colonialismo que continua existindo ou em resolver a questão social com a polícia que aliás entra a toda hora na luta chamada pelo burguês que tem medo do povo Ao menos não se confessa abertamente essas violências o que significa que nem o opressor pode negar o Direito apenas entortálo dizendo uma coisa e fazendo outra Inclusive quando uma estrutura socialista degenera em opressão ela continua falando em socialismo e invoca o Direito da classe proletária para fazer calar prender e agredir o trabalhador A dominação soviética por exemplo está sempre falando em defesa do socialismo tal como a burguesia está sempre falando em defesa da democracia isto mesmo quando a defesa do socialismo é acabar com a pretensão à liberdade do país vizinho Da mesma forma e no outro lado falase no princípio de autodeterminação dos povos mas logo em nome da defesa da democracia os EEUU vão criando polícia continental na América Latina para manter a semicolonização econômica determinada peloimperialismo regional que não é menos hipócrita A grande inversão que se produz no pensamento jurídico tradicional é tomar as normas como Direito e depois definir o Direito pelas normas limitando estas às normas do Estado e da classe e grupos que o dominam Ora a doutrina que fecha todo o fenômeno jurídico enquanto simples norma da classe e grupos dominantes ou mesmo de grupos dissidentes retrógrados do tipo de Tradição Família e Propriedade que é mais realista do que o rei subtrai toda dialética Por outro lado cada perfil atualizado do Direito autêntico é um instante do processo de sua eterna reconstituição do seu avanço que vai desvendando áreas novas de libertação A contribuição dos primeiros socialistas foi contestar as normas do direito burguês oporlhes princípios jurídicos mais avançados lutando para que se remodelassem as normas Alguns daqueles princípios acharam o seu escaninho nas repúblicas socialistas de vários matizes Porém depois do avanço de 1917 o poder soviético e mais tarde dos seus satélites foi engordando tanto que se deitou na cama estatal e dormiu sobre o colchão de instituições domesticadas acordando assustado toda vez que algum socialista herege e contestador berrava que ali ou na casa do vizinho havia algo de errado O legalismo é sempre a ressaca social de um impulso criativo jurídico Os princípios se acomodam em normas e envelhecem e as normas esquecem de que são meios de expressão do Direito móvel em constante progresso e não Direito em si Com o vício de rodar a manivela o Estado troca na sua Casa da Moeda os papéis com lastro de ouro pelos papéis desvalorizados na inflação das leis e acaba usando a guitarra a máquina de fazer dinheiro falso para enganar os tolos Direito e Justiça caminham enlaçados lei e Direito é que se divorciam com freqüência Onde está a Justiça no mundo perguntase Que Justiça é esta proclamada por um bando de filósofos idealistas que depois a entregam a um grupo de juristas deixando que estes devorem o povo A Justiça não é evidentemente esta coisa degradada Isto é negação da Justiça uma negação que lhe rende apesar de tudo a homenagem de usar seu nome pois nenhum legislador prepotente administrador ditatorial ou juiz formalista jamais pensou em dizer que o direito deles não está cuidando de ser justo Porém onde fica a Justiça verdadeira Evidentemente não é cá nem lá não é nas leis embora às vezes nelas se misture em maior ou menor grau nem é nos princípios ideais abstratos embora às vezes também algo dela ali se transmita de forma imprecisa a Justiça real está no processo histórico de que é resultante no sentido de que é nele que se realiza progressivamente Justiça é Justiça Social antes de tudo é atualização dos princípios condutores emergindo nas lutas sociais para levar à criação duma sociedade em que cessem a exploração e opressão do homem pelo homem e o Direito não é mais nem menos do que a expressão daqueles princípios supremos enquanto modelo avançado de legítima organização social da liberdade Mas até a injustiça como também o Antidireito isto é a