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Marcos Bagno Marcos Bagno Novela Sociolingüística Copyright 1997 Marcos Bagno Todos os direitos desta edição reservados à Editora Contexto Editora Pinsky Ltda Projeto gráfico R C Pretel Comunicação Diagramação Global Tec Produções Gráficas Revisão Rose Zuanetti Dados Internacionais de Catalogação na Publicação CIP Câmara Brasileira do Livro SP Brasil Bagno Marcos A língua de Eulália novela sociolingüística Marcos Bagno 15 ed São Paulo Contexto 2006 Bibliografia ISBN 857244081X 1 Lingüística 2 Português 3 Sociolingüística I Título 974183 CDD4019 Índice para catálogo sistemático 1 Sociolingüística 4019 hhttttppggrroouuppssggoooogglleeccoom mggrroouuppddiiggiittaallssoouurrccee EDITORA CONTEXTO Diretor editorial Jaime Pinsky Rua Acopiara 199 Alto da Lapa 05083110 São Paulo SP PABX 11 3832 5838 contextoeditoracontextocombr wwweditoracontextocombr 2006 Proibida a reprodução total ou parcial Os infratores serão processados na forma da lei CCCC CCCCO OO O O OO ON NN N N NN NTTTTTTTTR RR R R RR RAAAAAAAA CCCC CCCCAAAAAAAAPPPPPPPPAAAAAAAA A língua de Eulália é antes de tudo uma ponte sempre reivindicada mas até então não construída entre o saber acadêmico quase esotérico nas ciências lingüísticas e o cidadão comum que tem o direito de conhecer mais sobre sua língua seus usos sua história sua dimensão como instrumento identitário E Marcos Bagno constrói a ponte sem trivializar a informação científica Stella Maris BortoniRicardo PhD University of Lancaster O autor faz um tema circunscrito à academia aos especialistas passar para a esfera dos mortais dos nãoiniciados de tal forma que consegue prender até a atenção do leitor não muito familiarizado com o assunto Sérgio Simka professor de Português e escritor O Estado de SPaulo 15 de fevereiro de 1998 O autor busca derrubar o preconceito lingüístico na alfabetização Revista Nova Escola março de 1998 O O O O O O O OR RR R R RR REEEEEEEELLLLLLLLHHHHHHHHAAAAAAAASSSSSSSS D D D D D D D DO OO O O OO O LLLLLLLLIIIIIIIIVVVVVVVVR RR R R RR RO OO O O OO O Nossa tradição educacional sempre negou a existência de uma pluralidade de normas lingüísticas dentro do universo da língua portuguesa a própria escola não reconhece que a norma padrão culta é apenas uma das muitas variedades possíveis no uso do português e rejeita de forma intolerante qualquer manifestação lingüística diferente tratando muitas vezes os alunos como deficientes lingüísticos Marcos Bagno argumenta que falar diferente não é falar errado e o que pode parecer erro no português nãopadrão tem uma explicação lógica científica lingüística histórica sociológica psicológica Para explicar essa problemática o autor reúne então nA LÍNGUA DE EULÁLIA as universitárias Vera Sílvia e a esperta Emília que vão passar as férias na chácara da professora Irene Sempre muito dedicada Irene se reúne todos os dias com as três professoras do curso primário transformando suas férias numa espécie de atualização pedagógica em que as alunas reciclam seus conhecimentos lingüísticos Mais do que isso Irene acaba criando um apoio para que as meninas passem a encarar de uma nova maneira as variedades nãopadrão da língua portuguesa A novela flui em diálogos deliciosamente informativos A LÍNGUA DE EULÁLIA trata a sociolingüística como ela deve ser tratada com seriedade mas sem sisudez O autor Marcos Bagno nasceu em Cataguases MG e depois de ter vivido em Salvador no Rio de Janeiro em Brasília e no Recife instalouse com a família na capital de São Paulo Tradutor contista poeta e autor de livros para crianças formouse em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco onde também obteve seu título do mestre em Lingüística É doutor em Filologia e Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo O serviço mais útil que os lingüistas podem prestar hoje é varrer a ilusão da deficiência verbal e oferecer uma noção mais adequada das relações entre dialetospadrão e nãopadrão William Labov The Logic of Nonstandart English 1969 a Maria da Piedade Moreira de Sá com gratidão e carinho pelas incontáveis provas de amor que tem dado à ciência A chegada 9 Quem ri do que 13 Que língua é essa 18 Um probrema sem a menor graça 48 Uma língua enxuta 55 Liberdade fraternidade igualdade 64 Verbo pra que te quero 75 E agora com vocês a Assimilação 86 Sodade meu bem sodade 93 Beijo rima com desejo 103 Música maestro 111 Que coisa mais esdrúxula 127 Quem era o home que eu vi onte na garage 135 Quem não se alembra de Camões 140 Aceitase roupas novas 150 A bruxa está solta 169 A fôrma a norma e o funil 183 Índio sim com muito orgulho 208 Pondo a mão na massa 229 A primeira semente 237 A partida 241 Mais duas palavrinha e sugestões de leitura 243 Nota da digitalizadora A numeração de páginas aqui referese a edição digital a paginação original encontrase inserida entre colchetes no texto Entendese que o texto que está antes da numeração entre colchetes é o que pertence aquela página e o texto que está após a numeração pertence a página seguinte A CHEGADA era Sílvia e Emília foram as primeiras a descer na rodoviária de Atibaia quando o ônibus estacionou Respirem fundo manda Vera e as outras duas obedecem Já sentiram a diferença do ar Sílvia inspira com sofreguidão retém a respiração por alguns segundos e depois libera o ar dos pulmões Sorri Já E que diferença Nem parece que estamos tão perto de São Paulo e de toda aquela poluição É mesmo concorda Emília Parece que aqui o ar corresponde àquela descrição que aparece nos livros de ciências Incolor e inodoro apressase em completar Vera Mas essas não são as qualidades da água inquietase Sílvia Eu lá quero saber Estou de férias graceja Vera As três sorriem Vera tem 21 anos é estudante de Letras Sílvia da mesma idade estuda Psicologia Emília 19 está no primeiro ano de Pedagogia As três são professoras do curso primário no mesmo colégio de São Paulo E agora Vera pergunta Sílvia Como fazemos para chegar na casa da sua tia Pegamos um táxi responde Vera Mais exatamente o táxi do Ângelo que deve estar esperando a gente Eu telefonei ontem para ele combinando Cidade pequena tem isso de legal comenta Sílvia a gente conhece até os motoristas de táxi pelo nome Também desdenha Emília devem ser só três ou quatro em toda Atibaia As duas estão erradas corrige Vera Não conheço todos V os motoristas pelo nome e aqui tem muito mais do que três ou quatro dona Emília O caso é que o Ângelo é uma pessoa especial ele é filho da Eulália Sílvia e Emília não compreendem Vera logo acrescenta A Eulália mora com a minha tia Irene É a pessoa mais querida do universo inteiro Eu simplesmente amo ela pág 09 A moela que eu saiba é um órgão das galinhas meu bem diz Emília sarcasticamente Não enche Emília a gente estamos de férias tá bão graceja Sílvia Não senhora protesta Emília Temos um exemplo a dar Uma professora deve estar sempre alerta Para mim isso é lema de escoteiro diz Vera sem perder o bom humor Neste momento um grande carro branco estaciona junto delas O motorista negro e jovem sai e vem cumprimentar Vera Ela o abraça e beija para espanto das amigas Ângelo estas aqui são duas colegas minhas lá de São Paulo a Sílvia e a Emília Ângelo sorri para elas e estende a mão Muito prazer eu sou o Ângelo e aperta com força a mão de cada uma delas Vamos lá A minha mãe está esperando vocês com um almoço daqueles que só ela sabe fazer Parece até uma festa de casamento Enquanto fala Ângelo abre as portas do carro para que as moças entrem Recolhe as maletas que elas haviam deixado no chão e as guarda no portamalas do carro A caminho da casa da tia de Vera Sílvia e Emília não param de falar Você disse que a sua tia é viúva pergunta Sílvia Não ela é divorciada há muitos anos responde Vera E mora aqui sozinha quer saber Emília Não mora com a Eulália eu já disse E você falou que ela era professora universitária volta a falar Sílvia Professora de língua portuguesa e lingüística Até se aposentar Isso tem uns cinco anos Mas ela mora aqui em Atibaia já faz mais de vinte Ia para Campinas todo dia trabalhar de manhã e voltava à noite explica Vera paciente E ela não sente falta do trabalho quer saber Sílvia Ela gosta de ser dona de casa Dona de casa A tia Irene Vera ri gostoso Ela se pág 10 aposentou da universidade mas continua trabalhando Aliás acho que hoje em dia ela trabalha mais do que quando era professora Por quê pergunta Emília Ela continua estudando pesquisando escrevendo Toda vez que venho aqui ela comenta sobre algum artigo que uma revista encomendou algum livro que está preparando coisas assim Lá na faculdade quando comento com os professores que sou sobrinha de Irene Amaggio todos se desdobram em elogios Ela é muito respeitada E você não pode esquecer o outro trabalho dela aqui em Atibaia não é Vera intervém Ângelo que estava atento à conversa Que trabalho pergunta Sílvia A dona Irene ensina a gente pobre a ler e escrever responde o motorista satisfeito Que coisa bonita exclama Emília admirada É mesmo confirma Vera A tia Irene montou na chácara um curso de alfabetização para adultos Tudo começou com a minha mãe explica Ângelo Foi diz Vera Quando a Eulália foi trabalhar com a tia Irene ela não sabia ler nem escrever Minha tia não quis saber daquilo disse que nunca ia admitir na casa dela uma pessoa analfabeta Começou a dar aulas à noite para a Eulália A Eulália foi trazendo algumas conhecidas estas foram trazendo mais gente e quando minha tia viu estava dando aula para umas vinte pessoas todas adultas a maioria mulheres que trabalhavam nas casas do bairro onde ela mora Imaginem que ela trabalhava na universidade o dia todo e quando chegava ainda tinha de dar aula à noite Depois que se aposentou ficou mais fácil Mas agora estão todos de férias porque afinal ninguém é de ferro Agora entendi diz Emília de repente A Eulália é a empregada da sua tia No começo sim mas isso tem quase vinte anos A Eulália ia trabalhar lá e depois voltava para a casa dela explica Vera Depois que a Eulália ficou viúva foi morar com minha tia Mas já eram tão amigas que a tia Irene não quis saber da Eulália vivendo no quartinho dos fundos Deu a ela um dos quartos da casa pôs o pág 11 Ângelo que era pequeno em outro e passaram todos a viver ali como se fosse uma família só Depois que o Ângelo se casou moram só as duas lá cuidando juntas da casa da horta do pomar dos bichos A sua tia Irene é uma santa mulher diz Ângelo Me pôs na escola me ajudou nos estudos me levou para viajar e é por causa dela que hoje eu tenho este emprego minha casa e minha família E sua tia não tem filhos pergunta Sílvia Tem sim filhos e netos responde Vera Minha prima Cecília e meu primo Vicente moram lá em São Paulo Quando a tia Irene se mudou para Atibaia eles já estavam casados e tudo pág 12 QUEM RI DO QUÊ epois do almoço que foi mesmo uma grande festa Ângelo voltou ao trabalho e Eulália foi dormir sua sesta habitual da tarde Vera Sílvia e Emília saíram para passear pela chácara com Irene A senhora tem um jardim deslumbrante dona Irene comenta Sílvia maravilhada diante dos canteiros de rosas e hortênsias Para começar deixe o senhora de lado e esqueça o dona também diz Irene sorrindo Já é um custo agüentar a Vera me chamando de tia o tempo todo Meu nome é Irene Dona Irene ou pior Professora Doutora Irene eu cobro só de quem não gosto Todas sorriem Irene prossegue Agradeço os elogios para o jardim só que você vai ter de fazêlos para a Eulália que é quem cuida das flores Eu sou um fracasso na jardinagem A Eulália não acho que tem um dedo verde Basta alisar uma planta murchinha para ela ficar toda brejeira verdinha e viçosa Uma coisa impressionante Foi ela também que preparou o almoço não foi pergunta Emília Foi responde Irene Eu gosto de cozinhar mas quando tem visita a Eulália não me deixa chegar perto das panelas Faz questão de preparar tudo sozinha A maior glória para ela é quando alguém louva a comida que fez Parece que a Eulália é mesmo muito prendada comenta Sílvia Prendada Essa é boa ri Irene Menina em que século passado você nasceu Sílvia fica corada Para dizer a verdade prossegue Irene a Eulália é um D poço sem fundo de conhecimento e sabedoria Todo dia aprendo uma coisa nova com ela Só de remédios caseiros feitos com ervas medicinais dava para encher uma enciclopédia E como conselheira para momentos de angústia e depressão não conheço melhor psicólogo do que ela Pode até ser comenta Emília enquanto as quatro se sentam pág 13 num grande banco de madeira sob um caramanchão Mas ela fala tudo errado Isso para mim estraga qualquer sabedoria Eu tive de me segurar para não rir quando ela disse aquelas coisas na mesa acrescenta Sílvia Que coisas quer saber Vera Ah sei lá agora não me lembro responde Sílvia Eu me lembro adiantase Emília Ela disse os probrema os fósfro môio ingrês É mesmo confirma Sílvia e a mais engraçada foi percurá os hôme Sílvia ri e Emília a imita Irene fica séria por alguns instantes De repente virase para as duas moças e diz Or tu chi se che vuoi sedere a scranna Per giudicar da lungi mille miglia Con la veduta corta duna spanna Sílvia Emília e Vera tomadas de surpresa ficam mudas E então Não querem rir também do que eu disse como riram das coisas que a Eulália falou Mas você falou em italiano diz Vera Se era italiano por que devíamos rir Eu não posso achar graça naquilo que não entendo diz Emília E por que você não entende pergunta Irene Ora porque não falo italiano responde Emília E o que é que você fala continua Irene Eu falo português diz Emília já intrigada E o que é o italiano para alguém que fala português quer saber Irene As moças param um instante para pensar É Sílvia quem responde É outra língua Uma língua diferente completa Vera Muito bem diz Irene Vocês não entenderam o verso de Dante que eu citei há pouco porque era italiano Mas e se eu disser assim No mundo non me sei parelha mentre me for como me vay ca já moiro por vos e ay Esse quase dá para entender afinal é espanhol diz Sílvia Não senhora corrige Irene É português pág 14 Português espantase Emília Português sim só que do século XII Idade Média explica Irene E que tal alguma coisa assim Estoume nas tintas se não te apetece uma bola de Berlim Vai me dizer que isso também é português duvida Sílvia Claro que é é português falado em Portugal Significa Estou pouco ligando se você não gosta de comer sonho Vera impacientase Tia aonde é que você quer chegar Vocês não entenderam o Dante porque o italiano é diferente do português Vocês não entenderam o português do século XII porque ele é diferente do português de hoje E não entenderam o português de Portugal porque é diferente do português do Brasil E o que tem isso a ver com a fala errada da Eulália pergunta Emília A fala da Eulália não é errada é diferente É o português de uma classe social diferente da nossa só isso explica Irene Para mim é errado diz Emília É errado dentro das regras da gramática que se aplicam ao português que você fala diz Irene Mas na variedade nãopadrão falada pela Eulália essas regras não funcionam Variedade nãopadrão Que coisa é essa tia pergunta Vera Irene dá um suspiro sorri e diz Essa é uma história comprida Vera e não sei se dá para resumir aqui no jardim nesta tarde fria de julho depois de ter comido tanto no almoço Mas agora eu fiquei curiosa diz Vera Eu também diz Sílvia E eu mais ainda diz Emília Quero ver a senhora você me convencer que a Eulália não fala errado Irene se levanta e diz Vamos combinar o seguinte Hoje à noite a gente se reúne na sala acende a lareira se enrola nuns cobertores e bate um longo papo sobre este assunto Por coincidência eu estou mesmo preparando um livrinho que trata destes problemas Vou aproveitar o resto da tarde para ler um pouco e lá por volta das oito horas a pág 15 gente se encontra Enquanto isso Vera leve as meninas para passear aqui pelos arredores Combinado Combinado diz Vera Antes eu quero saber o que foi aquilo que você disse em italiano Irene sorri São uns versos da Divina Comédia de Dante A tradução é difícil mas significam alguma coisa como quem você tão presunçoso pensa que é para julgar de coisas tão elevadas com a curta visão de que dispõe Emília e Sílvia se entreolham É impressão minha ou foi uma indireta pergunta Sílvia Indireta nenhuma querida responde Irene puxando Sílvia para junto de si e abraçandoa com carinho São uns versos bonitos que guardei de cor só isso E aquele português da Idade Média o que era pergunta Emília São os primeiros versos de uma cantiga de amor responde Irene Essa cantiga é considerada o texto mais antigo escrito em língua portuguesa data de 1189 É tão antiga que até hoje os filólogos discutem sobre o significado exato das palavras Mas agora chega de conversa Vão passear Durante o passeio aproveitem para pensar na resposta que vocês dariam à seguinte pergunta Quantas línguas se fala no Brasil Não digam nada agora À noite a gente se vê pág 16 QUE LÍNGUA É ESSA O mito e a realidade o errado e o diferente o eu e o outro O mito da língua única noite como ficou combinado reúnemse todas na sala grande da lareira devidamente acesa Diante do fogo há um largo tapete felpudo sobre o qual foram espalhadas algumas almofadas grandes e macias No centro uma mesinha baixa com um bule de chá outro de chocolate canecas de louça branca um prato com biscoitinhos outro com um apetitoso bolo inglês Irene remexe algumas folhas de papel que trouxe de seu quarto de estudos Vera servese de chá enquanto Sílvia molha um biscoitinho no chocolate quente Emília está ocupada em proteger seus pés com as meias grossas de lã que Irene lhe emprestou Faz muito frio mas a sala está bem aquecida e aconchegante Não vi mais a Eulália hoje comenta Vera Ela foi para a casa do Ângelo explica Irene Os netos estão de férias Ela foi babar em cima deles e estragálos como cabe e convém a uma boa avó Deve dormir por lá E então essa aula começa ou não começa pergunta Sílvia tornando a encher a xícara de chocolate Aula surpreendese Irene Eu tinha pensado só num batepapo nada de muito sério Afinal estamos todas de férias não é e pisca um olho para a sobrinha Mas bater papo com alguém que sabe a Divina Comédia de cor vale por uma aula diz Emília Sorriso geral Já que você insiste vamos começar diz Irene E quero começar pedindo a vocês que me respondam Quantas línguas se fala no Brasil À Silêncio As três tímidas não ousam arriscar uma resposta Emília cutuca Vera com o cotovelo e diz Vera você faz Letras é obrigada a saber a resposta Vera assim convocada em seus brios acadêmicos pigarreia e diz pág 17 Bom o que a gente aprende na escola desde pequena é que no Brasil só se fala português Isso mesmo confirma Sílvia No Brasil a gente fala português de Norte a Sul Irene escuta com atenção Depois começa a falar É bem a resposta que eu esperava E não havia por que ser diferente Meninas na tradição de ensino da língua portuguesa no Brasil existe um mito que há muito tempo vem causando um sério estrago na nossa educação Que mito é esse tia É o mito da unidade lingüística do Brasil As três moças se entreolham surpresas Irene prossegue O mito da unidade lingüística do Brasil pode ser resumido na resposta que a Vera e a Sílvia me deram agora há pouco No Brasil só se fala uma língua o português Um mito entre outras definições possíveis é uma idéia falsa sem correspondente na realidade Quer dizer que a resposta delas é falsa mentirosa pergunta Emília Exatamente responde Irene E por quê tia Primeiro no Brasil não se fala uma só língua Existem mais de duzentas línguas ainda faladas em diversos pontos do país pelos sobreviventes das antigas nações indígenas Além disso muitas comunidades de imigrantes estrangeiros mantêm viva a língua de seus ancestrais coreanos japoneses alemães italianos etc Mas os índios são muito poucos e vivem isolados replica Sílvia É e as comunidades de imigrantes também são uma minoria dentro do conjunto total da população brasileira completa Emília A língua mais usada mais falada mais escrita é mesmo o português conclui Vera Poder ser diz Irene Mas mesmo deixando de lado os índios e os imigrantes nem por isso a gente pode dizer que no Brasil só se fala uma única língua Talvez vocês se surpreendam com o que vou dizer agora mas não existe nenhuma língua que seja uma só Como assim Irene pergunta Emília espantada Que quer dizer isso pág 18 Isso quer dizer que aquilo que a gente chama por comodidade de português não é um bloco compacto sólido e firme mas sim um conjunto de coisas aparentadas entre si mas com algumas diferenças Essas coisas são chamadas variedades Toda língua varia Puxa vida estou entendendo cada vez menos queixase Sílvia Vamos bem devagar para as coisas ficarem claras propõe Irene Você certamente já ouviu um português falar não é Já responde Sílvia Já percebeu as muitas diferenças que existem entre o modo de falar do português e o modo de falar nosso brasileiro De que tipo são essas diferenças Vamos ver algumas delas diferenças fonéticas no modo de pronunciar os sons da língua o brasileiro diz eu sei o português diz eu sâi Tudo bem até agora pergunta Irene Tudo bem responde Sílvia Essas e outras diferenças prossegue Irene também existem em grau menor entre o português falado no NorteNordeste do Brasil e o falado no CentroSul por exemplo Dentro do Centro Sul existem diferenças entre o falar digamos do carioca e o falar do paulistano E assim por diante Irene faz uma pequena pausa Toma um gole de chá e continua Até agora falamos das variedades geográficas a variedade diferenças sintáticas no modo de organizar as frases as orações e as partes que as compõem nós no Brasil dizemos estou falando com você em Portugal eles dizem estou a falar consigo diferenças lexicais palavras que existem lá e não existem cá e viceversa o português chama de saloio aquele habitante da zona rural que no Brasil a gente chama de caipira capiau matuto diferenças semânticas no significado das palavras cuecas em Portugal são as calcinhas das brasileiras Imagine uma mulher entrar numa loja de São Paulo e pedir cuecas para ela usar Vai causar o maior espanto diferenças no uso da língua Por exemplo você se chama Sílvia e um português muito amigo seu quer convidar você para jantar Ele provavelmente vai perguntar A Sílvia janta conosco Se você não estiver acostumada com esse uso diferente poderá pensar que ele está falando de uma outra Sílvia e não de você Porque no Brasil um amigo faria o mesmo convite mais ou menos assim Sílvia você quer jantar com a gente Nós não temos como os portugueses o hábito de falar diretamente com alguém como se esse alguém fosse uma terceira pessoa pág 19 portuguesa a variedade brasileira a variedade brasileira do Norte a variedade brasileira do Sul a variedade carioca a variedade paulistana Mas a coisa não pára por aí A língua também fica diferente quando é falada por um homem ou por uma mulher por uma criança ou por um adulto por uma pessoa alfabetizada ou por uma nãoalfabetizada por uma pessoa de classe alta ou por uma pessoa de classe média ou baixa por um morador da cidade e por um morador do campo e assim por diante Temos então ao lado das variedades geográficas outros tipos de variedades de gênero socioeconômicas etárias de nível de instrução urbanas rurais etc E cada uma dessas variedades equivale a uma língua pergunta Emília Mais ou menos responde Irene Na verdade se quiséssemos ser exatas e precisas na hora de dar nome a uma língua teríamos de dizer por exemplo falando da Vera Esta é a língua portuguesa falada no Brasil em 2001 na região Sudeste no estado e na cidade de São Paulo por uma mulher branca de 21 anos de classe média professora primária cursando universidade etc Ou seja teríamos de levar em conta todos os elementos chamados variáveis que compõem uma variedade É como se cada pessoa falasse uma língua só sua Já entendi diz Emília É o mesmo que acontece com a letra da gente não é Cada um tem a sua letra o seu jeito de escrever que é único e exclusivo e que até serve para identificar uma pessoa mas que ao mesmo tempo pode ser lido e entendido pelos outros Excelente comparação Emília parabéns elogia Irene Isso tudo reflete a eterna tensão que existe na vida de cada ser humano pág 20 a vontade de se isolar de se preservar de garantir seu espaço individual mas ao mesmo tempo a necessidade de se comunicar de manter contato de travar relações Cada pessoa tem a sua língua própria e exclusiva mas também não pode deixar que ela a separe da comunidade em que está inserida Houve até um pensador norteamericano Gregory Bateson que resumiu essa tensão numa pequena fábula Conte para nós pede Vera Ele diz que para se proteger do inverno um grupo de porcosespinhos se abrigam numa caverna Como faz muito frio eles procuram se encostar uns nos outros para se esquentar mas por causa dos espinhos têm de se afastar uns dos outros Mas logo ficam com frio e se aproximam novamente e logo se separam e de novo se juntam Que interessante diz Sílvia É uma história muito boa para alguém que como eu estuda a Psicologia do ser humano Toda língua muda Deu para entender o que é uma variedade Sílvia pergunta Irene Deu sim é até mais fácil do que eu pensava responde a estudante de Psicologia Irene dá um sorriso maroto e fingindo um tom de ameaça anuncia Mas a coisa pode ficar ainda mais complicada Como tia Pegue por exemplo um texto de jornal escrito no começo do século XX Você vai sentir diferenças no vocabulário e no modo de construção da frase Recue mais um pouco no tempo e tente encontrar alguma coisa escrita no começo do século XIX em 1808 por exemplo quando a família real portuguesa se transferiu para o Brasil Mais diferenças ainda Dê um salto ainda maior e tente ler a famosa carta de Pero Vaz de Caminha ao rei D Manuel I dando a notícia do descobrimento do Brasil Um texto de 1500 último ano do século XV Tem muita coisa ali que a gente nem consegue entender E se quisermos ler uma cantiga damor como a que citei hoje à tarde que era um gênero de poesia praticado em Portugal nos pág 21 séculos XIIXIII Quase impossível só mesmo com a ajuda e a orientação de um filólogo especialista em textos antigos O que todos esses textos têm em comum Foram todos escritos em português não é arrisca Sílvia Sim responde Irene Por que será então que eles vão se tornando cada vez menos compreensíveis para um brasileiro no início do século XXI quer saber Vera Porque toda língua além de variar geograficamente no espaço também muda com o tempo A língua que falamos hoje no Brasil é diferente da que era falada aqui mesmo no início da colonização e também é diferente da língua que será falada aqui mesmo dentro de trezentos ou quatrocentos anos Parece lógico comenta Sílvia Todas as coisas mudam os costumes as crenças os meios de comunicação as roupas até os bichos evoluíram e continuam evoluindo Por que a língua não haveria de mudar não é É por isso prossegue Irene que nós lingüistas dizemos que toda língua muda e varia Quer dizer muda com o tempo e varia no espaço Temos até uns nomes especiais para esses dois fenômenos A mudança ao longo do tempo se chama mudança diacrônica A variação geográfica se chama variação diatópica E é por isso também que não existe a língua portuguesa Ah não admirase Emília Então o que é que existe Existe um pequeno número de variedades do português faladas numa determinada região por determinado conjunto de pessoas numa determinada época que por diversas razões foram eleitas para servirem de base para a constituição para a elaboração de uma normapadrão A normapadrão é aquele modelo ideal de língua que deve ser usado pelas autoridades pelos órgãos oficiais pelas pessoas cultas pelos escritores e jornalistas aquele que deve ser ensinado e aprendido na escola Vejam bem que eu disse aquele que deve ser não aquele que necessariamente é empregado pelas pessoas cultas Essa norma ao longo do tempo se torna objeto de um grande investimento Investimento Irene pergunta Sílvia Como assim No processo de constituição de cristalização da norma padrão pág 22 como o que deve ser a língua ela é analisada pelos gramáticos que escrevem livros para descrever as regras de funcionamento dela livros que servem ao mesmo tempo para prescrever essas regras isto é impor essas regras como as únicas aceitáveis para o uso correto da língua Os dicionaristas também se debruçam sobre a normapadrão e tentam definir os significados precisos para as palavras que compõem esse padrão A Academia de Letras estabelece a ortografia oficial a maneira única de escrever que é imposta por decretolei governamental Ela também cuida para que palavras de origem estrangeira não contaminem excessivamente a língua e propõe novos termos para substituílas termos com uma forma mais próxima daquilo que os tradicionalistas chamam de a índole da língua Os autores de livros didáticos preparam seus manuais escolares pensando em estratégias pedagógicas eficazes para que as crianças aprendam a norma padrão Todo esse trabalho de padronização de criação e cultivo de um modelo de língua é que compõe o tal investimento de que eu falei Por isso a normapadrão dá a impressão de ser mais rica mais complexa mais versátil que todas as demais variedades da língua faladas pelas pessoas do país Na verdade ela nada tem de melhor que essas variedades ela só tem mais que as outras E o que é que ela tem mais que as outras pergunta Sílvia Por causa do tal investimento a normapadrão tem principalmente mais palavras eruditas tem mais termos técnicos tem um vocabulário maior e mais diversificado Ela também tem mais construções sintáticas consideradas de bomgosto tem expressões de origem erudita que servem de modelos para serem imitados metáforas clássicas que dão um ar nobre à linguagem Mas se esse mesmo investimento fosse aplicado a qualquer uma das muitas variedades faladas no país ela também se enriqueceria e se mostraria capaz de ser veículo para todo tipo de mensagem de discurso de texto científico e literário Quer dizer então que se a gente pegasse a língua falada sei lá por uma tribo de índios por exemplo e fizesse todo esse investimento que você explicou ela se tornaria uma língua tão complexa e cheia de recursos quanto o portuguêspadrão pergunta Emília pág 23 Exato responde Irene Ela se tornaria o que se costuma chamar de língua de cultura Aconteceu uma coisa mais ou menos parecida com isso na Nova Zelândia Lá o idioma mais usado é o inglês implantado pelos colonizadores britânicos Mas os habitantes mais antigos da Nova Zelândia são os maoris que tiveram de conviver com todas as dificuldades trazidas pelo processo de colonização Graças a um grande movimento de conscientização eles têm reconquistado muito do que perderam no passado Recuperaram terras obtiveram leis protegendo sua cultura e sua identidade como povo Nos últimos vinte anos a língua maori se tornou uma das línguas oficiais da Nova Zelândia É usada em transmissões de rádio e televisão é impressa em jornais e revistas é ensinada nas escolas Existe mesmo uma universidade onde todos os cursos de todas as ciências são dados exclusivamente em língua maori Ou seja a língua maori recebeu um investimento grande o bastante para que hoje alguém possa estudar física quântica biologia matemática pura sociologia astronomia e tudo mais naquela língua que antes era considerada o idioma tosco de um povo primitivo Puxa vida exclama Emília E eu pensei que aquela minha idéia era só um delírio Aconteceu alguma coisa parecida com o hebraico também não foi tia pergunta Vera Bem lembrado Verinha Quando foi criado o Estado de Israel em 1948 o hebraico era uma língua usada apenas na leitura dos antigos textos sagrados da religião judaica Agora que os judeus tinham seu próprio país queriam recuperar também sua própria língua Ocorreu então um dos fenômenos mais interessantes da história das línguas O hebraico antigo que até então era uma língua morta como o latim para nós hoje foi ressuscitado recebeu um enorme investimento lingüístico e se tornou um idioma moderno perfeitamente adaptado para cumprir todas as funções de uma língua de cultura História da normapadrão Então essa normapadrão é o que a gente costuma chamar de língua portuguesa pergunta Sílvia pág 24 Exato confirma Irene No momento em que se estabelece uma normapadrão ela ganha tanta importância e tanto prestígio social que todas as demais variedades são consideradas impróprias inadequadas feias erradas deficientes pobres E esta normapadrão passa a ser designada com o nome da língua como se ela fosse a única representante legítima e legal dos falantes desta língua Tia você disse que as variedades escolhidas para compor o padrão foram escolhidas por diversas razões Que razões são essas Veja só Vera os motivos que levam determinadas variedades a servir de base para o padrão não têm nada a ver com as qualidades intrínsecas internas lingüísticas destas variedades O que estou tentando dizer é que todas as variedades de uma língua têm recursos lingüísticos suficientes para desempenhar sua função de veículo de comunicação de expressão e de interação entre seres humanos Mas por alguma razão ou razões só algumas servem de base para o padrão E eu volto a perguntar tia que razões são essas Vamos ver alguns exemplos Na Itália a variedade que ganhou o título de padrão e que hoje chamamos de italiano é a língua originária de uma região chamada Toscana Esta região teve uma importância muito grande durante vários séculos tendo a cidade de Florença como capital política e cultural Florença foi um dos pólos do Renascimento o grande movimento cultural europeu que revolucionou todos os gêneros artísticos e literários da época Lá trabalharam e viveram gênios como Leonardo da Vinci Michelangelo e Botticelli E na língua da Toscana foram escritas algumas das obrasprimas da literatura mundial a Divina Comédia de Dante Alighieri as Poesias de Petrarca o Decamerão de Bocácio Além disso a Toscana contava com uma moeda forte o florim que foi uma moeda importante de comércio internacional durante mais de duzentos anos e em torno do qual se havia organizado um sistema bancário muito evoluído para a época Tamanho prestígio fez com que o toscano se tornasse pouco a pouco a língua de cultura de toda a Itália E isso apesar de existirem naquele país dezenas e pág 25 dezenas de línguas diferentes chamadas dialetos falados por milhões de pessoas e também veículos de importantes manifestações culturais Na Espanha a língua oficial é a que se originou numa região chamada Castela e por isso até hoje o espanhol é chamado de castelhano Foram os reis de Castela que com muitas lutas e guerras conseguiram expulsar os árabes que dominaram a Península Ibérica por quase Oitocentos anos Pouco a pouco os nobres castelhanos foram alargando seus territórios e quando terminou a Reconquista isto é quando não havia mais domínios árabes em solo hispânico os castelhanos já tinham conquistado o mais alto prestígio social o que fez com que sua língua se impusesse a todos os demais habitantes do país E tal como na Itália existem na Espanha línguas faladas por muita gente com grande tradição cultural o catalão o basco o galego mas que não conquistaram a importância política do castelhano E no Brasil Irene quer saber Emília Qual foi a história do portuguêspadrão que a gente usa hoje No Brasil a colonização começou pelo Nordeste e é nesta região que se encontram as cidades mais antigas do país Salvador Olinda Recife A cultura da canadeaçúcar fez desta região durante algum tempo o centro político cultural e administrativo do Brasil Mas a descoberta do ouro em Minas Gerais provocou a transferência da capital da Colônia para o Rio de Janeiro em 1763 por ser o porto mais próximo para a remessa do ouro para a Europa Assim o Rio assumiu o primeiro lugar em importância econômica política e conseqüentemente cultural Com o século XX a crescente industrialização de São Paulo levou esta cidade a compartilhar com o Rio a importância econômico política e cultural Mais tarde o peso cultural e político de Minas Gerais começou a se fazer sentir Tudo isso fez com que o português formal empregado pelas classes sociais privilegiadas residentes no triângulo formado pelas cidades de São Paulo Rio de Janeiro e Belo Horizonte começasse a ser considerado o modelo a ser imitado a norma a ser seguida o portuguêspadrão do Brasil E é por isso que as variedades de outras regiões como a nordestina economicamente pobre e culturalmente desprestigiada são pág 26 consideradas no melhor dos casos engraçadas divertidas pitorescas ou no pior grosseiras erradas e feias pelos falantes das variedades sudestinas E mesmo dentro da região Sudeste existe muito preconceito não é tia intervém Vera A reação dos moradores das grandes cidades ao modo de falar dos caipiras por exemplo é sempre de deboche Bem lembrado Verinha responde Irene O chamado falar caipira estendese por uma grande área do SulSudeste que inclui o interior do Paraná de São Paulo e uma grande porção de Minas Gerais O traço mais marcante dessas variedades é o chamado R caipira que recebe na fonética o nome técnico de R retroflexo De fato quase sempre este traço é ridicularizado pelos moradores das cidades grandes E veja que essas regiões que você citou não têm nada de pobre não é lembra Sílvia Muito pelo contrário são regiões muito ricas por causa da agricultura e eu já li reportagens dizendo que o padrão de vida das cidades do interior de São Paulo por exemplo é comparável ao de países da Europa É verdade confirma Irene Nesse caso estamos diante de um preconceito muito antigo e que se encontra em muitos lugares do mundo a suposta superioridade do urbano sobre o rural Que é o português nãopadrão Se estou entendendo bem diz Emília a língua é um balaio de variedades e só umas poucas vão ser tiradas do balaio para compor o padrão certo Irene se diverte com a comparação mas concorda Certo E as outras que sobram no balaio as coitadinhas as rejeitadas quer saber Emília Como é que elas ficam Bem nós já vimos as razões por que a tão celebrada unidade lingüística do Brasil não passa de um mito isto é uma idéia muito bonita muito conveniente mas falsa e para piorar também prejudicial à educação porque simplifica a realidade que como vimos é bastante complexa No Brasil portanto não se fala uma pág 27 só língua portuguesa Falase um certo número de variedades de português das quais algumas chegaram ao posto de normapadrão por motivos que não são de ordem lingüística mas histórica econômica social e cultural Existe portanto um portuguêspadrão que vamos apelidar de PP que é essa norma oficial usada na literatura nos meios de comunicação nas leis e decretos do governo ensinada nas escolas explicada nas gramáticas definida nos dicionários Sim já acompanhei a biografia de miss Padrão insiste Emília mas e as variedades que sobraram no balaio O balaio como você diz pode ser chamado em conjunto de português nãopadrão PNP para nós Esse PNP logicamente apresenta variedades de acordo com as diferentes regiões geográficas classes sociais faixas etárias e níveis de escolarização em que se encontram as pessoas que o falam No entanto existem alguns traços lingüísticos comuns a todas essas variedades Aliás é justamente desses traços comuns que eu vou tratar no livro que estou escrevendo Quem fala o PNP Tia se o portuguêspadrão é falado pelas pessoas que detêm o poder e estão nas classes sociais mais privilegiadas que nós sabemos que são uma pequena minoria da população do Brasil quem é que fala o português nãopadrão O português nãopadrão é a língua da grande maioria pobre e dos analfabetos do nosso povo Verinha É também conseqüentemente a língua das crianças pobres e carentes que freqüentam as escolas públicas Por ser utilizado por pessoas de classes sociais desprestigiadas marginalizadas oprimidas pela terrível injustiça social que impera no Brasil país que tem a pior distribuição da riqueza nacional em todo o mundo o PNP é vítima dos mesmos preconceitos que pesam sobre essas pessoas Ele é considerado feio deficiente pobre errado rude tosco estropiado E isso é grave para a educação pergunta Emília Claro que sim responde Irene Esses preconceitos fazem pág 28 com que a criança que chega à escola falando PNP seja considerada uma deficiente lingüística quando na verdade ela simplesmente fala uma língua diferente daquela que é ensinada na escola Eu nunca tinha pensado nisso confessa Emília Alguns estudos têm revelado uma triste realidade no nosso sistema educacional continua Irene Os professores administradores escolares e psicólogos educacionais tratam o aluno pobre como um deficiente lingüístico como se ele não falasse língua nenhuma como se sua bagagem lingüística fosse rudimentar refletindo conseqüentemente uma inferioridade mental Isso cria no espírito do aluno pobre um sentimento de rejeição muito grande levandoo a considerarse incapaz de aprender qualquer coisa Por outro lado cria no professor a sensação de estar tentando ensinar alguma coisa a alguém que nunca terá condições de aprender Daí resulta que o aluno fica desestimulado a aprender e o professor desestimulado a ensinar Vai ver que é por isso que tantas crianças pobres acabam abandonando a escola sugere Emília É claro confirma Irene Por serem desprezadas por não terem seus direitos lingüísticos reconhecidos como tais por serem obrigadas a assimilar conceitos veiculados numa variedade de português que é estranha para elas E não estamos falando apenas das aulas de português mas de todas as disciplinas lecionadas na escola Sim porque todo professor é professor de língua já que ele se serve da língua como meio de transmissão dos conteúdos que lhe cabe ensinar Por isso a transformação do modo de encarar as variedades nãopadrão tem de ser feita em todos os campos da educação sendo uma tarefa de todos e não apenas dos professores de língua portuguesa Tudo isso é por causa do mito da língua única pergunta Sílvia É responde Irene nossa escola não reconhece a existência de uma multiplicidade de variedades de português e tenta impor a normapadrão sem procurar saber em que medida ela é na prática uma língua estrangeira para muitos alunos senão para todos pág 29 Que coisa mais injusta exclama Vera Imagine que você não sabe nadar e matriculase num curso de natação diz Irene Na primeira aula você e todos os demais alunos são jogados dentro do lado fundo da piscina Aqueles que já souberem nadar conseguirão se salvar e prosseguirão no curso Os que não souberem terão que se debater até chegar à beira da piscina e serão mandados embora Outros quem sabe até morrerão afogados É um método de ensino completamente absurdo diz Emília Não é mesmo reitera Irene Mas é assim que acontece na nossa escola Nosso sistema educacional valoriza aquelas crianças que já chegam à escola trazendo na sua bagagem lingüística o portuguêspadrão e expulsa as que não o trazem Isso é uma grande injustiça como disse a Vera porque é exatamente esse portuguêspadrão que deveria ser ensinado na escola porque ele permite que o aluno originário das classes sociais desfavorecidas se apodere de um recurso fundamental em sua luta contra as desigualdades sociais tão profundas em nosso país O domínio da normapadrão certamente não é uma fórmula mágica que vai permitir ao falante de PNP subir na vida automaticamente Mas é uma forma que esse falante de PNP tem de lutar em pé de igualdade com as mesmas armas ao lado dos cidadãos das classes privilegiadas para ter acesso aos bens econômicos políticos e culturais reservados às elites dominantes Por isso devemos brigar pela efetiva distribuição democrática da riqueza lingüística assim como devemos brigar também pela distribuição democrática de tudo mais terras empregos saúde moradia transporte lazer cultura educação Como é fácil ver tratase de um problema muito amplo e complexo que tem relação com a transformação radical do tipo de sociedade em que vivemos e não somente com a alteração dos métodos pedagógicos do sistema educacional O livro de Irene Irene pára de falar Aproxima as mãos do fogo da lareira esfregaas Põe um pouco mais de chá na caneca come um biscoitinho pág 30 Quer dizer que a Eulália fala um português nãopadrão pergunta Emília Exatamente responde Irene A Eulália foi alfabetizada quando tinha mais de quarenta anos Hoje ela sabe ler e escrever foi alfabetizada no portuguêspadrão mas continua empregando no dia adia a variedade nãopadrão que é a língua materna dela usada pelas pessoas de sua família e de sua classe social Aliás foi durante a alfabetização da Eulália que eu comecei a refletir sobre esses problemas todos E a que conclusões você chegou tia A muitas Vera Por exemplo se pudéssemos conhecer melhor o português nãopadrão talvez conseguíssemos identificar as diferenças que o distinguem do portuguêspadrão Para quê indaga Sílvia Com base no conhecimento dessas diferenças talvez pudéssemos perceber as dificuldades que se apresentam para o aluno que tem de aprender a normapadrão Poderíamos também quem sabe traçar novas estratégias de ensino fugir da tradicional que é autoritária e intolerante para com o que é diferente Se todos compreendêssemos que o PNP é uma língua como qualquer outra com regras coerentes com uma lógica lingüística perfeitamente demonstrável talvez fosse possível abandonar os preconceitos que vigoram hoje em dia no nosso ensino de língua Quer dizer que é possível escrever uma gramática do português nãopadrão do mesmo jeito como existem as gramáticas do portuguêspadrão pergunta Vera Claro que é possível responde Irene É nisso que estou trabalhando O seu livro vai ser essa gramática pergunta Sílvia Ainda não Sílvia responde Irene Uma gramática do PNP é um trabalho para muitos e muitos anos Minha intenção agora é bem mais modesta Quero apenas contribuir para que o PNP deixe de ser visto como uma língua errada falada por pessoas intelectualmente inferiores e passe a ser encarado como aquilo que ele realmente é uma língua bem organizada coerente e funcional No meu livro eu não vou abordar todas as diferenças que existem entre o PNP e o PP Como eu já disse isso exigiria um trabalho muito maior pág 31 que teria de incluir coleta e análise de dados com gravações autênticas de falantes das variedades Quero me limitar a algumas diferenças principalmente fonéticas no modo de pronunciar a língua Por que justamente essas pergunta Sílvia Porque são as mais evidentes explica Irene A diferença na forma como uma palavra é pronunciada é o que logo nos chama a atenção e nos avisa que uma pessoa fala uma variedade diferente da nossa Além disso essas diferenças fonéticas são as mais estigmatizadas Estigmatizadas como pergunta Emília São elas as que recebem a maior carga de preconceito e rejeição por parte do conhecedor de portuguêspadrão Dê só um exemplo pede Vera Quando alguém diz véio trabáio cuié por exemplo ou grobo broco a maioria dos falantes escolarizados torcem o nariz ou quando são mais delicados mordem o lábio para não rir diz Irene lançando um olhar maroto para as amigas da sobrinha que se encolhem coradas O erro e o outro Mas vocês não estão sozinhas nessa atitude explica Irene Ela foi e continua sendo ensinada sistematicamente pelos livros didáticos pelas gramáticas tradicionais pelos dicionários e é claro pela escola Por isso a primeira reação de um falante escolarizado diante do PNP é considerálo um português errado corrompido estropiado A noção de erro é muito cômoda pois ela dispensa a gente de ir mais fundo e descobrir as verdadeiras razões que levam o PNP a ser como é É engraçado você dizer isso comenta Sílvia porque uns dias atrás eu tive uma discussão com meu pai exatamente sobre essa questão O Fábio meu irmão adolescente usa o boné com a aba virada para trás e meu pai vive implicando com ele Por que você insiste em usar o boné do jeito errado Até que um dia eu falei Pai ele não usa o boné do jeito errado ele só usa de um jeito diferente pág 32 E você está certa confirma Irene O que é errado para seu pai pode ser perfeitamente certo para o Fábio Seu irmão deve estar obedecendo a algum tipo de regra diferente das regras que seu pai obedece Pode ser a regra da moda a regra de uma faixa etária a regra de uma determinada atitude dos adolescentes de uma determinada classe social a regra da contestação do tradicional Ver o que é diferente como algo errado aliás é um fenômeno muitíssimo antigo É mesmo tia Só é responde Irene Os gregos antigos por exemplo chamavam de bárbaros todos os povos que não falavam a língua grega Ou seja o resto da humanidade diz Emília Exato confirma Irene A própria palavra bárbaro é bastante significativa Ela é uma onomatopéia Que palavrão é esse espantase Sílvia Algum bicho parecido com uma centopéia Explique para elas Vera pede Irene Onomatopéia é a palavra que tenta imitar um som que existe esclarece Vera Por exemplo recoreco tiquetaque cocoricó tentam reproduzir o som do instrumento chamado reco reco o som do funcionamento do relógio o som do canto do galo Muito bem cumprimenta Irene A palavra bárbaro também queria imitar um som neste caso o som das línguas que os estrangeiros os nãogregos falavam No início portanto a palavra bárbaro significava simplesmente estrangeiro que fala uma língua diferente Com o tempo porém o preconceito tomou conta da palavra porque quem não falava grego era considerado naturalmente inferior pouco inteligente abrutalhado Foi assim que a palavra bárbaro ganhou o sentido que tem até hoje no portuguêspadrão e em muitas outras línguas feroz selvagem destruidor não civilizado Gente Que coisa mais interessante Eu nem sonhava com isso confessa Emília Aliás é de bárbaro que vem o português brabo bravo no sentido de feroz acrescenta Irene Essa história do preconceito eu já tenho notado em alguns livros que tenho lido no meu curso diz Vera Os portugueses pág 33 dizem que os brasileiros falam um português errado Os franceses dizem que os belgas e suíços falam um francês feio Os ingleses acusam os norteamericanos de deturparem a língua de Shakespeare Os espanhóis dizem que os latinoamericanos falam um castelhano viciado Eu sei o que é isso comenta Sílvia Parece que a questão do diferente do outro é o grande problema do ser humano em todos os aspectos de sua vida Falou a voz da Psicologia ironiza Emília Mas é verdade prossegue Sílvia É difícil para cada um de nós suportar a existência dos outros tolerar a convivência com tantos nãoeu A coisa já começa na família quando somos obrigados a limitar nossa liberdade e a respeitar a dos outros que dividem o mesmo espaço conosco o pai a mãe os irmãos É um duro aprendizado que não pára nunca e continua ao longo da vida toda o aprendizado da humildade da tolerância da misericórdia do amor ao próximo enfim Muito bem explicado Sílvia você tem toda a razão diz Irene No esforço enorme que temos de fazer diariamente para aceitar o outro o diferente de nós vamos incluir também a aceitação de uma língua diferente da nossa mas que tem tanto parentesco com ela Vamos ser humildes e tentar ver o quanto os falantes do português nãopadrão têm a nos ensinar sobre nós mesmos Erro comum ou acerto comum Como é que você pretende provar para nós e para os leitores do seu livro que o português falado pela Eulália por exemplo não é errado pergunta Emília Respondo com outras perguntas diz Irene Como chamar de erros fenômenos que acontecem de Norte a Sul do Brasil Como é que tanta gente consegue cometer os mesmos erros ao mesmo tempo Se milhões de pessoas por este Brasil afora dizem os óio onde você esperaria os olhos será possível falar de erro comum como gostam de dizer os gramáticos tradicionalistas Não seria o caso de falar de acerto comum O que eu pretendo mostrar pág 34 no livro é que tudo aquilo que é considerado erro no PNP tem uma explicação científica do ponto de vista lingüístico ou outro lógico pragmático psicológico E quando vamos poder falar de erro então quer saber Emília A noção de erro tem que ser reservada para problemas individuais responde Irene Se alguém ao invés de dizer cavalo diz cafalo este sim estará cometendo um erro devido talvez a problemas físicos na audição ou na fonação pois essa forma não é registrada em nenhuma variedade do português do Brasil Mas dizer pranta no lugar de planta não é um erro é um fenômeno chamado rotacismo que acontece nas mais diversas regiões do país e que participou da formação da língua portuguesa padrão ao longo dos séculos Tenho um capítulo só sobre isso Tudo bem diz Emília mas eu insisto e as provas Para provar que as características do português nãopadrão não são erros eu vou recorrer a duas estratégias principais A saber cobra Emília Primeiro comparar o PNP com outras línguas vivas e mostrar que nelas também ocorrem fenômenos e não erros semelhantes Muito perspicaz graceja Emília Em seguida prossegue Irene sorrindo com o tom brincalhão da estudante de Pedagogia buscar na história da própria normapadrão as explicações para determinadas características que aparentemente são exclusivas do PNP Por que você escolheu essas duas estratégias quer saber Vera Recorrer à história da língua é uma tentativa que faço de mostrar que a língua portuguesa em todas as suas variedades continua em transformação continua mudando caminhando para as formas que terá daqui a algum tempo Da mesma maneira como o latim foi se transformando lentamente até resultar nas diversas línguas românicas hoje existentes italiano romeno romanche francês provençal sardo catalão espanhol português também cada uma delas continua a se transformar Daqui a alguns séculos provavelmente portugueses e brasileiros não se entenderão mais pois cada povo poderá estar falando uma língua diferente Não foi o que aconteceu pág 35 com o português e o espanhol tão parecidos tão próximos mas ao mesmo tempo tão diferentes que a compreensão mútua total já se tornou impossível Características do PNP Estou morrendo de curiosidade para conhecer essas diferenças entre o portuguêspadrão e o nãopadrão confessa Sílvia Você não pode adiantar algumas para nós Claro que posso responde Irene Eu fiz até um quadro comparativo para situar melhor essas diferenças É este aqui Irene passa a Vera uma folha de papel Nela está impresso o seguinte quadro Quadro 1 português nãopadrão português padrão natural artificial transmitido adquirido apreendido aprendido funcional redundante inovador conservador tradição oral tradição escrita estigmatizado prestigiado marginal oficial tendências livres tendências refreadas falado pelas classes dominadas falado pelas classes dominantes Agora você vai ter de explicar esse quadro timtim por tim tim exige Emília Com prazer meritíssima juíza graceja Irene O PNP é natural porque sua lógica de funcionamento segue as tendências naturais da língua que criam regras que são automaticamente respeitadas pelo falante ao passo que o PP é artificial por ser uma norma que sofre as limitações impostas pela sua padronização que dita regras para serem memorizadas e que exigem treinamento para serem obedecidas pág 36 O PNP é transmitido de geração para geração é um patrimônio lingüístico que é compartilhado no convívio com a família e com as pessoas da mesma classe social O PP tem que ser adquirido na escola por meio principalmente da forma escrita da língua As regras do PNP são apreendidas naturalmente pelo falante enquanto as do PP têm de ser aprendidas decoradas memorizadas exigindo um treinamento lingüístico especial da parte do falante O PNP é funcional porque trata de eliminar todas as regras desnecessárias e supérfluas que se repetem e se sobrepõem Já o PP é redundante porque faz uso de muitas regras para dar conta de um único fenômeno Veremos isso quando formos tratar da questão dos plurais em PNP O PNP é inovador porque se deixa levar pelas forças vivas de mudança que estão sempre ativas na língua O PP que tem o objetivo de se manter inalterado o máximo de tempo possível é conservador e demora muito a aceitar algum tipo de novidade Por ser uma língua familiar natural apreendida o PNP se caracteriza por ter uma forte tradição oral já que o domínio da língua escrita é privilégio dos que freqüentam a escola Há manifestações escritas do PNP mas elas representam uma gota dágua num oceano de material escrito em PP O PNP como eu já disse deixa vir à tona as forças transformadoras da língua e evolui com mais rapidez que o PP que refreia estas tendências justamente para impedir que elas o desfigurem muito depressa PP e PNP mais semelhanças do que diferenças Irene faz uma pequena pausa Aproxima as mãos do fogo da lareira esfregaas e depois toma um gole de chá Em seguida retoma Até agora nós só falamos das diferenças que existem entre PP e PNP e é justamente dessas diferenças que vou tratar no meu livro como já expliquei No entanto é preciso deixar uma coisa bem clara existem muito mais semelhanças do que diferenças entre as variedades do português do Brasil Na verdade se fosse possível colocar num dos pratos de uma balança os traços lingüísticos que diferenciam as variedades mais padronizadas e as variedades menos padronizadas e pág 37 no outro prato os traços lingüísticos semelhantes ficaríamos surpresas de ver como as semelhanças são em quantidade muitíssimo maior que as diferenças É esse elevado grau de semelhança que permite por exemplo que um falante escolarizado do Rio Grande do Sul possa se comunicar com um morador analfabeto das palafitas do Amazonas embora a recíproca nem sempre seja verdadeira um analfabeto terá dificuldade em entender uma conferência científica ou mesmo um noticiário de televisão que use uma linguagem mais padronizada Mas ao mesmo tempo esse grau de semelhança permite também que um falante de português nãopadrão aprenda as regras da gramática normativa desde é claro que a escola realmente queira ensinálas a ele Se as semelhanças são tantas Irene por que as pessoas escolarizadas em geral insistem em enfatizar sempre as diferenças pergunta Sílvia Porque na verdade Sílvia elas não enfatizam as diferenças lingüísticas mas sim as diferenças sociais responde Irene Podemos até criar um refrãozinho Onde tem variação também tem avaliação Quando nós falantes escolarizados de uma variedade urbana culta rimos ou temos pena de alguém que diz prantá no lugar de plantar aproveitamos essas diferenças de pronúncia para mostrar que nós não pertencemos àquela classe social àquela comunidade atrasada que não fazemos parte daquele grupo desprestigiado Queremos deixar bem clara a distância social econômica e cultural que existe entre nós e aquele falante de não padrão E é daí que nasce o preconceito lingüístico Mas não só o lingüístico não é mesmo Irene apressase em acrescentar Emília Acho que todo tipo de preconceito nasce disso Basta um pequeno detalhe para tentar justificar a discriminação Afinal o que é que diferencia uma pessoa negra de uma pessoa branca por exemplo A cor da pele e nada mais Todo o resto é igual boca olhos nariz cabelo ouvidos pés mãos pele osso sangue cinco sentidos infinitos sentimentos incontáveis sensações Mas na hora de discriminar de fazer a separação é a diferença mínima que conta Você tem razão Emília concorda Irene Justamente por isso por haver muito menos diferenças do que semelhanças é pág 38 que eu no meu livro vou estudar as diferenças tentar explicar o porquê delas Aliás se fosse escrever um livro sobre as semelhanças que existem entre as variedades do português do Brasil acho que nem no ano 3000 ele ficaria pronto Além de ser um trabalho enorme seria também bastante inútil as semelhanças são tão óbvias tão evidentes que qualquer criancinha percebe elas Mesmo assim nunca é demais insistir e é bom vocês terem isso sempre na lembrança as semelhanças entre as variedades do português do Brasil são muito maiores do que as diferenças E essa é uma verdade que devemos sempre salientar na qual devemos nos apoiar se quisermos provocar uma mudança de atitude se nos pusermos a combater o preconceito lingüístico que se apóia nas diferenças É uma pena que não seja assim também em tudo mais lamenta Sílvia As diferenças lingüísticas podem não ser tão grandes mas as diferenças sociais e econômicas no Brasil são imensas Outro dia li uma reportagem que dizia que apesar de termos a nona maior economia do mundo também temos um dos piores sistemas educacionais do planeta incompatível com o desenvolvimento tecnológico e industrial do país E a distribuição de renda é a mais injusta do mundo também com uma grande concentração de riquezas nas mãos de uns poucos Em nenhum outro país a desigualdade entre ricos e pobres é tão grande quanto aqui A reportagem dizia que os pobres do Brasil vivem em condições mais miseráveis que as dos pobres de muitos países africanos bem menos desenvolvidos Infelizmente é isso mesmo suspira Irene E todas essas diferenças acabam influindo no momento em que alguém vai avaliar uma variedade lingüística nãopadrão Baseandose nessas tremendas desigualdades sociais e econômicas que a Sílvia mencionou os falantes escolarizados acabam vendo mais diferenças lingüísticas do que as que realmente existem entre o padrão e o não padrão Tia intervém Vera A palavra padrão me faz pensar na hora em patrão É maluquice minha ou tem mesmo alguma coisa a ver Tem tudo a ver responde Irene Da mesma palavra latina patronu nasceram em português as palavras padrão e patrão pág 39 Puxa que coincidência surpreendese Emília Coincidência nada replica Sílvia Isso é na verdade um fato histórico que pelo que posso farejar tem muitas conseqüências de ordem política e social além de lingüística não é Irene Exatamente Sílvia apóia Irene Vocês estão querendo me dizer que a língua padrão é a língua do patrão pergunta Emília Você é que está dizendo responde Irene e todas riem Mas é isso mesmo Emília Do latim vulgar ao português nãopadrão Nesse momento o relógio grande da sala bate doze badaladas Irene se espanta Gente como é tarde Se eu for dormir depois da meianoite vou virar uma abóbora Todas riem Que pena lamenta Vera O papo estava tão interessante Estava mesmo confirma Emília Que tal se a gente continuasse amanhã Isso mesmo aprova Sílvia Eu estou tendo uma idéia absolutamente pavorosa insinua Vera Que idéia interessase Emília Que tal se a tia Irene desse um pequeno curso intensivo de português nãopadrão para nós De que jeito quer saber Sílvia Muito simples explica Vera Ela já está com o livro pronto mesmo Bastava ela transformar cada capítulo numa aula para nós Que menina mais caxias exclama Irene Quer estudar até nas férias Acho a idéia muito legal aprova Sílvia Eu também endossa Emília E você tia o que acha Irene reúne seus papéis com cuidado Folheiaos durante alguns segundos Atendendo a pedidos Vera dá um salto abraça a tia com força enchea de beijos pág 40 O que se pode negar a uma sobrinha apaixonada graceja Irene Mas já que é assim preciso concluir essa aula introdutória antes de passar às aulas mais específicas Por favor ilustríssima doutora concede Emília Eu só queria relembrar alguns fatos históricos muito interessantes diz Irene Depois que as legiões romanas conquistavam um território ele recebia o nome de província Para essa província eram enviados muitos cidadãos romanos pequenos funcionários públicos soldados agricultores comerciantes artesãos enfim gente do povo que ia colonizar as novas terras conquistadas para o Império Ora essa gente do povo não falava o latim clássico o latim dos grandes oradores dos poetas e dos filósofos de Cícero Horácio Virgílio Sêneca Nada disso Falava sim um latim simplificado com regras mais flexíveis mais práticas que as do latim clássico Esse latim do povo recebeu o nome de latim vulgar Foi esse latim vulgar que os habitantes originais das províncias conquistadas aprenderam pois seu contato era muito maior com os romanos simples do que com as camadas sociais mais altas do Império E foi desse latim vulgar que surgiram com o passar do tempo todas as línguas chamadas românicas entre as quais o português Um romano de alta linhagem certamente achava que o latim vulgar era latim falado errado exatamente o que muitas pessoas pensam do português nãopadrão No entanto se desse latim errado desse latim em pó como disse Caetano Veloso numa canção sobre a língua portuguesa surgiram línguas que se tornaram tão importantes na história da humanidade línguas em que foram produzidas obrasprimas inigualáveis da literatura mundial como Os Lusíadas o Quixote a Divina Comédia é provável que daqui a alguns séculos o português nãopadrão brasileiro também venha a ter uma importância tão grande que nada mais o poderá reprimir Por que você acha isso quer saber Sílvia Porque como a gente vai ver nas próximas aulas algumas das características do PNP já estão sendo encontradas nas variedades usadas por falantes cultos plenamente escolarizados Isso deixa claro que por mais que sejam refreadas as forças de mudança interna da língua nunca param de agir pág 41 UM PROBREMA SEM A MENOR GRAÇA rotacização do L nos encontros consonantais s aulas foram combinadas para se realizarem na escolinha que era o nome carinhoso dado ao pequeno cômodo que Irene mandou construir a poucos metros de distância da casa para desenvolver suas atividades de alfabetizadora Lá existe uma grande lousa na verdade uma das paredes pintada de verdeescuro uma pequena estante com livros cadernos canetas e caixas de giz e meia dúzia de mesinhas de madeira com as respectivas cadeiras dispostas em semicírculo Que gracinha isso aqui Irene comenta Sílvia enquanto as novas alunas se acomodam Eu faço o máximo para o ambiente ficar o mais aconchegante possível explica Irene organizando sobre uma das mesas um maço de folhas impressas que vai tirando de uma pasta de cartolina Gosto de deixar bem claro para todo mundo que este lugar é apenas um espaço de trocas de conhecimentos de intercâmbio de experiências Eu não sou a única capaz de ensinar alguma coisa toda pessoa sempre tem algo de interessante de importante para transmitir aos outros não é mesmo Claro que é responde Emília entusiasmada Eu também sou totalmente a favor de uma pedagogia democrática De vez em quando tenho discussões terríveis lá na faculdade com alguns professores que têm saudades da palmatória Fico alegre em ouvir isso diz Irene sorrindo Mas tia vamos ser sinceras um pouquinho intervém Vera O que é que uma empregada doméstica analfabeta por exemplo pode ensinar a uma pessoa como você que sabe tudo Eu Sei tudo exclama Irene arregalando os olhos Vera não diga uma bobagem dessas A Ora tia sabe sim insiste Vera Nunca tive uma dúvida que você não tenha tirado Pode ser querida diz Irene mas vamos ver uma coisa que tipo de dúvida Ah dúvidas sobre sobre meus trabalhos de faculdade por exemplo Ou até antes quando eu era menina na escola pág 42 Você me ensinou muito mais inglês do que todos os cursos que fiz Mas isso é só um tipo de conhecimento Vera explica Irene É um saber acadêmico livresco aprendido É bom mas não é tudo como você pensa Então responda à minha primeira pergunta insiste Vera O que é que você aprende com elas Aprendo tanta coisa responde Irene caminhando até a estante abrindoa e retirando de lá um grosso caderno de capa preta que daria para publicar uma enciclopédia Vamos ver ela folheia o caderno e abreo numa página escolhida ao acaso Aqui está uma série de instruções sobre como tirar manchas dos mais variados tipos Você já aprendeu isso em algum livro na escola Mais receitas e mais receitas Cuidados com as plantas com os bichos que eu crio com a conservação da casa Centenas de fórmulas caseiras de remédios à base de plantas medicinais Hoje em dia eu quase não compro mais remédio em farmácia Ah sim diz ela com olhar carinhoso alisando uma página aquilo que mais me comove O que é pergunta Emília curiosa Uma quantidade enorme de histórias tradicionais contos populares e cantigas folclóricas Um verdadeiro tesouro de poesia Sílvia consulta o relógio e diz Tudo isso está muito bem mas vamos começar a aula Estou ansiosa para conhecer as famosas diferenças entre o portuguêspadrão e o nãopadrão Muito bem concorda Irene devolvendo o caderno à estante A Sílvia tem toda a razão Qual vai ser o assunto de hoje quer saber Emília O riso responde Irene sentandose As três jovens franzem a sobrancelha E desde quando o riso faz parte da gramática tia pergunta Vera Há muito tempo Verinha aliás há milênios Há séculos e séculos que o riso o escárnio e o deboche fazem parte do ensino da língua Emília coça a cabeça pensativa e logo arrisca pág 43 Ontem eu e a Sílvia rimos da fala da Eulália É por aí Irene balança a cabeça afirmativamente Exatamente por aí Emília Quantas vezes você já ouviu alguém dizer Cráudia grobo pranta ingrês broco e teve muita vontade de rir se é que não riu gostoso Ou então teve pena do pobre coitado que não sabe português e fala tudo errado Afinal os professores os livros as gramáticas e os dicionários nos ensinam que o certo o bonito é falar Cláudia globo planta inglês bloco Emília Sílvia e Vera estão muito sérias atentas a cada palavra de Irene Mas será que é mesmo assim tão engraçado pergunta Irene Vamos ver Ela se levanta vai até a lousa e escreve algumas palavras Emília as copia no bloquinho de papel que trouxe pensando que seria útil fazer algumas anotações Vera e Sílvia não tiram os igreja Brás praia frouxo escravo olhos da lousa Leiam com cuidado estas palavras pede Irene Tudo bem com elas não é Estão certas não estão Aparentemente sim responde Vera E de fato estão confirma Irene Mas se você for buscar a história dessas palavras e descobrir de que modo elas ficaram com a forma que hoje têm em português certo é provável que tenha uma grande surpresa Irene entrega a cada uma delas uma folha impressa Dêem uma olhada neste quadro Quadro 2 LATIM FRANCÊS ESPANHOL PORTUGUÊS ecclesia église iglesia igreja Blasiu Blaise Blas Brás plaga plage playa praia sclavu esclave sclavo escravo fluxu flou flojo frouxo pág 44 E então Emília provoca Irene Não lhe parece engraçado que onde havia um L em latim L que se conservou em francês e espanhol surgiu um ridículo R em português O que terá acontecido Será que você e um monte de gente desavisada estão usando estas palavras sem saber que são erradas ou engraçadas Emília não ousa dizer nada Irene prossegue Leiam agora esses versos dOs Lusíadas que estão mais abaixo do quadro Lembremse que Os Lusíadas foram escritos por aquele que é considerado o maior poeta da língua portuguesa Luís de Camões tido até como o verdadeiro inventor da nossa língua literária Quadro 3 Irene olha bem séria para suas alunas e pergunta Nós agora devíamos estar rolando no chão de tanto rir não é Pois acabamos de descobrir que o tão badalado Camões também não sabia português era burro e falava língua de índio Está mesmo escrito assim tia lá nOs Lusíadas pergunta Vera Pois está responde Irene Não é terrível Será que não houve uma só alma caridosa que dissesse a ele Não Luís não é frauta frecha ingrês pranta pruma pubrica mas sim flauta flecha inglês planta pluma publica Irene pára e observa o ar surpreso das três jovens Mas ainda há pior ameaça ela Vocês se lembram de José de Alencar e de Machado de Assis Pois é eles também escreviam froco em vez de floco pág 45 Decifre logo esse enigma Irene pede Emília Minha curiosidade está me mordendo toda Irene sorri Mas a coisa é bem simples Emília Existe na língua portuguesa uma tendência natural em transformar em R o L dos encontros consonantais e este fenômeno tem até um nome complicado rotacismo Quem diz broco em lugar de bloco não é burro não fala errado nem é engraçado mas está apenas E não de agreste avena ou frauta ruda canto I verso 5 Doenças frechas e trovões ardentes X 46 Era este Ingrês potente e militara VI 47 Nas ilhas de Maldiva nasce a pranta X 136 Pruma no gorro um pouco declinada II 98 Onde o profeta jaz que a lei pubrica VII 34 acompanhando a natural inclinação rotacizante da língua O que era L em latim nessas palavras do quadro 3 permaneceu L em francês e em espanhol mas em português se transformou em R Já em italiano só para vocês saberem este mesmo L virou um I fiamma flama fiore flor pianta planta Se a tendência é essa pergunta Emília porque existem palavras em português que mantiveram aquele L depois de consoante Há mais de uma razão Emília responde Irene mas nenhuma delas tem nada a ver com certo ou errado Pode ter sido uma tentativa de alguns escritores e gramáticos de recuperar a forma latina original Pode ter sido uma simples questão de opção na época de Alencar e Machado havia a liberdade de escolha entre froco e floco o que hoje já não existe O próprio Camões nOs Lusíadas escreve ora ingrês ora inglês Por razões como essas entre outras é que algumas palavras permaneceram na normapadrão com o L do latim enquanto outras pelo fenômeno do rotacismo ficaram com o R E como os hábitos e os gostos lingüísticos mudam e variam hoje já não está mais na moda dizer frecha froco pranta Puxa vida deixa escapar Sílvia eu nunca ia poder imaginar uma coisa dessas Nem eu confessa Emília juro que nunca mais vou rir de quem disser chicrete em vez de chiclete Como eu expliquei ontem retoma Irene o português nãopadrão é coerente na sua obediência às tendências da língua Os falantes do PNP só conhecem encontros consonantais com R Na variedade deles simplesmente não existem encontros consonantais com L Mas como essas pessoas são pobres analfabetas ou quase deduz Vera vivem nos piores lugares das cidades estão longe pág 46 dos centros de poder não escrevem livros nem trabalham nas novelas de televisão a língua que elas falam é considerada engraçada pobre feia errada e por isso a gente é ensinada e ensina a rir desse modo de falar Mas não devia ser assim não é completa Irene A gente ri de uma frase como Cráudia fala ingrês e gosta de chicrete mas não ri de A igreja de São Brás é perto da praia muito embora as palavras das duas frases tenham uma mesma explicação histórica E por que a gente ri Porque a segunda frase tem palavras que pertencem à língua literária à língua escrita à língua que se aprende na escola e é usada pelas pessoas importantes ricas poderosas bonitas Já a primeira frase não Ela tem palavras usadas por pessoas que como bem disse a Vera sofrem com as injustiças sociais nunca puderam ir à escola aprender a língua literária escrita dos ricos e falam um português diferente do nosso Mas como estamos vendo a língua delas não tem problema nenhum é coerente segue as tendências naturais do português e tem uma lógica histórica O problema dessas pessoas então conclui Sílvia não é lingüístico é social Exatamente confirma Irene E enquanto não for resolvido continuará a ser um probrema sem a menor graça Emília Vera e Sílvia ficam sérias e pensativas Irene percebe o clima e para quebrar o silêncio bate palmas e diz Meninas não sei vocês mas eu estou roxa de frio e azul de fome Que tal a gente ir para a cozinha preparar uma boa sopa E assim dá por encerrada aquela aula pág 47 UMA LÍNGUA ENXUTA eliminação das marcas de plural redundantes o serão seguinte para surpresa de suas três hóspedes Irene traz para a escolinha um aparelho de som portátil e uma fita cassete Aula com música tia pergunta Vera curiosa Isso mesmo Verinha responde Irene introduzindo a fita cassete no compartimento Rock pop brega ou tango arrisca Emília Nenhum desses gêneros Emília diz Irene O que vocês vão ouvir é uma pequena jóia do nosso folclore musical uma canção popular aliás uma das minhas favoritas Reparem bem na melodia como é linda Lá vai Irene aperta uma das teclas do aparelho e a música enche o pequeno cômodo Quando a canção termina ela desliga o aparelho e pergunta E então O que acharam É linda mesmo tia responde Vera Quem está cantando quer saber Emília Acho que conheço essa voz É a Nara Leão responde Irene Uma voz pequena mas muito meiga Morro de saudades da Nara morreu tão moça E como se chama essa música indaga Sílvia Cuitelinho Eu ouvi essa palavra mas não entendi O que é pergunta Emília Cuitelinho é o nome do beijaflor em algumas partes do CentroSul do Brasil E quem compôs interessase Vera Não se sabe responde Irene como toda autêntica canção folclórica essa não tem autor conhecido Mas temos o nome N do pesquisador que a recolheu da boca do povo Paulo Vanzolini Ele é lingüista assim feito você pergunta Sílvia Não que eu saiba sorri Irene Paulo Vanzolini é zoólogo pesquisador musical e compositor Vocês certamente conhecem pelo menos uma das composições dele a famosíssima Ronda pág 48 De noite eu rondo a cidade a te procurar sem encontrar cantalora Sílvia Essa mesma confirma Irene É um número obrigatório em toda roda de bar em toda seresta Ronda já teve várias gravações E o que você quer fazer com essa música do Cuitelinho pergunta Emília Acho que nós podemos usar essa canção para tentar conhecer algumas das regras que estruturam aquilo que grande parte das pessoas instruídas chamam de fala de caipira fala de matuto língua de jeca língua de caboclo português errado mas que nós conscientes de que todas essas denominações estão recheadas de um enorme preconceito social vamos chamar simplesmente de português nãopadrão combinado Combinado repetem as três em coro Como eu venho repetindo e não me canso de insistir o fato de não ser um padrão de não ser um modelo a ser imitado por quem se considera instruído não significa que esta variedade do português seja errada pobre de recursos insuficiente para a expressão Muito pelo contrário como temos visto e veremos ela tem uma clara lógica lingüística tem regras que são coerentemente obedecidas e serve de material para uma literatura popular muito rica Irene distribui algumas folhas de papel Aqui está a letra da canção Emília pede Põe para tocar de novo Irene para a gente poder acompanhar a letra agora Irene atende ao pedido E de novo se escuta a canção Cuitelinho na voz de Nara Leão Pelo que posso farejar aqui diz Emília essa música é um prato cheio para o estudo do português nãopadrão Farejou bem Emília concorda Irene Estou pensando em usar Cuitelinho para explicar vários fenômenos do PNP Mas hoje vamos cuidar só de um deles Qual quer saber Sílvia Cheguei na bera do porto onde as onda se espaia As garça dá meia volta senta na bera da praia E o cuitelinho não gosta que o botão de rosa caia pág 49 Quando eu vim de minha terra despedi da parentaia Eu entrei no Mato Grosso dei em terras paraguaia Lá tinha revolução enfrentei fortes bataia A tua saudade corta como o aço de navaia O coração fica aflito bate uma a otra faia E os oio se enche dágua que até a vista se atrapaia A questão dos plurais responde Irene Foi mesmo o que mais me chamou a atenção tia diz Vera É impressionante não tem um plural certo na música toda Lá vou eu bater na mesma tecla suspira Irene Verinha o que existe aqui é um sistema diferente de formação de plurais só isso Lembrese que estamos falando do português não padrão que tem regras gramaticais diferentes das do português padrão E qual é a diferença agora pergunta Emília A diferença é a redundância responde Irene No portuguêspadrão existe aquilo que se chama marcas redundantes de plural Redundante não quer dizer repetitivo que é demais que está sobrando pergunta Sílvia Isso mesmo Na nossa normapadrão de português para indicar que estamos falando de mais de uma coisa acrescentamos marcas de plural em muitas palavras da frase Vejam só pág 50 E Irene escreve na lousa estas duas frases Depois volta a falar Para informar que se trata de mais de uma flor o PP precisa de cinco marcas de plural que modificam várias classes de palavras artigo substantivo adjetivo verbo É o que a gente aprende e ensina na escola com o nome de concordância de número Essa quantidade de marcas de plural é do ponto de vista lógico uma redundância desnecessária e do ponto de vista econômico um gasto excessivo não concordam Quero te dar a linda flor amarela que brotou no meu jardim Quero te dar as lindas flores amarelas que brotaram no meu jardim Nunca tinha parado para pensar nas coisas desse jeito admite Vera Sabe o que o portuguêspadrão parece diz Emília O quê pergunta Irene curiosa Parece um daqueles vendedores que sabem convencer um cliente A gente entra na loja procurando uma camisa bonita para ir numa festa e ele consegue fazer a gente comprar também uma calça um par de meias um colete e um cinto tudo combinando A comparação é perfeita Emília aprova Irene A gente acaba saindo da loja com mais coisas do que precisava e com menos dinheiro no bolso conclui Emília Todas riem O português nãopadrão é bem diferente disso prossegue Irene Ele é mais sóbrio mais econômico mais modesto menos vaidoso Sua regra de plural é a seguinte marcar uma só palavra para indicar um número de coisas maior que um E esta regra é rigidamente obedecida em todos os versos da canção reparem bem pág 51 Puxa é mesmo reconhece Sílvia que PNP mais obediente esse A regra como vocês podem ver tem uma hierarquia rígida a marca indicadora de plural é usada apenas no artigo definido Quando não há artigo ela vai para a primeira palavra do grupo a ser pluralizado que pode ser um substantivo como em terras paraguaia ou um adjetivo fortes bataia Na verdade a marca de Cheguei na bera do porto onde as onda se espaia As garça dá meia volta senta na bera da praia Eu entrei no Mato Grosso dei em terras paraguaia Lá tinha revolução enfrentei fortes bataia E os oio se enche dágua número funciona como um sinal um aviso de que aquele grupo de palavras está no plural por isso ela é sempre usada na primeira palavra do grupo E isso é suficiente pergunta Emília Suficiente e eficiente responde Irene A prova disso é que mesmo um falante de PP por mais preconceituoso que seja entende perfeitamente a diferença entre as garça dá meia volta senta na bera da praia e a garça dá meia volta senta na beira da praia Aliás se você prestar atenção na fala das pessoas com quem convive em casa no trabalho no círculo de amizades vai perceber que em situações informais descontraídas mesmo as pessoas ditas cultas aplicam a regra de plural do PNP É verdade tia eu já reparei isso confirma Vera Não sei não duvida Emília Eu tenho certeza de que não falo assim nunca Meus plurais estão sempre bem marcadinhos bonitinhos Será mesmo diz Irene piscando um olho Um dia a gente grava a sua fala numa situação informal e depois põe a fita para tocar Sou capaz de apostar que vai haver muito plural faltando Quem mais fala assim Essa regra de eliminação das marcas de plural redundantes só existe em português nãopadrão Irene pergunta Sílvia Que nada responde Irene As duas línguas estrangeiras mais ensinadas nas escolas o inglês e o francês têm regras bastante parecidas Não diga surpreendese Sílvia Digo sim reitera Irene Veja este exemplo do inglês pág 52 A professora escreve na lousa Observe Sílvia que na segunda frase a única informação que temos de que se trata de muitas flores é dada pelo s do plural de flowers Todo o resto da frase permanece inalterado Repare que na tradução o PP exige nada menos do que cinco marcas indicadoras de plural É mesmo surpreendese Emília E isso é inglês padrão minha gente inglês corretíssimo explica Irene Agora um pouco de francês Irene escreve na lousa Agora peguei você diz Emília em tom satisfeito depois que Irene termina de escrever A segunda frase do francês não tem tantas marcas de plural quanto a do português Quero ver você se sair dessa My beautiful yellow flower died yesterday Minha bela flor amarela morreu ontem My beautiful yellow flowers died yesterday Minhas belas flores amarelas morreram ontem Je veux te donner la belle fleur jaune qui poussait dans mon jardin Quero te dar a bela flor amarela que crescia em meu jardim Je veux te donner les belles fleurs jaunes qui poussaient dans mon jardin Quero te dar as belas flores amarelas que cresciam em meu jardim Muito simples sorri Irene Me saio com o velho ditado As aparências enganam O francês escreve as marcas de plural mas não as pronuncia nunca Deixe eu ler estas duas frases para você Irene lê com cuidado as duas frases em francês escritas na lousa pág 53 Percebeu que a única diferença audível entre elas está no artigo pergunta ela a Emília No singular la no plural les Todo o resto fica igualzinho O francês é uma língua de ortografia muito difícil justamente por isso a gente escreve uma quantidade enorme de coisas mas só pronuncia umas poucas Escrevese o s do plural e as terminações diferentes dos verbos mas elas nunca são pronunciadas O único aviso que temos no francês falado de que as palavras estão no plural é o artigo Exatamente o mesmo que acontece no português não padrão exclama Vera Que loucura PNP uma língua em dia com a moda Quer dizer então que quem diz as coisa realmente não é burro nem atrasado comenta Sílvia Senão teríamos de chamar de burros e atrasados os franceses e os ingleses e ninguém ousa fazer isso É claro que não concorda Irene Essa regra de plural do PNP fez nascer uma coisa bastante curiosa na fala de muitos mineiros que eu conheço Que coisa tia Se você disser isso aos mineiros eles provavelmente vão negar mas já está documentado gravado em fita e filmado em videocassete O que é afinal impacientase Emília Na fala informal dos mineiros é comum a gente ouvir exclamações do tipo Ques criança mais linda ou perguntas como Ques coisa você quer que eu traga Gente que divertido exclama Emília Eles levam a sério a regra do plural na primeira palavra Todas sorriem Irene volta a falar Vocês certamente já leram nos jornais ou ouviram pela televisão expressões como corte de supérfluos enxugamento da máquina eliminação de gorduras aplicadas a situações políticas econômicas ou administrativas não é Já confirma Sílvia Aliás detesto esse linguajar Eu também confessa Irene Essas expressões são a última pág 54 moda no desfile de soluções pretensamente mágicas para a crise social e econômica Pois vejam só o nosso português nãopadrão está perfeitamente de acordo com essas novas tendências Como vimos no caso dos plurais o PNP corta todas as marcas supérfluas redundantes para que tantos funcionários para fazer o serviço que um só dá conta de realizar Isso torna o PNP uma língua enxuta e conseqüentemente mais dinâmica ágil e flexível do que o PP Ah Irene por favor não me decepcione suplica Sílvia Não me diga que você concorda com essas idéias Claro que não bobinha não se apavore responde Irene abraçando Sílvia Fiz a comparação só para a gente se divertir um pouco Graças a Deus diz Sílvia aliviada Como já enfatizei não vamos querer eliminar o português padrão das escolas e passar a ensinar o PNP Mas o conhecimento dessas regras serve para que fiquemos mais atentas às diferenças que existem entre as duas variedades Diferenças que quase sempre infelizmente são logo consideradas erros por quem não consegue compreender a lógica que existe nelas pág 55 LIBERDADE FRATERNIDADE IGUALDADE transformação de LH em I caso do plural já está resolvido comenta Emília Mas tem outra coisa aqui que também me chama muito a atenção E o que é Emília pergunta Irene Eu já reparei isso na fala de muita gente e agora na letra do Cuitelinho apareceu de novo É essa preguiça que o povo tem de pronunciar o LH direito Em vez de trabalho diz trabaio em vez de telha diz têia Pois é esse justamente o tema da segunda parte da nossa conversa de hoje explica Irene Só que você não colocou o problema em termos adequados Emília Para variar comenta Sílvia em tom de pilhéria Não é que os falantes do PNP sejam preguiçosos ou como dizem alguns gramáticos de visão estreita mentalmente inferiores Nada disso Simplesmente na variedade de português que eles falam não existe este som consonantal Não existe surpreendese Vera Não existe repete Irene Do mesmo modo como em portuguêspadrão não existe por exemplo a consoante que em inglês se escreve TH como em thing coisa Quando um falante de português pronuncia digamos o nome da Sílvia colocando a ponta da língua entre os dentes logo percebemos que ele tem um defeito de fala que recebe até um nome técnico ceceio Eu tenho um primo que fala desse jeito confirma Sílvia E ele ainda tem o azar de se chamar Celso Todos sempre zombam dele porque tem a língua presa Só que em inglês quem não pronunciar o TH com a língua entre os dentes é que vai ser considerado defeituoso não é pergunta Vera Isso mesmo confirma Irene É mais uma prova de que os nossos juízos de valor a respeito do falar certo variam de uma O língua para outra e dentro da mesma língua de uma variedade para outra É isso que acontece também com o R torto dos caipiras quer saber Emília pág 56 Bem lembrado responde Irene O R caipira que nós lingüistas chamamos R retroflexo é vítima de muita zombaria por parte dos falantes das variedades urbanas No entanto esses mesmos falantes vão para os cursos de inglês aprender a pronunciar esse R em palavras como fork garfo morning manhã carpet tapete à maneira dos americanos E não me consta que fiquem zombando dessa pronúncia nem chamando os americanos de caipiras Emília dá um longo suspiro levantase põe a mão no peito inclinase e diz em tom jocoso Queirame perdoar senhora professora doutora deixeime levar pelos meus preconceitos Irene sorri Emília volta a sentarse e diz Já que é proibido falar em preguiça do povo como é que você explica aqui na letra da música espaia no lugar de espalha parentaia no lugar de parentalha bataia no lugar de batalha navaia no lugar de navalha faia no lugar de falha e atrapaia no lugar de atrapalha Acho que podemos mais uma vez comparar o português nãopadrão com outras línguas sugere Irene No espanhol padrão que é aquele falado na região de Castela daí o nome castelhano tudo o que se escreve LL é pronunciado lhê equivalente ao LH do portuguêspadrão No entanto dentro da própria Espanha nas demais regiões do país este grupo LL é pronunciado i e os espanhóis falantes do castelhano padrão têm até um nome para esta pronúncia diferente que eles é claro consideram um defeito E que nome é esse interessase Vera É yeísmo responde Irene O yeísmo acontece também no espanhol falado na América Central nas ilhas do Caribe e em diversos países da América do Sul Por causa do yeísmo aquilo que se escreve caballo cavalo com LL e que os castelhanos pronunciam cabalho nas outras variedades se pronuncia cabaio Como se pode ver este problema não é só dos falantes do português nãopadrão Que interessante comenta Sílvia No francês até início do século passado continua Irene o LL do grupo que é escrito ILL se pronunciava como o LH do pág 57 português padrão e os gramáticos apavorados com o desaparecimento desta consoante substituída pela semivogal i fizeram todos os esforços possíveis para salvála da extinção Mas de nada adiantou a campanha deles E hoje se compararmos algumas palavras do portuguêspadrão do francêspadrão e do português nãopadrão vamos ver que essas duas últimas variedades têm pronúncias bem próximas Eu até trouxe um quadro para a gente fazer a comparação Irene dá a cada uma das alunas uma folha onde está impresso o seguinte quadro Quadro 4 Português Padrão Francês Padrão Português NãoPadrão abelha alho batalha colher substantivo abeille abéye ail ay bataille batáye cuiller küyér abêia ai bataia cuié Vou ler as palavras em francês para vocês perceberem a semelhança com o português nãopadrão e entenderem a tentativa de transcrição fonética que coloquei entre parênteses diz Irene e assim faz pág 58 Primeira explicação dentro da língua O que será que provocou no francêspadrão o desaparecimento total da consoante interessase Vera Podemos tentar duas explicações responde Irene A primeira é de ordem lingüística diz respeito à língua em si à sua estrutura Quem nos apresenta o motivo da extinção do lhê em francês é um lingüista alemão Heinrich Lausberg autor de um dos mais completos tratados sobre as línguas românicas Eu copiei a citação aí nesta folha embaixo do quadro Emília Vera e Sílvia lêem no lugar indicado Parece que o Lausberg não sabe que a mesma coisa Por afrouxamento e finalmente abandono da oclusão central formase do λ difícil de pronunciar por causa da elasticidade reduzida do dorso da língua muito naturalmente a fricativa γ como em francês espanhol popular e dialetal LAUSBERG H Lingüística românica 2 ed Lisboa Fundação Calouste Gulbenkian 1981 p 71 falha filha palha trabalhar faille faye fille fíye paille páye travailler travayê abêia ai bataia cuié faia acontece no português nãopadrão do Brasil comenta Vera O que ele quis dizer com tantos nomes complicados Juro que não entendo a variedade dele confessa Emília É simples diz Irene sorrindo Ele quis dizer que a consoante λ este é o símbolo usado pelos lingüistas para representar o som lhê é produzida com a ponta da língua tocando o palato nome oficial do céu da boca muito perto do ponto onde é produzida a semivogal γ símbolo usado para representar o i de pai Experimentem pronunciar a seqüência lhalhalha e depois a seqüência aiaiai e tentem perceber para onde vai a língua As três fazem a experiência e se divertem com os sons produzidos Perceberam pergunta Irene Esta proximidade e a comodidade maior de se pronunciar o i segundo o Lausberg levaram à transformação Vamos estudar este fenômeno em outras conversas mais adiante Por enquanto vocês podem ir guardando o nome dele assimilação pág 59 Parece que é mesmo difícil pronunciar o lhê confirma Vera Eu já reparei que é muito comum a pronúncia trabáio véio abêia na fala de estrangeiros que aprendem o português Muito bem lembrado Verinha confirma Irene Como essas pessoas não têm em suas línguas a consoante λ e sentem dificuldade em pronunciála substituemna pelo som mais próximo que encontram que é justamente o γ Irene levantase da cadeira vai até a lousa pega um bastão de giz e escreve alguma coisa Voltase para as três jovens e diz Vamos acompanhar a trajetória completa de uma palavra do latim até o português Esta palavra é tégula telha Durante a formação da língua portuguesa desde o latim vulgar até sua forma moderna padrão aconteceram as seguintes transformações ela vai apontando as palavras enquanto as lê na lousa O que significa esse sinal entre uma palavra e outra pergunta Sílvia Significa transformouse em explica Vera lembrandose de suas aulas na faculdade Isso mesmo confirma Irene Agora vejam só como a forma telha pertence à língua padrão ao português clássico literário as gramáticas históricas param aí como se a língua tivesse encerrado seu processo de mudança no século XVI Mas toda língua está sempre se modificando de forma ininterrupta e imperceptível para seus falantes mas sempre se modificando Por isso para representar a realidade lingüística do português nãopadrão do Brasil com alguma fidelidade temos de acrescentar mais uma forma nessa seqüência de transformações Irene acrescenta uma palavra à seqüência que fica então assim Só que este pequeno acréscimo representa um passo político muito grande explica ela Por quê pergunta Sílvia pág 60 Porque estaríamos reconhecendo a existência de uma outra variedade de português e exigindo que as gramáticas o ensino oficial e os meios de comunicação a tratassem com o respeito que lhe é devido tégula tegla tegla teyla teyla telha tégula tegla tegla teyla teyla telha têia Segunda explicação fora da língua Se bem me lembro Irene você disse que podia dar duas explicações diferentes para esse mesmo fenômeno diz Emília A primeira já vimos E a segunda A segunda explicação para a vitória do i sobre o lhê em francês é histórica política está fora da língua responde Irene Como vocês sabem a França viveu um período de grandes conturbações políticas no final do século XVIII A famosa Revolução Francesa completa Sílvia A própria confirma Irene A Revolução Francesa de 1789 tirou do poder a classe social dos aristocratas nobres e grandes proprietários de terra No lugar deles ela colocou outra classe social a dos burgueses comerciantes banqueiros e industriais da cidade A mudança de classe social também significou mudança de variedade lingüística dominante Afinal a língua padrão não é a língua do patrão recorda Sílvia No antigo regime prossegue Irene a fala dos burgueses era ridicularizada tratada com desprezo pelos aristocratas exatamente como o português nãopadrão do Brasil é tratado pelos falantes escolarizados Gente como a história se repete exclama Emília Não é mesmo diz Irene Ora justamente na fala daqueles burgueses é que estava acontecendo com toda a liberdade o desaparecimento do lhê para dar lugar ao i Por isso é que poucas décadas depois da Revolução no início do século XIX ninguém mais sabia pronunciar a antiga consoante λ pág 61 Educar é diferente de ensinar Mas aqui no Brasil ainda estamos no antigo regime da consoante comenta Vera Pois é confirma Irene a variedade de português em que não existe o lhê é usada pelas pessoas menos prestigiadas da nossa sociedade Os trabalhadores rurais os analfabetos os moradores das favelas as classes de renda mais baixa completa Sílvia E o que acontece com essa variedade indaga Irene Ela é alvo de todo tipo de preconceito e julgamento negativo responde Vera E se a gente propusesse também uma revolução nesse modo de encarar o português nãopadrão sugere Sílvia Podíamos aplicar à nossa prática de ensino o lema dos revolucionários franceses de 1789 Liberdade igualdade fraternidade Claro que sim por que não retoma Irene A prática tradicional de ensino da língua portuguesa no Brasil deixa transparecer além da crença no mito da unidade da língua portuguesa a ideologia da necessidade de dar ao aluno aquilo que ele não tem ou seja uma língua Essa pedagogia paternalista e autoritária faz tábua rasa da bagagem lingüística da criança e trata a como se seu primeiro dia de aula fosse também seu primeiro dia de vida Tratase de querer ensinar ao invés de educar E qual é a diferença pergunta Emília Para mim esses dois verbos eram sinônimos Nem me fale em sinônimo que eu fico logo toda arrepiada diz Irene Mas vamos ver a diferença O verbo ensinar Emília provém do latim in signo isto é pôr um sinal em alguém e implica uma ação de fora para dentro implantar alguma coisa um signo ou um conjunto de significados na mente de alguém Já educar vem de ex duco trazer para fora tirar de dar à luz num movimento que se faz na direção oposta à de ensinar Preciso anotar isso correndo diz Emília Nossa escola nossas gramáticas normativas nossos livros didáticos nossa psicologia educacional prossegue Irene imbuídos da crença de que um aprendiz nada tem a mostrar e que ao pág 62 contrário é deficiente carente inepto assumem sem disfarce a tarefa de ensinar de incutir uma língua diferente tida como intrinsecamente boa e perfeita O fracasso dessa atitude fica bem claro no número impressionante de alunos que abandonam a escola Isso vem demonstrando que já é hora de tentar educar de destravar os alunos das classes desfavorecidas para que possam pôr para fora suas experiências sua língua e passem a falar por si mesmos Irene faz uma pequena pausa respira fundo e retoma É importante que nós educadores tenhamos em mente que o português nãopadrão é diferente do portuguêspadrão mas igualmente lógico bem estruturado e que ele acompanha as tendências naturais da língua quando não refreada pela educação formal O PNP não é pobre carente nem errado Pobres e carentes são sim aqueles que o falam e errada é a situação de injustiça social em que vivem Uma língua rica Você tem toda razão Irene apóia Sílvia Como chamar de pobre a língua de quem compõe uma canção tão bonita como Cuitelinho Essa é uma das minhas paixões no estudo do português nãopadrão diz Irene Nessa variedade é produzida uma riquíssima literatura popular que poderia ser mais explorada nas escolas até para afastar delas o preconceito que ainda pesa sobre o PNP Você proporia uma análise literária de Cuitelinho em sala de aula pergunta Vera Claro que sim responde Irene Cuitelinho tem imagens poéticas muito bonitas tem rima e métrica perfeitas e se encaixa numa tradição secular de poesia lírica da língua portuguesa que remonta aos trovadores do século XIII É uma canção com letra e melodia e usa o tradicional verso de sete sílabas Repare que cada uma de suas estrofes aborda um aspecto diferente da vida do poeta A primeira é uma visão objetiva da paisagem uma descrição da natureza um panorama ecológico A segunda situa a trajetória geográficohistórica do poeta de sua casa até a fronteira entre Paraguai e Mato Grosso numa época de revolução pág 63 Provavelmente a guerra do Paraguai arrisca Sílvia Aqui diz enfrentei fortes bataia Provavelmente diz Irene A terceira estrofe bastante subjetiva nos dá um retrato dos sentimentos amorosos do poeta Observem um aspecto bonito desta canção não há nenhuma marca lingüística que indique o sexo da pessoa que se identifica com o eu do poeta de maneira que tudo aqui pode estar sendo cantado igualmente por um homem ou por uma mulher Tudo isso numa cançãozinha simples de nada comenta Emília Mas muitos poetas eruditos confessam que gostariam de produzir versos tão simples e com uma riqueza de imagens poéticas condensadas em tão poucas palavras Aliás esta é a lição de arte poética sertaneja que um de nossos maiores poetas populares o cearense Patativa do Assaré nos dá em Cante lá que eu canto cá Que bonito exclama Vera Irene consulta o relógio e se espanta Meu Deus é hoje que eu viro abóbora Já passou da meia noite e meia e a gente aqui pág 64 Pra gente aqui sê poeta e fazê rima compreta não precisa professô basta vê no mês de maio um poema em cada gaio e um verso em cada fulô VERBO PRA QUE TE QUERO simplificação das conjugações verbais a noite seguinte depois que todas se instalam e enquanto Irene consulta suas anotações Emília toma a palavra e diz Irene hoje eu prestei bastante atenção no modo de falar da Eulália e percebi que ela não respeita as conjugações verbais Como assim não respeita quer saber Sílvia Ela não conjuga os verbos como a gente explica Emília Ela diz por exemplo eles gosta nós gosta vocês gosta e assim em diante É verdade tia confirma Vera Aliás eu ia mesmo comentar que isso também aparece na letra da música que a gente viu ontem A Nara canta as onda se espaia as garça dá meia volta brinca na bera da praia os óio se enche dágua Irene termina de organizar seus papéis separa algumas folhas guarda o resto na sua pasta de cartolina e só então fala Muito bem meninas parece que estou conseguindo fazer vocês prestarem mais atenção na língua nossa de todo dia despertando em vocês um espírito de pesquisadoras Parece até que adivinharam porque este é justamente o tema da nossa conversa de hoje a simplificação das conjugações verbais Vera e Emília sorriem satisfeitas com o elogio A Vera até foi mais esperta do que eu reconhece Irene porque eu nem tinha pensado em usar o Cuitelinho para explicar esse fenômeno E no entanto essa canção serve direitinho de exemplo Parabéns sabichona cumprimenta Emília piscando um olho na direção de Vera Muito obrigada é a herança genética diz Vera sorrindo na direção da tia Os pesquisadores que estudam os falares regionais e não N padrão têm verificado que de Norte a Sul do Brasil existe uma tendência generalizada a reduzir as seis formas do verbo conjugado a apenas duas Vamos comparar mais uma vez o portuguêspadrão e o português nãopadrão Lá vou eu de novo com os meus quadros pág 65 Irene distribui as folhas de papel As jovens examinam o quadro Quadro 5 Conjugação do verbo AMAR no presente do indicativo De novo o enxugamento O PNP como vimos ontem é uma língua enxuta que evita as redundâncias o excesso de marcas para indicar um único fenômeno Assim como no caso dos plurais onde a marca de plural fica limitada somente ao artigo ou à primeira palavra como em os menino bonito no caso dos verbos ao que parece basta a presença do pronomesujeito para indicar a pessoa verbal Pronomesujeito é eu tu ele nós etc certificase Sílvia Isso mesmo confirma Irene Se a pessoa já está indicada a forma do verbo não precisa variar tanto para que o PORTUGUÊS PADRÃO eu AMO tu AMAS eleela AMA nós AMAMOS vós AMAIS eles AMAM PORTUGUÊS NÃOPADRÃO eu AMO tuvocê AMA ele AMA nósa gente AMA vocês AMA eles AMA ouvinte compreenda de quem se está falando e qual é o tempo verbal em questão É verdade tia comenta Vera Eu acho que ninguém vai confundir por exemplo tuelenós ama com tuelenós amou É o que prova a funcionalidade do PNP diz Irene A mesma regra de eliminação de concordâncias redundantes que vimos no caso dos plurais vale também aqui pág 66 Eu o outro Mas eu ainda tenho uma dúvida anuncia Emília Se estamos aqui diante de mais um caso de eliminação de redundâncias por que então existe uma forma para eu e uma forma para as outras pessoas todas Por que o verbo para eu não fica igual ao das outras Excelente observação Emília cumprimenta Irene Quem pode responder melhor à sua pergunta eu acho que é a Sílvia Sílvia põe a mão no peito surpresa Eu Por quê Porque neste caso o que existe talvez seja um motivo de natureza psicológica Aliás você já tinha falado disso no nosso primeiro batepapo quando disse que a questão do outro do diferente parece ser o grande problema do ser humano É verdade lembrase Sílvia Puxa que interessante Você está querendo dizer que no caso dos verbos simplificados estas duas formas que diferenciam a primeira pessoa das outras poderiam refletir a necessidade que todo ser humano tem de distinguir o eu o indivíduo do nãoeu do coletivo Parece que é isso mesmo o que acontece responde Irene Parece haver no nosso inconsciente o desejo de deixar bem claro o limite que separa o que diz respeito a mim e o que diz respeito ao resto da humanidade Essa sua hipótese me parece muito boa Irene diz Emília Agradeço o elogio mas não é minha esclarece Irene Alguns estudiosos têm verificado esta mesma tendência em outras línguas línguas bem diferentes do português O inglês nãopadrão falado pelos negros norteamericanos o chamado Black English por exemplo apresenta essa característica O finlandês moderno também E o mesmo acontece no africâner que é uma das línguas oficiais da África do Sul derivada do holandês Preciso tomar nota disso para discutir com os meus professores lá na faculdade diz Sílvia É um ótimo tema para investigação confirma Irene É um ponto que exigiria maior aprofundamento no estudo das relações entre lingüística e psicologia lingüística e psicanálise De que pág 67 modo a língua que se fala reflete ou esconde a língua que não se fala isto é as estruturas do nosso inconsciente O clássico e o coloquial Irene vai até a lousa e começa a escrever alguma coisa Enquanto escreve vai falando Na verdade a redução de seis formas verbais do PP para duas no PNP só nos surpreende porque estamos acostumadas demais eu diria até viciadas com o esquema tradicional de conjugação do portuguêspadrão que é um retrato fiel do quadro de conjugação latina Muito orgulhosos de falarem uma língua o português que tem antepassado tão ilustre o latim os gramáticos não abrem mão desse quadro tentando provar com isso o quanto a nossa língua ainda conserva sua herança latina Vejam só E Irene aponta para o que acaba de escrever Quadro 6 Verbos AMARE e AMAR no presente do indicativo O português é mesmo muito parecido com o latim exclama Emília Mas qual português pergunta Irene Este quadro é mesmo muito bonito mas não corresponde totalmente à realidade da língua portuguesa falada no Brasil O quadro com seis formas pág 68 diferentes uma para cada pessoa corresponde quando muito ao portuguêspadrão clássico literário escrito Digo quando muito porque nem mesmo nessa variedade escrita esse quadro está totalmente refletido Basta ler os bons jornais as revistas e a literatura contemporânea para se dar conta disso Mas como é então a conjugação nossa de cada dia pergunta Emília Se você prestar alguma atenção nas formas verbais utilizadas diariamente por pessoas que usam o portuguêspadrão mas na sua variedade falada coloquial vai ver que nós também simplificamos bastante o nosso quadro de conjugação verbal Veja só Irene volta à lousa e escreve LATIM CLÁSSICO AMO AMAS AMAT AMAMUS AMATIS AMANT PORTUGUÊS PADRÃO CLÁSSICO AMO AMAS AMA AMAMOS AMAIS AMAM Quadro 7 Como é fácil verificar retoma ela as seis formas do PP literário foram reduzidas a três exatamente a metade no PP coloquial O português nãopadrão ao simplificar de seis para duas formas só levou um pouco mais adiante o mesmo processo de enxugamento da máquina que a gente observa também no PP Passado presente ou futuro Vera examina mais uma vez o quadro das conjugações dessa vez com ar pensativo Voltase para Irene e diz Tia passou uma idéia pela minha cabeça e eu queria que você me dissesse se ela tem fundamento ou se estou apenas delirando Diga lá Verinha pág 69 Esse quadro de conjugação do português padrão clássico é o que a gente aprende e ensina na escola Isso mesmo O que tem ele pergunta Irene interessada Eu estava pensando uma coisa Vai mulher desembucha logo impacientase Emília Que coisa pergunta Sílvia PORTUGUÊS PADRÃO LITERÁRIO eu AMO tu AMAS ele AMA nós AMAMOS vós AMAIS eles AMAM PORTUGUÊS PADRÃO COLOQUIAL eu AMO você AMA ele AMA a gente AMA vocês AMAM eles AMAM É essa história de fazer os alunos decorarem as formas conjugadas de tu e vós responde Vera Ninguém mais usa essas formas Quando é que a gente ouve alguém falando vós vos divertistes muito Mais uma vez sua intuição está correta Verinha diz Irene Esse quadro de conjugação que as gramáticas tradicionais apresentam tem realmente alguns problemas para o ensino justamente por estar muito distante da língua viva dos falantes do português brasileiro O pronome tu por exemplo no Brasil é usado em algumas regiões específicas e raramente a forma verbal que o acompanha corresponde à das gramáticas e livros didáticos O pronome vós então como você bem notou é um verdadeiro dinossauro lingüístico está extinto na fala dos brasileiros há muito tempo E mesmo assim a gente tem que empurrar essas coisas pela goela abaixo dos alunos queixase Emília Eu mesma me confundo toda com essa quantidade de s que aparece nos verbos de tu e de vós Se vós supusésseis a dificuldade que tenho Vera Sílvia e Irene sorriem Eu acho importante que a gente apresente essas formas verbais aos alunos diz Irene em seguida para que eles as reconheçam quando tiverem de ler um texto clássico por exemplo Mas querer que eles decorem tudo para fazer prova e ainda tirar ponto por não terem acertado considero um verdadeiro crime contra os direitos humanos do educando As jovens riem do tom exaltado de Irene Apoiado Irene aplaude Emília E não se esqueça que é também um crime contra os direitos humanos dos professores Claro que é confirma Irene E não é só esse o problema Além de cobrarmos o que não é necessário deixamos de apresentar fenômenos muito mais interessantes e vivos Por exemplo interessase Vera pág 70 Por que as gramáticas e os livros insistem em dizer que você é um pronome de tratamento de terceira pessoa questiona a professora Não está óbvio claro límpido e evidente que você é um pronome sujeito do caso reto usado para designar a segunda pessoa do discurso aquela com quem eu estou falando a quem estou me dirigindo É mesmo diz Emília Aliás a classe de palavras que recebe o nome de verbos merece um amplo estudo da parte dos lingüistas dos gramáticos e dos autores de livros didáticos As definições tradicionais dadas aos tempos verbais por exemplo estão pedindo uma revisão urgente porque elas mostram falhas bem visíveis quando comparadas com a realidade da língua falada Vejam só Deus do céu que rolo exclama Emília Além disso prossegue Irene somos obrigados a estudar e a saber conjugar de cor tempos verbais que muito raramente são empregados na língua diária Por outro lado há tempos verbais que simplesmente nunca são mostrados nas gramáticas e nos livros didáticos como se não existissem e que a gente emprega o tempo Se eu passo é presente como explicar seu uso na frase Depois de amanhã eu passo na sua casa que tem uma mensagem definitivamente voltada para o futuro Se andará é futuro como explicar seu uso em Onde andará agora aquele nosso amigo que comporta uma dúvida relativa ao presente indicada inclusive pela presença do advérbio agora Se podia é imperfeito ou seja ação incompleta ou continuada no passado como explicar seu uso em Você bem que podia passar lá em casa amanhã que indica uma possibilidade de ação no futuro todo Manda ver pede Emília Veja o caso do futuro diz Irene Quem de nós diz Amanhã sairei com você A forma muito mais freqüente é de longe Amanhã vou sair com você pág 71 É verdade confirma Vera O mesmo acontece com o chamado pretérito maisque perfeito Vocês já se lembram de terem dito alguma vez na vida Quando você telefonou eu já saíra Claro que não responde Sílvia Eu digo Quando você telefonou eu já tinha saído Pois então diz Irene neste caso há uma diferença entre o uso da língua escrita que usa a forma simples e o uso da língua falada que usa a forma composta mas essa distinção nunca é apresentada nestes termos pelo ensino tradicional Quem não sabe português O caso dos verbos continua a professora é só um alerta para que façamos uma boa revisão das nossas formas tradicionais de ensinar a língua portuguesa Na nossa prática de ensino muitas vezes insistimos em fatos que não correspondem à realidade da língua viva e simplesmente deixamos de lado outros aspectos muito mais interessantes dinâmicos e que dizem respeito a fenômenos muito mais próximos de nós e de nossos alunos Pensem nisso por exemplo quando tiverem de ensinar sinônimos coletivos análise sintática e outras coisas Análise sintática Jesus me poupe exclama Emília Não conheço nada mais aterrador do que isso Não é mesmo diz Irene Será que a análise sintática tal como vem sendo ensinada nos ajuda a fazer um uso melhor da língua A realidade mostra que não Será que é mesmo tão necessário saber que o coletivo de camelo é cáfila Quando alguma de nós precisou usar esse conhecimento na prática E os tais sinônimos será que existem mesmo Irene faz uma breve pausa As três jovens estão sérias ouvindoa em silêncio Nós temos o hábito de ensinar a gramática como se ela fosse uma coisa complicada misteriosa cabalística acessível somente a uns poucos iluminados os grandes escritores clássicos retoma Irene Tudo o que conseguimos é criar nos alunos uma enorme antipatia por estes grandes artistas do idioma o que é uma pena pág 72 Uma pena mesmo repete Vera Eu mesma só consegui aprender a gostar do Machado de Assis há pouco tempo confessa Emília Na escola detestava ele de todo o coração porque os professores usavam textos dele nos malditos exercícios de análise sintática É preciso mudar isso diz Irene É muito triste ouvir tanta gente inteligente dizer Eu não sei português Se não soubesse não teria produzido essa simples frase O que as pessoas não sabem é a língua fossilizada enrijecida ossificada congelada insípida que a nossa tradição escolar tem tentado ensinar Parece que nós professores temos um prazer meio sádico de só querer ensinar as irregularidades as exceções os aspectos esquisitos da língua comenta Vera Acho que temos certa obsessão em tornar as coisas mais difíceis acrescenta Sílvia talvez numa tentativa autoritária de mostrar a nossa superioridade de manter a distância que existe entre eu o professor que sei tudo e o outro o aluno que não sabe nada Mas não é assim que conseguiremos despertar nas pessoas o amor pelo verdadeiro portuguêspadrão que falamos e escrevemos Quer dizer então é a vez de Emília que além de precisarmos modificar nossa maneira de encarar o português não padrão libertandonos de todos os preconceitos que atrapalham a nossa visão dos fenômenos da língua também precisamos transformar nossa maneira de trabalhar com a própria norma padrão Exatamente confirma Irene Vamos pensar naquela diferença entre ensinar e educar que vimos ontem e tentar descobrir novas trilhas para a nossa prática pedagógica Emília levantase e aplaude Ai Emília como você é palhaça diz Sílvia entre risos Graças a Deus diz Emília O que faz a vida valer a pena é o nosso bom humor Concordo endosso corroboro apóio e assino embaixo diz Irene Neste momento Eulália aparece à entrada da escolinha e anuncia Pão de queijo saidinho do forno E atendendo àquele chamado irresistível vão todas para a cozinha pág 73 E AGORA COM VOCÊS A ASSIMILAÇÃO transformação de ND em N e de MB em M o dia seguinte um domingo enquanto todas ajudam a arrumar a cozinha depois do café da manhã Eulália diz a Irene que vai à casa do filho Ângelo Prometi almoçar com as crianças hoje diz ela avó sorridente Almoçar com as crianças ou fazer o almoço para elas pergunta Irene piscando um olho para Vera Eulália só faz aumentar o sorriso que já trazia aceso no rosto Nem se dá ao trabalho de responder pois a resposta é mais que evidente Quando a gente terminar aqui eu levo você de carro oferece Irene Precisa disso não Irene reage Eulália Eu vou de a pé mesmo é uma caminhada gostosa E você não vai largar a Verinha mais as menina aqui sozinha vai Claro que não responde Irene a minha idéia era justamente levar todo mundo comigo para dar um passeio pela cidade A gente deixa o carro lá no centro e sai andando Vera Emília e Sílvia aprovam a idéia Em pouco tempo já estão todas prontas e entram no carro de Irene que sai dirigindo A casa de Irene e Eulália é na verdade uma chácara ligeiramente afastada da cidade Mas com poucos minutos de carro chegase ao centro No trajeto avistase a Pedra Grande ponto mais alto da região serrana de Atibaia Essa Pedra Grande é mesmo linda de morrer comenta Emília É a paixão da minha vida diz Irene Desde o primeiro dia em que descobri essa maravilha não consegui sossegar enquanto não me mudei para cá Todo verão eu caminho até lá em cima É N uma escalada e tanto mas vale a pena A vista que a gente tem da região é simplesmente deslumbrante Só falta você dizer que também pula de asa delta graceja Sílvia que sabe que a Pedra Grande com seu topo amplo e largo de rocha nua e lisa é uma plataforma de salto apreciada pelos praticantes do vôo livre pág 74 Bem que ela já pensou nisso viu diz Eulália Você já sabe que a Irene tem um parafuso de menos na cachola Pensei mesmo confirma Irene rindo Já vi um mundo de gente saltando lá de cima Morro de inveja mas sei que na hora H a coragem vai pular antes de mim e me deixar na mão Todas as passageiras sorriem Por que não vamos até lá hoje sugere Emília Só se você estiver disposta a virar picolé responde Vera Nesta época do ano em pleno inverno a temperatura lá em cima pode ficar abaixo de zero Pensando bem vamos deixar para outro dia torna a falar Emília em tom fingidamente despreocupado Nessa conversa chegam à casa de Ângelo Todas descem para ver os netos de Eulália Rosa e Gabriel e as amigas de Vera aproveitam para conhecer Antônia mulher de Ângelo que é enfermeira Quando entram de novo no carro Sílvia propõe Irene vamos parar na beira daquele lago que a gente vê do jardim da casa do Ângelo O Lago do Major pergunta Vera Esse mesmo confirma Irene Vamos sim é uma ótima idéia É sempre uma delícia passear perto da água Partem Irene estaciona o carro junto do amplo calçadão que circunda todo o lago Todas descem e põemse a caminhar Gente que coisa boa que deve ser morar num lugar desse exclama Sílvia contente por estar ali Concordo diz Emília Uns dez dias por ano né É o máximo que consigo passar longe de São Paulo Depois disso passo a estranhar o clima sinto saudade do barulho do trânsito e o ar puro começa a fazer mal para minha pele Gargalhada geral A Emília existe mesmo ou estou sonhando pergunta Irene puxando a jovem para junto de si e abraçandoa com força Existe sim responde Vera É assim o tempo todo impertinente irreverente inconveniente Mas também inteligente completa Emília aproveitando a rima pág 75 É o mal do nome explica Sílvia A mãe dela leu Monteiro Lobato mais do que devia Eu nunca gostei muito de me chamar Emília Mas me consolo porque minha mãe desistiu do primeiro nome que pensou em me dar também por causa do Lobato Que nome interessase Irene Benta arrisca Vera Tia Nastácia zomba Sílvia Pior responde Emília sem se dar por achada Narizinho Irene ri tanto que pára de caminhar e sentase num banco Depois contendose diz Pelo menos a Emília tinha um título de nobreza Quem se lembra Sílvia e Vera ficam pensativas Emília sentase ao lado de Irene e murmura no ouvido dela Você me paga Irene finge que não escuta e diz Gente que memória curta Vocês não se lembram que a Emília é a Marquesa de Rabicó Vera explode em risos Sílvia também ri e diz É mesmo Ela se casou com o Marquês de Rabicó um porco E todas voltam a rir gostosamente com exceção de Emília que cruza os braços e finge zangarse Irene abraça Emília de novo e diz Pelo menos a nossa Emília não tem uma torneirinha de asneiras Não tem mesmo diz Vera O que ela tem é um chuveiro de asneiras Emília mostra a língua para Vera Isso é típico da Emília diz Sílvia Quando eu era criança cheguei a contar quantas vezes nos livros aparecia a frase Emília pôs um palmo de língua para fora Dá para mudar de assunto ou vai continuar a malhação do Judas pergunta Emília Eu queria conversar umas coisas com a Irene mas até agora não consegui abrir a boca A boca não só a torneirinha diz Vera sorrindo Emília lança um olhar de desdém na direção de Vera voltase para Irene e diz pág 76 Irene por que é tão comum a gente ouvir as pessoas dizerem faluno comeno cantano em vez de falando comendo cantando Isso é tão comum que nem sei se é coisa só do português nãopadrão Você está certa diz Irene Essa é uma tendência muito viva na língua portuguesa falada no Brasil Até mesmo os falantes escolarizados em situação informal e ambiente descontraído ou numa fala mais acelerada costumam pronunciar os verbos no gerúndio com a terminação no no lugar da terminação ndo Às vezes isso ocorre também com o advérbio quando que é pronunciado quano Por que isso acontece tia pergunta Vera sentandose na grama em frente ao banco onde estão Irene e Emília A explicação é simples Os fonemas n e d pertencem a uma família de consoantes que são chamadas dentais Por que elas têm esse nome pergunta Sílvia Porque para serem produzidas é preciso que a ponta da língua chamada ápice ou a porção dianteira da língua chamada prédorso entre em contato com os alvéolos dos dentes incisivos superiores Cruzes quanto palavrão exclama Emília E você diz que a explicação é simples É mais fácil perceber isso na prática diz Irene Experimente pronunciar com cuidado as palavras nenê e dado Emília e suas duas colegas aceitam a sugestão Perceberam como a língua tocou levemente a parte do céu da boca onde se encaixam os dentes de cima pergunta Irene Por isso é que essas consoantes e algumas outras são chamadas dentais Muito bem diz Emília o N e o D são dentais E daí Daí que por serem produzidas na mesma zona de articulação ou seja no mesmo lugar dentro da boca essas consoantes vão sofrer o ataque de uma força muito viva na língua a assimilação Assimilação pergunta Vera Assimilação repete Irene A assimilação como o nome diz é a força que tenta fazer com que dois sons diferentes mas com algum parentesco se tornem iguais semelhantes Às vezes ela consegue fazer isso Outras vezes só consegue pela metade pág 77 Como foi que ela atacou nesse caso que a Emília citou pergunta Vera No caso de falando que se torna falano o que ocorreu foi uma assimilação do D pelo N Primeiro falando passou a falanno com um N duplo Logo depois esse N duplo se simplificou Vitória da assimilação Isso só acontece no português do Brasil pergunta Sílvia Essa assimilação nd nn n não é exclusividade nossa não responde Irene Temos informações de que ela também é presente numa região de Portugal chamada Beira Alta e que pode ser encontrada em textos escritos no século XVI Além disso ela também agiu em outras línguas da família Por exemplo em alguns dos chamados dialetos italianos e também no catalão língua falada na região sudeste da Espanha chamada Catalunha onde fica a cidade de Barcelona Em catalão o latim mandare que deu o nosso mandar se transformou em manar Sílvia consulta o relógio O tempo voou gente Já passa do meiodia Vamos almoçar propõe Irene A gente podia comer fora de casa hoje para variar um pouco Ótima idéia aprova Emília Enquanto caminham de volta ao carro Vera pergunta Tia você vai falar mais sobre a assimilação nas nossas aulas Vou sim Existe algum outro exemplo desse tipo de assimilação quer saber Sílvia Existe responde Irene É um tipo mais raro É o caso de também que é pronunciado tamém e de um bocado que é pronunciado um mucado A explicação é a mesma pergunta Vera É só que as consoantes aqui são de outra família explica Irene O M e o B são chamados bilabiais porque para pronunciá los nós precisamos movimentar os dois lábios Emília repete memê e bebê algumas vezes e verifica o movimento dos lábios De novo entra em campo a assimilação aproveitando que as duas consoantes têm a mesma zona de articulação Daí resulta a pág 78 passagem de mb para mm e depois para m simples conclui Irene pegando no bolso do vestido as chaves do carro E como sempre a senhora vai dizer que isso acontece em outras línguas ironiza Emília E vou mesmo diz Irene abrindo a porta do carro A assimilação mb mm m aconteceu também em espanhol Nessa língua por exemplo o latim lumbu que deu o nosso lombo resultou em lomo e o verbo lambere que deu o nosso lamber resultou em lamer Entram todas no carro Irene bate a porta introduz a chave na ignição e antes de dar a partida conclui Cabe dizer que a assimilação foi uma força muito ativa na história da formação da língua portuguesa tal como a conhecemos e que ela continua em plena atividade nos dias de hoje produzindo lenta mas ininterruptamente a língua portuguesa dos próximos séculos pág 79 SODADE MEU BEM SODADE redução do ditongo ou em o A língua voa a mão se arrasta ão almoçar num pequeno restaurante de comida italiana não muito longe do Lago do Major Nenhuma delas resiste à tentação das massas com muito molho vermelho acompanhadas de um simpático vinho tinto Adeus regime suspira Vera enquanto o garçom recolhe os pratos e as bandejas devidamente esvaziados Eu dei férias ao meu diz Emília tomando o último gole de vinho de sua taça Afinal estamos no inverno e o frio dá mais fome Obrigada pela tentativa de consolo agradece Vera mas isso não vai aliviar meu complexo de culpa por ter comido demais Bobagem menina protesta Irene Relaxe termine seu vinho e vamos pedir uma boa sobremesa Os olhos de Vera brilham Sobremesa Sílvia sorri Gente nunca vi um complexo de culpa desaparecer tão depressa Eles têm aqui uns doces típicos italianos de deixar a gente tonta comenta Irene Fazem seu pedido e quando os doces são postos sobre a mesa cada uma deixa escapar uma exclamação de felicidade Emília chega a bater palminhas Puxa tia você devia ter me falado antes desses doces queixase Vera dando a primeira mordida no seu Assim eu tinha comido menos no almoço e deixado mais espaço para eles V Enquanto come Emília vai examinando a decoração do restaurante Como toda cantina italiana digna do nome essa também tem as paredes transformadas num verdadeiro museu de imagens emblemas símbolos retratos que evocam as origens familiares do proprietário cartazes com grandes fotografias de cidades históricas bandeiras de times de futebol da Itália retratos de italianos famosos pág 80 mapas coloridos da Itália imagens religiosas etc No meio dessa mixórdia Emília vê uma estampa desenhada à moda antiga com figuras que ela não consegue identificar e na parte de cima em grandes letras verdes uma frase que ela vai balbuciando em voz alta Verba volant scripta ma manent Verba volant scripta manent repete Irene sem desviar o olhar de sua bomba de chocolate É um velho ditado latino você conhece Não responde Emília o que significa As palavras voam os escritos permanecem responde Irene Eu não gosto muito desse ditado não Por que não tia Porque ele às vezes é usado por gente que está querendo esconder uma verdade que desagrada um pouco aos conservadores a língua falada a língua que sai pela boca é muito mais rápida ágil e esperta do que a língua escrita a língua que sai pela mão Por isso eu até criei o meu próprio ditado A língua voa a mão se arrasta Como assim Irene pergunta Sílvia Basta fazer um teste bem simples responde Irene Marque no relógio o tempo que você gasta para dizer alguma coisa qualquer coisa uma palavra uma frase várias frases uma poesia que você tem decorada Depois compare esse tempo com o que você gasta para escrever essa mesma coisa à mão à máquina no computador tanto faz Por mais rápida que seja a sua mão ela nunca poderá atingir a velocidade da língua não é Como você disse a língua voa a mão se arrasta diz Emília Pois este fato simples e aparentemente tão bobo tem sérias conseqüências sabia retoma Irene que já terminou de comer seu doce e agora toma um copo de água Que conseqüências interessase Vera A mais séria está na escola no tipo de língua que a gente aprende e ensina na escola Enquanto a língua falada viva e elétrica está se mexendo se transformando a língua escrita ainda está tentando se acostumar com as mudanças que aconteceram há muito tempo pág 81 Parece a história da lebre e da tartaruga sugere Emília Parece confirma Irene só que neste caso como se trata de uma história real e não de uma fábula a lebre está sempre quilômetros à frente da tartaruga E como a tartarugalíngua escrita se sente muitíssimo mal com esse atraso ela conseguiu achar quem defendesse os seus direitos os gramáticos e os autores de livros didáticos Eles compraram a causa da língua escrita e tentam nos mostrar em seus livros que ela é a pura a bela a certa a boa enquanto a língua oral eles nem mesmo falam dela ou quando falam é para acusála de vícios e deturpações E como se saíram os advogados da tartaruga pergunta Emília Muito bem Tanto fizeram que tudo aquilo que foge aos padrões e às normas da língua escrita é considerado errado Por isso alguns fenômenos que ocorrem na língua falada são duramente combatidos e atacados como se fossem verdadeiros crimes contra o bom português Por exemplo pede Sílvia O ditongo que já era Os livros didáticos e as gramáticas insistem em dizer até hoje que nas palavras pouco roupa louro existem ditongos isto é um encontro vocálico em que as duas vogais são pronunciadas Mas isso não acontece mais no português do Brasil nem no de Portugal Há muito tempo que o que se escreve ou é pronunciado o Isso está documentado em pesquisas em gravações da língua falada e basta você ligar o rádio ou a televisão para ouvir poco ropa loro Este é um fenômeno que ocorre tanto no portuguêspadrão do Brasil quanto no nãopadrão Mas a gente tem que escrever ou de todo jeito lembra Vera E por causa disso os advogados da língua escrita querem porque querem que a gente pronuncie os tais ditongos Para eles vale o escrito Só que a história da língua mais uma vez mostra que eles estão enganados E como é a história pergunta Sílvia pág 82 O que a escrita ainda registra como ou é o resultado de uma transformação histórica que aconteceu enquanto a língua portuguesa se formava começa a explicar Irene As palavras que em sua origem tinham um ditongo AU este sim bem pronunciado lentamente começaram a ser pronunciadas com um ou no lugar do AU O que era paucu e lauru em latim estava se transformando em pouco e louro em português o mesmo acontecendo com o germânico raupa de onde vem o nosso roupa E por que essa transformação aconteceu quer saber Vera Por causa de nossa amiga assimilação responde Irene lembramse dela Claro acabamos de ser apresentadas responde Emília Pois então como o A é muito aberto e o u muito fechado existe uma tendência da língua a tornar as duas vogais semelhantes daí o nome assimilação Enquanto fala Irene pega uma caneta na bolsa e põese a rabiscar alguma coisa num guardanapo de papel Vejam aqui uma coisa diz ela mostrando o desenho As vogais dentro da nossa boca são produzidas mais ou menos como eu tentei mostrar neste desenho pág 83 O que é esse triângulo pergunta Sílvia Esse triângulo mostra os pontos em que cada vogal é produzida dentro da nossa boca explica Vera Isso mesmo confirma Irene O A na parte mais baixa é a vogal mais aberta O U e o I lá no alto são as mais fechadas Repare como a boca se fecha bem quando você pronuncia U e I Emília e Sílvia fazem o teste e pronunciam várias vezes as vogais U e I A gente pode observar também prossegue Irene que as vogais mais próximas do A são mais abertas que as produzidas perto do U e do I criando a riqueza de sons vocálicos da língua portuguesa Esse esquema de vogais vale para todas as línguas pergunta Sílvia Não responde Irene este quadro representa apenas as vogais tônicas do português do Brasil Quando se trata das vogais átonas por exemplo ele não vale nem para o português de Portugal que tem mais vogais que o do Brasil E como é que a assimilação atacou as vogais quer saber Emília Como você pode notar para pronunciar o ditongo AU a boca tem que fazer um movimento grande abrindose toda para produzir o A e fechandose toda para realizar o U Pelo fenômeno da assimilação o U fechado tentou puxar o A aberto para mais perto de si E conseguiu trazer o A até o Ô no meio do caminho mas muito mais perto do U Foi assim que nasceu o ditongo OU arrisca Emília Foi assim que nasceu o ditongo OU repete Irene Essa transformação levou muito tempo para se realizar e quando o português escrito começou a ganhar forma teve de reconhecer o fenômeno e registrou ou isso há muito séculos Só que a coisa não parou aí não é diz Sílvia Exato responde Irene Como eu já disse a língua falada é viva e está sempre mudando Assim o que era escrito e pronunciado OU em pouco tempo passou a ser pronunciado apenas Ô Só que a língua escrita não deu conta de acompanhar a rapidez da língua falada e até hoje a gente tem que escrever pouco louro roupa embora já fale há bastante tempo poco loro ropa pág 84 Quem fez papel de bobo Como o PNP é uma língua que está muitíssimo mais ligada à oralidade à forma falada do que à ortografia à forma escrita continua Irene a regra histórica de redução do ditongo AU em o não deixou de ser respeitada É por isso que certas palavras do PP que se escrevem com AU são pronunciadas com um o em PNP Um dos exemplos mais conhecidos é o da linda palavra SAUDADE que em muitas regiões do Brasil é pronunciada sodade Posso até citar a lindíssima canção Sodade meu bem sodade do compositor Zé do Norte que faz parte da trilha sonora do filme O Cangaceiro dirigido por Lima Barreto em 1952 Emília fica pensativa por alguns instantes Depois diz Quero contar uma coisa para vocês As outras se interessam e ela prossegue Antes de terminar a Escola Normal eu trabalhava numa livraria Um dia um senhor entrou na loja se dirigiu a mim no balcão e perguntou Aqui tem orelhão Eu respondi Não mas logo ali na esquina tem Pensava que ele queria telefonar O freguês olhou para mim sorrindo e explicou Não Não é oreião É o Orelhão aquele dicionário grande Só então eu entendi que ele queria comprar um Aurelião quer dizer o dicionário do Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira em formato grande Vera e Sílvia sorriem achando graça da história Irene permanece séria Na época eu também achei muito engraçado retoma Emília e tive pena do pobre homem que não sabia falar direito E fiquei contando essa história como uma piada em que o meu freguês fazia o papel do bobo Mas hoje Irene depois desses poucos dias com você já consigo ver a cena com os papéis trocados e tenho consciência de que naquele episódio a burra fui eu que não sabia que estava dialogando com uma pessoa que usava uma variedade de português diferente da minha Ele sim sabia da diferença intervém Irene tanto que sorriu e tratou logo de ajudar você a compreender o que ele desejava Foi mesmo confirma Emília pág 85 Vocês nunca se viram numa situação parecida ao falarem com um estrangeiro pergunta Irene Sílvia e Vera balançam a cabeça afirmativamente No meio do caminho tinha o português Terminada a sobremesa todas degustam um café fumegante Entre um gole e outro Vera pergunta Essa diferença entre a língua escrita e a língua falada existe também em outras línguas Em outras não responde Irene em todas as línguas Não existe nenhum sistema escrito capaz de reproduzir fielmente a riqueza da língua falada O que acontece é que existem graus de diferença nessa distância entre as duas formas da língua Comparando o português padrão escrito com outras línguas aparentadas a gente vê que ele está no meio do caminho que já foi percorrido pelo espanhol Em espanhol já se escreve mais parecido com o que se fala ROPA LORO POCO Já em francês a distância entre língua falada e língua escrita é muito maior e o que até hoje se escreve AU é pronunciado o há vários séculos Irene rabisca algumas palavras na toalha de papel da mesa do restaurante Vejam FAUX falso se pronuncia fô CHAUD quente é pronunciado xô Cada língua tem portanto duas histórias uma história da língua falada e uma história da língua escrita Na primeira as coisas andam muito mais depressa que na segunda De novo ela escreve na toalha É mais um de seus quadros comparativos Quadro 8 Francês Português Espanhol Antigamente Hoje Antigamente Hoje Antigamente Hoje História da língua falada autre otrʌ outro otro otro otro História da língua escrita autre autre outro outro otro otro pág 86 Como se pode ver o grau de conservadorismo da ortografia da forma escrita oficial varia muito de língua para língua e depende da ação política dos homens já que as normas ortográficas são estabelecidas por leis e decretos podendo permanecer as mesmas durante séculos como no caso do francês se ninguém se incomodar em mexer nelas Já a língua oral é uma rebelde vive a escapar das leis e das normas está sempre a se mexer e por isso o estado atual de qualquer língua falada é muito diferente do que era há algum tempo e do que será nos próximos séculos Para que serve a escrita Quando o garçom traz a conta Irene se encarrega de pagála apesar dos protestos das três jovens que querem dividir as despesas Enquanto preenche o cheque ela diz O importante meninas é a gente ter sempre em mente que nem tudo o que se escreve se pronuncia assim como nem tudo o que se pronuncia se escreve A língua escrita serve como registro permanente scribta manent é usada para a transmissão do saber e da cultura e muitas vezes é até interessante que ela permaneça sem muitas mudanças para que a gente possa ler com facilidade documentos antigos e livros impressos há muito tempo O que não podemos admitir é que ela seja usada como um instrumento de tortura ou uma prisão para a língua falada Nunca é demais lembrar que o homem fala há milhões de anos e que as primeiras formas de escrita datam apenas de 3500 antes de Cristo O garçom recolhe o cheque despedese de Irene e de suas convidadas A saída do restaurante enquanto se dirigem para o carro Emília comenta Só uma coisa me aborrece nisso tudo O quê pergunta Irene surpresa Eu não trouxe o meu bloquinho de notas queixase a jovem Se soubesse que esse passeio ia dar em aula Irene abraçaa sorrindo e diz Não se preocupe bobinha quando o livro estiver pronto vocês vão ser as primeiras a ganhar um exemplar pág 87 BEIJO RIMA COM DESEJO redução do ditongo EI em E o dia seguinte à noite a aula volta para seu lugar de costume a escolinha no fundo da chácara Irene já distribuiu suas folhas impressas às alunas desenhou na lousa o esquema das vogais que havia mostrado a elas no restaurante e agora começa a falar Ontem nós examinamos a história da transformação do ditongo OU em O Hoje vamos tratar de mais um ditongo que se reduziu o ditongo EI que passou a E Aqui também estamos diante de um fenômeno que se verifica tanto no portuguêspadrão quanto no português nãopadrão O que cria problemas mais uma vez é a diferença entre língua falada e língua escrita A língua voa a mão se arrasta diz Emília Irene sorri e prossegue Com o ditongo EI ocorreu o mesmo que vimos com o ditongo ou uma monotongação quer dizer dois sons que se transformaram num só Mas existe uma diferença entre os dois casos o que é escrito ou é pronunciado o em todas as situações e contextos tanto no PP quanto no PNP O que se escreve EI porém só se transforma em E em algumas situações Vamos dar uma olhada no primeiro quadro de hoje Emília Sílvia e Vera observam a folha indicada Quadro 9 Língua escrita Língua falada beiço beiço beijo bêjo brasileiro brasilêro cheiro chêro N deixa dêxa jeito jeito leigo leigo peito peito peixe pêxe primeiro primêro queijo quêjo queixo quêxo seiva seiva pág 88 Olhando para a coluna que transcreve a forma falada das palavras podemos tentar descobrir em que situações o ditongo escrito EI deixa de ser ditongo e se transforma na vogal E com timbre fechado Vera examina com cuidado o papel depois diz Parece que a monotongação só acontece quando o ditongo EI aparece diante das consoantes J X e R É mesmo concorda Sílvia em todos os outros casos os dois sons são bem pronunciados Por que isso acontece quer saber Emília Aposto que é mais uma arte da assimilação Pois sua aposta está correta diz Irene Mas antes de falar de novo dessa nossa amiga vamos ver o que é exatamente um ditongo Semivogal um som no meio do caminho Irene escreve alguns símbolos na lousa e em seguida volta a falar Todo ditongo é formado de uma vogal mais uma semivogal Na língua portuguesa existem duas semivogais γ escrita normalmente I E W escrita normalmente U e ela aponta os símbolos que escreveu Elas estão presentes por exemplo nas palavras PAU e PAI Às vezes também podem vir escritas E como em FÊMEA pronunciado fêmya ou O como em MÁGOA pronunciado mágwa Por que elas são chamadas semivogais pergunta Sílvia Porque também são chamadas semiconsoantes responde Irene piscando um olho maroto para Vera Ótima resposta muito didática ironiza Emília Irene sorri volta a escrever na lousa e depois diz As semivogais também recebem o nome de semiconsoantes porque elas são um tipo de som que está no meio semi do caminho que leva das vogais até as consoantes Reparem neste desenho vogais semivogaissemiconsoantes consoantes Qual é mesmo a diferença entre vogais e consoantes Verinha pergunta Irene A diferença entre vogais e consoantes se bem me lembro é pág 89 que as vogais são produzidas com a passagem livre do ar pela boca enquanto que nas consoantes o ar encontra algum obstáculo responde Vera Muito bem cumprimenta Irene Por isso as vogais podem ser pronunciadas sozinhas continua Vera satisfeita ao passo que as consoantes precisam das vogais para ajudálas Por isso são chamadas consoantes porque são pronunciadas com a ajuda de outro som os sons vogais Eu não explicaria melhor diz Irene E onde é que entram as semivogais impacientase Emília Na produção das semivogais o ar passa quase totalmente livre e por isso elas são irmãs quase gêmeas das vogais I e U responde Irene Mas também só podem ser produzidas se estiverem apoiadas em outra vogal por isso são semiconsoantes Elas têm um espírito assim meio mineiro não é sugere Emília Não dizem que sim nem que não muito pelo contrário Irene ri da comparação Na história da transformação do latim em português continua aconteceram inúmeros casos em que as semiconsoantes latinas escritas I e U saíram de cima do muro e escolheram ficar de uma vez por todas no clube das consoantes Dêem uma olhada no segundo quadro da folha As três obedecem e vêem Quadro 10 LATIM TRANSFORMOUSE EM PORTUGUÊS aue ave cuius cujo Iésus Jesus iócu jogo iustu justo iúuene jovem uacca vaca uita vida uíuere viver uoluntate vontade pág 90 Foi assim que nasceram os sons consoantes representados hoje pelas letras J e V sons que não existiam no latim clássico explica Irene Então não são tão mineiras assim diz Emília A verdade sobre os ditongos Eu quis contar toda essa longa história sobre as semivogais ou semiconsoantes para esclarecer melhor as coisas que acontecem na nossa língua Os livros didáticos tentando simplificar os fatos dizem que ditongo é o encontro de duas vogais na mesma sílaba Ora na verdade são duas letras isto é dois símbolos gráficos desenhos que são chamados tradicionalmente vogais Mas são dois sons de famílias diferentes um som vogal mais um som semivogal Esta diferença entre fala e grafia é importante porque vai nos mostrar o que acontece na monotongação do ditongo EI diante das consoantes J X e R A semivogal γ que escrevemos I no ditongo EI é um som que pertence a uma família chamada palatal Os sons palatais são produzidos no palato esta parte de cima da nossa boca que nós chamamos tão poeticamente de céu da boca O palato é dividido em duas partes o palato duro que é o céu da boca propriamente dito e o palato mole que é a parte de trás do céu da boca mais macio e que vai até a úvula que a gente chama familiarmente de campainha É no palato duro que são produzidos os sons palatais Palatais repete Emília anotando em seu bloquinho As consoantes que representamos com as letras J e X como em QUEIJO e QUEIXO também fazem parte da família das palatais Para produzilas uma parte da língua toca levemente o céu da boca A assimilação volta a atacar Como nós vimos ontem existe uma força muito ativa na língua que se chama assimilação Quando encontra dois sons que têm alguma coisa parecida semelhante ela faz de tudo para que eles se juntem se fundam num só No caso do nosso ditongo EI a assimilação aproveita o caráter palatal da semivogal I e das consoantes pág 91 J e X para reunilas num único som Assim o que acontece não é exatamente a redução do ditongo EI em E mas a redução de IJ e IX em J e X É isso também que explica a pronúncia baxo caxa faxa para o que a gente escreve BAIXO CAIXA e FAIXA pergunta Vera Exatamente confirma Irene E o que acontece no caso das palavras que têm um R depois do ditongo EI quer saber Sílvia Neste caso a assimilação vai agir sobre o caráter anterior da semivogal I e da consoante R O som da letra R em caro não é um som palatal da mesma qualidade do J ou X Mas ele também é produzido naquela região da boca que é chamada anterior por ficar entre os alvéolos e os dentes quer dizer na parte mais avançada do céu da boca Por terem este ponto de articulação comum é que os sons da semivogal I e da consoante R sofrem os efeitos da assimilação e se transformam num só Da fala para a escrita Parece que esse fenômeno é tão vivo e atuante na língua falada comenta Vera que ele tem conseqüências interessantes na língua escrita Já vi algumas pessoas bem alfabetizadas hesitarem na hora de escrever CARANGUEJO BANDEJA PRAZEROSO achando que estas formas estão erradas e que deveriam ser escritas carangueijo bandeija prazeiroso É verdade confirma Irene No entanto tem gente esperta que sabe aproveitar os fenômenos da língua É o caso do Noel Rosa que escrevia as letras das suas músicas num português padrão caprichadíssimo e que em 1934 na sua famosa canção Último desejo não teve dúvidas em rimar Adoro essa música suspira Emília Pois essa rima aparentemente imperfeita do ponto de vista pág 92 ortográfico enfatiza Irene é no entanto totalmente perfeita do ponto de vista fonético isto é na língua falada A mesma conclusão Quantos nomes complicados numa aula só Irene queixa se Emília consultando seu bloco de notas Vogal consoante semivogal semiconsoante palatal anterior alvéolo úvula assimilação Parece complicado não é sorri Irene Mas não é tanto assim O estudo dos sons da fala a fonética é uma disciplina muito interessante e quando você pega gosto ela acaba se transformando num jogo delicioso Eu adoro fonética declara Vera E o bom é que ela nos ajuda a esclarecer uma grande quantidade de fenômenos que ocorrem na língua que usamos diariamente e que à primeira vista não parecem ter muita razão de ser explica Irene E por que você escolheu falar desse ditongo justamente quer saber Sílvia Porque eu quis mostrar a vocês mais uma vez que devemos ter muita cautela na hora de fazer julgamentos sobre a maneira Nunca mais quero seu beijo mas meu último desejo você não pode negar como as pessoas falam responde Irene É muito comum a gente se deixar levar pela forma escrita e cobrar que as pessoas falem o mais próximo possível do jeito que se escreve o que muitas vezes é simplesmente impossível quando não ridículo por soar artificial e pedante E nunca é demais lembrar completa Emília em tom professoral que nem tudo o que se diz se escreve e nem tudo o que se escreve se diz Irene aplaude sorrindo Muito bem Emília Mais umas sessões e você estará pronta para ocupar o meu lugar Todas sorriem e Irene decide encerrar por ali a aula da noite pág 93 MÚSICA MAESTRO redução de E e O átonos pretônicos o dia seguinte de manhã cedo Eulália transmite um convite de Ângelo para que todas vão jantar na casa dele hoje É o aniversário da Antônia explica Eulália e ela quer festejar com a gente tudo lá É claro que todas se animam com a idéia Vera no entanto se preocupa com a aula noturna Que pena Vamos ficar sem aula hoje Mas para Emília não há problema sem solução Muito simples é só mudar o horário da aula da noite para depois do almoço sugere ela e olhando para Irene Se a professora estiver de acordo é claro Irene hesita um pouco em sacrificar sua habitual sesta de depois do almoço mas acaba concordando ante a insistência da sobrinha e das colegas É assim que por volta das quatro horas da tarde elas se reúnem na escolinha para prosseguir suas discussões sobre o português nãopadrão os problemas e as dificuldades do ensino da língua Logo de saída Irene lança uma pergunta às alunas De onde vocês são De São Paulo respondem as três quase em coro Nascidas e criadas lá As três jovens balançam a cabeça afirmativamente Emília é claro não resiste e indaga E você de onde é Eu nasci em São Paulo também responde Irene mas com dois anos de idade minha família se mudou para o Rio de Janeiro Vivi lá até os dezoito anos e foi em escolas cariocas que fiz N todo o curso primário e secundário Depois quando meus pais voltaram fiz a universidade em São Paulo e nunca mais saí do estado É por isso que você de vez em quando dá umas cantadinhas meio acariocadas pergunta Emília É confirma Irene O período que passei no Rio foi muito pág 94 importante para a formação dos meus hábitos lingüísticos e ainda conservo alguns deles mesmo depois de tanto tempo morando por aqui A maneira de pronunciar certas palavras o uso de determinadas palavras mais características do falar carioca do que do paulista et cetera E isso tem a ver com a nossa aula de hoje quer saber Emília que não deixa escapar nada Tem sim responde Irene Tem porque vamos tratar de uma característica que não pertence exclusivamente ao português nãopadrão mas que está sim presente em todo o domínio da língua portuguesa seja no Brasil em Portugal ou na África É a questão do E e do O átono pretônico Átono pretônico repete Emília Que bicho é esse Parece nome de tenor italiano Luciano Pavarotti Giuseppe Di Stefano Átono Pretônico Por favor Emília suplica Sílvia Deixe os pobres cantores em paz Tudo bem tudo bem desculpase ela Mas posso então dizer que parece nome de remédio para prisão de ventre Irene ri gostosamente Quer deixar a Irene explicar finalmente o que é átono pretônico suplica Sílvia Dá para segurar um pouco o chuveirinho de asneiras Emília fingese emburrada Irene retoma Qualquer brasileiro de outra região que chega a São Paulo não demora a perceber que os paulistas pronunciam bolacha mostarda pepino fedido quando muitos outros brasileiros pronunciam bulacha mustarda pipino fidido Eu mesma quando me mudei do Rio para cá me surpreendi com essa diferença Mas isso é muito simples arrisca Sílvia Eu me lembro que algumas professoras diziam que nós paulistas é que falamos mais certo porque pronunciamos do jeito que está escrito É claro que hoje você já sabe que isso é uma grande bobagem não é replica Irene A língua escrita é só uma representação simbólica da língua falada e não um retrato fiel dela Por isso embora a ortografia de cada palavra seja uma só para todo o país cada falante brasileiro de português terá seu modo particular de pág 95 pronunciála Se os paulistas realmente falassem mais certo por pronunciarem do jeito que está escrito eles teriam de escrever por exemplo Sampaulo Paquembu adevogado peneu e guspir porque é assim que todos eles cultos ou analfabetos pronunciam as palavras escritas SÃO PAULO PACAEMBU ADVOGADO PNEU e CUSPIR E o que tem isso a ver com os átonos pretônicos impacientase Emília Vamos ver Primeiro por que são átonos pergunta Irene Porque não estão na sílaba tônica aquela que é acentuada enfatizada na fala responde Vera Muito bem E por que são pretônicos Porque estão numa sílaba que vem antes da sílaba tônica por isso são prétônicos diz Vera separando bem as sílabas da última palavra Será que eu entendi duvida Sílvia Irene vai até a lousa e escreve a giz a palavra CAVALO Veja por exemplo esta palavra diz ela tocando a lousa com a ponta do dedo Ela tem três sílabas certo CAVALO A sílaba VA é a tônica é a sílaba pronunciada com mais força A que vem antes dela CA é pretônica e a que vem depois dela LO é postônica E como só pode existir uma sílaba tônica em cada palavra todas as outras sílabas são chamadas átonas isto é não tônicas Tudo bem até aqui Sílvia ergue o polegar direito em sinal de confirmação Ótimo prossegue Irene Na língua portuguesa quando as vogais E e O são postônicas sofrem o que a gente chama de redução elas são pronunciadas de maneira mais fraca e soam como um I e um u Por isso a palavra ovo é pronunciada ôvu a frase ELE BEBE é pronunciada êli bébi e ninguém se espanta com isso Esta é uma regra que vale praticamente em todos os lugares do mundo onde se fala o português O caso das pretônicas Isso quando são postônicas diz Emília Mas e quando são pretônicas pág 96 Quando estas mesmas vogais E e O são pretônicas responde Irene a situação é menos simples menos geral menos sistemática como dizem os lingüistas Mesmo assim dá para a gente investigar algumas causas que provocam a redução destas vogais em grande parte do portuguêspadrão e nãopadrão do Brasil Vamos tentar E Irene distribui mais uma de suas folhas com quadros impressos Tentem ler as palavras dos dois primeiros quadros abaixo pronunciando o como um i e o como um u que é como muita gente educada e culta inclusive eu pronuncia elas Quadro 11 Quadro 12 Emília lê em voz alta as palavras pára alguns instantes para pensar depois diz Estou notando uma coincidência nesses dois quadros Qual coincidência pergunta Irene Em todas essas palavras as vogais átonas pretônicas E e O são seguidas por uma sílaba em que a vogal tônica é I pág 97 É mesmo confirma Sílvia examinando com mais cuidado as duas listas Todas as palavras têm um I na sílaba tônica Irene pisca um olho para Vera depois pergunta i al gria av nida b bida B n dito f liz f rido fr gu sia m dida m ntira m tido p dido p pino p riquito pr guiça s guido S v rino u ass bio ch via c mida c minho c zinha c rria d mingo d rmir f lia f rmiga g rila harm nia n tícia p dia p ssível S fia Será mesmo uma coincidência Antes de desvendarmos este mistério vamos dar uma olhada em mais dois quadros de palavras que estão na mesma folha O procedimento é o mesmo leiam os como um i e os como um u Quadro 13 Quadro 14 E agora Notaram mais alguma coisa interessante desafia Irene Vera se apressa em responder Dessa vez todas as palavras têm uma vogal U na sílaba tônica Ih já vi que aqui tem dente de coelho diz Emília E tem mesmo sorri Irene Acho que já podemos deduzir algumas coisinhas desses quadros Vamos lá A presença de um I e de um U na sílaba tônica faz com que as vogais átonas pretônicas escritas E e O se reduzam e sejam pronunciadas i e u Mas por quê pergunta Sílvia Por causa de um fenômeno que tem o lindo nome de harmonização vocálica responde Irene Lembramse quando tratamos do ditongo escrito OU que é pronunciado ô Naquele dia no restaurante eu fiz um desenho que representava a produção das vogais dentro da nossa boca Eu copiei ele aqui diz Emília mostrando uma das i cab ludo p ndura s gunda s guro v ludo u c ruja c stume c stura f rtuna g rdura páginas de seu bloco pág 98 Reparem no desenho mais uma vez que as vogais I e U são as mais altas as mais fechadas da nossa língua Quando elas estão presentes na sílaba tônica elas puxam para cima as vogais pretônicas E e O fechando essas vogais para formar um grupo harmônico para criar um som único É um melodioso fenômeno musical Vai ver que é por isso que você usou as notas musicais nos quadros sugere Emília Claro que é confirma Irene alegre Dá para você resumir tudo isso numa regra simples propõe Sílvia Com prazer responde Irene voltando à lousa e escrevendo Como você pode ver Sílvia retoma Irene as coisas que acontecem na nossa língua são muito mais sutis e complexas do que as idéias autoritárias de certo e de errado E também muito mais bonitas arremata Sílvia Sem dúvida concorda Irene Estas harmonizações vocálicas dão à língua portuguesa uma musicalidade uma variedade sonora que só ela tem e que é muito difícil de ser percebida e aprendida por um estrangeiro que normalmente se deixa guiar pela forma escrita Ora a forma escrita é apenas uma roupagem que dá alguma idéia de como a palavra é mas que também como toda roupa esconde coisas bem mais bonitas e interessantes que só Quadro 11 e I I I bebida bibida Quadro 12 o I u I formiga furmiga Quadro 13 eu I u segundo sigundo Quadro 14 ou u u coruja curuja Nota o sinal significa transformouse em alguns conseguem ver Emília dá uma gargalhada Irene pisca para ela com ar sapeca Bolacha com mostarda Mas a coisa não pára aí retoma a professora Existe um outro grupo de palavras que têm um o átono pretônico pronunciado u sem que elas apresentem nenhum I ou U na sílaba tônica pág 99 Bem que eu achei que estava simples demais comenta Emília Irene tira mais algumas folhas de sua pasta de cartolina e pergunta Vocês têm paciência para mais um quadro Juro que é o último de hoje Ela distribui as folhas e as três jovens observam Quadro 15 Aqui até um bebezinho percebe que todas as palavras têm u b ato m cambo b cado m eda b dega m ela b lacha m lambo b neca m leque b rracha m queca b tão m rango b teco m starda um B ou um M antes do O que sofre a redução adiantase Emília Neste caso o que se escreve BO é pronunciado bu diz Sílvia e o que se escreve MO é pronunciado mu Quer dizer que dessa vez os culpados são o B e o M arrisca Vera Isso mesmo confirma Irene E por quê pergunta Vera Porque as consoantes B e M são bilabiais como já vimos antes recorda Irene Elas são pronunciadas com um movimento de fechamentoabertura dos dois lábios Bebê qué mamá diz Emília exagerando o movimento bilabial das palavras bebê e mamá Já a vogal O para ser pronunciada precisa de um arredondamento dos lábios e até os inventores do alfabeto perceberam isso quando criaram para representála este pequeno símbolo rendondo O diz Irene fazendo com um dedo um círculo no ar pág 100 Para não terem de passar de um fechamento muito grande para um arredondamento muito grande os lábios espremem um pouco o O e abremse menos já que produzem um u que é como podemos sentir uma vogal também redonda mas mais fechada que o O Mais um prodígio musical da nossa língua conclui Vera sorrindo Uma hipótese para São Paulo Por que será que em São Paulo essas reduções não acontecem na mesma intensidade das outras regiões do Brasil pergunta Sílvia É uma pergunta que só poderá ter uma resposta depois de muita pesquisa de campo e de reflexão cuidadosa afirma Irene Por enquanto a gente pode ficar só nas suposições e eu mesma tenho cá a minha hipótese E qual é interessase Emília São Paulo sofreu uma grande colonização de origem italiana e muita gente diz que São Paulo é uma das maiores cidades italianas do mundo A presença cultural italiana é marcante e um de seus pontos fortes é a deliciosa arte culinária exercida nas casas das famílias e nas inúmeras cantinas espalhadas por todos os bairros da cidade Eu mesma tenho sobrenome italiano Amaggio que é o mesmo da Verinha Pois eu me chamo Emília Stornello Rossi pai e mãe italianos Não seja por isso intervém Sílvia meu nome completo é Silvia Giovanna Sangiorgio Dalla Chiesa pai mãe e futuro marido italianos se Deus quiser É que o namorado dela o Pedro também é de família italiana explica Vera Viram só o que eu disse comenta Irene Nós somos a prova viva dessa grande imigração E o que tem isso a ver com o modo de falar dos paulistanos indaga Vera Na minha hipótese tem tudo a ver responde Irene O cantarolado típico do falar paulistano muito do seu vocabulário pág 101 e muitas construções gramaticais que caracterizam este falar são facilmente identificáveis nas diferentes variedades de italiano que os imigrantes falavam quando chegaram aqui Chamar as pessoas de belo bela e reduzir os nomes próprios à primeira sílaba Júlia vira Ju Sônia vira Sô Luís vira Lu são expressões de afetividade caracteristicamente italianas Até mesmo alguns palavrões e xingamentos que usamos são de pura raiz italiana É mesmo interessase Emília sempre impertinente Quais por exemplo Irene não se abala com a pergunta maliciosa Cazzo por exemplo responde ela tranqüila que é uma coisa que os meninos têm e nós não Todas riem Sílvia virase para Emília Gostou Emília não se dá por achada Meu interesse é puramente científico tá e para Irene Que mais O adjetivo cafona que vem do italiano do sul cafone usado primeiro para designar o camponês para depois significar de mau gosto antiquado como fizemos com o nosso caipira Mais preconceito suspira Vera Pois é confirma Irene mas também a nossa fórmula de despedida mais comum e informal o tchau que hoje escrevemos à moda brasileira provém em linha reta do ciao italiano Só que os italianos usam o ciao não só para se despedir mas também para se cumprimentar quando chegam acrescenta Vera É verdade confirma Irene Além disso o falar paulistano se caracteriza também por desnasalizar as vogais seguidas de M OU N mais vogal ao contrário do que acontece no resto do Brasil Como assim pergunta Sílvia O paulistano diz fóme hómem António nós viémos fizémos quisémos com vogais bem orais enquanto no resto do português do Brasil se diz fõme hõmem Antõnio nós viemos fizemos quisemos por causa do contato da vogal com a consoante nasal que vem depois dela Isso também pode ser atribuído à influência do italiano que é uma língua que não tem as vogais nasais tão características do português pág 102 Gente que coisa mais interessante exclama Sílvia Eu ia morrer sem saber disso Ora o italiano é uma língua que não apresenta as reduções de E em I e de O em U que caracterizam o português Em italiano o que se escreve E é sempre pronunciado E o mesmo acontecendo com o O prossegue Irene A minha hipótese é que os imigrantes recémchegados tiveram de aprender o português e nessa aprendizagem como sempre acontece com línguas em contato eles transferiram para a sua nova língua algumas características do italiano Este português italianado foise constituindo pouco a pouco até transformarse na variedade paulistana que existe hoje Eu acho que a sua hipótese faz bastante sentido tia comenta Vera Já passei umas férias no Paraná e fiquei espantada como lá eles falam diferente de nós Eles não reduzem nem mesmo as vogais finais e dizem leitE gentE fogO altO Parecem mesmo estrangeiros falando português É que o Paraná bem como os outros estados do Sul receberam além dos italianos outros imigrantes europeus alemães ucranianos poloneses espanhóis Se minha hipótese estiver realmente certa isso explicaria a diferença tão marcante entre o falar do Sul e o do resto do Brasil Muito bem adorei a explicação disse Emília Só falta esclarecer uma questão Quem fala mais certo Ninguém fala mais certo Emília porque todo mundo fala igualmente certo responde Irene Como assim igualmente certo pergunta Sílvia Todo mundo fala de um modo que tem explicações na história da língua ou na história de quem fala esta língua E falar diferente como eu venho insistindo o tempo todo não quer dizer falar errado E essa história de que o lugar onde se fala mais certo no Brasil é o Maranhão pergunta Emília Já ouvi falar disso mais de uma vez É só mais um mito explica Irene mais uma bobagem baseada em preconceitos Da mesma forma que é uma grande bobagem dizer que os portugueses sabem mais português que os brasileiros pág 103 Falar do jeito que se escreve não significa falar mais certo No início da nossa conversa você disse que o fenômeno da redução do E e O átonos pretônicos não é característica exclusiva do português nãopadrão lembra Vera Ora se ele existe também no portuguêspadrão por que foi que você o incluiu nas nossas lições de PNP Por uma razão bem simples responde a professora Como a própria Sílvia testemunhou existe uma tendência muito forte na nossa escola a querer obrigar o aluno a pronunciar a língua do jeito que se escreve como se essa fosse a maneira certa de aprender o português Muitas gramáticas e muitos livros didáticos chegam a aconselhar ao professor que corrija quem fala muleque burracha fidido como se isso pudesse anular o fenômeno da harmonização um fenômeno natural e muito antigo na história do português Mas nós não temos de ensinar nossos alunos a escrever de acordo com a ortografia oficial pergunta Sílvia É claro que temos responde Irene mas não podemos fazer isso tentando criar uma língua artificial e reprovando as pronúncias que são um resultado natural das forças internas que governam o idioma inclusive nas suas variedades cultas Então como devemos agir quer saber Emília Eu digo ao meu aluno que ele pode falar bonito ou bunito menino ou minino mas que só pode escrever BONITO e MENINO porque é preciso uma ortografia única para toda a língua para que todos possam ler e compreender o que está escrito explica Irene A língua escrita é um conjunto de símbolos que podem ser interpretados de maneiras variadas de acordo com uma série de fatores A letra E por exemplo é um símbolo que pode estar representando o som ê como em TELHA O som é como em VELHA O som i como em MOLE e até estes três sons de uma vez só como em MERECE sem que haja nenhuma alteração na sua forma gráfica no seu desenho É mesmo admite Vera Pensem também nos símbolos matemáticos sugere Irene pág 104 nos sinais de trânsito na notação musical e em tantos outros símbolos que podem ser compreendidos em qualquer lugar do mundo Ela vai até a lousa e desenha Qualquer pessoa em qualquer lugar do mundo ao ver este símbolo saberá que naquele local é proibido fumar Só que um falante de inglês ao ver o símbolo vai interpretálo como no smoking um falante de francês como défense de fumer um falante de italiano como vietato fumare e assim por diante Puxa é verdade diz Emília baixinho Mesmo não sendo tão universal quanto os símbolos matemáticos os sinais de trânsito ou a notação musical continua Irene a forma escrita de uma língua de qualquer língua do mundo também tem este caráter simbólico também é uma representação única para interpretações variadas Ela pára um instante para refletir depois volta a falar Pensem no que aconteceria se a gente desse a mesma receita de bolo a cinco cozinheiros diferentes e pedisse que eles a fizessem Os bolos provavelmente seriam muito parecidos mas cada um ia ter um toque diferente um ficaria mais macio outro mais massudo um estaria mais doce outro menos um estaria mais dourado outro mais claro e assim por diante Por quê Porque a receita escrita é a mesma mas haveria diferença na produção do bolo Um cozinheiro bateria a massa por mais tempo que os demais outro usaria manteiga de melhor qualidade outro deixaria as claras em neve mais firme que os outros e assim por diante E o mesmo acontece com a língua que a gente fala pergunta Vera pág 105 Acontece sim responde Irene Todos nós que fomos à escola aprendemos a receita de ler mas na hora de produzir na fala o que lemos deixaremos nossa marca pessoal na leitura Não é maravilhoso Absolutamente maravilhoso entusiasmase Emília Prestem atenção ao tipo de correção que vocês estão fazendo sugere Irene Corrijam o que está inadequado o que está ambíguo ou confuso corrijam a escrita mas não corrijam o que é espontâneo natural harmonioso e saboroso na fala Emília se levanta de repente abraça Irene e enche ela de beijos Ei Emília pára com isso a tia é minha exclama Vera levantandose também Mas eu já adotei ela como tia minha também pra seu governo retruca Emília Nada de ciúmes meninas graceja Irene Eu também já adotei todas vocês como minhas sobrinhas preferidas Sílvia consulta o relógio e diz Gente vocês sabiam que já passou das seis E eu que ainda queria passar em algum lugar para comprar um presentinho para a Antônia Todas então se apressam em deixar a escolinha e cada uma vai se preparar para a festa desta noite pág 106 QUE COISA MAIS ESDRÚXULA contração das proparoxítonas em paroxítonas a noite seguinte já todas reunidas Irene anuncia o tema do serão Um traço característico do português nãopadrão é que nele as palavras proparoxítonas praticamente não existem E é disso que vamos falar hoje As proparoxítonas como vocês sabem muito bem são aquelas palavras cuja sílaba tônica é a antepenúltima Quem me dá exemplos FÁBRICA ELÉTRICO MÁQUINA diz Sílvia RIDÍCULO ESTÚPIDO HIPÓCRITA completa Emília Parece que o português nãopadrão tem preguiça de pronunciar estas palavras sofisticadas não é Mas eu já aprendi que a explicação pela preguiça é ridícula estúpida e hipócrita Isso mesmo Emília diz Irene nós que estamos tentando descobrir a lógica de funcionamento do PNP não podemos aceitar essa explicação Vamos tentar outra Irene distribui mais uma de suas famosas folhas impressas dizendo Para começar vamos observar estas palavras que no português padrão são proparoxítonas e ver como elas são pronunciadas no PNP Quadro 16 N PORTUGUÊS PADRÃO PORTUGUÊS NÃOPADRÃO árvore arvre córrego corgo cubículo cuvico fósforo fósfro pág 107 Quanta transformação tia Irene admirase Vera É mesmo concorda Sílvia Algumas palavras ficaram bastante diferentes Se o quadro não mostrasse a forma da língua padrão eu teria dificuldade em saber de onde a forma nãopadrão tinha saído Você tem razão Sílvia diz Irene Fica mesmo difícil reconhecer que briba provém de VÍBORA e que landra provém de GLÂNDULA E o mais interessante é que estas palavras sofreram também uma transformação de significado Briba em algumas regiões do Nordeste é o nome dado à lagartixa caseira E landra é um termo empregado para designar as amígdalas inflamadas Que curioso deixa escapar Emília Outra palavra que poderia ter entrado neste quadro é tique que é a forma nãopadrão de TÍQUETE do inglês TICKET que já vi escrito em muito restaurante bom Aceitamos todos os tiques continua Irene A mesma coisa acontece em alguns hotéis onde os apartamentos STANDARD palavra inglesa que significa padrão viraram apartamentos estande O que foi que aconteceu afinal pergunta Sílvia Por que estas palavras ficaram assim O que aconteceu foi que estas palavras sofreram uma contração responde Irene Sofreram algum tipo de encolhimento para caberem no ritmo natural do PNP que é um ritmo paroxítono no qual a sílaba tônica é sempre a penúltima glândula landra música musga pássaro passo sábado sabo tábua tauba víbora briba O que nos diz a história da língua E esse ritmo paroxítono é exclusivo do português não padrão pergunta Emília Parece que não responde Irene Um breve exame da história da língua portuguesa pode mais uma vez esclarecer muita coisa Logo abaixo do primeiro quadro há outro com algumas palavras muito conhecidas usadas por todos os falantes cultos de português Observem agora quais são as palavras latinas que deram origem às formas atuais do português pág 108 Quadro 17 Que lista enorme espantase Vera Mas ela poderia ser ainda maior explica Irene pois é imensa a quantidade de palavras proparoxítonas latinas que em português se transformaram em paroxítonas Algumas sofreram ASNO BRAVO CALDO COELHO CONTO DEDO ESPELHO FALA FRIO GENRO ILHA HOMEM LETRA MALHA ÁSINU BÁRBARU CÁLIDU COÁGULU CUNÍCULU CÓMPUTU DÍGITU SPÉCULU FÁBULA FRÍGIDU GÉNERU ÍNSULA HÓMINE LÍTTERA MILAGRE OBRA OMBRO PALAVRA PERIGO POBRE POVO QUARESMA REGRA SOGRA TELHA TREVA VELHO VERDE MIRÁCULU ÓPERA ÚMERU PARÁBOLA PERÍCULU PÁUPERE PÓPULU QUADRAGÉSIMA RÉGULA SÓCERA TÉGULA TÉNEBRA VÉTULU VÍRIDE PORTUGUÊS PADRÃO LATIM PORTUGUÊS PADRÃO LATIM transformações tão radicais quanto aquelas que vimos no primeiro quadro de VÍBORA briba e de GLÂNDULA landra É difícil reconhecer em COELHO o latim CUNÍCULU OU em TREVA O latim TÉNEBRA Aqui também houve transformação de significado Irene pergunta Sílvia Certamente que houve Além disso às vezes de uma única palavra latina