constituição de normas ilegítimas e sua imposição em sociedades mal organizadas fazem parte do processo pois nem a sociedade justa nem a Justiça corretamente vista nem o Direito mesmo o legítimo nascem dum berço metafísico ou são presente generoso dos deuses eles brotam nas oposições no conflito no caminho penoso do progresso com avanços e recuos momentos solares e terríveis eclipses Direito é processo dentro do processo histórico não é uma coisa feita perfeita e acabada é aquele viraser que se enriquece nos movimentos de libertação das classes e grupos ascendentes e que definha nas explorações e opressões que o contradizem mas de cujas próprias contradições brotarão as novas conquistas Quando a burguesia em avanço e subida desafiou as discriminações aristocráticofeudais ela colocou o problema da igualdade e quando essa mesma burguesia se encarapitou no poder e negou a igualdade real em suas leis desencadeando a crítica marxista que mostrava a fonte das desigualdades foi a contradição apontada que indicou o caminho para o socialismo quando o socialismo degenera em opressão burocráticoautoritária falando em nome duma classe proletária a que mecanismos estatais negam a real participação no poder é também esta contradição que gera o movimento para democratizar o socialismo implantado que se deixou engordar em dominaçãorepressão À injustiça que um sistema institua e procure garantir opõese o desmentido da Justiça Social conscientizada às normas em que aquele sistema verta os interesses de classes e grupos dominadores opõemse outras normas e instituições jurídicas oriundos de classes e grupos dominados e também vigem e se propagam e tentam substituir os padrões dominantes de convivência impostos pelo controle social ilegítimo isto é tentam generalizarse rompendo os diques da opressão estrutural As duas elaborações entrecruzam se atritamse acomodamse momentaneamente e afinal chegam a novos momentos de ruptura integrando e movimentando a dialética do Direito Uma ordenação se nega para que outra a substitua no itinerário libertador O ponto de referência IX que pusemos no esquema C da visão social dialética é aquele em que a Justiça se identifica enquanto substância atualizada do Direito isto é na quota de libertação alcançada em perspectiva progressista ao nível histórico presente Nunca se pode aferir a Justiça em abstrato e sim concretamente pois as quotas de libertação achamse no processo histórico são o que nele se revela à vanguarda às classes e grupos ascendentes o aspecto jurídico do processo é o que delineia a forma positivada alcance próprio dos princípios da práxis social justa e do controle social legitimo com a indicação das normas em que ele venha a se organizar no modelo atualizado e vanguardeiro de organização social da liberdade E isto se resume repetimos com o filósofo marxista Ernst Bloch em determinar a instauração da faculdade de agir das classes e grupos sem alienação nas normas de agir duma comunidade enfim não alienada Por isso mesmo no socialismo o aspecto jurídico ao invés de sumir ganha mais relevo como dizia ainda Bloch enquanto os Direitos Humanos não serão menos militantes como direito à crítica inexoravelmente objetiva e prática pelo avanço da construção socialista dentro dum quadro de solidariedade A simples troca do modo de produção o fim de certo tipo de exploração e opressão não é o fim da História é uma etapa No processa histórico de libertação perante as dominações ilegítimas o Direito modela o padrão organizador que resulta do processo mesmo Mas ele não é apenas a seara da liberdade é igualmente a antítese da anarquia que deseja trocar a repressão ilegítima pelo caos e da ação bruta não contida por princípios de legitimidade e na qual o objetivo libertador poderá descaracterizarse dentro de um caminho que não respeite os direitos fundamentais hoje por exemplo a tortura já é definida como crime de Direito Internacional e continuará sendo crime quer seja instrumento do conservantismo violento quer seja aplicada a pretexto de facilitar o trabalho de libertação O Direito em resumo se apresenta como positivação da liberdade conscientizada e conquistada nas lutas sociais e formula os princípios supremos da Justiça Social que nelas se desvenda Por isso é importante não confundilo com as normas em que venha a ser vazado com nenhuma das séries contraditórias de normas que aparecem na dialética social Estas últimas pretendem concretizar o Direito realizar a Justiça mas nelas pode estar a oposição entre a Justiça mesma a Justiça Social atualizada na História e a justiça de classes e grupos dominadores cuja ilegitimidade então desvirtua o direito que invocam Também é um erro ver o Direito como pura restrição à liberdade pois ao contrário ele constitui a afirmação da liberdade conscientizada e viável na coexistência social e as restrições que impõe à liberdade de cada um legitimamse apenas na medida em que garantem a liberdade de todos A absoluta liberdade de todos obviamente redundaria em liberdade para ninguém pois tantas liberdades particulares atropelariam a liberdade geral Esta a razão por que o Direito não se confunde com a Moral A Moral é também processo também está inserida na dialética social também se transmite a séries múltiplas de normas conforme as classes e grupos em que se divide a estrutura social também gera obrigações exigíveis e estabelece órgãos e procedimentos para a sua aplicação coercitiva ela é portanto bilateral como o Direito o que não é entretanto é recíproca Recíproco é só o direito Na Moral se armam deveres que cada um há de cumprir em relação aos demais e até a si mesmo Todavia os princípios sociais e históricos da vida honesta não dependem da reciprocidade Queremos dizer com isto que os deveres morais de cada um não dependem dos deveres morais dos outros para se tornarem obrigatórios nem no sentido de que estes últimos cumpram ou deixem de cumprir os seus próprios deveres nem no sentido de que os preceitos morais se destinem a garantir o equilíbrio recíproco do exercício da liberdade A Moral visa o aperfeiçoamento de cada um dentro da honestidade O Direito visa ao desdobramento da liberdade dentro dos limites da coexistência Mesmo quando no Direito Criminal por exemplo se rejeita a compensação de culpas isto não desmente antes confirma a reciprocidade pois o que é juridicamente cobrado a ambos os sujeitos juridicamente culpados é o recíproco dever de não lesarem um ao outro nem juntos assim ofenderem a comunidade Se falta a lesão o dano ou sequer o perigo para as liberdades em coexistência crime não há Deste modo é que atualmente se demonstra que são ilegítimas as definições legais de crime sem vítima como por exemplo a autodestruição física ou psíquica pelo suicídio pelo consumo de drogas pela degradação moral da prostituição Estes procedimentos não deixam de ser todos eles reprováveis moralmente porém o Direito veio a reconhecer que nada têm a ver com os deveres de reciprocidade e assim vão desaparecendo aquelas incriminações injustificáveis A Moral entretanto permanece como estabelecimento de restrições à nossa liberdade em si mesmas tidas como necessárias para tornarnos pessoas socialmente melhores enquanto que o Direito só nos restringe a liberdade para garantir o que nela afete aos demais Mesmo quando a Moral se volta para a disciplina dos nossos prazeres a chamada Moral hedonista admitindo a curtição de cada um segundo o seu gosto continua a levar uma restrição intrínseca de autoaperfeiçoamento na medida em que o próprio hedonismo ensina a não abusarmos desordenadamente dos prazeres ensina a controlar os apetites e a maneira de gozar em todos os sentidos da palavra Direito é o reino da libertação cujos limites são determinados pela própria liberdade Moral é o reino da contensão em que a liberdade é domada Nenhum dos dois é claro tolera os dogmas os princípios eternos ou se extrai de fontes ideais o que é abstratas ou sobrehumanas Ambos são ao revés conquistas sociais históricas e fortemente condicionadas pela estrutura social onde emergem na oposição no contraste de modelos diversos