surgiram várias outras em português O latim MÁCULA por exemplo além de MALHA também deu em português MÁGOA MANCHA e MÁCULA palavra de uso mais literário Vejam quantas mudanças na forma e no significado A contração também atingiu alguns nomes próprios como os das conhecidas cidades portuguesas de BRAGA em latim BRÁCARA e COIMBRA em latim CONÍMBRIGA ou os nomes de pessoas CARLOS em latim CÁROLUS e ESTÊVÃO em latim STÉPHANU pág 109 Que diria um cidadão romano falante do latim clássico se fosse trazido de volta à vida nos dias de hoje e nos ouvisse falar imagina Vera Talvez pensasse Que povo mais preguiçoso E estaria pensando errado diz Irene porque a preguiça nada tem a ver com o caso Pelo contrário o que aconteceu foi uma aceleração no ritmo da fala a língua ficou mais dinâmica mais rápida e este fenômeno aconteceu não só em português mas também em outras línguas da família como o espanhol e o francês Alguns estudiosos nos informam que já no latim havia esta tendência e era comum se dizer períclum perigo em vez de perículum E no que deu essa aceleração pergunta Sílvia Com a aceleração do ritmo da fala as vogais que se encontravam depois da sílaba tônica foram sendo pronunciadas cada vez mais fracas até desaparecerem por completo Depois outras transformações aconteceram e aquelas palavras ganharam o aspecto que têm hoje no portuguêspadrão Coitadinhas das vogais postônicas diz Emília em tom infantil Foram engolidas pelo bichopapão da sílaba tônica Foram mesmo confirma Irene sorrindo A própria normapadrão reconhece este fenômeno Para designar as tetas da vaca os dicionários admitem a forma ÚBERE proparoxítona e também a forma UBRE paroxítona E embora alguns gramáticos mal humorados façam cara feia não há como impedir que o povo chame de azaléia a linda flor que eles teimam em nos obrigar a chamar de azálea Azálea jacta est diz Emília e todas caem na gargalhada Vocabulário erudito e vocabulário popular Passado o riso Vera pergunta Mas apesar dessa tendência nós temos ainda muitas palavras proparoxítonas em português tia Por quê De fato temos Verinha Mas se você reparar bem são palavras em sua maioria sofisticadas como disse a Emília Termos de uso literário ou termos técnicos e científicos formados diretamente com base no latim ou no grego TÉPIDO TÚGIDO ÍNCLITO ÁCIDO TÉCNICO PÚTRIDO ÂMAGO TÓRRIDO EFÊMERO ÁVIDO IMPÁDO pág 110 LÁBARO LÚGUBRE FÚNEBRE FÍSICO PSÍQUICO MÍSTICO É mesmo tia não são exatamente palavras de uso corriqueiro de uso popular Elas constituem aquilo que é chamado o vocabulário erudito da língua portuguesa explica Irene É por isso que algumas vezes uma mesma palavra latina como já vimos deu origem em português a duas palavras novas uma mais antiga paroxítona de uso popular e outra de formação mais recente proparoxítona de uso erudito Exemplos por favor pede Emília No segundo quadro Emília veja o latim COÁGULU indica Irene Na língua popular ele deu origem a COALHO e na língua erudita a COÁGULO termo técnico da medicina É por isso que o leite COALHA mas o sangue COAGULA Por que meus professores de latim nunca me ensinaram as coisas desse jeito lamenta Vera Ia ser tão melhor do que ficar decorando aquelas listas de declinações insuportáveis Não é mesmo concorda Irene E como fica a divisão do bolo da língua entre as paroxítonas e as proparoxítonas no português de hoje pergunta Sílvia Muito desigual responde Irene As proparoxítonas perdem de longe As paroxítonas constituem a esmagadora e retumbante maioria das palavras Só para você ter uma idéia eu tenho aqui uns números anotados ela consulta uma folha de papel Camões nosso velho conhecido no seu maravilhoso poema épico Os Lusíadas que é a obraprima da língua portuguesa clássica só usou 267 palavras proparoxítonas o que equivale a apenas 5 de todo o vocabulário utilizado no poema Que mixo comenta Emília Os Lusíadas têm 8816 versos continua Irene Destes 8325 94 têm rima paroxítona 482 têm rima oxítona e apenas nove versos apresentam rima proparoxítona Pobrezinhos tão solitários lamenta Emília E vejam que Os Lusíadas é uma obra extremamente requintada com um vocabulário riquíssimo que inclui lindos proparoxítonos como áfrico altíssono ígneo íncola túmido undívago Mas eles naufragam no enorme oceano de paroxítonos pág 111 E como seria num texto mais simples imagina Sílvia Faça você mesma o teste sugere Irene Escolha uma notícia de jornal ou de revista assinale as palavras proparoxítonas presentes no texto e compare o número delas com o das palavras paroxítonas Os números certamente vão apresentar uma diferença ainda maior do que nOs Lusíadas Mais duas palavrinhas Quer dizer que as proparoxítonas constituem mesmo um corpo estranho dentro da língua portuguesa conclui Vera De certa forma sim responde Irene E podemos dar duas provas disso A primeira a questão do acento gráfico Quando aprendemos a usar os acentos gráficos somos apresentadas a uma regra que diz Todas as palavras proparoxítonas são acentuadas Por quê Porque justamente a tendência natural o ritmo próprio do português é o paroxítono acertei animase Emília Acertou confirma Irene Vejam só uma palavra escrita simplesmente DUVIDA não apresenta problemas para um falante de português alfabetizado pois ele naturalmente a lerá acentuando na fala a sílaba VI Mas para que ele acentue na fala a sílaba DU será preciso que ela venha enfeitada com um acento gráfico DÚVIDA pois esta acentuação não corresponde à tendência natural do português É por isso também que as paroxítonas só são acentuadas graficamente nuns casos bem específicos e a maioria delas não recebe acento gráfico E qual a segunda prova da esquisitice das proparoxítonas quer saber Sílvia A outra coisa que nos revela essa esquisitice da acentuação na antepenúltima sílaba é o termo que também se usa para designar as palavras proparoxítonas Quem sabe Emília Vera e Sílvia se entreolham Ninguém sabe Meninas que vergonha diz Irene Nenhuma de vocês ouviu falar de palavras esdrúxulas Esdrúxulas repete Vera Conheço essa palavra mas não sabia que era usada para designar as palavras proparoxítonas pág 112 Pois é sim diz Irene Mas vejam vocês este adjetivo além de designar as proparoxítonas também passou a significar na linguagem familiar esquisito estranho fora do comum justamente por ser uma palavra esdrúxula Vivendo e aprendendo comenta Emília anotando em seu bloquinho Como vimos mais uma vez conclui Irene aquilo que parece errado ou estranho no português nãopadrão é na verdade resultado da ação de tendências muito antigas na língua que são refreadas reprimidas pela educação formal pelas regras da linguagem literária oficial escrita mas que encontram livre curso na boca do povo pág 113 QUEM ERA O HOME QUE EU VI ONTE NA GARAGE desnasalização das vogais postônicas a manhã seguinte durante o prolongado café da manhã só permitido a quem está de férias Vera pergunta a Irene Tia por que será que é tão comum as pessoas dizerem home onte garage em vez de homem ontem garagem com o m final Agora mesmo antes de sair a Eulália disse que ia à quitanda comprar vage para fazer no almoço Irene toma um gole de seu café e medita por alguns instantes Sem dizer nada levantase da cadeira à mesa da cozinha e vai até um pequeno armário ali perto em cuja gaveta encontra uma caneta e um bloco de papel Volta à mesa e começa a rabiscar alguma coisa parando de vez em quando para pensar Vera Sílvia e Emília acompanham os gestos de Irene curiosas Emília cochicha ao ouvido de Vera Atenção Gênio trabalhando e sufoca o riso Psss faz Vera levando um dedo à boca Irene está tão absorta em seus pensamentos que fica alguns minutos parada com o olhar voltado para o teto e a xícara de café suspensa no ar Vera não resiste Tia você ouviu o que eu perguntei Irene como que acordada de um transe hipnótico pisca os olhos baixa a mão que sustenta a xícara sorri e responde Claro que ouvi a sua pergunta Verinha Só que ela me pegou de surpresa é um assunto que eu não tinha incluído na minha pesquisa Agora que você falou começaram a vir mil idéias na minha cabeça e preciso anotálas antes que se evaporem Sabem como é a memória é nossa melhor inimiga Irene volta a rabiscar algumas coisas no bloco Vera mastiga sua impaciência junto com um biscoitinho de polvilho enquanto N Emília e Sílvia disputam o pote de geléia de ameixa para passar no pão Finalmente a professora diz A sua pergunta Verinha tem a ver com uma tendência à desnasalização das vogais postônicas na língua portuguesa Emília intervém pág 114 Irene me desculpa mas essas palavras que vocês usam na Lingüística parecem mesmo nome de doença e ela encena um pequeno diálogo fazendo vozes diferentes E então Doutor Feitosa qual o problema com o Adamastor Henrique Nada de grave Dona Gertrudes é só uma pequena desnasalização das vogais postônicas Não há quem consiga conter o riso diante da interpretação exagerada de Emília Mas tem que ser assim mesmo Emília diz Irene depois que consegue parar de rir Na ciência os fenômenos as regras as leis têm que ter nomes precisos para facilitar o estudo e a análise Mesmo que estes nomes não sejam exatamente os mais bonitos do mundo Vera se volta para Emília e diz Satisfeita estrela Já deu o seu showzinho Ela pode responder agora à minha pergunta ou a palhaça tem ainda algum número para apresentar Titia é toda sua responde Emília Muito obrigada agradece Vera E então tia Eu rabisquei aqui algumas palavras em latim e ao lado delas coloquei a forma correspondente em portuguêspadrão moderno responde Irene Vejam aqui E ela coloca no centro da mesa o bloco onde rascunhou o seguinte quadro Quadro 18 pág 115 Que interessante comenta Vera todas estas palavras tão usadas em português atual tinham em latim um N final que desapareceu Desapareceu mas deixou vestígios explica Irene e é por isso que até hoje dizemos abdominal betuminoso examinar luminária nominal com aquele mesmo N que se perdeu nos substantivos E algumas destas palavras conservaram uma dupla grafia possível abdomeabdômen certamecertâmen cerumecerúmen germegérmen regimeregímen velamevelâmen só que estas formas com N final praticamente não são usadas nem na língua oral nem na escrita e quase não as encontramos hoje em dia a não ser quando alguém quer se divertir com elas ou parecer pedante O que aconteceu Por que desapareceu esse N final pergunta Sílvia Ao que parece existe a tendência na língua portuguesa de LATIM PORTUGUÊS abdomen abdome bitumen betume certamen certame cerumen cerume strumen estrume examen exame gérmen germe legumen legume lúmen lume nomen nome regimen regime velamen velame volumen volume eliminar a nasalidade das vogais postônicas responde Irene Quer dizer o som nasal das vogais que estão depois da sílaba tônica como em todas estas palavras do quadro E também em homem ontem Virgem além de todas as inúmeras palavras terminadas em agem garagem viagem bobagem etc Por que será que o portuguêspadrão conservou o M destas palavras interessase Vera Talvez tenha sido a alta freqüência de uso delas na norma padrão propõe Irene As outras palavras aquelas do quadro têm uso menos freqüente e acabaram apanhadas pela regra da desnasalização O português nãopadrão no entanto que é mais obediente às regras ditadas pelas tendências internas da língua aplicou a regra a todas elas Queria que meus alunos fossem tão obedientes às regras quanto o português nãopadrão suspira Emília Irene não ouve o comentário pois está de novo concentrada em seus pensamentos Escreve mais algumas coisas no bloco e diz Este fenômeno também atingiu as palavras terminadas em ão postônico e é por isso que no PNP ouvimos orgo para ÓRGÃO orfo para ÓRFÃO Cristovo para CRISTÓVÃO Estevo para ESTÊVÃO além de todos os verbos que no portuguêspadrão terminam em AM pronunciado ão eles cantaro eles fizero eles bebero Acontece também pág 116 com os nomes próprios do tipo AÍRTON NÉLSON WÍLSON MÍLTON que no falar descontraído são pronunciados Aírto Nélso Wilso Mílto O mesmo se dá com a palavra ÁLBUM que muita gente pronuncia albo Outro fato curioso é que a palavra que hoje pronunciamos frango no português mais antigo era frângão Frângão repete Emília espantada Que coisa mais engraçada e ela improvisa um rápido diálogo Que temos hoje para o rângão querida Frângão ensopado com batata meu amor Que delícia mas antes vamos dançar um tângão Pare com isso senão eu me zângão Chega Emília por favor implora Vera Não sei como você consegue falar tanta bobagem Bobagem não corrige Emília bobage bobage obedeça à regra Vera dispara uma bolinha feita de miolo de pão na direção de Emília que se desvia e evita o golpe Sílvia alheia à disputa voltase para Irene e diz Mais uma vez a gente é obrigada a reconhecer que quem diz onte home garage bobage não está falando errado não é Irene Está até de certa forma falando mais certo já que está respeitando a regra de desnasalização da vogal postônica que é natural da língua Sabendo disso Sílvia quando um aluno ou qualquer outra pessoa pronunciar home onte garage bobage você já vai poder corrigir com a consciência de que está tentando ensinar uma forma oficial padrão culta que na verdade é apenas conservadora enquanto as formas nãopadrão populares são inovadoras e respeitam as tendências normais do idioma Emília e Vera continuam sua guerrinha de miolo de pão Irene se levanta vai até onde elas estão à mesa segura as mãos de ambas e diz Nada de brigas na minha casa Afinal meu nome é Irene que em grego significa paz Por isso as senhoritas larguem já essas armas e vão passear por aí que eu tenho muito o que fazer pág 117 QUEM NÃO SE ALEMBRA DE CAMÕES arcaísmos no português do Brasil uando naquela noite as três colegas entram na escolinha Irene mal espera que elas se acomodem em suas carteiras e diz Dêem uma olhada nos verbos que eu escrevi na lousa e depois me digam se vocês conhecem eles Vera Emília e Sílvia obedecem Emília lê em voz alta Quadro 19 Vocês devem estar pensando que esta é mais uma das minhas listas de palavras que pertencem ao português nãopadrão ao português que a maioria das pessoas chama de errado quando não dizem simplesmente que isso não é português diz Irene Era o que eu ia mesmo dizer admite Sílvia mas já percebi que aí tem dente de coelho Irene sorri E tem mesmo Só que antes de desvendar o mistério vamos arreparar nos seguintes versos E ela distribui uma folha impressa onde está escrito pág 118 Q abastar ajuntar alembrar alevantar alimpar alumiar amostrar aqueixar aquentar arrecear arrenegar arreparar arrodear assentar assoprar avoar Quadro 20 E agora desafia Irene Será que estes versos têm jeito de pertencer ao português nãopadrão Se eu te conheço bem isso aí tem o jeitão do Camões arrisca Emília Pois acertou em cheio cumprimenta Irene São mesmo versos dOs Lusíadas do meu querido Luís de Camões E o que você quer mostrar com isso pergunta Vera Camões a gente sabe que não errava E não errava mesmo confirma Irene O que quero mostrar é muito simples Quero mostrar que muita coisa que a gente pensa que está errada que é fala de gente ignorante na verdade não é nada disso De fato esses supostos erros são heranças muito antigas vestígios de outros tempos verdadeiros fósseis lingüísticos Eles recebem o nome técnico de arcaísmos pág 119 1 Nem as ervas do campo bem lhe abastam 2 Vinham as claras águas ajuntarse 3 Mas alembroulhe uma ira que o condena 4 Alevantando o rosto assim dizia 5 Alimpamos as naus que dos caminhos 6 A noite negra e feia se alumia 7 Andarlhe os cães os dentes amostrando 8 Que se aqueixa e se ri num mesmo instante 9 Por mais tempo que o Sol o mundo aquente 10 Que de tão pouca gente se arreceia 11 Morrem arrenegando o Céu e os fados 12 Mais abaixo os menores se assentavam 13 Que em vão assopra o vento a vela inchando O passado alumiando o presente Arcaísmo tem a ver com arcaico e arcaico quer dizer velho não é diz Sílvia Exatamente responde Vera Vamos recordar um pouco a nossa história A língua portuguesa chegou ao Brasil no início do século XVI Naquela época os portugueses não falavam nem um pouco parecido com o modo como falam hoje Ah não admirase Sílvia Não confirma Irene Eles falavam isso sim de um jeito bem mais próximo do falar do brasileiro de hoje Gente que coisa surpreendese Emília Ontem mesmo na televisão tinha um programa humorístico satirizando o Descobrimento do Brasil e o Cabral e os outros portugueses todos falavam com o mesmo sotaque do Seu Oliveira o dono da banca de jornal que fica embaixo do meu prédio que é português Falta de informação lingüística e histórica esclarece Irene As peças de teatro filmes programas e novelas de televisão que fazem Pedro Álvares Cabral falar com sotaque português moderno estão cometendo uma distorção histórica E o que aconteceu pergunta Vera Com o tempo o português falado na Europa foise modificando como é inevitável com todas as línguas vivas Com um enorme oceano Atlântico a separar os dois continentes os brasileiros não tinham como acompanhar aquelas mesmas transformações que iam acontecendo alémmar O português da América também se modificou mas num ritmo bem mais lento e acabou conservando alguns aspectos da língua fonéticos sintáticos morfológicos lexicais etc que iam desaparecendo pouco a pouco do português europeu A normapadrão brasileira até há algum tempo tentava seguir as normas do portuguêspadrão de Portugal macaquear a sintaxe lusíada como disse Manuel Bandeira no seu poema Evocação do Recife Por isso foi tratando de abandonar alguns daqueles aspectos arcaicos que no entanto foram conservados pelas variedades nãopadrão Foi necessária toda a grande revolução estética e ideológica do Modernismo brasileiro no início do século XX para que lentamente certos traços característicos do pág 120 português do Brasil fossem sendo assumidos pela normapadrão oficial Grandes escritores brasileiros como Manuel Bandeira Mário de Andrade Carlos Drummond de Andrade Guimarães Rosa e outros fizeram questão de escrever numa língua literária mais brasileira e menos dependente das imposições dos gramáticos portugueses A bem da verdade desde o século XIX já com os escritores românticos havia este sentimento de valorizar os brasileirismos lingüísticos José de Alencar autor dO Guarani e de Iracema queixavase dos que diziam que ele escrevia mal o português justamente por assumir esta postura nacionalista Quem descobriu o quê E onde entram os verbos do Camões pergunta Emília Todos estes verbos iniciados com a e que são tão vivos nos nossos falares regionais rurais nãopadrão nada têm de errado nem de ignorante insiste Irene São como já disse arcaísmos lingüísticos que já pertenceram à norma literária clássica e depois saíram de moda A prova disso é sua presença tão abundante na epopéia camoniana publicada em 1572 ou seja apenas 72 anos depois do assim chamado Descobrimento do Brasil Sílvia franze a testa Por que você disse assim chamado Descobrimento Porque este termo me parece muito pouco apropriado para definir o fato histórico acontecido em 22 de abril de 1500 responde Irene Coloco sempre Descobrimento entre aspas por duas razões Primeira pesquisas de historiadores têm mostrado que o Brasil não foi descoberto por acaso pela esquadra de Cabral num suposto desvio de rota quando ele ia para a Índia mas que sua viagem fazia parte de um plano bem traçado de explorar terras sul americanas cuja existência já era conhecida antes Já espantase Vera Sim confirma Irene O espanhol Vicente Yáñez Pinzón por exemplo esteve no litoral pernambucano em 1499 na região do Cabo de Santo Agostinho bem pertinho do Recife atual Quer dizer que poderíamos ter sido colonizados pela Espanha espantase Vera pág 121 Isso mesmo responde Irene E qual a segunda razão das aspas pergunta Emília A segunda razão que para mim é a mais importante é a seguinte por que falar do Descobrimento de uma terra que já era há milênios o lar de tantas nações indígenas diferentes Só a história do branco é que conta O Brasil não existia antes Algumas lideranças indígenas conscientes falam hoje em dia de invasão portuguesa da mesma forma como aprendemos nas aulas de História que houve invasões holandesas e francesas Puxa vida deixa escapar Sílvia Além de modificar as aulas de português vamos ter de mudar também nosso ensino de História História dos verbos com A Voltando aos nosso verbos retoma Irene eles têm uma história muito interessante Havia em latim uma preposição ad que deu origem à nossa própria preposição a Ela tinha diversos sentidos conforme a frase entre os quais perto de junto a em direção a até etc Como as demais preposições latinas ad podia ser usada como um prefixo para formar novos verbos Em muitos casos ela perdia o d final que era assimilado pela consoante seguinte ad préndere appréndere aprender ad córrere accórrere acorrer ad flúere afflúere afluir e assim por diante E no português pergunta Vera Na formação da língua portuguesa este processo continuou fazendo surgir uma grande quantidade de verbos que tinham este prefixo a sem que ficasse muito evidente por que ele estava ali junto daquele verbo Aconteceu o que a gente chama de generalização que é quando uma regra deixa de ser específica para alguns casos e é empregada a torto e a direito A história da língua está cheia de casos de generalização Por que Camões usou estes verbos que hoje são proibidos na língua literária padrão pergunta Sílvia Na época posterior a Camões responde Irene houve um grande esforço por parte dos filólogos e literatos de Portugal pág 122 de estabelecer normas para a língua portuguesa culta literária aquela que devia ser o idioma oficial do reino e do império Esta época coincide justamente com o momento mais importante dos empreendimentos marítimos portugueses a presença de exploradores e colonos portugueses já é sentida em todos os pontos do planeta tendo sido eles aliás os primeiros europeus a entrar em contato por exemplo com o Japão É mesmo surpreendese Emília Eu nunca soube disso Pois fique sabendo agora diz Irene Algumas palavras da língua japonesa moderna refletem este contato muito antigo com os primeiros navegadores portugueses A palavra arigatô é derivada do português obrigado e o mesmo acontece com pan que é pão em japonês Quer dizer que nossa lingüinha já foi importante assim admirase Emília Muito importante sim senhora responde Irene Antes que o francês se transformasse na língua mundial no século XVIII e o inglês no século XIX foi o português que desempenhou este papel A partir da segunda metade do século XV ele já era falado nas regiões costeiras da África Ocidental No século XVI estava disseminado por todo o Oriente Era tão importante que mesmo os navios de exploradores de outros países holandeses franceses e ingleses levavam sempre uma ou mais pessoas que soubessem falar português para estabelecer contato com os povos nativos que usavam o português como língua de comunicação com os europeus Estou de queixo caído confessa Emília Tia você estava dizendo que os filólogos de Portugal tentaram definir uma língua oficial Como foi que isso atingiu os verbos começados com a pergunta Vera Nessa tentativa de definir uma língua oficial os gramáticos decidiram eliminar da normapadrão alguns daqueles verbos em a porque não correspondiam a nenhum verbo original latino nem guardavam os sentidos que a presença da preposição impunha Foi assim que no português clássico e moderno já não encontramos mais alumiar aqueixar alembrar Mas a lei não colou com o povo não é arrisca Sílvia pág 123 Claro que não responde Irene afinal o povo que na sua imensa maioria não sabia ler nem escrever e portanto não tinha acesso à norma oficial padrão conservou aqueles verbos que chegaram até o Brasil na boca dos colonizadores e por aqui ficaram Quanto mais longe mais arcaico A presença de aspectos arcaicos é comum a todas as línguas que foram transplantadas de um lugar para outro prossegue Irene Existe até uma relação bastante interessante entre arcaísmo e distância geográfica quanto mais distante de seu local de origem mais arcaica permanece a língua Assim acontece por exemplo com o francês falado no Canadá que tem muitos aspectos do francês falado na França no século XVII Também acontece com o inglês da Austrália e com o espanhol sulamericano Quanto mais distante mais arcaica repete Emília anotando Essa mesma relação faz com que a língua das zonas rurais seja mais arcaizante do que a língua das grandes cidades onde as transformações sociais mais rápidas são acompanhadas no mesmo ritmo por transformações na variedade lingüística Quanto mais antiga a colonização de um lugar mais traços arcaicos sobrevivem na sua língua Por isso o português do Nordeste brasileiro primeira região a ser colonizada pelos portugueses está muito mais próximo da língua falada por Cabral e por Camões do que o português de São Paulo por exemplo E a língua falada na zona rural nordestina é muito mais arcaica do que a falada nas grandes cidades da região Português do Brasil uma língua conservadora Tia além desses verbos começados em a que outros arcaísmos a gente pode encontrar no português nãopadrão Muitos outros Verinha responde Irene Aos ouvidos desinformados podem parecer erros Vou dar três exemplos entonce despois escuitar tão comuns na fala dos caipiras Justamente pág 124 por serem arcaísmos estas formas estão mais próximas do latim do que as formas vigentes na normapadrão de hoje Entonce então vem do latim in tunce Despois depois vem de de ex post Repare como estas formas arcaicas do PNP se parecem com o espanhol entonces después E escuitar De onde vem pergunta Emília Escuitar vem do latim ascultare responde Irene A transformação de lt em it não é estranha ao portuguêspadrão o latim multu resultou em muito Esta forma latina é que explica a presença do L nas palavras multidão múltiplo multicolorida Digase de passagem que despois e escuitar estão devidamente registrados nOs Lusíadas E no portuguêspadrão também temos arcaísmos pergunta Sílvia E como responde Irene Muitos dos erros que os portugueses dizem que os brasileiros mesmo os cultos e bem educados cometem não passam de sobrevivências de formas antigas que podem ser encontradas em escritores portugueses dos séculos XV e XVI Por exemplo interessase Vera Uso da preposição em regendo verbos de movimento Vou no cinema cheguei em casa A normapadrão clássica pede a preposição a Vou ao cinema cheguei a casa Mas o uso de em nestes casos aparece também nOs Lusíadas Que mais pergunta Emília Uso da preposição de regendo o verbo chamar responde Irene Ele me chamou de ignorante A norma clássica diz Ele chamoume ignorante Mas este uso aparece na obra de Frei Luís de Sousa autor português do século XVIXVII Ainda bem porque Ele chamoume ignorante é de uma cafonice sem igual comenta Emília Pois é retoma Irene muitos outros aspectos do português brasileiro que são classificados de brasileirismos como se fossem pura invenção nossa não passam mais uma vez de heranças bem conservadas de uma língua portuguesa que se falou há muito tempo É o caso por exemplo do nosso uso tão comum do gerúndio em frases do tipo estou falando estou indo estou querendo pág 125 onde os portugueses dizem estou a falar a ir a querer Ora Camões só usa a forma com gerúndio o mesmo acontecendo com outros escritores de sua época A forma estou a falar é que é uma inovação bem recente no português de Portugal De onde se conclui diz Emília Que não devemos acusar ninguém de estar falando errado quando simplesmente está falando antigo arremata Irene E por falar em antigo diz Sílvia estou me lembrando com saudades do bolo de laranja que a Eulália fez hoje à tarde Bem que a gente podia ir lá e comer um pedaço antes que ele fique arcaico Sugestão aceita saem todas da escolinha pág 126 ACEITASE ROUPAS NOVAS função da partícula SE como verdadeiro sujeito de oração mília Vera e Sílvia dormem no mesmo quarto Como estão de férias e as conversas com Irene se prolongam noite adentro elas aproveitam os dias frios do inverno para dormir até mais tarde Mesmo quando despertam cedo ficam deitadas conversando até pelo menos as dez horas da manhã Hoje Vera é a primeira a acordar Espreguiçase debaixo do cobertor grosso pisca os olhos várias vezes consulta o relógio de pulso deixado sobre o criadomudo Dez e meia quase Hoje a gente exagerou avalia Difícil vai ser me acostumar de novo ao horário de trabalho pensa ela que tem de estar todos os dias às sete horas na escola para a primeira aula Vou acordar essas preguiçosas Levantase vai até a janela e abre as cortinas Uma luz intensa invade o quarto Vera admira o azul limpo do céu Ouve os primeiros resmungos das colegas Dá para apagar este sol um minutinho por favor pede Emília escondendose sob o cobertor Sílvia boceja longamente sorri para Vera e diz Tive um sonho tão gostoso Acho que foi por causa da aula da Irene de ontem sobre os arcaísmos Emília que não perde chance de fazer piada comenta a voz abafada pelo cobertor Sonhou que era uma mulher das cavernas cabeluda e piolhenta Isso é que é um sonho arcaico para mim Não sua boba sonhei com o Descobrimento do Brasil protesta Sílvia E quem você era A mulher do Cabral que também era amante do Pero Vaz de Caminha graceja Emília de novo pondo a cabeça para fora Sílvia atira um travesseiro na direção de Emília que evita o E golpe encolhendose novamente sob o cobertor Vera está de pé junto a janela Quando se dirige de volta à sua cama percebe alguma coisa no chão do quarto sobre o tapete junto à porta É um envelope Vai até lá e o recolhe pág 127 Carta para nós diz ela sentandose na beirada da cama de Emília e lendo o sobrescrito As outras duas se interessam e aproximamse dela É da tia Irene E o que diz pergunta Emília Vera lê Bom dia aqui fala a sua tia Eu e a Eulália fomos a Campinas fazer comprinhas e procurar uns livros que estou precisando Esperei até as nove e meia para ver se as dondocas acordavam para irem com a gente mas como o quarto estava mais silencioso que um túmulo fomos sozinhas Voltamos à tardinha Beijos e queijos Irene Que pena lamenta Sílvia ia ser divertido viajar até Campinas com elas Pouco tempo depois entram as três na cozinha para o café da manhã Que gracinhas que elas são não comenta Emília Deixaram a mesa prontinha para nós Sentamse Quando Vera vai pegar a xícara para servirse de café percebe que sob o pires há um pequeno papel azul dobrado Mais um bilhetinho gente diz ela desdobrandoo Neste instante Emília exclama Eu também tenho um E eu também diz Sílvia mostrando um cartão corderosa que estava sob sua xícara O que diz o seu Vera pergunta Emília Diz assim Vendemse casas quem vende o quê Que esquisito comenta Emília E o seu Sílvia O meu diz Se quem tem autoridade para reprovar um aluno é o professor qual o sujeito da seguinte frase Na escola reprovamse muitos alunos por falarem uma variedade nãopadrão de português responde Sílvia Pois no meu está escrito assim Você já ouviu falar de galinhas suicidas Então qual o sujeito da seguinte oração Nesta granja abatemse mil galinhas diariamente Vera sorri e diz Essa tia Irene tem cada uma Só falta agora a gente cortar o bolo e encontrar mais um bilhete dentro pág 128 Não é bem assim que acontece mas ela tem razão há um novo bilhete só que dobradinho sob a pequena toalha branca que cobre a cesta de pães É Sílvia quem o encontra e lê em voz alta Para vocês não ficarem aí sem ter o que fazer quero propor um joguinho Na verdade uma preparação para nosso batepapo de hoje à noite Quero que cada uma de vocês reflita sobre as perguntas que já devem ter encontrado debaixo das xícaras Atenção Não é para responder às perguntas é para refletir sobre elas Amor Irene Eu conheço bem o nome desse joguinho suspira Emília Ele se chama análise sintática mais um desses nomes de doença que a gente tem que decorar Odeio detesto abomino tenho asco nojo antipatia aversão e ojeriza por análise sintática Calma Emília diz Vera Acho que não é nada disso Se conheço bem a tia Irene o que ela quer é fazer a gente pensar encontrar um jeito novo de olhar as coisas Também acho diz Sílvia A Irene não ia fazer a gente perder tempo com uma análise sintática tradicional Tomara viu é a vez de Emília Quando me pedem para encontrar sujeito objeto predicado adjunto e não sei o que mais tenho vontade de sair correndo e fugir para a Patagônia Eu gosto de análise sintática confessa Vera Acho que ela ajuda a gente a entender uma porção de coisas E é muito útil quando você tem de aprender uma língua estrangeira O único problema é a maneira como se ensina análise sintática na escola Uma coisa seca sem humor com exemplos desinteressantes e principalmente sem explicar para que serve Quem sabe a tia Irene tem alguma proposta nova Não sei não diz Emília Tenho verdadeiro trauma com análise sintática Acho que vou esperar a Sílvia se formar para depois cuidar de mim Me aceita como sua cliente Sílvia sorri Claro que aceito Aliás podemos começar já se você topar ser minha cobaia Todas sorriem Depois do café Sílvia diz que vai arrumar a cozinha Vera se dispõe a ajudála Mais tarde a gente podia preparar o almoço não é propõe pág 129 Sílvia Afinal a gente vem explorando a Eulália e a Irene desde que chegou aqui E elas deixam a gente fazer alguma coisa replica Vera enxugando a louça Fazem questão de dar um tratamento de hotel cinco estrelas Façam o almoço que quiserem mas não contem comigo avisa Emília guardando as xícaras no aparador Nós já sabemos que você não sabe nem fritar um ovo diz Vera Fritar um ovo Eu não sei nem colocar água para ferver corrige Emília E o que você vai fazer quer saber Vera Refletir sobre a minha pergunta é claro responde Emília afetando muita responsabilidade Afinal não é esse o nosso dever de casa Ela limpa as mãos no papeltoalha e diz Vou aproveitar que a Irene não está em casa para escarafunchar um pouco o escritório dela Aposto que tem livros interessantíssimos por lá Eu vou passear um pouco pelo quintal diz Vera Vamos juntas completa Sílvia Quem sabe a gente encontra na horta alguma coisa gostosa para fazer uma bela salada Emília deixa as amigas ocupadas na cozinha Vai até o escritório de Irene E um amplo quarto com todas as paredes ocupadas de alto a baixo por estantes abarrotadas de livros No centro do cômodo uma grande mesa de trabalho com muito papel espalhado livros abertos outros empilhados Junto à mesa grande outra menor que sustenta o computador de Irene A visão da máquina acende uma luzinha na imaginação de Emília Será pensa sem querer confessar a si mesma o que tem em mente Ia ser ótimo divertese ela Afinal de cozinha não entendo mesmo nada mas de computador Quem é mesmo esse sujeito Eulália e Irene voltam perto das sete horas da noite Vera e Sílvia recebemnas com um delicioso minestrone Emília apressase em dizer pág 130 que também contribuiu para o jantar cortando o pão em rodelas Tarefa imprescindível diz Irene sorrindo afinal minestrone sem pão não tem a menor graça Emília vai tomando sua sopa calada enquanto as outras conversam animadamente Percebendo o inusitado silêncio da colega sempre tagarela Vera pergunta Que deu em você Emília A sopa queimou sua língua Não responde ela calma É que ainda estou pensando naquelas perguntas que a Irene deixou para a gente refletir Ah é mesmo quase ia esquecendo diz Irene Fizeram a tarefinha de vocês Você disse que era para refletir não para responder não é certificase Vera Isso mesmo confirma Irene Nós duas conversamos bastante sobre as nossas perguntas diz Sílvia A Emília eu não sei passou o dia toda meio misteriosa escondida Emília fazse de desentendida e continua a comer Pois eu estou ansiosa para ouvir as reflexões de vocês confessa Irene Depois do jantar não é tia Primeiro vamos comer sossegadas diz Vera Mais tarde por volta das nove e meia reúnemse as quatro na escolinha para mais um serão Irene abre a conversa dizendo Hoje vamos nos concentrar numa questão que ainda não foi definitivamente resolvida pelos gramáticos e que por isso complica um pouco a vida de quem tem de ensinar e aprender a língua portuguesa O povo é claro já deu a sua solução e neste caso estou me referindo a todos os falantes da língua portuguesa do Brasil tanto nas suas variedades cultas quanto nas suas variedades não padrão Ela faz uma pequena pausa e retoma Quero falar com vocês da velha disputa entre Vendemse casas e Vendese casas Embora as gramáticas e os livros didáticos e tantos professores insistam ainda em afirmar que a primeira forma com verbo no plural é que é a certa a grande imensa esmagadora pág 131 maioria das pessoas só usa a segunda forma com verbo no singular Erro comum arrisca Sílvia Nada disso responde Irene para mim se trata mais uma vez de um acerto comum do povo Vamos tentar descobrir por que essa insistência de tantos milhões de pessoas em errar sempre e colocar o verbo no singular Irene se levanta de seu lugar na meialua formada pelas cinco cadeiras alinhadas dirigese à lousa e enquanto escreve vai falando Nosso material de trabalho esta noite vai ser uma frase bem simples bobinha mesmo Aqui vai ela Tia pela gramática tradicional essa frase está errada diz Vera Por quê pergunta Irene Porque o sujeito do verbo comer neste caso é uns docinhos ótimos e estando o sujeito no plural também o verbo deve estar no plural responde a sobrinha Vamos ver então diz Irene voltando a escrever na lousa Só que como eu já disse praticamente ninguém respeita mais esta regra retoma Irene e a frase 1 tem mais probabilidade de ser enunciada no Brasil do que a frase 2 E existem algumas explicações para isso É a deixa que Emília esperava para pôr as asinhas de fora Posso arriscar uma dessas explicações Irene pergunta ela Claro que pode responde Irene Emília pigarreia um pouco passa a língua pelos lábios e começa Eu acho que a primeira explicação que a gente pode oferecer tem a ver com a sintaxe quer dizer com a organização das palavras na frase com a combinação dos elementos que compõem uma oração pág 132 Era justamente por aí que eu ia começar Emília comenta 1 Nessa padaria se come uns docinhos ótimos 2 Nessa padaria se comem uns docinhos ótimos Irene surpresa Continue por favor Na língua portuguesa como em muitas outras a ordem sintática natural normal espontânea é sujeitoverboobjeto não é mesmo diz a estudante de Pedagogia bem pausadamente como quem escolhe com cuidado as palavras É sim Emília confirma Irene Os lingüistas dizem que esta é a ordem canônica do português Pois então retoma Emília quando um falante de português vai dizer alguma coisa a primeira combinação que lhe ocorre é esta Ivo viu a uva Eu amo você Pedro quer doces Mariana não comprou o livro Você tem medo Tudo na ordem canônica como você disse As línguas que se organizam desta maneira como o português são chamadas línguas SVO sujeitoverboobjeto explica Irene Existem línguas que se organizam de outros modos SOV e VSO E o que tem a ver esse tal de SVO com os docinhos da nossa padaria pergunta Vera disposta a testar até onde vai a sabedoria repentina da colega Muito simples responde Emília e levantandose vai até a lousa e dirigindose a Irene pergunta Posso Por favor concede Irene Novo pigarro Emília retoma A gramática tradicional como a Vera bem lembrou analisa a frase 2 da seguinte maneira E ela rabisca a giz coisas na lousa 2 Nessa padaria se comem uns docinhos ótimos VERBO SUJEITO De acordo com essa análise prossegue Emília o que acontece na frase é uma inversão do sujeito ou seja em vez de estar na ordem normal sujeitoverbo a frase está invertida verbo sujeito pág 133 A inversão do sujeito esclarece Irene é um recurso que torna a frase mais elegante além de dar maior ênfase à ação praticada do que a quem a praticou É muito empregada na literatura nos discursos orais mais elaborados conferências sermões pronunciamentos políticos enfim numa linguagem menos corriqueira menos quotidiana Vamos ver agora como é que a maioria dos brasileiros analisa intuitivamente é claro a frase 1 diz Emília voltando a escrever na lousa O que é que logo chama a atenção nessa análise pergunta Emília em tom professoral e ela mesma responde O que logo chama a atenção nesta análise é que ela corresponde exatamente àquela ordem canônica da sintaxe do português SVO Intuitivamente portanto o falante enquadra este enunciado dentro do esquema padrão da língua Por isso é que esta frase 1 soa muito mais natural do que a frase 2 com seu suposto sujeito invertido Neste momento Irene compreende o que está acontecendo e pisca um olho matreiro para Emília que capta o sinal e o interpreta como pode continuar fazendo as outras duas de tolas sua danadinha Sílvia com uma curiosidade científica que supera sua surpresa pela repentina inteligência da colega pergunta 1 Nessa padaria se come uns docinhos ótimos SUJEITO VERBO OBJETO Esta análise me parece ótima Por que não é assim que a gente ensina Emília volta a atacar Eu consultei uns livros na biblioteca da Irene hoje à tarde e cheguei à seguinte conclusão o grande problema para os gramáticos é admitir que a palavra se na frase 1 é um sujeito pág 134 Por quê indaga Sílvia Porque dizem eles o português procede do latim e em latim se não podia ser sujeito mas somente objeto responde Emília com voz de desdém Vocês agüentam uma explicação bolorenta como essa A língua portuguesa é falada há mais de mil anos já deixou de ser latim há séculos mas eles insistem em querer vestir os fenômenos lingüísticos do português com as mesmas roupas mofadas e puídas usadas pelo latim Só que não dá às vezes fica apertado fica desconfortável outras vezes fica frouxo a roupa não se segura e cai Já não seria a hora de darmos ao português um guardaroupas novo só para ele em vez de obrigálo a usar os ternos esburacados do defunto latim Concordo plenamente intervém Irene É claro que conhecer as origens da língua é muito importante e eu mesma o tempo todo estou indo beber nas fontes latinas Mas daí a querer proibir e condenar fenômenos novos simplesmente porque não existiam em latim é uma atitude no mínimo obscurantista e autoritária Emília volta a ocupar seu assento fazendo o ar mais sonso de que é capaz Irene prossegue No português do Brasil como a Emília acabou de demonstrar melhor do que eu seria capaz esta palavrinha se em enunciados como o que estamos estudando ocupa o lugar do sujeito na ordem canônica da língua e exerce plenamente esta função Ele corresponde a outros sujeitos neutros ou indeterminados que existem em tantas outras línguas on francês one em inglês uno espanhol man alemão e é por isso que os tradutores ao encontrarem uma destas palavrinhas num texto estrangeiro tratam logo de traduzila pelo nosso se O estranho caso das galinhas suicidas Muito bem tia a Emília deve ter comido alguma coisa que fez mal e teve um acesso repentino de inteligência deu o showzinho dela e falou da explicação sintática para o uso do verbo no plural diz Vera olhando com ar desconfiado para a amiga sentada a seu lado Mas você disse que pode haver outro tipo de explicação pág 135 É verdade confirma Irene Podemos tentar uma explicação de outro tipo uma explicação semântica que tem a ver principalmente com o significado dos verbos que se encontram em enunciados onde aparece o sujeito se Vocês também não acham como eu e a Emília que a frase 1 que a gramática classifica de errada faz muito mais sentido do que a frase 2 Irene de novo vai até a lousa É fácil comprovar isso Se na frase 2 o que acontece é uma inversão do sujeito vamos colocálo então no seu devido lugar na ordem canônica para ver o que acontece Vejam como ficou estranho apressase em dizer Emília Os docinhos se comem Docinho tem boca para comer a si mesmo Não parece uma frase sem lógica surrealista Parece responde Vera tão surrealista quanto esse seu repentino amor pela análise sintática Irene finge que não ouviu o comentário da sobrinha e distribui umas folhas impressas 3 Nessa padaria uns docinhos ótimos se comem Vamos fazer o mesmo teste agora com outras frases que a gramática consideraria corretas mas que com o sujeito e o verbo nas posições canônicas assumem um significado até cômico quando não trágico Sílvia e Vera observam o quadro de orações impresso na folha Quadro 21 pág 136 Emília tem um súbito acesso de riso e enquanto ri exclama Gente que coisa mais divertida Mil galinhas diariamente se abatem São galinhas suicidas mesmo que caminham tranqüilamente até o matadouro pegam a faca e se degolam a si mesmas Vera também se diverte Os criminosos se procuram Por quê Estão perdidos não se conhecem têm saudades uns dos outros E essa aqui Os telhados se avistam comenta Sílvia Desde quando telhado tem olho para avistar o outro Eu adorei essa As línguas se ensinam retoma Emília Você consegue imaginar uma língua andando solta por aí vestida de professora e dando aula a outras línguas E não é trágico imaginar que milhões de judeus se exterminaram quando sabemos muito bem que não foi nada disso pergunta Irene Nesta granja abatemse mil galinhas diariamente Ainda se procuram os criminosos responsáveis pelo grande assalto de ontem Do alto daquele morro se avistam os telhados das casas da velha cidade Nesta escola ensinamse as línguas mais faladas do mundo Pedemse mais verbas para a educação Nos campos de concentração nazistas se exterminaram milhões de judeus A partir do século XV descobriramse novos continentes Diariamente destroemse grandes porções da floresta amazônica Dá para imaginar um continente todo coberto por uma grossa colcha de lã e se descobrindo com uma mãozinha preguiçosa diz Vera E a floresta amazônica destruindose a si mesma é Sílvia agora Certamente a coitada se cansou de sofrer tanto nas mãos de seus exploradores Acho que ninguém nunca pensou em aplicar este teste nos gramáticos tradicionalistas diz Vera sorrindo Provavelmente mudariam de opinião Todas se divertem com a situação Irene retoma sua explicação Estas frases são tão ilógicas quanto por exemplo Tijolos macios devoraram o tático nariz da jabuticaba óssea Frases gramaticalmente bem construídas mas que não fazem sentido Não me venha falar em equivalências Mas os tradicionalistas têm um trunfo escondido na manga diz Vera de repente Eles dizem que estas frases estão corretas com o verbo no plural porque equivalem a outras frases Assim por exemplo Abatemse mil galinhas diariamente equivaleria a Mil galinhas são abatidas diariamente Eu não mexi nos livros da tia Irene e ela lança um olhar agudo na direção de Emília pág 137 mas me lembro muito bem das minhas aulas de gramática e lá eu aprendi que segundo a terminologia tradicional As tais roupas velhas do latim debocha Emília Segundo a terminologia tradicional retoma Vera em tom mais elevado estas duas frases estão na voz passiva quer dizer elas expressam uma ação que foi sofrida pelo sujeito da oração Quando a ação é praticada pelo sujeito a gente diz que a frase está na voz ativa E esta mesma terminologia tradicional diz que o se de todas essas frases é uma partícula apassivadora e que ela serve para criar uma oração passiva sintética em oposição à oração passiva analítica formada com o verbo auxiliar ser seguido do particípio passado do verbo principal Neste modo de ver as coisas portanto existe um sinal de igual entre os dois verbos Agora é Vera quem vai até a lousa e escreve Por isso é que os verbos teriam que estar no plural em ambas as situações conclui Sílvia enquanto Vera retoma seu lugar e põe meio palmo de língua para Emília como quem diz Eu também sei das coisas meu bem Mas Emília está disposta a brilhar esta noite e logo intervém Essa teoria é muito bonita cheia de nomezinhos complicados que dão a ela um ar de coisa importante e nela todas as peças se encaixam direitinho umas nas outras Mas esse encaixe só dá certo na teoria numa língua idealizada falada não se sabe exatamente por que povo de que planeta distante Não é mesmo Irene Mesmíssimo Emília responde Irene Quando confrontada com a língua viva falada todos os dias essa teoria apresenta uma série de rasgões causados pelos choques com a realidade Como assim Irene pergunta Sílvia Bom para começar não existe equivalência nenhuma entre aquelas duas formas Como bem disse a Verinha essa teoria é tradicionalista e eu estou aqui mesmo disposta a mostrar as coisas de um modo diferente e se Deus me ajudar mais lógico e coerente Aliás essa história de equivalência é sempre complicada pág 138 e quando alguém vem me falar de sinônimos eu fico logo toda arrepiada E por quê surpreendese Vera Porque cada vez que um falante da língua escolhe dizer X e abatemse são abatidas não Y é porque nesta escolha existe um intuito bem definido é uma opção que foi feita por algum motivo Por isso é que a língua oferece tantos recursos de expressão diferentes a começar pelo vocabulário que está sempre crescendo Na forma de organizar os elementos de uma frase também existem estas opções mas isso não quer dizer que sejam maneiras diferentes de dizer a mesma coisa Por isso não podemos considerar Abatese mil galinhas uma forma passiva Vera diz Emília em tom condescendente porque ao usar esta forma de expressão o falante está querendo enfatizar o ato de abater a ação de sacrificar as aves deixando marcado que alguém faz isso mesmo que esse alguém não seja nomeado o que está expresso pelo sujeito sujeitíssimo se Isso mesmo Emília concorda Irene Já em Mil galinhas são abatidas estamos diante de uma forma realmente passiva na qual se acentua o destino a que as galinhas estão sujeitas o sofrimento que lhes é imposto Sim porque passivo vem do latim passio passionis que significa sofrimento padecimento É daí que vem a nossa paixão no sentido religioso os sofrimentos de Cristo e no sentido afetivo estar apaixonado é sofrer de amor Se os tradicionalistas dizem que as duas formas são equivalentes é porque podemos substituir uma pela outra não é sugere Sílvia Será que essa substituição acontece sem problemas Faça você mesma o teste propõe Irene Substitua a nossa frase 1 pela sua forma passiva analítica e veja no que dá Sílvia medita uns instantes e depois diz Nessa padaria são comidos uns docinhos ótimos Correta gramaticalmente avalia Vera Sim concorda Irene mas como soa artificial dura pesada esta frase Imagine o clássico cartaz Vendese casas escrito São vendidas casas A frase perde totalmente seu efeito de comunicação imediata comercial Aliás Irene se você me permite de novo Emília com seu pág 139 ar de especialista eu encontrei num dos seus livros um trecho muito interessante a esse respeito Posso ler Por favor concede Irene mas primeiro diga o nome do santo e onde foi feito o milagre O livro se chama Dificuldades da língua portuguesa diz Emília consultando suas anotações e o autor é Manuel Said Ali Said Ali é um dos mais importantes filólogos brasileiros profundo conhecedor da nossa língua diz Irene Morreu há mais de quarenta anos mas suas lições são válidas até hoje O que diz ele sobre o nosso assunto Emília Emília lê Que bom saber que a minha sanidade mental está garantida exclama Irene Vejam só Said Ali escreveu isso num livro que foi publicado pela primeira vez em 1908 Lá ele propõe considerarmos se o sujeito da oração mas a força da gramática Alugase esta casa e esta casa é alugada exprimem dois pensamentos diferentes na forma e no sentido Há um meio muito simples de verificar isto Coloquese na frente de um prédio um escrito com a primeira das frases na frente de outro ponhase o escrito contendo os dizeres esta casa é alugada Os pretendentes sem dúvida encaminhamse unicamente para uma das casas convencidos de que a outra já está tomada O anúncio desta parecerá supérfluo interessando apenas aos supostos moradores que talvez queiram significar não serem eles os proprietários Se o dono do prédio completar no sentido hipergramatical a sua tabuleta deste modo esta casa é alugada por alguém não se perceberá a necessidade da declaração e os transeuntes desconfiarão da sanidade mental de quem tal escrito expõe ao público tradicional é tamanha que até hoje somos obrigados a fingir que as coisas não são assim pág 140 Despindo múmias e catando feijão Irene retoma Juntando nossas três explicações a manutenção da ordem canônica SVO da língua a ausência de sentido das frases com verbo no plural e a intenção que governa as escolhas do falante é que podemos dizer que 1o o pronome se em frases deste tipo não é uma partícula apassivadora mas sim o sujeito da oração e por estar no singular o verbo também deve estar no singular 2o conseqüentemente o verbo no plural torna a frase incoerente deixaa sem sentido ilógica 3o frases deste tipo não estão na voz passiva mas sim na voz ativa porque correspondem a uma clara intenção da parte do falante de enfatizar a ação praticada Uma explicação sintática uma explicação semântica e uma explicação pragmática resume Emília para espanto cada vez maior de Vera e de Sílvia Infelizmente lamenta Irene ainda há muita gente que insiste em vestir a nossa linda língua portuguesa do Brasil com aquelas vestes puídas verdadeiras ataduras de múmia mais de mil anos lembrou a Emília que envolvem o latim Gramáticos professores revisores ainda nos atacam com aquelas regras sem sentido Como você propõe que a gente classifique então o se pergunta Vera Talvez o mais simples e coerente fosse reconhecer neste se a mesma função que lhe é atribuída pela gramática tradicional em outras frases construídas com verbos que não pedem objeto E como a gramática classifica o se nestes casos pergunta Sílvia Ela diz que o se aqui é um índice de indeterminação do sujeito pág 141 responde Irene Poderíamos resolver toda a questão dizendo que é simplesmente um pronome pessoal usado para indicar um sujeito indeterminado Apoiado exclama Emília Vejam só uma coisa retoma Irene Durante milênios se acreditou que a Terra era plana e que o Sol e os demais astros giravam em torno dela Isso era uma crença uma lei e um dogma quem o contestasse era perseguido condenado e até queimado em fogueira vejase as histórias de Copérnico Galileu e Giordano Bruno A ciência porém acabou provando que aquela concepção estava errada Mas ela imperou por tantos séculos que até hoje um terço dos franceses acreditam que a Terra permanece imóvel no centro do sistema solar Não acredito surpreendese Vera Logo os franceses Pois é uma estatística perfeitamente confiável elaborada por institutos de pesquisa muito sérios da França confirma Irene Essa história para mim é muito parecida com a dos gramáticos que ainda insistem no dogma que diz que se não pode ser sujeito e que por isso condenam à fogueira da reprovação todos aqueles que tentam seguir outro caminho Eu mesma já tive de brigar muito com revisores de editoras e revistas que tentaram corrigir livros e artigos meus em que apareciam frases como Alugase casas Graças a Deus contamos com aliados importantes Chorase gritase esperneiase mas não se resolve nada No Brasil trabalhase muito e ganhase pouco Vivese feliz quando se ama Ah sim E quem são pergunta Sílvia Um deles é João Cabral de Melo Neto responde Irene No seu poema Catar feijão ele nos ensina Que bonito comenta Vera João Cabral de Melo Neto é considerado um dos maiores poetas da nossa língua Além disso era membro da Academia Brasileira de Letras uma instituição cujo objetivo principal é supostamente pág 142 definir as regras do bom português e zelar por elas Ora se ele pôde escrever jogase os grãos como levar a sério aqueles ranzinzas que ainda teimam em nos corrigir Vamos deixar de ser passivas então e fazer valer a nossa voz ativa exclama Emília entusiasmada Irene aplaude e é acompanhada por Sílvia e Vera Agora cama decreta a professora Chega de atividade por hoje e vamos nos entregar passivamente ao nosso mais que merecido sono pág 143 Catar feijão se limita com escrever jogase os grãos na água do alguidar e as palavras na da folha de papel e depois jogase fora o que boiar A BRUXA ESTÁ SOLTA fenômenos decorrentes da analogia Desvendando o mistério a manhã seguinte quando desperta Vera percebe que a cama de Emília está vazia e que Sílvia está se espreguiçando como quem acaba de acordar Onde será que está a Emília perguntase Vera em voz alta Não tenho idéia responde Sílvia antes de um longo bocejo Eu ainda não consigo acreditar no que aconteceu ontem diz Vera Acreditar no quê Ora Sílvia Vai me dizer que você achou normal a Emília de repente começar a entender tanto de lingüística quanto a tia Irene e ter todas aquelas idéias sobre o pronome se a voz passiva e tudo mais Bem normal normal não Mas vai ver que de repente era um assunto que ela já tinha estudado antes sei lá tenta explicar Sílvia Ou então você está com ciúmes porque ela roubou a cena e ganhou tantos elogios da sua tia Muito me admira você estudante de Psicologia se sair com uma teoria tão mixuruca e vulgar contraataca Vera Eu com ciúmes E logo de quem Da tonta da Emília Depois de uma pequena pausa ela retoma Tenho certeza que nessa história tem dente de coelho Para dizer a verdade diz Sílvia eu ontem percebi uma coisa meio estranha Ah foi O quê animase Vera N Me pareceu que até determinado momento da aula a Irene também estava surpresa com a súbita iluminação da Emília responde Sílvia Mas de repente por alguma razão eu senti que surgiu uma cumplicidade entre elas Aliás me lembro bem de ter visto a Irene dar uma piscadinha rápida para a Emília Então não é loucura minha Graças a Deus aliviase Vera Mas eu não consigo imaginar o que foi que aconteceu A Emília ontem passou a tarde toda trancada na biblioteca da pág 144 Irene enquanto eu e você cuidávamos da casa do almoço e do jantar recorda Vera Pode ser que ela tenha aprontado alguma coisa por lá Afinal ela até citou um livro que encontrou na estante da sua tia Vera se detém alguns instantes para meditar De repente sorri como se alguma idéia houvesse surgido em sua mente Hum É isso mesmo Como foi que não pensei nisso antes Que foi interessase Sílvia Conseguiu descobrir o mistério Acho que sim responde Vera e conta a Sílvia a idéia que lhe ocorreu Mais tarde depois do almoço estão todas à mesa tomando um cafezinho Eulália e Irene se levantam e se retiram para a sala É o momento que Vera esperava Com ar sério voltase para Emília e lhe pergunta Emília ontem no final da aula você disse que a classificação do pronome se como sujeito da oração tinha três explicações possíveis de três tipos diferentes não foi Foi responde Emília apanhada de surpresa num tom que fica a meio caminho entre uma pergunta e uma resposta Foi confirma Sílvia Eu até anotei uma explicação sintática uma explicação semântica e uma explicação pragmática Pois é retoma Vera Foi justamente essa última palavra que eu não entendi Afinal foi você quem usou e não a tia Irene Emília sorve um longo gole de café temendo que Vera lhe faça uma certa pergunta Mas Vera não vai perder a chance O que você quis dizer exatamente com explicação pragmática Emília depõe a xícara sobre o pires Sílvia percebe que ela está nervosa Até empalideceu um pouco Bom é pragmático você sabe é assim quando bem tem a ver com é mais ou menos o mesmo que Sim incentivaa Vera firmando bem o olhar no rosto da amiga Emília engole em seco Sílvia tem vontade de rir mas controla se Vera exige pág 145 E então Emília O que você entende por uma explicação pragmática Prag mática gagueja Emília Eh hum pragmática é aquilo que você sabe na gramática quando a gente quer Neste momento Irene aparece na cozinha e percebe o que está acontecendo O que foi Verinha Por que a Emília está com essa cara de quem viu assombração É Sílvia quem responde Não é nada não Irene A gente só está pedindo à Emília para explicar de novo algumas coisas que ela tão brilhantemente ensinou ontem à noite Irene leva a mão à boca para esconder o riso Bem que a Sílvia me disse que tinha desconfiado de alguma coisa exclama Vera Vocês andaram combinando tudo não foi Irene ri e pergunta Combinando o quê Qual a sua hipótese Ora hipótese nenhuma reage Vera Apenas descobri a verdade E qual é a verdade cobra Emília Muito simples querida responde Vera Você ontem muito mexeriqueira que é fuçou no computador da tia Irene até descobrir o capítulo do livro dela que trata do pronome se Decorou tudo porque eu conheço a fama da sua memória e ótima atriz que é encenou aquele número tentando convencer a gente de seu novo amor pela análise sintática Irene ri ainda mais Foi ou não foi pergunta Vera Não foi bem assim defendese Emília Ah não graceja Sílvia Então como foi Ora eu descobri sim o capítulo mas apenas li me interessei pelo assunto aprendi o que estava escrito lá e guardei na memória Não quis encenar coisa nenhuma Não quis não é ironiza Vera Então por que não confessou logo Por que ficou dizendo que tudo aquilo era fruto da sua reflexão Emília engasga de novo Irene pára de rir sentase à mesa e diz pág 146 Você está certa Verinha a Emília é mesmo ótima atriz Tem uma memória excelente para decorar textos Na verdade eu também fiquei espantada quando ela começou a dar as explicações mas logo reconheci o meu próprio texto e deixei que ela continuasse A culpa da brincadeira também foi minha Mas que foi divertido foi não é gabase Emília aproveitando a cumplicidade recémrevelada de Irene Consegui enganar vocês direitinho Vera até então sisuda descontrai o rosto e sorri Conseguiu mesmo Juro que fiquei muito espantada quando você desmontou toda a minha análise segundo a gramática tradicional Fiquei me sentindo um verdadeiro dinossauro das teorias lingüísticas Todas sorriem Sílvia então se lembra Mas a nossa dúvida sobre a explicação pragmática é verdadeira Irene O que é exatamente isso Não é muito simples responde Irene Mas podemos tentar A explicação sintática como eu disse ontem aliás como a Emília disse ontem baseiase na sintaxe do enunciado quer dizer na organização dos termos dentro da oração na combinação das palavras entre si para formarem um enunciado Esta é a mais fácil reconhece Vera A explicação semântica tem a ver com o significado das palavras com o que elas querem dizer retoma Irene Por exemplo o enunciado vendemse casas apresenta um problema semântico porque o verbo vender não pode ser praticado pelo sujeito casas Casas não podem vender nada só um ser humano pode vender alguma coisa Entendi comenta Sílvia E a explicação pragmática A explicação pragmática tenta ver o relacionamento do falante do usuário da língua com aquilo que ele diz responde Irene Cruzes Que rolo é esse pergunta Emília Foi o que eu disse ontem sobre o intuito ou a intenção do falante esclarece Irene E que você Emília aliás repetiu muito bem Se bem lembro você disse que abatese mil galinhas não era uma oração na voz passiva porque ao usar esta forma de expressão o falante está querendo enfatizar o ato de abater a ação de sacrificar pág 147 as aves deixando marcado que alguém faz isso mesmo que esse alguém não seja nomeado o que está expresso pelo sujeito sujeitíssimo se É mesmo reconhece Emília eu disse exatamente assim só que não tinha idéia de que isso é que era uma explicação pragmática Pois então retoma Irene essa explicação baseada no uso que o falante faz da língua em determinadas circunstâncias com determinado intuito e para obter determinado efeito é uma explicação de ordem pragmática Satisfeitas pergunta Emília dirigindo um olhar sapeca às duas amigas Muito satisfeitas responde Vera Só acho que a tia Irene de agora em diante tem de tomar mais cuidado com o computador dela Deixar trancado sei lá usar uma senha para que certas pessoas não fucem onde não são chamadas Sugestão aceita diz Irene sorrindo Que tal agora vocês irem passear um pouco Afinal já já vocês vão embora Nem me lembre tia suspira Vera Estas férias estão sendo tão gostosas O nome da bruxa Na escolinha à noite Irene começou o batepapo dizendo No domingo passado vocês conheceram Dona Assimilação e viram como ela pode agir causando mudanças irreversíveis na língua falada Hoje eu gostaria de apresentar outra figura interessante uma verdadeira bruxa ou fada que vive solta por aí mandando e desmandando na língua nossa de cada dia O nome dela é Analogia Não parece nome de bruxa corrige Emília parece nome de atriz de cinema italiano Anna LOggia Seja como for prossegue Irene a analogia sofre da mesma mania da assimilação acho até que são primas As duas fazem seus feitiços com as semelhanças que encontram na língua A diferença é que a assimilação tenta tornar semelhantes coisas que estão bem perto uma da outra Vimos isso com as vogais e semivogais dos ditongos ou e EI Já a analogia usa um método diferente Quando pág 148 vamos abrir a boca para falar a analogia sopra nos nossos ouvidos alguma coisa parecida que se mistura com o que íamos falar fazendo assim com que deixemos escapar uma forma nova Como é que se define cientificamente a analogia pergunta Vera A analogia é a mudança lingüística causada pela interferência de uma forma já existente responde Irene Parece complicado diz Sílvia Mas é muito simples assegura Irene A melhor maneira de explicar como sempre é com exemplos E o que não falta na língua portuguesa nem em língua nenhuma são exemplos de analogia Aliás ela é responsável por uma quantidade imensa de fenômenos lingüísticos tantos que seria impossível mostrálos todos aqui O roubo das vogais fechadas O primeiro exemplo de ataque da analogia é um feitiço tão forte que seus resultados são audíveis não só na língua não padrão mas também na boca de muita gente que se diz instruída e educada Manda ver diz Emília Existe na língua portuguesa uma alternância vocálica muito interessante entre vogal fechada e vogal aberta na relação nome verbo Vejam só este quadro E Irene distribui uma folha onde está impresso Quadro 22 pág 149 Pouco antes de vocês nascerem explica Irene os substantivos desta lista usavam um lindo acento circunflexo chamado acento diferencial exatamente porque ajudava a diferenciar na escrita a vogal fechada presente nos nomes da vogal aberta presente na sílaba tônica dos verbos correspondentes É mesmo confirma Vera eu já percebi isso em livros impressos nos anos 60 Só que na última reforma ortográfica de 1971 esse acento circunflexo caiu diz Irene porque se concluiu que nenhum falante de português se confundiria na hora de pronunciar essas palavras Meus amigos estrangeiros que têm de aprender português ficam perdidinhos com essa alternância vocálica que é característica da nossa língua E onde é que a analogia vai entrar nessa história quer saber Sílvia Ela já entrou responde Irene e fez surgir o seguinte quadro substantivo verbo substantivo verbo o almoço eu almoço o jogo eu jogo o apego eu me apego o namoro eu namoro o carrego eu carrego o peso eu peso o choro eu choro o rolo eu rolo o dobro eu dobro o selo eu selo o esmero eu me esmero o soco eu soco o forro eu forro o sossego eu sossego o gelo eu gelo o troco eu troco o gosto eu gosto o zelo eu zelo Quadro 23 substantivo verbo o espelho eu espelho o estôr eu estôr o fêcho eu fêcho o póso eu póso o rôbo eu róbo E ninguém vá pensar que estou falando aqui de português nãopadrão adverte Irene Nada disso Essas formas podem ser ouvidas diariamente nas melhores lojas nas salas de aula na televisão e no rádio pronunciadas por gente das mais diversas classes sociais e níveis de escolaridade Todas porém são condenadas como erro pela gramática tradicional Essa gramática tradicional adora condenar nunca vi comenta Emília O caso de estouro estóro pouso póso e roubo róbo nós já pág 150 vimos quando tratamos da assimilação relembra Irene Aqui a analogia aproveitou o trabalho feito antes pela prima para depois entrar em ação O grande prazer da analogia é eliminar as exceções e criar regularidades quer dizer fazer com que o maior número possível de fenômenos da língua se enquadrem dentro de regras que já se mostraram eficientes antes Já sei arrisca Emília ela é uma espécie de cão pastor o que estiver escapando do cercado da regra ela manda lá para dentro Isso mesmo Emília aprova Irene Ora existe uma regra que diz substantivo vogal fechada verbo vogal aberta É uma regra que se aplica a uma grande quantidade de casos Por que então não aplicála também aos poucos que restam para ficar tudo enquadradinho regular análogo Quer dizer que o certo pela gramática tradicional é dizer eu fêcho o fêcho pergunta Sílvia É confirma Irene Gente eu nunca ouvi ninguém dizer eu fêcho admite Vera Os nordestinos dizem eu fêcho comenta Irene Então eles falam mais certo conclui Sílvia Não rebate Irene eles falam apenas mais antigo a fala deles ainda conserva esse acento fechado no verbo como também a fala de pessoas de mais idade aqui do Sudeste E qual o problema com espêlhoespélho pergunta Vera O verbo espelhar segundo a gramática tradicional deve ser conjugado com E tônico fechado Aliás esta regra vale para todos os demais verbos terminados em ELHAR ECHAR e EJAR A única exceção é invejar que tem E aberto eu invéjo Só que a analogia não deixa valer a regra tradicional não é diz Emília Não deixa mesmo confirma Irene Eu me lembro até hoje do quanto a minha pobre professora de canto orfeônico lutava para que nós crianças ao cantarmos o verso do Hino Nacional que diz e o teu futuro espelha esta grandeza pronunciássemos espêlha e não espélha que nos parecia muito mais natural Quer dizer que a analogia não respeita nem as crianças admirase Vera pág 151 As crianças são as vítimas preferidas dela diz Irene sorrindo Afinal é ou não é uma bruxa E a analogia que faz as criancinhas dizerem eu fazi se eu sesse eu sabo eu pido porque são formas análogas às formas regulares que elas já conhecem Que gracinha diz Sílvia E quanta gente adulta não está dizendo todo dia eu planejo eu Veléjo eu alméjo eu bocêjo eu farejo lembra Vera Todas vítimas da analogia E a analogia não se contenta apenas com os substantivos alerta Irene A mesma regra de vogal fechadavogal aberta também existe na relação adjetivoverbo como por exemplo em estou secaela seca estou soltaela solta Lá vem então a analogia novamente de mãos dadas com a assimilação de doido surge eu endóido de frouxo fróxo aparece eu afróxo de inteiro intêro brota eu me intéro duas formas pág 152 É como eu digo vivendo e aprendendo suspira Emília tomando nota em seu bloquinho Chega então a analogia e aproveitando esses exemplos faz com que muitas pessoas apliquem a regra aos verbos trazer chegar e mandar entre outros produzindo frases do tipo Ele já tinha trago o livro que pedi Quando eu saí você ainda não tinha chego Se você tivesse mando o que lhe pedi Eu já ouvi isso sorri Vera e tem gente que enche a boca para falar assim como se fosse o português mais camoniano possível Esse caso de analogia tem um nome especial explica Irene Chamase hipercorreção Você quer dizer excesso de correção admirase Sílvia Isso mesmo confirma Irene Não é curioso Muita gente erra quando tenta acertar demais Que delícia saber disso comemora Emília Hipercorreção adorei Vou esfregar isso na cara da nossa diretora toda vez que ela vier me corrigir Pois é muitos falantes escolarizados constrangidos pela suposta lei que manda usar somente os particípios irregulares aplicam essa regra a verbos que no português clássico literário só conhecem os particípios regulares explica Irene Um desses particípios nascidos da hipercorreção analógica é o do verbo pegar que de tão usado já entrou até para o dicionário classificado como brasileirismo embora sob protestos de muitos gramáticos conservadores Hoje em dia a única dúvida que existe é saber se o certo é dizer pêgo ou pégo Os portugueses não fazem idéia do que significa essa palavrinha nascida aquémmar E no português nãopadrão tia A analogia também apronta das suas No PNP responde Irene a analogia também age sobre esses particípios irregulares mas de forma contrária ao invés de criar novas formas irregulares ela faz surgir novas formas regulares análogas às existentes na grande maioria dos verbos Assim naqueles verbos que na normapadrão só admitem o particípio passado irregular a analogia vai agir criando formas regulares Ela vai até a lousa e escreve pág 153 Quadro 24 Estou vendo mais uma vez diz Sílvia que o PNP é mais coerente porque tenta aplicar a regra mais produtiva às exceções que constituem raridade enquanto o PP age exatamente ao contrário tentando transformar a exceção em regra Conclusão exata aprova Irene E olha que eu nem fui mexer no seu computador diz Sílvia piscando um olho para Emília que lhe dirige um muxoxo Irene sorri e retoma Uma comparação interessante entre as formas diferentes de criação analógica verificadas no PP e no PNP diz respeito aos verbos pôr e fritar O verbo pôr tem uma forma estranha irregular quando comparada aos demais verbos da língua cujos infinitivos sempre terminam em AR ER ou IR Para dar um jeito nisso o PNP baseandose na forma conjugada eu ponho criou o infinitivo ponhar regular e muito mais fácil de ser conjugado Afinal se infinitivo particípio passado PP PNP abrir aberto abrido cobrir coberto cobrido dizer dito dizido escrever escrito escrivido fazer feito fazido podemos dizer eu ganhoganheiganhava e se existe a forma eu ponho por que não diríamos também eu ponhei eu ponhava É assim que a analogia procede E o que aconteceu com fritar quer saber Emília Dessa vez quem não se deu bem com um verbo foi o portuguêspadrão responde Irene E o verbo esquisito é frigir Imagine alguém dizendo Eu frijo batatas no óleo quente A baiana freje o acarajé no azeite de dendê Parece outra língua diz Emília Não é mesmo retoma Irene Ora esse verbo frigir é um daqueles que tem um particípio passado irregular frito Pronto pág 154 era tudo que a analogia precisava para fazer nascer o verbo fritar saborosamente regular E o verbo frigir Aonde foi parar pergunta Sílvia O verbo frigir ficou restrito à deliciosa expressão no frigir dos ovos responde Irene e ao nome da panela que usamos para fritar a frigideira Irene conclui a aula dizendo Esses foram apenas uns poucos exemplos da festa que a analogia tem feito e continua a fazer na língua Agora que vocês já conhecem os truques dessa bruxa fiquem bem atentas para não caírem na esparrela de achar que alguém está cometendo um erro quando na verdade está simplesmente seguindo a tendência natural que a língua têm à analogia pág 155 A FÔRMA A NORMA E O FUNIL mudança variação e problemas no ensino da língua O perigo de um novo mito o dia seguinte na hora do café da manhã Sílvia está tão calada e concentrada que Emília não pode deixar de perceber Com a gaiatice de sempre comenta Ah que coisa linda é o amor não é gente e pisca marotamente para Vera Por que esse comentário Emília pergunta Irene Porque a Sílvia acordou tão borocoxô que só pode ser saudades do namorado Ouvindo seu nome Sílvia parece despertar de um sono profundo Hem Alguém me chamou Todas riem Eulália responde A Emília disse que você deve estar com saudade do seu namorado por isso está tão quieta Saudades Eu Ah não quer dizer sim Mas não é por isso que estou calada É que desde ontem estou pensando umas coisas e queria mesmo tirar umas dúvidas com você Irene Emília não perde a deixa Ai meu Deus que garota mais CDF Quer ter aula até na hora do café da manhã Irene sai em defesa de Sílvia Não tem hora marcada para isso dona Emília Toda hora é hora de investigar descobrir e aprender É o que eu vivo dizendo aos meus alunos safase Emília sorrindo Quais são suas dúvidas Sílvia interessase Vera N No primeiro dia de aula Irene você enfatizou muito a questão de toda língua ser na verdade um conjunto de variedades a Emília até falou que a língua é um balaio de variedades Isso mesmo confirma Irene Só que todo esse tempo a gente tem falado de português padrão e português nãopadrão como se só existissem essas duas pág 156 variedades de língua no Brasil Você alertou a gente contra o mito da língua única Não existe aí o perigo de um novo mito o mito de duas línguas únicas Não está havendo uma contradição nisso Irene sorri e pisca para Vera Agora ela me pegou Por quê tia Se bem me lembro você também disse que o PNP apresentava variedades conforme as diversas regiões geográficas classes sociais níveis de escolarização e assim por diante mas que existiam alguns grandes traços lingüísticos que eram comuns a todas essas variedades Obrigada querida sobrinha por tentar me defender Mas a dúvida da Sílvia é muito bem fundada Se como você lembrou existem muitas variedades de português nãopadrão e se o que até agora eu venho chamando de o PNP é o conjunto de traços lingüísticos comuns a todas elas o que se pode concluir é que o PNP não existe completa Sílvia Irene confirma balançando a cabeça Ai gente que confusão na minha cabeça queixase Emília Problemas filosóficos de barriga vazia Eu ainda não abri minha venda não engatei a primeira não pus o pé no mundo Vocês conseguem esperar até eu tomar pelo menos uma boa xícara de café preto Vera sem se incomodar com Emília pergunta Tia que história é essa Como assim o PNP não existe O PNP não existe Verinha simplesmente porque o PP também não existe Agora ficou melhor ainda suspira Emília servindose de café Tivemos uma semana toda de aulas sobre nada Sílvia no entanto parece satisfeita Quer dizer que eu não estou ficando maluca Graças a Deus Graças a Deus eu tive a sorte de receber alunas tão inteligentes nestas férias Só que a Emília tem razão vamos terminar nosso café primeiro Depois a gente pode dar um pulinho lá na escolinha e pensar melhor sobre essas coisas É claro que todas tratam de terminar de comer o mais depressa pág 157 possível Emília ainda reclama de ter de esperar que tirem a mesa e lavem a louça Está curiosíssima Um só padrão mas inúmeras variedades Reunidas finalmente na sala de aula Irene não demora a dizer Antes que vocês pensem que andei mentindo ou dando aula sobre nada como sugeriu nossa querida Emília acho bom explicar que não aconteceu nem uma coisa nem outra Quando eu disse ainda há pouco na cozinha que o PNP não existe porque o PP também não existe eu estava tentando mostrar que a Sílvia está certíssima em chamar a atenção para o perigo do mito das duas línguas únicas Não existe uma única variedade nãopadrão existem muitas e dizer quantas é até impossível já que como vimos para definir bem uma variedade temos de levar em conta um número grande de elementos lingüísticos e sociais Ora se cada falante tem a sua língua e se temos centenas de milhões de falantes no Brasil então também temos centenas de milhões de línguas não é Exatamente concorda Sílvia Quando eu passei a falar do PP e do PNP eu estava tentando reunir sob esses rótulos as regras que constituem a chamada normapadrão e as características comuns às variedades consideradas nãopadrão O mais coerente no caso das nãopadrão seria falar dos PNP sempre no plural E no caso do PP pergunta Vera Existe uma variedade que seja a variedadepadrão Não No caso do padrão a coisa fica um pouco mais complicada Eu já desconfiava suspira Emília abrindo seu bloquinho de notas Manda ver Irene medita um pouco respira fundo e retoma Não existe uma variedadepadrão E por que não existe Porque para nos referirmos a uma variedade de língua é preciso também obrigatoriamente nos referirmos aos seres humanos que falam essa variedade Ora quando falamos de padrão não estamos falando de uma variedade de língua viva concreta palpável que pág 158 a gente possa gravar em fita ou coletar em textos escritos O padrão é sempre um modelo uma referência uma medida um critério de avaliação Um padrão nunca é a própria coisa a ser medida avaliada Por isso usar a expressão variedadepadrão chega a ser um paradoxo Será que estou entendendo diz Emília Veja bem Emília o molde de um vestido nunca é o vestido mesmo não é Ele nem é feito de tecido em geral é feito de papel ou papelão Mesmo que a gente cole ou costure todos aqueles pedaços de papel ou papelão o resultado nunca será um vestido que alguém possa usar certo Certo O mesmo acontece com o padrão da língua Existe um conjunto enorme de regras para o uso da língua que compõem uma norma um padrão de língua mas que na realidade não é uma variedade pois ninguém obedece rigidamente a todas aquelas regras ali prescritas nem mesmo o falante mais culto mais escolarizado mais preocupado em controlar sua fala ou sua escrita Esse falante pode até conseguir respeitar uma boa porcentagem das regras padronizadas mas nunca respeitará todas elas Então Irene se estou entendendo não existe um portuguêspadrão de um lado e um português nãopadrão do outro mas sim a língua com todas as suas variedades de um lado e uma norma ou um padrão do outro É isso pergunta Sílvia Precisamente Sílvia Seria possível a gente falar da diferença entre o real e o ideal tia Porque as variedades lingüísticas existem concretamente eu falo uma a Eulália fala outra cada um de nós fala uma variedade ou mais Essas variedades como eu já tenho estudado na faculdade podem ser registradas gravadas coletadas Já o padrão por não ser falado por ninguém seria na verdade aquela língua ideal que a gente tem como um modelo abstrato do que é bom e correto Seria algo assim Sim Verinha essa sua análise está muito boa ou pelo menos coincide com meu modo de ver as coisas As variedades da língua são reais e concretas A normapadrão é um ideal de língua uma abstração pág 159 E o que são as gramáticas normativas Elas são o molde para a gente fazer o vestido pergunta Emília Sim responde Irene As gramáticas normativas tentam ser um molde Só que o uso que se faz delas em geral é uma costura às avessas Era vez de pegar o molde para com ele cortar o tecido e depois montar o vestido os normativistas e o ensino tradicional baseado neles fazem o contrário pegam um uso real e concreto da língua um vestido já pronto e vão medir e avaliar esse uso para ver se ele está de acordo com o molde preestabelecido Já sei arrisca Emília De um lado está toda a massa de língua produzida pelos falantes Do outro está a fôrma da gramática normativa O gramático quer que a gente faça nosso bolo sair exatamente como manda a fôrma Aposto que essa fôrma é bem quadradinha Se o falante deixar escorrer um pouco de massa para o lado e o bolo sair um pouquinho menos quadrado ele será reprovado Como sempre Emília sua comparação me parece ótima sorri Irene A normapadrão é isso mesmo uma fôrma um molde um gabarito uma régua Quem não faz como manda o figurino está fugindo do padrão da norma Está sendo um anormal completa Vera Está desobedecendo o patrão sugere Emília lembrandose do primeiro dia de aula Quem é falante culto Irene pega uma régua canetas hidrográficas e numa folha de papel desenha esta figura pág 160 Conforme vocês mesmas sugeriram podemos dizer que o que existe de um lado em termos de representação ou imaginário lingüístico é uma normapadrão ideal inatingível e do outro lado em termos de realidade lingüística e social a massa de variedades reais concretas como se encontram na sociedade Como tentei mostrar no desenho essas variedades não se encontram isoladas umas das outras elas não são coisas prontas e acabadas de contornos definidos Elas têm muitas semelhanças e algumas diferenças entre si Elas têm contatos umas com as outras elas representam um espectro contínuo ou simplesmente um continuum como se diz nas ciências sociais Por que você fez o desenho desse modo Pode explicar o que essas coisas representam pede Emília Claro O quadrado preto no alto é a normapadrão é a fôrma à qual supostamente todos os falantes da língua têm de se adaptar na hora de usar a língua Aproveitei sua sugestão Emília A figura embaixo do quadrado representa a gama de variedades existentes na sociedade Por que as cores vão assim do mais claro para o mais escuro num dégradé tia Porque eu quis mostrar o continuum de variedades que existe na realidade lingüística brasileira As variedades mais escuras são aquelas que mais se aproximam da normapadrão Como o padrão é um ideal e o ideal cem por cento perfeito é sempre inatingível fiz questão de deixar um espaço entre as variedades cultas e a normapadrão um espaço que separa a realidade social da representação imaginária As variedades mais claras são aquelas que mais se afastam das regras prescritas pela normapadrão das regras que as gramáticas normativas dizem ser as certas E por que você escreveu culta e culta nos extremos da figura de baixo pergunta Emília Porque esse é o critério mais seguro para classificarmos as variedades lingüísticas no Brasil Os pesquisadores engajados nos grandes projetos de pesquisa lingüística do português brasileiro chegaram à conclusão de que é o nível de escolaridade o principal fator a ser levado em conta na hora de classificar um falante e sua variedade Nesses projetos o rótulo falante culto é aplicado ao indivíduo que tem curso superior completo pág 161 Ai que triste meu Deus lamenta Emília Quer dizer que eu não sou uma falante culta Pelos critérios dos pesquisadores Emília ainda não responde Irene Isso é revoltante Só depois que eu terminar meu curso na faculdade é que vou poder ser classificada de culta Pode parecer arbitrário Emília mas para empreender um projeto de pesquisa que tenha algum rigor científico é preciso estabelecer critérios que apresentem um mínimo de objetividade Se não for assim cada pesquisador poderá escolher o informante que quiser baseado em suas próprias noções subjetivas de culto Eu tenho um tio por exemplo que só cursou até o segundo grau Sempre trabalhou como funcionário público da prefeitura de uma cidadezinha do interior Mas aprendeu sozinho três ou quatro línguas estrangeiras tem um vasto conhecimento de literatura possui uma biblioteca invejável escreve contos e poemas que já foram até premiados em diversos concursos Mas não poderia ser classificado de falante culto porque não se diplomou completa Vera Exatamente Eu considero esse meu tio um homem extremamente culto mais até do que muita gente por aí que cursou universidade e se formou mas um outro lingüista pode achar que não Por isso para manter a objetividade do trabalho se estabelece um critério que todas as pessoas envolvidas na pesquisa terão de respeitar Emília faz um muxoxo mas acaba se conformando com sua qualificação de ainda não culta E por que foi escolhido esse critério da escolaridade tia Porque ele dá conta de características próprias da sociedade brasileira Verinha Nos Estados Unidos por exemplo a cor da pele costuma ser um elemento decisivo para a classificação de uma variedade lingüística o inglês falado pelos negros principalmente pelos que vivem em comunidades mais ou menos fechadas os chamados guetos dentro das grandes cidades americanas tem características lingüísticas muito particulares que não aparecem no inglês dos brancos Em outras sociedades como a japonesa existem pág 162 diferenças bastante importantes entre a língua falada pelos homens e a língua falada pelas mulheres Já na Inglaterra o que se leva em conta em geral é a classe social a que o falante pertence É tradicional dividir a sociedade inglesa em três grupos bem distintos a working class a classe operária a middle class a classe média e a upper class a classe superior Essa divisão e esses nomes têm a ver com a realidade social britânica mas já não funcionariam do mesmo modo na análise do português do Brasil Além disso na Inglaterra a normapadrão recebe o pomposo nome de Queens English inglês da Rainha Inglês da Rainha espantase Emília Essa é muito boa Falar de inglês da Rainha me parece uma referência explícita às relações que existem entre a normapadrão e o poder político não é Irene observa Sílvia Isso mesmo Por isso o lingüista Einar Haugen disse que a elite dominante além de poder afirmar como o rei francês Luís XV o Estado sou eu também pode dizer língua é a minha o que o resto do povo fala não é língua é dialeto jargão patoá algaravia ingresia palavras que têm todas um sentido depreciativo pejorativo muito marcado Você estava explicando por que o critério da escolaridade foi escolhido para definir os falantes cultos recorda Vera No nosso país Verinha infelizmente o acesso à escolarização formal acompanha a péssima distribuição da riqueza nacional Em muitos países mesmo as pessoas das camadas sociais menos privilegiadas têm acesso à educação formal Nesses lugares existe uma verdadeira democratização do ensino No Brasil isso já não acontece Aqui embora o ensino primário seja obrigatório por lei quanto mais pobre o cidadão menor é sua chance de conseguir estudar E quanto menor o índice de escolaridade menores as possibilidades de conseguir um emprego bem remunerado Por isso temos uma multidão de pobres e miseráveis vivendo em condições subumanas que são ao mesmo tempo uma multidão de analfabetos A média de escolaridade do brasileiro é de quatro anos e meio muito baixa para um país que apresenta um dos mais importantes parques industriais do mundo O Brasil tem a décima economia do planeta mas também é o sétimo colocado pág 163 entre os países com maior número de analfabetos segundo informações da UNESCO Eu tenho lido muita coisa sobre isso na imprensa confirma Sílvia E mesmo difícil ser professora numa sociedade como a nossa onde tudo conspira contra a educação a começar do governo Por tudo isso é que muitos lingüistas brasileiros optaram pela classificação das variedades lingüísticas de acordo com o grau de escolaridade dos falantes prossegue Irene Verificouse que os negros e os brancos brasileiros não apresentam diferenças lingüísticas sensíveis em suas variedades o mesmo acontecendo com as demais etnias que compõem nosso povo Assim também acontece com homens e mulheres O que vai determinar a classificação das variedades é a escolarização Supõese que a pessoa que fez todo o percurso da educação formal passando pelos onze anos de ensino fundamental e médio mais os quatro ou cinco anos de um curso superior teve um contato ininterrupto com as formas lingüísticas consideradas padrão foi obrigada a ler muito a escrever muito a falar em seminários a ouvir aulas e palestras etc Tudo isso é suficiente para que seja classificada como um falante culto Mas classificar a fala de alguém como culta não significa dizer que essa pessoa respeita a normapadrão o tempo todo em todas as situações não é tia Muito bem lembrado Verinha A classificação de uma variedade como culta é uma questão de grau de freqüência Classificamos como culta aquela variedade na qual as formas consideradas padrão ocorrem com maior intensidade O falante culto como qualquer falante está sujeito a todo tipo de influências externas e internas Ele sofre pressão do ambiente em que se encontra do tipo de situação da hierarquia social em que se acha em relação às demais pessoas com quem está interagindo Essas são as influências externas diz Vera Sim Além disso ele pode também estar sujeito a todo tipo de instabilidade psicológica tensão medo estresse cansaço físico sono angústia e assim por diante Tudo isso interfere no momento da produção lingüística Às vezes o contexto formal ou tenso da interação pode leválo à hipercorreção fazendo pág 164 ele dizer houveram coisas estranhas eu penso de que não se deve fazer isso etc Outras vezes ele pode estar num ambiente totalmente descontraído com pessoas de sua intimidade e por isso não se preocupa em vigiar sua fala produzindo enunciados como as menina tudo veio você quer que eu faço isso etc Se ele for de origem rural e estiver convivendo com pessoas do mesmo lugar pode ser até que queira usar formas como véio muié futebor para criar o que chamamos de lealdade lingüística numa atitude de empatia de solidariedade em relação a seus interlocutores Essas coisas a gente percebe ao conviver com falantes cultos em diferentes situações e contextos de uso da língua e no nosso próprio comportamento lingüístico como falantes escolarizadas que somos É verdade confirma Sílvia Eu tenho um professor na faculdade que quando está em sala de aula parece uma gramática de carne e osso de tão caprichado que fala Mas quando sai com a gente depois da aula para beber num barzinho ele fica descontraído e fala igualzinho ao caipira mais caipira que se possa imaginar Ele nasceu e cresceu num sítio no interior do estado Pois é retoma Irene O que caracteriza um falante culto é justamente essa facilidade que ele tem de mudar de registro como se diz em Lingüística Ele pode passear tranqüilamente por todo o espectro de variedades por todo o continuum conforme lhe pareça mais adequado às suas intenções comunicativas Por isso é tão importante permitir a todos os falantes o acesso à escola e à norma padrão Esse conhecimento permitirá que a pessoa escolha a variedade ou o estilo que quer usar num dado contexto numa dada situação O falante culto é como alguém que tem uma quantidade bem grande de roupas dos mais variados estilos e na hora de se vestir vai escolher aquela que ele acha mais apropriada para a ocasião sugere Emília Já o falante menos culto tem um guardaroupas pobrezinho com duas ou três peças que ele tem de usar o tempo todo em todas as situações Gostei da comparação Emília Se você permitir vou usar no meu livro citando você é claro pág 165 Emília estampa um sorriso de satisfação que vai de orelha a orelha Ai tia você não vê que a Emília já é metida o bastante Precisa ficar bajulando o ego dessa criatura Desse jeito ela vai ficar ainda mais ganjenta como dizia o Monteiro Lobato para falar da Emília dele A inveja não é mesmo uma coisa tristíssima diz Emília em tom piedoso Pressão conservadora e mudança inovadora Observando melhor o desenho na lousa Sílvia comenta É muito pequena a parcela da nossa população que consegue alcançar a classificação de falante culto Foi por isso que você representou as variedades cultas como uma faixa mais estreita que as variedades cultas não foi Isso mesmo confirma Irene No Brasil a escolaridade plena acompanhando a injustiça social e a desigualdade econômica é um funil por onde só passa uma porcentagem relativamente pequena de brasileiros Irene pega seu desenho e faz alterações nele Resolveu incluir o tal funil no desenho pergunta Emília Mais ou menos Como já vimos a normapadrão é um ideal de língua não existe concretamente como uma variedade real No entanto ela tem uma influência muito grande no imaginário lingüístico das pág 166 pessoas exerce uma forte pressão sobre os falantes Essa pressão vai crescendo na proporção do contato que o falante tem com a normapadrão por isso quanto mais escolarizado o falante maior a pressão da normapadrão Já nas variedades menos cultas na base da pirâmide onde podemos incluir os milhões de analfabetos as pessoas que não têm nenhuma familiaridade com a escola a influênciapressão das regras padronizadas é praticamente nula É tão interessante ver tudo assim desenhado Dá uma idéia bem melhor de como as coisas realmente acontecem comenta Vera É verdade concorda Emília Eu gosto muito desse tipo de procedimento didático explica Irene Ajuda muito mesmo Só que a coisa ainda não terminou O que estou tentando mostrar para vocês com esses desenhos é de que modo as línguas mudam com o tempo O ponto que eu quero ressaltar aqui é a mudança da normapadrão Ao contrário do que as pessoas em geral pensam os conceitos de certo e de errado não são definidos de uma vez por todas para todo o sempre Como tudo na vida e no universo muda a língua também muda junto com tudo mais É verdade que existe uma pressão muito grande dos defensores da normapadrão de fazer com que ela fique inalterada compacta e sólida mas isso é simplesmente impossível O que a história das línguas de todas as línguas nos ensina é que ao longo do tempo não importa qual for a intensidade da pressão normativizadora a normapadrão vai sofrer alteração E como é que isso acontece Dá para desenhar pergunta Vera Vamos tentar e Irene volta a seu desenho E agora santa Gertrudes O que será tudo isso espanta se Emília pág 167 Estou tentando mostrar de que maneira as mudanças acontecem na língua Emília Os tracejados brancos que partem das variedades cultas e sobem na direção das cultas indicam as mudanças que pouco a pouco vão modificando o aspecto geral da língua Essas mudanças acontecem primeiro nas variedades cultas aquelas que não sofrem pressão da normapadrão por serem faladas por pessoas que não têm acesso à escolarização formal Como já vimos essa ausência de pressão da escola permite que nessas variedades as tendências mais naturais da língua se manifestem e se desenvolvam com mais liberdade Essas mudanças lentamente vão subindo na escala social Lentamente vão sendo assimiladas pelos falantes cultos lentamente vão deixando de ser estigmatizadas até que uma vez plenamente aceitas pelos falantes cultos acabam por se incorporar na variedade deles e deixam de ser encaradas como erros Foi o que tentei representar com as áreas brancas na faixa que representa as variedades cultas E por isso que não podemos dizer que as variedades cultas são a própria normapadrão Porque como o processo de mudança da língua nunca pára as variedades empregadas pelos falantes mais escolarizados sempre apresentam uma boa parcela de conservadorismo mas também uma boa parcela de inovações lingüísticas Essas inovações é que são encaradas como erros pelos normativistas O certo de hoje já foi o errado de ontem Que tal um exemplinho para facilitar a vida da gente pede a estudante de Pedagogia Com prazer Vejam só que interessante Comparem o verbo latino laxare as formas italiana lasciare e francesa laisser com o português deixar O que foi que aconteceu Houve uma troca de L por D responde Vera Por quê interessase Emília Acho que por serem duas consoantes dentais aparentadas uma acabou tomando o lugar da outra Isso mesmo Verinha confirma Irene Se nós formos ler a famosa carta de Pero Vaz de Caminha ao rei D Manuel I de Portugal dando notícia da chegada da esquadra de Cabral ao Brasil pág 168 vamos encontrar logo no comecinho algo mais ou menos assim não leixarei também de dar disso minha conta a Vossa Alteza Quer dizer que em 1500 ainda se usava o L em leixar Que divertido admirase Emília Podemos deduzir que durante algum tempo as duas formas leixardeixar ficaram em concorrência até que a forma mais nova se fixou nas variedades cultas e acabou ganhando seu lugar dentro da normapadrão Quer dizer que o que foi erro no passado agora é o que há de mais certo possível não é tia Imagine se alguém disser leixar hoje em dia Vai ser acusado de desleixo de ser um relaxado diz Irene sorrindo Vejam que nessas duas palavras que usei o L da raiz latina ficou preservado No verbo deixar que é muito mais usado muito mais popular não houve como resistir à força da mudança Quero mais Irene mais exemplos por favorzinho suplica Emília Exemplo é o que não falta Quando estudamos as proparoxítonas pudemos ver de que modo uma quantidade enorme delas acabou ficando na normapadrão com acentuação paroxítona Mudanças que certamente começaram na fala das pessoas menos cultas Mas se você quer outros exemplos aqui vão dois ligados a coisas da igreja A nossa palavra bispo antigamente era obispo Como em espanhol pergunta Vera Isso mesmo Só que esse o inicial da palavra começou a ser interpretado pelos falantes como o artigo definido Daí aconteceu que em vez de se dizer o obispo começouse a dizer o bispo que é o que ficou como bonito e bom até hoje O mesmo aconteceu com a veste abatina isto é a roupa do abade De a abatina se passou para a batina e assim ficou consagrado Se formos pensar em mudanças nos significados das palavras então não sairemos daqui hoje E na sintaxe tia As estruturas sintáticas também vão mudando com o tempo O caso da partícula se que já vimos ilustra bem essa mudança Nas variedades cultas os verbos estão sempre obrigatoriamente no singular como em Não se faz mais casas como antigamente Nas variedades cultas o respeito à regra padronizada Não se fazem pág 169 mais casas como antigamente está praticamente reduzido à língua escrita mais rigorosamente apegada à tradição normativista Na língua falada e na escrita que procura seguir as regras do uso brasileiro normal os verbos só aparecem no singular como vimos no poema Catar feijão de João Cabral de Melo Neto que aliás está longe de ser um exemplo de fala popular Que tal um exemplinho de mudança de significado pede Sílvia Vou dar um exemplo de mudança de significado acompanhada de mudança sintática Antigamente o verbo aborrecer era transitivo direto mas não no sentido em que usamos hoje esse verbo No romance Quincas Borba de Machado de Assis a gente encontra este trecho maravilhoso que já decorei de tanto usar como exemplo Carlos Maria amava a conversação das mulheres tanto quanto em geral aborrecia a dos homens Achava os homens declamadores grosseiros cansativos pesados frívolos chulos triviais As mulheres ao contrário não eram grosseiras nem declamadoras nem pesadas A vaidade nelas ficava bem e alguns defeitos não lhes iam mal tinham ao demais a graça e a meiguice do sexo Das mais insignificantes pensava ele há sempre alguma coisa que extrair Quando as achava insípidas ou estúpidas tinha para si que eram homens mal acabados Emília Vera e Sílvia caem na gargalhada Não é delicioso mesmo pergunta Irene Só um gênio como o Machado de Assis podia ter escrito uma coisa assim concorda Vera Quero anotar depois viu Irene pede Emília Também vou decorar para dizer para algumas pessoas que conheço Viram como o Machado usou o verbo aborrecer Hoje ninguém mais usaria assim soaria até estranho Se fôssemos traduzir para o uso comum de hoje diríamos Carlos Maria amava a conversação das mulheres tanto quanto em geral se aborrecia com a dos homens Nas traduções clássicas da Bíblia a gente encontra Deus aborrece o pecador pág 170 Parece até que o sentido está trocado não é Afinal na significação moderna o pecador é que aborrece a Deus isto é causa aborrecimento a Deus Ou então Deus se aborrece com o pecador Então Irene você vai ter de continuar mexendo no seu desenho sugere Sílvia É preciso mostrar que as mudanças aceitas pelas variedades cultas acabam transformando a norma padrão Já que você pediu Irene acrescenta novos elementos à figura Conforme a Sílvia já disse quando as mudanças se cristalizam nas variedades cultas e deixam de ser percebidas como erros quando os falantes dessas variedades aceitam sem resistência essas novas formas lingüísticas elas acabam se incorporando à normapadrão passam a integrar o ideal imaginário de língua certa e ganham até o status de regra obrigatória É por isso que a normapadrão de uma determinada época é diferente da normapadrão da época seguinte Mas a normapadrão está sempre em atraso em relação às variedades vivas da língua onde as formas novas não param de surgir concorrendo com as mais antigas até eliminálas ou transformálas em fósseis lingüísticos O poder simbólico da normapadrão O caráter conservador da normapadrão está ligado à sua importância política ao tal inglês da Rainha não é pergunta Sílvia Muito bem lembrado Sílvia A normapadrão tem um poder pág 171 simbólico muito forte Ela representa no imaginário coletivo a língua supostamente falada pelas camadas sociais de prestígio que detêm o poder econômico e político do país Essas classes privilegiadas vêem na normapadrão conservadora um elemento precioso de sua própria identidade de grupo dominante Quem fala o inglês da Rainha pertence à aristocracia à nobreza e seu modo de falar marca uma diferença e até uma rejeição em relação à língua da plebe da rafaméia à língua vulgar Por isso tanto empenho em conservar a normapadrão inalterada pura sem corrupções Dessas classes dominantes emergem então os defensores do padrão que são principalmente os gramáticos normativistas e os professores de língua que seguem essa ideologia conservadora Um esforço que como já sabemos acaba sendo feito em vão A pureza da língua de hoje já foi contaminação na língua de ontem O que eles hoje defendem com unhas e dentes era combatido com todo vigor por seus ancestrais em épocas passadas Então o quadradinho preto que é a normapadrão de tanto receber contaminações das variedades cultas um dia no futuro ficará todo branquinho pergunta Emília Certamente responde Irene Só que quando ele estiver todo branquinho como você diz as mudanças mais novas na língua já estarão fazendo pressão sobre ele num processo ininterrupto de transformação Sempre haverá um descompasso entre a tendência conservadora da normapadrão ideal e a tendência inovadora das variedades reais E essa mudança toda é rápida ou é lenta pergunta Sílvia A velocidade da transformação da normapadrão vai depender da dinâmica social da comunidade ou do país Numa sociedade em que a escolarização é realmente democratizada em que o número de analfabetos é mínimo em que há uma cultura letrada muito forte a normapadrão pode exercer com mais vigor suas pressões e barrar por um tempo mais longo as mudanças lingüísticas É o caso por exemplo da França que tem uma norma padrão extremamente enrijecida cristalizada há um bom tempo já No Brasil como já repeti várias vezes a força da escola é muito pequena temos 60 milhões de analfabetos plenos e funcionais isto é gente que aprendeu pág 172 a ler e a escrever mas não ficou na escola tempo suficiente para desenvolver mais plenamente essas habilidades É quase a população total da França Nosso sistema de ensino público é classificado entre os piores do mundo Democratizar a normapadrão criticandoa Então bastaria dar escola a todos os brasileiros para que todo mundo falasse e escrevesse direitinho pergunta Emília Não Emília Não é tão simples assim responde Irene Porque mesmo os falantes cultos aquelas pessoas que têm acesso às regras padronizadas incutidas no processo de escolarização se mostram muito inseguras no momento de usar essas regras conservadoras Porque não basta ensinar a gramática normativa na escola É preciso definir de maneira mais democrática qual deve ser a norma a ser apresentada na escola É urgente empreender uma crítica profunda desse padrão Uma norma que ainda obriga os alunos a decorar as formas verbais correspondentes ao pronome vós que ainda apresenta a mesóclise como uma opção possível para a colocação pronominal que obriga a decorar regências verbais que não correspondem à gramática do português brasileiro assistir ao filme que não reconhece a força pragmática de muitas construções consideradas erradas que condena a mistura de tratamento sem reconhecer que todo o quadro pronominal do português do Brasil já se transformou há muito tempo é uma normapadrão que tem muita coisa inútil irrelevante obsoleta Se é verdade que o padrão lingüístico será sempre um ideal inatingível na prática em sua totalidade também é verdade que a escola deveria se esforçar para que esse padrão absorvesse uma série de usos lingüísticos novos perfeitamente assimilados pelos falantes cultos e já consagrados até na literatura dos melhores escritores Isso reduziria o abismo que existe entre o padrão lingüístico e o uso real da língua por parte dos falantes cultos Além disso é preciso também que dentro da escola haja espaço para o máximo possível de variedades lingüísticas urbanas rurais cultas nãocultas faladas escritas antigas modernas Para que as pessoas se conscientizem de que a língua não é um bloco compacto homogêneo pág 173 parado no tempo e no espaço mas sim um universo complexo rico dinâmico e heterogêneo Ciência vs tradição dogmática É aí que os lingüistas brigam com os gramáticos tradicionalistas não é tia Exatamente Vera Enquanto a maioria dos lingüistas quer essa democratização esse reconhecimento da complexidade dos fenômenos lingüísticos com base nas pesquisas empreendidas com critérios científicos mais rigorosos muitos gramáticos tradicionalistas comprometidos com a preservação do poder simbólico que é a normapadrão esforçamse cada vez mais em impor regras que analisadas criticamente se revelam muitas vezes ilógicas incoerentes obsoletas E eles não estão sozinhos Irene intervém Emília De uns tempos para cá eu tenho notado uma onda gramatiqueira invadindo tudo que é lugar É programa de televisão e de rádio é coluna de jornal e de revista é CDROM é página na Internet é consultório gramatical por telefone o diabo a quatro Isso para não falar dos livros do tipo vinte mil erros que você deve evitar É verdade Emília eu também tenho notado essa onda como você diz Parece que nós lingüistas e educadores além de brigar com os gramáticos intolerantes vamos ter de brigar com esses novos defensores da língua esses comandos paragramaticais como eu costumo chamar O mais curioso é que muitos deles nem têm formação específica em Letras Os gramáticos tradicionalistas pelo menos costumavam ser filólogos homens muito cultos profundos conhecedores de latim e de grego tinham intimidade com a literatura clássica etc Muitos desses paragramáticos de hoje porém são jornalistas advogados médicos etc que resolveram decorar as gramáticas normativas reduzilas ao máximo eliminando toda a complexidade delas e sair distribuindo pílulas de português certo por aí Infelizmente o poder simbólico da normapadrão mais conservadora garante a esse pessoal muito espaço nos meios de comunicação além de uma boa grana Afinal eles vão falar o que as pessoas esperam ouvir que português é muito difícil que os brasileiros não sabem português só os portugueses é que sabem pág 174 que a juventude está arruinando a língua de Camões e Rui Barbosa que a invasão das palavras inglesas vai fazer desaparecer a língua portuguesa e toda uma série de mitos completamente infundados mas que já habitam o imaginário das pessoas É por isso que estou com esse projeto de escrever um livro sobre as variedades nãopadrão do português para ver se consigo mostrar alguma coisa diferente do blablablá gramatiqueiro que anda por aí Parece que a Vera tem razão existe mesmo uma guerrinha nesse campo não é arrisca Sílvia Pode se dizer que sim responde Irene O que acontece é que a gramática tradicional do modo como foi estabelecida pelos sábios da Antiguidade antes de Cristo vigorou sozinha e soberana durante mais de dois mil anos no Ocidente Seus postulados que no início eram especulações filosóficas acabaram sendo consagrados como verdadeiros dogmas que deviam ser obedecidos e seguidos à risca sem contestação Foi somente no início do século XX que apareceu a Lingüística como ciência No entanto apesar de tão jovem ela já conseguiu abalar o prestígio da gramática tradicional Mas não o suficiente para modificar na raiz as concepções tradicionais de certo e errado nem os métodos antigos de ensino da língua Ainda existe na sociedade em geral uma cobrança muito grande para que os professores continuem ensinando gramática do mesmo modo como se ensinava nas gerações passadas com a mesma nomenclatura o mesmo tipo de exercícios os mesmos preconceitos contra a variação e a heterogeneidade lingüística Sim mas e o vestibular E não é à toa Irene intervém Emília Se não ensinarmos esse monte de velharias nossos alunos mais tarde não vão ter sucesso no vestibular nem nos concursos públicos que têm provas de português com questões completamente absurdas Outro dia mesmo eu vi uma prova de um vestibular que pedia ao candidato para assinalar a forma certa desinteria disenteria desenteria disinteria disintiria e não sei que mais Agora eu pergunto saber a grafia correta dessa palavra prova alguma coisa Saber como se escreve DISENTERIA significa que a pessoa sabe fazer bom uso dos pág 175 recursos da língua transmitir suas idéias comunicarse interagir por meio da fala ou da escrita influenciar seus ouvintes e assim por diante Por essa questão é possível avaliar se o candidato é capaz de elaborar um discurso coeso e coerente Ora façame o favor Infelizmente Emília você está certa diz Irene Por mais que a gente tente inovar o ensino de língua sempre aparece alguém para nos lembrar Sim mas no vestibular Aliás esse é o grande argumento o grande trunfo dos paragramáticos É o que rende a eles boa aceitação de seus produtos gramatiqueiros No dia em que os vestibulares desaparecerem ou se transformarem no dia em que os concursos públicos forem elaborados com um mínimo de sensibilidade eles talvez fiquem sem emprego Sensibilidade é a palavra viu Irene comenta Sílvia Sensibilidade empatia solidariedade Eu às vezes tenho a impressão que os elaboradores desses concursos trabalham pensando assim O que eu posso fazer para reprovar o maior número possível de candidatos E saem inventando questões cheias de ambigüidades montando armadilhas tão complicadas que às vezes nem professores universitários com grau de doutor conseguem decifrar Já vi provas de português para concursos públicos de jardineiro cozinheira zelador com questões mais absurdas ainda que essa que a Emília citou da disenteria Parece até que é preciso ter uma dose de sadismo para trabalhar nisso O problema é que nós professores de língua portuguesa somos muito apáticos diz Vera Pelo menos é o que eu sinto Somos tantos no Brasil inteiro mas não fazemos nada para nos organizar para fazer ouvir nossa opinião Se tivéssemos essa organização poderíamos simplesmente desqualificar uma prova que tivesse esse tipo de questão préhistórica e exigir que fosse anulada e reelaborada não é Irene vai fazer algum comentário quando Eulália entra na sala e diz Gente eu achei que só ia ter aula de noite Eita bando de menina viciada em estudar meu Deus Até esquece a hora do almoço De fato já passa de meiodia e meia e só agora todas percebem que têm fome pág 176 Essa aula da manhã não estava prevista não é mesmo Irene diz Emília enquanto caminham em direção à casa Se a Sílvia não tivesse levantado a lebre você ia tratar de outra coisa e só de noite não é É bem provável Mas eu gosto muito quando alguém pede para mim explicar alguma coisa que eu não tinha pensado antes responde Irene apressando o passo para ir dizer alguma coisa a Eulália que está um pouco mais adiante e deixando Emília plantada no meio do quintal meio incrédula Mas ela logo sorri e pensa Essa Irene acha que pode me pegar mas eu não caio tão fácil assim Para mim explicar Essa é boa pág 177 ÍNDIO SIM COM MUITO ORGULHO uso do pronome MIM como sujeito de infinitivos epois do almoço onde se continuou a falar dos temas da aula da manhã as amigas se dispersam Emília vai com Eulália fazer compras no supermercado Vera ajuda Irene a cuidar das plantas no jardim Sílvia vai pôr no correio uma longa carta que andou escrevendo esses dias para seu namorado Pedro Eulália tem razão Este bando de menina é mesmo viciado em estudar A aula excepcional da manhã não cancelou a aula normal da noite Alguém sabe do que vamos tratar hoje pergunta Irene dando início às atividades É para mim responder replica Emília enfatizando bem o para mim Irene cai na gargalhada Vera e Sílvia se entreolham com ar de quem não está entendendo Vera pergunta Tem alguma coisa aí que eu não estou sabendo Perdi alguma piada Irene pára de rir e explica Piada nenhuma Verinha É que a Emília não deixa escapar nada mesmo Tentei passar a perna nela hoje de manhã usando um para mim explicar com toda a naturalidade do mundo mas ela percebeu que eu estava brincando e acaba de me dar o troco Então é disso que vamos falar Do para mim fazer diz Sílvia Exatamente Bom antes de mais nada começa Emília acho bom deixar bem claro que na minha opinião na minha modesta opinião ironiza Vera Na minha opinião continua Emília lançando um olhar D faiscante na direção da amiga essa construção já deixou de ser culta há bastante tempo Por que você diz isso Emília interessase Irene Porque eu estou cansada de ouvir gente que se diz muito culta usar esse tipo de construção Advogados médicos jornalistas professores inclusive professores de português pág 178 Ai Emília não exagera vai queixase Sílvia Mas ela tem razão Sílvia intervém Vera A Matilde mesmo nossa diretora vive dizendo pra mim ir pra mim comprar pra mim fazer É engraçado não é Logo ela que é tão preconceituosa retoma Emília Diz que fica toda arrepiada quando escuta algum aluno dizer nós vai ou ingrês mas não arrepia um só fio daquele cabelo loiro falso dela na hora de dizer para mim ir Cuidado você também com os preconceitos hein Emília adverte Irene Falar mal das loiras é puro machismo Além disso se o loiro dela é falso qual é o problema não é O cabelo é dela ela faz o que bem quiser com ele Se ela é preconceituosa em relação a alguns traços lingüísticos nãopadrão e aceita outros sem problema a gente pode tentar levantar uma hipótese científica para explicar essa atitude diferenciada em vez de atribuíla à folclórica burrice das loiras em geral Tudo bem tudo bem Mas que esse tipo de frase já deixou de ser nãopadrão ah isso já deixou Você só pode fazer uma afirmação categórica desse tipo Emília se tiver como comprovála com dados reais colhidos em pesquisa de campo e analisados segundo uma metodologia bem criteriosa diz Irene É o caso Bem não engasgase Emília Então é melhor você suavizar a força dessa afirmação Que tal usar fórmulas como me parece que tudo indica que observações assistemáticas nos levariam a poder supor que É sempre bom deixar uma margenzinha de dúvida para você mesma Senão alguém pode chegar mais tarde com uma pesquisa mais bem feita e desmentir todas as suas afirmações Traduzindo queridinha enfie a viola no saco e vamos ouvir quem sabe mesmo das coisas diz Vera sorrindo Emília em mais uma homenagem à bonecapersonagem de Monteiro Lobato põe meio palmo de língua para fora Irene só se diverte Eu também tenho escutado cada vez mais esse tipo de construção diz Sílvia Mas também sinto que os próprios falantes cultos que se servem dela não aprovam muito esse uso pág 179 Você é sempre muito boa observadora em relação às atitudes das pessoas elogia Irene E talvez esteja certa também nesse caso Quando queremos saber de que maneira os falantes reagem a determinadas formas lingüísticas aplicamos testes que servem para medir a aceitabilidade dessas formas Não sei se já foi feito algum teste em relação ao para mim fazer mas é provável que os falantes cultos não aceitem essa construção com tranqüilidade embora muitos a usem diariamente O que será que essa diferença entre uso real e aceitação quer dizer pergunta Vera Talvez queira dizer que estamos presenciando uma mudança na língua que ainda não se completou inteiramente A construção PARA MIM INFINITIVO foi passando das variedades cultas em direção às cultas Já se insinua na fala de muitos falantes cultos mas ainda encontra resistências para se incorporar definitivamente às variedades cultas Estamos assistindo neste caso uma briga entre as pressões que a normapadrão exerce sobre as variedades cultas e as pressões que as variedades cultas exercem sobre as cultas E quem você acha que vai ganhar Irene pergunta Sílvia Tudo vai depender como vimos hoje de manhã da força da normapadrão em impor suas formas de uso da língua Por enquanto fica difícil prever de quem será a vitória final Mas a Emília tem mesmo razão parece que o número de falantes cultos que usam essa construção está aumentando No mês passado mesmo estive em São Paulo e percebi três ocorrências dessa construção na fala de pessoas que entrariam na classificação de falantes cultos uma jornalista um administrador de empresas e um médico Não estou dizendo justificase Emília olhando para Vera Por enquanto existe uma campanha muito forte da escola e dos paragramáticos contra esse uso Mas quem sabe em gramáticas do final do próximo século as pessoas leiam Embora o pronome sujeito de 1a pessoa seja eu o uso já consagrou o pronome oblíquo mim como sujeito de infinitivo sempre que vier precedido da preposição para como em Para mim fazer o que você pediu vou precisar de sua ajuda A construção para eu fazer prescrita pelas pág 180 gramáticas até um século atrás caiu em desuso e causa estranheza aos ouvidos dos brasileiros cultos de hoje Eu quase ia dizendo ai que horror mas mordi a língua diz Vera em voz baixa para Sílvia Nem precisamos aplicar o teste da aceitabilidade em você comenta Sílvia sorrindo Será que esse tipo de construção existe há muito tempo ou é invenção dos brasileiros de agora quer saber Emília Parece que a coisa não é tão recente assim viu Emília responde Irene Vocês se lembram do romance Inocência escrito pelo Visconde de Taunay Eu me lembro do filme O livro eu não li confessa Emília Pois esse livro foi publicado em 1872 e lá a gente encontra um dos personagens dizendo para mim atalhar E o mais interessante é que o autor numa nota de rodapé escreveu o seguinte Irene lê algo escrito numa das folhas de papel que espalhou sobre a mesa É este erro comum no interior de todo o Brasil e sobretudo na província de São Paulo onde pessoas até ilustradas nele incorrem com freqüência Gente Já em 1872 Então a coisa é velha mesmo admirase Emília Mais velha até do que você pensa intervém Irene O ano de 1872 indica um registro escrito da construção E quando alguma coisa aparece registrada na língua escrita é porque já vem sendo usada na língua falada há muito tempo Afinal a língua voa a mão se arrasta recorda Sílvia Irene sorri e prossegue Nossa tarefa até agora tem sido buscar explicações científicas para fenômenos desse tipo E é o que vamos tentar fazer com essa sintaxe ainda considerada nãopadrão Você já tem uma explicação definitiva tia Ainda não Vera Mas tenho três hipóteses Vamos a elas então incentiva Sílvia pág 181 Cruzamento sintático A primeira hipótese tenta explicar essa construção atribuindoa a um cruzamento sintático Irene vai até a lousa e escreve Na tentativa de dizer as duas coisas num enunciado só o falante cruza as duas frases e obtém uma terceira que é algo assim como uma síntese um resumo das informações contidas nas duas 1 João trouxe um monte de livros para mim 2 João trouxe um monte de livros para eu escolher anteriores Realmente Irene me parece uma boa explicação avalia Sílvia O resultado da soma das duas primeiras frases seria João trouxe um monte de livros para mim para eu escolher mas aquela tendência que a língua tem à economia ao enxugamento leva o falante a dizer as duas coisas de uma vez só Essa frase 3 deixa bem claro que João trouxe os livros para mim e não para qualquer outra pessoa e que trouxe para eu escolher e não para eu guardar vender ou copiar É uma interessante análise pragmática do fenômeno diz Irene Existe até um termo técnico para essa tentativa de resumir duas idéias numa só expressão braquilogia Temos de levar em conta também que o pronome mim é um pronome tônico quer dizer é uma palavra que soa mais nitidamente quando pronunciada que se destaca foneticamente dentro do enunciado Ao usar mim que é tônico e não eu átono o falante está dando uma ênfase afetiva a seu enunciado deixando claro como bem notou a Sílvia que ele é a pessoa interessada a pessoa de quem se está falando pág 182 Ganha quem chegar primeiro E a segunda hipótese tia A segunda hipótese diz assim fica com a vaga quem chegar primeiro Vaga Mas que vaga pergunta Emília 1 João trouxe um monte de livros para mim 3 João trouxe um monte de livros para mim escolher 2 João trouxe um monte de livros para eu escolher Esta aqui ó E Irene escreve na lousa Na produção desse enunciado quem aparece primeiro na fala é a preposição para Ora existe uma regra na língua que diz depois de preposição pronome oblíquo Também existe uma outra regra que diz na função de sujeito de um verbo o pronome deve figurar no caso reto São duas regras para serem obedecidas A qual delas o falante vai obedecer A que veio primeiro à que foi acionada em primeiro lugar Uma vez ocupada a vaga conforme a primeira regra a segunda regra perde a chance de se impor Estabelecese uma hierarquia por ordem de chegada Então o que temos é uma vaga para dois candidatos ambos exercendo uma pressão para preencher a lacuna A preposição para por ter chegado primeiro pôde empurrar para dentro do espaço vago o pronome mim que ela rege O infinitivo coitadinho ficou a ver navios Resultado Gente que delícia exclama Emília Nunca imaginei a língua nossa de todo dia como uma corrida de cavalos Ou como aquela dança das cadeiras que a gente faz em aniversário de criança quando a música pára quem for mais rápido e estiver mais perto da cadeira consegue se sentar nela Eu pessoalmente acredito que as duas explicações reunidas pág 183 podem dar conta do fenômeno diz Irene O cruzamento sintático tentando oferecer uma síntese das João trouxe um monte de livros para escolher João trouxe um monte de livros para escolher João trouxe um monte de livros para mim escolher informações e a exigência de obliqüidade do pronome por parte da preposição que chegou primeiro podem agir ao mesmo tempo para produzir esse tipo de construção sintática A isso se acrescenta a força afetiva que tem o pronome mim graças a seu caráter tônico Deslocamentos possíveis Mas você disse que tinha uma terceira hipótese tia Qual é É a hipótese da generalização da possibilidade de deslocamento Virgem Maria Que doença terrível será essa exclama Emília Nenhuma doença Emília é só um nome comprido para uma coisa simples responde Irene Existem situações em que o para mim aparece diante de um infinitivo sem que isso constitua um erro do ponto de vista da normapadrão Observe Na lousa a professora escreve A primeira vista parece que essa frase contém um erro não é Mas é fácil provar que ela não está desrespeitando nenhuma regra da normapadrão Basta a gente retirar o PARA MIM do lugar onde ele está e deslocálo ao longo do enunciado Vamos ver que ele se encaixa direitinho em outros lugares O que acontece aqui é que o infinitivo fazer é o sujeito da oração é muito difícil Mas para quem ouve a frase 4 enunciada num 4 É muito difícil para mim fazer isso sozinho 4a Para mim é muito difícil fazer isso sozinho 4b É para mim muito difícil fazer isso sozinho 4c É muito difícil fazer isso sozinho para mim ritmo normal pode parecer que mim é que é o sujeito do infinitivo fazer Aqui o para mim tem o sentido de na minha pág 184 opinião no que me diz respeito Agora vejam só o que acontece com outro enunciado que usa as mesmas palavras de 4 Se tentarmos deslocar o PARA MIM como fizemos em 4 vamos obter o seguinte O que é essa estrelinha na frente das frases pergunta Sílvia É o asterisco Ele é usado em Lingüística para indicar que se trata de enunciados agramaticais isto é que não fazem sentido que não pertencem à gramática de nenhuma variedade de uso da língua explica Vera Isso mesmo Verinha confirma Irene Tanto é que enunciados desse tipo simplesmente nunca são produzidos por nenhum falante de nenhuma variedade nem as menos cultas Porque em 5 é impossível separar o PARA MIM do verbo FAZER Nesse enunciado o para mim nada tem a ver com na minha opinião Os falantes cultos no entanto reconhecendo que enunciados do tipo 4 estão de acordo com a normapadrão generalizam essa possibilidade de ocorrência de PARA MIM INFINITIVO e passam a aplicar essa regra em todos os enunciados aparentemente semelhantes Afinal a única diferença aparente entre 4 e 5 é o arranjo das palavras a ordem que elas ocupam no enunciado Talvez você nem precisasse ter ido tão longe nessa última 5 Isso é muito difícil para mim fazer sozinho 5a Para mim isso é muito difícil fazer sozinho 5b Isso é para mim muito difícil fazer sozinho 5c Isso é muito difícil fazer sozinho para mim hipótese Irene diz Emília Lá vem ela querendo bancar de novo a sabichona murmura Vera para Sílvia Por quê Emília pergunta a professora Porque outro dia eu estava na sala de espera do meu dentista e ouvi a secretária dele dizer uma coisa ao telefone que me deixou na dúvida pág 185 E o que foi que ela disse Ela disse Para mim lembrar de tudo agora fica difícil E qual foi sua dúvida pergunta Irene Eu não sabia se ela estava dizendo que na avaliação dela no que lhe dizia respeito era difícil lembrar de tudo ou se era difícil ela lembrar de tudo naquele momento Como nós só temos um lado da conversa telefônica não podemos interpretar com exatidão o que a secretária estava querendo dizer explica Irene Mas esse é um bom exemplo para explicarmos a ocorrência de PARA MIM INFINITIVO Ela escreve a frase na lousa Ao contrário dos meus exemplos neste da Emília nem precisamos mexer no arranjo sintático do enunciado Do jeito que ele está podemos mesmo ter duas interpretações Para ver se a primeira interpretação procede basta deslocar o PARA MIM e colocálo em outros lugares do enunciado Lembrar de tudo agora fica difícil para mim experimenta Emília Funciona Então ela não errou Mas também funciona analisar esse mim como sujeito do infinitivo diz Vera E só a gente substituir o mim pelo eu da normapadrão Para eu lembrar de tudo agora fica difícil Então ela errou sim Quer dizer que pela normapadrão a secretária errou e acertou ao mesmo tempo intervém Sílvia Se alguém fosse corrigir o que ela disse bastava ela deslocar o para mim e provar que não havia erro nenhum ali É verdade confirma Irene Vejam como os critérios autoritários do certo e do errado não funcionam com tanta segurança como querem os tradicionalistas Talvez a secretária quisesse fazer as duas coisas ao mesmo tempo dar a opinião dela sobre o que o outro interlocutor estava dizendo e exprimir sua dificuldade de se lembrar de tudo naquele momento Houve o cruzamento sintático a regra do quemchegaprimeiroganha prevaleceu e a generalização da hipótese de deslocamento entrou em ação Só que isso tudo é automático não é Irene pergunta Sílvia É um processo que não leva mais que um milésimo de segundo pág 186 Sem dúvida Sílvia e aí está a grande maravilha da linguagem e também seu grande mistério não é Como é que as idéias se juntam dentro da cabeça da gente Como é que o cérebro transforma as idéias em linguagem E o que vem primeiro o pensamento ou a linguagem Como é que a linguagem aciona seus mecanismos suas regras E como é que essas regras realizam concretamente nos sons da fala aquilo que foi processado na mente São questões que intrigam até hoje os cientistas O certo é que como você disse o falante não vai ficar o tempo todo antes de produzir seus enunciados verificando as possibilidades de deslocamento de PARA MIM e o significado desse sintagma para depois avaliar se ele pode ou não vir antes do infinitivo Esse tipo de análise é feito depois por nós investigadores que nos interessamos em descobrir as regras de funcionamento da língua O falante porém quer falar e pronto Se uma determinada construção deu certo funcionou cumpriu sua missão num determinado enunciado não há razão para que não funcione novamente em outros enunciados semelhantes Ensinar criticando Seria muito mais interessante se em sala de aula a gente pudesse explicar as coisas assim comenta Vera Chamar a atenção dos alunos para a complexidade dos fenômenos da língua em vez de ter um ataque histérico sempre que algum deles diz para mim fazer É justamente o que tento sugerir aos professores quando tenho oportunidade de conversar com eles em seminários cursos e palestras diz Irene Mas insisto sempre no mesmo ponto não se trata de ensinar as pessoas a usar esse tipo de construção até porque não é preciso elas já falam assim Tratase de explicar o fenômeno mostrar que ele tem lógica que também existem regras gramaticais agindo ali mas que são simplesmente regras de uma outra gramática e não da gramática normativa tradicional Ao mesmo tempo destacar o valor social que é atribuído aos usos lingüísticos para mim fazer sofre preconceito é considerado erro é estigmatizado A construção para eu fazer goza de prestígio abre portas Por pág 187 isso deve ser ensinada aos alunos Ensinada mesmo como algo estranho que não pertence à língua materna da maioria deles Essa mudança de atitude é muito importante na minha opinião Não podemos mais como ainda é feito querer simplesmente eliminar da realidade lingüística o para mim fazer um esforço totalmente inútil porque cada vez mais gente usa e usará essa construção Podemos sim mostrar que há duas formas em uso em concorrência e que cada uma delas tem um valor diferente Não um valor lingüístico porque são duas construções gramaticais perfeitamente lógicas e coerentes Mas um valor social determinado pelo tipo de sociedade em que vivemos Embora a forma para mim fazer seja usada pela ampla maioria da nossa população essa ampla maioria não tem poder de influência nas decisões políticas econômicas educacionais culturais Por isso o considerado bom bonito certo é o que pertence a uma minoria reduzida de cidadãos Se assim é vamos apresentar essa forma lingüística elitizada minoritária a todos os nossos alunos para que ela não seja usada contra eles no processo perverso de exclusão social baseada no preconceito lingüístico Em suma sou a favor do ensino da norma padrão mas de um ensino crítico da normapadrão de um ensino que mostre que essa normapadrão não tem lingüisticamente nada de mais bonito de mais lógico de mais coerente que as variedades usadas pelos falantes menos cultos ou analfabetos E ao mesmo tempo proponho a valorização dos usos lingüísticos nãopadrão sobretudo porque a língua que uma pessoa fala a língua que ela aprendeu com sua família e com sua comunidade a língua que ela usa para falar consigo mesma para pensar para expressar seus sentimentos suas crenças e emoções faz parte da identidade dessa pessoa é como se a língua fosse a pessoa mesma Então Irene negar valor ao modo como a pessoa fala seria quase o mesmo que negar valor ao que a pessoa é conclui Sílvia Sim e é uma atitude que não tem mais lugar numa época como a nossa em que se luta tanto pelo respeito aos direitos humanos em que se tenta combater todo tipo de discriminação e preconceito pág 188 Vamos exterminar os índios da linguagem Essa atitude nova que você sugere é o oposto perfeito da prática tradicional de ensino diz Vera Na escola nas gramáticas normativas e nos produtos paragramaticais que você citou hoje de manhã o que a gente ouve e lê é sempre a mesma coisa Mim não faz nada Uma vez até li uma entrevista de um desses senhores paragramáticos onde ele declarava Só índio fala para mim fazer Eu também li essa entrevista e fiquei chocada com essa declaração recheada de preconceito observa Irene Como esse senhor percebeu que essa construção sintática já está muito difundida entre falantes cultos ele tenta acabar com ela acusando esses falantes cultos de agirem como índios isto é na concepção preconceituosa dele como pessoas rudes brutas ignorantes É como se ele quisesse exterminar o para mim fazer do mesmo modo como os conquistadores do continente americano exterminaram centenas de nações indígenas comenta Emília indignada É uma comparação bastante forte diz Irene mas eu entendo a sua raiva Emília Aliás tenho observado que essa é a tática preferida desses paragramáticos culpar o falante culto de maltratar a língua baixar a autoestima lingüística dele para fazêlo sentirse um selvagem por não saber aquelas coisas que os paragramáticos oferecem em seus produtos justificando desse modo a necessidade da existência mesma desses produtos paragramaticais Enfim uma estratégia excelente do ponto de vista mercadológico mas injustificável do ponto de vista pedagógico Injustificável é bondade sua observa Sílvia O poder simbólico da normapadrão que eu citei hoje de manhã acaba se transformando numa verdadeira violência simbólica como diz o sociólogo francês Pierre Bourdieu explica Irene Em vez de ser usada como instrumento para a tal ascensão social como muita gente ingenuamente pensa ser a função dela a normapadrão termina servindo isso sim de mecanismo de exclusão social de separação de segregação Como escreveu o lingüista pág 189 italiano Maurizzio Gnerre a normapadrão serve como um poderoso arame farpado para bloquear o acesso ao poder Quem disse que só eu pode fazer Além disso prossegue Irene esse argumento tradicional de que mim não faz nada está em contradição com regras prescritas pela própria gramática normativa Como assim tia Veja só quem diz que mim não faz nada na verdade está querendo dizer que somente o pronome eu pode exercer a função de sujeito Ora vamos ver se isso acontece de fato Irene escreve na lousa Em todos esses exemplos qual é o sujeito dos infinitivos pergunta Irene Emília Sílvia e Vera observam a lousa com atenção Em seguida Vera diz O sujeito desses infinitivos todos é o pronome me Exatamente Vejam só que delícia exclama Emília Eu nunca tinha reparado nisso Mim não faz nada mas me faz Pois é Emília é isso mesmo confirma Irene Nos enunciados que contêm os verbos mandar fazer sentir deixar ouvir e ver seguidos de infinitivo a gramática normativa exige que se use um pronome oblíquo para ocupar o lugar de sujeito do infinitivo Mas isso é uma contradição tia já que o pronomesujeito de 1a pessoa é eu A forma me só é usada na função de objeto Aí é que está o mais interessante diz Irene Em enunciados como 6 7 e 8 ocorre mais uma vez uma pequena 6 Deixame ver isso 7 Por que você não foi me ver jogar 8 Eu não gosto que me mandem fazer esse tipo de coisa briga pela vaga Os verbos mandar fazer sentir deixar ouvir e ver pedem um objeto direto enquanto o infinitivo pede um sujeito A palavrinha que vier a ocupar a vaga vai ter uma dupla função sintática pág 190 objeto direto do primeiro verbo sujeito do segundo Como o português procede do latim e como em latim essa palavrinha era um pronome oblíquo um pronome acusativo como se chama na gramática latina então a nossa gramática normativa também cobra que essa vaga seja ocupada por um pronome oblíquo Daí o me Por isso não há motivo para dizer que só eu pode exercer função de sujeito o me também pode Mas Irene em frases desse tipo me parece muito mais comum a gente usar o pronome eu do que o pronome me comenta Sílvia Eu mesma por exemplo digo com muito mais naturalidade deixa eu ver do que deixame ver Deixame ver aliás me cheira a puro exibimento a coisa de gente que quer se mostrar que quer deixar claro que fala o português da Rainha que não quer se misturar com a plebe com os índios avalia Emília Esse é mais um exemplo da competição entre duas formas lingüísticas diferentes retoma Irene a primeira conservadora prescrita pela normapadrão e a segunda inovadora fruto das mudanças inevitáveis da língua em seu uso efetivo real Vamos ver o que está acontecendo Irene escreve na lousa Conforme eu disse antes a palavrinha que vier a ocupar a vaga será objeto direto do primeiro verbo e sujeito do segundo A gramática tradicional com os olhos voltados para o passado da língua impõe o uso do pronome me porque era assim em latim A 6a Deixame ver isso 6b Deixa eu ver isso gramática do português do Brasil que está sofrendo um processo de afastamento gradual e contínuo em relação à gramática do português de Portugal e mais ainda é claro em relação à gramática latina decidiuse pelo uso do pronomesujeito eu para exercer as duas funções Parece uma simples questão de escolha não é observa Sílvia Já que não existe uma única forma pronominal para exercer pág 191 as duas funções e já que existem duas formas diferentes de pronome à disposição cada uma das gramáticas escolhe a sua Só que eu gostaria de saber o que é que determina essas escolhas intervém Vera Afinal tia no caso do para mim fazer você falou da hierarquia das regras que ganhava a vaga quem chegasse primeiro etc Ora neste caso o verbo deixar chega primeiro Se é um verbo que pede objeto a gente devia esperar que o pronome tivesse sua forma oblíqua de objeto No entanto a gramática brasileira escolheu o pronomesujeito eu Como explicar essa escolha Essa escolha pode ser explicada por uma regra que neste caso específico é mais forte do que a ordem de chegada uma regra que se sobrepõe a ela na hierarquia das regras As pesquisas estão mostrando que uma das principais diferenças entre o português do Brasil e o português de Portugal está no tratamento dado ao sujeito e ao objeto das orações No Brasil a tendência é enunciar foneticamente o sujeito e apagar o objeto Em Portugal é justamente o contrário apagase o sujeito enunciase o objeto Vamos imaginar a seguinte pergunta Imaginemos agora duas respostas entre as muitas possíveis 9 Quem já foi ver o filme novo do Almodóvar A resposta 9a com seu sujeito explícito e seu objeto apagado tem muito mais probabilidade de ser enunciada por um brasileiro Já a resposta 9b com seu sujeito apagado e seu objeto explicitado tem mais chance de ocorrer na fala de um português ainda mais com o uso do pronome o que praticamente já desapareceu da fala dos brasileiros Cada uma das gramáticas por diversos motivos opta por apagar um dos termos da oração e explicitar o outro Essa preferência brasileira pela realização fonética do sujeito e pelo apagamento do objeto é que comanda o aparecimento do pronome eu Por isso Verinha no momento de preencher a vaga nós escolhemos ocupála pág 192 com um pronomesujeito que vai exercer as duas funções Deixa eu ver em vez de ocupála com um pronome objeto Deixame ver como a gramática normativa cobra da gente só porque é assim que os portugueses falam do outro lado do Atlântico a dez mil quilômetros daqui O deixa eu já é tão automático na nossa fala que ele se transformou em xô não é Irene comenta Sílvia A gente diz mesmo é xovê e não Deixa eu ver muito menos Deixame ver Fico pensando num estrangeiro que tenha aprendido português no país dele só com a gramática normativa Quando chega aqui coitado fica ouvindo xovê a toda hora mesmo que o céu esteja muito limpo sem previsão nenhuma de chuva É verdade intervém Emília A gente tem até aquela brincadeirinha de dizer Se chover molha quando alguém pede para ver alguma coisa que está com a gente dizendo Xovê Aposto que os gramatiqueiros acham que isso também é língua de índio Esse tipo de contração acontece quando uma expressão é muito usada muito freqüente na fala explica Irene A palavra embora por exemplo originouse da contração de em boa hora Mal 9a Eu vi ontem 9b Vio ontem dá para acreditar também que o nosso você um dia já foi Vossa Mercê Aliás a contração não parou em você já que é muito comum a gente usar apenas a sílaba cê Cê veja como são as coisas graceja Emília Em francês acontece algo semelhante com a oração Je ne sais pas que significa Eu não sei diz Irene Os franceses reduziram essas quatro sílabas a duas pronunciadas xepá No inglês americano a oração I have got to eu tenho de se contraiu em I gotta Não é à toa que os gramáticos e os paragramáticos se desesperam tanto comenta Sílvia sorrindo Nós brasileiros somos mesmo uns rebeldes não Onde devíamos dizer eu dizemos mim Onde devíamos usar me usamos eu Onde devíamos dizer Deixame ver dizemos xovê É ou não é para arrancar os cabelos Daí a importância que eu atribuo à formação contínua ininterrupta do professor de português diz Irene Não dá mais para ficar parado no tempo agarrado à gramática normativa e pág 193 aos dogmas tradicionais lamentando a ruína a corrupção a decadência da língua portuguesa É preciso que o professor de português se apodere do instrumental teórico que a ciência lingüística pode lhe oferecer e transforme isso em prática de ensino É fundamental que ele esteja sempre a par do que está acontecendo em termos de investigação de pesquisa de avanço teórico no seu campo de estudo Participar de congressos de especialistas acompanhar tanto quanto possível o ritmo das publicações de artigos revistas monografias livros teses etc Se não fizer isso vai acabar se transformando num mero papagaio repetidor da doutrina tradicional cheia de contradições e incoerências e se deixando engambelar pelos vendilhões do templo gramatiqueiro que tentam nos convencer de que só eles podem salvar o português do desaparecimento Irene apaga a lousa esfrega as mãos para tirar o pó de giz que há em seus dedos reúne seus papéis Percebe então que as três jovens estão olhando muito fixamente para ela O que foi pergunta a professora intrigada Acabou quer saber Vera Acabou responde Irene Que pena exclama a sobrinha em tom melancólico Mas vocês vão mesmo embora amanhã Verinha não íamos ter mais como continuar nosso curso Além disso já esgotei o material do meu livro As três alunas assumem um ar visivelmente tristonho Para animálas Irene propõe A não ser que Elas logo se interessam e os olhos brilham A não ser que vocês queiram fazer uma prova sugere Irene sorrindo Afinal depois de um curso intensivo como este eu preciso saber o que foi que ficou na cabecinha de vocês E como vai ser essa prova interessase Emília É claro que não vai ser uma prova tradicional não é diz Sílvia Afinal você não é uma professora tradicionalista Graças a Deus não sorri Irene Acho prova a coisa mais tola que já inventaram na escola Existem Oitocentos milhões de outras maneiras de você avaliar o conhecimento dos alunos todas elas muito mais interessantes e eficazes que prova pág 194 Concordo plena e irrestritamente diz Emília Mas afinal tia em que é que você está pensando Uma coisa muito simples mas divertida responde Irene É o seguinte Eu vou dar para vocês um texto escrito numa variedade de português nãopadrão Vocês vão lêlo analisálo e ver se encontram nele exemplos dos fenômenos que nós estudamos aqui Depois de tantas explicações e teorias acho que seria bom se vocês pudessem como se diz pôr a mão na massa Topam Elas dizem em coro que sim Então vamos até lá no meu escritório para eu tirar as cópias pág 195 PONDO A MÃO NA MASSA oje último dia das férias as três hóspedes de Irene despertam cedo Assim foi combinado para que possam aproveitar a manhã para fazer o exercício que Irene lhes propôs ontem À tarde a professora vai corrigir a prova e às oito horas da noite elas tomam o ônibus para São Paulo O texto que Irene lhes ofereceu para a análise é na verdade um poema escrito pelo poeta sertanejo Antonino Sales Melancolia do corpo e da alma Depois de lerem e relerem juntas o poema Emília Vera e Sílvia discutem entre si os diversos aspectos que lhes parecem os mais relevantes para a análise pedida por Irene Estão muito animadas com a tarefa sublinham palavras põem suas idéias por escrito consultam suas anotações Por volta das três horas conforme o combinado reúnemse todas na escolinha para a última aula daquelas férias Irene abre a conversa perguntando E então Conseguiram descobrir muita coisa Muita responde Vera E por onde querem começar Que tal começar pelo título propõe Sílvia Nós entendemos que malinculia é em portuguêspadrão MELANCOLIA mas não sabemos como explicar essa transformação Então vamos lá animase Irene Realmente esse título é muito interessante Como a Sílvia disse malinculia é a forma não padrão de MELANCOLIA Esta é uma palavra que tem uma história que vale a pena contar Para começar MELANCOLIA é grego puro É formada de melan negro preto escuro sombrio mais kholê bile A bile ou bílis como vocês se lembram das aulas de Biologia é aquele líquido viscoso e esverdeado produzido pelo fígado e que ajuda na digestão MELANCOLIA para os gregos antigos é um estado doentio H é estar com a bile preta pág 196 MALINCULIA Antonino Sales 1 Malinculia Patrão 34 Numa lembrança apagada 2 É um suspiro maguado 35 No rumance dum amô 3 Qui nace no coração 36 Numa coisa já passada 4 É o grito safucado 37 Num sonho que se afindô 5 Duma sodade iscundida 38 A tá da malinculia 6 Qui nos fala do passado 39 Não tem casa onde morá 7 Sem se torná cunhicida 40 Ela veve noite e dia 8 É aquilo qui se sente 41 Os coração a rondá 9 Sem se pudê ispricá 42 Não tem corpo não tem arma 10 Qui fala dentro da gente 43 Não é home nem muié 11 Mas qui não diz onde istá 44 E ninguém lhe bate parma 12 Malinculia é tristeza 45 Pru caso de sê quem é 13 Misturada cum paxão 46 Ela se isconde num bejo 14 Vibrando na furtaleza 47 Qui foi dado há muntos ano 15 Das corda do coração 48 Malinculia é desejo 16 Malinculia é qui nem 49 É cinza de disingano 17 Um caminho bem diserto 50 Malinculia é amô 18 Onde não passa ninguém 51 Pulo tempo sipurtado 19 Mas nem purisso bem perto 52 Malinculia é a dô 20 Uma voz misteriosa 53 Qui o home sofre calado 21 Relata munto baxinho 54 Quando lhe vem à lembrança 22 Umas história sodosa 55 Passages da sua vida 23 Cheias de amô e carinho 56 Juras de amô isperança 24 Seu moço malinculia 57 Na mucidade culhida 25 É a luz isbranquiçada 58 É tudo o que pode havê 26 Dos ano qui se passô 59 Guardado num coração 27 É ternura é aligria 60 É uma histora que se lê 28 É uma frô prefumada 61 Sem forma de ispricação 29 Mudando sempre de cô 62 Pruquê inda vai nacê 30 Às vez ela vem na prece 63 O home ou mermo a muié 31 Qui a gente reza sozinho 64 Capacitado a dizê 32 Otras vez ela aparece 65 Malinculia o qui é 33 No canto dum passarinho pág 197 Ai que feio exclama Emília Sempre achei essa palavra tão bonita um sentimento tão romântico e vêm esses gregos estragar tudo Mas o que tem a ver estar com a bile preta e sentir melancolia quer saber Vera Afinal melancolia não é tristeza saudade depressão Justamente responde Irene Acontece que os antigos médicos gregos Hipócrates lembramse dele o pai da Medicina acreditavam que o nosso corpo quando doente produzia determinados líquidos chamados humores que afetavam o estado emocional da pessoa Um desses supostos líquidos produzido pelo fígado seria essa bile preta melankholê que deixaria a pessoa triste cabisbaixa saudosa deprimida Enfim um mau humor Quer dizer que as expressões bom humor e mau humor vêm daí também admirase Sílvia Exatissimamente confirma Irene Com o tempo porém se descobriu que essa tal bile preta nunca existiu era pura fantasia dos médicos gregos Mas a palavra melancolia já tinha criado raízes na língua e continuou viva indicando este estado de espírito mesmo depois que aquela crença na existência de uma bile preta foi abandonada Os latinos chegaram até a criar uma palavra própria tradução direta do grego atrabílis de atra preta e bílis Daí vem o horroroso adjetivo português atrabiliário Muito interessante essa transformação do sentido da palavra comenta Sílvia Antes designava uma sensação física uma suposta doença do corpo e depois passou a designar um sentimento uma doença da alma Você tem toda razão diz Irene E é curioso como existem várias outras palavras que marcam essa mesma suposta relação entre doença do corpo e determinado estado emocional É mesmo Quais interessase a estudante de Psicologia Veja por exemplo cólera que é uma doença terrível e também um estado de ira de raiva A própria raiva que é a doença transmitida pelos animais domésticos Quem pega a doença fica raivoso isto é enfurecido A pessoa dengosa originalmente era a pessoa acometida de dengue doença transmitida por um mosquito e que deixa a pessoa mole pág 198 Gente do céu exclama Emília Nunca mais deixo ninguém me chamar de dengosa Irene sorri e prossegue Estar agoniado que hoje significa aflito angustiado penalizado vem do grego agonia luta contra a morte um termo médico usado para descrever o conjunto de fenômenos que aparecem na fase final de doenças agudas ou crônicas e anunciam a morte A náusea pode ser física ou emocional o mesmo acontecendo com o nojo e o enjôo embora essas palavras tenham surgido primeiro para designar sensações meramente físicas E o mesmo vale para desgosto onde a presença do gosto deixa bem clara a relação entre sentido físico e sentimento moral Aliás o mesmo verbo sentir serve para indicar a sensação física e o sentimento da alma Sabe o que é que tudo isso prova intervém Sílvia Que é impossível separar corpo e alma embora muitas escolas filosóficas e religiosas ocidentais tenham tentado O que afeta o corpo também afeta o espírito e viceversa Estou vendo que teremos uma excelente psicóloga daqui a algum tempo diz Irene sorrindo Mas voltando ao nosso título intervém Vera Como foi que MELANCOLIA se transformou em malinculia A forma padrão MELANCOLIA tem diversos equivalentes na língua nãopadrão responde Irene Malinculia malincunia malencolia malinconia Esta última forma malinconia curiosamente é a forma oficial padrão do italiano moderno língua que também registra as mesmas outras formas do PNP classificadas de regionais pelos dicionários italianos A forma derivada diretamente do grego MELANCOLIA existe na língua dos nossos avós italianos mas é considerada de uso exclusivamente literário Que engraçado comenta Vera As formas que hoje sobrevivem no PNP são arcaísmos quer dizer formas que eram utilizadas antigamente mesmo na língua culta e que foram substituídas por outras formas mais próximas do original grego O que aconteceu para que houvesse tantas formas diferentes para MELANCOLIA tanto em português quanto em italiano quer saber Vera pág 199 Para começar responde Irene houve uma troca de L por N que é um fenômeno muito comum Estas duas consoantes são parentes próximas são dentais como vimos alguns dias atrás e o fato de serem produzidas dentro da boca em pontos muito próximos um do outro faz com que acabe havendo trocas de uma pela outra Veja por exemplo o latim LIVELLU que deu em português padrão NÍVEL e em francês padrão NIVEAU O árabe NARANJA deu a nossa LARANJA Existe na língua portuguesa literária a palavra ALIMÁRIA que provém do latim ANIMALIA aqui também aconteceu a rotacização L R Isso também aconteceu com a palavra ALMA não é pergunta Sílvia Afinal em latim se dizia ÁNIMA Exato confirma Irene Primeiro ÁNIMA se reduziu a ÁNMA com a tendência a reduzir em paroxítona as proparoxítonas como já estudamos também Depois houve a permuta do N pelo L para que a palavra se enquadrasse melhor na índole da língua portuguesa que não aceita bem o encontro NM Agora estou entendendo por que o nome da zeladora da escola é ALICE e todo mundo chama ela de Nicinha diz Emília Ela também diz o liforme em vez de UNIFORME e lebrina em vez de NEBLINA E deve ser também isso que explica por que as criancinhas dizem ilimigo em vez de INIMIGO Bem lembrado Emília cumprimenta Irene No caso do título do nosso poema a palavra MELANCOLIA também apresenta uma grande quantidade de sons vocálicos diferentes que acabam fazendo combinações diversas numa grande variação harmônica como discutimos ao tratar do sotaque paulistano Reparem que essa mesma combinação vocálica está presente no poema nas palavras safucado v 4 iscundida v 5 cunhicida v 7 furtaleza v 14 aligria v 27 rumance v 35 veve v 40 disingano v 49 sipurtado v 51 mucidade culhida v 57 Parece que as palavras compridas como MELANCOLIA estão mais sujeitas a estes intercâmbios de vogais No português antigo o nome BARTOLOMEU tinha a forma Bertolameu e JERÔNIMO era Jirólimo onde vemos de novo a troca do N por L Aliás em italiano JERÔNIMO é GERÓLAMO nome do meu avô materno pág 200 Análise do poema Quero ver agora o que vocês descobriram no poema diz Irene Uma coisa que eu notei e que já tenho reparado também na fala de muita gente é a eliminação do R final como aparece aqui em ispricá v 9 frô v 28 cô v 29 amô v 35 dô v 52 havê v 58 nacê v 62 muié v 63 observa Sílvia Isso talvez se explique pela tendência que a língua portuguesa tem de terminar toda palavra sempre com uma vogal sugere Irene Aquela história da rotacização do L que a gente viu nas primeiras aulas está bem marcada aqui diz Vera É uma tendência muito antiga na língua e o poema dá muitos exemplos dela ispricá v 9 frô v 28 ispricação v 61 Também nas palavras arma v 42 para ALMA e parma v 44 para PALMA Este é um tipo de rotacismo diferente daquele que vimos explica Irene Mas ele agiu por exemplo na transformação do árabe ALMAKHAZAN no português padrão ARMAZÉM No verso 5 aparece a palavra sodade diz Emília que você nos apresentou E no verso 22 temos sodosa Outras reduções do ditongo OU em ô aparecem em passô v 26 e otras v 32 além das formas paxão v 13 baxinho v 21 e bejo v 46 que podemos explicar como efeitos da assimilação Muito bem comemora Irene E a questão dos plurais redundantes A eliminação dos plurais redundantes está bem demons trada no poema responde Sílvia Temos das corda do coração v 15 umas história sodosa v 22 dos ano qui se passô v 26 às vez v 30 otras vez v 32 os coração a rondá v 41 há muntos ano v 47 A famosa desnasalização da sílaba postônica diz Vera olhando de soslaio para Emília aparece nos versos 43 e 63 home e no verso 55 passages A palavra muié que aparece nos versos 43 e 63 me fez lembrar de toda aquela história sobre a Revolução Francesa e tudo mais diz Sílvia pág 201 Eu tenho dúvidas sobre o caso da palavra prefumada v 28 diz Vera Não me lembro de termos estudado esse fenômeno E de fato não estudamos confirma Irene Mas a explicação é simples O português herdou do latim os prefixos pre per e pro que tinham usos bem definidos em latim mas que acabaram se confundindo em português Nos inícios da nossa língua estes prefixos foram usados indiscriminadamente na formação de palavras criando formas paralelas como perguntar e preguntar Com o tempo o vocabulário foi sendo regulado oficialmente foi sendo padronizado e certas formas foram eleitas como as certas em detrimento das outras A forma perguntar por exemplo que é a certa hoje em dia deriva na verdade de um latim precunctare mais próximo portanto da suposta forma errada não padrão preguntar que por sinal é a forma certa do espanhol padrão Meu Deus que rolo exclama Emília Essa flutuação no uso dos prefixos é o que explica a forma prefumada e também várias formas nãopadrão como precurar percurar prefessora projudicar entre outras Reparem que a língua padrão conservou duas formas derivadas de seguir PERSEGUIR e PROSSEGUIR O francês para estes dois significados tem uma palavra só POURSUIVRE e o tradutor brasileiro que se vire para saber se é perseguir ou prosseguir Além disso em certas áreas do Nordeste temos a deliciosa palavra prissiga que é o ato de prissiguir perseguir alguém importunandoo incomodandoo Neste caso o prefixo pre transformouse em pri por influência do I tônico da raiz siga Irene é impressionante o tanto que a gente pode aprender com os supostos erros do português nãopadrão diz Emília É verdade concorda Sílvia Aprendemos a história da nossa normapadrão seu funcionamento e até um pouco de grego e latim misturado com italiano e francês Sem falar é claro de podermos saborear as delícias de um lindo poema popular arremata Vera pág 202 A PRIMEIRA SEMENTE considerações finais por enquanto gora que vocês puseram a mão na massa e se saíram tão bem diz Irene eu gostaria de tentar fazer junto com vocês uma conclusão geral do nosso curso Como eu já tinha avisado no nosso primeiro encontro o nosso trabalho não mostrou nem quis nem poderia mostrar todas as características que diferenciam as variedades nãopadrão marginalizadas e vítimas de preconceitos do portuguêspadrão norma oficial prestigiada A minha esperança é de que alguns princípios essenciais tenham ficado claros e sirvam de apoio para uma nova maneira de encarar as variedades nãopadrão Que princípios são esses pergunta Vera Podemos resumilos assim diz Irene distribuindo a última de suas folhas impressas onde as três jovens lêem A a unidade lingüística do Brasil é um mito em nosso país além das línguas indígenas e das línguas trazidas pelos imigrantes falase diferentes variedades da língua portuguesa cada uma delas com características próprias com diferenças em seu status social mas todas com uma lógica lingüística facilmente demonstrável falar diferente não é falar errado tudo o que parece erro no PNP tem uma explicação lógica científica lingüística histórica sociológica psicológica traços característicos do PNP considerados erros se encontram em outras línguas o que mostra que eles não são uma prova da ignorância ou da deficiência mental do nosso povo muitos aspectos considerados errados no PNP e no PP do Brasil são na verdade arcaísmos vestígios da língua portuguesa falada muitos séculos atrás pág 203 a língua escrita não deve ser usada como camisadeforça para submeter e aprisionar a língua falada a escrita é tentativa de representação da língua falada e nasceu centenas de milhares de anos depois de o homem ter começado a falar Irene retoma É claro que poderíamos continuar esta lista mas acho que estes poucos princípios já servem de base para construirmos uma nova proposta de abordagem e de tratamento dos problemas causados na escola e na vida pelas diferenças entre a normapadrão e a variedades nãopadrão Semente flor fruto Depois de uma breve pausa ela volta a falar Descrever toda a gramática do PNP isto é todas as regras de seu funcionamento é uma tarefa difícil e trabalhosa A minha intenção aqui com vocês e também no livro que estou preparando é bem menos ambiciosa Eu simplesmente quero deixar claro que o sinal que temos de colocar entre PNP e PP é um sinal de diferença e não um sinal de inferioridade Parece tão simples não é Vejam como é fácil Ela vai até a lousa e escreve Mas fazer o X na lousa ou no papel é muitíssimo mais simples do que fazêlo na consciência na mente das pessoas Apagar uma idéia tão arraigada no imaginário coletivo destruir um mito muito antigo é uma tarefa árdua complicada que exige um esforço longo e duradouro Pode contar com a gente oferecese Emília pág 204 Parece que estamos lidando aqui com o problema do preconceito não é Irene sugere Sílvia Exatamente Sílvia confirma Irene O preconceito que PNP PP PNP PP pesa sobre o PNP faz parte de toda uma triste coleção de inverdades de distorções de falácias que povoam a mente da maioria das pessoas mesmo as supostamente mais bem informadas Ele está no mesmo porão escuro da nossa imaginação onde se amontoam mitos e preconceitos de toda ordem Enfim um monte de bobagens diz Emília Isso mesmo retoma Irene E é nessa montanha de bobagens nesse lixão que temos dentro da nossa mente que jogamos a língua falada pelas pessoas diferentes de nós criando mais uma ordem de preconceito o preconceito lingüístico Mas não devia ser assim intervém Sílvia em tom emocionado A humanidade já passou por experiências terríveis o bastante pág 205 principalmente no último século para começar racial o índio preguiçoso o negro malandro o japonês trabalhador o judeu mesquinho o português burro sexual a inferiorização da mulher o desprezo pelo homossexual pervertido e doente a valorização do macho rude e indelicado cultural o conhecimento científico valorizado em detrimento do conhecimento popular por exemplo o desprezo por práticas medicinais naturais e tradicionais em favor de medicamentos químicos industrializados ou a valorização da cultura transmitida por escrito em detrimento da cultura transmitida oralmente socioeconômica valorização do rico e do poderoso e desprezo do humilde e do oprimido por exemplo chamar o nordestino de atrasado e o sulista de progressista ou acreditar que tudo o que vem do primeiro mundo é intrinsecamente bom bonito infalível e necessário a aprender que a intolerância a inflexibilidade o fanatismo o desrespeito pelo diferente não levam a lugar nenhum a não ser à violência e à destruição É claro que não podemos modificar o mundo transformar a mente de todas as pessoas prossegue Irene mas podemos começar a dar a nossa pequena contribuição tornando mais claro e respirável o ambiente em que nos movemos diariamente Você tem razão Irene é mesmo uma questão ecológica comenta Emília no sentido mais amplo do termo Afinal gente basta uma pequena semente para fazer brotar e crescer uma árvore enorme que dará muita sombra flores perfumadas e frutos saborosos retoma a professora Quem sabe cada uma de nós não é a generosa jardineira que vai plantar e regar com paciência e amor esta pequena semente pág 206 A PARTIDA a rodoviária de Atibaia estão todos reunidos para a despedida Eulália e Irene Ângelo e Antônia com os filhos Rosa e Gabriel além é claro de Vera Emília e Sílvia Estas foram as melhores férias da minha vida Irene diz Emília abraçandoa com força e beijandolhe várias vezes o rosto Que exagero menina Deixe de ser mentirosa replica Irene sorrindo Mas é verdade Irene intervém Sílvia Eu pelo menos estou saindo daqui completamente diferente de como cheguei Mais gorda provavelmente ironiza Emília Afinal com o tempero da Eulália Não seja boba Emília diz Sílvia você sabe muito bem o que eu quis dizer Beijos abraços despedidas O afeto é tão grande que parece que as três estão de partida para algum lugar muito distante e remoto e não para São Paulo que fica a pouco mais de uma hora dali Eu tenho uma surpresinha final para vocês diz Irene tirando do bolso do vestido um envelope branco O que é tia pergunta Vera curiosa Recebi hoje à tarde uma proposta de uma editora para publicar o meu livrinho sobre o português nãopadrão Que maravilha Irene comemora Sílvia Não se esqueça de que queremos ser as primeiríssimas a receber um exemplar exige Emília com uma dedicatória quilométrica e bem melosa por favor A dedicatória não vai ser problema diz Irene porque ela vai estar impressa em todos os exemplares Como assim admirase Sílvia N Resolvi dedicar o livro a vocês três explica Irene Afinal é o mínimo que posso fazer por quem teve tanta paciência em servir de cobaia para os meus testes científicos As três jovens visivelmente emocionadas abraçam Irene com carinho E já sabe como vai se chamar o livro pergunta Vera pág 207 Estou com uma idéia quero ver o que vocês acham responde Irene E qual é interessase Emília sempre curiosa Infelizmente não pode ser Emília no país da gramática porque o Monteiro Lobato já escreveu um livro com esse título perfeito Ai meu Deus como é metida exclama Vera Irene percebe que Eulália se afastou um pouco para comprar pipoca com os netos Aproveita a chance para dizer Quero fazer uma surpresa para a Eulália Estou pensando em dar ao livro o título de A Língua de Eulália Afinal foi observando a variedade lingüística dela que me veio a idéia de estudar o assunto O que acham Que idéia mais linda tia comovese Vera Você realmente não existe E o título tem um detalhezinho lingüístico interessante ainda por cima revela Irene O nome Eulália em grego quer dizer a que fala bonito a que fala bem a que fala certo Não é uma delícia Eulália e os netos se aproximam para as despedidas Emília e Sílvia insistem para que todos vão visitálas em São Paulo As três entram no ônibus que não demora a partir Na plataforma da rodoviária Irene fica acenando com o envelope da editora na mão e um sorriso a iluminar seu rosto pág 208 MAIS DUAS PALAVRINHAS E SUGESTÕES DE LEITURA uitas das idéias apresentadas pela professora Irene neste livro fazem parte de um ramo da ciência da linguagem chamado Sociolingüística que estuda as correlações entre fenômeno lingüístico e fato social Aliás foi a leitura de um texto do sociolingüista norte americano William Labov que me inspirou a escrever este livro Em seu famoso artigo The Logic of Nonstandard English A lógica do inglês nãopadrão de 1969 Labov mostrou que o inglês nãopadrão dos Estados Unidos falado sobretudo pelos negros em seus guetos não era o inglês corrompido de uma raça inferior mas apenas um inglês diferente com uma lógica lingüística própria A canção Cuitelinho na doce interpretação de Nara Leão foi recolhida por Paulo Vanzolini e faz parte do CD Música Popular do CentroOeste Sudeste volume 4 da gravadora Marcus Pereira Os dados e estatísticas referentes a Os Lusíadas se encontram no índice analítico do vocabulário de Os Lusíadas de Antônio Geraldo da Cunha Rio de Janeiro Presença 2a edição 1980 e em Camões e a poesia brasileira de Gilberto Mendonça Teles Rio de Janeiro MECUFF FCRB 1973 O poema Malinculia de Antonino Sales me foi apresentado pela professora Maria da Piedade de Sá que também me chamou a atenção para o estudo de Manuel Said Ali sobre o pronome se Aproveito também para agradecer a leitura cuidadosa dos originais feita pelo professor Rodolfo Ilari que fez observações que me ajudaram a aprimorar a versão final do livro Quero agradecer também a Sonia Alexandre e a Júlia Francisca Bagno por tudo o que fizeram por este livro Esta nova edição contou com a leitura e os comentários aos novos capítulos da parte da professora Stella Maris BortoniRicardo a quem agradeço muito Foi ela aliás que me fez conhecer a Sociolingüística e me apaixonar por este campo de estudo Os M leitores interessados em se aprofundar nestas questões podem consultar com bom proveito as obras relacionadas a seguir pág 209 BECHARA Evanildo Ensino da gramática Opressão Liberdade São Paulo Ática 2ed 1986 Escrito por um dos nossos mais importantes gramáticos grande conhecedor da norma padrão este livro propõe um ensino de língua que torne o aluno um poliglota dentro de sua própria língua isto é capaz de usar as diversas variedades da língua de acordo com sua adequabilidade aos diferentes contextos de uso do idioma BORTONIRICARDO Stella Maris Problemas de comunicação interdialetal em Sociolingüística e ensino do vernáculo Revista Tempo Brasileiro Rio de Janeiro n 7879 1984 A professora Stella Maris Bortoni de quem tive a honra de ser aluno em Brasília é uma das principais sociolingüistas do Brasil Considero este artigo tão importante quanto o de Labov sobre o inglês nãopadrão por causa das questões políticas que ele suscita CARVALHO Marlene Guia prático do alfabetizador São Paulo Ática 1994 Este livro complementa o Guia teórico do alfabetizador da profa Miriam Lemle citado mais adiante CASTILHO Ataliba T A língua falada e o ensino de português São Paulo Contexto 1998 Escrito por aquele que é sem dúvida o nome mais importante hoje nos estudos do português do Brasil este livro traz propostas práticas para a abordagem dos fenômenos da língua falada em sala de aula fenômenos que sempre foram desprezados pelo ensino tradicional que só se concentrava na língua escrita literária clássica CUNHA Celso Língua portuguesa e realidade brasileira Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1968 Leitura obrigatória para todos os brasileiros escrito por um dos nossos mais importantes filólogos este livro já se tornou um clássico Embora em suas gramáticas Celso Cunha conserve uma atitude basicamente tradicionalista em seus textos teóricos ele se mostra muito mais aberto às novas idéias lingüísticas pág 210 Língua nação e alienação Rio de Janeiro Nova Fronteira 1981 Contém um importante artigo chamado Política e cultura do idioma FARACO Carlos Alberto Escrita e alfabetização São Paulo Contexto 1992 Trata das dificuldades ortográficas do domínio da linguagem escrita e das variedades dialetais em relação à alfabetização GERALDI J Wanderley org O texto na sala de aula São Paulo Ática 2a ed 1999 Coletânea de textos de vários autores sobre os problemas de ensino de redação leitura e gramática Destaque especial para os textos do próprio Geraldi e de Sírio Possenti GNERRE Maurizzio Linguagem escrita e poder São Paulo Martins Fontes 1985 É o livro que mais se aproxima das minhas posições pessoais sobre a questão social da linguagem Escrito num estilo direto e franco sem papas na língua pondo o dedo em muitas feridas HAUY Amini Boainain Da necessidade de uma gramáticapadrão da língua portuguesa 4ed São Paulo Ática 1994 Mostrando as deficiências das atuais definições de conceitos na gramática normativa a autora propõe uma revisão e uma reelaboração da gramática do portuguêspadrão HOUAISS Antônio O português no Brasil Rio de Janeiro Unibrade 1985 Retraça a história da língua portuguesa no Brasil sua situação atual bem como a importância do português no cenário mundial das línguas ILARI Rodolfo A lingüística e o ensino da língua portuguesa 2ed São Paulo Martins Fontes 1986 Mais um livro que se aproxima bastante dos nossos próprios pontos de vista O autor mostra o perigo que o ensino da Lingüística representa para os valores conceitos e preconceitos há muito arraigados na teoria e na prática dos nossos cursos de Letras pág 211 KOCH Ingedore V A interação pela linguagem São Paulo Contexto 1997 Dispensa comentários todos os livros da professora Ingedore Koch merecem ser lidos com atenção LEMLE Miriam Guia teórico do alfabetizador 5ed São Paulo Ática 1991 Livro extremamente agradável de leitura muito acessível que apresenta aos professores de classes de alfabetização os fundamentos teóricos de que precisam para compreender os fatos da língua com que lidam no diaadia Pode ser complementado com o Guia prático do alfabetizador de Marlene Carvalho já citado LUFT Celso Pedro Língua e liberdade 3ed São Paulo Ática 1994 O autor mostra como a nossa tradição de ensino da língua portuguesa é repressiva autoritária valendose muitas vezes de regras irrelevantes e até contraditórias Propõe uma reformulação do ensino capaz de despertar o espírito crítico do aluno NEVES Maria Helena de Moura Gramática na escola São Paulo Contexto 1990 Fundamental para conhecermos a visão que os próprios professores do ensino público têm da importância da gramática e do ensino da língua e das dificuldades de desempenhar sua tarefa O livro critica a orientação atual do ensino da língua baseado em critérios formais e propõe uma nova orientação a funcionalista NOSELLA Maria de Lourdes As belas mentiras São Paulo Moraes 1979 A autora analisa livros didáticos de língua portuguesa e mostra de que maneira eles tentam reproduzir a ideologia das classes dominantes preparando os alunos das classes dominadas a preservar os valores da elite e a ocupar papéis subalternos na sociedade ORLANDI Eni Pulcinelli org Política lingüística na América Latina Campinas Pontes 1988 Coletânea de ensaios de estudiosos brasileiros e latinoamericanos acerca dos problemas pág 212 políticos e culturais que envolvem as questões lingüísticas em diversos países do continente PEREZ José Roberto Rus Lição de português tradição e modernidade no livro escolar CampinasSão Paulo UnicampCortez 1991 Estudo da teoria que subjaz nos livros didáticos de língua portuguesa e literatura brasileira Importante análise do papel político econômico e educacional dos manuais escolares PERINI Mário A Para uma nova gramática do português 2ed São Paulo Ática 1985 O autor mostra as inconsistências das definições e conceitos da gramática tradicional e propõe uma nova abordagem baseada nos avanços da pesquisa lingüística atual Sofrendo a gramática São Paulo Ática 1997 Neste livro que reúne textos curtos mas bastante incisivos o autor prossegue suas análises sobre as incongruências do ensino tradicional da gramática a matéria que ninguém nunca aprende PINTO Edith Pimentel A língua escrita no Brasil São Paulo Ática 1986 Interessante discussão sobre o verdadeiro status da língua portuguesa do Brasil baseada na história da língua e na sua diferenciação desde que chegou ao nosso país O português popular escrito São Paulo Contexto 1990 Prosseguindo os estudos do livro anterior este trabalho da autora analisa a língua portuguesa nãopadrão do Brasil na sua forma escrita POSSENTI Sírio Por que não ensinar gramática na escola Campinas Mercado de LetrasALB 1996 Um livro que como diz o próprio autor é primo deste A Língua de Eulália Em linguagem clara e com argumentos muito bem defendidos o autor analisa os diferentes conceitos inclusive os políticos pág 213 e ideológicos contidos no termo gramática e sugere as bases em que realmente deve se estabelecer o ensino de língua na escola PRETI Dino Sociolingüística os níveis da fala 7ed São Paulo Edusp 1994 Boa introdução para quem deseja se aventurar no terreno da Sociolingüística RAMOS Jânia O espaço da oralidade em sala de aula São Paulo Martins Fontes 1997 Como abordar a língua falada na escola A autora dá sugestões práticas de exercícios e atividades que podem valorizar a linguagem oral sempre tão desprezada pelo ensino tradicional SILVA Myrian Barbosa da Leitura ortografia e fonologia 2ed São Paulo Ática 1993 Estudo sobre a problemática relação entre língua falada e língua escrita entre realidade fonética e ensino da ortografia O prefácio de Miriam Lemle é muito importante para os pontos de vista que defendemos aqui SILVA Rosa Virgínia Mattos e Tradição gramatical e gramática tradicional 2ed São Paulo Contexto 1994 A autora nos leva até as origens da tradição gramatical na Antiguidade clássica e na Idade Média e nos mostra como muitos desses conceitos antigos ainda estão vigentes na gramática que se ensina hoje em dia Contradições no ensino de português São Paulo Contexto 1997 Mais um excelente trabalho da profa Rosa Virgínia discutindo desta vez o problemático conceito de norma e suas implicações para o ensino O último capítulo resume importantes pesquisas sobre o português do Brasil mostrando a distância que existe entre a língua realmente usada no país e aquela que a escola insiste em continuar ensinando SILVA NETO Serafim da Introdução ao estudo da língua portuguesa no Brasil 5ed Rio de Janeiro Presença 1986 Escrito em pág 214 1950 este livro foi pioneiro na tentativa de analisar a língua portuguesa do Brasil suas características peculiares sua história Leitura fundamental embora tenha de ser feita sempre com um olhar crítico pois o autor em certos momentos ainda se baseia em alguns conceitos tradicionais já considerados ultrapassados pela Lingüística atual SOARES Magda Linguagem e escola uma perspectiva social 10 ed São Paulo Ática 1993 Leitura imprescindível para todas as pessoas que têm um mínimo interesse nos problemas da Educação que como enfatiza a autora não são problemas meramente pedagógicos mas problemas políticos SOUZA Álvaro José de Geografia lingüística dominação e liberdade São Paulo Contexto 1990 O autor estuda a imposição de línguas oficiais e a conseqüente marginalização das línguas nãopadrão a fala como ato político e a dominação exercida por meio da linguagem TARALLO Fernando A pesquisa sociolingüística São Paulo Ática 1985 Oportuna introdução aos métodos e técnicas da Sociolingüística escrita em linguagem clara e acessível TFOUNI Leda Verdiani AAdultos não alfabetizados o avesso do avesso Campinas Pontes 1988 Livro bastante técnico mas muito importante para a compreensão dos problemas relativos aos conceitos de escrita alfabetização e letramento Entre outras coisas a autora desmente o mito de que pessoas não alfabetizadas são incapazes de raciocínio lógico pág 215 EEssttaa oobbrraa ffooii ddiiggiittaalliizzaaddaa ee rreevviissaaddaa ppeelloo ggrruuppoo D Diiggiittaall SSoouurrccee ppaarraa pprrooppoorrcciioonnaarr ddee m maanneeiirraa ttoottaallm meennttee ggrraattuuiittaa oo bbeenneeffíícciioo ddee ssuuaa lleeiittuurraa ààqquueelleess qquuee nnããoo ppooddeem m ccoom mpprráállaa oouu ààqquueelleess qquuee nneecceessssiittaam m ddee m meeiiooss eelleettrrôônniiccooss ppaarraa lleerr D Deessssaa ffoorrm maa aa vveennddaa ddeessttee eebbooookk oouu aattéé m meessm moo aa ssuuaa ttrrooccaa ppoorr qquuaallqquueerr ccoonnttrraapprreessttaaççããoo éé ttoottaallm meennttee ccoonnddeennáávveell eem m qquuaallqquueerr cciirrccuunnssttâânncciiaa AA ggeenneerroossiiddaaddee ee aa hhuum miillddaaddee éé aa m maarrccaa ddaa ddiissttrriibbuuiiççããoo ppoorrttaannttoo ddiissttrriibbuuaa eessttee lliivvrroo lliivvrreem meennttee AAppóóss ssuuaa lleeiittuurraa ccoonnssiiddeerree sseerriiaam meennttee aa ppoossssiibbiilliiddaaddee ddee aaddqquuiirriirr oo oorriiggiinnaall ppooiiss aassssiim m vvooccêê eessttaarráá iinncceennttiivvaannddoo oo aauuttoorr ee aa ppuubblliiccaaççããoo ddee nnoovvaass oobbrraass SSee qquuiisseerr oouuttrrooss ttííttuullooss nnooss pprrooccuurree hhttttppggrroouuppssggoooogglleeccoom mggrroouuppVViicciiaaddoosseem mLLiivvrrooss sseerráá uum m pprraazzeerr rreecceebbêêlloo eem m nnoossssoo ggrruuppoo hhttttppggrroouuppssggoooogglleeccoom mggrroouuppVViicciiaaddoosseem mLLiivvrrooss hhttttppggrroouuppssggoooogglleeccoom mggrroouuppddiiggiittaallssoouurrccee Impressão e acabamento GRÁFICA PAYM Tel 011 43923344 A Língua de Eulália Novela Sociolinguística A língua de Eulália é antes de tudo uma ponte sempre reivindicada mas até então não construída entre o saber acadêmico quase esotérico nas ciências linguísticas e o cidadão comum que tem o direito de conhecer mais sobre sua língua seus usos sua história sua dimensão como instrumento identitário E Marcos Bagno constrói a ponte sem trivializar a informação científica Stella Maris BortoniRicardo PhD University of Lancaster O autor faz um terno circunscrito à academia aos especialistas passar pela esfera dos mortais dos nãoiniciados de tal forma que conseguiu prender até a atenção do leitor não muito familiarizado com o assunto Sérgio Smira professor de Português e escritor O Estado de S Paulo 16 de fevereiro de 1998 O autor busca derrubar o preconceito linguístico na alfabetização Revista Nova Escola março de 1998