conforme a divisão de classes e grupos dominadores e dominados cujas normas estão sujeitas aos critérios de legitimidade histórica também isto é definida pelo padrão mais avançado ao nível do tempo presente Marx dizia com humor que ninguém luta contra a liberdade no máximo luta contra a liberdade dos outros E aí está o que faz toda sociedade espoliativa e opressora em que classes e grupos dominadores cuidam de si à custa dos demais Porém o princípio jurídico fundamental isto é a matriz de todos os outros que se vão desvendando no processo libertador e inspiram a avaliação de qualquer norma já foi conscientizado e expresso no tempo histórico para guiarnos como bússola da luta pelo Direito e desmentido a qualquer ordem que de jurídica tenha somente o nome falsamente invocado Foi Marx igualmente quem o registrou assinando juntamente com Engels um documento célebre no qual se lê o livre desenvolvimento de cada um é condição para o livre desenvolvimento de todos Isto é que é Direito na essência modelo e finalidade Tudo o mais ou é conseqüência a determinar no itinerário evolutivo ou é deturpação a combater como obstáculo ao progresso jurídico da humanidade INDICAÇÕES PARA LEITURA Especialmente recomendáveis para o iniciante pelas informações atualizadas clareza da exposição e enfoque progressista são A Ciência do Direito Conceito Objeto Método de Agostinho Ramalho Marques Neto Rio Editora Forense 19821 e Para uma Crítica da Eficácia do Direito de José Geraldo de Sousa Júnior Brasília edição particular 1981 pedidos para a Caixa Postal 131957 CEP 70259 Brasília DF Uma das figuras mais importantes da teoria e pesquisa jurídicas modernas é o sociólogo português Boaventura de Souza Santos cuja notável tese de doutoramento The Law of the Oppressed O Direito dos Oprimidos Law Society Review vol 12 n 1 1957 p 51261 infelizmente ainda não tem edição disponível em nosso idioma foi escrita originariamente em inglês e defendida na Universidade de Yale Mas quem quiser conhecer algo desse eminente autor pode consultar em português O Discurso e o Poder Coimbra Separata do Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra 1979 O monumental estudo de Ernst Bloch Naturrecht und Menschliche Würde Frankfurt am Main Surkhamp 1961 com tradução francesa Droit Naturel et Dignité Humaine Paris Payot 1976 também não foi vertido para o português Entretanto têse algo dele em matéria jurídica no breve ensaio incluído na coletânea organizada por Erich Fromm Humanismo Socialista Lisboa Edições 70 1976 p 226234 O único trabalho de Michel Miaille até hoje aparecido no Brasil não é representativo da evolução deste excelente autor cujo melhor trabalho se acha na obra coletiva de M Bourjol outros Pour une Critipue du Droit Paris Maspéro 1978 p 114146 Sob o ponto de vista histórico é estimulante a leitura do livro de Michael Tigar Madeleine Levy O Direito e a Ascensão do Capitalismo Rio Zahar 1978 e quanto às ligações com a Ciência Política têm especial destaque duas obras de Ralph Miliband O Estado na Sociedade Capitalista Rio Zahar 1972 e Marxismo e Política Rio Zahar 1979 Sob vários ângulos correlatos é importante meditar sobre as colocações de Marilena Chauí na sua magnífica série de ensaios reunidos em Cultura e Democracia São Paulo Editora Moderna 1981 Não devem ser desprezadas as páginas clássicas dos grandes precursores nacionais como João Mangabeira a exemplo do vigoroso parecer que marca a sua primeira definição socialista no terreno jurídico R Verdadeira Igualdade e a Socialização do Direito em 1930 e a belíssima Oração aos Bacharelados da Faculdade de Direito da Bahia em 1944 ambos os textos constantes da obra organizada por Francisco de Assis Barbosa As Idéias Políticas de João Mangabeira BrasíliaRio Senado Federal Casa Rui Barbosa MEC 1980 3 vols vol 1 p 491504 vot 3 p 1518 Outros volumes já publicados ou a publicar nesta mesma coleção Primeiros Passos cuidam de temas jurídicos tal como o no 49 Direitos da Pessoa da muito ilustre e corajoso prof Dalma Dallari wwwesnipscomuserdireitounisulma