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Marcos Bagno Marcos Bagno Novela Sociolingüística Copyright 1997 Marcos Bagno Todos os direitos desta edição reservados à Editora Contexto Editora Pinsky Ltda Projeto gráfico R C Pretel Comunicação Diagramação Global Tec Produções Gráficas Revisão Rose Zuanetti Dados Internacionais de Catalogação na Publicação CIP Câmara Brasileira do Livro SP Brasil Bagno Marcos A língua de Eulália novela sociolingüística Marcos Bagno 15 ed São Paulo Contexto 2006 Bibliografia ISBN 857244081X 1 Lingüística 2 Português 3 Sociolingüística I Título 974183 CDD4019 Índice para catálogo sistemático 1 Sociolingüística 4019 hhttttppggrroouuppssggoooogglleeccoom mggrroouuppddiiggiittaallssoouurrccee EDITORA CONTEXTO Diretor editorial Jaime Pinsky Rua Acopiara 199 Alto da Lapa 05083110 São Paulo SP PABX 11 3832 5838 contextoeditoracontextocombr wwweditoracontextocombr 2006 Proibida a reprodução total ou parcial Os infratores serão processados na forma da lei CCCC CCCCO OO O O OO ON NN N N NN NTTTTTTTTR RR R R RR RAAAAAAAA CCCC CCCCAAAAAAAAPPPPPPPPAAAAAAAA A língua de Eulália é antes de tudo uma ponte sempre reivindicada mas até então não construída entre o saber acadêmico quase esotérico nas ciências lingüísticas e o cidadão comum que tem o direito de conhecer mais sobre sua língua seus usos sua história sua dimensão como instrumento identitário E Marcos Bagno constrói a ponte sem trivializar a informação científica Stella Maris BortoniRicardo PhD University of Lancaster O autor faz um tema circunscrito à academia aos especialistas passar para a esfera dos mortais dos nãoiniciados de tal forma que consegue prender até a atenção do leitor não muito familiarizado com o assunto Sérgio Simka professor de Português e escritor O Estado de SPaulo 15 de fevereiro de 1998 O autor busca derrubar o preconceito lingüístico na alfabetização Revista Nova Escola março de 1998 O O O O O O O OR RR R R RR REEEEEEEELLLLLLLLHHHHHHHHAAAAAAAASSSSSSSS D D D D D D D DO OO O O OO O LLLLLLLLIIIIIIIIVVVVVVVVR RR R R RR RO OO O O OO O Nossa tradição educacional sempre negou a existência de uma pluralidade de normas lingüísticas dentro do universo da língua portuguesa a própria escola não reconhece que a norma padrão culta é apenas uma das muitas variedades possíveis no uso do português e rejeita de forma intolerante qualquer manifestação lingüística diferente tratando muitas vezes os alunos como deficientes lingüísticos Marcos Bagno argumenta que falar diferente não é falar errado e o que pode parecer erro no português nãopadrão tem uma explicação lógica científica lingüística histórica sociológica psicológica Para explicar essa problemática o autor reúne então nA LÍNGUA DE EULÁLIA as universitárias Vera Sílvia e a esperta Emília que vão passar as férias na chácara da professora Irene Sempre muito dedicada Irene se reúne todos os dias com as três professoras do curso primário transformando suas férias numa espécie de atualização pedagógica em que as alunas reciclam seus conhecimentos lingüísticos Mais do que isso Irene acaba criando um apoio para que as meninas passem a encarar de uma nova maneira as variedades nãopadrão da língua portuguesa A novela flui em diálogos deliciosamente informativos A LÍNGUA DE EULÁLIA trata a sociolingüística como ela deve ser tratada com seriedade mas sem sisudez O autor Marcos Bagno nasceu em Cataguases MG e depois de ter vivido em Salvador no Rio de Janeiro em Brasília e no Recife instalouse com a família na capital de São Paulo Tradutor contista poeta e autor de livros para crianças formouse em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco onde também obteve seu título do mestre em Lingüística É doutor em Filologia e Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo O serviço mais útil que os lingüistas podem prestar hoje é varrer a ilusão da deficiência verbal e oferecer uma noção mais adequada das relações entre dialetospadrão e nãopadrão William Labov The Logic of Nonstandart English 1969 a Maria da Piedade Moreira de Sá com gratidão e carinho pelas incontáveis provas de amor que tem dado à ciência A chegada 9 Quem ri do que 13 Que língua é essa 18 Um probrema sem a menor graça 48 Uma língua enxuta 55 Liberdade fraternidade igualdade 64 Verbo pra que te quero 75 E agora com vocês a Assimilação 86 Sodade meu bem sodade 93 Beijo rima com desejo 103 Música maestro 111 Que coisa mais esdrúxula 127 Quem era o home que eu vi onte na garage 135 Quem não se alembra de Camões 140 Aceitase roupas novas 150 A bruxa está solta 169 A fôrma a norma e o funil 183 Índio sim com muito orgulho 208 Pondo a mão na massa 229 A primeira semente 237 A partida 241 Mais duas palavrinha e sugestões de leitura 243 Nota da digitalizadora A numeração de páginas aqui referese a edição digital a paginação original encontrase inserida entre colchetes no texto Entendese que o texto que está antes da numeração entre colchetes é o que pertence aquela página e o texto que está após a numeração pertence a página seguinte A CHEGADA era Sílvia e Emília foram as primeiras a descer na rodoviária de Atibaia quando o ônibus estacionou Respirem fundo manda Vera e as outras duas obedecem Já sentiram a diferença do ar Sílvia inspira com sofreguidão retém a respiração por alguns segundos e depois libera o ar dos pulmões Sorri Já E que diferença Nem parece que estamos tão perto de São Paulo e de toda aquela poluição É mesmo concorda Emília Parece que aqui o ar corresponde àquela descrição que aparece nos livros de ciências Incolor e inodoro apressase em completar Vera Mas essas não são as qualidades da água inquietase Sílvia Eu lá quero saber Estou de férias graceja Vera As três sorriem Vera tem 21 anos é estudante de Letras Sílvia da mesma idade estuda Psicologia Emília 19 está no primeiro ano de Pedagogia As três são professoras do curso primário no mesmo colégio de São Paulo E agora Vera pergunta Sílvia Como fazemos para chegar na casa da sua tia Pegamos um táxi responde Vera Mais exatamente o táxi do Ângelo que deve estar esperando a gente Eu telefonei ontem para ele combinando Cidade pequena tem isso de legal comenta Sílvia a gente conhece até os motoristas de táxi pelo nome Também desdenha Emília devem ser só três ou quatro em toda Atibaia As duas estão erradas corrige Vera Não conheço todos V os motoristas pelo nome e aqui tem muito mais do que três ou quatro dona Emília O caso é que o Ângelo é uma pessoa especial ele é filho da Eulália Sílvia e Emília não compreendem Vera logo acrescenta A Eulália mora com a minha tia Irene É a pessoa mais querida do universo inteiro Eu simplesmente amo ela pág 09 A moela que eu saiba é um órgão das galinhas meu bem diz Emília sarcasticamente Não enche Emília a gente estamos de férias tá bão graceja Sílvia Não senhora protesta Emília Temos um exemplo a dar Uma professora deve estar sempre alerta Para mim isso é lema de escoteiro diz Vera sem perder o bom humor Neste momento um grande carro branco estaciona junto delas O motorista negro e jovem sai e vem cumprimentar Vera Ela o abraça e beija para espanto das amigas Ângelo estas aqui são duas colegas minhas lá de São Paulo a Sílvia e a Emília Ângelo sorri para elas e estende a mão Muito prazer eu sou o Ângelo e aperta com força a mão de cada uma delas Vamos lá A minha mãe está esperando vocês com um almoço daqueles que só ela sabe fazer Parece até uma festa de casamento Enquanto fala Ângelo abre as portas do carro para que as moças entrem Recolhe as maletas que elas haviam deixado no chão e as guarda no portamalas do carro A caminho da casa da tia de Vera Sílvia e Emília não param de falar Você disse que a sua tia é viúva pergunta Sílvia Não ela é divorciada há muitos anos responde Vera E mora aqui sozinha quer saber Emília Não mora com a Eulália eu já disse E você falou que ela era professora universitária volta a falar Sílvia Professora de língua portuguesa e lingüística Até se aposentar Isso tem uns cinco anos Mas ela mora aqui em Atibaia já faz mais de vinte Ia para Campinas todo dia trabalhar de manhã e voltava à noite explica Vera paciente E ela não sente falta do trabalho quer saber Sílvia Ela gosta de ser dona de casa Dona de casa A tia Irene Vera ri gostoso Ela se pág 10 aposentou da universidade mas continua trabalhando Aliás acho que hoje em dia ela trabalha mais do que quando era professora Por quê pergunta Emília Ela continua estudando pesquisando escrevendo Toda vez que venho aqui ela comenta sobre algum artigo que uma revista encomendou algum livro que está preparando coisas assim Lá na faculdade quando comento com os professores que sou sobrinha de Irene Amaggio todos se desdobram em elogios Ela é muito respeitada E você não pode esquecer o outro trabalho dela aqui em Atibaia não é Vera intervém Ângelo que estava atento à conversa Que trabalho pergunta Sílvia A dona Irene ensina a gente pobre a ler e escrever responde o motorista satisfeito Que coisa bonita exclama Emília admirada É mesmo confirma Vera A tia Irene montou na chácara um curso de alfabetização para adultos Tudo começou com a minha mãe explica Ângelo Foi diz Vera Quando a Eulália foi trabalhar com a tia Irene ela não sabia ler nem escrever Minha tia não quis saber daquilo disse que nunca ia admitir na casa dela uma pessoa analfabeta Começou a dar aulas à noite para a Eulália A Eulália foi trazendo algumas conhecidas estas foram trazendo mais gente e quando minha tia viu estava dando aula para umas vinte pessoas todas adultas a maioria mulheres que trabalhavam nas casas do bairro onde ela mora Imaginem que ela trabalhava na universidade o dia todo e quando chegava ainda tinha de dar aula à noite Depois que se aposentou ficou mais fácil Mas agora estão todos de férias porque afinal ninguém é de ferro Agora entendi diz Emília de repente A Eulália é a empregada da sua tia No começo sim mas isso tem quase vinte anos A Eulália ia trabalhar lá e depois voltava para a casa dela explica Vera Depois que a Eulália ficou viúva foi morar com minha tia Mas já eram tão amigas que a tia Irene não quis saber da Eulália vivendo no quartinho dos fundos Deu a ela um dos quartos da casa pôs o pág 11 Ângelo que era pequeno em outro e passaram todos a viver ali como se fosse uma família só Depois que o Ângelo se casou moram só as duas lá cuidando juntas da casa da horta do pomar dos bichos A sua tia Irene é uma santa mulher diz Ângelo Me pôs na escola me ajudou nos estudos me levou para viajar e é por causa dela que hoje eu tenho este emprego minha casa e minha família E sua tia não tem filhos pergunta Sílvia Tem sim filhos e netos responde Vera Minha prima Cecília e meu primo Vicente moram lá em São Paulo Quando a tia Irene se mudou para Atibaia eles já estavam casados e tudo pág 12 QUEM RI DO QUÊ epois do almoço que foi mesmo uma grande festa Ângelo voltou ao trabalho e Eulália foi dormir sua sesta habitual da tarde Vera Sílvia e Emília saíram para passear pela chácara com Irene A senhora tem um jardim deslumbrante dona Irene comenta Sílvia maravilhada diante dos canteiros de rosas e hortênsias Para começar deixe o senhora de lado e esqueça o dona também diz Irene sorrindo Já é um custo agüentar a Vera me chamando de tia o tempo todo Meu nome é Irene Dona Irene ou pior Professora Doutora Irene eu cobro só de quem não gosto Todas sorriem Irene prossegue Agradeço os elogios para o jardim só que você vai ter de fazêlos para a Eulália que é quem cuida das flores Eu sou um fracasso na jardinagem A Eulália não acho que tem um dedo verde Basta alisar uma planta murchinha para ela ficar toda brejeira verdinha e viçosa Uma coisa impressionante Foi ela também que preparou o almoço não foi pergunta Emília Foi responde Irene Eu gosto de cozinhar mas quando tem visita a Eulália não me deixa chegar perto das panelas Faz questão de preparar tudo sozinha A maior glória para ela é quando alguém louva a comida que fez Parece que a Eulália é mesmo muito prendada comenta Sílvia Prendada Essa é boa ri Irene Menina em que século passado você nasceu Sílvia fica corada Para dizer a verdade prossegue Irene a Eulália é um D poço sem fundo de conhecimento e sabedoria Todo dia aprendo uma coisa nova com ela Só de remédios caseiros feitos com ervas medicinais dava para encher uma enciclopédia E como conselheira para momentos de angústia e depressão não conheço melhor psicólogo do que ela Pode até ser comenta Emília enquanto as quatro se sentam pág 13 num grande banco de madeira sob um caramanchão Mas ela fala tudo errado Isso para mim estraga qualquer sabedoria Eu tive de me segurar para não rir quando ela disse aquelas coisas na mesa acrescenta Sílvia Que coisas quer saber Vera Ah sei lá agora não me lembro responde Sílvia Eu me lembro adiantase Emília Ela disse os probrema os fósfro môio ingrês É mesmo confirma Sílvia e a mais engraçada foi percurá os hôme Sílvia ri e Emília a imita Irene fica séria por alguns instantes De repente virase para as duas moças e diz Or tu chi se che vuoi sedere a scranna Per giudicar da lungi mille miglia Con la veduta corta duna spanna Sílvia Emília e Vera tomadas de surpresa ficam mudas E então Não querem rir também do que eu disse como riram das coisas que a Eulália falou Mas você falou em italiano diz Vera Se era italiano por que devíamos rir Eu não posso achar graça naquilo que não entendo diz Emília E por que você não entende pergunta Irene Ora porque não falo italiano responde Emília E o que é que você fala continua Irene Eu falo português diz Emília já intrigada E o que é o italiano para alguém que fala português quer saber Irene As moças param um instante para pensar É Sílvia quem responde É outra língua Uma língua diferente completa Vera Muito bem diz Irene Vocês não entenderam o verso de Dante que eu citei há pouco porque era italiano Mas e se eu disser assim No mundo non me sei parelha mentre me for como me vay ca já moiro por vos e ay Esse quase dá para entender afinal é espanhol diz Sílvia Não senhora corrige Irene É português pág 14 Português espantase Emília Português sim só que do século XII Idade Média explica Irene E que tal alguma coisa assim Estoume nas tintas se não te apetece uma bola de Berlim Vai me dizer que isso também é português duvida Sílvia Claro que é é português falado em Portugal Significa Estou pouco ligando se você não gosta de comer sonho Vera impacientase Tia aonde é que você quer chegar Vocês não entenderam o Dante porque o italiano é diferente do português Vocês não entenderam o português do século XII porque ele é diferente do português de hoje E não entenderam o português de Portugal porque é diferente do português do Brasil E o que tem isso a ver com a fala errada da Eulália pergunta Emília A fala da Eulália não é errada é diferente É o português de uma classe social diferente da nossa só isso explica Irene Para mim é errado diz Emília É errado dentro das regras da gramática que se aplicam ao português que você fala diz Irene Mas na variedade nãopadrão falada pela Eulália essas regras não funcionam Variedade nãopadrão Que coisa é essa tia pergunta Vera Irene dá um suspiro sorri e diz Essa é uma história comprida Vera e não sei se dá para resumir aqui no jardim nesta tarde fria de julho depois de ter comido tanto no almoço Mas agora eu fiquei curiosa diz Vera Eu também diz Sílvia E eu mais ainda diz Emília Quero ver a senhora você me convencer que a Eulália não fala errado Irene se levanta e diz Vamos combinar o seguinte Hoje à noite a gente se reúne na sala acende a lareira se enrola nuns cobertores e bate um longo papo sobre este assunto Por coincidência eu estou mesmo preparando um livrinho que trata destes problemas Vou aproveitar o resto da tarde para ler um pouco e lá por volta das oito horas a pág 15 gente se encontra Enquanto isso Vera leve as meninas para passear aqui pelos arredores Combinado Combinado diz Vera Antes eu quero saber o que foi aquilo que você disse em italiano Irene sorri São uns versos da Divina Comédia de Dante A tradução é difícil mas significam alguma coisa como quem você tão presunçoso pensa que é para julgar de coisas tão elevadas com a curta visão de que dispõe Emília e Sílvia se entreolham É impressão minha ou foi uma indireta pergunta Sílvia Indireta nenhuma querida responde Irene puxando Sílvia para junto de si e abraçandoa com carinho São uns versos bonitos que guardei de cor só isso E aquele português da Idade Média o que era pergunta Emília São os primeiros versos de uma cantiga de amor responde Irene Essa cantiga é considerada o texto mais antigo escrito em língua portuguesa data de 1189 É tão antiga que até hoje os filólogos discutem sobre o significado exato das palavras Mas agora chega de conversa Vão passear Durante o passeio aproveitem para pensar na resposta que vocês dariam à seguinte pergunta Quantas línguas se fala no Brasil Não digam nada agora À noite a gente se vê pág 16 QUE LÍNGUA É ESSA O mito e a realidade o errado e o diferente o eu e o outro O mito da língua única noite como ficou combinado reúnemse todas na sala grande da lareira devidamente acesa Diante do fogo há um largo tapete felpudo sobre o qual foram espalhadas algumas almofadas grandes e macias No centro uma mesinha baixa com um bule de chá outro de chocolate canecas de louça branca um prato com biscoitinhos outro com um apetitoso bolo inglês Irene remexe algumas folhas de papel que trouxe de seu quarto de estudos Vera servese de chá enquanto Sílvia molha um biscoitinho no chocolate quente Emília está ocupada em proteger seus pés com as meias grossas de lã que Irene lhe emprestou Faz muito frio mas a sala está bem aquecida e aconchegante Não vi mais a Eulália hoje comenta Vera Ela foi para a casa do Ângelo explica Irene Os netos estão de férias Ela foi babar em cima deles e estragálos como cabe e convém a uma boa avó Deve dormir por lá E então essa aula começa ou não começa pergunta Sílvia tornando a encher a xícara de chocolate Aula surpreendese Irene Eu tinha pensado só num batepapo nada de muito sério Afinal estamos todas de férias não é e pisca um olho para a sobrinha Mas bater papo com alguém que sabe a Divina Comédia de cor vale por uma aula diz Emília Sorriso geral Já que você insiste vamos começar diz Irene E quero começar pedindo a vocês que me respondam Quantas línguas se fala no Brasil À Silêncio As três tímidas não ousam arriscar uma resposta Emília cutuca Vera com o cotovelo e diz Vera você faz Letras é obrigada a saber a resposta Vera assim convocada em seus brios acadêmicos pigarreia e diz pág 17 Bom o que a gente aprende na escola desde pequena é que no Brasil só se fala português Isso mesmo confirma Sílvia No Brasil a gente fala português de Norte a Sul Irene escuta com atenção Depois começa a falar É bem a resposta que eu esperava E não havia por que ser diferente Meninas na tradição de ensino da língua portuguesa no Brasil existe um mito que há muito tempo vem causando um sério estrago na nossa educação Que mito é esse tia É o mito da unidade lingüística do Brasil As três moças se entreolham surpresas Irene prossegue O mito da unidade lingüística do Brasil pode ser resumido na resposta que a Vera e a Sílvia me deram agora há pouco No Brasil só se fala uma língua o português Um mito entre outras definições possíveis é uma idéia falsa sem correspondente na realidade Quer dizer que a resposta delas é falsa mentirosa pergunta Emília Exatamente responde Irene E por quê tia Primeiro no Brasil não se fala uma só língua Existem mais de duzentas línguas ainda faladas em diversos pontos do país pelos sobreviventes das antigas nações indígenas Além disso muitas comunidades de imigrantes estrangeiros mantêm viva a língua de seus ancestrais coreanos japoneses alemães italianos etc Mas os índios são muito poucos e vivem isolados replica Sílvia É e as comunidades de imigrantes também são uma minoria dentro do conjunto total da população brasileira completa Emília A língua mais usada mais falada mais escrita é mesmo o português conclui Vera Poder ser diz Irene Mas mesmo deixando de lado os índios e os imigrantes nem por isso a gente pode dizer que no Brasil só se fala uma única língua Talvez vocês se surpreendam com o que vou dizer agora mas não existe nenhuma língua que seja uma só Como assim Irene pergunta Emília espantada Que quer dizer isso pág 18 Isso quer dizer que aquilo que a gente chama por comodidade de português não é um bloco compacto sólido e firme mas sim um conjunto de coisas aparentadas entre si mas com algumas diferenças Essas coisas são chamadas variedades Toda língua varia Puxa vida estou entendendo cada vez menos queixase Sílvia Vamos bem devagar para as coisas ficarem claras propõe Irene Você certamente já ouviu um português falar não é Já responde Sílvia Já percebeu as muitas diferenças que existem entre o modo de falar do português e o modo de falar nosso brasileiro De que tipo são essas diferenças Vamos ver algumas delas diferenças fonéticas no modo de pronunciar os sons da língua o brasileiro diz eu sei o português diz eu sâi Tudo bem até agora pergunta Irene Tudo bem responde Sílvia Essas e outras diferenças prossegue Irene também existem em grau menor entre o português falado no NorteNordeste do Brasil e o falado no CentroSul por exemplo Dentro do Centro Sul existem diferenças entre o falar digamos do carioca e o falar do paulistano E assim por diante Irene faz uma pequena pausa Toma um gole de chá e continua Até agora falamos das variedades geográficas a variedade diferenças sintáticas no modo de organizar as frases as orações e as partes que as compõem nós no Brasil dizemos estou falando com você em Portugal eles dizem estou a falar consigo diferenças lexicais palavras que existem lá e não existem cá e viceversa o português chama de saloio aquele habitante da zona rural que no Brasil a gente chama de caipira capiau matuto diferenças semânticas no significado das palavras cuecas em Portugal são as calcinhas das brasileiras Imagine uma mulher entrar numa loja de São Paulo e pedir cuecas para ela usar Vai causar o maior espanto diferenças no uso da língua Por exemplo você se chama Sílvia e um português muito amigo seu quer convidar você para jantar Ele provavelmente vai perguntar A Sílvia janta conosco Se você não estiver acostumada com esse uso diferente poderá pensar que ele está falando de uma outra Sílvia e não de você Porque no Brasil um amigo faria o mesmo convite mais ou menos assim Sílvia você quer jantar com a gente Nós não temos como os portugueses o hábito de falar diretamente com alguém como se esse alguém fosse uma terceira pessoa pág 19 portuguesa a variedade brasileira a variedade brasileira do Norte a variedade brasileira do Sul a variedade carioca a variedade paulistana Mas a coisa não pára por aí A língua também fica diferente quando é falada por um homem ou por uma mulher por uma criança ou por um adulto por uma pessoa alfabetizada ou por uma nãoalfabetizada por uma pessoa de classe alta ou por uma pessoa de classe média ou baixa por um morador da cidade e por um morador do campo e assim por diante Temos então ao lado das variedades geográficas outros tipos de variedades de gênero socioeconômicas etárias de nível de instrução urbanas rurais etc E cada uma dessas variedades equivale a uma língua pergunta Emília Mais ou menos responde Irene Na verdade se quiséssemos ser exatas e precisas na hora de dar nome a uma língua teríamos de dizer por exemplo falando da Vera Esta é a língua portuguesa falada no Brasil em 2001 na região Sudeste no estado e na cidade de São Paulo por uma mulher branca de 21 anos de classe média professora primária cursando universidade etc Ou seja teríamos de levar em conta todos os elementos chamados variáveis que compõem uma variedade É como se cada pessoa falasse uma língua só sua Já entendi diz Emília É o mesmo que acontece com a letra da gente não é Cada um tem a sua letra o seu jeito de escrever que é único e exclusivo e que até serve para identificar uma pessoa mas que ao mesmo tempo pode ser lido e entendido pelos outros Excelente comparação Emília parabéns elogia Irene Isso tudo reflete a eterna tensão que existe na vida de cada ser humano pág 20 a vontade de se isolar de se preservar de garantir seu espaço individual mas ao mesmo tempo a necessidade de se comunicar de manter contato de travar relações Cada pessoa tem a sua língua própria e exclusiva mas também não pode deixar que ela a separe da comunidade em que está inserida Houve até um pensador norteamericano Gregory Bateson que resumiu essa tensão numa pequena fábula Conte para nós pede Vera Ele diz que para se proteger do inverno um grupo de porcosespinhos se abrigam numa caverna Como faz muito frio eles procuram se encostar uns nos outros para se esquentar mas por causa dos espinhos têm de se afastar uns dos outros Mas logo ficam com frio e se aproximam novamente e logo se separam e de novo se juntam Que interessante diz Sílvia É uma história muito boa para alguém que como eu estuda a Psicologia do ser humano Toda língua muda Deu para entender o que é uma variedade Sílvia pergunta Irene Deu sim é até mais fácil do que eu pensava responde a estudante de Psicologia Irene dá um sorriso maroto e fingindo um tom de ameaça anuncia Mas a coisa pode ficar ainda mais complicada Como tia Pegue por exemplo um texto de jornal escrito no começo do século XX Você vai sentir diferenças no vocabulário e no modo de construção da frase Recue mais um pouco no tempo e tente encontrar alguma coisa escrita no começo do século XIX em 1808 por exemplo quando a família real portuguesa se transferiu para o Brasil Mais diferenças ainda Dê um salto ainda maior e tente ler a famosa carta de Pero Vaz de Caminha ao rei D Manuel I dando a notícia do descobrimento do Brasil Um texto de 1500 último ano do século XV Tem muita coisa ali que a gente nem consegue entender E se quisermos ler uma cantiga damor como a que citei hoje à tarde que era um gênero de poesia praticado em Portugal nos pág 21 séculos XIIXIII Quase impossível só mesmo com a ajuda e a orientação de um filólogo especialista em textos antigos O que todos esses textos têm em comum Foram todos escritos em português não é arrisca Sílvia Sim responde Irene Por que será então que eles vão se tornando cada vez menos compreensíveis para um brasileiro no início do século XXI quer saber Vera Porque toda língua além de variar geograficamente no espaço também muda com o tempo A língua que falamos hoje no Brasil é diferente da que era falada aqui mesmo no início da colonização e também é diferente da língua que será falada aqui mesmo dentro de trezentos ou quatrocentos anos Parece lógico comenta Sílvia Todas as coisas mudam os costumes as crenças os meios de comunicação as roupas até os bichos evoluíram e continuam evoluindo Por que a língua não haveria de mudar não é É por isso prossegue Irene que nós lingüistas dizemos que toda língua muda e varia Quer dizer muda com o tempo e varia no espaço Temos até uns nomes especiais para esses dois fenômenos A mudança ao longo do tempo se chama mudança diacrônica A variação geográfica se chama variação diatópica E é por isso também que não existe a língua portuguesa Ah não admirase Emília Então o que é que existe Existe um pequeno número de variedades do português faladas numa determinada região por determinado conjunto de pessoas numa determinada época que por diversas razões foram eleitas para servirem de base para a constituição para a elaboração de uma normapadrão A normapadrão é aquele modelo ideal de língua que deve ser usado pelas autoridades pelos órgãos oficiais pelas pessoas cultas pelos escritores e jornalistas aquele que deve ser ensinado e aprendido na escola Vejam bem que eu disse aquele que deve ser não aquele que necessariamente é empregado pelas pessoas cultas Essa norma ao longo do tempo se torna objeto de um grande investimento Investimento Irene pergunta Sílvia Como assim No processo de constituição de cristalização da norma padrão pág 22 como o que deve ser a língua ela é analisada pelos gramáticos que escrevem livros para descrever as regras de funcionamento dela livros que servem ao mesmo tempo para prescrever essas regras isto é impor essas regras como as únicas aceitáveis para o uso correto da língua Os dicionaristas também se debruçam sobre a normapadrão e tentam definir os significados precisos para as palavras que compõem esse padrão A Academia de Letras estabelece a ortografia oficial a maneira única de escrever que é imposta por decretolei governamental Ela também cuida para que palavras de origem estrangeira não contaminem excessivamente a língua e propõe novos termos para substituílas termos com uma forma mais próxima daquilo que os tradicionalistas chamam de a índole da língua Os autores de livros didáticos preparam seus manuais escolares pensando em estratégias pedagógicas eficazes para que as crianças aprendam a norma padrão Todo esse trabalho de padronização de criação e cultivo de um modelo de língua é que compõe o tal investimento de que eu falei Por isso a normapadrão dá a impressão de ser mais rica mais complexa mais versátil que todas as demais variedades da língua faladas pelas pessoas do país Na verdade ela nada tem de melhor que essas variedades ela só tem mais que as outras E o que é que ela tem mais que as outras pergunta Sílvia Por causa do tal investimento a normapadrão tem principalmente mais palavras eruditas tem mais termos técnicos tem um vocabulário maior e mais diversificado Ela também tem mais construções sintáticas consideradas de bomgosto tem expressões de origem erudita que servem de modelos para serem imitados metáforas clássicas que dão um ar nobre à linguagem Mas se esse mesmo investimento fosse aplicado a qualquer uma das muitas variedades faladas no país ela também se enriqueceria e se mostraria capaz de ser veículo para todo tipo de mensagem de discurso de texto científico e literário Quer dizer então que se a gente pegasse a língua falada sei lá por uma tribo de índios por exemplo e fizesse todo esse investimento que você explicou ela se tornaria uma língua tão complexa e cheia de recursos quanto o portuguêspadrão pergunta Emília pág 23 Exato responde Irene Ela se tornaria o que se costuma chamar de língua de cultura Aconteceu uma coisa mais ou menos parecida com isso na Nova Zelândia Lá o idioma mais usado é o inglês implantado pelos colonizadores britânicos Mas os habitantes mais antigos da Nova Zelândia são os maoris que tiveram de conviver com todas as dificuldades trazidas pelo processo de colonização Graças a um grande movimento de conscientização eles têm reconquistado muito do que perderam no passado Recuperaram terras obtiveram leis protegendo sua cultura e sua identidade como povo Nos últimos vinte anos a língua maori se tornou uma das línguas oficiais da Nova Zelândia É usada em transmissões de rádio e televisão é impressa em jornais e revistas é ensinada nas escolas Existe mesmo uma universidade onde todos os cursos de todas as ciências são dados exclusivamente em língua maori Ou seja a língua maori recebeu um investimento grande o bastante para que hoje alguém possa estudar física quântica biologia matemática pura sociologia astronomia e tudo mais naquela língua que antes era considerada o idioma tosco de um povo primitivo Puxa vida exclama Emília E eu pensei que aquela minha idéia era só um delírio Aconteceu alguma coisa parecida com o hebraico também não foi tia pergunta Vera Bem lembrado Verinha Quando foi criado o Estado de Israel em 1948 o hebraico era uma língua usada apenas na leitura dos antigos textos sagrados da religião judaica Agora que os judeus tinham seu próprio país queriam recuperar também sua própria língua Ocorreu então um dos fenômenos mais interessantes da história das línguas O hebraico antigo que até então era uma língua morta como o latim para nós hoje foi ressuscitado recebeu um enorme investimento lingüístico e se tornou um idioma moderno perfeitamente adaptado para cumprir todas as funções de uma língua de cultura História da normapadrão Então essa normapadrão é o que a gente costuma chamar de língua portuguesa pergunta Sílvia pág 24 Exato confirma Irene No momento em que se estabelece uma normapadrão ela ganha tanta importância e tanto prestígio social que todas as demais variedades são consideradas impróprias inadequadas feias erradas deficientes pobres E esta normapadrão passa a ser designada com o nome da língua como se ela fosse a única representante legítima e legal dos falantes desta língua Tia você disse que as variedades escolhidas para compor o padrão foram escolhidas por diversas razões Que razões são essas Veja só Vera os motivos que levam determinadas variedades a servir de base para o padrão não têm nada a ver com as qualidades intrínsecas internas lingüísticas destas variedades O que estou tentando dizer é que todas as variedades de uma língua têm recursos lingüísticos suficientes para desempenhar sua função de veículo de comunicação de expressão e de interação entre seres humanos Mas por alguma razão ou razões só algumas servem de base para o padrão E eu volto a perguntar tia que razões são essas Vamos ver alguns exemplos Na Itália a variedade que ganhou o título de padrão e que hoje chamamos de italiano é a língua originária de uma região chamada Toscana Esta região teve uma importância muito grande durante vários séculos tendo a cidade de Florença como capital política e cultural Florença foi um dos pólos do Renascimento o grande movimento cultural europeu que revolucionou todos os gêneros artísticos e literários da época Lá trabalharam e viveram gênios como Leonardo da Vinci Michelangelo e Botticelli E na língua da Toscana foram escritas algumas das obrasprimas da literatura mundial a Divina Comédia de Dante Alighieri as Poesias de Petrarca o Decamerão de Bocácio Além disso a Toscana contava com uma moeda forte o florim que foi uma moeda importante de comércio internacional durante mais de duzentos anos e em torno do qual se havia organizado um sistema bancário muito evoluído para a época Tamanho prestígio fez com que o toscano se tornasse pouco a pouco a língua de cultura de toda a Itália E isso apesar de existirem naquele país dezenas e pág 25 dezenas de línguas diferentes chamadas dialetos falados por milhões de pessoas e também veículos de importantes manifestações culturais Na Espanha a língua oficial é a que se originou numa região chamada Castela e por isso até hoje o espanhol é chamado de castelhano Foram os reis de Castela que com muitas lutas e guerras conseguiram expulsar os árabes que dominaram a Península Ibérica por quase Oitocentos anos Pouco a pouco os nobres castelhanos foram alargando seus territórios e quando terminou a Reconquista isto é quando não havia mais domínios árabes em solo hispânico os castelhanos já tinham conquistado o mais alto prestígio social o que fez com que sua língua se impusesse a todos os demais habitantes do país E tal como na Itália existem na Espanha línguas faladas por muita gente com grande tradição cultural o catalão o basco o galego mas que não conquistaram a importância política do castelhano E no Brasil Irene quer saber Emília Qual foi a história do portuguêspadrão que a gente usa hoje No Brasil a colonização começou pelo Nordeste e é nesta região que se encontram as cidades mais antigas do país Salvador Olinda Recife A cultura da canadeaçúcar fez desta região durante algum tempo o centro político cultural e administrativo do Brasil Mas a descoberta do ouro em Minas Gerais provocou a transferência da capital da Colônia para o Rio de Janeiro em 1763 por ser o porto mais próximo para a remessa do ouro para a Europa Assim o Rio assumiu o primeiro lugar em importância econômica política e conseqüentemente cultural Com o século XX a crescente industrialização de São Paulo levou esta cidade a compartilhar com o Rio a importância econômico política e cultural Mais tarde o peso cultural e político de Minas Gerais começou a se fazer sentir Tudo isso fez com que o português formal empregado pelas classes sociais privilegiadas residentes no triângulo formado pelas cidades de São Paulo Rio de Janeiro e Belo Horizonte começasse a ser considerado o modelo a ser imitado a norma a ser seguida o portuguêspadrão do Brasil E é por isso que as variedades de outras regiões como a nordestina economicamente pobre e culturalmente desprestigiada são pág 26 consideradas no melhor dos casos engraçadas divertidas pitorescas ou no pior grosseiras erradas e feias pelos falantes das variedades sudestinas E mesmo dentro da região Sudeste existe muito preconceito não é tia intervém Vera A reação dos moradores das grandes cidades ao modo de falar dos caipiras por exemplo é sempre de deboche Bem lembrado Verinha responde Irene O chamado falar caipira estendese por uma grande área do SulSudeste que inclui o interior do Paraná de São Paulo e uma grande porção de Minas Gerais O traço mais marcante dessas variedades é o chamado R caipira que recebe na fonética o nome técnico de R retroflexo De fato quase sempre este traço é ridicularizado pelos moradores das cidades grandes E veja que essas regiões que você citou não têm nada de pobre não é lembra Sílvia Muito pelo contrário são regiões muito ricas por causa da agricultura e eu já li reportagens dizendo que o padrão de vida das cidades do interior de São Paulo por exemplo é comparável ao de países da Europa É verdade confirma Irene Nesse caso estamos diante de um preconceito muito antigo e que se encontra em muitos lugares do mundo a suposta superioridade do urbano sobre o rural Que é o português nãopadrão Se estou entendendo bem diz Emília a língua é um balaio de variedades e só umas poucas vão ser tiradas do balaio para compor o padrão certo Irene se diverte com a comparação mas concorda Certo E as outras que sobram no balaio as coitadinhas as rejeitadas quer saber Emília Como é que elas ficam Bem nós já vimos as razões por que a tão celebrada unidade lingüística do Brasil não passa de um mito isto é uma idéia muito bonita muito conveniente mas falsa e para piorar também prejudicial à educação porque simplifica a realidade que como vimos é bastante complexa No Brasil portanto não se fala uma pág 27 só língua portuguesa Falase um certo número de variedades de português das quais algumas chegaram ao posto de normapadrão por motivos que não são de ordem lingüística mas histórica econômica social e cultural Existe portanto um portuguêspadrão que vamos apelidar de PP que é essa norma oficial usada na literatura nos meios de comunicação nas leis e decretos do governo ensinada nas escolas explicada nas gramáticas definida nos dicionários Sim já acompanhei a biografia de miss Padrão insiste Emília mas e as variedades que sobraram no balaio O balaio como você diz pode ser chamado em conjunto de português nãopadrão PNP para nós Esse PNP logicamente apresenta variedades de acordo com as diferentes regiões geográficas classes sociais faixas etárias e níveis de escolarização em que se encontram as pessoas que o falam No entanto existem alguns traços lingüísticos comuns a todas essas variedades Aliás é justamente desses traços comuns que eu vou tratar no livro que estou escrevendo Quem fala o PNP Tia se o portuguêspadrão é falado pelas pessoas que detêm o poder e estão nas classes sociais mais privilegiadas que nós sabemos que são uma pequena minoria da população do Brasil quem é que fala o português nãopadrão O português nãopadrão é a língua da grande maioria pobre e dos analfabetos do nosso povo Verinha É também conseqüentemente a língua das crianças pobres e carentes que freqüentam as escolas públicas Por ser utilizado por pessoas de classes sociais desprestigiadas marginalizadas oprimidas pela terrível injustiça social que impera no Brasil país que tem a pior distribuição da riqueza nacional em todo o mundo o PNP é vítima dos mesmos preconceitos que pesam sobre essas pessoas Ele é considerado feio deficiente pobre errado rude tosco estropiado E isso é grave para a educação pergunta Emília Claro que sim responde Irene Esses preconceitos fazem pág 28 com que a criança que chega à escola falando PNP seja considerada uma deficiente lingüística quando na verdade ela simplesmente fala uma língua diferente daquela que é ensinada na escola Eu nunca tinha pensado nisso confessa Emília Alguns estudos têm revelado uma triste realidade no nosso sistema educacional continua Irene Os professores administradores escolares e psicólogos educacionais tratam o aluno pobre como um deficiente lingüístico como se ele não falasse língua nenhuma como se sua bagagem lingüística fosse rudimentar refletindo conseqüentemente uma inferioridade mental Isso cria no espírito do aluno pobre um sentimento de rejeição muito grande levandoo a considerarse incapaz de aprender qualquer coisa Por outro lado cria no professor a sensação de estar tentando ensinar alguma coisa a alguém que nunca terá condições de aprender Daí resulta que o aluno fica desestimulado a aprender e o professor desestimulado a ensinar Vai ver que é por isso que tantas crianças pobres acabam abandonando a escola sugere Emília É claro confirma Irene Por serem desprezadas por não terem seus direitos lingüísticos reconhecidos como tais por serem obrigadas a assimilar conceitos veiculados numa variedade de português que é estranha para elas E não estamos falando apenas das aulas de português mas de todas as disciplinas lecionadas na escola Sim porque todo professor é professor de língua já que ele se serve da língua como meio de transmissão dos conteúdos que lhe cabe ensinar Por isso a transformação do modo de encarar as variedades nãopadrão tem de ser feita em todos os campos da educação sendo uma tarefa de todos e não apenas dos professores de língua portuguesa Tudo isso é por causa do mito da língua única pergunta Sílvia É responde Irene nossa escola não reconhece a existência de uma multiplicidade de variedades de português e tenta impor a normapadrão sem procurar saber em que medida ela é na prática uma língua estrangeira para muitos alunos senão para todos pág 29 Que coisa mais injusta exclama Vera Imagine que você não sabe nadar e matriculase num curso de natação diz Irene Na primeira aula você e todos os demais alunos são jogados dentro do lado fundo da piscina Aqueles que já souberem nadar conseguirão se salvar e prosseguirão no curso Os que não souberem terão que se debater até chegar à beira da piscina e serão mandados embora Outros quem sabe até morrerão afogados É um método de ensino completamente absurdo diz Emília Não é mesmo reitera Irene Mas é assim que acontece na nossa escola Nosso sistema educacional valoriza aquelas crianças que já chegam à escola trazendo na sua bagagem lingüística o portuguêspadrão e expulsa as que não o trazem Isso é uma grande injustiça como disse a Vera porque é exatamente esse portuguêspadrão que deveria ser ensinado na escola porque ele permite que o aluno originário das classes sociais desfavorecidas se apodere de um recurso fundamental em sua luta contra as desigualdades sociais tão profundas em nosso país O domínio da normapadrão certamente não é uma fórmula mágica que vai permitir ao falante de PNP subir na vida automaticamente Mas é uma forma que esse falante de PNP tem de lutar em pé de igualdade com as mesmas armas ao lado dos cidadãos das classes privilegiadas para ter acesso aos bens econômicos políticos e culturais reservados às elites dominantes Por isso devemos brigar pela efetiva distribuição democrática da riqueza lingüística assim como devemos brigar também pela distribuição democrática de tudo mais terras empregos saúde moradia transporte lazer cultura educação Como é fácil ver tratase de um problema muito amplo e complexo que tem relação com a transformação radical do tipo de sociedade em que vivemos e não somente com a alteração dos métodos pedagógicos do sistema educacional O livro de Irene Irene pára de falar Aproxima as mãos do fogo da lareira esfregaas Põe um pouco mais de chá na caneca come um biscoitinho pág 30 Quer dizer que a Eulália fala um português nãopadrão pergunta Emília Exatamente responde Irene A Eulália foi alfabetizada quando tinha mais de quarenta anos Hoje ela sabe ler e escrever foi alfabetizada no portuguêspadrão mas continua empregando no dia adia a variedade nãopadrão que é a língua materna dela usada pelas pessoas de sua família e de sua classe social Aliás foi durante a alfabetização da Eulália que eu comecei a refletir sobre esses problemas todos E a que conclusões você chegou tia A muitas Vera Por exemplo se pudéssemos conhecer melhor o português nãopadrão talvez conseguíssemos identificar as diferenças que o distinguem do portuguêspadrão Para quê indaga Sílvia Com base no conhecimento dessas diferenças talvez pudéssemos perceber as dificuldades que se apresentam para o aluno que tem de aprender a normapadrão Poderíamos também quem sabe traçar novas estratégias de ensino fugir da tradicional que é autoritária e intolerante para com o que é diferente Se todos compreendêssemos que o PNP é uma língua como qualquer outra com regras coerentes com uma lógica lingüística perfeitamente demonstrável talvez fosse possível abandonar os preconceitos que vigoram hoje em dia no nosso ensino de língua Quer dizer que é possível escrever uma gramática do português nãopadrão do mesmo jeito como existem as gramáticas do portuguêspadrão pergunta Vera Claro que é possível responde Irene É nisso que estou trabalhando O seu livro vai ser essa gramática pergunta Sílvia Ainda não Sílvia responde Irene Uma gramática do PNP é um trabalho para muitos e muitos anos Minha intenção agora é bem mais modesta Quero apenas contribuir para que o PNP deixe de ser visto como uma língua errada falada por pessoas intelectualmente inferiores e passe a ser encarado como aquilo que ele realmente é uma língua bem organizada coerente e funcional No meu livro eu não vou abordar todas as diferenças que existem entre o PNP e o PP Como eu já disse isso exigiria um trabalho muito maior pág 31 que teria de incluir coleta e análise de dados com gravações autênticas de falantes das variedades Quero me limitar a algumas diferenças principalmente fonéticas no modo de pronunciar a língua Por que justamente essas pergunta Sílvia Porque são as mais evidentes explica Irene A diferença na forma como uma palavra é pronunciada é o que logo nos chama a atenção e nos avisa que uma pessoa fala uma variedade diferente da nossa Além disso essas diferenças fonéticas são as mais estigmatizadas Estigmatizadas como pergunta Emília São elas as que recebem a maior carga de preconceito e rejeição por parte do conhecedor de portuguêspadrão Dê só um exemplo pede Vera Quando alguém diz véio trabáio cuié por exemplo ou grobo broco a maioria dos falantes escolarizados torcem o nariz ou quando são mais delicados mordem o lábio para não rir diz Irene lançando um olhar maroto para as amigas da sobrinha que se encolhem coradas O erro e o outro Mas vocês não estão sozinhas nessa atitude explica Irene Ela foi e continua sendo ensinada sistematicamente pelos livros didáticos pelas gramáticas tradicionais pelos dicionários e é claro pela escola Por isso a primeira reação de um falante escolarizado diante do PNP é considerálo um português errado corrompido estropiado A noção de erro é muito cômoda pois ela dispensa a gente de ir mais fundo e descobrir as verdadeiras razões que levam o PNP a ser como é É engraçado você dizer isso comenta Sílvia porque uns dias atrás eu tive uma discussão com meu pai exatamente sobre essa questão O Fábio meu irmão adolescente usa o boné com a aba virada para trás e meu pai vive implicando com ele Por que você insiste em usar o boné do jeito errado Até que um dia eu falei Pai ele não usa o boné do jeito errado ele só usa de um jeito diferente pág 32 E você está certa confirma Irene O que é errado para seu pai pode ser perfeitamente certo para o Fábio Seu irmão deve estar obedecendo a algum tipo de regra diferente das regras que seu pai obedece Pode ser a regra da moda a regra de uma faixa etária a regra de uma determinada atitude dos adolescentes de uma determinada classe social a regra da contestação do tradicional Ver o que é diferente como algo errado aliás é um fenômeno muitíssimo antigo É mesmo tia Só é responde Irene Os gregos antigos por exemplo chamavam de bárbaros todos os povos que não falavam a língua grega Ou seja o resto da humanidade diz Emília Exato confirma Irene A própria palavra bárbaro é bastante significativa Ela é uma onomatopéia Que palavrão é esse espantase Sílvia Algum bicho parecido com uma centopéia Explique para elas Vera pede Irene Onomatopéia é a palavra que tenta imitar um som que existe esclarece Vera Por exemplo recoreco tiquetaque cocoricó tentam reproduzir o som do instrumento chamado reco reco o som do funcionamento do relógio o som do canto do galo Muito bem cumprimenta Irene A palavra bárbaro também queria imitar um som neste caso o som das línguas que os estrangeiros os nãogregos falavam No início portanto a palavra bárbaro significava simplesmente estrangeiro que fala uma língua diferente Com o tempo porém o preconceito tomou conta da palavra porque quem não falava grego era considerado naturalmente inferior pouco inteligente abrutalhado Foi assim que a palavra bárbaro ganhou o sentido que tem até hoje no portuguêspadrão e em muitas outras línguas feroz selvagem destruidor não civilizado Gente Que coisa mais interessante Eu nem sonhava com isso confessa Emília Aliás é de bárbaro que vem o português brabo bravo no sentido de feroz acrescenta Irene Essa história do preconceito eu já tenho notado em alguns livros que tenho lido no meu curso diz Vera Os portugueses pág 33 dizem que os brasileiros falam um português errado Os franceses dizem que os belgas e suíços falam um francês feio Os ingleses acusam os norteamericanos de deturparem a língua de Shakespeare Os espanhóis dizem que os latinoamericanos falam um castelhano viciado Eu sei o que é isso comenta Sílvia Parece que a questão do diferente do outro é o grande problema do ser humano em todos os aspectos de sua vida Falou a voz da Psicologia ironiza Emília Mas é verdade prossegue Sílvia É difícil para cada um de nós suportar a existência dos outros tolerar a convivência com tantos nãoeu A coisa já começa na família quando somos obrigados a limitar nossa liberdade e a respeitar a dos outros que dividem o mesmo espaço conosco o pai a mãe os irmãos É um duro aprendizado que não pára nunca e continua ao longo da vida toda o aprendizado da humildade da tolerância da misericórdia do amor ao próximo enfim Muito bem explicado Sílvia você tem toda a razão diz Irene No esforço enorme que temos de fazer diariamente para aceitar o outro o diferente de nós vamos incluir também a aceitação de uma língua diferente da nossa mas que tem tanto parentesco com ela Vamos ser humildes e tentar ver o quanto os falantes do português nãopadrão têm a nos ensinar sobre nós mesmos Erro comum ou acerto comum Como é que você pretende provar para nós e para os leitores do seu livro que o português falado pela Eulália por exemplo não é errado pergunta Emília Respondo com outras perguntas diz Irene Como chamar de erros fenômenos que acontecem de Norte a Sul do Brasil Como é que tanta gente consegue cometer os mesmos erros ao mesmo tempo Se milhões de pessoas por este Brasil afora dizem os óio onde você esperaria os olhos será possível falar de erro comum como gostam de dizer os gramáticos tradicionalistas Não seria o caso de falar de acerto comum O que eu pretendo mostrar pág 34 no livro é que tudo aquilo que é considerado erro no PNP tem uma explicação científica do ponto de vista lingüístico ou outro lógico pragmático psicológico E quando vamos poder falar de erro então quer saber Emília A noção de erro tem que ser reservada para problemas individuais responde Irene Se alguém ao invés de dizer cavalo diz cafalo este sim estará cometendo um erro devido talvez a problemas físicos na audição ou na fonação pois essa forma não é registrada em nenhuma variedade do português do Brasil Mas dizer pranta no lugar de planta não é um erro é um fenômeno chamado rotacismo que acontece nas mais diversas regiões do país e que participou da formação da língua portuguesa padrão ao longo dos séculos Tenho um capítulo só sobre isso Tudo bem diz Emília mas eu insisto e as provas Para provar que as características do português nãopadrão não são erros eu vou recorrer a duas estratégias principais A saber cobra Emília Primeiro comparar o PNP com outras línguas vivas e mostrar que nelas também ocorrem fenômenos e não erros semelhantes Muito perspicaz graceja Emília Em seguida prossegue Irene sorrindo com o tom brincalhão da estudante de Pedagogia buscar na história da própria normapadrão as explicações para determinadas características que aparentemente são exclusivas do PNP Por que você escolheu essas duas estratégias quer saber Vera Recorrer à história da língua é uma tentativa que faço de mostrar que a língua portuguesa em todas as suas variedades continua em transformação continua mudando caminhando para as formas que terá daqui a algum tempo Da mesma maneira como o latim foi se transformando lentamente até resultar nas diversas línguas românicas hoje existentes italiano romeno romanche francês provençal sardo catalão espanhol português também cada uma delas continua a se transformar Daqui a alguns séculos provavelmente portugueses e brasileiros não se entenderão mais pois cada povo poderá estar falando uma língua diferente Não foi o que aconteceu pág 35 com o português e o espanhol tão parecidos tão próximos mas ao mesmo tempo tão diferentes que a compreensão mútua total já se tornou impossível Características do PNP Estou morrendo de curiosidade para conhecer essas diferenças entre o portuguêspadrão e o nãopadrão confessa Sílvia Você não pode adiantar algumas para nós Claro que posso responde Irene Eu fiz até um quadro comparativo para situar melhor essas diferenças É este aqui Irene passa a Vera uma folha de papel Nela está impresso o seguinte quadro Quadro 1 português nãopadrão português padrão natural artificial transmitido adquirido apreendido aprendido funcional redundante inovador conservador tradição oral tradição escrita estigmatizado prestigiado marginal oficial tendências livres tendências refreadas falado pelas classes dominadas falado pelas classes dominantes Agora você vai ter de explicar esse quadro timtim por tim tim exige Emília Com prazer meritíssima juíza graceja Irene O PNP é natural porque sua lógica de funcionamento segue as tendências naturais da língua que criam regras que são automaticamente respeitadas pelo falante ao passo que o PP é artificial por ser uma norma que sofre as limitações impostas pela sua padronização que dita regras para serem memorizadas e que exigem treinamento para serem obedecidas pág 36 O PNP é transmitido de geração para geração é um patrimônio lingüístico que é compartilhado no convívio com a família e com as pessoas da mesma classe social O PP tem que ser adquirido na escola por meio principalmente da forma escrita da língua As regras do PNP são apreendidas naturalmente pelo falante enquanto as do PP têm de ser aprendidas decoradas memorizadas exigindo um treinamento lingüístico especial da parte do falante O PNP é funcional porque trata de eliminar todas as regras desnecessárias e supérfluas que se repetem e se sobrepõem Já o PP é redundante porque faz uso de muitas regras para dar conta de um único fenômeno Veremos isso quando formos tratar da questão dos plurais em PNP O PNP é inovador porque se deixa levar pelas forças vivas de mudança que estão sempre ativas na língua O PP que tem o objetivo de se manter inalterado o máximo de tempo possível é conservador e demora muito a aceitar algum tipo de novidade Por ser uma língua familiar natural apreendida o PNP se caracteriza por ter uma forte tradição oral já que o domínio da língua escrita é privilégio dos que freqüentam a escola Há manifestações escritas do PNP mas elas representam uma gota dágua num oceano de material escrito em PP O PNP como eu já disse deixa vir à tona as forças transformadoras da língua e evolui com mais rapidez que o PP que refreia estas tendências justamente para impedir que elas o desfigurem muito depressa PP e PNP mais semelhanças do que diferenças Irene faz uma pequena pausa Aproxima as mãos do fogo da lareira esfregaas e depois toma um gole de chá Em seguida retoma Até agora nós só falamos das diferenças que existem entre PP e PNP e é justamente dessas diferenças que vou tratar no meu livro como já expliquei No entanto é preciso deixar uma coisa bem clara existem muito mais semelhanças do que diferenças entre as variedades do português do Brasil Na verdade se fosse possível colocar num dos pratos de uma balança os traços lingüísticos que diferenciam as variedades mais padronizadas e as variedades menos padronizadas e pág 37 no outro prato os traços lingüísticos semelhantes ficaríamos surpresas de ver como as semelhanças são em quantidade muitíssimo maior que as diferenças É esse elevado grau de semelhança que permite por exemplo que um falante escolarizado do Rio Grande do Sul possa se comunicar com um morador analfabeto das palafitas do Amazonas embora a recíproca nem sempre seja verdadeira um analfabeto terá dificuldade em entender uma conferência científica ou mesmo um noticiário de televisão que use uma linguagem mais padronizada Mas ao mesmo tempo esse grau de semelhança permite também que um falante de português nãopadrão aprenda as regras da gramática normativa desde é claro que a escola realmente queira ensinálas a ele Se as semelhanças são tantas Irene por que as pessoas escolarizadas em geral insistem em enfatizar sempre as diferenças pergunta Sílvia Porque na verdade Sílvia elas não enfatizam as diferenças lingüísticas mas sim as diferenças sociais responde Irene Podemos até criar um refrãozinho Onde tem variação também tem avaliação Quando nós falantes escolarizados de uma variedade urbana culta rimos ou temos pena de alguém que diz prantá no lugar de plantar aproveitamos essas diferenças de pronúncia para mostrar que nós não pertencemos àquela classe social àquela comunidade atrasada que não fazemos parte daquele grupo desprestigiado Queremos deixar bem clara a distância social econômica e cultural que existe entre nós e aquele falante de não padrão E é daí que nasce o preconceito lingüístico Mas não só o lingüístico não é mesmo Irene apressase em acrescentar Emília Acho que todo tipo de preconceito nasce disso Basta um pequeno detalhe para tentar justificar a discriminação Afinal o que é que diferencia uma pessoa negra de uma pessoa branca por exemplo A cor da pele e nada mais Todo o resto é igual boca olhos nariz cabelo ouvidos pés mãos pele osso sangue cinco sentidos infinitos sentimentos incontáveis sensações Mas na hora de discriminar de fazer a separação é a diferença mínima que conta Você tem razão Emília concorda Irene Justamente por isso por haver muito menos diferenças do que semelhanças é pág 38 que eu no meu livro vou estudar as diferenças tentar explicar o porquê delas Aliás se fosse escrever um livro sobre as semelhanças que existem entre as variedades do português do Brasil acho que nem no ano 3000 ele ficaria pronto Além de ser um trabalho enorme seria também bastante inútil as semelhanças são tão óbvias tão evidentes que qualquer criancinha percebe elas Mesmo assim nunca é demais insistir e é bom vocês terem isso sempre na lembrança as semelhanças entre as variedades do português do Brasil são muito maiores do que as diferenças E essa é uma verdade que devemos sempre salientar na qual devemos nos apoiar se quisermos provocar uma mudança de atitude se nos pusermos a combater o preconceito lingüístico que se apóia nas diferenças É uma pena que não seja assim também em tudo mais lamenta Sílvia As diferenças lingüísticas podem não ser tão grandes mas as diferenças sociais e econômicas no Brasil são imensas Outro dia li uma reportagem que dizia que apesar de termos a nona maior economia do mundo também temos um dos piores sistemas educacionais do planeta incompatível com o desenvolvimento tecnológico e industrial do país E a distribuição de renda é a mais injusta do mundo também com uma grande concentração de riquezas nas mãos de uns poucos Em nenhum outro país a desigualdade entre ricos e pobres é tão grande quanto aqui A reportagem dizia que os pobres do Brasil vivem em condições mais miseráveis que as dos pobres de muitos países africanos bem menos desenvolvidos Infelizmente é isso mesmo suspira Irene E todas essas diferenças acabam influindo no momento em que alguém vai avaliar uma variedade lingüística nãopadrão Baseandose nessas tremendas desigualdades sociais e econômicas que a Sílvia mencionou os falantes escolarizados acabam vendo mais diferenças lingüísticas do que as que realmente existem entre o padrão e o não padrão Tia intervém Vera A palavra padrão me faz pensar na hora em patrão É maluquice minha ou tem mesmo alguma coisa a ver Tem tudo a ver responde Irene Da mesma palavra latina patronu nasceram em português as palavras padrão e patrão pág 39 Puxa que coincidência surpreendese Emília Coincidência nada replica Sílvia Isso é na verdade um fato histórico que pelo que posso farejar tem muitas conseqüências de ordem política e social além de lingüística não é Irene Exatamente Sílvia apóia Irene Vocês estão querendo me dizer que a língua padrão é a língua do patrão pergunta Emília Você é que está dizendo responde Irene e todas riem Mas é isso mesmo Emília Do latim vulgar ao português nãopadrão Nesse momento o relógio grande da sala bate doze badaladas Irene se espanta Gente como é tarde Se eu for dormir depois da meianoite vou virar uma abóbora Todas riem Que pena lamenta Vera O papo estava tão interessante Estava mesmo confirma Emília Que tal se a gente continuasse amanhã Isso mesmo aprova Sílvia Eu estou tendo uma idéia absolutamente pavorosa insinua Vera Que idéia interessase Emília Que tal se a tia Irene desse um pequeno curso intensivo de português nãopadrão para nós De que jeito quer saber Sílvia Muito simples explica Vera Ela já está com o livro pronto mesmo Bastava ela transformar cada capítulo numa aula para nós Que menina mais caxias exclama Irene Quer estudar até nas férias Acho a idéia muito legal aprova Sílvia Eu também endossa Emília E você tia o que acha Irene reúne seus papéis com cuidado Folheiaos durante alguns segundos Atendendo a pedidos Vera dá um salto abraça a tia com força enchea de beijos pág 40 O que se pode negar a uma sobrinha apaixonada graceja Irene Mas já que é assim preciso concluir essa aula introdutória antes de passar às aulas mais específicas Por favor ilustríssima doutora concede Emília Eu só queria relembrar alguns fatos históricos muito interessantes diz Irene Depois que as legiões romanas conquistavam um território ele recebia o nome de província Para essa província eram enviados muitos cidadãos romanos pequenos funcionários públicos soldados agricultores comerciantes artesãos enfim gente do povo que ia colonizar as novas terras conquistadas para o Império Ora essa gente do povo não falava o latim clássico o latim dos grandes oradores dos poetas e dos filósofos de Cícero Horácio Virgílio Sêneca Nada disso Falava sim um latim simplificado com regras mais flexíveis mais práticas que as do latim clássico Esse latim do povo recebeu o nome de latim vulgar Foi esse latim vulgar que os habitantes originais das províncias conquistadas aprenderam pois seu contato era muito maior com os romanos simples do que com as camadas sociais mais altas do Império E foi desse latim vulgar que surgiram com o passar do tempo todas as línguas chamadas românicas entre as quais o português Um romano de alta linhagem certamente achava que o latim vulgar era latim falado errado exatamente o que muitas pessoas pensam do português nãopadrão No entanto se desse latim errado desse latim em pó como disse Caetano Veloso numa canção sobre a língua portuguesa surgiram línguas que se tornaram tão importantes na história da humanidade línguas em que foram produzidas obrasprimas inigualáveis da literatura mundial como Os Lusíadas o Quixote a Divina Comédia é provável que daqui a alguns séculos o português nãopadrão brasileiro também venha a ter uma importância tão grande que nada mais o poderá reprimir Por que você acha isso quer saber Sílvia Porque como a gente vai ver nas próximas aulas algumas das características do PNP já estão sendo encontradas nas variedades usadas por falantes cultos plenamente escolarizados Isso deixa claro que por mais que sejam refreadas as forças de mudança interna da língua nunca param de agir pág 41 UM PROBREMA SEM A MENOR GRAÇA rotacização do L nos encontros consonantais s aulas foram combinadas para se realizarem na escolinha que era o nome carinhoso dado ao pequeno cômodo que Irene mandou construir a poucos metros de distância da casa para desenvolver suas atividades de alfabetizadora Lá existe uma grande lousa na verdade uma das paredes pintada de verdeescuro uma pequena estante com livros cadernos canetas e caixas de giz e meia dúzia de mesinhas de madeira com as respectivas cadeiras dispostas em semicírculo Que gracinha isso aqui Irene comenta Sílvia enquanto as novas alunas se acomodam Eu faço o máximo para o ambiente ficar o mais aconchegante possível explica Irene organizando sobre uma das mesas um maço de folhas impressas que vai tirando de uma pasta de cartolina Gosto de deixar bem claro para todo mundo que este lugar é apenas um espaço de trocas de conhecimentos de intercâmbio de experiências Eu não sou a única capaz de ensinar alguma coisa toda pessoa sempre tem algo de interessante de importante para transmitir aos outros não é mesmo Claro que é responde Emília entusiasmada Eu também sou totalmente a favor de uma pedagogia democrática De vez em quando tenho discussões terríveis lá na faculdade com alguns professores que têm saudades da palmatória Fico alegre em ouvir isso diz Irene sorrindo Mas tia vamos ser sinceras um pouquinho intervém Vera O que é que uma empregada doméstica analfabeta por exemplo pode ensinar a uma pessoa como você que sabe tudo Eu Sei tudo exclama Irene arregalando os olhos Vera não diga uma bobagem dessas A Ora tia sabe sim insiste Vera Nunca tive uma dúvida que você não tenha tirado Pode ser querida diz Irene mas vamos ver uma coisa que tipo de dúvida Ah dúvidas sobre sobre meus trabalhos de faculdade por exemplo Ou até antes quando eu era menina na escola pág 42 Você me ensinou muito mais inglês do que todos os cursos que fiz Mas isso é só um tipo de conhecimento Vera explica Irene É um saber acadêmico livresco aprendido É bom mas não é tudo como você pensa Então responda à minha primeira pergunta insiste Vera O que é que você aprende com elas Aprendo tanta coisa responde Irene caminhando até a estante abrindoa e retirando de lá um grosso caderno de capa preta que daria para publicar uma enciclopédia Vamos ver ela folheia o caderno e abreo numa página escolhida ao acaso Aqui está uma série de instruções sobre como tirar manchas dos mais variados tipos Você já aprendeu isso em algum livro na escola Mais receitas e mais receitas Cuidados com as plantas com os bichos que eu crio com a conservação da casa Centenas de fórmulas caseiras de remédios à base de plantas medicinais Hoje em dia eu quase não compro mais remédio em farmácia Ah sim diz ela com olhar carinhoso alisando uma página aquilo que mais me comove O que é pergunta Emília curiosa Uma quantidade enorme de histórias tradicionais contos populares e cantigas folclóricas Um verdadeiro tesouro de poesia Sílvia consulta o relógio e diz Tudo isso está muito bem mas vamos começar a aula Estou ansiosa para conhecer as famosas diferenças entre o portuguêspadrão e o nãopadrão Muito bem concorda Irene devolvendo o caderno à estante A Sílvia tem toda a razão Qual vai ser o assunto de hoje quer saber Emília O riso responde Irene sentandose As três jovens franzem a sobrancelha E desde quando o riso faz parte da gramática tia pergunta Vera Há muito tempo Verinha aliás há milênios Há séculos e séculos que o riso o escárnio e o deboche fazem parte do ensino da língua Emília coça a cabeça pensativa e logo arrisca pág 43 Ontem eu e a Sílvia rimos da fala da Eulália É por aí Irene balança a cabeça afirmativamente Exatamente por aí Emília Quantas vezes você já ouviu alguém dizer Cráudia grobo pranta ingrês broco e teve muita vontade de rir se é que não riu gostoso Ou então teve pena do pobre coitado que não sabe português e fala tudo errado Afinal os professores os livros as gramáticas e os dicionários nos ensinam que o certo o bonito é falar Cláudia globo planta inglês bloco Emília Sílvia e Vera estão muito sérias atentas a cada palavra de Irene Mas será que é mesmo assim tão engraçado pergunta Irene Vamos ver Ela se levanta vai até a lousa e escreve algumas palavras Emília as copia no bloquinho de papel que trouxe pensando que seria útil fazer algumas anotações Vera e Sílvia não tiram os igreja Brás praia frouxo escravo olhos da lousa Leiam com cuidado estas palavras pede Irene Tudo bem com elas não é Estão certas não estão Aparentemente sim responde Vera E de fato estão confirma Irene Mas se você for buscar a história dessas palavras e descobrir de que modo elas ficaram com a forma que hoje têm em português certo é provável que tenha uma grande surpresa Irene entrega a cada uma delas uma folha impressa Dêem uma olhada neste quadro Quadro 2 LATIM FRANCÊS ESPANHOL PORTUGUÊS ecclesia église iglesia igreja Blasiu Blaise Blas Brás plaga plage playa praia sclavu esclave sclavo escravo fluxu flou flojo frouxo pág 44 E então Emília provoca Irene Não lhe parece engraçado que onde havia um L em latim L que se conservou em francês e espanhol surgiu um ridículo R em português O que terá acontecido Será que você e um monte de gente desavisada estão usando estas palavras sem saber que são erradas ou engraçadas Emília não ousa dizer nada Irene prossegue Leiam agora esses versos dOs Lusíadas que estão mais abaixo do quadro Lembremse que Os Lusíadas foram escritos por aquele que é considerado o maior poeta da língua portuguesa Luís de Camões tido até como o verdadeiro inventor da nossa língua literária Quadro 3 Irene olha bem séria para suas alunas e pergunta Nós agora devíamos estar rolando no chão de tanto rir não é Pois acabamos de descobrir que o tão badalado Camões também não sabia português era burro e falava língua de índio Está mesmo escrito assim tia lá nOs Lusíadas pergunta Vera Pois está responde Irene Não é terrível Será que não houve uma só alma caridosa que dissesse a ele Não Luís não é frauta frecha ingrês pranta pruma pubrica mas sim flauta flecha inglês planta pluma publica Irene pára e observa o ar surpreso das três jovens Mas ainda há pior ameaça ela Vocês se lembram de José de Alencar e de Machado de Assis Pois é eles também escreviam froco em vez de floco pág 45 Decifre logo esse enigma Irene pede Emília Minha curiosidade está me mordendo toda Irene sorri Mas a coisa é bem simples Emília Existe na língua portuguesa uma tendência natural em transformar em R o L dos encontros consonantais e este fenômeno tem até um nome complicado rotacismo Quem diz broco em lugar de bloco não é burro não fala errado nem é engraçado mas está apenas E não de agreste avena ou frauta ruda canto I verso 5 Doenças frechas e trovões ardentes X 46 Era este Ingrês potente e militara VI 47 Nas ilhas de Maldiva nasce a pranta X 136 Pruma no gorro um pouco declinada II 98 Onde o profeta jaz que a lei pubrica VII 34 acompanhando a natural inclinação rotacizante da língua O que era L em latim nessas palavras do quadro 3 permaneceu L em francês e em espanhol mas em português se transformou em R Já em italiano só para vocês saberem este mesmo L virou um I fiamma flama fiore flor pianta planta Se a tendência é essa pergunta Emília porque existem palavras em português que mantiveram aquele L depois de consoante Há mais de uma razão Emília responde Irene mas nenhuma delas tem nada a ver com certo ou errado Pode ter sido uma tentativa de alguns escritores e gramáticos de recuperar a forma latina original Pode ter sido uma simples questão de opção na época de Alencar e Machado havia a liberdade de escolha entre froco e floco o que hoje já não existe O próprio Camões nOs Lusíadas escreve ora ingrês ora inglês Por razões como essas entre outras é que algumas palavras permaneceram na normapadrão com o L do latim enquanto outras pelo fenômeno do rotacismo ficaram com o R E como os hábitos e os gostos lingüísticos mudam e variam hoje já não está mais na moda dizer frecha froco pranta Puxa vida deixa escapar Sílvia eu nunca ia poder imaginar uma coisa dessas Nem eu confessa Emília juro que nunca mais vou rir de quem disser chicrete em vez de chiclete Como eu expliquei ontem retoma Irene o português nãopadrão é coerente na sua obediência às tendências da língua Os falantes do PNP só conhecem encontros consonantais com R Na variedade deles simplesmente não existem encontros consonantais com L Mas como essas pessoas são pobres analfabetas ou quase deduz Vera vivem nos piores lugares das cidades estão longe pág 46 dos centros de poder não escrevem livros nem trabalham nas novelas de televisão a língua que elas falam é considerada engraçada pobre feia errada e por isso a gente é ensinada e ensina a rir desse modo de falar Mas não devia ser assim não é completa Irene A gente ri de uma frase como Cráudia fala ingrês e gosta de chicrete mas não ri de A igreja de São Brás é perto da praia muito embora as palavras das duas frases tenham uma mesma explicação histórica E por que a gente ri Porque a segunda frase tem palavras que pertencem à língua literária à língua escrita à língua que se aprende na escola e é usada pelas pessoas importantes ricas poderosas bonitas Já a primeira frase não Ela tem palavras usadas por pessoas que como bem disse a Vera sofrem com as injustiças sociais nunca puderam ir à escola aprender a língua literária escrita dos ricos e falam um português diferente do nosso Mas como estamos vendo a língua delas não tem problema nenhum é coerente segue as tendências naturais do português e tem uma lógica histórica O problema dessas pessoas então conclui Sílvia não é lingüístico é social Exatamente confirma Irene E enquanto não for resolvido continuará a ser um probrema sem a menor graça Emília Vera e Sílvia ficam sérias e pensativas Irene percebe o clima e para quebrar o silêncio bate palmas e diz Meninas não sei vocês mas eu estou roxa de frio e azul de fome Que tal a gente ir para a cozinha preparar uma boa sopa E assim dá por encerrada aquela aula pág 47 UMA LÍNGUA ENXUTA eliminação das marcas de plural redundantes o serão seguinte para surpresa de suas três hóspedes Irene traz para a escolinha um aparelho de som portátil e uma fita cassete Aula com música tia pergunta Vera curiosa Isso mesmo Verinha responde Irene introduzindo a fita cassete no compartimento Rock pop brega ou tango arrisca Emília Nenhum desses gêneros Emília diz Irene O que vocês vão ouvir é uma pequena jóia do nosso folclore musical uma canção popular aliás uma das minhas favoritas Reparem bem na melodia como é linda Lá vai Irene aperta uma das teclas do aparelho e a música enche o pequeno cômodo Quando a canção termina ela desliga o aparelho e pergunta E então O que acharam É linda mesmo tia responde Vera Quem está cantando quer saber Emília Acho que conheço essa voz É a Nara Leão responde Irene Uma voz pequena mas muito meiga Morro de saudades da Nara morreu tão moça E como se chama essa música indaga Sílvia Cuitelinho Eu ouvi essa palavra mas não entendi O que é pergunta Emília Cuitelinho é o nome do beijaflor em algumas partes do CentroSul do Brasil E quem compôs interessase Vera Não se sabe responde Irene como toda autêntica canção folclórica essa não tem autor conhecido Mas temos o nome N do pesquisador que a recolheu da boca do povo Paulo Vanzolini Ele é lingüista assim feito você pergunta Sílvia Não que eu saiba sorri Irene Paulo Vanzolini é zoólogo pesquisador musical e compositor Vocês certamente conhecem pelo menos uma das composições dele a famosíssima Ronda pág 48 De noite eu rondo a cidade a te procurar sem encontrar cantalora Sílvia Essa mesma confirma Irene É um número obrigatório em toda roda de bar em toda seresta Ronda já teve várias gravações E o que você quer fazer com essa música do Cuitelinho pergunta Emília Acho que nós podemos usar essa canção para tentar conhecer algumas das regras que estruturam aquilo que grande parte das pessoas instruídas chamam de fala de caipira fala de matuto língua de jeca língua de caboclo português errado mas que nós conscientes de que todas essas denominações estão recheadas de um enorme preconceito social vamos chamar simplesmente de português nãopadrão combinado Combinado repetem as três em coro Como eu venho repetindo e não me canso de insistir o fato de não ser um padrão de não ser um modelo a ser imitado por quem se considera instruído não significa que esta variedade do português seja errada pobre de recursos insuficiente para a expressão Muito pelo contrário como temos visto e veremos ela tem uma clara lógica lingüística tem regras que são coerentemente obedecidas e serve de material para uma literatura popular muito rica Irene distribui algumas folhas de papel Aqui está a letra da canção Emília pede Põe para tocar de novo Irene para a gente poder acompanhar a letra agora Irene atende ao pedido E de novo se escuta a canção Cuitelinho na voz de Nara Leão Pelo que posso farejar aqui diz Emília essa música é um prato cheio para o estudo do português nãopadrão Farejou bem Emília concorda Irene Estou pensando em usar Cuitelinho para explicar vários fenômenos do PNP Mas hoje vamos cuidar só de um deles Qual quer saber Sílvia Cheguei na bera do porto onde as onda se espaia As garça dá meia volta senta na bera da praia E o cuitelinho não gosta que o botão de rosa caia pág 49 Quando eu vim de minha terra despedi da parentaia Eu entrei no Mato Grosso dei em terras paraguaia Lá tinha revolução enfrentei fortes bataia A tua saudade corta como o aço de navaia O coração fica aflito bate uma a otra faia E os oio se enche dágua que até a vista se atrapaia A questão dos plurais responde Irene Foi mesmo o que mais me chamou a atenção tia diz Vera É impressionante não tem um plural certo na música toda Lá vou eu bater na mesma tecla suspira Irene Verinha o que existe aqui é um sistema diferente de formação de plurais só isso Lembrese que estamos falando do português não padrão que tem regras gramaticais diferentes das do português padrão E qual é a diferença agora pergunta Emília A diferença é a redundância responde Irene No portuguêspadrão existe aquilo que se chama marcas redundantes de plural Redundante não quer dizer repetitivo que é demais que está sobrando pergunta Sílvia Isso mesmo Na nossa normapadrão de português para indicar que estamos falando de mais de uma coisa acrescentamos marcas de plural em muitas palavras da frase Vejam só pág 50 E Irene escreve na lousa estas duas frases Depois volta a falar Para informar que se trata de mais de uma flor o PP precisa de cinco marcas de plural que modificam várias classes de palavras artigo substantivo adjetivo verbo É o que a gente aprende e ensina na escola com o nome de concordância de número Essa quantidade de marcas de plural é do ponto de vista lógico uma redundância desnecessária e do ponto de vista econômico um gasto excessivo não concordam Quero te dar a linda flor amarela que brotou no meu jardim Quero te dar as lindas flores amarelas que brotaram no meu jardim Nunca tinha parado para pensar nas coisas desse jeito admite Vera Sabe o que o portuguêspadrão parece diz Emília O quê pergunta Irene curiosa Parece um daqueles vendedores que sabem convencer um cliente A gente entra na loja procurando uma camisa bonita para ir numa festa e ele consegue fazer a gente comprar também uma calça um par de meias um colete e um cinto tudo combinando A comparação é perfeita Emília aprova Irene A gente acaba saindo da loja com mais coisas do que precisava e com menos dinheiro no bolso conclui Emília Todas riem O português nãopadrão é bem diferente disso prossegue Irene Ele é mais sóbrio mais econômico mais modesto menos vaidoso Sua regra de plural é a seguinte marcar uma só palavra para indicar um número de coisas maior que um E esta regra é rigidamente obedecida em todos os versos da canção reparem bem pág 51 Puxa é mesmo reconhece Sílvia que PNP mais obediente esse A regra como vocês podem ver tem uma hierarquia rígida a marca indicadora de plural é usada apenas no artigo definido Quando não há artigo ela vai para a primeira palavra do grupo a ser pluralizado que pode ser um substantivo como em terras paraguaia ou um adjetivo fortes bataia Na verdade a marca de Cheguei na bera do porto onde as onda se espaia As garça dá meia volta senta na bera da praia Eu entrei no Mato Grosso dei em terras paraguaia Lá tinha revolução enfrentei fortes bataia E os oio se enche dágua número funciona como um sinal um aviso de que aquele grupo de palavras está no plural por isso ela é sempre usada na primeira palavra do grupo E isso é suficiente pergunta Emília Suficiente e eficiente responde Irene A prova disso é que mesmo um falante de PP por mais preconceituoso que seja entende perfeitamente a diferença entre as garça dá meia volta senta na bera da praia e a garça dá meia volta senta na beira da praia Aliás se você prestar atenção na fala das pessoas com quem convive em casa no trabalho no círculo de amizades vai perceber que em situações informais descontraídas mesmo as pessoas ditas cultas aplicam a regra de plural do PNP É verdade tia eu já reparei isso confirma Vera Não sei não duvida Emília Eu tenho certeza de que não falo assim nunca Meus plurais estão sempre bem marcadinhos bonitinhos Será mesmo diz Irene piscando um olho Um dia a gente grava a sua fala numa situação informal e depois põe a fita para tocar Sou capaz de apostar que vai haver muito plural faltando Quem mais fala assim Essa regra de eliminação das marcas de plural redundantes só existe em português nãopadrão Irene pergunta Sílvia Que nada responde Irene As duas línguas estrangeiras mais ensinadas nas escolas o inglês e o francês têm regras bastante parecidas Não diga surpreendese Sílvia Digo sim reitera Irene Veja este exemplo do inglês pág 52 A professora escreve na lousa Observe Sílvia que na segunda frase a única informação que temos de que se trata de muitas flores é dada pelo s do plural de flowers Todo o resto da frase permanece inalterado Repare que na tradução o PP exige nada menos do que cinco marcas indicadoras de plural É mesmo surpreendese Emília E isso é inglês padrão minha gente inglês corretíssimo explica Irene Agora um pouco de francês Irene escreve na lousa Agora peguei você diz Emília em tom satisfeito depois que Irene termina de escrever A segunda frase do francês não tem tantas marcas de plural quanto a do português Quero ver você se sair dessa My beautiful yellow flower died yesterday Minha bela flor amarela morreu ontem My beautiful yellow flowers died yesterday Minhas belas flores amarelas morreram ontem Je veux te donner la belle fleur jaune qui poussait dans mon jardin Quero te dar a bela flor amarela que crescia em meu jardim Je veux te donner les belles fleurs jaunes qui poussaient dans mon jardin Quero te dar as belas flores amarelas que cresciam em meu jardim Muito simples sorri Irene Me saio com o velho ditado As aparências enganam O francês escreve as marcas de plural mas não as pronuncia nunca Deixe eu ler estas duas frases para você Irene lê com cuidado as duas frases em francês escritas na lousa pág 53 Percebeu que a única diferença audível entre elas está no artigo pergunta ela a Emília No singular la no plural les Todo o resto fica igualzinho O francês é uma língua de ortografia muito difícil justamente por isso a gente escreve uma quantidade enorme de coisas mas só pronuncia umas poucas Escrevese o s do plural e as terminações diferentes dos verbos mas elas nunca são pronunciadas O único aviso que temos no francês falado de que as palavras estão no plural é o artigo Exatamente o mesmo que acontece no português não padrão exclama Vera Que loucura PNP uma língua em dia com a moda Quer dizer então que quem diz as coisa realmente não é burro nem atrasado comenta Sílvia Senão teríamos de chamar de burros e atrasados os franceses e os ingleses e ninguém ousa fazer isso É claro que não concorda Irene Essa regra de plural do PNP fez nascer uma coisa bastante curiosa na fala de muitos mineiros que eu conheço Que coisa tia Se você disser isso aos mineiros eles provavelmente vão negar mas já está documentado gravado em fita e filmado em videocassete O que é afinal impacientase Emília Na fala informal dos mineiros é comum a gente ouvir exclamações do tipo Ques criança mais linda ou perguntas como Ques coisa você quer que eu traga Gente que divertido exclama Emília Eles levam a sério a regra do plural na primeira palavra Todas sorriem Irene volta a falar Vocês certamente já leram nos jornais ou ouviram pela televisão expressões como corte de supérfluos enxugamento da máquina eliminação de gorduras aplicadas a situações políticas econômicas ou administrativas não é Já confirma Sílvia Aliás detesto esse linguajar Eu também confessa Irene Essas expressões são a última pág 54 moda no desfile de soluções pretensamente mágicas para a crise social e econômica Pois vejam só o nosso português nãopadrão está perfeitamente de acordo com essas novas tendências Como vimos no caso dos plurais o PNP corta todas as marcas supérfluas redundantes para que tantos funcionários para fazer o serviço que um só dá conta de realizar Isso torna o PNP uma língua enxuta e conseqüentemente mais dinâmica ágil e flexível do que o PP Ah Irene por favor não me decepcione suplica Sílvia Não me diga que você concorda com essas idéias Claro que não bobinha não se apavore responde Irene abraçando Sílvia Fiz a comparação só para a gente se divertir um pouco Graças a Deus diz Sílvia aliviada Como já enfatizei não vamos querer eliminar o português padrão das escolas e passar a ensinar o PNP Mas o conhecimento dessas regras serve para que fiquemos mais atentas às diferenças que existem entre as duas variedades Diferenças que quase sempre infelizmente são logo consideradas erros por quem não consegue compreender a lógica que existe nelas pág 55 LIBERDADE FRATERNIDADE IGUALDADE transformação de LH em I caso do plural já está resolvido comenta Emília Mas tem outra coisa aqui que também me chama muito a atenção E o que é Emília pergunta Irene Eu já reparei isso na fala de muita gente e agora na letra do Cuitelinho apareceu de novo É essa preguiça que o povo tem de pronunciar o LH direito Em vez de trabalho diz trabaio em vez de telha diz têia Pois é esse justamente o tema da segunda parte da nossa conversa de hoje explica Irene Só que você não colocou o problema em termos adequados Emília Para variar comenta Sílvia em tom de pilhéria Não é que os falantes do PNP sejam preguiçosos ou como dizem alguns gramáticos de visão estreita mentalmente inferiores Nada disso Simplesmente na variedade de português que eles falam não existe este som consonantal Não existe surpreendese Vera Não existe repete Irene Do mesmo modo como em portuguêspadrão não existe por exemplo a consoante que em inglês se escreve TH como em thing coisa Quando um falante de português pronuncia digamos o nome da Sílvia colocando a ponta da língua entre os dentes logo percebemos que ele tem um defeito de fala que recebe até um nome técnico ceceio Eu tenho um primo que fala desse jeito confirma Sílvia E ele ainda tem o azar de se chamar Celso Todos sempre zombam dele porque tem a língua presa Só que em inglês quem não pronunciar o TH com a língua entre os dentes é que vai ser considerado defeituoso não é pergunta Vera Isso mesmo confirma Irene É mais uma prova de que os nossos juízos de valor a respeito do falar certo variam de uma O língua para outra e dentro da mesma língua de uma variedade para outra É isso que acontece também com o R torto dos caipiras quer saber Emília pág 56 Bem lembrado responde Irene O R caipira que nós lingüistas chamamos R retroflexo é vítima de muita zombaria por parte dos falantes das variedades urbanas No entanto esses mesmos falantes vão para os cursos de inglês aprender a pronunciar esse R em palavras como fork garfo morning manhã carpet tapete à maneira dos americanos E não me consta que fiquem zombando dessa pronúncia nem chamando os americanos de caipiras Emília dá um longo suspiro levantase põe a mão no peito inclinase e diz em tom jocoso Queirame perdoar senhora professora doutora deixeime levar pelos meus preconceitos Irene sorri Emília volta a sentarse e diz Já que é proibido falar em preguiça do povo como é que você explica aqui na letra da música espaia no lugar de espalha parentaia no lugar de parentalha bataia no lugar de batalha navaia no lugar de navalha faia no lugar de falha e atrapaia no lugar de atrapalha Acho que podemos mais uma vez comparar o português nãopadrão com outras línguas sugere Irene No espanhol padrão que é aquele falado na região de Castela daí o nome castelhano tudo o que se escreve LL é pronunciado lhê equivalente ao LH do portuguêspadrão No entanto dentro da própria Espanha nas demais regiões do país este grupo LL é pronunciado i e os espanhóis falantes do castelhano padrão têm até um nome para esta pronúncia diferente que eles é claro consideram um defeito E que nome é esse interessase Vera É yeísmo responde Irene O yeísmo acontece também no espanhol falado na América Central nas ilhas do Caribe e em diversos países da América do Sul Por causa do yeísmo aquilo que se escreve caballo cavalo com LL e que os castelhanos pronunciam cabalho nas outras variedades se pronuncia cabaio Como se pode ver este problema não é só dos falantes do português nãopadrão Que interessante comenta Sílvia No francês até início do século passado continua Irene o LL do grupo que é escrito ILL se pronunciava como o LH do pág 57 português padrão e os gramáticos apavorados com o desaparecimento desta consoante substituída pela semivogal i fizeram todos os esforços possíveis para salvála da extinção Mas de nada adiantou a campanha deles E hoje se compararmos algumas palavras do portuguêspadrão do francêspadrão e do português nãopadrão vamos ver que essas duas últimas variedades têm pronúncias bem próximas Eu até trouxe um quadro para a gente fazer a comparação Irene dá a cada uma das alunas uma folha onde está impresso o seguinte quadro Quadro 4 Português Padrão Francês Padrão Português NãoPadrão abelha alho batalha colher substantivo abeille abéye ail ay bataille batáye cuiller küyér abêia ai bataia cuié Vou ler as palavras em francês para vocês perceberem a semelhança com o português nãopadrão e entenderem a tentativa de transcrição fonética que coloquei entre parênteses diz Irene e assim faz pág 58 Primeira explicação dentro da língua O que será que provocou no francêspadrão o desaparecimento total da consoante interessase Vera Podemos tentar duas explicações responde Irene A primeira é de ordem lingüística diz respeito à língua em si à sua estrutura Quem nos apresenta o motivo da extinção do lhê em francês é um lingüista alemão Heinrich Lausberg autor de um dos mais completos tratados sobre as línguas românicas Eu copiei a citação aí nesta folha embaixo do quadro Emília Vera e Sílvia lêem no lugar indicado Parece que o Lausberg não sabe que a mesma coisa Por afrouxamento e finalmente abandono da oclusão central formase do λ difícil de pronunciar por causa da elasticidade reduzida do dorso da língua muito naturalmente a fricativa γ como em francês espanhol popular e dialetal LAUSBERG H Lingüística românica 2 ed Lisboa Fundação Calouste Gulbenkian 1981 p 71 falha filha palha trabalhar faille faye fille fíye paille páye travailler travayê abêia ai bataia cuié faia acontece no português nãopadrão do Brasil comenta Vera O que ele quis dizer com tantos nomes complicados Juro que não entendo a variedade dele confessa Emília É simples diz Irene sorrindo Ele quis dizer que a consoante λ este é o símbolo usado pelos lingüistas para representar o som lhê é produzida com a ponta da língua tocando o palato nome oficial do céu da boca muito perto do ponto onde é produzida a semivogal γ símbolo usado para representar o i de pai Experimentem pronunciar a seqüência lhalhalha e depois a seqüência aiaiai e tentem perceber para onde vai a língua As três fazem a experiência e se divertem com os sons produzidos Perceberam pergunta Irene Esta proximidade e a comodidade maior de se pronunciar o i segundo o Lausberg levaram à transformação Vamos estudar este fenômeno em outras conversas mais adiante Por enquanto vocês podem ir guardando o nome dele assimilação pág 59 Parece que é mesmo difícil pronunciar o lhê confirma Vera Eu já reparei que é muito comum a pronúncia trabáio véio abêia na fala de estrangeiros que aprendem o português Muito bem lembrado Verinha confirma Irene Como essas pessoas não têm em suas línguas a consoante λ e sentem dificuldade em pronunciála substituemna pelo som mais próximo que encontram que é justamente o γ Irene levantase da cadeira vai até a lousa pega um bastão de giz e escreve alguma coisa Voltase para as três jovens e diz Vamos acompanhar a trajetória completa de uma palavra do latim até o português Esta palavra é tégula telha Durante a formação da língua portuguesa desde o latim vulgar até sua forma moderna padrão aconteceram as seguintes transformações ela vai apontando as palavras enquanto as lê na lousa O que significa esse sinal entre uma palavra e outra pergunta Sílvia Significa transformouse em explica Vera lembrandose de suas aulas na faculdade Isso mesmo confirma Irene Agora vejam só como a forma telha pertence à língua padrão ao português clássico literário as gramáticas históricas param aí como se a língua tivesse encerrado seu processo de mudança no século XVI Mas toda língua está sempre se modificando de forma ininterrupta e imperceptível para seus falantes mas sempre se modificando Por isso para representar a realidade lingüística do português nãopadrão do Brasil com alguma fidelidade temos de acrescentar mais uma forma nessa seqüência de transformações Irene acrescenta uma palavra à seqüência que fica então assim Só que este pequeno acréscimo representa um passo político muito grande explica ela Por quê pergunta Sílvia pág 60 Porque estaríamos reconhecendo a existência de uma outra variedade de português e exigindo que as gramáticas o ensino oficial e os meios de comunicação a tratassem com o respeito que lhe é devido tégula tegla tegla teyla teyla telha tégula tegla tegla teyla teyla telha têia Segunda explicação fora da língua Se bem me lembro Irene você disse que podia dar duas explicações diferentes para esse mesmo fenômeno diz Emília A primeira já vimos E a segunda A segunda explicação para a vitória do i sobre o lhê em francês é histórica política está fora da língua responde Irene Como vocês sabem a França viveu um período de grandes conturbações políticas no final do século XVIII A famosa Revolução Francesa completa Sílvia A própria confirma Irene A Revolução Francesa de 1789 tirou do poder a classe social dos aristocratas nobres e grandes proprietários de terra No lugar deles ela colocou outra classe social a dos burgueses comerciantes banqueiros e industriais da cidade A mudança de classe social também significou mudança de variedade lingüística dominante Afinal a língua padrão não é a língua do patrão recorda Sílvia No antigo regime prossegue Irene a fala dos burgueses era ridicularizada tratada com desprezo pelos aristocratas exatamente como o português nãopadrão do Brasil é tratado pelos falantes escolarizados Gente como a história se repete exclama Emília Não é mesmo diz Irene Ora justamente na fala daqueles burgueses é que estava acontecendo com toda a liberdade o desaparecimento do lhê para dar lugar ao i Por isso é que poucas décadas depois da Revolução no início do século XIX ninguém mais sabia pronunciar a antiga consoante λ pág 61 Educar é diferente de ensinar Mas aqui no Brasil ainda estamos no antigo regime da consoante comenta Vera Pois é confirma Irene a variedade de português em que não existe o lhê é usada pelas pessoas menos prestigiadas da nossa sociedade Os trabalhadores rurais os analfabetos os moradores das favelas as classes de renda mais baixa completa Sílvia E o que acontece com essa variedade indaga Irene Ela é alvo de todo tipo de preconceito e julgamento negativo responde Vera E se a gente propusesse também uma revolução nesse modo de encarar o português nãopadrão sugere Sílvia Podíamos aplicar à nossa prática de ensino o lema dos revolucionários franceses de 1789 Liberdade igualdade fraternidade Claro que sim por que não retoma Irene A prática tradicional de ensino da língua portuguesa no Brasil deixa transparecer além da crença no mito da unidade da língua portuguesa a ideologia da necessidade de dar ao aluno aquilo que ele não tem ou seja uma língua Essa pedagogia paternalista e autoritária faz tábua rasa da bagagem lingüística da criança e trata a como se seu primeiro dia de aula fosse também seu primeiro dia de vida Tratase de querer ensinar ao invés de educar E qual é a diferença pergunta Emília Para mim esses dois verbos eram sinônimos Nem me fale em sinônimo que eu fico logo toda arrepiada diz Irene Mas vamos ver a diferença O verbo ensinar Emília provém do latim in signo isto é pôr um sinal em alguém e implica uma ação de fora para dentro implantar alguma coisa um signo ou um conjunto de significados na mente de alguém Já educar vem de ex duco trazer para fora tirar de dar à luz num movimento que se faz na direção oposta à de ensinar Preciso anotar isso correndo diz Emília Nossa escola nossas gramáticas normativas nossos livros didáticos nossa psicologia educacional prossegue Irene imbuídos da crença de que um aprendiz nada tem a mostrar e que ao pág 62 contrário é deficiente carente inepto assumem sem disfarce a tarefa de ensinar de incutir uma língua diferente tida como intrinsecamente boa e perfeita O fracasso dessa atitude fica bem claro no número impressionante de alunos que abandonam a escola Isso vem demonstrando que já é hora de tentar educar de destravar os alunos das classes desfavorecidas para que possam pôr para fora suas experiências sua língua e passem a falar por si mesmos Irene faz uma pequena pausa respira fundo e retoma É importante que nós educadores tenhamos em mente que o português nãopadrão é diferente do portuguêspadrão mas igualmente lógico bem estruturado e que ele acompanha as tendências naturais da língua quando não refreada pela educação formal O PNP não é pobre carente nem errado Pobres e carentes são sim aqueles que o falam e errada é a situação de injustiça social em que vivem Uma língua rica Você tem toda razão Irene apóia Sílvia Como chamar de pobre a língua de quem compõe uma canção tão bonita como Cuitelinho Essa é uma das minhas paixões no estudo do português nãopadrão diz Irene Nessa variedade é produzida uma riquíssima literatura popular que poderia ser mais explorada nas escolas até para afastar delas o preconceito que ainda pesa sobre o PNP Você proporia uma análise literária de Cuitelinho em sala de aula pergunta Vera Claro que sim responde Irene Cuitelinho tem imagens poéticas muito bonitas tem rima e métrica perfeitas e se encaixa numa tradição secular de poesia lírica da língua portuguesa que remonta aos trovadores do século XIII É uma canção com letra e melodia e usa o tradicional verso de sete sílabas Repare que cada uma de suas estrofes aborda um aspecto diferente da vida do poeta A primeira é uma visão objetiva da paisagem uma descrição da natureza um panorama ecológico A segunda situa a trajetória geográficohistórica do poeta de sua casa até a fronteira entre Paraguai e Mato Grosso numa época de revolução pág 63 Provavelmente a guerra do Paraguai arrisca Sílvia Aqui diz enfrentei fortes bataia Provavelmente diz Irene A terceira estrofe bastante subjetiva nos dá um retrato dos sentimentos amorosos do poeta Observem um aspecto bonito desta canção não há nenhuma marca lingüística que indique o sexo da pessoa que se identifica com o eu do poeta de maneira que tudo aqui pode estar sendo cantado igualmente por um homem ou por uma mulher Tudo isso numa cançãozinha simples de nada comenta Emília Mas muitos poetas eruditos confessam que gostariam de produzir versos tão simples e com uma riqueza de imagens poéticas condensadas em tão poucas palavras Aliás esta é a lição de arte poética sertaneja que um de nossos maiores poetas populares o cearense Patativa do Assaré nos dá em Cante lá que eu canto cá Que bonito exclama Vera Irene consulta o relógio e se espanta Meu Deus é hoje que eu viro abóbora Já passou da meia noite e meia e a gente aqui pág 64 Pra gente aqui sê poeta e fazê rima compreta não precisa professô basta vê no mês de maio um poema em cada gaio e um verso em cada fulô VERBO PRA QUE TE QUERO simplificação das conjugações verbais a noite seguinte depois que todas se instalam e enquanto Irene consulta suas anotações Emília toma a palavra e diz Irene hoje eu prestei bastante atenção no modo de falar da Eulália e percebi que ela não respeita as conjugações verbais Como assim não respeita quer saber Sílvia Ela não conjuga os verbos como a gente explica Emília Ela diz por exemplo eles gosta nós gosta vocês gosta e assim em diante É verdade tia confirma Vera Aliás eu ia mesmo comentar que isso também aparece na letra da música que a gente viu ontem A Nara canta as onda se espaia as garça dá meia volta brinca na bera da praia os óio se enche dágua Irene termina de organizar seus papéis separa algumas folhas guarda o resto na sua pasta de cartolina e só então fala Muito bem meninas parece que estou conseguindo fazer vocês prestarem mais atenção na língua nossa de todo dia despertando em vocês um espírito de pesquisadoras Parece até que adivinharam porque este é justamente o tema da nossa conversa de hoje a simplificação das conjugações verbais Vera e Emília sorriem satisfeitas com o elogio A Vera até foi mais esperta do que eu reconhece Irene porque eu nem tinha pensado em usar o Cuitelinho para explicar esse fenômeno E no entanto essa canção serve direitinho de exemplo Parabéns sabichona cumprimenta Emília piscando um olho na direção de Vera Muito obrigada é a herança genética diz Vera sorrindo na direção da tia Os pesquisadores que estudam os falares regionais e não N padrão têm verificado que de Norte a Sul do Brasil existe uma tendência generalizada a reduzir as seis formas do verbo conjugado a apenas duas Vamos comparar mais uma vez o portuguêspadrão e o português nãopadrão Lá vou eu de novo com os meus quadros pág 65 Irene distribui as folhas de papel As jovens examinam o quadro Quadro 5 Conjugação do verbo AMAR no presente do indicativo De novo o enxugamento O PNP como vimos ontem é uma língua enxuta que evita as redundâncias o excesso de marcas para indicar um único fenômeno Assim como no caso dos plurais onde a marca de plural fica limitada somente ao artigo ou à primeira palavra como em os menino bonito no caso dos verbos ao que parece basta a presença do pronomesujeito para indicar a pessoa verbal Pronomesujeito é eu tu ele nós etc certificase Sílvia Isso mesmo confirma Irene Se a pessoa já está indicada a forma do verbo não precisa variar tanto para que o PORTUGUÊS PADRÃO eu AMO tu AMAS eleela AMA nós AMAMOS vós AMAIS eles AMAM PORTUGUÊS NÃOPADRÃO eu AMO tuvocê AMA ele AMA nósa gente AMA vocês AMA eles AMA ouvinte compreenda de quem se está falando e qual é o tempo verbal em questão É verdade tia comenta Vera Eu acho que ninguém vai confundir por exemplo tuelenós ama com tuelenós amou É o que prova a funcionalidade do PNP diz Irene A mesma regra de eliminação de concordâncias redundantes que vimos no caso dos plurais vale também aqui pág 66 Eu o outro Mas eu ainda tenho uma dúvida anuncia Emília Se estamos aqui diante de mais um caso de eliminação de redundâncias por que então existe uma forma para eu e uma forma para as outras pessoas todas Por que o verbo para eu não fica igual ao das outras Excelente observação Emília cumprimenta Irene Quem pode responder melhor à sua pergunta eu acho que é a Sílvia Sílvia põe a mão no peito surpresa Eu Por quê Porque neste caso o que existe talvez seja um motivo de natureza psicológica Aliás você já tinha falado disso no nosso primeiro batepapo quando disse que a questão do outro do diferente parece ser o grande problema do ser humano É verdade lembrase Sílvia Puxa que interessante Você está querendo dizer que no caso dos verbos simplificados estas duas formas que diferenciam a primeira pessoa das outras poderiam refletir a necessidade que todo ser humano tem de distinguir o eu o indivíduo do nãoeu do coletivo Parece que é isso mesmo o que acontece responde Irene Parece haver no nosso inconsciente o desejo de deixar bem claro o limite que separa o que diz respeito a mim e o que diz respeito ao resto da humanidade Essa sua hipótese me parece muito boa Irene diz Emília Agradeço o elogio mas não é minha esclarece Irene Alguns estudiosos têm verificado esta mesma tendência em outras línguas línguas bem diferentes do português O inglês nãopadrão falado pelos negros norteamericanos o chamado Black English por exemplo apresenta essa característica O finlandês moderno também E o mesmo acontece no africâner que é uma das línguas oficiais da África do Sul derivada do holandês Preciso tomar nota disso para discutir com os meus professores lá na faculdade diz Sílvia É um ótimo tema para investigação confirma Irene É um ponto que exigiria maior aprofundamento no estudo das relações entre lingüística e psicologia lingüística e psicanálise De que pág 67 modo a língua que se fala reflete ou esconde a língua que não se fala isto é as estruturas do nosso inconsciente O clássico e o coloquial Irene vai até a lousa e começa a escrever alguma coisa Enquanto escreve vai falando Na verdade a redução de seis formas verbais do PP para duas no PNP só nos surpreende porque estamos acostumadas demais eu diria até viciadas com o esquema tradicional de conjugação do portuguêspadrão que é um retrato fiel do quadro de conjugação latina Muito orgulhosos de falarem uma língua o português que tem antepassado tão ilustre o latim os gramáticos não abrem mão desse quadro tentando provar com isso o quanto a nossa língua ainda conserva sua herança latina Vejam só E Irene aponta para o que acaba de escrever Quadro 6 Verbos AMARE e AMAR no presente do indicativo O português é mesmo muito parecido com o latim exclama Emília Mas qual português pergunta Irene Este quadro é mesmo muito bonito mas não corresponde totalmente à realidade da língua portuguesa falada no Brasil O quadro com seis formas pág 68 diferentes uma para cada pessoa corresponde quando muito ao portuguêspadrão clássico literário escrito Digo quando muito porque nem mesmo nessa variedade escrita esse quadro está totalmente refletido Basta ler os bons jornais as revistas e a literatura contemporânea para se dar conta disso Mas como é então a conjugação nossa de cada dia pergunta Emília Se você prestar alguma atenção nas formas verbais utilizadas diariamente por pessoas que usam o portuguêspadrão mas na sua variedade falada coloquial vai ver que nós também simplificamos bastante o nosso quadro de conjugação verbal Veja só Irene volta à lousa e escreve LATIM CLÁSSICO AMO AMAS AMAT AMAMUS AMATIS AMANT PORTUGUÊS PADRÃO CLÁSSICO AMO AMAS AMA AMAMOS AMAIS AMAM Quadro 7 Como é fácil verificar retoma ela as seis formas do PP literário foram reduzidas a três exatamente a metade no PP coloquial O português nãopadrão ao simplificar de seis para duas formas só levou um pouco mais adiante o mesmo processo de enxugamento da máquina que a gente observa também no PP Passado presente ou futuro Vera examina mais uma vez o quadro das conjugações dessa vez com ar pensativo Voltase para Irene e diz Tia passou uma idéia pela minha cabeça e eu queria que você me dissesse se ela tem fundamento ou se estou apenas delirando Diga lá Verinha pág 69 Esse quadro de conjugação do português padrão clássico é o que a gente aprende e ensina na escola Isso mesmo O que tem ele pergunta Irene interessada Eu estava pensando uma coisa Vai mulher desembucha logo impacientase Emília Que coisa pergunta Sílvia PORTUGUÊS PADRÃO LITERÁRIO eu AMO tu AMAS ele AMA nós AMAMOS vós AMAIS eles AMAM PORTUGUÊS PADRÃO COLOQUIAL eu AMO você AMA ele AMA a gente AMA vocês AMAM eles AMAM É essa história de fazer os alunos decorarem as formas conjugadas de tu e vós responde Vera Ninguém mais usa essas formas Quando é que a gente ouve alguém falando vós vos divertistes muito Mais uma vez sua intuição está correta Verinha diz Irene Esse quadro de conjugação que as gramáticas tradicionais apresentam tem realmente alguns problemas para o ensino justamente por estar muito distante da língua viva dos falantes do português brasileiro O pronome tu por exemplo no Brasil é usado em algumas regiões específicas e raramente a forma verbal que o acompanha corresponde à das gramáticas e livros didáticos O pronome vós então como você bem notou é um verdadeiro dinossauro lingüístico está extinto na fala dos brasileiros há muito tempo E mesmo assim a gente tem que empurrar essas coisas pela goela abaixo dos alunos queixase Emília Eu mesma me confundo toda com essa quantidade de s que aparece nos verbos de tu e de vós Se vós supusésseis a dificuldade que tenho Vera Sílvia e Irene sorriem Eu acho importante que a gente apresente essas formas verbais aos alunos diz Irene em seguida para que eles as reconheçam quando tiverem de ler um texto clássico por exemplo Mas querer que eles decorem tudo para fazer prova e ainda tirar ponto por não terem acertado considero um verdadeiro crime contra os direitos humanos do educando As jovens riem do tom exaltado de Irene Apoiado Irene aplaude Emília E não se esqueça que é também um crime contra os direitos humanos dos professores Claro que é confirma Irene E não é só esse o problema Além de cobrarmos o que não é necessário deixamos de apresentar fenômenos muito mais interessantes e vivos Por exemplo interessase Vera pág 70 Por que as gramáticas e os livros insistem em dizer que você é um pronome de tratamento de terceira pessoa questiona a professora Não está óbvio claro límpido e evidente que você é um pronome sujeito do caso reto usado para designar a segunda pessoa do discurso aquela com quem eu estou falando a quem estou me dirigindo É mesmo diz Emília Aliás a classe de palavras que recebe o nome de verbos merece um amplo estudo da parte dos lingüistas dos gramáticos e dos autores de livros didáticos As definições tradicionais dadas aos tempos verbais por exemplo estão pedindo uma revisão urgente porque elas mostram falhas bem visíveis quando comparadas com a realidade da língua falada Vejam só Deus do céu que rolo exclama Emília Além disso prossegue Irene somos obrigados a estudar e a saber conjugar de cor tempos verbais que muito raramente são empregados na língua diária Por outro lado há tempos verbais que simplesmente nunca são mostrados nas gramáticas e nos livros didáticos como se não existissem e que a gente emprega o tempo Se eu passo é presente como explicar seu uso na frase Depois de amanhã eu passo na sua casa que tem uma mensagem definitivamente voltada para o futuro Se andará é futuro como explicar seu uso em Onde andará agora aquele nosso amigo que comporta uma dúvida relativa ao presente indicada inclusive pela presença do advérbio agora Se podia é imperfeito ou seja ação incompleta ou continuada no passado como explicar seu uso em Você bem que podia passar lá em casa amanhã que indica uma possibilidade de ação no futuro todo Manda ver pede Emília Veja o caso do futuro diz Irene Quem de nós diz Amanhã sairei com você A forma muito mais freqüente é de longe Amanhã vou sair com você pág 71 É verdade confirma Vera O mesmo acontece com o chamado pretérito maisque perfeito Vocês já se lembram de terem dito alguma vez na vida Quando você telefonou eu já saíra Claro que não responde Sílvia Eu digo Quando você telefonou eu já tinha saído Pois então diz Irene neste caso há uma diferença entre o uso da língua escrita que usa a forma simples e o uso da língua falada que usa a forma composta mas essa distinção nunca é apresentada nestes termos pelo ensino tradicional Quem não sabe português O caso dos verbos continua a professora é só um alerta para que façamos uma boa revisão das nossas formas tradicionais de ensinar a língua portuguesa Na nossa prática de ensino muitas vezes insistimos em fatos que não correspondem à realidade da língua viva e simplesmente deixamos de lado outros aspectos muito mais interessantes dinâmicos e que dizem respeito a fenômenos muito mais próximos de nós e de nossos alunos Pensem nisso por exemplo quando tiverem de ensinar sinônimos coletivos análise sintática e outras coisas Análise sintática Jesus me poupe exclama Emília Não conheço nada mais aterrador do que isso Não é mesmo diz Irene Será que a análise sintática tal como vem sendo ensinada nos ajuda a fazer um uso melhor da língua A realidade mostra que não Será que é mesmo tão necessário saber que o coletivo de camelo é cáfila Quando alguma de nós precisou usar esse conhecimento na prática E os tais sinônimos será que existem mesmo Irene faz uma breve pausa As três jovens estão sérias ouvindoa em silêncio Nós temos o hábito de ensinar a gramática como se ela fosse uma coisa complicada misteriosa cabalística acessível somente a uns poucos iluminados os grandes escritores clássicos retoma Irene Tudo o que conseguimos é criar nos alunos uma enorme antipatia por estes grandes artistas do idioma o que é uma pena pág 72 Uma pena mesmo repete Vera Eu mesma só consegui aprender a gostar do Machado de Assis há pouco tempo confessa Emília Na escola detestava ele de todo o coração porque os professores usavam textos dele nos malditos exercícios de análise sintática É preciso mudar isso diz Irene É muito triste ouvir tanta gente inteligente dizer Eu não sei português Se não soubesse não teria produzido essa simples frase O que as pessoas não sabem é a língua fossilizada enrijecida ossificada congelada insípida que a nossa tradição escolar tem tentado ensinar Parece que nós professores temos um prazer meio sádico de só querer ensinar as irregularidades as exceções os aspectos esquisitos da língua comenta Vera Acho que temos certa obsessão em tornar as coisas mais difíceis acrescenta Sílvia talvez numa tentativa autoritária de mostrar a nossa superioridade de manter a distância que existe entre eu o professor que sei tudo e o outro o aluno que não sabe nada Mas não é assim que conseguiremos despertar nas pessoas o amor pelo verdadeiro portuguêspadrão que falamos e escrevemos Quer dizer então é a vez de Emília que além de precisarmos modificar nossa maneira de encarar o português não padrão libertandonos de todos os preconceitos que atrapalham a nossa visão dos fenômenos da língua também precisamos transformar nossa maneira de trabalhar com a própria norma padrão Exatamente confirma Irene Vamos pensar naquela diferença entre ensinar e educar que vimos ontem e tentar descobrir novas trilhas para a nossa prática pedagógica Emília levantase e aplaude Ai Emília como você é palhaça diz Sílvia entre risos Graças a Deus diz Emília O que faz a vida valer a pena é o nosso bom humor Concordo endosso corroboro apóio e assino embaixo diz Irene Neste momento Eulália aparece à entrada da escolinha e anuncia Pão de queijo saidinho do forno E atendendo àquele chamado irresistível vão todas para a cozinha pág 73 E AGORA COM VOCÊS A ASSIMILAÇÃO transformação de ND em N e de MB em M o dia seguinte um domingo enquanto todas ajudam a arrumar a cozinha depois do café da manhã Eulália diz a Irene que vai à casa do filho Ângelo Prometi almoçar com as crianças hoje diz ela avó sorridente Almoçar com as crianças ou fazer o almoço para elas pergunta Irene piscando um olho para Vera Eulália só faz aumentar o sorriso que já trazia aceso no rosto Nem se dá ao trabalho de responder pois a resposta é mais que evidente Quando a gente terminar aqui eu levo você de carro oferece Irene Precisa disso não Irene reage Eulália Eu vou de a pé mesmo é uma caminhada gostosa E você não vai largar a Verinha mais as menina aqui sozinha vai Claro que não responde Irene a minha idéia era justamente levar todo mundo comigo para dar um passeio pela cidade A gente deixa o carro lá no centro e sai andando Vera Emília e Sílvia aprovam a idéia Em pouco tempo já estão todas prontas e entram no carro de Irene que sai dirigindo A casa de Irene e Eulália é na verdade uma chácara ligeiramente afastada da cidade Mas com poucos minutos de carro chegase ao centro No trajeto avistase a Pedra Grande ponto mais alto da região serrana de Atibaia Essa Pedra Grande é mesmo linda de morrer comenta Emília É a paixão da minha vida diz Irene Desde o primeiro dia em que descobri essa maravilha não consegui sossegar enquanto não me mudei para cá Todo verão eu caminho até lá em cima É N uma escalada e tanto mas vale a pena A vista que a gente tem da região é simplesmente deslumbrante Só falta você dizer que também pula de asa delta graceja Sílvia que sabe que a Pedra Grande com seu topo amplo e largo de rocha nua e lisa é uma plataforma de salto apreciada pelos praticantes do vôo livre pág 74 Bem que ela já pensou nisso viu diz Eulália Você já sabe que a Irene tem um parafuso de menos na cachola Pensei mesmo confirma Irene rindo Já vi um mundo de gente saltando lá de cima Morro de inveja mas sei que na hora H a coragem vai pular antes de mim e me deixar na mão Todas as passageiras sorriem Por que não vamos até lá hoje sugere Emília Só se você estiver disposta a virar picolé responde Vera Nesta época do ano em pleno inverno a temperatura lá em cima pode ficar abaixo de zero Pensando bem vamos deixar para outro dia torna a falar Emília em tom fingidamente despreocupado Nessa conversa chegam à casa de Ângelo Todas descem para ver os netos de Eulália Rosa e Gabriel e as amigas de Vera aproveitam para conhecer Antônia mulher de Ângelo que é enfermeira Quando entram de novo no carro Sílvia propõe Irene vamos parar na beira daquele lago que a gente vê do jardim da casa do Ângelo O Lago do Major pergunta Vera Esse mesmo confirma Irene Vamos sim é uma ótima idéia É sempre uma delícia passear perto da água Partem Irene estaciona o carro junto do amplo calçadão que circunda todo o lago Todas descem e põemse a caminhar Gente que coisa boa que deve ser morar num lugar desse exclama Sílvia contente por estar ali Concordo diz Emília Uns dez dias por ano né É o máximo que consigo passar longe de São Paulo Depois disso passo a estranhar o clima sinto saudade do barulho do trânsito e o ar puro começa a fazer mal para minha pele Gargalhada geral A Emília existe mesmo ou estou sonhando pergunta Irene puxando a jovem para junto de si e abraçandoa com força Existe sim responde Vera É assim o tempo todo impertinente irreverente inconveniente Mas também inteligente completa Emília aproveitando a rima pág 75 É o mal do nome explica Sílvia A mãe dela leu Monteiro Lobato mais do que devia Eu nunca gostei muito de me chamar Emília Mas me consolo porque minha mãe desistiu do primeiro nome que pensou em me dar também por causa do Lobato Que nome interessase Irene Benta arrisca Vera Tia Nastácia zomba Sílvia Pior responde Emília sem se dar por achada Narizinho Irene ri tanto que pára de caminhar e sentase num banco Depois contendose diz Pelo menos a Emília tinha um título de nobreza Quem se lembra Sílvia e Vera ficam pensativas Emília sentase ao lado de Irene e murmura no ouvido dela Você me paga Irene finge que não escuta e diz Gente que memória curta Vocês não se lembram que a Emília é a Marquesa de Rabicó Vera explode em risos Sílvia também ri e diz É mesmo Ela se casou com o Marquês de Rabicó um porco E todas voltam a rir gostosamente com exceção de Emília que cruza os braços e finge zangarse Irene abraça Emília de novo e diz Pelo menos a nossa Emília não tem uma torneirinha de asneiras Não tem mesmo diz Vera O que ela tem é um chuveiro de asneiras Emília mostra a língua para Vera Isso é típico da Emília diz Sílvia Quando eu era criança cheguei a contar quantas vezes nos livros aparecia a frase Emília pôs um palmo de língua para fora Dá para mudar de assunto ou vai continuar a malhação do Judas pergunta Emília Eu queria conversar umas coisas com a Irene mas até agora não consegui abrir a boca A boca não só a torneirinha diz Vera sorrindo Emília lança um olhar de desdém na direção de Vera voltase para Irene e diz pág 76 Irene por que é tão comum a gente ouvir as pessoas dizerem faluno comeno cantano em vez de falando comendo cantando Isso é tão comum que nem sei se é coisa só do português nãopadrão Você está certa diz Irene Essa é uma tendência muito viva na língua portuguesa falada no Brasil Até mesmo os falantes escolarizados em situação informal e ambiente descontraído ou numa fala mais acelerada costumam pronunciar os verbos no gerúndio com a terminação no no lugar da terminação ndo Às vezes isso ocorre também com o advérbio quando que é pronunciado quano Por que isso acontece tia pergunta Vera sentandose na grama em frente ao banco onde estão Irene e Emília A explicação é simples Os fonemas n e d pertencem a uma família de consoantes que são chamadas dentais Por que elas têm esse nome pergunta Sílvia Porque para serem produzidas é preciso que a ponta da língua chamada ápice ou a porção dianteira da língua chamada prédorso entre em contato com os alvéolos dos dentes incisivos superiores Cruzes quanto palavrão exclama Emília E você diz que a explicação é simples É mais fácil perceber isso na prática diz Irene Experimente pronunciar com cuidado as palavras nenê e dado Emília e suas duas colegas aceitam a sugestão Perceberam como a língua tocou levemente a parte do céu da boca onde se encaixam os dentes de cima pergunta Irene Por isso é que essas consoantes e algumas outras são chamadas dentais Muito bem diz Emília o N e o D são dentais E daí Daí que por serem produzidas na mesma zona de articulação ou seja no mesmo lugar dentro da boca essas consoantes vão sofrer o ataque de uma força muito viva na língua a assimilação Assimilação pergunta Vera Assimilação repete Irene A assimilação como o nome diz é a força que tenta fazer com que dois sons diferentes mas com algum parentesco se tornem iguais semelhantes Às vezes ela consegue fazer isso Outras vezes só consegue pela metade pág 77 Como foi que ela atacou nesse caso que a Emília citou pergunta Vera No caso de falando que se torna falano o que ocorreu foi uma assimilação do D pelo N Primeiro falando passou a falanno com um N duplo Logo depois esse N duplo se simplificou Vitória da assimilação Isso só acontece no português do Brasil pergunta Sílvia Essa assimilação nd nn n não é exclusividade nossa não responde Irene Temos informações de que ela também é presente numa região de Portugal chamada Beira Alta e que pode ser encontrada em textos escritos no século XVI Além disso ela também agiu em outras línguas da família Por exemplo em alguns dos chamados dialetos italianos e também no catalão língua falada na região sudeste da Espanha chamada Catalunha onde fica a cidade de Barcelona Em catalão o latim mandare que deu o nosso mandar se transformou em manar Sílvia consulta o relógio O tempo voou gente Já passa do meiodia Vamos almoçar propõe Irene A gente podia comer fora de casa hoje para variar um pouco Ótima idéia aprova Emília Enquanto caminham de volta ao carro Vera pergunta Tia você vai falar mais sobre a assimilação nas nossas aulas Vou sim Existe algum outro exemplo desse tipo de assimilação quer saber Sílvia Existe responde Irene É um tipo mais raro É o caso de também que é pronunciado tamém e de um bocado que é pronunciado um mucado A explicação é a mesma pergunta Vera É só que as consoantes aqui são de outra família explica Irene O M e o B são chamados bilabiais porque para pronunciá los nós precisamos movimentar os dois lábios Emília repete memê e bebê algumas vezes e verifica o movimento dos lábios De novo entra em campo a assimilação aproveitando que as duas consoantes têm a mesma zona de articulação Daí resulta a pág 78 passagem de mb para mm e depois para m simples conclui Irene pegando no bolso do vestido as chaves do carro E como sempre a senhora vai dizer que isso acontece em outras línguas ironiza Emília E vou mesmo diz Irene abrindo a porta do carro A assimilação mb mm m aconteceu também em espanhol Nessa língua por exemplo o latim lumbu que deu o nosso lombo resultou em lomo e o verbo lambere que deu o nosso lamber resultou em lamer Entram todas no carro Irene bate a porta introduz a chave na ignição e antes de dar a partida conclui Cabe dizer que a assimilação foi uma força muito ativa na história da formação da língua portuguesa tal como a conhecemos e que ela continua em plena atividade nos dias de hoje produzindo lenta mas ininterruptamente a língua portuguesa dos próximos séculos pág 79 SODADE MEU BEM SODADE redução do ditongo ou em o A língua voa a mão se arrasta ão almoçar num pequeno restaurante de comida italiana não muito longe do Lago do Major Nenhuma delas resiste à tentação das massas com muito molho vermelho acompanhadas de um simpático vinho tinto Adeus regime suspira Vera enquanto o garçom recolhe os pratos e as bandejas devidamente esvaziados Eu dei férias ao meu diz Emília tomando o último gole de vinho de sua taça Afinal estamos no inverno e o frio dá mais fome Obrigada pela tentativa de consolo agradece Vera mas isso não vai aliviar meu complexo de culpa por ter comido demais Bobagem menina protesta Irene Relaxe termine seu vinho e vamos pedir uma boa sobremesa Os olhos de Vera brilham Sobremesa Sílvia sorri Gente nunca vi um complexo de culpa desaparecer tão depressa Eles têm aqui uns doces típicos italianos de deixar a gente tonta comenta Irene Fazem seu pedido e quando os doces são postos sobre a mesa cada uma deixa escapar uma exclamação de felicidade Emília chega a bater palminhas Puxa tia você devia ter me falado antes desses doces queixase Vera dando a primeira mordida no seu Assim eu tinha comido menos no almoço e deixado mais espaço para eles V Enquanto come Emília vai examinando a decoração do restaurante Como toda cantina italiana digna do nome essa também tem as paredes transformadas num verdadeiro museu de imagens emblemas símbolos retratos que evocam as origens familiares do proprietário cartazes com grandes fotografias de cidades históricas bandeiras de times de futebol da Itália retratos de italianos famosos pág 80 mapas coloridos da Itália imagens religiosas etc No meio dessa mixórdia Emília vê uma estampa desenhada à moda antiga com figuras que ela não consegue identificar e na parte de cima em grandes letras verdes uma frase que ela vai balbuciando em voz alta Verba volant scripta ma manent Verba volant scripta manent repete Irene sem desviar o olhar de sua bomba de chocolate É um velho ditado latino você conhece Não responde Emília o que significa As palavras voam os escritos permanecem responde Irene Eu não gosto muito desse ditado não Por que não tia Porque ele às vezes é usado por gente que está querendo esconder uma verdade que desagrada um pouco aos conservadores a língua falada a língua que sai pela boca é muito mais rápida ágil e esperta do que a língua escrita a língua que sai pela mão Por isso eu até criei o meu próprio ditado A língua voa a mão se arrasta Como assim Irene pergunta Sílvia Basta fazer um teste bem simples responde Irene Marque no relógio o tempo que você gasta para dizer alguma coisa qualquer coisa uma palavra uma frase várias frases uma poesia que você tem decorada Depois compare esse tempo com o que você gasta para escrever essa mesma coisa à mão à máquina no computador tanto faz Por mais rápida que seja a sua mão ela nunca poderá atingir a velocidade da língua não é Como você disse a língua voa a mão se arrasta diz Emília Pois este fato simples e aparentemente tão bobo tem sérias conseqüências sabia retoma Irene que já terminou de comer seu doce e agora toma um copo de água Que conseqüências interessase Vera A mais séria está na escola no tipo de língua que a gente aprende e ensina na escola Enquanto a língua falada viva e elétrica está se mexendo se transformando a língua escrita ainda está tentando se acostumar com as mudanças que aconteceram há muito tempo pág 81 Parece a história da lebre e da tartaruga sugere Emília Parece confirma Irene só que neste caso como se trata de uma história real e não de uma fábula a lebre está sempre quilômetros à frente da tartaruga E como a tartarugalíngua escrita se sente muitíssimo mal com esse atraso ela conseguiu achar quem defendesse os seus direitos os gramáticos e os autores de livros didáticos Eles compraram a causa da língua escrita e tentam nos mostrar em seus livros que ela é a pura a bela a certa a boa enquanto a língua oral eles nem mesmo falam dela ou quando falam é para acusála de vícios e deturpações E como se saíram os advogados da tartaruga pergunta Emília Muito bem Tanto fizeram que tudo aquilo que foge aos padrões e às normas da língua escrita é considerado errado Por isso alguns fenômenos que ocorrem na língua falada são duramente combatidos e atacados como se fossem verdadeiros crimes contra o bom português Por exemplo pede Sílvia O ditongo que já era Os livros didáticos e as gramáticas insistem em dizer até hoje que nas palavras pouco roupa louro existem ditongos isto é um encontro vocálico em que as duas vogais são pronunciadas Mas isso não acontece mais no português do Brasil nem no de Portugal Há muito tempo que o que se escreve ou é pronunciado o Isso está documentado em pesquisas em gravações da língua falada e basta você ligar o rádio ou a televisão para ouvir poco ropa loro Este é um fenômeno que ocorre tanto no portuguêspadrão do Brasil quanto no nãopadrão Mas a gente tem que escrever ou de todo jeito lembra Vera E por causa disso os advogados da língua escrita querem porque querem que a gente pronuncie os tais ditongos Para eles vale o escrito Só que a história da língua mais uma vez mostra que eles estão enganados E como é a história pergunta Sílvia pág 82 O que a escrita ainda registra como ou é o resultado de uma transformação histórica que aconteceu enquanto a língua portuguesa se formava começa a explicar Irene As palavras que em sua origem tinham um ditongo AU este sim bem pronunciado lentamente começaram a ser pronunciadas com um ou no lugar do AU O que era paucu e lauru em latim estava se transformando em pouco e louro em português o mesmo acontecendo com o germânico raupa de onde vem o nosso roupa E por que essa transformação aconteceu quer saber Vera Por causa de nossa amiga assimilação responde Irene lembramse dela Claro acabamos de ser apresentadas responde Emília Pois então como o A é muito aberto e o u muito fechado existe uma tendência da língua a tornar as duas vogais semelhantes daí o nome assimilação Enquanto fala Irene pega uma caneta na bolsa e põese a rabiscar alguma coisa num guardanapo de papel Vejam aqui uma coisa diz ela mostrando o desenho As vogais dentro da nossa boca são produzidas mais ou menos como eu tentei mostrar neste desenho pág 83 O que é esse triângulo pergunta Sílvia Esse triângulo mostra os pontos em que cada vogal é produzida dentro da nossa boca explica Vera Isso mesmo confirma Irene O A na parte mais baixa é a vogal mais aberta O U e o I lá no alto são as mais fechadas Repare como a boca se fecha bem quando você pronuncia U e I Emília e Sílvia fazem o teste e pronunciam várias vezes as vogais U e I A gente pode observar também prossegue Irene que as vogais mais próximas do A são mais abertas que as produzidas perto do U e do I criando a riqueza de sons vocálicos da língua portuguesa Esse esquema de vogais vale para todas as línguas pergunta Sílvia Não responde Irene este quadro representa apenas as vogais tônicas do português do Brasil Quando se trata das vogais átonas por exemplo ele não vale nem para o português de Portugal que tem mais vogais que o do Brasil E como é que a assimilação atacou as vogais quer saber Emília Como você pode notar para pronunciar o ditongo AU a boca tem que fazer um movimento grande abrindose toda para produzir o A e fechandose toda para realizar o U Pelo fenômeno da assimilação o U fechado tentou puxar o A aberto para mais perto de si E conseguiu trazer o A até o Ô no meio do caminho mas muito mais perto do U Foi assim que nasceu o ditongo OU arrisca Emília Foi assim que nasceu o ditongo OU repete Irene Essa transformação levou muito tempo para se realizar e quando o português escrito começou a ganhar forma teve de reconhecer o fenômeno e registrou ou isso há muito séculos Só que a coisa não parou aí não é diz Sílvia Exato responde Irene Como eu já disse a língua falada é viva e está sempre mudando Assim o que era escrito e pronunciado OU em pouco tempo passou a ser pronunciado apenas Ô Só que a língua escrita não deu conta de acompanhar a rapidez da língua falada e até hoje a gente tem que escrever pouco louro roupa embora já fale há bastante tempo poco loro ropa pág 84 Quem fez papel de bobo Como o PNP é uma língua que está muitíssimo mais ligada à oralidade à forma falada do que à ortografia à forma escrita continua Irene a regra histórica de redução do ditongo AU em o não deixou de ser respeitada É por isso que certas palavras do PP que se escrevem com AU são pronunciadas com um o em PNP Um dos exemplos mais conhecidos é o da linda palavra SAUDADE que em muitas regiões do Brasil é pronunciada sodade Posso até citar a lindíssima canção Sodade meu bem sodade do compositor Zé do Norte que faz parte da trilha sonora do filme O Cangaceiro dirigido por Lima Barreto em 1952 Emília fica pensativa por alguns instantes Depois diz Quero contar uma coisa para vocês As outras se interessam e ela prossegue Antes de terminar a Escola Normal eu trabalhava numa livraria Um dia um senhor entrou na loja se dirigiu a mim no balcão e perguntou Aqui tem orelhão Eu respondi Não mas logo ali na esquina tem Pensava que ele queria telefonar O freguês olhou para mim sorrindo e explicou Não Não é oreião É o Orelhão aquele dicionário grande Só então eu entendi que ele queria comprar um Aurelião quer dizer o dicionário do Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira em formato grande Vera e Sílvia sorriem achando graça da história Irene permanece séria Na época eu também achei muito engraçado retoma Emília e tive pena do pobre homem que não sabia falar direito E fiquei contando essa história como uma piada em que o meu freguês fazia o papel do bobo Mas hoje Irene depois desses poucos dias com você já consigo ver a cena com os papéis trocados e tenho consciência de que naquele episódio a burra fui eu que não sabia que estava dialogando com uma pessoa que usava uma variedade de português diferente da minha Ele sim sabia da diferença intervém Irene tanto que sorriu e tratou logo de ajudar você a compreender o que ele desejava Foi mesmo confirma Emília pág 85 Vocês nunca se viram numa situação parecida ao falarem com um estrangeiro pergunta Irene Sílvia e Vera balançam a cabeça afirmativamente No meio do caminho tinha o português Terminada a sobremesa todas degustam um café fumegante Entre um gole e outro Vera pergunta Essa diferença entre a língua escrita e a língua falada existe também em outras línguas Em outras não responde Irene em todas as línguas Não existe nenhum sistema escrito capaz de reproduzir fielmente a riqueza da língua falada O que acontece é que existem graus de diferença nessa distância entre as duas formas da língua Comparando o português padrão escrito com outras línguas aparentadas a gente vê que ele está no meio do caminho que já foi percorrido pelo espanhol Em espanhol já se escreve mais parecido com o que se fala ROPA LORO POCO Já em francês a distância entre língua falada e língua escrita é muito maior e o que até hoje se escreve AU é pronunciado o há vários séculos Irene rabisca algumas palavras na toalha de papel da mesa do restaurante Vejam FAUX falso se pronuncia fô CHAUD quente é pronunciado xô Cada língua tem portanto duas histórias uma história da língua falada e uma história da língua escrita Na primeira as coisas andam muito mais depressa que na segunda De novo ela escreve na toalha É mais um de seus quadros comparativos Quadro 8 Francês Português Espanhol Antigamente Hoje Antigamente Hoje Antigamente Hoje História da língua falada autre otrʌ outro otro otro otro História da língua escrita autre autre outro outro otro otro pág 86 Como se pode ver o grau de conservadorismo da ortografia da forma escrita oficial varia muito de língua para língua e depende da ação política dos homens já que as normas ortográficas são estabelecidas por leis e decretos podendo permanecer as mesmas durante séculos como no caso do francês se ninguém se incomodar em mexer nelas Já a língua oral é uma rebelde vive a escapar das leis e das normas está sempre a se mexer e por isso o estado atual de qualquer língua falada é muito diferente do que era há algum tempo e do que será nos próximos séculos Para que serve a escrita Quando o garçom traz a conta Irene se encarrega de pagála apesar dos protestos das três jovens que querem dividir as despesas Enquanto preenche o cheque ela diz O importante meninas é a gente ter sempre em mente que nem tudo o que se escreve se pronuncia assim como nem tudo o que se pronuncia se escreve A língua escrita serve como registro permanente scribta manent é usada para a transmissão do saber e da cultura e muitas vezes é até interessante que ela permaneça sem muitas mudanças para que a gente possa ler com facilidade documentos antigos e livros impressos há muito tempo O que não podemos admitir é que ela seja usada como um instrumento de tortura ou uma prisão para a língua falada Nunca é demais lembrar que o homem fala há milhões de anos e que as primeiras formas de escrita datam apenas de 3500 antes de Cristo O garçom recolhe o cheque despedese de Irene e de suas convidadas A saída do restaurante enquanto se dirigem para o carro Emília comenta Só uma coisa me aborrece nisso tudo O quê pergunta Irene surpresa Eu não trouxe o meu bloquinho de notas queixase a jovem Se soubesse que esse passeio ia dar em aula Irene abraçaa sorrindo e diz Não se preocupe bobinha quando o livro estiver pronto vocês vão ser as primeiras a ganhar um exemplar pág 87 BEIJO RIMA COM DESEJO redução do ditongo EI em E o dia seguinte à noite a aula volta para seu lugar de costume a escolinha no fundo da chácara Irene já distribuiu suas folhas impressas às alunas desenhou na lousa o esquema das vogais que havia mostrado a elas no restaurante e agora começa a falar Ontem nós examinamos a história da transformação do ditongo OU em O Hoje vamos tratar de mais um ditongo que se reduziu o ditongo EI que passou a E Aqui também estamos diante de um fenômeno que se verifica tanto no portuguêspadrão quanto no português nãopadrão O que cria problemas mais uma vez é a diferença entre língua falada e língua escrita A língua voa a mão se arrasta diz Emília Irene sorri e prossegue Com o ditongo EI ocorreu o mesmo que vimos com o ditongo ou uma monotongação quer dizer dois sons que se transformaram num só Mas existe uma diferença entre os dois casos o que é escrito ou é pronunciado o em todas as situações e contextos tanto no PP quanto no PNP O que se escreve EI porém só se transforma em E em algumas situações Vamos dar uma olhada no primeiro quadro de hoje Emília Sílvia e Vera observam a folha indicada Quadro 9 Língua escrita Língua falada beiço beiço beijo bêjo brasileiro brasilêro cheiro chêro N deixa dêxa jeito jeito leigo leigo peito peito peixe pêxe primeiro primêro queijo quêjo queixo quêxo seiva seiva pág 88 Olhando para a coluna que transcreve a forma falada das palavras podemos tentar descobrir em que situações o ditongo escrito EI deixa de ser ditongo e se transforma na vogal E com timbre fechado Vera examina com cuidado o papel depois diz Parece que a monotongação só acontece quando o ditongo EI aparece diante das consoantes J X e R É mesmo concorda Sílvia em todos os outros casos os dois sons são bem pronunciados Por que isso acontece quer saber Emília Aposto que é mais uma arte da assimilação Pois sua aposta está correta diz Irene Mas antes de falar de novo dessa nossa amiga vamos ver o que é exatamente um ditongo Semivogal um som no meio do caminho Irene escreve alguns símbolos na lousa e em seguida volta a falar Todo ditongo é formado de uma vogal mais uma semivogal Na língua portuguesa existem duas semivogais γ escrita normalmente I E W escrita normalmente U e ela aponta os símbolos que escreveu Elas estão presentes por exemplo nas palavras PAU e PAI Às vezes também podem vir escritas E como em FÊMEA pronunciado fêmya ou O como em MÁGOA pronunciado mágwa Por que elas são chamadas semivogais pergunta Sílvia Porque também são chamadas semiconsoantes responde Irene piscando um olho maroto para Vera Ótima resposta muito didática ironiza Emília Irene sorri volta a escrever na lousa e depois diz As semivogais também recebem o nome de semiconsoantes porque elas são um tipo de som que está no meio semi do caminho que leva das vogais até as consoantes Reparem neste desenho vogais semivogaissemiconsoantes consoantes Qual é mesmo a diferença entre vogais e consoantes Verinha pergunta Irene A diferença entre vogais e consoantes se bem me lembro é pág 89 que as vogais são produzidas com a passagem livre do ar pela boca enquanto que nas consoantes o ar encontra algum obstáculo responde Vera Muito bem cumprimenta Irene Por isso as vogais podem ser pronunciadas sozinhas continua Vera satisfeita ao passo que as consoantes precisam das vogais para ajudálas Por isso são chamadas consoantes porque são pronunciadas com a ajuda de outro som os sons vogais Eu não explicaria melhor diz Irene E onde é que entram as semivogais impacientase Emília Na produção das semivogais o ar passa quase totalmente livre e por isso elas são irmãs quase gêmeas das vogais I e U responde Irene Mas também só podem ser produzidas se estiverem apoiadas em outra vogal por isso são semiconsoantes Elas têm um espírito assim meio mineiro não é sugere Emília Não dizem que sim nem que não muito pelo contrário Irene ri da comparação Na história da transformação do latim em português continua aconteceram inúmeros casos em que as semiconsoantes latinas escritas I e U saíram de cima do muro e escolheram ficar de uma vez por todas no clube das consoantes Dêem uma olhada no segundo quadro da folha As três obedecem e vêem Quadro 10 LATIM TRANSFORMOUSE EM PORTUGUÊS aue ave cuius cujo Iésus Jesus iócu jogo iustu justo iúuene jovem uacca vaca uita vida uíuere viver uoluntate vontade pág 90 Foi assim que nasceram os sons consoantes representados hoje pelas letras J e V sons que não existiam no latim clássico explica Irene Então não são tão mineiras assim diz Emília A verdade sobre os ditongos Eu quis contar toda essa longa história sobre as semivogais ou semiconsoantes para esclarecer melhor as coisas que acontecem na nossa língua Os livros didáticos tentando simplificar os fatos dizem que ditongo é o encontro de duas vogais na mesma sílaba Ora na verdade são duas letras isto é dois símbolos gráficos desenhos que são chamados tradicionalmente vogais Mas são dois sons de famílias diferentes um som vogal mais um som semivogal Esta diferença entre fala e grafia é importante porque vai nos mostrar o que acontece na monotongação do ditongo EI diante das consoantes J X e R A semivogal γ que escrevemos I no ditongo EI é um som que pertence a uma família chamada palatal Os sons palatais são produzidos no palato esta parte de cima da nossa boca que nós chamamos tão poeticamente de céu da boca O palato é dividido em duas partes o palato duro que é o céu da boca propriamente dito e o palato mole que é a parte de trás do céu da boca mais macio e que vai até a úvula que a gente chama familiarmente de campainha É no palato duro que são produzidos os sons palatais Palatais repete Emília anotando em seu bloquinho As consoantes que representamos com as letras J e X como em QUEIJO e QUEIXO também fazem parte da família das palatais Para produzilas uma parte da língua toca levemente o céu da boca A assimilação volta a atacar Como nós vimos ontem existe uma força muito ativa na língua que se chama assimilação Quando encontra dois sons que têm alguma coisa parecida semelhante ela faz de tudo para que eles se juntem se fundam num só No caso do nosso ditongo EI a assimilação aproveita o caráter palatal da semivogal I e das consoantes pág 91 J e X para reunilas num único som Assim o que acontece não é exatamente a redução do ditongo EI em E mas a redução de IJ e IX em J e X É isso também que explica a pronúncia baxo caxa faxa para o que a gente escreve BAIXO CAIXA e FAIXA pergunta Vera Exatamente confirma Irene E o que acontece no caso das palavras que têm um R depois do ditongo EI quer saber Sílvia Neste caso a assimilação vai agir sobre o caráter anterior da semivogal I e da consoante R O som da letra R em caro não é um som palatal da mesma qualidade do J ou X Mas ele também é produzido naquela região da boca que é chamada anterior por ficar entre os alvéolos e os dentes quer dizer na parte mais avançada do céu da boca Por terem este ponto de articulação comum é que os sons da semivogal I e da consoante R sofrem os efeitos da assimilação e se transformam num só Da fala para a escrita Parece que esse fenômeno é tão vivo e atuante na língua falada comenta Vera que ele tem conseqüências interessantes na língua escrita Já vi algumas pessoas bem alfabetizadas hesitarem na hora de escrever CARANGUEJO BANDEJA PRAZEROSO achando que estas formas estão erradas e que deveriam ser escritas carangueijo bandeija prazeiroso É verdade confirma Irene No entanto tem gente esperta que sabe aproveitar os fenômenos da língua É o caso do Noel Rosa que escrevia as letras das suas músicas num português padrão caprichadíssimo e que em 1934 na sua famosa canção Último desejo não teve dúvidas em rimar Adoro essa música suspira Emília Pois essa rima aparentemente imperfeita do ponto de vista pág 92 ortográfico enfatiza Irene é no entanto totalmente perfeita do ponto de vista fonético isto é na língua falada A mesma conclusão Quantos nomes complicados numa aula só Irene queixa se Emília consultando seu bloco de notas Vogal consoante semivogal semiconsoante palatal anterior alvéolo úvula assimilação Parece complicado não é sorri Irene Mas não é tanto assim O estudo dos sons da fala a fonética é uma disciplina muito interessante e quando você pega gosto ela acaba se transformando num jogo delicioso Eu adoro fonética declara Vera E o bom é que ela nos ajuda a esclarecer uma grande quantidade de fenômenos que ocorrem na língua que usamos diariamente e que à primeira vista não parecem ter muita razão de ser explica Irene E por que você escolheu falar desse ditongo justamente quer saber Sílvia Porque eu quis mostrar a vocês mais uma vez que devemos ter muita cautela na hora de fazer julgamentos sobre a maneira Nunca mais quero seu beijo mas meu último desejo você não pode negar como as pessoas falam responde Irene É muito comum a gente se deixar levar pela forma escrita e cobrar que as pessoas falem o mais próximo possível do jeito que se escreve o que muitas vezes é simplesmente impossível quando não ridículo por soar artificial e pedante E nunca é demais lembrar completa Emília em tom professoral que nem tudo o que se diz se escreve e nem tudo o que se escreve se diz Irene aplaude sorrindo Muito bem Emília Mais umas sessões e você estará pronta para ocupar o meu lugar Todas sorriem e Irene decide encerrar por ali a aula da noite pág 93 MÚSICA MAESTRO redução de E e O átonos pretônicos o dia seguinte de manhã cedo Eulália transmite um convite de Ângelo para que todas vão jantar na casa dele hoje É o aniversário da Antônia explica Eulália e ela quer festejar com a gente tudo lá É claro que todas se animam com a idéia Vera no entanto se preocupa com a aula noturna Que pena Vamos ficar sem aula hoje Mas para Emília não há problema sem solução Muito simples é só mudar o horário da aula da noite para depois do almoço sugere ela e olhando para Irene Se a professora estiver de acordo é claro Irene hesita um pouco em sacrificar sua habitual sesta de depois do almoço mas acaba concordando ante a insistência da sobrinha e das colegas É assim que por volta das quatro horas da tarde elas se reúnem na escolinha para prosseguir suas discussões sobre o português nãopadrão os problemas e as dificuldades do ensino da língua Logo de saída Irene lança uma pergunta às alunas De onde vocês são De São Paulo respondem as três quase em coro Nascidas e criadas lá As três jovens balançam a cabeça afirmativamente Emília é claro não resiste e indaga E você de onde é Eu nasci em São Paulo também responde Irene mas com dois anos de idade minha família se mudou para o Rio de Janeiro Vivi lá até os dezoito anos e foi em escolas cariocas que fiz N todo o curso primário e secundário Depois quando meus pais voltaram fiz a universidade em São Paulo e nunca mais saí do estado É por isso que você de vez em quando dá umas cantadinhas meio acariocadas pergunta Emília É confirma Irene O período que passei no Rio foi muito pág 94 importante para a formação dos meus hábitos lingüísticos e ainda conservo alguns deles mesmo depois de tanto tempo morando por aqui A maneira de pronunciar certas palavras o uso de determinadas palavras mais características do falar carioca do que do paulista et cetera E isso tem a ver com a nossa aula de hoje quer saber Emília que não deixa escapar nada Tem sim responde Irene Tem porque vamos tratar de uma característica que não pertence exclusivamente ao português nãopadrão mas que está sim presente em todo o domínio da língua portuguesa seja no Brasil em Portugal ou na África É a questão do E e do O átono pretônico Átono pretônico repete Emília Que bicho é esse Parece nome de tenor italiano Luciano Pavarotti Giuseppe Di Stefano Átono Pretônico Por favor Emília suplica Sílvia Deixe os pobres cantores em paz Tudo bem tudo bem desculpase ela Mas posso então dizer que parece nome de remédio para prisão de ventre Irene ri gostosamente Quer deixar a Irene explicar finalmente o que é átono pretônico suplica Sílvia Dá para segurar um pouco o chuveirinho de asneiras Emília fingese emburrada Irene retoma Qualquer brasileiro de outra região que chega a São Paulo não demora a perceber que os paulistas pronunciam bolacha mostarda pepino fedido quando muitos outros brasileiros pronunciam bulacha mustarda pipino fidido Eu mesma quando me mudei do Rio para cá me surpreendi com essa diferença Mas isso é muito simples arrisca Sílvia Eu me lembro que algumas professoras diziam que nós paulistas é que falamos mais certo porque pronunciamos do jeito que está escrito É claro que hoje você já sabe que isso é uma grande bobagem não é replica Irene A língua escrita é só uma representação simbólica da língua falada e não um retrato fiel dela Por isso embora a ortografia de cada palavra seja uma só para todo o país cada falante brasileiro de português terá seu modo particular de pág 95 pronunciála Se os paulistas realmente falassem mais certo por pronunciarem do jeito que está escrito eles teriam de escrever por exemplo Sampaulo Paquembu adevogado peneu e guspir porque é assim que todos eles cultos ou analfabetos pronunciam as palavras escritas SÃO PAULO PACAEMBU ADVOGADO PNEU e CUSPIR E o que tem isso a ver com os átonos pretônicos impacientase Emília Vamos ver Primeiro por que são átonos pergunta Irene Porque não estão na sílaba tônica aquela que é acentuada enfatizada na fala responde Vera Muito bem E por que são pretônicos Porque estão numa sílaba que vem antes da sílaba tônica por isso são prétônicos diz Vera separando bem as sílabas da última palavra Será que eu entendi duvida Sílvia Irene vai até a lousa e escreve a giz a palavra CAVALO Veja por exemplo esta palavra diz ela tocando a lousa com a ponta do dedo Ela tem três sílabas certo CAVALO A sílaba VA é a tônica é a sílaba pronunciada com mais força A que vem antes dela CA é pretônica e a que vem depois dela LO é postônica E como só pode existir uma sílaba tônica em cada palavra todas as outras sílabas são chamadas átonas isto é não tônicas Tudo bem até aqui Sílvia ergue o polegar direito em sinal de confirmação Ótimo prossegue Irene Na língua portuguesa quando as vogais E e O são postônicas sofrem o que a gente chama de redução elas são pronunciadas de maneira mais fraca e soam como um I e um u Por isso a palavra ovo é pronunciada ôvu a frase ELE BEBE é pronunciada êli bébi e ninguém se espanta com isso Esta é uma regra que vale praticamente em todos os lugares do mundo onde se fala o português O caso das pretônicas Isso quando são postônicas diz Emília Mas e quando são pretônicas pág 96 Quando estas mesmas vogais E e O são pretônicas responde Irene a situação é menos simples menos geral menos sistemática como dizem os lingüistas Mesmo assim dá para a gente investigar algumas causas que provocam a redução destas vogais em grande parte do portuguêspadrão e nãopadrão do Brasil Vamos tentar E Irene distribui mais uma de suas folhas com quadros impressos Tentem ler as palavras dos dois primeiros quadros abaixo pronunciando o como um i e o como um u que é como muita gente educada e culta inclusive eu pronuncia elas Quadro 11 Quadro 12 Emília lê em voz alta as palavras pára alguns instantes para pensar depois diz Estou notando uma coincidência nesses dois quadros Qual coincidência pergunta Irene Em todas essas palavras as vogais átonas pretônicas E e O são seguidas por uma sílaba em que a vogal tônica é I pág 97 É mesmo confirma Sílvia examinando com mais cuidado as duas listas Todas as palavras têm um I na sílaba tônica Irene pisca um olho para Vera depois pergunta i al gria av nida b bida B n dito f liz f rido fr gu sia m dida m ntira m tido p dido p pino p riquito pr guiça s guido S v rino u ass bio ch via c mida c minho c zinha c rria d mingo d rmir f lia f rmiga g rila harm nia n tícia p dia p ssível S fia Será mesmo uma coincidência Antes de desvendarmos este mistério vamos dar uma olhada em mais dois quadros de palavras que estão na mesma folha O procedimento é o mesmo leiam os como um i e os como um u Quadro 13 Quadro 14 E agora Notaram mais alguma coisa interessante desafia Irene Vera se apressa em responder Dessa vez todas as palavras têm uma vogal U na sílaba tônica Ih já vi que aqui tem dente de coelho diz Emília E tem mesmo sorri Irene Acho que já podemos deduzir algumas coisinhas desses quadros Vamos lá A presença de um I e de um U na sílaba tônica faz com que as vogais átonas pretônicas escritas E e O se reduzam e sejam pronunciadas i e u Mas por quê pergunta Sílvia Por causa de um fenômeno que tem o lindo nome de harmonização vocálica responde Irene Lembramse quando tratamos do ditongo escrito OU que é pronunciado ô Naquele dia no restaurante eu fiz um desenho que representava a produção das vogais dentro da nossa boca Eu copiei ele aqui diz Emília mostrando uma das i cab ludo p ndura s gunda s guro v ludo u c ruja c stume c stura f rtuna g rdura páginas de seu bloco pág 98 Reparem no desenho mais uma vez que as vogais I e U são as mais altas as mais fechadas da nossa língua Quando elas estão presentes na sílaba tônica elas puxam para cima as vogais pretônicas E e O fechando essas vogais para formar um grupo harmônico para criar um som único É um melodioso fenômeno musical Vai ver que é por isso que você usou as notas musicais nos quadros sugere Emília Claro que é confirma Irene alegre Dá para você resumir tudo isso numa regra simples propõe Sílvia Com prazer responde Irene voltando à lousa e escrevendo Como você pode ver Sílvia retoma Irene as coisas que acontecem na nossa língua são muito mais sutis e complexas do que as idéias autoritárias de certo e de errado E também muito mais bonitas arremata Sílvia Sem dúvida concorda Irene Estas harmonizações vocálicas dão à língua portuguesa uma musicalidade uma variedade sonora que só ela tem e que é muito difícil de ser percebida e aprendida por um estrangeiro que normalmente se deixa guiar pela forma escrita Ora a forma escrita é apenas uma roupagem que dá alguma idéia de como a palavra é mas que também como toda roupa esconde coisas bem mais bonitas e interessantes que só Quadro 11 e I I I bebida bibida Quadro 12 o I u I formiga furmiga Quadro 13 eu I u segundo sigundo Quadro 14 ou u u coruja curuja Nota o sinal significa transformouse em alguns conseguem ver Emília dá uma gargalhada Irene pisca para ela com ar sapeca Bolacha com mostarda Mas a coisa não pára aí retoma a professora Existe um outro grupo de palavras que têm um o átono pretônico pronunciado u sem que elas apresentem nenhum I ou U na sílaba tônica pág 99 Bem que eu achei que estava simples demais comenta Emília Irene tira mais algumas folhas de sua pasta de cartolina e pergunta Vocês têm paciência para mais um quadro Juro que é o último de hoje Ela distribui as folhas e as três jovens observam Quadro 15 Aqui até um bebezinho percebe que todas as palavras têm u b ato m cambo b cado m eda b dega m ela b lacha m lambo b neca m leque b rracha m queca b tão m rango b teco m starda um B ou um M antes do O que sofre a redução adiantase Emília Neste caso o que se escreve BO é pronunciado bu diz Sílvia e o que se escreve MO é pronunciado mu Quer dizer que dessa vez os culpados são o B e o M arrisca Vera Isso mesmo confirma Irene E por quê pergunta Vera Porque as consoantes B e M são bilabiais como já vimos antes recorda Irene Elas são pronunciadas com um movimento de fechamentoabertura dos dois lábios Bebê qué mamá diz Emília exagerando o movimento bilabial das palavras bebê e mamá Já a vogal O para ser pronunciada precisa de um arredondamento dos lábios e até os inventores do alfabeto perceberam isso quando criaram para representála este pequeno símbolo rendondo O diz Irene fazendo com um dedo um círculo no ar pág 100 Para não terem de passar de um fechamento muito grande para um arredondamento muito grande os lábios espremem um pouco o O e abremse menos já que produzem um u que é como podemos sentir uma vogal também redonda mas mais fechada que o O Mais um prodígio musical da nossa língua conclui Vera sorrindo Uma hipótese para São Paulo Por que será que em São Paulo essas reduções não acontecem na mesma intensidade das outras regiões do Brasil pergunta Sílvia É uma pergunta que só poderá ter uma resposta depois de muita pesquisa de campo e de reflexão cuidadosa afirma Irene Por enquanto a gente pode ficar só nas suposições e eu mesma tenho cá a minha hipótese E qual é interessase Emília São Paulo sofreu uma grande colonização de origem italiana e muita gente diz que São Paulo é uma das maiores cidades italianas do mundo A presença cultural italiana é marcante e um de seus pontos fortes é a deliciosa arte culinária exercida nas casas das famílias e nas inúmeras cantinas espalhadas por todos os bairros da cidade Eu mesma tenho sobrenome italiano Amaggio que é o mesmo da Verinha Pois eu me chamo Emília Stornello Rossi pai e mãe italianos Não seja por isso intervém Sílvia meu nome completo é Silvia Giovanna Sangiorgio Dalla Chiesa pai mãe e futuro marido italianos se Deus quiser É que o namorado dela o Pedro também é de família italiana explica Vera Viram só o que eu disse comenta Irene Nós somos a prova viva dessa grande imigração E o que tem isso a ver com o modo de falar dos paulistanos indaga Vera Na minha hipótese tem tudo a ver responde Irene O cantarolado típico do falar paulistano muito do seu vocabulário pág 101 e muitas construções gramaticais que caracterizam este falar são facilmente identificáveis nas diferentes variedades de italiano que os imigrantes falavam quando chegaram aqui Chamar as pessoas de belo bela e reduzir os nomes próprios à primeira sílaba Júlia vira Ju Sônia vira Sô Luís vira Lu são expressões de afetividade caracteristicamente italianas Até mesmo alguns palavrões e xingamentos que usamos são de pura raiz italiana É mesmo interessase Emília sempre impertinente Quais por exemplo Irene não se abala com a pergunta maliciosa Cazzo por exemplo responde ela tranqüila que é uma coisa que os meninos têm e nós não Todas riem Sílvia virase para Emília Gostou Emília não se dá por achada Meu interesse é puramente científico tá e para Irene Que mais O adjetivo cafona que vem do italiano do sul cafone usado primeiro para designar o camponês para depois significar de mau gosto antiquado como fizemos com o nosso caipira Mais preconceito suspira Vera Pois é confirma Irene mas também a nossa fórmula de despedida mais comum e informal o tchau que hoje escrevemos à moda brasileira provém em linha reta do ciao italiano Só que os italianos usam o ciao não só para se despedir mas também para se cumprimentar quando chegam acrescenta Vera É verdade confirma Irene Além disso o falar paulistano se caracteriza também por desnasalizar as vogais seguidas de M OU N mais vogal ao contrário do que acontece no resto do Brasil Como assim pergunta Sílvia O paulistano diz fóme hómem António nós viémos fizémos quisémos com vogais bem orais enquanto no resto do português do Brasil se diz fõme hõmem Antõnio nós viemos fizemos quisemos por causa do contato da vogal com a consoante nasal que vem depois dela Isso também pode ser atribuído à influência do italiano que é uma língua que não tem as vogais nasais tão características do português pág 102 Gente que coisa mais interessante exclama Sílvia Eu ia morrer sem saber disso Ora o italiano é uma língua que não apresenta as reduções de E em I e de O em U que caracterizam o português Em italiano o que se escreve E é sempre pronunciado E o mesmo acontecendo com o O prossegue Irene A minha hipótese é que os imigrantes recémchegados tiveram de aprender o português e nessa aprendizagem como sempre acontece com línguas em contato eles transferiram para a sua nova língua algumas características do italiano Este português italianado foise constituindo pouco a pouco até transformarse na variedade paulistana que existe hoje Eu acho que a sua hipótese faz bastante sentido tia comenta Vera Já passei umas férias no Paraná e fiquei espantada como lá eles falam diferente de nós Eles não reduzem nem mesmo as vogais finais e dizem leitE gentE fogO altO Parecem mesmo estrangeiros falando português É que o Paraná bem como os outros estados do Sul receberam além dos italianos outros imigrantes europeus alemães ucranianos poloneses espanhóis Se minha hipótese estiver realmente certa isso explicaria a diferença tão marcante entre o falar do Sul e o do resto do Brasil Muito bem adorei a explicação disse Emília Só falta esclarecer uma questão Quem fala mais certo Ninguém fala mais certo Emília porque todo mundo fala igualmente certo responde Irene Como assim igualmente certo pergunta Sílvia Todo mundo fala de um modo que tem explicações na história da língua ou na história de quem fala esta língua E falar diferente como eu venho insistindo o tempo todo não quer dizer falar errado E essa história de que o lugar onde se fala mais certo no Brasil é o Maranhão pergunta Emília Já ouvi falar disso mais de uma vez É só mais um mito explica Irene mais uma bobagem baseada em preconceitos Da mesma forma que é uma grande bobagem dizer que os portugueses sabem mais português que os brasileiros pág 103 Falar do jeito que se escreve não significa falar mais certo No início da nossa conversa você disse que o fenômeno da redução do E e O átonos pretônicos não é característica exclusiva do português nãopadrão lembra Vera Ora se ele existe também no portuguêspadrão por que foi que você o incluiu nas nossas lições de PNP Por uma razão bem simples responde a professora Como a própria Sílvia testemunhou existe uma tendência muito forte na nossa escola a querer obrigar o aluno a pronunciar a língua do jeito que se escreve como se essa fosse a maneira certa de aprender o português Muitas gramáticas e muitos livros didáticos chegam a aconselhar ao professor que corrija quem fala muleque burracha fidido como se isso pudesse anular o fenômeno da harmonização um fenômeno natural e muito antigo na história do português Mas nós não temos de ensinar nossos alunos a escrever de acordo com a ortografia oficial pergunta Sílvia É claro que temos responde Irene mas não podemos fazer isso tentando criar uma língua artificial e reprovando as pronúncias que são um resultado natural das forças internas que governam o idioma inclusive nas suas variedades cultas Então como devemos agir quer saber Emília Eu digo ao meu aluno que ele pode falar bonito ou bunito menino ou minino mas que só pode escrever BONITO e MENINO porque é preciso uma ortografia única para toda a língua para que todos possam ler e compreender o que está escrito explica Irene A língua escrita é um conjunto de símbolos que podem ser interpretados de maneiras variadas de acordo com uma série de fatores A letra E por exemplo é um símbolo que pode estar representando o som ê como em TELHA O som é como em VELHA O som i como em MOLE e até estes três sons de uma vez só como em MERECE sem que haja nenhuma alteração na sua forma gráfica no seu desenho É mesmo admite Vera Pensem também nos símbolos matemáticos sugere Irene pág 104 nos sinais de trânsito na notação musical e em tantos outros símbolos que podem ser compreendidos em qualquer lugar do mundo Ela vai até a lousa e desenha Qualquer pessoa em qualquer lugar do mundo ao ver este símbolo saberá que naquele local é proibido fumar Só que um falante de inglês ao ver o símbolo vai interpretálo como no smoking um falante de francês como défense de fumer um falante de italiano como vietato fumare e assim por diante Puxa é verdade diz Emília baixinho Mesmo não sendo tão universal quanto os símbolos matemáticos os sinais de trânsito ou a notação musical continua Irene a forma escrita de uma língua de qualquer língua do mundo também tem este caráter simbólico também é uma representação única para interpretações variadas Ela pára um instante para refletir depois volta a falar Pensem no que aconteceria se a gente desse a mesma receita de bolo a cinco cozinheiros diferentes e pedisse que eles a fizessem Os bolos provavelmente seriam muito parecidos mas cada um ia ter um toque diferente um ficaria mais macio outro mais massudo um estaria mais doce outro menos um estaria mais dourado outro mais claro e assim por diante Por quê Porque a receita escrita é a mesma mas haveria diferença na produção do bolo Um cozinheiro bateria a massa por mais tempo que os demais outro usaria manteiga de melhor qualidade outro deixaria as claras em neve mais firme que os outros e assim por diante E o mesmo acontece com a língua que a gente fala pergunta Vera pág 105 Acontece sim responde Irene Todos nós que fomos à escola aprendemos a receita de ler mas na hora de produzir na fala o que lemos deixaremos nossa marca pessoal na leitura Não é maravilhoso Absolutamente maravilhoso entusiasmase Emília Prestem atenção ao tipo de correção que vocês estão fazendo sugere Irene Corrijam o que está inadequado o que está ambíguo ou confuso corrijam a escrita mas não corrijam o que é espontâneo natural harmonioso e saboroso na fala Emília se levanta de repente abraça Irene e enche ela de beijos Ei Emília pára com isso a tia é minha exclama Vera levantandose também Mas eu já adotei ela como tia minha também pra seu governo retruca Emília Nada de ciúmes meninas graceja Irene Eu também já adotei todas vocês como minhas sobrinhas preferidas Sílvia consulta o relógio e diz Gente vocês sabiam que já passou das seis E eu que ainda queria passar em algum lugar para comprar um presentinho para a Antônia Todas então se apressam em deixar a escolinha e cada uma vai se preparar para a festa desta noite pág 106 QUE COISA MAIS ESDRÚXULA contração das proparoxítonas em paroxítonas a noite seguinte já todas reunidas Irene anuncia o tema do serão Um traço característico do português nãopadrão é que nele as palavras proparoxítonas praticamente não existem E é disso que vamos falar hoje As proparoxítonas como vocês sabem muito bem são aquelas palavras cuja sílaba tônica é a antepenúltima Quem me dá exemplos FÁBRICA ELÉTRICO MÁQUINA diz Sílvia RIDÍCULO ESTÚPIDO HIPÓCRITA completa Emília Parece que o português nãopadrão tem preguiça de pronunciar estas palavras sofisticadas não é Mas eu já aprendi que a explicação pela preguiça é ridícula estúpida e hipócrita Isso mesmo Emília diz Irene nós que estamos tentando descobrir a lógica de funcionamento do PNP não podemos aceitar essa explicação Vamos tentar outra Irene distribui mais uma de suas famosas folhas impressas dizendo Para começar vamos observar estas palavras que no português padrão são proparoxítonas e ver como elas são pronunciadas no PNP Quadro 16 N PORTUGUÊS PADRÃO PORTUGUÊS NÃOPADRÃO árvore arvre córrego corgo cubículo cuvico fósforo fósfro pág 107 Quanta transformação tia Irene admirase Vera É mesmo concorda Sílvia Algumas palavras ficaram bastante diferentes Se o quadro não mostrasse a forma da língua padrão eu teria dificuldade em saber de onde a forma nãopadrão tinha saído Você tem razão Sílvia diz Irene Fica mesmo difícil reconhecer que briba provém de VÍBORA e que landra provém de GLÂNDULA E o mais interessante é que estas palavras sofreram também uma transformação de significado Briba em algumas regiões do Nordeste é o nome dado à lagartixa caseira E landra é um termo empregado para designar as amígdalas inflamadas Que curioso deixa escapar Emília Outra palavra que poderia ter entrado neste quadro é tique que é a forma nãopadrão de TÍQUETE do inglês TICKET que já vi escrito em muito restaurante bom Aceitamos todos os tiques continua Irene A mesma coisa acontece em alguns hotéis onde os apartamentos STANDARD palavra inglesa que significa padrão viraram apartamentos estande O que foi que aconteceu afinal pergunta Sílvia Por que estas palavras ficaram assim O que aconteceu foi que estas palavras sofreram uma contração responde Irene Sofreram algum tipo de encolhimento para caberem no ritmo natural do PNP que é um ritmo paroxítono no qual a sílaba tônica é sempre a penúltima glândula landra música musga pássaro passo sábado sabo tábua tauba víbora briba O que nos diz a história da língua E esse ritmo paroxítono é exclusivo do português não padrão pergunta Emília Parece que não responde Irene Um breve exame da história da língua portuguesa pode mais uma vez esclarecer muita coisa Logo abaixo do primeiro quadro há outro com algumas palavras muito conhecidas usadas por todos os falantes cultos de português Observem agora quais são as palavras latinas que deram origem às formas atuais do português pág 108 Quadro 17 Que lista enorme espantase Vera Mas ela poderia ser ainda maior explica Irene pois é imensa a quantidade de palavras proparoxítonas latinas que em português se transformaram em paroxítonas Algumas sofreram ASNO BRAVO CALDO COELHO CONTO DEDO ESPELHO FALA FRIO GENRO ILHA HOMEM LETRA MALHA ÁSINU BÁRBARU CÁLIDU COÁGULU CUNÍCULU CÓMPUTU DÍGITU SPÉCULU FÁBULA FRÍGIDU GÉNERU ÍNSULA HÓMINE LÍTTERA MILAGRE OBRA OMBRO PALAVRA PERIGO POBRE POVO QUARESMA REGRA SOGRA TELHA TREVA VELHO VERDE MIRÁCULU ÓPERA ÚMERU PARÁBOLA PERÍCULU PÁUPERE PÓPULU QUADRAGÉSIMA RÉGULA SÓCERA TÉGULA TÉNEBRA VÉTULU VÍRIDE PORTUGUÊS PADRÃO LATIM PORTUGUÊS PADRÃO LATIM transformações tão radicais quanto aquelas que vimos no primeiro quadro de VÍBORA briba e de GLÂNDULA landra É difícil reconhecer em COELHO o latim CUNÍCULU OU em TREVA O latim TÉNEBRA Aqui também houve transformação de significado Irene pergunta Sílvia Certamente que houve Além disso às vezes de uma única palavra latina surgiram várias outras em português O latim MÁCULA por exemplo além de MALHA também deu em português MÁGOA MANCHA e MÁCULA palavra de uso mais literário Vejam quantas mudanças na forma e no significado A contração também atingiu alguns nomes próprios como os das conhecidas cidades portuguesas de BRAGA em latim BRÁCARA e COIMBRA em latim CONÍMBRIGA ou os nomes de pessoas CARLOS em latim CÁROLUS e ESTÊVÃO em latim STÉPHANU pág 109 Que diria um cidadão romano falante do latim clássico se fosse trazido de volta à vida nos dias de hoje e nos ouvisse falar imagina Vera Talvez pensasse Que povo mais preguiçoso E estaria pensando errado diz Irene porque a preguiça nada tem a ver com o caso Pelo contrário o que aconteceu foi uma aceleração no ritmo da fala a língua ficou mais dinâmica mais rápida e este fenômeno aconteceu não só em português mas também em outras línguas da família como o espanhol e o francês Alguns estudiosos nos informam que já no latim havia esta tendência e era comum se dizer períclum perigo em vez de perículum E no que deu essa aceleração pergunta Sílvia Com a aceleração do ritmo da fala as vogais que se encontravam depois da sílaba tônica foram sendo pronunciadas cada vez mais fracas até desaparecerem por completo Depois outras transformações aconteceram e aquelas palavras ganharam o aspecto que têm hoje no portuguêspadrão Coitadinhas das vogais postônicas diz Emília em tom infantil Foram engolidas pelo bichopapão da sílaba tônica Foram mesmo confirma Irene sorrindo A própria normapadrão reconhece este fenômeno Para designar as tetas da vaca os dicionários admitem a forma ÚBERE proparoxítona e também a forma UBRE paroxítona E embora alguns gramáticos mal humorados façam cara feia não há como impedir que o povo chame de azaléia a linda flor que eles teimam em nos obrigar a chamar de azálea Azálea jacta est diz Emília e todas caem na gargalhada Vocabulário erudito e vocabulário popular Passado o riso Vera pergunta Mas apesar dessa tendência nós temos ainda muitas palavras proparoxítonas em português tia Por quê De fato temos Verinha Mas se você reparar bem são palavras em sua maioria sofisticadas como disse a Emília Termos de uso literário ou termos técnicos e científicos formados diretamente com base no latim ou no grego TÉPIDO TÚGIDO ÍNCLITO ÁCIDO TÉCNICO PÚTRIDO ÂMAGO TÓRRIDO EFÊMERO ÁVIDO IMPÁDO pág 110 LÁBARO LÚGUBRE FÚNEBRE FÍSICO PSÍQUICO MÍSTICO É mesmo tia não são exatamente palavras de uso corriqueiro de uso popular Elas constituem aquilo que é chamado o vocabulário erudito da língua portuguesa explica Irene É por isso que algumas vezes uma mesma palavra latina como já vimos deu origem em português a duas palavras novas uma mais antiga paroxítona de uso popular e outra de formação mais recente proparoxítona de uso erudito Exemplos por favor pede Emília No segundo quadro Emília veja o latim COÁGULU indica Irene Na língua popular ele deu origem a COALHO e na língua erudita a COÁGULO termo técnico da medicina É por isso que o leite COALHA mas o sangue COAGULA Por que meus professores de latim nunca me ensinaram as coisas desse jeito lamenta Vera Ia ser tão melhor do que ficar decorando aquelas listas de declinações insuportáveis Não é mesmo concorda Irene E como fica a divisão do bolo da língua entre as paroxítonas e as proparoxítonas no português de hoje pergunta Sílvia Muito desigual responde Irene As proparoxítonas perdem de longe As paroxítonas constituem a esmagadora e retumbante maioria das palavras Só para você ter uma idéia eu tenho aqui uns números anotados ela consulta uma folha de papel Camões nosso velho conhecido no seu maravilhoso poema épico Os Lusíadas que é a obraprima da língua portuguesa clássica só usou 267 palavras proparoxítonas o que equivale a apenas 5 de todo o vocabulário utilizado no poema Que mixo comenta Emília Os Lusíadas têm 8816 versos continua Irene Destes 8325 94 têm rima paroxítona 482 têm rima oxítona e apenas nove versos apresentam rima proparoxítona Pobrezinhos tão solitários lamenta Emília E vejam que Os Lusíadas é uma obra extremamente requintada com um vocabulário riquíssimo que inclui lindos proparoxítonos como áfrico altíssono ígneo íncola túmido undívago Mas eles naufragam no enorme oceano de paroxítonos pág 111 E como seria num texto mais simples imagina Sílvia Faça você mesma o teste sugere Irene Escolha uma notícia de jornal ou de revista assinale as palavras proparoxítonas presentes no texto e compare o número delas com o das palavras paroxítonas Os números certamente vão apresentar uma diferença ainda maior do que nOs Lusíadas Mais duas palavrinhas Quer dizer que as proparoxítonas constituem mesmo um corpo estranho dentro da língua portuguesa conclui Vera De certa forma sim responde Irene E podemos dar duas provas disso A primeira a questão do acento gráfico Quando aprendemos a usar os acentos gráficos somos apresentadas a uma regra que diz Todas as palavras proparoxítonas são acentuadas Por quê Porque justamente a tendência natural o ritmo próprio do português é o paroxítono acertei animase Emília Acertou confirma Irene Vejam só uma palavra escrita simplesmente DUVIDA não apresenta problemas para um falante de português alfabetizado pois ele naturalmente a lerá acentuando na fala a sílaba VI Mas para que ele acentue na fala a sílaba DU será preciso que ela venha enfeitada com um acento gráfico DÚVIDA pois esta acentuação não corresponde à tendência natural do português É por isso também que as paroxítonas só são acentuadas graficamente nuns casos bem específicos e a maioria delas não recebe acento gráfico E qual a segunda prova da esquisitice das proparoxítonas quer saber Sílvia A outra coisa que nos revela essa esquisitice da acentuação na antepenúltima sílaba é o termo que também se usa para designar as palavras proparoxítonas Quem sabe Emília Vera e Sílvia se entreolham Ninguém sabe Meninas que vergonha diz Irene Nenhuma de vocês ouviu falar de palavras esdrúxulas Esdrúxulas repete Vera Conheço essa palavra mas não sabia que era usada para designar as palavras proparoxítonas pág 112 Pois é sim diz Irene Mas vejam vocês este adjetivo além de designar as proparoxítonas também passou a significar na linguagem familiar esquisito estranho fora do comum justamente por ser uma palavra esdrúxula Vivendo e aprendendo comenta Emília anotando em seu bloquinho Como vimos mais uma vez conclui Irene aquilo que parece errado ou estranho no português nãopadrão é na verdade resultado da ação de tendências muito antigas na língua que são refreadas reprimidas pela educação formal pelas regras da linguagem literária oficial escrita mas que encontram livre curso na boca do povo pág 113 QUEM ERA O HOME QUE EU VI ONTE NA GARAGE desnasalização das vogais postônicas a manhã seguinte durante o prolongado café da manhã só permitido a quem está de férias Vera pergunta a Irene Tia por que será que é tão comum as pessoas dizerem home onte garage em vez de homem ontem garagem com o m final Agora mesmo antes de sair a Eulália disse que ia à quitanda comprar vage para fazer no almoço Irene toma um gole de seu café e medita por alguns instantes Sem dizer nada levantase da cadeira à mesa da cozinha e vai até um pequeno armário ali perto em cuja gaveta encontra uma caneta e um bloco de papel Volta à mesa e começa a rabiscar alguma coisa parando de vez em quando para pensar Vera Sílvia e Emília acompanham os gestos de Irene curiosas Emília cochicha ao ouvido de Vera Atenção Gênio trabalhando e sufoca o riso Psss faz Vera levando um dedo à boca Irene está tão absorta em seus pensamentos que fica alguns minutos parada com o olhar voltado para o teto e a xícara de café suspensa no ar Vera não resiste Tia você ouviu o que eu perguntei Irene como que acordada de um transe hipnótico pisca os olhos baixa a mão que sustenta a xícara sorri e responde Claro que ouvi a sua pergunta Verinha Só que ela me pegou de surpresa é um assunto que eu não tinha incluído na minha pesquisa Agora que você falou começaram a vir mil idéias na minha cabeça e preciso anotálas antes que se evaporem Sabem como é a memória é nossa melhor inimiga Irene volta a rabiscar algumas coisas no bloco Vera mastiga sua impaciência junto com um biscoitinho de polvilho enquanto N Emília e Sílvia disputam o pote de geléia de ameixa para passar no pão Finalmente a professora diz A sua pergunta Verinha tem a ver com uma tendência à desnasalização das vogais postônicas na língua portuguesa Emília intervém pág 114 Irene me desculpa mas essas palavras que vocês usam na Lingüística parecem mesmo nome de doença e ela encena um pequeno diálogo fazendo vozes diferentes E então Doutor Feitosa qual o problema com o Adamastor Henrique Nada de grave Dona Gertrudes é só uma pequena desnasalização das vogais postônicas Não há quem consiga conter o riso diante da interpretação exagerada de Emília Mas tem que ser assim mesmo Emília diz Irene depois que consegue parar de rir Na ciência os fenômenos as regras as leis têm que ter nomes precisos para facilitar o estudo e a análise Mesmo que estes nomes não sejam exatamente os mais bonitos do mundo Vera se volta para Emília e diz Satisfeita estrela Já deu o seu showzinho Ela pode responder agora à minha pergunta ou a palhaça tem ainda algum número para apresentar Titia é toda sua responde Emília Muito obrigada agradece Vera E então tia Eu rabisquei aqui algumas palavras em latim e ao lado delas coloquei a forma correspondente em portuguêspadrão moderno responde Irene Vejam aqui E ela coloca no centro da mesa o bloco onde rascunhou o seguinte quadro Quadro 18 pág 115 Que interessante comenta Vera todas estas palavras tão usadas em português atual tinham em latim um N final que desapareceu Desapareceu mas deixou vestígios explica Irene e é por isso que até hoje dizemos abdominal betuminoso examinar luminária nominal com aquele mesmo N que se perdeu nos substantivos E algumas destas palavras conservaram uma dupla grafia possível abdomeabdômen certamecertâmen cerumecerúmen germegérmen regimeregímen velamevelâmen só que estas formas com N final praticamente não são usadas nem na língua oral nem na escrita e quase não as encontramos hoje em dia a não ser quando alguém quer se divertir com elas ou parecer pedante O que aconteceu Por que desapareceu esse N final pergunta Sílvia Ao que parece existe a tendência na língua portuguesa de LATIM PORTUGUÊS abdomen abdome bitumen betume certamen certame cerumen cerume strumen estrume examen exame gérmen germe legumen legume lúmen lume nomen nome regimen regime velamen velame volumen volume eliminar a nasalidade das vogais postônicas responde Irene Quer dizer o som nasal das vogais que estão depois da sílaba tônica como em todas estas palavras do quadro E também em homem ontem Virgem além de todas as inúmeras palavras terminadas em agem garagem viagem bobagem etc Por que será que o portuguêspadrão conservou o M destas palavras interessase Vera Talvez tenha sido a alta freqüência de uso delas na norma padrão propõe Irene As outras palavras aquelas do quadro têm uso menos freqüente e acabaram apanhadas pela regra da desnasalização O português nãopadrão no entanto que é mais obediente às regras ditadas pelas tendências internas da língua aplicou a regra a todas elas Queria que meus alunos fossem tão obedientes às regras quanto o português nãopadrão suspira Emília Irene não ouve o comentário pois está de novo concentrada em seus pensamentos Escreve mais algumas coisas no bloco e diz Este fenômeno também atingiu as palavras terminadas em ão postônico e é por isso que no PNP ouvimos orgo para ÓRGÃO orfo para ÓRFÃO Cristovo para CRISTÓVÃO Estevo para ESTÊVÃO além de todos os verbos que no portuguêspadrão terminam em AM pronunciado ão eles cantaro eles fizero eles bebero Acontece também pág 116 com os nomes próprios do tipo AÍRTON NÉLSON WÍLSON MÍLTON que no falar descontraído são pronunciados Aírto Nélso Wilso Mílto O mesmo se dá com a palavra ÁLBUM que muita gente pronuncia albo Outro fato curioso é que a palavra que hoje pronunciamos frango no português mais antigo era frângão Frângão repete Emília espantada Que coisa mais engraçada e ela improvisa um rápido diálogo Que temos hoje para o rângão querida Frângão ensopado com batata meu amor Que delícia mas antes vamos dançar um tângão Pare com isso senão eu me zângão Chega Emília por favor implora Vera Não sei como você consegue falar tanta bobagem Bobagem não corrige Emília bobage bobage obedeça à regra Vera dispara uma bolinha feita de miolo de pão na direção de Emília que se desvia e evita o golpe Sílvia alheia à disputa voltase para Irene e diz Mais uma vez a gente é obrigada a reconhecer que quem diz onte home garage bobage não está falando errado não é Irene Está até de certa forma falando mais certo já que está respeitando a regra de desnasalização da vogal postônica que é natural da língua Sabendo disso Sílvia quando um aluno ou qualquer outra pessoa pronunciar home onte garage bobage você já vai poder corrigir com a consciência de que está tentando ensinar uma forma oficial padrão culta que na verdade é apenas conservadora enquanto as formas nãopadrão populares são inovadoras e respeitam as tendências normais do idioma Emília e Vera continuam sua guerrinha de miolo de pão Irene se levanta vai até onde elas estão à mesa segura as mãos de ambas e diz Nada de brigas na minha casa Afinal meu nome é Irene que em grego significa paz Por isso as senhoritas larguem já essas armas e vão passear por aí que eu tenho muito o que fazer pág 117 QUEM NÃO SE ALEMBRA DE CAMÕES arcaísmos no português do Brasil uando naquela noite as três colegas entram na escolinha Irene mal espera que elas se acomodem em suas carteiras e diz Dêem uma olhada nos verbos que eu escrevi na lousa e depois me digam se vocês conhecem eles Vera Emília e Sílvia obedecem Emília lê em voz alta Quadro 19 Vocês devem estar pensando que esta é mais uma das minhas listas de palavras que pertencem ao português nãopadrão ao português que a maioria das pessoas chama de errado quando não dizem simplesmente que isso não é português diz Irene Era o que eu ia mesmo dizer admite Sílvia mas já percebi que aí tem dente de coelho Irene sorri E tem mesmo Só que antes de desvendar o mistério vamos arreparar nos seguintes versos E ela distribui uma folha impressa onde está escrito pág 118 Q abastar ajuntar alembrar alevantar alimpar alumiar amostrar aqueixar aquentar arrecear arrenegar arreparar arrodear assentar assoprar avoar Quadro 20 E agora desafia Irene Será que estes versos têm jeito de pertencer ao português nãopadrão Se eu te conheço bem isso aí tem o jeitão do Camões arrisca Emília Pois acertou em cheio cumprimenta Irene São mesmo versos dOs Lusíadas do meu querido Luís de Camões E o que você quer mostrar com isso pergunta Vera Camões a gente sabe que não errava E não errava mesmo confirma Irene O que quero mostrar é muito simples Quero mostrar que muita coisa que a gente pensa que está errada que é fala de gente ignorante na verdade não é nada disso De fato esses supostos erros são heranças muito antigas vestígios de outros tempos verdadeiros fósseis lingüísticos Eles recebem o nome técnico de arcaísmos pág 119 1 Nem as ervas do campo bem lhe abastam 2 Vinham as claras águas ajuntarse 3 Mas alembroulhe uma ira que o condena 4 Alevantando o rosto assim dizia 5 Alimpamos as naus que dos caminhos 6 A noite negra e feia se alumia 7 Andarlhe os cães os dentes amostrando 8 Que se aqueixa e se ri num mesmo instante 9 Por mais tempo que o Sol o mundo aquente 10 Que de tão pouca gente se arreceia 11 Morrem arrenegando o Céu e os fados 12 Mais abaixo os menores se assentavam 13 Que em vão assopra o vento a vela inchando O passado alumiando o presente Arcaísmo tem a ver com arcaico e arcaico quer dizer velho não é diz Sílvia Exatamente responde Vera Vamos recordar um pouco a nossa história A língua portuguesa chegou ao Brasil no início do século XVI Naquela época os portugueses não falavam nem um pouco parecido com o modo como falam hoje Ah não admirase Sílvia Não confirma Irene Eles falavam isso sim de um jeito bem mais próximo do falar do brasileiro de hoje Gente que coisa surpreendese Emília Ontem mesmo na televisão tinha um programa humorístico satirizando o Descobrimento do Brasil e o Cabral e os outros portugueses todos falavam com o mesmo sotaque do Seu Oliveira o dono da banca de jornal que fica embaixo do meu prédio que é português Falta de informação lingüística e histórica esclarece Irene As peças de teatro filmes programas e novelas de televisão que fazem Pedro Álvares Cabral falar com sotaque português moderno estão cometendo uma distorção histórica E o que aconteceu pergunta Vera Com o tempo o português falado na Europa foise modificando como é inevitável com todas as línguas vivas Com um enorme oceano Atlântico a separar os dois continentes os brasileiros não tinham como acompanhar aquelas mesmas transformações que iam acontecendo alémmar O português da América também se modificou mas num ritmo bem mais lento e acabou conservando alguns aspectos da língua fonéticos sintáticos morfológicos lexicais etc que iam desaparecendo pouco a pouco do português europeu A normapadrão brasileira até há algum tempo tentava seguir as normas do portuguêspadrão de Portugal macaquear a sintaxe lusíada como disse Manuel Bandeira no seu poema Evocação do Recife Por isso foi tratando de abandonar alguns daqueles aspectos arcaicos que no entanto foram conservados pelas variedades nãopadrão Foi necessária toda a grande revolução estética e ideológica do Modernismo brasileiro no início do século XX para que lentamente certos traços característicos do pág 120 português do Brasil fossem sendo assumidos pela normapadrão oficial Grandes escritores brasileiros como Manuel Bandeira Mário de Andrade Carlos Drummond de Andrade Guimarães Rosa e outros fizeram questão de escrever numa língua literária mais brasileira e menos dependente das imposições dos gramáticos portugueses A bem da verdade desde o século XIX já com os escritores românticos havia este sentimento de valorizar os brasileirismos lingüísticos José de Alencar autor dO Guarani e de Iracema queixavase dos que diziam que ele escrevia mal o português justamente por assumir esta postura nacionalista Quem descobriu o quê E onde entram os verbos do Camões pergunta Emília Todos estes verbos iniciados com a e que são tão vivos nos nossos falares regionais rurais nãopadrão nada têm de errado nem de ignorante insiste Irene São como já disse arcaísmos lingüísticos que já pertenceram à norma literária clássica e depois saíram de moda A prova disso é sua presença tão abundante na epopéia camoniana publicada em 1572 ou seja apenas 72 anos depois do assim chamado Descobrimento do Brasil Sílvia franze a testa Por que você disse assim chamado Descobrimento Porque este termo me parece muito pouco apropriado para definir o fato histórico acontecido em 22 de abril de 1500 responde Irene Coloco sempre Descobrimento entre aspas por duas razões Primeira pesquisas de historiadores têm mostrado que o Brasil não foi descoberto por acaso pela esquadra de Cabral num suposto desvio de rota quando ele ia para a Índia mas que sua viagem fazia parte de um plano bem traçado de explorar terras sul americanas cuja existência já era conhecida antes Já espantase Vera Sim confirma Irene O espanhol Vicente Yáñez Pinzón por exemplo esteve no litoral pernambucano em 1499 na região do Cabo de Santo Agostinho bem pertinho do Recife atual Quer dizer que poderíamos ter sido colonizados pela Espanha espantase Vera pág 121 Isso mesmo responde Irene E qual a segunda razão das aspas pergunta Emília A segunda razão que para mim é a mais importante é a seguinte por que falar do Descobrimento de uma terra que já era há milênios o lar de tantas nações indígenas diferentes Só a história do branco é que conta O Brasil não existia antes Algumas lideranças indígenas conscientes falam hoje em dia de invasão portuguesa da mesma forma como aprendemos nas aulas de História que houve invasões holandesas e francesas Puxa vida deixa escapar Sílvia Além de modificar as aulas de português vamos ter de mudar também nosso ensino de História História dos verbos com A Voltando aos nosso verbos retoma Irene eles têm uma história muito interessante Havia em latim uma preposição ad que deu origem à nossa própria preposição a Ela tinha diversos sentidos conforme a frase entre os quais perto de junto a em direção a até etc Como as demais preposições latinas ad podia ser usada como um prefixo para formar novos verbos Em muitos casos ela perdia o d final que era assimilado pela consoante seguinte ad préndere appréndere aprender ad córrere accórrere acorrer ad flúere afflúere afluir e assim por diante E no português pergunta Vera Na formação da língua portuguesa este processo continuou fazendo surgir uma grande quantidade de verbos que tinham este prefixo a sem que ficasse muito evidente por que ele estava ali junto daquele verbo Aconteceu o que a gente chama de generalização que é quando uma regra deixa de ser específica para alguns casos e é empregada a torto e a direito A história da língua está cheia de casos de generalização Por que Camões usou estes verbos que hoje são proibidos na língua literária padrão pergunta Sílvia Na época posterior a Camões responde Irene houve um grande esforço por parte dos filólogos e literatos de Portugal pág 122 de estabelecer normas para a língua portuguesa culta literária aquela que devia ser o idioma oficial do reino e do império Esta época coincide justamente com o momento mais importante dos empreendimentos marítimos portugueses a presença de exploradores e colonos portugueses já é sentida em todos os pontos do planeta tendo sido eles aliás os primeiros europeus a entrar em contato por exemplo com o Japão É mesmo surpreendese Emília Eu nunca soube disso Pois fique sabendo agora diz Irene Algumas palavras da língua japonesa moderna refletem este contato muito antigo com os primeiros navegadores portugueses A palavra arigatô é derivada do português obrigado e o mesmo acontece com pan que é pão em japonês Quer dizer que nossa lingüinha já foi importante assim admirase Emília Muito importante sim senhora responde Irene Antes que o francês se transformasse na língua mundial no século XVIII e o inglês no século XIX foi o português que desempenhou este papel A partir da segunda metade do século XV ele já era falado nas regiões costeiras da África Ocidental No século XVI estava disseminado por todo o Oriente Era tão importante que mesmo os navios de exploradores de outros países holandeses franceses e ingleses levavam sempre uma ou mais pessoas que soubessem falar português para estabelecer contato com os povos nativos que usavam o português como língua de comunicação com os europeus Estou de queixo caído confessa Emília Tia você estava dizendo que os filólogos de Portugal tentaram definir uma língua oficial Como foi que isso atingiu os verbos começados com a pergunta Vera Nessa tentativa de definir uma língua oficial os gramáticos decidiram eliminar da normapadrão alguns daqueles verbos em a porque não correspondiam a nenhum verbo original latino nem guardavam os sentidos que a presença da preposição impunha Foi assim que no português clássico e moderno já não encontramos mais alumiar aqueixar alembrar Mas a lei não colou com o povo não é arrisca Sílvia pág 123 Claro que não responde Irene afinal o povo que na sua imensa maioria não sabia ler nem escrever e portanto não tinha acesso à norma oficial padrão conservou aqueles verbos que chegaram até o Brasil na boca dos colonizadores e por aqui ficaram Quanto mais longe mais arcaico A presença de aspectos arcaicos é comum a todas as línguas que foram transplantadas de um lugar para outro prossegue Irene Existe até uma relação bastante interessante entre arcaísmo e distância geográfica quanto mais distante de seu local de origem mais arcaica permanece a língua Assim acontece por exemplo com o francês falado no Canadá que tem muitos aspectos do francês falado na França no século XVII Também acontece com o inglês da Austrália e com o espanhol sulamericano Quanto mais distante mais arcaica repete Emília anotando Essa mesma relação faz com que a língua das zonas rurais seja mais arcaizante do que a língua das grandes cidades onde as transformações sociais mais rápidas são acompanhadas no mesmo ritmo por transformações na variedade lingüística Quanto mais antiga a colonização de um lugar mais traços arcaicos sobrevivem na sua língua Por isso o português do Nordeste brasileiro primeira região a ser colonizada pelos portugueses está muito mais próximo da língua falada por Cabral e por Camões do que o português de São Paulo por exemplo E a língua falada na zona rural nordestina é muito mais arcaica do que a falada nas grandes cidades da região Português do Brasil uma língua conservadora Tia além desses verbos começados em a que outros arcaísmos a gente pode encontrar no português nãopadrão Muitos outros Verinha responde Irene Aos ouvidos desinformados podem parecer erros Vou dar três exemplos entonce despois escuitar tão comuns na fala dos caipiras Justamente pág 124 por serem arcaísmos estas formas estão mais próximas do latim do que as formas vigentes na normapadrão de hoje Entonce então vem do latim in tunce Despois depois vem de de ex post Repare como estas formas arcaicas do PNP se parecem com o espanhol entonces después E escuitar De onde vem pergunta Emília Escuitar vem do latim ascultare responde Irene A transformação de lt em it não é estranha ao portuguêspadrão o latim multu resultou em muito Esta forma latina é que explica a presença do L nas palavras multidão múltiplo multicolorida Digase de passagem que despois e escuitar estão devidamente registrados nOs Lusíadas E no portuguêspadrão também temos arcaísmos pergunta Sílvia E como responde Irene Muitos dos erros que os portugueses dizem que os brasileiros mesmo os cultos e bem educados cometem não passam de sobrevivências de formas antigas que podem ser encontradas em escritores portugueses dos séculos XV e XVI Por exemplo interessase Vera Uso da preposição em regendo verbos de movimento Vou no cinema cheguei em casa A normapadrão clássica pede a preposição a Vou ao cinema cheguei a casa Mas o uso de em nestes casos aparece também nOs Lusíadas Que mais pergunta Emília Uso da preposição de regendo o verbo chamar responde Irene Ele me chamou de ignorante A norma clássica diz Ele chamoume ignorante Mas este uso aparece na obra de Frei Luís de Sousa autor português do século XVIXVII Ainda bem porque Ele chamoume ignorante é de uma cafonice sem igual comenta Emília Pois é retoma Irene muitos outros aspectos do português brasileiro que são classificados de brasileirismos como se fossem pura invenção nossa não passam mais uma vez de heranças bem conservadas de uma língua portuguesa que se falou há muito tempo É o caso por exemplo do nosso uso tão comum do gerúndio em frases do tipo estou falando estou indo estou querendo pág 125 onde os portugueses dizem estou a falar a ir a querer Ora Camões só usa a forma com gerúndio o mesmo acontecendo com outros escritores de sua época A forma estou a falar é que é uma inovação bem recente no português de Portugal De onde se conclui diz Emília Que não devemos acusar ninguém de estar falando errado quando simplesmente está falando antigo arremata Irene E por falar em antigo diz Sílvia estou me lembrando com saudades do bolo de laranja que a Eulália fez hoje à tarde Bem que a gente podia ir lá e comer um pedaço antes que ele fique arcaico Sugestão aceita saem todas da escolinha pág 126 ACEITASE ROUPAS NOVAS função da partícula SE como verdadeiro sujeito de oração mília Vera e Sílvia dormem no mesmo quarto Como estão de férias e as conversas com Irene se prolongam noite adentro elas aproveitam os dias frios do inverno para dormir até mais tarde Mesmo quando despertam cedo ficam deitadas conversando até pelo menos as dez horas da manhã Hoje Vera é a primeira a acordar Espreguiçase debaixo do cobertor grosso pisca os olhos várias vezes consulta o relógio de pulso deixado sobre o criadomudo Dez e meia quase Hoje a gente exagerou avalia Difícil vai ser me acostumar de novo ao horário de trabalho pensa ela que tem de estar todos os dias às sete horas na escola para a primeira aula Vou acordar essas preguiçosas Levantase vai até a janela e abre as cortinas Uma luz intensa invade o quarto Vera admira o azul limpo do céu Ouve os primeiros resmungos das colegas Dá para apagar este sol um minutinho por favor pede Emília escondendose sob o cobertor Sílvia boceja longamente sorri para Vera e diz Tive um sonho tão gostoso Acho que foi por causa da aula da Irene de ontem sobre os arcaísmos Emília que não perde chance de fazer piada comenta a voz abafada pelo cobertor Sonhou que era uma mulher das cavernas cabeluda e piolhenta Isso é que é um sonho arcaico para mim Não sua boba sonhei com o Descobrimento do Brasil protesta Sílvia E quem você era A mulher do Cabral que também era amante do Pero Vaz de Caminha graceja Emília de novo pondo a cabeça para fora Sílvia atira um travesseiro na direção de Emília que evita o E golpe encolhendose novamente sob o cobertor Vera está de pé junto a janela Quando se dirige de volta à sua cama percebe alguma coisa no chão do quarto sobre o tapete junto à porta É um envelope Vai até lá e o recolhe pág 127 Carta para nós diz ela sentandose na beirada da cama de Emília e lendo o sobrescrito As outras duas se interessam e aproximamse dela É da tia Irene E o que diz pergunta Emília Vera lê Bom dia aqui fala a sua tia Eu e a Eulália fomos a Campinas fazer comprinhas e procurar uns livros que estou precisando Esperei até as nove e meia para ver se as dondocas acordavam para irem com a gente mas como o quarto estava mais silencioso que um túmulo fomos sozinhas Voltamos à tardinha Beijos e queijos Irene Que pena lamenta Sílvia ia ser divertido viajar até Campinas com elas Pouco tempo depois entram as três na cozinha para o café da manhã Que gracinhas que elas são não comenta Emília Deixaram a mesa prontinha para nós Sentamse Quando Vera vai pegar a xícara para servirse de café percebe que sob o pires há um pequeno papel azul dobrado Mais um bilhetinho gente diz ela desdobrandoo Neste instante Emília exclama Eu também tenho um E eu também diz Sílvia mostrando um cartão corderosa que estava sob sua xícara O que diz o seu Vera pergunta Emília Diz assim Vendemse casas quem vende o quê Que esquisito comenta Emília E o seu Sílvia O meu diz Se quem tem autoridade para reprovar um aluno é o professor qual o sujeito da seguinte frase Na escola reprovamse muitos alunos por falarem uma variedade nãopadrão de português responde Sílvia Pois no meu está escrito assim Você já ouviu falar de galinhas suicidas Então qual o sujeito da seguinte oração Nesta granja abatemse mil galinhas diariamente Vera sorri e diz Essa tia Irene tem cada uma Só falta agora a gente cortar o bolo e encontrar mais um bilhete dentro pág 128 Não é bem assim que acontece mas ela tem razão há um novo bilhete só que dobradinho sob a pequena toalha branca que cobre a cesta de pães É Sílvia quem o encontra e lê em voz alta Para vocês não ficarem aí sem ter o que fazer quero propor um joguinho Na verdade uma preparação para nosso batepapo de hoje à noite Quero que cada uma de vocês reflita sobre as perguntas que já devem ter encontrado debaixo das xícaras Atenção Não é para responder às perguntas é para refletir sobre elas Amor Irene Eu conheço bem o nome desse joguinho suspira Emília Ele se chama análise sintática mais um desses nomes de doença que a gente tem que decorar Odeio detesto abomino tenho asco nojo antipatia aversão e ojeriza por análise sintática Calma Emília diz Vera Acho que não é nada disso Se conheço bem a tia Irene o que ela quer é fazer a gente pensar encontrar um jeito novo de olhar as coisas Também acho diz Sílvia A Irene não ia fazer a gente perder tempo com uma análise sintática tradicional Tomara viu é a vez de Emília Quando me pedem para encontrar sujeito objeto predicado adjunto e não sei o que mais tenho vontade de sair correndo e fugir para a Patagônia Eu gosto de análise sintática confessa Vera Acho que ela ajuda a gente a entender uma porção de coisas E é muito útil quando você tem de aprender uma língua estrangeira O único problema é a maneira como se ensina análise sintática na escola Uma coisa seca sem humor com exemplos desinteressantes e principalmente sem explicar para que serve Quem sabe a tia Irene tem alguma proposta nova Não sei não diz Emília Tenho verdadeiro trauma com análise sintática Acho que vou esperar a Sílvia se formar para depois cuidar de mim Me aceita como sua cliente Sílvia sorri Claro que aceito Aliás podemos começar já se você topar ser minha cobaia Todas sorriem Depois do café Sílvia diz que vai arrumar a cozinha Vera se dispõe a ajudála Mais tarde a gente podia preparar o almoço não é propõe pág 129 Sílvia Afinal a gente vem explorando a Eulália e a Irene desde que chegou aqui E elas deixam a gente fazer alguma coisa replica Vera enxugando a louça Fazem questão de dar um tratamento de hotel cinco estrelas Façam o almoço que quiserem mas não contem comigo avisa Emília guardando as xícaras no aparador Nós já sabemos que você não sabe nem fritar um ovo diz Vera Fritar um ovo Eu não sei nem colocar água para ferver corrige Emília E o que você vai fazer quer saber Vera Refletir sobre a minha pergunta é claro responde Emília afetando muita responsabilidade Afinal não é esse o nosso dever de casa Ela limpa as mãos no papeltoalha e diz Vou aproveitar que a Irene não está em casa para escarafunchar um pouco o escritório dela Aposto que tem livros interessantíssimos por lá Eu vou passear um pouco pelo quintal diz Vera Vamos juntas completa Sílvia Quem sabe a gente encontra na horta alguma coisa gostosa para fazer uma bela salada Emília deixa as amigas ocupadas na cozinha Vai até o escritório de Irene E um amplo quarto com todas as paredes ocupadas de alto a baixo por estantes abarrotadas de livros No centro do cômodo uma grande mesa de trabalho com muito papel espalhado livros abertos outros empilhados Junto à mesa grande outra menor que sustenta o computador de Irene A visão da máquina acende uma luzinha na imaginação de Emília Será pensa sem querer confessar a si mesma o que tem em mente Ia ser ótimo divertese ela Afinal de cozinha não entendo mesmo nada mas de computador Quem é mesmo esse sujeito Eulália e Irene voltam perto das sete horas da noite Vera e Sílvia recebemnas com um delicioso minestrone Emília apressase em dizer pág 130 que também contribuiu para o jantar cortando o pão em rodelas Tarefa imprescindível diz Irene sorrindo afinal minestrone sem pão não tem a menor graça Emília vai tomando sua sopa calada enquanto as outras conversam animadamente Percebendo o inusitado silêncio da colega sempre tagarela Vera pergunta Que deu em você Emília A sopa queimou sua língua Não responde ela calma É que ainda estou pensando naquelas perguntas que a Irene deixou para a gente refletir Ah é mesmo quase ia esquecendo diz Irene Fizeram a tarefinha de vocês Você disse que era para refletir não para responder não é certificase Vera Isso mesmo confirma Irene Nós duas conversamos bastante sobre as nossas perguntas diz Sílvia A Emília eu não sei passou o dia toda meio misteriosa escondida Emília fazse de desentendida e continua a comer Pois eu estou ansiosa para ouvir as reflexões de vocês confessa Irene Depois do jantar não é tia Primeiro vamos comer sossegadas diz Vera Mais tarde por volta das nove e meia reúnemse as quatro na escolinha para mais um serão Irene abre a conversa dizendo Hoje vamos nos concentrar numa questão que ainda não foi definitivamente resolvida pelos gramáticos e que por isso complica um pouco a vida de quem tem de ensinar e aprender a língua portuguesa O povo é claro já deu a sua solução e neste caso estou me referindo a todos os falantes da língua portuguesa do Brasil tanto nas suas variedades cultas quanto nas suas variedades não padrão Ela faz uma pequena pausa e retoma Quero falar com vocês da velha disputa entre Vendemse casas e Vendese casas Embora as gramáticas e os livros didáticos e tantos professores insistam ainda em afirmar que a primeira forma com verbo no plural é que é a certa a grande imensa esmagadora pág 131 maioria das pessoas só usa a segunda forma com verbo no singular Erro comum arrisca Sílvia Nada disso responde Irene para mim se trata mais uma vez de um acerto comum do povo Vamos tentar descobrir por que essa insistência de tantos milhões de pessoas em errar sempre e colocar o verbo no singular Irene se levanta de seu lugar na meialua formada pelas cinco cadeiras alinhadas dirigese à lousa e enquanto escreve vai falando Nosso material de trabalho esta noite vai ser uma frase bem simples bobinha mesmo Aqui vai ela Tia pela gramática tradicional essa frase está errada diz Vera Por quê pergunta Irene Porque o sujeito do verbo comer neste caso é uns docinhos ótimos e estando o sujeito no plural também o verbo deve estar no plural responde a sobrinha Vamos ver então diz Irene voltando a escrever na lousa Só que como eu já disse praticamente ninguém respeita mais esta regra retoma Irene e a frase 1 tem mais probabilidade de ser enunciada no Brasil do que a frase 2 E existem algumas explicações para isso É a deixa que Emília esperava para pôr as asinhas de fora Posso arriscar uma dessas explicações Irene pergunta ela Claro que pode responde Irene Emília pigarreia um pouco passa a língua pelos lábios e começa Eu acho que a primeira explicação que a gente pode oferecer tem a ver com a sintaxe quer dizer com a organização das palavras na frase com a combinação dos elementos que compõem uma oração pág 132 Era justamente por aí que eu ia começar Emília comenta 1 Nessa padaria se come uns docinhos ótimos 2 Nessa padaria se comem uns docinhos ótimos Irene surpresa Continue por favor Na língua portuguesa como em muitas outras a ordem sintática natural normal espontânea é sujeitoverboobjeto não é mesmo diz a estudante de Pedagogia bem pausadamente como quem escolhe com cuidado as palavras É sim Emília confirma Irene Os lingüistas dizem que esta é a ordem canônica do português Pois então retoma Emília quando um falante de português vai dizer alguma coisa a primeira combinação que lhe ocorre é esta Ivo viu a uva Eu amo você Pedro quer doces Mariana não comprou o livro Você tem medo Tudo na ordem canônica como você disse As línguas que se organizam desta maneira como o português são chamadas línguas SVO sujeitoverboobjeto explica Irene Existem línguas que se organizam de outros modos SOV e VSO E o que tem a ver esse tal de SVO com os docinhos da nossa padaria pergunta Vera disposta a testar até onde vai a sabedoria repentina da colega Muito simples responde Emília e levantandose vai até a lousa e dirigindose a Irene pergunta Posso Por favor concede Irene Novo pigarro Emília retoma A gramática tradicional como a Vera bem lembrou analisa a frase 2 da seguinte maneira E ela rabisca a giz coisas na lousa 2 Nessa padaria se comem uns docinhos ótimos VERBO SUJEITO De acordo com essa análise prossegue Emília o que acontece na frase é uma inversão do sujeito ou seja em vez de estar na ordem normal sujeitoverbo a frase está invertida verbo sujeito pág 133 A inversão do sujeito esclarece Irene é um recurso que torna a frase mais elegante além de dar maior ênfase à ação praticada do que a quem a praticou É muito empregada na literatura nos discursos orais mais elaborados conferências sermões pronunciamentos políticos enfim numa linguagem menos corriqueira menos quotidiana Vamos ver agora como é que a maioria dos brasileiros analisa intuitivamente é claro a frase 1 diz Emília voltando a escrever na lousa O que é que logo chama a atenção nessa análise pergunta Emília em tom professoral e ela mesma responde O que logo chama a atenção nesta análise é que ela corresponde exatamente àquela ordem canônica da sintaxe do português SVO Intuitivamente portanto o falante enquadra este enunciado dentro do esquema padrão da língua Por isso é que esta frase 1 soa muito mais natural do que a frase 2 com seu suposto sujeito invertido Neste momento Irene compreende o que está acontecendo e pisca um olho matreiro para Emília que capta o sinal e o interpreta como pode continuar fazendo as outras duas de tolas sua danadinha Sílvia com uma curiosidade científica que supera sua surpresa pela repentina inteligência da colega pergunta 1 Nessa padaria se come uns docinhos ótimos SUJEITO VERBO OBJETO Esta análise me parece ótima Por que não é assim que a gente ensina Emília volta a atacar Eu consultei uns livros na biblioteca da Irene hoje à tarde e cheguei à seguinte conclusão o grande problema para os gramáticos é admitir que a palavra se na frase 1 é um sujeito pág 134 Por quê indaga Sílvia Porque dizem eles o português procede do latim e em latim se não podia ser sujeito mas somente objeto responde Emília com voz de desdém Vocês agüentam uma explicação bolorenta como essa A língua portuguesa é falada há mais de mil anos já deixou de ser latim há séculos mas eles insistem em querer vestir os fenômenos lingüísticos do português com as mesmas roupas mofadas e puídas usadas pelo latim Só que não dá às vezes fica apertado fica desconfortável outras vezes fica frouxo a roupa não se segura e cai Já não seria a hora de darmos ao português um guardaroupas novo só para ele em vez de obrigálo a usar os ternos esburacados do defunto latim Concordo plenamente intervém Irene É claro que conhecer as origens da língua é muito importante e eu mesma o tempo todo estou indo beber nas fontes latinas Mas daí a querer proibir e condenar fenômenos novos simplesmente porque não existiam em latim é uma atitude no mínimo obscurantista e autoritária Emília volta a ocupar seu assento fazendo o ar mais sonso de que é capaz Irene prossegue No português do Brasil como a Emília acabou de demonstrar melhor do que eu seria capaz esta palavrinha se em enunciados como o que estamos estudando ocupa o lugar do sujeito na ordem canônica da língua e exerce plenamente esta função Ele corresponde a outros sujeitos neutros ou indeterminados que existem em tantas outras línguas on francês one em inglês uno espanhol man alemão e é por isso que os tradutores ao encontrarem uma destas palavrinhas num texto estrangeiro tratam logo de traduzila pelo nosso se O estranho caso das galinhas suicidas Muito bem tia a Emília deve ter comido alguma coisa que fez mal e teve um acesso repentino de inteligência deu o showzinho dela e falou da explicação sintática para o uso do verbo no plural diz Vera olhando com ar desconfiado para a amiga sentada a seu lado Mas você disse que pode haver outro tipo de explicação pág 135 É verdade confirma Irene Podemos tentar uma explicação de outro tipo uma explicação semântica que tem a ver principalmente com o significado dos verbos que se encontram em enunciados onde aparece o sujeito se Vocês também não acham como eu e a Emília que a frase 1 que a gramática classifica de errada faz muito mais sentido do que a frase 2 Irene de novo vai até a lousa É fácil comprovar isso Se na frase 2 o que acontece é uma inversão do sujeito vamos colocálo então no seu devido lugar na ordem canônica para ver o que acontece Vejam como ficou estranho apressase em dizer Emília Os docinhos se comem Docinho tem boca para comer a si mesmo Não parece uma frase sem lógica surrealista Parece responde Vera tão surrealista quanto esse seu repentino amor pela análise sintática Irene finge que não ouviu o comentário da sobrinha e distribui umas folhas impressas 3 Nessa padaria uns docinhos ótimos se comem Vamos fazer o mesmo teste agora com outras frases que a gramática consideraria corretas mas que com o sujeito e o verbo nas posições canônicas assumem um significado até cômico quando não trágico Sílvia e Vera observam o quadro de orações impresso na folha Quadro 21 pág 136 Emília tem um súbito acesso de riso e enquanto ri exclama Gente que coisa mais divertida Mil galinhas diariamente se abatem São galinhas suicidas mesmo que caminham tranqüilamente até o matadouro pegam a faca e se degolam a si mesmas Vera também se diverte Os criminosos se procuram Por quê Estão perdidos não se conhecem têm saudades uns dos outros E essa aqui Os telhados se avistam comenta Sílvia Desde quando telhado tem olho para avistar o outro Eu adorei essa As línguas se ensinam retoma Emília Você consegue imaginar uma língua andando solta por aí vestida de professora e dando aula a outras línguas E não é trágico imaginar que milhões de judeus se exterminaram quando sabemos muito bem que não foi nada disso pergunta Irene Nesta granja abatemse mil galinhas diariamente Ainda se procuram os criminosos responsáveis pelo grande assalto de ontem Do alto daquele morro se avistam os telhados das casas da velha cidade Nesta escola ensinamse as línguas mais faladas do mundo Pedemse mais verbas para a educação Nos campos de concentração nazistas se exterminaram milhões de judeus A partir do século XV descobriramse novos continentes Diariamente destroemse grandes porções da floresta amazônica Dá para imaginar um continente todo coberto por uma grossa colcha de lã e se descobrindo com uma mãozinha preguiçosa diz Vera E a floresta amazônica destruindose a si mesma é Sílvia agora Certamente a coitada se cansou de sofrer tanto nas mãos de seus exploradores Acho que ninguém nunca pensou em aplicar este teste nos gramáticos tradicionalistas diz Vera sorrindo Provavelmente mudariam de opinião Todas se divertem com a situação Irene retoma sua explicação Estas frases são tão ilógicas quanto por exemplo Tijolos macios devoraram o tático nariz da jabuticaba óssea Frases gramaticalmente bem construídas mas que não fazem sentido Não me venha falar em equivalências Mas os tradicionalistas têm um trunfo escondido na manga diz Vera de repente Eles dizem que estas frases estão corretas com o verbo no plural porque equivalem a outras frases Assim por exemplo Abatemse mil galinhas diariamente equivaleria a Mil galinhas são abatidas diariamente Eu não mexi nos livros da tia Irene e ela lança um olhar agudo na direção de Emília pág 137 mas me lembro muito bem das minhas aulas de gramática e lá eu aprendi que segundo a terminologia tradicional As tais roupas velhas do latim debocha Emília Segundo a terminologia tradicional retoma Vera em tom mais elevado estas duas frases estão na voz passiva quer dizer elas expressam uma ação que foi sofrida pelo sujeito da oração Quando a ação é praticada pelo sujeito a gente diz que a frase está na voz ativa E esta mesma terminologia tradicional diz que o se de todas essas frases é uma partícula apassivadora e que ela serve para criar uma oração passiva sintética em oposição à oração passiva analítica formada com o verbo auxiliar ser seguido do particípio passado do verbo principal Neste modo de ver as coisas portanto existe um sinal de igual entre os dois verbos Agora é Vera quem vai até a lousa e escreve Por isso é que os verbos teriam que estar no plural em ambas as situações conclui Sílvia enquanto Vera retoma seu lugar e põe meio palmo de língua para Emília como quem diz Eu também sei das coisas meu bem Mas Emília está disposta a brilhar esta noite e logo intervém Essa teoria é muito bonita cheia de nomezinhos complicados que dão a ela um ar de coisa importante e nela todas as peças se encaixam direitinho umas nas outras Mas esse encaixe só dá certo na teoria numa língua idealizada falada não se sabe exatamente por que povo de que planeta distante Não é mesmo Irene Mesmíssimo Emília responde Irene Quando confrontada com a língua viva falada todos os dias essa teoria apresenta uma série de rasgões causados pelos choques com a realidade Como assim Irene pergunta Sílvia Bom para começar não existe equivalência nenhuma entre aquelas duas formas Como bem disse a Verinha essa teoria é tradicionalista e eu estou aqui mesmo disposta a mostrar as coisas de um modo diferente e se Deus me ajudar mais lógico e coerente Aliás essa história de equivalência é sempre complicada pág 138 e quando alguém vem me falar de sinônimos eu fico logo toda arrepiada E por quê surpreendese Vera Porque cada vez que um falante da língua escolhe dizer X e abatemse são abatidas não Y é porque nesta escolha existe um intuito bem definido é uma opção que foi feita por algum motivo Por isso é que a língua oferece tantos recursos de expressão diferentes a começar pelo vocabulário que está sempre crescendo Na forma de organizar os elementos de uma frase também existem estas opções mas isso não quer dizer que sejam maneiras diferentes de dizer a mesma coisa Por isso não podemos considerar Abatese mil galinhas uma forma passiva Vera diz Emília em tom condescendente porque ao usar esta forma de expressão o falante está querendo enfatizar o ato de abater a ação de sacrificar as aves deixando marcado que alguém faz isso mesmo que esse alguém não seja nomeado o que está expresso pelo sujeito sujeitíssimo se Isso mesmo Emília concorda Irene Já em Mil galinhas são abatidas estamos diante de uma forma realmente passiva na qual se acentua o destino a que as galinhas estão sujeitas o sofrimento que lhes é imposto Sim porque passivo vem do latim passio passionis que significa sofrimento padecimento É daí que vem a nossa paixão no sentido religioso os sofrimentos de Cristo e no sentido afetivo estar apaixonado é sofrer de amor Se os tradicionalistas dizem que as duas formas são equivalentes é porque podemos substituir uma pela outra não é sugere Sílvia Será que essa substituição acontece sem problemas Faça você mesma o teste propõe Irene Substitua a nossa frase 1 pela sua forma passiva analítica e veja no que dá Sílvia medita uns instantes e depois diz Nessa padaria são comidos uns docinhos ótimos Correta gramaticalmente avalia Vera Sim concorda Irene mas como soa artificial dura pesada esta frase Imagine o clássico cartaz Vendese casas escrito São vendidas casas A frase perde totalmente seu efeito de comunicação imediata comercial Aliás Irene se você me permite de novo Emília com seu pág 139 ar de especialista eu encontrei num dos seus livros um trecho muito interessante a esse respeito Posso ler Por favor concede Irene mas primeiro diga o nome do santo e onde foi feito o milagre O livro se chama Dificuldades da língua portuguesa diz Emília consultando suas anotações e o autor é Manuel Said Ali Said Ali é um dos mais importantes filólogos brasileiros profundo conhecedor da nossa língua diz Irene Morreu há mais de quarenta anos mas suas lições são válidas até hoje O que diz ele sobre o nosso assunto Emília Emília lê Que bom saber que a minha sanidade mental está garantida exclama Irene Vejam só Said Ali escreveu isso num livro que foi publicado pela primeira vez em 1908 Lá ele propõe considerarmos se o sujeito da oração mas a força da gramática Alugase esta casa e esta casa é alugada exprimem dois pensamentos diferentes na forma e no sentido Há um meio muito simples de verificar isto Coloquese na frente de um prédio um escrito com a primeira das frases na frente de outro ponhase o escrito contendo os dizeres esta casa é alugada Os pretendentes sem dúvida encaminhamse unicamente para uma das casas convencidos de que a outra já está tomada O anúncio desta parecerá supérfluo interessando apenas aos supostos moradores que talvez queiram significar não serem eles os proprietários Se o dono do prédio completar no sentido hipergramatical a sua tabuleta deste modo esta casa é alugada por alguém não se perceberá a necessidade da declaração e os transeuntes desconfiarão da sanidade mental de quem tal escrito expõe ao público tradicional é tamanha que até hoje somos obrigados a fingir que as coisas não são assim pág 140 Despindo múmias e catando feijão Irene retoma Juntando nossas três explicações a manutenção da ordem canônica SVO da língua a ausência de sentido das frases com verbo no plural e a intenção que governa as escolhas do falante é que podemos dizer que 1o o pronome se em frases deste tipo não é uma partícula apassivadora mas sim o sujeito da oração e por estar no singular o verbo também deve estar no singular 2o conseqüentemente o verbo no plural torna a frase incoerente deixaa sem sentido ilógica 3o frases deste tipo não estão na voz passiva mas sim na voz ativa porque correspondem a uma clara intenção da parte do falante de enfatizar a ação praticada Uma explicação sintática uma explicação semântica e uma explicação pragmática resume Emília para espanto cada vez maior de Vera e de Sílvia Infelizmente lamenta Irene ainda há muita gente que insiste em vestir a nossa linda língua portuguesa do Brasil com aquelas vestes puídas verdadeiras ataduras de múmia mais de mil anos lembrou a Emília que envolvem o latim Gramáticos professores revisores ainda nos atacam com aquelas regras sem sentido Como você propõe que a gente classifique então o se pergunta Vera Talvez o mais simples e coerente fosse reconhecer neste se a mesma função que lhe é atribuída pela gramática tradicional em outras frases construídas com verbos que não pedem objeto E como a gramática classifica o se nestes casos pergunta Sílvia Ela diz que o se aqui é um índice de indeterminação do sujeito pág 141 responde Irene Poderíamos resolver toda a questão dizendo que é simplesmente um pronome pessoal usado para indicar um sujeito indeterminado Apoiado exclama Emília Vejam só uma coisa retoma Irene Durante milênios se acreditou que a Terra era plana e que o Sol e os demais astros giravam em torno dela Isso era uma crença uma lei e um dogma quem o contestasse era perseguido condenado e até queimado em fogueira vejase as histórias de Copérnico Galileu e Giordano Bruno A ciência porém acabou provando que aquela concepção estava errada Mas ela imperou por tantos séculos que até hoje um terço dos franceses acreditam que a Terra permanece imóvel no centro do sistema solar Não acredito surpreendese Vera Logo os franceses Pois é uma estatística perfeitamente confiável elaborada por institutos de pesquisa muito sérios da França confirma Irene Essa história para mim é muito parecida com a dos gramáticos que ainda insistem no dogma que diz que se não pode ser sujeito e que por isso condenam à fogueira da reprovação todos aqueles que tentam seguir outro caminho Eu mesma já tive de brigar muito com revisores de editoras e revistas que tentaram corrigir livros e artigos meus em que apareciam frases como Alugase casas Graças a Deus contamos com aliados importantes Chorase gritase esperneiase mas não se resolve nada No Brasil trabalhase muito e ganhase pouco Vivese feliz quando se ama Ah sim E quem são pergunta Sílvia Um deles é João Cabral de Melo Neto responde Irene No seu poema Catar feijão ele nos ensina Que bonito comenta Vera João Cabral de Melo Neto é considerado um dos maiores poetas da nossa língua Além disso era membro da Academia Brasileira de Letras uma instituição cujo objetivo principal é supostamente pág 142 definir as regras do bom português e zelar por elas Ora se ele pôde escrever jogase os grãos como levar a sério aqueles ranzinzas que ainda teimam em nos corrigir Vamos deixar de ser passivas então e fazer valer a nossa voz ativa exclama Emília entusiasmada Irene aplaude e é acompanhada por Sílvia e Vera Agora cama decreta a professora Chega de atividade por hoje e vamos nos entregar passivamente ao nosso mais que merecido sono pág 143 Catar feijão se limita com escrever jogase os grãos na água do alguidar e as palavras na da folha de papel e depois jogase fora o que boiar A BRUXA ESTÁ SOLTA fenômenos decorrentes da analogia Desvendando o mistério a manhã seguinte quando desperta Vera percebe que a cama de Emília está vazia e que Sílvia está se espreguiçando como quem acaba de acordar Onde será que está a Emília perguntase Vera em voz alta Não tenho idéia responde Sílvia antes de um longo bocejo Eu ainda não consigo acreditar no que aconteceu ontem diz Vera Acreditar no quê Ora Sílvia Vai me dizer que você achou normal a Emília de repente começar a entender tanto de lingüística quanto a tia Irene e ter todas aquelas idéias sobre o pronome se a voz passiva e tudo mais Bem normal normal não Mas vai ver que de repente era um assunto que ela já tinha estudado antes sei lá tenta explicar Sílvia Ou então você está com ciúmes porque ela roubou a cena e ganhou tantos elogios da sua tia Muito me admira você estudante de Psicologia se sair com uma teoria tão mixuruca e vulgar contraataca Vera Eu com ciúmes E logo de quem Da tonta da Emília Depois de uma pequena pausa ela retoma Tenho certeza que nessa história tem dente de coelho Para dizer a verdade diz Sílvia eu ontem percebi uma coisa meio estranha Ah foi O quê animase Vera N Me pareceu que até determinado momento da aula a Irene também estava surpresa com a súbita iluminação da Emília responde Sílvia Mas de repente por alguma razão eu senti que surgiu uma cumplicidade entre elas Aliás me lembro bem de ter visto a Irene dar uma piscadinha rápida para a Emília Então não é loucura minha Graças a Deus aliviase Vera Mas eu não consigo imaginar o que foi que aconteceu A Emília ontem passou a tarde toda trancada na biblioteca da pág 144 Irene enquanto eu e você cuidávamos da casa do almoço e do jantar recorda Vera Pode ser que ela tenha aprontado alguma coisa por lá Afinal ela até citou um livro que encontrou na estante da sua tia Vera se detém alguns instantes para meditar De repente sorri como se alguma idéia houvesse surgido em sua mente Hum É isso mesmo Como foi que não pensei nisso antes Que foi interessase Sílvia Conseguiu descobrir o mistério Acho que sim responde Vera e conta a Sílvia a idéia que lhe ocorreu Mais tarde depois do almoço estão todas à mesa tomando um cafezinho Eulália e Irene se levantam e se retiram para a sala É o momento que Vera esperava Com ar sério voltase para Emília e lhe pergunta Emília ontem no final da aula você disse que a classificação do pronome se como sujeito da oração tinha três explicações possíveis de três tipos diferentes não foi Foi responde Emília apanhada de surpresa num tom que fica a meio caminho entre uma pergunta e uma resposta Foi confirma Sílvia Eu até anotei uma explicação sintática uma explicação semântica e uma explicação pragmática Pois é retoma Vera Foi justamente essa última palavra que eu não entendi Afinal foi você quem usou e não a tia Irene Emília sorve um longo gole de café temendo que Vera lhe faça uma certa pergunta Mas Vera não vai perder a chance O que você quis dizer exatamente com explicação pragmática Emília depõe a xícara sobre o pires Sílvia percebe que ela está nervosa Até empalideceu um pouco Bom é pragmático você sabe é assim quando bem tem a ver com é mais ou menos o mesmo que Sim incentivaa Vera firmando bem o olhar no rosto da amiga Emília engole em seco Sílvia tem vontade de rir mas controla se Vera exige pág 145 E então Emília O que você entende por uma explicação pragmática Prag mática gagueja Emília Eh hum pragmática é aquilo que você sabe na gramática quando a gente quer Neste momento Irene aparece na cozinha e percebe o que está acontecendo O que foi Verinha Por que a Emília está com essa cara de quem viu assombração É Sílvia quem responde Não é nada não Irene A gente só está pedindo à Emília para explicar de novo algumas coisas que ela tão brilhantemente ensinou ontem à noite Irene leva a mão à boca para esconder o riso Bem que a Sílvia me disse que tinha desconfiado de alguma coisa exclama Vera Vocês andaram combinando tudo não foi Irene ri e pergunta Combinando o quê Qual a sua hipótese Ora hipótese nenhuma reage Vera Apenas descobri a verdade E qual é a verdade cobra Emília Muito simples querida responde Vera Você ontem muito mexeriqueira que é fuçou no computador da tia Irene até descobrir o capítulo do livro dela que trata do pronome se Decorou tudo porque eu conheço a fama da sua memória e ótima atriz que é encenou aquele número tentando convencer a gente de seu novo amor pela análise sintática Irene ri ainda mais Foi ou não foi pergunta Vera Não foi bem assim defendese Emília Ah não graceja Sílvia Então como foi Ora eu descobri sim o capítulo mas apenas li me interessei pelo assunto aprendi o que estava escrito lá e guardei na memória Não quis encenar coisa nenhuma Não quis não é ironiza Vera Então por que não confessou logo Por que ficou dizendo que tudo aquilo era fruto da sua reflexão Emília engasga de novo Irene pára de rir sentase à mesa e diz pág 146 Você está certa Verinha a Emília é mesmo ótima atriz Tem uma memória excelente para decorar textos Na verdade eu também fiquei espantada quando ela começou a dar as explicações mas logo reconheci o meu próprio texto e deixei que ela continuasse A culpa da brincadeira também foi minha Mas que foi divertido foi não é gabase Emília aproveitando a cumplicidade recémrevelada de Irene Consegui enganar vocês direitinho Vera até então sisuda descontrai o rosto e sorri Conseguiu mesmo Juro que fiquei muito espantada quando você desmontou toda a minha análise segundo a gramática tradicional Fiquei me sentindo um verdadeiro dinossauro das teorias lingüísticas Todas sorriem Sílvia então se lembra Mas a nossa dúvida sobre a explicação pragmática é verdadeira Irene O que é exatamente isso Não é muito simples responde Irene Mas podemos tentar A explicação sintática como eu disse ontem aliás como a Emília disse ontem baseiase na sintaxe do enunciado quer dizer na organização dos termos dentro da oração na combinação das palavras entre si para formarem um enunciado Esta é a mais fácil reconhece Vera A explicação semântica tem a ver com o significado das palavras com o que elas querem dizer retoma Irene Por exemplo o enunciado vendemse casas apresenta um problema semântico porque o verbo vender não pode ser praticado pelo sujeito casas Casas não podem vender nada só um ser humano pode vender alguma coisa Entendi comenta Sílvia E a explicação pragmática A explicação pragmática tenta ver o relacionamento do falante do usuário da língua com aquilo que ele diz responde Irene Cruzes Que rolo é esse pergunta Emília Foi o que eu disse ontem sobre o intuito ou a intenção do falante esclarece Irene E que você Emília aliás repetiu muito bem Se bem lembro você disse que abatese mil galinhas não era uma oração na voz passiva porque ao usar esta forma de expressão o falante está querendo enfatizar o ato de abater a ação de sacrificar pág 147 as aves deixando marcado que alguém faz isso mesmo que esse alguém não seja nomeado o que está expresso pelo sujeito sujeitíssimo se É mesmo reconhece Emília eu disse exatamente assim só que não tinha idéia de que isso é que era uma explicação pragmática Pois então retoma Irene essa explicação baseada no uso que o falante faz da língua em determinadas circunstâncias com determinado intuito e para obter determinado efeito é uma explicação de ordem pragmática Satisfeitas pergunta Emília dirigindo um olhar sapeca às duas amigas Muito satisfeitas responde Vera Só acho que a tia Irene de agora em diante tem de tomar mais cuidado com o computador dela Deixar trancado sei lá usar uma senha para que certas pessoas não fucem onde não são chamadas Sugestão aceita diz Irene sorrindo Que tal agora vocês irem passear um pouco Afinal já já vocês vão embora Nem me lembre tia suspira Vera Estas férias estão sendo tão gostosas O nome da bruxa Na escolinha à noite Irene começou o batepapo dizendo No domingo passado vocês conheceram Dona Assimilação e viram como ela pode agir causando mudanças irreversíveis na língua falada Hoje eu gostaria de apresentar outra figura interessante uma verdadeira bruxa ou fada que vive solta por aí mandando e desmandando na língua nossa de cada dia O nome dela é Analogia Não parece nome de bruxa corrige Emília parece nome de atriz de cinema italiano Anna LOggia Seja como for prossegue Irene a analogia sofre da mesma mania da assimilação acho até que são primas As duas fazem seus feitiços com as semelhanças que encontram na língua A diferença é que a assimilação tenta tornar semelhantes coisas que estão bem perto uma da outra Vimos isso com as vogais e semivogais dos ditongos ou e EI Já a analogia usa um método diferente Quando pág 148 vamos abrir a boca para falar a analogia sopra nos nossos ouvidos alguma coisa parecida que se mistura com o que íamos falar fazendo assim com que deixemos escapar uma forma nova Como é que se define cientificamente a analogia pergunta Vera A analogia é a mudança lingüística causada pela interferência de uma forma já existente responde Irene Parece complicado diz Sílvia Mas é muito simples assegura Irene A melhor maneira de explicar como sempre é com exemplos E o que não falta na língua portuguesa nem em língua nenhuma são exemplos de analogia Aliás ela é responsável por uma quantidade imensa de fenômenos lingüísticos tantos que seria impossível mostrálos todos aqui O roubo das vogais fechadas O primeiro exemplo de ataque da analogia é um feitiço tão forte que seus resultados são audíveis não só na língua não padrão mas também na boca de muita gente que se diz instruída e educada Manda ver diz Emília Existe na língua portuguesa uma alternância vocálica muito interessante entre vogal fechada e vogal aberta na relação nome verbo Vejam só este quadro E Irene distribui uma folha onde está impresso Quadro 22 pág 149 Pouco antes de vocês nascerem explica Irene os substantivos desta lista usavam um lindo acento circunflexo chamado acento diferencial exatamente porque ajudava a diferenciar na escrita a vogal fechada presente nos nomes da vogal aberta presente na sílaba tônica dos verbos correspondentes É mesmo confirma Vera eu já percebi isso em livros impressos nos anos 60 Só que na última reforma ortográfica de 1971 esse acento circunflexo caiu diz Irene porque se concluiu que nenhum falante de português se confundiria na hora de pronunciar essas palavras Meus amigos estrangeiros que têm de aprender português ficam perdidinhos com essa alternância vocálica que é característica da nossa língua E onde é que a analogia vai entrar nessa história quer saber Sílvia Ela já entrou responde Irene e fez surgir o seguinte quadro substantivo verbo substantivo verbo o almoço eu almoço o jogo eu jogo o apego eu me apego o namoro eu namoro o carrego eu carrego o peso eu peso o choro eu choro o rolo eu rolo o dobro eu dobro o selo eu selo o esmero eu me esmero o soco eu soco o forro eu forro o sossego eu sossego o gelo eu gelo o troco eu troco o gosto eu gosto o zelo eu zelo Quadro 23 substantivo verbo o espelho eu espelho o estôr eu estôr o fêcho eu fêcho o póso eu póso o rôbo eu róbo E ninguém vá pensar que estou falando aqui de português nãopadrão adverte Irene Nada disso Essas formas podem ser ouvidas diariamente nas melhores lojas nas salas de aula na televisão e no rádio pronunciadas por gente das mais diversas classes sociais e níveis de escolaridade Todas porém são condenadas como erro pela gramática tradicional Essa gramática tradicional adora condenar nunca vi comenta Emília O caso de estouro estóro pouso póso e roubo róbo nós já pág 150 vimos quando tratamos da assimilação relembra Irene Aqui a analogia aproveitou o trabalho feito antes pela prima para depois entrar em ação O grande prazer da analogia é eliminar as exceções e criar regularidades quer dizer fazer com que o maior número possível de fenômenos da língua se enquadrem dentro de regras que já se mostraram eficientes antes Já sei arrisca Emília ela é uma espécie de cão pastor o que estiver escapando do cercado da regra ela manda lá para dentro Isso mesmo Emília aprova Irene Ora existe uma regra que diz substantivo vogal fechada verbo vogal aberta É uma regra que se aplica a uma grande quantidade de casos Por que então não aplicála também aos poucos que restam para ficar tudo enquadradinho regular análogo Quer dizer que o certo pela gramática tradicional é dizer eu fêcho o fêcho pergunta Sílvia É confirma Irene Gente eu nunca ouvi ninguém dizer eu fêcho admite Vera Os nordestinos dizem eu fêcho comenta Irene Então eles falam mais certo conclui Sílvia Não rebate Irene eles falam apenas mais antigo a fala deles ainda conserva esse acento fechado no verbo como também a fala de pessoas de mais idade aqui do Sudeste E qual o problema com espêlhoespélho pergunta Vera O verbo espelhar segundo a gramática tradicional deve ser conjugado com E tônico fechado Aliás esta regra vale para todos os demais verbos terminados em ELHAR ECHAR e EJAR A única exceção é invejar que tem E aberto eu invéjo Só que a analogia não deixa valer a regra tradicional não é diz Emília Não deixa mesmo confirma Irene Eu me lembro até hoje do quanto a minha pobre professora de canto orfeônico lutava para que nós crianças ao cantarmos o verso do Hino Nacional que diz e o teu futuro espelha esta grandeza pronunciássemos espêlha e não espélha que nos parecia muito mais natural Quer dizer que a analogia não respeita nem as crianças admirase Vera pág 151 As crianças são as vítimas preferidas dela diz Irene sorrindo Afinal é ou não é uma bruxa E a analogia que faz as criancinhas dizerem eu fazi se eu sesse eu sabo eu pido porque são formas análogas às formas regulares que elas já conhecem Que gracinha diz Sílvia E quanta gente adulta não está dizendo todo dia eu planejo eu Veléjo eu alméjo eu bocêjo eu farejo lembra Vera Todas vítimas da analogia E a analogia não se contenta apenas com os substantivos alerta Irene A mesma regra de vogal fechadavogal aberta também existe na relação adjetivoverbo como por exemplo em estou secaela seca estou soltaela solta Lá vem então a analogia novamente de mãos dadas com a assimilação de doido surge eu endóido de frouxo fróxo aparece eu afróxo de inteiro intêro brota eu me intéro duas formas pág 152 É como eu digo vivendo e aprendendo suspira Emília tomando nota em seu bloquinho Chega então a analogia e aproveitando esses exemplos faz com que muitas pessoas apliquem a regra aos verbos trazer chegar e mandar entre outros produzindo frases do tipo Ele já tinha trago o livro que pedi Quando eu saí você ainda não tinha chego Se você tivesse mando o que lhe pedi Eu já ouvi isso sorri Vera e tem gente que enche a boca para falar assim como se fosse o português mais camoniano possível Esse caso de analogia tem um nome especial explica Irene Chamase hipercorreção Você quer dizer excesso de correção admirase Sílvia Isso mesmo confirma Irene Não é curioso Muita gente erra quando tenta acertar demais Que delícia saber disso comemora Emília Hipercorreção adorei Vou esfregar isso na cara da nossa diretora toda vez que ela vier me corrigir Pois é muitos falantes escolarizados constrangidos pela suposta lei que manda usar somente os particípios irregulares aplicam essa regra a verbos que no português clássico literário só conhecem os particípios regulares explica Irene Um desses particípios nascidos da hipercorreção analógica é o do verbo pegar que de tão usado já entrou até para o dicionário classificado como brasileirismo embora sob protestos de muitos gramáticos conservadores Hoje em dia a única dúvida que existe é saber se o certo é dizer pêgo ou pégo Os portugueses não fazem idéia do que significa essa palavrinha nascida aquémmar E no português nãopadrão tia A analogia também apronta das suas No PNP responde Irene a analogia também age sobre esses particípios irregulares mas de forma contrária ao invés de criar novas formas irregulares ela faz surgir novas formas regulares análogas às existentes na grande maioria dos verbos Assim naqueles verbos que na normapadrão só admitem o particípio passado irregular a analogia vai agir criando formas regulares Ela vai até a lousa e escreve pág 153 Quadro 24 Estou vendo mais uma vez diz Sílvia que o PNP é mais coerente porque tenta aplicar a regra mais produtiva às exceções que constituem raridade enquanto o PP age exatamente ao contrário tentando transformar a exceção em regra Conclusão exata aprova Irene E olha que eu nem fui mexer no seu computador diz Sílvia piscando um olho para Emília que lhe dirige um muxoxo Irene sorri e retoma Uma comparação interessante entre as formas diferentes de criação analógica verificadas no PP e no PNP diz respeito aos verbos pôr e fritar O verbo pôr tem uma forma estranha irregular quando comparada aos demais verbos da língua cujos infinitivos sempre terminam em AR ER ou IR Para dar um jeito nisso o PNP baseandose na forma conjugada eu ponho criou o infinitivo ponhar regular e muito mais fácil de ser conjugado Afinal se infinitivo particípio passado PP PNP abrir aberto abrido cobrir coberto cobrido dizer dito dizido escrever escrito escrivido fazer feito fazido podemos dizer eu ganhoganheiganhava e se existe a forma eu ponho por que não diríamos também eu ponhei eu ponhava É assim que a analogia procede E o que aconteceu com fritar quer saber Emília Dessa vez quem não se deu bem com um verbo foi o portuguêspadrão responde Irene E o verbo esquisito é frigir Imagine alguém dizendo Eu frijo batatas no óleo quente A baiana freje o acarajé no azeite de dendê Parece outra língua diz Emília Não é mesmo retoma Irene Ora esse verbo frigir é um daqueles que tem um particípio passado irregular frito Pronto pág 154 era tudo que a analogia precisava para fazer nascer o verbo fritar saborosamente regular E o verbo frigir Aonde foi parar pergunta Sílvia O verbo frigir ficou restrito à deliciosa expressão no frigir dos ovos responde Irene e ao nome da panela que usamos para fritar a frigideira Irene conclui a aula dizendo Esses foram apenas uns poucos exemplos da festa que a analogia tem feito e continua a fazer na língua Agora que vocês já conhecem os truques dessa bruxa fiquem bem atentas para não caírem na esparrela de achar que alguém está cometendo um erro quando na verdade está simplesmente seguindo a tendência natural que a língua têm à analogia pág 155 A FÔRMA A NORMA E O FUNIL mudança variação e problemas no ensino da língua O perigo de um novo mito o dia seguinte na hora do café da manhã Sílvia está tão calada e concentrada que Emília não pode deixar de perceber Com a gaiatice de sempre comenta Ah que coisa linda é o amor não é gente e pisca marotamente para Vera Por que esse comentário Emília pergunta Irene Porque a Sílvia acordou tão borocoxô que só pode ser saudades do namorado Ouvindo seu nome Sílvia parece despertar de um sono profundo Hem Alguém me chamou Todas riem Eulália responde A Emília disse que você deve estar com saudade do seu namorado por isso está tão quieta Saudades Eu Ah não quer dizer sim Mas não é por isso que estou calada É que desde ontem estou pensando umas coisas e queria mesmo tirar umas dúvidas com você Irene Emília não perde a deixa Ai meu Deus que garota mais CDF Quer ter aula até na hora do café da manhã Irene sai em defesa de Sílvia Não tem hora marcada para isso dona Emília Toda hora é hora de investigar descobrir e aprender É o que eu vivo dizendo aos meus alunos safase Emília sorrindo Quais são suas dúvidas Sílvia interessase Vera N No primeiro dia de aula Irene você enfatizou muito a questão de toda língua ser na verdade um conjunto de variedades a Emília até falou que a língua é um balaio de variedades Isso mesmo confirma Irene Só que todo esse tempo a gente tem falado de português padrão e português nãopadrão como se só existissem essas duas pág 156 variedades de língua no Brasil Você alertou a gente contra o mito da língua única Não existe aí o perigo de um novo mito o mito de duas línguas únicas Não está havendo uma contradição nisso Irene sorri e pisca para Vera Agora ela me pegou Por quê tia Se bem me lembro você também disse que o PNP apresentava variedades conforme as diversas regiões geográficas classes sociais níveis de escolarização e assim por diante mas que existiam alguns grandes traços lingüísticos que eram comuns a todas essas variedades Obrigada querida sobrinha por tentar me defender Mas a dúvida da Sílvia é muito bem fundada Se como você lembrou existem muitas variedades de português nãopadrão e se o que até agora eu venho chamando de o PNP é o conjunto de traços lingüísticos comuns a todas elas o que se pode concluir é que o PNP não existe completa Sílvia Irene confirma balançando a cabeça Ai gente que confusão na minha cabeça queixase Emília Problemas filosóficos de barriga vazia Eu ainda não abri minha venda não engatei a primeira não pus o pé no mundo Vocês conseguem esperar até eu tomar pelo menos uma boa xícara de café preto Vera sem se incomodar com Emília pergunta Tia que história é essa Como assim o PNP não existe O PNP não existe Verinha simplesmente porque o PP também não existe Agora ficou melhor ainda suspira Emília servindose de café Tivemos uma semana toda de aulas sobre nada Sílvia no entanto parece satisfeita Quer dizer que eu não estou ficando maluca Graças a Deus Graças a Deus eu tive a sorte de receber alunas tão inteligentes nestas férias Só que a Emília tem razão vamos terminar nosso café primeiro Depois a gente pode dar um pulinho lá na escolinha e pensar melhor sobre essas coisas É claro que todas tratam de terminar de comer o mais depressa pág 157 possível Emília ainda reclama de ter de esperar que tirem a mesa e lavem a louça Está curiosíssima Um só padrão mas inúmeras variedades Reunidas finalmente na sala de aula Irene não demora a dizer Antes que vocês pensem que andei mentindo ou dando aula sobre nada como sugeriu nossa querida Emília acho bom explicar que não aconteceu nem uma coisa nem outra Quando eu disse ainda há pouco na cozinha que o PNP não existe porque o PP também não existe eu estava tentando mostrar que a Sílvia está certíssima em chamar a atenção para o perigo do mito das duas línguas únicas Não existe uma única variedade nãopadrão existem muitas e dizer quantas é até impossível já que como vimos para definir bem uma variedade temos de levar em conta um número grande de elementos lingüísticos e sociais Ora se cada falante tem a sua língua e se temos centenas de milhões de falantes no Brasil então também temos centenas de milhões de línguas não é Exatamente concorda Sílvia Quando eu passei a falar do PP e do PNP eu estava tentando reunir sob esses rótulos as regras que constituem a chamada normapadrão e as características comuns às variedades consideradas nãopadrão O mais coerente no caso das nãopadrão seria falar dos PNP sempre no plural E no caso do PP pergunta Vera Existe uma variedade que seja a variedadepadrão Não No caso do padrão a coisa fica um pouco mais complicada Eu já desconfiava suspira Emília abrindo seu bloquinho de notas Manda ver Irene medita um pouco respira fundo e retoma Não existe uma variedadepadrão E por que não existe Porque para nos referirmos a uma variedade de língua é preciso também obrigatoriamente nos referirmos aos seres humanos que falam essa variedade Ora quando falamos de padrão não estamos falando de uma variedade de língua viva concreta palpável que pág 158 a gente possa gravar em fita ou coletar em textos escritos O padrão é sempre um modelo uma referência uma medida um critério de avaliação Um padrão nunca é a própria coisa a ser medida avaliada Por isso usar a expressão variedadepadrão chega a ser um paradoxo Será que estou entendendo diz Emília Veja bem Emília o molde de um vestido nunca é o vestido mesmo não é Ele nem é feito de tecido em geral é feito de papel ou papelão Mesmo que a gente cole ou costure todos aqueles pedaços de papel ou papelão o resultado nunca será um vestido que alguém possa usar certo Certo O mesmo acontece com o padrão da língua Existe um conjunto enorme de regras para o uso da língua que compõem uma norma um padrão de língua mas que na realidade não é uma variedade pois ninguém obedece rigidamente a todas aquelas regras ali prescritas nem mesmo o falante mais culto mais escolarizado mais preocupado em controlar sua fala ou sua escrita Esse falante pode até conseguir respeitar uma boa porcentagem das regras padronizadas mas nunca respeitará todas elas Então Irene se estou entendendo não existe um portuguêspadrão de um lado e um português nãopadrão do outro mas sim a língua com todas as suas variedades de um lado e uma norma ou um padrão do outro É isso pergunta Sílvia Precisamente Sílvia Seria possível a gente falar da diferença entre o real e o ideal tia Porque as variedades lingüísticas existem concretamente eu falo uma a Eulália fala outra cada um de nós fala uma variedade ou mais Essas variedades como eu já tenho estudado na faculdade podem ser registradas gravadas coletadas Já o padrão por não ser falado por ninguém seria na verdade aquela língua ideal que a gente tem como um modelo abstrato do que é bom e correto Seria algo assim Sim Verinha essa sua análise está muito boa ou pelo menos coincide com meu modo de ver as coisas As variedades da língua são reais e concretas A normapadrão é um ideal de língua uma abstração pág 159 E o que são as gramáticas normativas Elas são o molde para a gente fazer o vestido pergunta Emília Sim responde Irene As gramáticas normativas tentam ser um molde Só que o uso que se faz delas em geral é uma costura às avessas Era vez de pegar o molde para com ele cortar o tecido e depois montar o vestido os normativistas e o ensino tradicional baseado neles fazem o contrário pegam um uso real e concreto da língua um vestido já pronto e vão medir e avaliar esse uso para ver se ele está de acordo com o molde preestabelecido Já sei arrisca Emília De um lado está toda a massa de língua produzida pelos falantes Do outro está a fôrma da gramática normativa O gramático quer que a gente faça nosso bolo sair exatamente como manda a fôrma Aposto que essa fôrma é bem quadradinha Se o falante deixar escorrer um pouco de massa para o lado e o bolo sair um pouquinho menos quadrado ele será reprovado Como sempre Emília sua comparação me parece ótima sorri Irene A normapadrão é isso mesmo uma fôrma um molde um gabarito uma régua Quem não faz como manda o figurino está fugindo do padrão da norma Está sendo um anormal completa Vera Está desobedecendo o patrão sugere Emília lembrandose do primeiro dia de aula Quem é falante culto Irene pega uma régua canetas hidrográficas e numa folha de papel desenha esta figura pág 160 Conforme vocês mesmas sugeriram podemos dizer que o que existe de um lado em termos de representação ou imaginário lingüístico é uma normapadrão ideal inatingível e do outro lado em termos de realidade lingüística e social a massa de variedades reais concretas como se encontram na sociedade Como tentei mostrar no desenho essas variedades não se encontram isoladas umas das outras elas não são coisas prontas e acabadas de contornos definidos Elas têm muitas semelhanças e algumas diferenças entre si Elas têm contatos umas com as outras elas representam um espectro contínuo ou simplesmente um continuum como se diz nas ciências sociais Por que você fez o desenho desse modo Pode explicar o que essas coisas representam pede Emília Claro O quadrado preto no alto é a normapadrão é a fôrma à qual supostamente todos os falantes da língua têm de se adaptar na hora de usar a língua Aproveitei sua sugestão Emília A figura embaixo do quadrado representa a gama de variedades existentes na sociedade Por que as cores vão assim do mais claro para o mais escuro num dégradé tia Porque eu quis mostrar o continuum de variedades que existe na realidade lingüística brasileira As variedades mais escuras são aquelas que mais se aproximam da normapadrão Como o padrão é um ideal e o ideal cem por cento perfeito é sempre inatingível fiz questão de deixar um espaço entre as variedades cultas e a normapadrão um espaço que separa a realidade social da representação imaginária As variedades mais claras são aquelas que mais se afastam das regras prescritas pela normapadrão das regras que as gramáticas normativas dizem ser as certas E por que você escreveu culta e culta nos extremos da figura de baixo pergunta Emília Porque esse é o critério mais seguro para classificarmos as variedades lingüísticas no Brasil Os pesquisadores engajados nos grandes projetos de pesquisa lingüística do português brasileiro chegaram à conclusão de que é o nível de escolaridade o principal fator a ser levado em conta na hora de classificar um falante e sua variedade Nesses projetos o rótulo falante culto é aplicado ao indivíduo que tem curso superior completo pág 161 Ai que triste meu Deus lamenta Emília Quer dizer que eu não sou uma falante culta Pelos critérios dos pesquisadores Emília ainda não responde Irene Isso é revoltante Só depois que eu terminar meu curso na faculdade é que vou poder ser classificada de culta Pode parecer arbitrário Emília mas para empreender um projeto de pesquisa que tenha algum rigor científico é preciso estabelecer critérios que apresentem um mínimo de objetividade Se não for assim cada pesquisador poderá escolher o informante que quiser baseado em suas próprias noções subjetivas de culto Eu tenho um tio por exemplo que só cursou até o segundo grau Sempre trabalhou como funcionário público da prefeitura de uma cidadezinha do interior Mas aprendeu sozinho três ou quatro línguas estrangeiras tem um vasto conhecimento de literatura possui uma biblioteca invejável escreve contos e poemas que já foram até premiados em diversos concursos Mas não poderia ser classificado de falante culto porque não se diplomou completa Vera Exatamente Eu considero esse meu tio um homem extremamente culto mais até do que muita gente por aí que cursou universidade e se formou mas um outro lingüista pode achar que não Por isso para manter a objetividade do trabalho se estabelece um critério que todas as pessoas envolvidas na pesquisa terão de respeitar Emília faz um muxoxo mas acaba se conformando com sua qualificação de ainda não culta E por que foi escolhido esse critério da escolaridade tia Porque ele dá conta de características próprias da sociedade brasileira Verinha Nos Estados Unidos por exemplo a cor da pele costuma ser um elemento decisivo para a classificação de uma variedade lingüística o inglês falado pelos negros principalmente pelos que vivem em comunidades mais ou menos fechadas os chamados guetos dentro das grandes cidades americanas tem características lingüísticas muito particulares que não aparecem no inglês dos brancos Em outras sociedades como a japonesa existem pág 162 diferenças bastante importantes entre a língua falada pelos homens e a língua falada pelas mulheres Já na Inglaterra o que se leva em conta em geral é a classe social a que o falante pertence É tradicional dividir a sociedade inglesa em três grupos bem distintos a working class a classe operária a middle class a classe média e a upper class a classe superior Essa divisão e esses nomes têm a ver com a realidade social britânica mas já não funcionariam do mesmo modo na análise do português do Brasil Além disso na Inglaterra a normapadrão recebe o pomposo nome de Queens English inglês da Rainha Inglês da Rainha espantase Emília Essa é muito boa Falar de inglês da Rainha me parece uma referência explícita às relações que existem entre a normapadrão e o poder político não é Irene observa Sílvia Isso mesmo Por isso o lingüista Einar Haugen disse que a elite dominante além de poder afirmar como o rei francês Luís XV o Estado sou eu também pode dizer língua é a minha o que o resto do povo fala não é língua é dialeto jargão patoá algaravia ingresia palavras que têm todas um sentido depreciativo pejorativo muito marcado Você estava explicando por que o critério da escolaridade foi escolhido para definir os falantes cultos recorda Vera No nosso país Verinha infelizmente o acesso à escolarização formal acompanha a péssima distribuição da riqueza nacional Em muitos países mesmo as pessoas das camadas sociais menos privilegiadas têm acesso à educação formal Nesses lugares existe uma verdadeira democratização do ensino No Brasil isso já não acontece Aqui embora o ensino primário seja obrigatório por lei quanto mais pobre o cidadão menor é sua chance de conseguir estudar E quanto menor o índice de escolaridade menores as possibilidades de conseguir um emprego bem remunerado Por isso temos uma multidão de pobres e miseráveis vivendo em condições subumanas que são ao mesmo tempo uma multidão de analfabetos A média de escolaridade do brasileiro é de quatro anos e meio muito baixa para um país que apresenta um dos mais importantes parques industriais do mundo O Brasil tem a décima economia do planeta mas também é o sétimo colocado pág 163 entre os países com maior número de analfabetos segundo informações da UNESCO Eu tenho lido muita coisa sobre isso na imprensa confirma Sílvia E mesmo difícil ser professora numa sociedade como a nossa onde tudo conspira contra a educação a começar do governo Por tudo isso é que muitos lingüistas brasileiros optaram pela classificação das variedades lingüísticas de acordo com o grau de escolaridade dos falantes prossegue Irene Verificouse que os negros e os brancos brasileiros não apresentam diferenças lingüísticas sensíveis em suas variedades o mesmo acontecendo com as demais etnias que compõem nosso povo Assim também acontece com homens e mulheres O que vai determinar a classificação das variedades é a escolarização Supõese que a pessoa que fez todo o percurso da educação formal passando pelos onze anos de ensino fundamental e médio mais os quatro ou cinco anos de um curso superior teve um contato ininterrupto com as formas lingüísticas consideradas padrão foi obrigada a ler muito a escrever muito a falar em seminários a ouvir aulas e palestras etc Tudo isso é suficiente para que seja classificada como um falante culto Mas classificar a fala de alguém como culta não significa dizer que essa pessoa respeita a normapadrão o tempo todo em todas as situações não é tia Muito bem lembrado Verinha A classificação de uma variedade como culta é uma questão de grau de freqüência Classificamos como culta aquela variedade na qual as formas consideradas padrão ocorrem com maior intensidade O falante culto como qualquer falante está sujeito a todo tipo de influências externas e internas Ele sofre pressão do ambiente em que se encontra do tipo de situação da hierarquia social em que se acha em relação às demais pessoas com quem está interagindo Essas são as influências externas diz Vera Sim Além disso ele pode também estar sujeito a todo tipo de instabilidade psicológica tensão medo estresse cansaço físico sono angústia e assim por diante Tudo isso interfere no momento da produção lingüística Às vezes o contexto formal ou tenso da interação pode leválo à hipercorreção fazendo pág 164 ele dizer houveram coisas estranhas eu penso de que não se deve fazer isso etc Outras vezes ele pode estar num ambiente totalmente descontraído com pessoas de sua intimidade e por isso não se preocupa em vigiar sua fala produzindo enunciados como as menina tudo veio você quer que eu faço isso etc Se ele for de origem rural e estiver convivendo com pessoas do mesmo lugar pode ser até que queira usar formas como véio muié futebor para criar o que chamamos de lealdade lingüística numa atitude de empatia de solidariedade em relação a seus interlocutores Essas coisas a gente percebe ao conviver com falantes cultos em diferentes situações e contextos de uso da língua e no nosso próprio comportamento lingüístico como falantes escolarizadas que somos É verdade confirma Sílvia Eu tenho um professor na faculdade que quando está em sala de aula parece uma gramática de carne e osso de tão caprichado que fala Mas quando sai com a gente depois da aula para beber num barzinho ele fica descontraído e fala igualzinho ao caipira mais caipira que se possa imaginar Ele nasceu e cresceu num sítio no interior do estado Pois é retoma Irene O que caracteriza um falante culto é justamente essa facilidade que ele tem de mudar de registro como se diz em Lingüística Ele pode passear tranqüilamente por todo o espectro de variedades por todo o continuum conforme lhe pareça mais adequado às suas intenções comunicativas Por isso é tão importante permitir a todos os falantes o acesso à escola e à norma padrão Esse conhecimento permitirá que a pessoa escolha a variedade ou o estilo que quer usar num dado contexto numa dada situação O falante culto é como alguém que tem uma quantidade bem grande de roupas dos mais variados estilos e na hora de se vestir vai escolher aquela que ele acha mais apropriada para a ocasião sugere Emília Já o falante menos culto tem um guardaroupas pobrezinho com duas ou três peças que ele tem de usar o tempo todo em todas as situações Gostei da comparação Emília Se você permitir vou usar no meu livro citando você é claro pág 165 Emília estampa um sorriso de satisfação que vai de orelha a orelha Ai tia você não vê que a Emília já é metida o bastante Precisa ficar bajulando o ego dessa criatura Desse jeito ela vai ficar ainda mais ganjenta como dizia o Monteiro Lobato para falar da Emília dele A inveja não é mesmo uma coisa tristíssima diz Emília em tom piedoso Pressão conservadora e mudança inovadora Observando melhor o desenho na lousa Sílvia comenta É muito pequena a parcela da nossa população que consegue alcançar a classificação de falante culto Foi por isso que você representou as variedades cultas como uma faixa mais estreita que as variedades cultas não foi Isso mesmo confirma Irene No Brasil a escolaridade plena acompanhando a injustiça social e a desigualdade econômica é um funil por onde só passa uma porcentagem relativamente pequena de brasileiros Irene pega seu desenho e faz alterações nele Resolveu incluir o tal funil no desenho pergunta Emília Mais ou menos Como já vimos a normapadrão é um ideal de língua não existe concretamente como uma variedade real No entanto ela tem uma influência muito grande no imaginário lingüístico das pág 166 pessoas exerce uma forte pressão sobre os falantes Essa pressão vai crescendo na proporção do contato que o falante tem com a normapadrão por isso quanto mais escolarizado o falante maior a pressão da normapadrão Já nas variedades menos cultas na base da pirâmide onde podemos incluir os milhões de analfabetos as pessoas que não têm nenhuma familiaridade com a escola a influênciapressão das regras padronizadas é praticamente nula É tão interessante ver tudo assim desenhado Dá uma idéia bem melhor de como as coisas realmente acontecem comenta Vera É verdade concorda Emília Eu gosto muito desse tipo de procedimento didático explica Irene Ajuda muito mesmo Só que a coisa ainda não terminou O que estou tentando mostrar para vocês com esses desenhos é de que modo as línguas mudam com o tempo O ponto que eu quero ressaltar aqui é a mudança da normapadrão Ao contrário do que as pessoas em geral pensam os conceitos de certo e de errado não são definidos de uma vez por todas para todo o sempre Como tudo na vida e no universo muda a língua também muda junto com tudo mais É verdade que existe uma pressão muito grande dos defensores da normapadrão de fazer com que ela fique inalterada compacta e sólida mas isso é simplesmente impossível O que a história das línguas de todas as línguas nos ensina é que ao longo do tempo não importa qual for a intensidade da pressão normativizadora a normapadrão vai sofrer alteração E como é que isso acontece Dá para desenhar pergunta Vera Vamos tentar e Irene volta a seu desenho E agora santa Gertrudes O que será tudo isso espanta se Emília pág 167 Estou tentando mostrar de que maneira as mudanças acontecem na língua Emília Os tracejados brancos que partem das variedades cultas e sobem na direção das cultas indicam as mudanças que pouco a pouco vão modificando o aspecto geral da língua Essas mudanças acontecem primeiro nas variedades cultas aquelas que não sofrem pressão da normapadrão por serem faladas por pessoas que não têm acesso à escolarização formal Como já vimos essa ausência de pressão da escola permite que nessas variedades as tendências mais naturais da língua se manifestem e se desenvolvam com mais liberdade Essas mudanças lentamente vão subindo na escala social Lentamente vão sendo assimiladas pelos falantes cultos lentamente vão deixando de ser estigmatizadas até que uma vez plenamente aceitas pelos falantes cultos acabam por se incorporar na variedade deles e deixam de ser encaradas como erros Foi o que tentei representar com as áreas brancas na faixa que representa as variedades cultas E por isso que não podemos dizer que as variedades cultas são a própria normapadrão Porque como o processo de mudança da língua nunca pára as variedades empregadas pelos falantes mais escolarizados sempre apresentam uma boa parcela de conservadorismo mas também uma boa parcela de inovações lingüísticas Essas inovações é que são encaradas como erros pelos normativistas O certo de hoje já foi o errado de ontem Que tal um exemplinho para facilitar a vida da gente pede a estudante de Pedagogia Com prazer Vejam só que interessante Comparem o verbo latino laxare as formas italiana lasciare e francesa laisser com o português deixar O que foi que aconteceu Houve uma troca de L por D responde Vera Por quê interessase Emília Acho que por serem duas consoantes dentais aparentadas uma acabou tomando o lugar da outra Isso mesmo Verinha confirma Irene Se nós formos ler a famosa carta de Pero Vaz de Caminha ao rei D Manuel I de Portugal dando notícia da chegada da esquadra de Cabral ao Brasil pág 168 vamos encontrar logo no comecinho algo mais ou menos assim não leixarei também de dar disso minha conta a Vossa Alteza Quer dizer que em 1500 ainda se usava o L em leixar Que divertido admirase Emília Podemos deduzir que durante algum tempo as duas formas leixardeixar ficaram em concorrência até que a forma mais nova se fixou nas variedades cultas e acabou ganhando seu lugar dentro da normapadrão Quer dizer que o que foi erro no passado agora é o que há de mais certo possível não é tia Imagine se alguém disser leixar hoje em dia Vai ser acusado de desleixo de ser um relaxado diz Irene sorrindo Vejam que nessas duas palavras que usei o L da raiz latina ficou preservado No verbo deixar que é muito mais usado muito mais popular não houve como resistir à força da mudança Quero mais Irene mais exemplos por favorzinho suplica Emília Exemplo é o que não falta Quando estudamos as proparoxítonas pudemos ver de que modo uma quantidade enorme delas acabou ficando na normapadrão com acentuação paroxítona Mudanças que certamente começaram na fala das pessoas menos cultas Mas se você quer outros exemplos aqui vão dois ligados a coisas da igreja A nossa palavra bispo antigamente era obispo Como em espanhol pergunta Vera Isso mesmo Só que esse o inicial da palavra começou a ser interpretado pelos falantes como o artigo definido Daí aconteceu que em vez de se dizer o obispo começouse a dizer o bispo que é o que ficou como bonito e bom até hoje O mesmo aconteceu com a veste abatina isto é a roupa do abade De a abatina se passou para a batina e assim ficou consagrado Se formos pensar em mudanças nos significados das palavras então não sairemos daqui hoje E na sintaxe tia As estruturas sintáticas também vão mudando com o tempo O caso da partícula se que já vimos ilustra bem essa mudança Nas variedades cultas os verbos estão sempre obrigatoriamente no singular como em Não se faz mais casas como antigamente Nas variedades cultas o respeito à regra padronizada Não se fazem pág 169 mais casas como antigamente está praticamente reduzido à língua escrita mais rigorosamente apegada à tradição normativista Na língua falada e na escrita que procura seguir as regras do uso brasileiro normal os verbos só aparecem no singular como vimos no poema Catar feijão de João Cabral de Melo Neto que aliás está longe de ser um exemplo de fala popular Que tal um exemplinho de mudança de significado pede Sílvia Vou dar um exemplo de mudança de significado acompanhada de mudança sintática Antigamente o verbo aborrecer era transitivo direto mas não no sentido em que usamos hoje esse verbo No romance Quincas Borba de Machado de Assis a gente encontra este trecho maravilhoso que já decorei de tanto usar como exemplo Carlos Maria amava a conversação das mulheres tanto quanto em geral aborrecia a dos homens Achava os homens declamadores grosseiros cansativos pesados frívolos chulos triviais As mulheres ao contrário não eram grosseiras nem declamadoras nem pesadas A vaidade nelas ficava bem e alguns defeitos não lhes iam mal tinham ao demais a graça e a meiguice do sexo Das mais insignificantes pensava ele há sempre alguma coisa que extrair Quando as achava insípidas ou estúpidas tinha para si que eram homens mal acabados Emília Vera e Sílvia caem na gargalhada Não é delicioso mesmo pergunta Irene Só um gênio como o Machado de Assis podia ter escrito uma coisa assim concorda Vera Quero anotar depois viu Irene pede Emília Também vou decorar para dizer para algumas pessoas que conheço Viram como o Machado usou o verbo aborrecer Hoje ninguém mais usaria assim soaria até estranho Se fôssemos traduzir para o uso comum de hoje diríamos Carlos Maria amava a conversação das mulheres tanto quanto em geral se aborrecia com a dos homens Nas traduções clássicas da Bíblia a gente encontra Deus aborrece o pecador pág 170 Parece até que o sentido está trocado não é Afinal na significação moderna o pecador é que aborrece a Deus isto é causa aborrecimento a Deus Ou então Deus se aborrece com o pecador Então Irene você vai ter de continuar mexendo no seu desenho sugere Sílvia É preciso mostrar que as mudanças aceitas pelas variedades cultas acabam transformando a norma padrão Já que você pediu Irene acrescenta novos elementos à figura Conforme a Sílvia já disse quando as mudanças se cristalizam nas variedades cultas e deixam de ser percebidas como erros quando os falantes dessas variedades aceitam sem resistência essas novas formas lingüísticas elas acabam se incorporando à normapadrão passam a integrar o ideal imaginário de língua certa e ganham até o status de regra obrigatória É por isso que a normapadrão de uma determinada época é diferente da normapadrão da época seguinte Mas a normapadrão está sempre em atraso em relação às variedades vivas da língua onde as formas novas não param de surgir concorrendo com as mais antigas até eliminálas ou transformálas em fósseis lingüísticos O poder simbólico da normapadrão O caráter conservador da normapadrão está ligado à sua importância política ao tal inglês da Rainha não é pergunta Sílvia Muito bem lembrado Sílvia A normapadrão tem um poder pág 171 simbólico muito forte Ela representa no imaginário coletivo a língua supostamente falada pelas camadas sociais de prestígio que detêm o poder econômico e político do país Essas classes privilegiadas vêem na normapadrão conservadora um elemento precioso de sua própria identidade de grupo dominante Quem fala o inglês da Rainha pertence à aristocracia à nobreza e seu modo de falar marca uma diferença e até uma rejeição em relação à língua da plebe da rafaméia à língua vulgar Por isso tanto empenho em conservar a normapadrão inalterada pura sem corrupções Dessas classes dominantes emergem então os defensores do padrão que são principalmente os gramáticos normativistas e os professores de língua que seguem essa ideologia conservadora Um esforço que como já sabemos acaba sendo feito em vão A pureza da língua de hoje já foi contaminação na língua de ontem O que eles hoje defendem com unhas e dentes era combatido com todo vigor por seus ancestrais em épocas passadas Então o quadradinho preto que é a normapadrão de tanto receber contaminações das variedades cultas um dia no futuro ficará todo branquinho pergunta Emília Certamente responde Irene Só que quando ele estiver todo branquinho como você diz as mudanças mais novas na língua já estarão fazendo pressão sobre ele num processo ininterrupto de transformação Sempre haverá um descompasso entre a tendência conservadora da normapadrão ideal e a tendência inovadora das variedades reais E essa mudança toda é rápida ou é lenta pergunta Sílvia A velocidade da transformação da normapadrão vai depender da dinâmica social da comunidade ou do país Numa sociedade em que a escolarização é realmente democratizada em que o número de analfabetos é mínimo em que há uma cultura letrada muito forte a normapadrão pode exercer com mais vigor suas pressões e barrar por um tempo mais longo as mudanças lingüísticas É o caso por exemplo da França que tem uma norma padrão extremamente enrijecida cristalizada há um bom tempo já No Brasil como já repeti várias vezes a força da escola é muito pequena temos 60 milhões de analfabetos plenos e funcionais isto é gente que aprendeu pág 172 a ler e a escrever mas não ficou na escola tempo suficiente para desenvolver mais plenamente essas habilidades É quase a população total da França Nosso sistema de ensino público é classificado entre os piores do mundo Democratizar a normapadrão criticandoa Então bastaria dar escola a todos os brasileiros para que todo mundo falasse e escrevesse direitinho pergunta Emília Não Emília Não é tão simples assim responde Irene Porque mesmo os falantes cultos aquelas pessoas que têm acesso às regras padronizadas incutidas no processo de escolarização se mostram muito inseguras no momento de usar essas regras conservadoras Porque não basta ensinar a gramática normativa na escola É preciso definir de maneira mais democrática qual deve ser a norma a ser apresentada na escola É urgente empreender uma crítica profunda desse padrão Uma norma que ainda obriga os alunos a decorar as formas verbais correspondentes ao pronome vós que ainda apresenta a mesóclise como uma opção possível para a colocação pronominal que obriga a decorar regências verbais que não correspondem à gramática do português brasileiro assistir ao filme que não reconhece a força pragmática de muitas construções consideradas erradas que condena a mistura de tratamento sem reconhecer que todo o quadro pronominal do português do Brasil já se transformou há muito tempo é uma normapadrão que tem muita coisa inútil irrelevante obsoleta Se é verdade que o padrão lingüístico será sempre um ideal inatingível na prática em sua totalidade também é verdade que a escola deveria se esforçar para que esse padrão absorvesse uma série de usos lingüísticos novos perfeitamente assimilados pelos falantes cultos e já consagrados até na literatura dos melhores escritores Isso reduziria o abismo que existe entre o padrão lingüístico e o uso real da língua por parte dos falantes cultos Além disso é preciso também que dentro da escola haja espaço para o máximo possível de variedades lingüísticas urbanas rurais cultas nãocultas faladas escritas antigas modernas Para que as pessoas se conscientizem de que a língua não é um bloco compacto homogêneo pág 173 parado no tempo e no espaço mas sim um universo complexo rico dinâmico e heterogêneo Ciência vs tradição dogmática É aí que os lingüistas brigam com os gramáticos tradicionalistas não é tia Exatamente Vera Enquanto a maioria dos lingüistas quer essa democratização esse reconhecimento da complexidade dos fenômenos lingüísticos com base nas pesquisas empreendidas com critérios científicos mais rigorosos muitos gramáticos tradicionalistas comprometidos com a preservação do poder simbólico que é a normapadrão esforçamse cada vez mais em impor regras que analisadas criticamente se revelam muitas vezes ilógicas incoerentes obsoletas E eles não estão sozinhos Irene intervém Emília De uns tempos para cá eu tenho notado uma onda gramatiqueira invadindo tudo que é lugar É programa de televisão e de rádio é coluna de jornal e de revista é CDROM é página na Internet é consultório gramatical por telefone o diabo a quatro Isso para não falar dos livros do tipo vinte mil erros que você deve evitar É verdade Emília eu também tenho notado essa onda como você diz Parece que nós lingüistas e educadores além de brigar com os gramáticos intolerantes vamos ter de brigar com esses novos defensores da língua esses comandos paragramaticais como eu costumo chamar O mais curioso é que muitos deles nem têm formação específica em Letras Os gramáticos tradicionalistas pelo menos costumavam ser filólogos homens muito cultos profundos conhecedores de latim e de grego tinham intimidade com a literatura clássica etc Muitos desses paragramáticos de hoje porém são jornalistas advogados médicos etc que resolveram decorar as gramáticas normativas reduzilas ao máximo eliminando toda a complexidade delas e sair distribuindo pílulas de português certo por aí Infelizmente o poder simbólico da normapadrão mais conservadora garante a esse pessoal muito espaço nos meios de comunicação além de uma boa grana Afinal eles vão falar o que as pessoas esperam ouvir que português é muito difícil que os brasileiros não sabem português só os portugueses é que sabem pág 174 que a juventude está arruinando a língua de Camões e Rui Barbosa que a invasão das palavras inglesas vai fazer desaparecer a língua portuguesa e toda uma série de mitos completamente infundados mas que já habitam o imaginário das pessoas É por isso que estou com esse projeto de escrever um livro sobre as variedades nãopadrão do português para ver se consigo mostrar alguma coisa diferente do blablablá gramatiqueiro que anda por aí Parece que a Vera tem razão existe mesmo uma guerrinha nesse campo não é arrisca Sílvia Pode se dizer que sim responde Irene O que acontece é que a gramática tradicional do modo como foi estabelecida pelos sábios da Antiguidade antes de Cristo vigorou sozinha e soberana durante mais de dois mil anos no Ocidente Seus postulados que no início eram especulações filosóficas acabaram sendo consagrados como verdadeiros dogmas que deviam ser obedecidos e seguidos à risca sem contestação Foi somente no início do século XX que apareceu a Lingüística como ciência No entanto apesar de tão jovem ela já conseguiu abalar o prestígio da gramática tradicional Mas não o suficiente para modificar na raiz as concepções tradicionais de certo e errado nem os métodos antigos de ensino da língua Ainda existe na sociedade em geral uma cobrança muito grande para que os professores continuem ensinando gramática do mesmo modo como se ensinava nas gerações passadas com a mesma nomenclatura o mesmo tipo de exercícios os mesmos preconceitos contra a variação e a heterogeneidade lingüística Sim mas e o vestibular E não é à toa Irene intervém Emília Se não ensinarmos esse monte de velharias nossos alunos mais tarde não vão ter sucesso no vestibular nem nos concursos públicos que têm provas de português com questões completamente absurdas Outro dia mesmo eu vi uma prova de um vestibular que pedia ao candidato para assinalar a forma certa desinteria disenteria desenteria disinteria disintiria e não sei que mais Agora eu pergunto saber a grafia correta dessa palavra prova alguma coisa Saber como se escreve DISENTERIA significa que a pessoa sabe fazer bom uso dos pág 175 recursos da língua transmitir suas idéias comunicarse interagir por meio da fala ou da escrita influenciar seus ouvintes e assim por diante Por essa questão é possível avaliar se o candidato é capaz de elaborar um discurso coeso e coerente Ora façame o favor Infelizmente Emília você está certa diz Irene Por mais que a gente tente inovar o ensino de língua sempre aparece alguém para nos lembrar Sim mas no vestibular Aliás esse é o grande argumento o grande trunfo dos paragramáticos É o que rende a eles boa aceitação de seus produtos gramatiqueiros No dia em que os vestibulares desaparecerem ou se transformarem no dia em que os concursos públicos forem elaborados com um mínimo de sensibilidade eles talvez fiquem sem emprego Sensibilidade é a palavra viu Irene comenta Sílvia Sensibilidade empatia solidariedade Eu às vezes tenho a impressão que os elaboradores desses concursos trabalham pensando assim O que eu posso fazer para reprovar o maior número possível de candidatos E saem inventando questões cheias de ambigüidades montando armadilhas tão complicadas que às vezes nem professores universitários com grau de doutor conseguem decifrar Já vi provas de português para concursos públicos de jardineiro cozinheira zelador com questões mais absurdas ainda que essa que a Emília citou da disenteria Parece até que é preciso ter uma dose de sadismo para trabalhar nisso O problema é que nós professores de língua portuguesa somos muito apáticos diz Vera Pelo menos é o que eu sinto Somos tantos no Brasil inteiro mas não fazemos nada para nos organizar para fazer ouvir nossa opinião Se tivéssemos essa organização poderíamos simplesmente desqualificar uma prova que tivesse esse tipo de questão préhistórica e exigir que fosse anulada e reelaborada não é Irene vai fazer algum comentário quando Eulália entra na sala e diz Gente eu achei que só ia ter aula de noite Eita bando de menina viciada em estudar meu Deus Até esquece a hora do almoço De fato já passa de meiodia e meia e só agora todas percebem que têm fome pág 176 Essa aula da manhã não estava prevista não é mesmo Irene diz Emília enquanto caminham em direção à casa Se a Sílvia não tivesse levantado a lebre você ia tratar de outra coisa e só de noite não é É bem provável Mas eu gosto muito quando alguém pede para mim explicar alguma coisa que eu não tinha pensado antes responde Irene apressando o passo para ir dizer alguma coisa a Eulália que está um pouco mais adiante e deixando Emília plantada no meio do quintal meio incrédula Mas ela logo sorri e pensa Essa Irene acha que pode me pegar mas eu não caio tão fácil assim Para mim explicar Essa é boa pág 177 ÍNDIO SIM COM MUITO ORGULHO uso do pronome MIM como sujeito de infinitivos epois do almoço onde se continuou a falar dos temas da aula da manhã as amigas se dispersam Emília vai com Eulália fazer compras no supermercado Vera ajuda Irene a cuidar das plantas no jardim Sílvia vai pôr no correio uma longa carta que andou escrevendo esses dias para seu namorado Pedro Eulália tem razão Este bando de menina é mesmo viciado em estudar A aula excepcional da manhã não cancelou a aula normal da noite Alguém sabe do que vamos tratar hoje pergunta Irene dando início às atividades É para mim responder replica Emília enfatizando bem o para mim Irene cai na gargalhada Vera e Sílvia se entreolham com ar de quem não está entendendo Vera pergunta Tem alguma coisa aí que eu não estou sabendo Perdi alguma piada Irene pára de rir e explica Piada nenhuma Verinha É que a Emília não deixa escapar nada mesmo Tentei passar a perna nela hoje de manhã usando um para mim explicar com toda a naturalidade do mundo mas ela percebeu que eu estava brincando e acaba de me dar o troco Então é disso que vamos falar Do para mim fazer diz Sílvia Exatamente Bom antes de mais nada começa Emília acho bom deixar bem claro que na minha opinião na minha modesta opinião ironiza Vera Na minha opinião continua Emília lançando um olhar D faiscante na direção da amiga essa construção já deixou de ser culta há bastante tempo Por que você diz isso Emília interessase Irene Porque eu estou cansada de ouvir gente que se diz muito culta usar esse tipo de construção Advogados médicos jornalistas professores inclusive professores de português pág 178 Ai Emília não exagera vai queixase Sílvia Mas ela tem razão Sílvia intervém Vera A Matilde mesmo nossa diretora vive dizendo pra mim ir pra mim comprar pra mim fazer É engraçado não é Logo ela que é tão preconceituosa retoma Emília Diz que fica toda arrepiada quando escuta algum aluno dizer nós vai ou ingrês mas não arrepia um só fio daquele cabelo loiro falso dela na hora de dizer para mim ir Cuidado você também com os preconceitos hein Emília adverte Irene Falar mal das loiras é puro machismo Além disso se o loiro dela é falso qual é o problema não é O cabelo é dela ela faz o que bem quiser com ele Se ela é preconceituosa em relação a alguns traços lingüísticos nãopadrão e aceita outros sem problema a gente pode tentar levantar uma hipótese científica para explicar essa atitude diferenciada em vez de atribuíla à folclórica burrice das loiras em geral Tudo bem tudo bem Mas que esse tipo de frase já deixou de ser nãopadrão ah isso já deixou Você só pode fazer uma afirmação categórica desse tipo Emília se tiver como comprovála com dados reais colhidos em pesquisa de campo e analisados segundo uma metodologia bem criteriosa diz Irene É o caso Bem não engasgase Emília Então é melhor você suavizar a força dessa afirmação Que tal usar fórmulas como me parece que tudo indica que observações assistemáticas nos levariam a poder supor que É sempre bom deixar uma margenzinha de dúvida para você mesma Senão alguém pode chegar mais tarde com uma pesquisa mais bem feita e desmentir todas as suas afirmações Traduzindo queridinha enfie a viola no saco e vamos ouvir quem sabe mesmo das coisas diz Vera sorrindo Emília em mais uma homenagem à bonecapersonagem de Monteiro Lobato põe meio palmo de língua para fora Irene só se diverte Eu também tenho escutado cada vez mais esse tipo de construção diz Sílvia Mas também sinto que os próprios falantes cultos que se servem dela não aprovam muito esse uso pág 179 Você é sempre muito boa observadora em relação às atitudes das pessoas elogia Irene E talvez esteja certa também nesse caso Quando queremos saber de que maneira os falantes reagem a determinadas formas lingüísticas aplicamos testes que servem para medir a aceitabilidade dessas formas Não sei se já foi feito algum teste em relação ao para mim fazer mas é provável que os falantes cultos não aceitem essa construção com tranqüilidade embora muitos a usem diariamente O que será que essa diferença entre uso real e aceitação quer dizer pergunta Vera Talvez queira dizer que estamos presenciando uma mudança na língua que ainda não se completou inteiramente A construção PARA MIM INFINITIVO foi passando das variedades cultas em direção às cultas Já se insinua na fala de muitos falantes cultos mas ainda encontra resistências para se incorporar definitivamente às variedades cultas Estamos assistindo neste caso uma briga entre as pressões que a normapadrão exerce sobre as variedades cultas e as pressões que as variedades cultas exercem sobre as cultas E quem você acha que vai ganhar Irene pergunta Sílvia Tudo vai depender como vimos hoje de manhã da força da normapadrão em impor suas formas de uso da língua Por enquanto fica difícil prever de quem será a vitória final Mas a Emília tem mesmo razão parece que o número de falantes cultos que usam essa construção está aumentando No mês passado mesmo estive em São Paulo e percebi três ocorrências dessa construção na fala de pessoas que entrariam na classificação de falantes cultos uma jornalista um administrador de empresas e um médico Não estou dizendo justificase Emília olhando para Vera Por enquanto existe uma campanha muito forte da escola e dos paragramáticos contra esse uso Mas quem sabe em gramáticas do final do próximo século as pessoas leiam Embora o pronome sujeito de 1a pessoa seja eu o uso já consagrou o pronome oblíquo mim como sujeito de infinitivo sempre que vier precedido da preposição para como em Para mim fazer o que você pediu vou precisar de sua ajuda A construção para eu fazer prescrita pelas pág 180 gramáticas até um século atrás caiu em desuso e causa estranheza aos ouvidos dos brasileiros cultos de hoje Eu quase ia dizendo ai que horror mas mordi a língua diz Vera em voz baixa para Sílvia Nem precisamos aplicar o teste da aceitabilidade em você comenta Sílvia sorrindo Será que esse tipo de construção existe há muito tempo ou é invenção dos brasileiros de agora quer saber Emília Parece que a coisa não é tão recente assim viu Emília responde Irene Vocês se lembram do romance Inocência escrito pelo Visconde de Taunay Eu me lembro do filme O livro eu não li confessa Emília Pois esse livro foi publicado em 1872 e lá a gente encontra um dos personagens dizendo para mim atalhar E o mais interessante é que o autor numa nota de rodapé escreveu o seguinte Irene lê algo escrito numa das folhas de papel que espalhou sobre a mesa É este erro comum no interior de todo o Brasil e sobretudo na província de São Paulo onde pessoas até ilustradas nele incorrem com freqüência Gente Já em 1872 Então a coisa é velha mesmo admirase Emília Mais velha até do que você pensa intervém Irene O ano de 1872 indica um registro escrito da construção E quando alguma coisa aparece registrada na língua escrita é porque já vem sendo usada na língua falada há muito tempo Afinal a língua voa a mão se arrasta recorda Sílvia Irene sorri e prossegue Nossa tarefa até agora tem sido buscar explicações científicas para fenômenos desse tipo E é o que vamos tentar fazer com essa sintaxe ainda considerada nãopadrão Você já tem uma explicação definitiva tia Ainda não Vera Mas tenho três hipóteses Vamos a elas então incentiva Sílvia pág 181 Cruzamento sintático A primeira hipótese tenta explicar essa construção atribuindoa a um cruzamento sintático Irene vai até a lousa e escreve Na tentativa de dizer as duas coisas num enunciado só o falante cruza as duas frases e obtém uma terceira que é algo assim como uma síntese um resumo das informações contidas nas duas 1 João trouxe um monte de livros para mim 2 João trouxe um monte de livros para eu escolher anteriores Realmente Irene me parece uma boa explicação avalia Sílvia O resultado da soma das duas primeiras frases seria João trouxe um monte de livros para mim para eu escolher mas aquela tendência que a língua tem à economia ao enxugamento leva o falante a dizer as duas coisas de uma vez só Essa frase 3 deixa bem claro que João trouxe os livros para mim e não para qualquer outra pessoa e que trouxe para eu escolher e não para eu guardar vender ou copiar É uma interessante análise pragmática do fenômeno diz Irene Existe até um termo técnico para essa tentativa de resumir duas idéias numa só expressão braquilogia Temos de levar em conta também que o pronome mim é um pronome tônico quer dizer é uma palavra que soa mais nitidamente quando pronunciada que se destaca foneticamente dentro do enunciado Ao usar mim que é tônico e não eu átono o falante está dando uma ênfase afetiva a seu enunciado deixando claro como bem notou a Sílvia que ele é a pessoa interessada a pessoa de quem se está falando pág 182 Ganha quem chegar primeiro E a segunda hipótese tia A segunda hipótese diz assim fica com a vaga quem chegar primeiro Vaga Mas que vaga pergunta Emília 1 João trouxe um monte de livros para mim 3 João trouxe um monte de livros para mim escolher 2 João trouxe um monte de livros para eu escolher Esta aqui ó E Irene escreve na lousa Na produção desse enunciado quem aparece primeiro na fala é a preposição para Ora existe uma regra na língua que diz depois de preposição pronome oblíquo Também existe uma outra regra que diz na função de sujeito de um verbo o pronome deve figurar no caso reto São duas regras para serem obedecidas A qual delas o falante vai obedecer A que veio primeiro à que foi acionada em primeiro lugar Uma vez ocupada a vaga conforme a primeira regra a segunda regra perde a chance de se impor Estabelecese uma hierarquia por ordem de chegada Então o que temos é uma vaga para dois candidatos ambos exercendo uma pressão para preencher a lacuna A preposição para por ter chegado primeiro pôde empurrar para dentro do espaço vago o pronome mim que ela rege O infinitivo coitadinho ficou a ver navios Resultado Gente que delícia exclama Emília Nunca imaginei a língua nossa de todo dia como uma corrida de cavalos Ou como aquela dança das cadeiras que a gente faz em aniversário de criança quando a música pára quem for mais rápido e estiver mais perto da cadeira consegue se sentar nela Eu pessoalmente acredito que as duas explicações reunidas pág 183 podem dar conta do fenômeno diz Irene O cruzamento sintático tentando oferecer uma síntese das João trouxe um monte de livros para escolher João trouxe um monte de livros para escolher João trouxe um monte de livros para mim escolher informações e a exigência de obliqüidade do pronome por parte da preposição que chegou primeiro podem agir ao mesmo tempo para produzir esse tipo de construção sintática A isso se acrescenta a força afetiva que tem o pronome mim graças a seu caráter tônico Deslocamentos possíveis Mas você disse que tinha uma terceira hipótese tia Qual é É a hipótese da generalização da possibilidade de deslocamento Virgem Maria Que doença terrível será essa exclama Emília Nenhuma doença Emília é só um nome comprido para uma coisa simples responde Irene Existem situações em que o para mim aparece diante de um infinitivo sem que isso constitua um erro do ponto de vista da normapadrão Observe Na lousa a professora escreve A primeira vista parece que essa frase contém um erro não é Mas é fácil provar que ela não está desrespeitando nenhuma regra da normapadrão Basta a gente retirar o PARA MIM do lugar onde ele está e deslocálo ao longo do enunciado Vamos ver que ele se encaixa direitinho em outros lugares O que acontece aqui é que o infinitivo fazer é o sujeito da oração é muito difícil Mas para quem ouve a frase 4 enunciada num 4 É muito difícil para mim fazer isso sozinho 4a Para mim é muito difícil fazer isso sozinho 4b É para mim muito difícil fazer isso sozinho 4c É muito difícil fazer isso sozinho para mim ritmo normal pode parecer que mim é que é o sujeito do infinitivo fazer Aqui o para mim tem o sentido de na minha pág 184 opinião no que me diz respeito Agora vejam só o que acontece com outro enunciado que usa as mesmas palavras de 4 Se tentarmos deslocar o PARA MIM como fizemos em 4 vamos obter o seguinte O que é essa estrelinha na frente das frases pergunta Sílvia É o asterisco Ele é usado em Lingüística para indicar que se trata de enunciados agramaticais isto é que não fazem sentido que não pertencem à gramática de nenhuma variedade de uso da língua explica Vera Isso mesmo Verinha confirma Irene Tanto é que enunciados desse tipo simplesmente nunca são produzidos por nenhum falante de nenhuma variedade nem as menos cultas Porque em 5 é impossível separar o PARA MIM do verbo FAZER Nesse enunciado o para mim nada tem a ver com na minha opinião Os falantes cultos no entanto reconhecendo que enunciados do tipo 4 estão de acordo com a normapadrão generalizam essa possibilidade de ocorrência de PARA MIM INFINITIVO e passam a aplicar essa regra em todos os enunciados aparentemente semelhantes Afinal a única diferença aparente entre 4 e 5 é o arranjo das palavras a ordem que elas ocupam no enunciado Talvez você nem precisasse ter ido tão longe nessa última 5 Isso é muito difícil para mim fazer sozinho 5a Para mim isso é muito difícil fazer sozinho 5b Isso é para mim muito difícil fazer sozinho 5c Isso é muito difícil fazer sozinho para mim hipótese Irene diz Emília Lá vem ela querendo bancar de novo a sabichona murmura Vera para Sílvia Por quê Emília pergunta a professora Porque outro dia eu estava na sala de espera do meu dentista e ouvi a secretária dele dizer uma coisa ao telefone que me deixou na dúvida pág 185 E o que foi que ela disse Ela disse Para mim lembrar de tudo agora fica difícil E qual foi sua dúvida pergunta Irene Eu não sabia se ela estava dizendo que na avaliação dela no que lhe dizia respeito era difícil lembrar de tudo ou se era difícil ela lembrar de tudo naquele momento Como nós só temos um lado da conversa telefônica não podemos interpretar com exatidão o que a secretária estava querendo dizer explica Irene Mas esse é um bom exemplo para explicarmos a ocorrência de PARA MIM INFINITIVO Ela escreve a frase na lousa Ao contrário dos meus exemplos neste da Emília nem precisamos mexer no arranjo sintático do enunciado Do jeito que ele está podemos mesmo ter duas interpretações Para ver se a primeira interpretação procede basta deslocar o PARA MIM e colocálo em outros lugares do enunciado Lembrar de tudo agora fica difícil para mim experimenta Emília Funciona Então ela não errou Mas também funciona analisar esse mim como sujeito do infinitivo diz Vera E só a gente substituir o mim pelo eu da normapadrão Para eu lembrar de tudo agora fica difícil Então ela errou sim Quer dizer que pela normapadrão a secretária errou e acertou ao mesmo tempo intervém Sílvia Se alguém fosse corrigir o que ela disse bastava ela deslocar o para mim e provar que não havia erro nenhum ali É verdade confirma Irene Vejam como os critérios autoritários do certo e do errado não funcionam com tanta segurança como querem os tradicionalistas Talvez a secretária quisesse fazer as duas coisas ao mesmo tempo dar a opinião dela sobre o que o outro interlocutor estava dizendo e exprimir sua dificuldade de se lembrar de tudo naquele momento Houve o cruzamento sintático a regra do quemchegaprimeiroganha prevaleceu e a generalização da hipótese de deslocamento entrou em ação Só que isso tudo é automático não é Irene pergunta Sílvia É um processo que não leva mais que um milésimo de segundo pág 186 Sem dúvida Sílvia e aí está a grande maravilha da linguagem e também seu grande mistério não é Como é que as idéias se juntam dentro da cabeça da gente Como é que o cérebro transforma as idéias em linguagem E o que vem primeiro o pensamento ou a linguagem Como é que a linguagem aciona seus mecanismos suas regras E como é que essas regras realizam concretamente nos sons da fala aquilo que foi processado na mente São questões que intrigam até hoje os cientistas O certo é que como você disse o falante não vai ficar o tempo todo antes de produzir seus enunciados verificando as possibilidades de deslocamento de PARA MIM e o significado desse sintagma para depois avaliar se ele pode ou não vir antes do infinitivo Esse tipo de análise é feito depois por nós investigadores que nos interessamos em descobrir as regras de funcionamento da língua O falante porém quer falar e pronto Se uma determinada construção deu certo funcionou cumpriu sua missão num determinado enunciado não há razão para que não funcione novamente em outros enunciados semelhantes Ensinar criticando Seria muito mais interessante se em sala de aula a gente pudesse explicar as coisas assim comenta Vera Chamar a atenção dos alunos para a complexidade dos fenômenos da língua em vez de ter um ataque histérico sempre que algum deles diz para mim fazer É justamente o que tento sugerir aos professores quando tenho oportunidade de conversar com eles em seminários cursos e palestras diz Irene Mas insisto sempre no mesmo ponto não se trata de ensinar as pessoas a usar esse tipo de construção até porque não é preciso elas já falam assim Tratase de explicar o fenômeno mostrar que ele tem lógica que também existem regras gramaticais agindo ali mas que são simplesmente regras de uma outra gramática e não da gramática normativa tradicional Ao mesmo tempo destacar o valor social que é atribuído aos usos lingüísticos para mim fazer sofre preconceito é considerado erro é estigmatizado A construção para eu fazer goza de prestígio abre portas Por pág 187 isso deve ser ensinada aos alunos Ensinada mesmo como algo estranho que não pertence à língua materna da maioria deles Essa mudança de atitude é muito importante na minha opinião Não podemos mais como ainda é feito querer simplesmente eliminar da realidade lingüística o para mim fazer um esforço totalmente inútil porque cada vez mais gente usa e usará essa construção Podemos sim mostrar que há duas formas em uso em concorrência e que cada uma delas tem um valor diferente Não um valor lingüístico porque são duas construções gramaticais perfeitamente lógicas e coerentes Mas um valor social determinado pelo tipo de sociedade em que vivemos Embora a forma para mim fazer seja usada pela ampla maioria da nossa população essa ampla maioria não tem poder de influência nas decisões políticas econômicas educacionais culturais Por isso o considerado bom bonito certo é o que pertence a uma minoria reduzida de cidadãos Se assim é vamos apresentar essa forma lingüística elitizada minoritária a todos os nossos alunos para que ela não seja usada contra eles no processo perverso de exclusão social baseada no preconceito lingüístico Em suma sou a favor do ensino da norma padrão mas de um ensino crítico da normapadrão de um ensino que mostre que essa normapadrão não tem lingüisticamente nada de mais bonito de mais lógico de mais coerente que as variedades usadas pelos falantes menos cultos ou analfabetos E ao mesmo tempo proponho a valorização dos usos lingüísticos nãopadrão sobretudo porque a língua que uma pessoa fala a língua que ela aprendeu com sua família e com sua comunidade a língua que ela usa para falar consigo mesma para pensar para expressar seus sentimentos suas crenças e emoções faz parte da identidade dessa pessoa é como se a língua fosse a pessoa mesma Então Irene negar valor ao modo como a pessoa fala seria quase o mesmo que negar valor ao que a pessoa é conclui Sílvia Sim e é uma atitude que não tem mais lugar numa época como a nossa em que se luta tanto pelo respeito aos direitos humanos em que se tenta combater todo tipo de discriminação e preconceito pág 188 Vamos exterminar os índios da linguagem Essa atitude nova que você sugere é o oposto perfeito da prática tradicional de ensino diz Vera Na escola nas gramáticas normativas e nos produtos paragramaticais que você citou hoje de manhã o que a gente ouve e lê é sempre a mesma coisa Mim não faz nada Uma vez até li uma entrevista de um desses senhores paragramáticos onde ele declarava Só índio fala para mim fazer Eu também li essa entrevista e fiquei chocada com essa declaração recheada de preconceito observa Irene Como esse senhor percebeu que essa construção sintática já está muito difundida entre falantes cultos ele tenta acabar com ela acusando esses falantes cultos de agirem como índios isto é na concepção preconceituosa dele como pessoas rudes brutas ignorantes É como se ele quisesse exterminar o para mim fazer do mesmo modo como os conquistadores do continente americano exterminaram centenas de nações indígenas comenta Emília indignada É uma comparação bastante forte diz Irene mas eu entendo a sua raiva Emília Aliás tenho observado que essa é a tática preferida desses paragramáticos culpar o falante culto de maltratar a língua baixar a autoestima lingüística dele para fazêlo sentirse um selvagem por não saber aquelas coisas que os paragramáticos oferecem em seus produtos justificando desse modo a necessidade da existência mesma desses produtos paragramaticais Enfim uma estratégia excelente do ponto de vista mercadológico mas injustificável do ponto de vista pedagógico Injustificável é bondade sua observa Sílvia O poder simbólico da normapadrão que eu citei hoje de manhã acaba se transformando numa verdadeira violência simbólica como diz o sociólogo francês Pierre Bourdieu explica Irene Em vez de ser usada como instrumento para a tal ascensão social como muita gente ingenuamente pensa ser a função dela a normapadrão termina servindo isso sim de mecanismo de exclusão social de separação de segregação Como escreveu o lingüista pág 189 italiano Maurizzio Gnerre a normapadrão serve como um poderoso arame farpado para bloquear o acesso ao poder Quem disse que só eu pode fazer Além disso prossegue Irene esse argumento tradicional de que mim não faz nada está em contradição com regras prescritas pela própria gramática normativa Como assim tia Veja só quem diz que mim não faz nada na verdade está querendo dizer que somente o pronome eu pode exercer a função de sujeito Ora vamos ver se isso acontece de fato Irene escreve na lousa Em todos esses exemplos qual é o sujeito dos infinitivos pergunta Irene Emília Sílvia e Vera observam a lousa com atenção Em seguida Vera diz O sujeito desses infinitivos todos é o pronome me Exatamente Vejam só que delícia exclama Emília Eu nunca tinha reparado nisso Mim não faz nada mas me faz Pois é Emília é isso mesmo confirma Irene Nos enunciados que contêm os verbos mandar fazer sentir deixar ouvir e ver seguidos de infinitivo a gramática normativa exige que se use um pronome oblíquo para ocupar o lugar de sujeito do infinitivo Mas isso é uma contradição tia já que o pronomesujeito de 1a pessoa é eu A forma me só é usada na função de objeto Aí é que está o mais interessante diz Irene Em enunciados como 6 7 e 8 ocorre mais uma vez uma pequena 6 Deixame ver isso 7 Por que você não foi me ver jogar 8 Eu não gosto que me mandem fazer esse tipo de coisa briga pela vaga Os verbos mandar fazer sentir deixar ouvir e ver pedem um objeto direto enquanto o infinitivo pede um sujeito A palavrinha que vier a ocupar a vaga vai ter uma dupla função sintática pág 190 objeto direto do primeiro verbo sujeito do segundo Como o português procede do latim e como em latim essa palavrinha era um pronome oblíquo um pronome acusativo como se chama na gramática latina então a nossa gramática normativa também cobra que essa vaga seja ocupada por um pronome oblíquo Daí o me Por isso não há motivo para dizer que só eu pode exercer função de sujeito o me também pode Mas Irene em frases desse tipo me parece muito mais comum a gente usar o pronome eu do que o pronome me comenta Sílvia Eu mesma por exemplo digo com muito mais naturalidade deixa eu ver do que deixame ver Deixame ver aliás me cheira a puro exibimento a coisa de gente que quer se mostrar que quer deixar claro que fala o português da Rainha que não quer se misturar com a plebe com os índios avalia Emília Esse é mais um exemplo da competição entre duas formas lingüísticas diferentes retoma Irene a primeira conservadora prescrita pela normapadrão e a segunda inovadora fruto das mudanças inevitáveis da língua em seu uso efetivo real Vamos ver o que está acontecendo Irene escreve na lousa Conforme eu disse antes a palavrinha que vier a ocupar a vaga será objeto direto do primeiro verbo e sujeito do segundo A gramática tradicional com os olhos voltados para o passado da língua impõe o uso do pronome me porque era assim em latim A 6a Deixame ver isso 6b Deixa eu ver isso gramática do português do Brasil que está sofrendo um processo de afastamento gradual e contínuo em relação à gramática do português de Portugal e mais ainda é claro em relação à gramática latina decidiuse pelo uso do pronomesujeito eu para exercer as duas funções Parece uma simples questão de escolha não é observa Sílvia Já que não existe uma única forma pronominal para exercer pág 191 as duas funções e já que existem duas formas diferentes de pronome à disposição cada uma das gramáticas escolhe a sua Só que eu gostaria de saber o que é que determina essas escolhas intervém Vera Afinal tia no caso do para mim fazer você falou da hierarquia das regras que ganhava a vaga quem chegasse primeiro etc Ora neste caso o verbo deixar chega primeiro Se é um verbo que pede objeto a gente devia esperar que o pronome tivesse sua forma oblíqua de objeto No entanto a gramática brasileira escolheu o pronomesujeito eu Como explicar essa escolha Essa escolha pode ser explicada por uma regra que neste caso específico é mais forte do que a ordem de chegada uma regra que se sobrepõe a ela na hierarquia das regras As pesquisas estão mostrando que uma das principais diferenças entre o português do Brasil e o português de Portugal está no tratamento dado ao sujeito e ao objeto das orações No Brasil a tendência é enunciar foneticamente o sujeito e apagar o objeto Em Portugal é justamente o contrário apagase o sujeito enunciase o objeto Vamos imaginar a seguinte pergunta Imaginemos agora duas respostas entre as muitas possíveis 9 Quem já foi ver o filme novo do Almodóvar A resposta 9a com seu sujeito explícito e seu objeto apagado tem muito mais probabilidade de ser enunciada por um brasileiro Já a resposta 9b com seu sujeito apagado e seu objeto explicitado tem mais chance de ocorrer na fala de um português ainda mais com o uso do pronome o que praticamente já desapareceu da fala dos brasileiros Cada uma das gramáticas por diversos motivos opta por apagar um dos termos da oração e explicitar o outro Essa preferência brasileira pela realização fonética do sujeito e pelo apagamento do objeto é que comanda o aparecimento do pronome eu Por isso Verinha no momento de preencher a vaga nós escolhemos ocupála pág 192 com um pronomesujeito que vai exercer as duas funções Deixa eu ver em vez de ocupála com um pronome objeto Deixame ver como a gramática normativa cobra da gente só porque é assim que os portugueses falam do outro lado do Atlântico a dez mil quilômetros daqui O deixa eu já é tão automático na nossa fala que ele se transformou em xô não é Irene comenta Sílvia A gente diz mesmo é xovê e não Deixa eu ver muito menos Deixame ver Fico pensando num estrangeiro que tenha aprendido português no país dele só com a gramática normativa Quando chega aqui coitado fica ouvindo xovê a toda hora mesmo que o céu esteja muito limpo sem previsão nenhuma de chuva É verdade intervém Emília A gente tem até aquela brincadeirinha de dizer Se chover molha quando alguém pede para ver alguma coisa que está com a gente dizendo Xovê Aposto que os gramatiqueiros acham que isso também é língua de índio Esse tipo de contração acontece quando uma expressão é muito usada muito freqüente na fala explica Irene A palavra embora por exemplo originouse da contração de em boa hora Mal 9a Eu vi ontem 9b Vio ontem dá para acreditar também que o nosso você um dia já foi Vossa Mercê Aliás a contração não parou em você já que é muito comum a gente usar apenas a sílaba cê Cê veja como são as coisas graceja Emília Em francês acontece algo semelhante com a oração Je ne sais pas que significa Eu não sei diz Irene Os franceses reduziram essas quatro sílabas a duas pronunciadas xepá No inglês americano a oração I have got to eu tenho de se contraiu em I gotta Não é à toa que os gramáticos e os paragramáticos se desesperam tanto comenta Sílvia sorrindo Nós brasileiros somos mesmo uns rebeldes não Onde devíamos dizer eu dizemos mim Onde devíamos usar me usamos eu Onde devíamos dizer Deixame ver dizemos xovê É ou não é para arrancar os cabelos Daí a importância que eu atribuo à formação contínua ininterrupta do professor de português diz Irene Não dá mais para ficar parado no tempo agarrado à gramática normativa e pág 193 aos dogmas tradicionais lamentando a ruína a corrupção a decadência da língua portuguesa É preciso que o professor de português se apodere do instrumental teórico que a ciência lingüística pode lhe oferecer e transforme isso em prática de ensino É fundamental que ele esteja sempre a par do que está acontecendo em termos de investigação de pesquisa de avanço teórico no seu campo de estudo Participar de congressos de especialistas acompanhar tanto quanto possível o ritmo das publicações de artigos revistas monografias livros teses etc Se não fizer isso vai acabar se transformando num mero papagaio repetidor da doutrina tradicional cheia de contradições e incoerências e se deixando engambelar pelos vendilhões do templo gramatiqueiro que tentam nos convencer de que só eles podem salvar o português do desaparecimento Irene apaga a lousa esfrega as mãos para tirar o pó de giz que há em seus dedos reúne seus papéis Percebe então que as três jovens estão olhando muito fixamente para ela O que foi pergunta a professora intrigada Acabou quer saber Vera Acabou responde Irene Que pena exclama a sobrinha em tom melancólico Mas vocês vão mesmo embora amanhã Verinha não íamos ter mais como continuar nosso curso Além disso já esgotei o material do meu livro As três alunas assumem um ar visivelmente tristonho Para animálas Irene propõe A não ser que Elas logo se interessam e os olhos brilham A não ser que vocês queiram fazer uma prova sugere Irene sorrindo Afinal depois de um curso intensivo como este eu preciso saber o que foi que ficou na cabecinha de vocês E como vai ser essa prova interessase Emília É claro que não vai ser uma prova tradicional não é diz Sílvia Afinal você não é uma professora tradicionalista Graças a Deus não sorri Irene Acho prova a coisa mais tola que já inventaram na escola Existem Oitocentos milhões de outras maneiras de você avaliar o conhecimento dos alunos todas elas muito mais interessantes e eficazes que prova pág 194 Concordo plena e irrestritamente diz Emília Mas afinal tia em que é que você está pensando Uma coisa muito simples mas divertida responde Irene É o seguinte Eu vou dar para vocês um texto escrito numa variedade de português nãopadrão Vocês vão lêlo analisálo e ver se encontram nele exemplos dos fenômenos que nós estudamos aqui Depois de tantas explicações e teorias acho que seria bom se vocês pudessem como se diz pôr a mão na massa Topam Elas dizem em coro que sim Então vamos até lá no meu escritório para eu tirar as cópias pág 195 PONDO A MÃO NA MASSA oje último dia das férias as três hóspedes de Irene despertam cedo Assim foi combinado para que possam aproveitar a manhã para fazer o exercício que Irene lhes propôs ontem À tarde a professora vai corrigir a prova e às oito horas da noite elas tomam o ônibus para São Paulo O texto que Irene lhes ofereceu para a análise é na verdade um poema escrito pelo poeta sertanejo Antonino Sales Melancolia do corpo e da alma Depois de lerem e relerem juntas o poema Emília Vera e Sílvia discutem entre si os diversos aspectos que lhes parecem os mais relevantes para a análise pedida por Irene Estão muito animadas com a tarefa sublinham palavras põem suas idéias por escrito consultam suas anotações Por volta das três horas conforme o combinado reúnemse todas na escolinha para a última aula daquelas férias Irene abre a conversa perguntando E então Conseguiram descobrir muita coisa Muita responde Vera E por onde querem começar Que tal começar pelo título propõe Sílvia Nós entendemos que malinculia é em portuguêspadrão MELANCOLIA mas não sabemos como explicar essa transformação Então vamos lá animase Irene Realmente esse título é muito interessante Como a Sílvia disse malinculia é a forma não padrão de MELANCOLIA Esta é uma palavra que tem uma história que vale a pena contar Para começar MELANCOLIA é grego puro É formada de melan negro preto escuro sombrio mais kholê bile A bile ou bílis como vocês se lembram das aulas de Biologia é aquele líquido viscoso e esverdeado produzido pelo fígado e que ajuda na digestão MELANCOLIA para os gregos antigos é um estado doentio H é estar com a bile preta pág 196 MALINCULIA Antonino Sales 1 Malinculia Patrão 34 Numa lembrança apagada 2 É um suspiro maguado 35 No rumance dum amô 3 Qui nace no coração 36 Numa coisa já passada 4 É o grito safucado 37 Num sonho que se afindô 5 Duma sodade iscundida 38 A tá da malinculia 6 Qui nos fala do passado 39 Não tem casa onde morá 7 Sem se torná cunhicida 40 Ela veve noite e dia 8 É aquilo qui se sente 41 Os coração a rondá 9 Sem se pudê ispricá 42 Não tem corpo não tem arma 10 Qui fala dentro da gente 43 Não é home nem muié 11 Mas qui não diz onde istá 44 E ninguém lhe bate parma 12 Malinculia é tristeza 45 Pru caso de sê quem é 13 Misturada cum paxão 46 Ela se isconde num bejo 14 Vibrando na furtaleza 47 Qui foi dado há muntos ano 15 Das corda do coração 48 Malinculia é desejo 16 Malinculia é qui nem 49 É cinza de disingano 17 Um caminho bem diserto 50 Malinculia é amô 18 Onde não passa ninguém 51 Pulo tempo sipurtado 19 Mas nem purisso bem perto 52 Malinculia é a dô 20 Uma voz misteriosa 53 Qui o home sofre calado 21 Relata munto baxinho 54 Quando lhe vem à lembrança 22 Umas história sodosa 55 Passages da sua vida 23 Cheias de amô e carinho 56 Juras de amô isperança 24 Seu moço malinculia 57 Na mucidade culhida 25 É a luz isbranquiçada 58 É tudo o que pode havê 26 Dos ano qui se passô 59 Guardado num coração 27 É ternura é aligria 60 É uma histora que se lê 28 É uma frô prefumada 61 Sem forma de ispricação 29 Mudando sempre de cô 62 Pruquê inda vai nacê 30 Às vez ela vem na prece 63 O home ou mermo a muié 31 Qui a gente reza sozinho 64 Capacitado a dizê 32 Otras vez ela aparece 65 Malinculia o qui é 33 No canto dum passarinho pág 197 Ai que feio exclama Emília Sempre achei essa palavra tão bonita um sentimento tão romântico e vêm esses gregos estragar tudo Mas o que tem a ver estar com a bile preta e sentir melancolia quer saber Vera Afinal melancolia não é tristeza saudade depressão Justamente responde Irene Acontece que os antigos médicos gregos Hipócrates lembramse dele o pai da Medicina acreditavam que o nosso corpo quando doente produzia determinados líquidos chamados humores que afetavam o estado emocional da pessoa Um desses supostos líquidos produzido pelo fígado seria essa bile preta melankholê que deixaria a pessoa triste cabisbaixa saudosa deprimida Enfim um mau humor Quer dizer que as expressões bom humor e mau humor vêm daí também admirase Sílvia Exatissimamente confirma Irene Com o tempo porém se descobriu que essa tal bile preta nunca existiu era pura fantasia dos médicos gregos Mas a palavra melancolia já tinha criado raízes na língua e continuou viva indicando este estado de espírito mesmo depois que aquela crença na existência de uma bile preta foi abandonada Os latinos chegaram até a criar uma palavra própria tradução direta do grego atrabílis de atra preta e bílis Daí vem o horroroso adjetivo português atrabiliário Muito interessante essa transformação do sentido da palavra comenta Sílvia Antes designava uma sensação física uma suposta doença do corpo e depois passou a designar um sentimento uma doença da alma Você tem toda razão diz Irene E é curioso como existem várias outras palavras que marcam essa mesma suposta relação entre doença do corpo e determinado estado emocional É mesmo Quais interessase a estudante de Psicologia Veja por exemplo cólera que é uma doença terrível e também um estado de ira de raiva A própria raiva que é a doença transmitida pelos animais domésticos Quem pega a doença fica raivoso isto é enfurecido A pessoa dengosa originalmente era a pessoa acometida de dengue doença transmitida por um mosquito e que deixa a pessoa mole pág 198 Gente do céu exclama Emília Nunca mais deixo ninguém me chamar de dengosa Irene sorri e prossegue Estar agoniado que hoje significa aflito angustiado penalizado vem do grego agonia luta contra a morte um termo médico usado para descrever o conjunto de fenômenos que aparecem na fase final de doenças agudas ou crônicas e anunciam a morte A náusea pode ser física ou emocional o mesmo acontecendo com o nojo e o enjôo embora essas palavras tenham surgido primeiro para designar sensações meramente físicas E o mesmo vale para desgosto onde a presença do gosto deixa bem clara a relação entre sentido físico e sentimento moral Aliás o mesmo verbo sentir serve para indicar a sensação física e o sentimento da alma Sabe o que é que tudo isso prova intervém Sílvia Que é impossível separar corpo e alma embora muitas escolas filosóficas e religiosas ocidentais tenham tentado O que afeta o corpo também afeta o espírito e viceversa Estou vendo que teremos uma excelente psicóloga daqui a algum tempo diz Irene sorrindo Mas voltando ao nosso título intervém Vera Como foi que MELANCOLIA se transformou em malinculia A forma padrão MELANCOLIA tem diversos equivalentes na língua nãopadrão responde Irene Malinculia malincunia malencolia malinconia Esta última forma malinconia curiosamente é a forma oficial padrão do italiano moderno língua que também registra as mesmas outras formas do PNP classificadas de regionais pelos dicionários italianos A forma derivada diretamente do grego MELANCOLIA existe na língua dos nossos avós italianos mas é considerada de uso exclusivamente literário Que engraçado comenta Vera As formas que hoje sobrevivem no PNP são arcaísmos quer dizer formas que eram utilizadas antigamente mesmo na língua culta e que foram substituídas por outras formas mais próximas do original grego O que aconteceu para que houvesse tantas formas diferentes para MELANCOLIA tanto em português quanto em italiano quer saber Vera pág 199 Para começar responde Irene houve uma troca de L por N que é um fenômeno muito comum Estas duas consoantes são parentes próximas são dentais como vimos alguns dias atrás e o fato de serem produzidas dentro da boca em pontos muito próximos um do outro faz com que acabe havendo trocas de uma pela outra Veja por exemplo o latim LIVELLU que deu em português padrão NÍVEL e em francês padrão NIVEAU O árabe NARANJA deu a nossa LARANJA Existe na língua portuguesa literária a palavra ALIMÁRIA que provém do latim ANIMALIA aqui também aconteceu a rotacização L R Isso também aconteceu com a palavra ALMA não é pergunta Sílvia Afinal em latim se dizia ÁNIMA Exato confirma Irene Primeiro ÁNIMA se reduziu a ÁNMA com a tendência a reduzir em paroxítona as proparoxítonas como já estudamos também Depois houve a permuta do N pelo L para que a palavra se enquadrasse melhor na índole da língua portuguesa que não aceita bem o encontro NM Agora estou entendendo por que o nome da zeladora da escola é ALICE e todo mundo chama ela de Nicinha diz Emília Ela também diz o liforme em vez de UNIFORME e lebrina em vez de NEBLINA E deve ser também isso que explica por que as criancinhas dizem ilimigo em vez de INIMIGO Bem lembrado Emília cumprimenta Irene No caso do título do nosso poema a palavra MELANCOLIA também apresenta uma grande quantidade de sons vocálicos diferentes que acabam fazendo combinações diversas numa grande variação harmônica como discutimos ao tratar do sotaque paulistano Reparem que essa mesma combinação vocálica está presente no poema nas palavras safucado v 4 iscundida v 5 cunhicida v 7 furtaleza v 14 aligria v 27 rumance v 35 veve v 40 disingano v 49 sipurtado v 51 mucidade culhida v 57 Parece que as palavras compridas como MELANCOLIA estão mais sujeitas a estes intercâmbios de vogais No português antigo o nome BARTOLOMEU tinha a forma Bertolameu e JERÔNIMO era Jirólimo onde vemos de novo a troca do N por L Aliás em italiano JERÔNIMO é GERÓLAMO nome do meu avô materno pág 200 Análise do poema Quero ver agora o que vocês descobriram no poema diz Irene Uma coisa que eu notei e que já tenho reparado também na fala de muita gente é a eliminação do R final como aparece aqui em ispricá v 9 frô v 28 cô v 29 amô v 35 dô v 52 havê v 58 nacê v 62 muié v 63 observa Sílvia Isso talvez se explique pela tendência que a língua portuguesa tem de terminar toda palavra sempre com uma vogal sugere Irene Aquela história da rotacização do L que a gente viu nas primeiras aulas está bem marcada aqui diz Vera É uma tendência muito antiga na língua e o poema dá muitos exemplos dela ispricá v 9 frô v 28 ispricação v 61 Também nas palavras arma v 42 para ALMA e parma v 44 para PALMA Este é um tipo de rotacismo diferente daquele que vimos explica Irene Mas ele agiu por exemplo na transformação do árabe ALMAKHAZAN no português padrão ARMAZÉM No verso 5 aparece a palavra sodade diz Emília que você nos apresentou E no verso 22 temos sodosa Outras reduções do ditongo OU em ô aparecem em passô v 26 e otras v 32 além das formas paxão v 13 baxinho v 21 e bejo v 46 que podemos explicar como efeitos da assimilação Muito bem comemora Irene E a questão dos plurais redundantes A eliminação dos plurais redundantes está bem demons trada no poema responde Sílvia Temos das corda do coração v 15 umas história sodosa v 22 dos ano qui se passô v 26 às vez v 30 otras vez v 32 os coração a rondá v 41 há muntos ano v 47 A famosa desnasalização da sílaba postônica diz Vera olhando de soslaio para Emília aparece nos versos 43 e 63 home e no verso 55 passages A palavra muié que aparece nos versos 43 e 63 me fez lembrar de toda aquela história sobre a Revolução Francesa e tudo mais diz Sílvia pág 201 Eu tenho dúvidas sobre o caso da palavra prefumada v 28 diz Vera Não me lembro de termos estudado esse fenômeno E de fato não estudamos confirma Irene Mas a explicação é simples O português herdou do latim os prefixos pre per e pro que tinham usos bem definidos em latim mas que acabaram se confundindo em português Nos inícios da nossa língua estes prefixos foram usados indiscriminadamente na formação de palavras criando formas paralelas como perguntar e preguntar Com o tempo o vocabulário foi sendo regulado oficialmente foi sendo padronizado e certas formas foram eleitas como as certas em detrimento das outras A forma perguntar por exemplo que é a certa hoje em dia deriva na verdade de um latim precunctare mais próximo portanto da suposta forma errada não padrão preguntar que por sinal é a forma certa do espanhol padrão Meu Deus que rolo exclama Emília Essa flutuação no uso dos prefixos é o que explica a forma prefumada e também várias formas nãopadrão como precurar percurar prefessora projudicar entre outras Reparem que a língua padrão conservou duas formas derivadas de seguir PERSEGUIR e PROSSEGUIR O francês para estes dois significados tem uma palavra só POURSUIVRE e o tradutor brasileiro que se vire para saber se é perseguir ou prosseguir Além disso em certas áreas do Nordeste temos a deliciosa palavra prissiga que é o ato de prissiguir perseguir alguém importunandoo incomodandoo Neste caso o prefixo pre transformouse em pri por influência do I tônico da raiz siga Irene é impressionante o tanto que a gente pode aprender com os supostos erros do português nãopadrão diz Emília É verdade concorda Sílvia Aprendemos a história da nossa normapadrão seu funcionamento e até um pouco de grego e latim misturado com italiano e francês Sem falar é claro de podermos saborear as delícias de um lindo poema popular arremata Vera pág 202 A PRIMEIRA SEMENTE considerações finais por enquanto gora que vocês puseram a mão na massa e se saíram tão bem diz Irene eu gostaria de tentar fazer junto com vocês uma conclusão geral do nosso curso Como eu já tinha avisado no nosso primeiro encontro o nosso trabalho não mostrou nem quis nem poderia mostrar todas as características que diferenciam as variedades nãopadrão marginalizadas e vítimas de preconceitos do portuguêspadrão norma oficial prestigiada A minha esperança é de que alguns princípios essenciais tenham ficado claros e sirvam de apoio para uma nova maneira de encarar as variedades nãopadrão Que princípios são esses pergunta Vera Podemos resumilos assim diz Irene distribuindo a última de suas folhas impressas onde as três jovens lêem A a unidade lingüística do Brasil é um mito em nosso país além das línguas indígenas e das línguas trazidas pelos imigrantes falase diferentes variedades da língua portuguesa cada uma delas com características próprias com diferenças em seu status social mas todas com uma lógica lingüística facilmente demonstrável falar diferente não é falar errado tudo o que parece erro no PNP tem uma explicação lógica científica lingüística histórica sociológica psicológica traços característicos do PNP considerados erros se encontram em outras línguas o que mostra que eles não são uma prova da ignorância ou da deficiência mental do nosso povo muitos aspectos considerados errados no PNP e no PP do Brasil são na verdade arcaísmos vestígios da língua portuguesa falada muitos séculos atrás pág 203 a língua escrita não deve ser usada como camisadeforça para submeter e aprisionar a língua falada a escrita é tentativa de representação da língua falada e nasceu centenas de milhares de anos depois de o homem ter começado a falar Irene retoma É claro que poderíamos continuar esta lista mas acho que estes poucos princípios já servem de base para construirmos uma nova proposta de abordagem e de tratamento dos problemas causados na escola e na vida pelas diferenças entre a normapadrão e a variedades nãopadrão Semente flor fruto Depois de uma breve pausa ela volta a falar Descrever toda a gramática do PNP isto é todas as regras de seu funcionamento é uma tarefa difícil e trabalhosa A minha intenção aqui com vocês e também no livro que estou preparando é bem menos ambiciosa Eu simplesmente quero deixar claro que o sinal que temos de colocar entre PNP e PP é um sinal de diferença e não um sinal de inferioridade Parece tão simples não é Vejam como é fácil Ela vai até a lousa e escreve Mas fazer o X na lousa ou no papel é muitíssimo mais simples do que fazêlo na consciência na mente das pessoas Apagar uma idéia tão arraigada no imaginário coletivo destruir um mito muito antigo é uma tarefa árdua complicada que exige um esforço longo e duradouro Pode contar com a gente oferecese Emília pág 204 Parece que estamos lidando aqui com o problema do preconceito não é Irene sugere Sílvia Exatamente Sílvia confirma Irene O preconceito que PNP PP PNP PP pesa sobre o PNP faz parte de toda uma triste coleção de inverdades de distorções de falácias que povoam a mente da maioria das pessoas mesmo as supostamente mais bem informadas Ele está no mesmo porão escuro da nossa imaginação onde se amontoam mitos e preconceitos de toda ordem Enfim um monte de bobagens diz Emília Isso mesmo retoma Irene E é nessa montanha de bobagens nesse lixão que temos dentro da nossa mente que jogamos a língua falada pelas pessoas diferentes de nós criando mais uma ordem de preconceito o preconceito lingüístico Mas não devia ser assim intervém Sílvia em tom emocionado A humanidade já passou por experiências terríveis o bastante pág 205 principalmente no último século para começar racial o índio preguiçoso o negro malandro o japonês trabalhador o judeu mesquinho o português burro sexual a inferiorização da mulher o desprezo pelo homossexual pervertido e doente a valorização do macho rude e indelicado cultural o conhecimento científico valorizado em detrimento do conhecimento popular por exemplo o desprezo por práticas medicinais naturais e tradicionais em favor de medicamentos químicos industrializados ou a valorização da cultura transmitida por escrito em detrimento da cultura transmitida oralmente socioeconômica valorização do rico e do poderoso e desprezo do humilde e do oprimido por exemplo chamar o nordestino de atrasado e o sulista de progressista ou acreditar que tudo o que vem do primeiro mundo é intrinsecamente bom bonito infalível e necessário a aprender que a intolerância a inflexibilidade o fanatismo o desrespeito pelo diferente não levam a lugar nenhum a não ser à violência e à destruição É claro que não podemos modificar o mundo transformar a mente de todas as pessoas prossegue Irene mas podemos começar a dar a nossa pequena contribuição tornando mais claro e respirável o ambiente em que nos movemos diariamente Você tem razão Irene é mesmo uma questão ecológica comenta Emília no sentido mais amplo do termo Afinal gente basta uma pequena semente para fazer brotar e crescer uma árvore enorme que dará muita sombra flores perfumadas e frutos saborosos retoma a professora Quem sabe cada uma de nós não é a generosa jardineira que vai plantar e regar com paciência e amor esta pequena semente pág 206 A PARTIDA a rodoviária de Atibaia estão todos reunidos para a despedida Eulália e Irene Ângelo e Antônia com os filhos Rosa e Gabriel além é claro de Vera Emília e Sílvia Estas foram as melhores férias da minha vida Irene diz Emília abraçandoa com força e beijandolhe várias vezes o rosto Que exagero menina Deixe de ser mentirosa replica Irene sorrindo Mas é verdade Irene intervém Sílvia Eu pelo menos estou saindo daqui completamente diferente de como cheguei Mais gorda provavelmente ironiza Emília Afinal com o tempero da Eulália Não seja boba Emília diz Sílvia você sabe muito bem o que eu quis dizer Beijos abraços despedidas O afeto é tão grande que parece que as três estão de partida para algum lugar muito distante e remoto e não para São Paulo que fica a pouco mais de uma hora dali Eu tenho uma surpresinha final para vocês diz Irene tirando do bolso do vestido um envelope branco O que é tia pergunta Vera curiosa Recebi hoje à tarde uma proposta de uma editora para publicar o meu livrinho sobre o português nãopadrão Que maravilha Irene comemora Sílvia Não se esqueça de que queremos ser as primeiríssimas a receber um exemplar exige Emília com uma dedicatória quilométrica e bem melosa por favor A dedicatória não vai ser problema diz Irene porque ela vai estar impressa em todos os exemplares Como assim admirase Sílvia N Resolvi dedicar o livro a vocês três explica Irene Afinal é o mínimo que posso fazer por quem teve tanta paciência em servir de cobaia para os meus testes científicos As três jovens visivelmente emocionadas abraçam Irene com carinho E já sabe como vai se chamar o livro pergunta Vera pág 207 Estou com uma idéia quero ver o que vocês acham responde Irene E qual é interessase Emília sempre curiosa Infelizmente não pode ser Emília no país da gramática porque o Monteiro Lobato já escreveu um livro com esse título perfeito Ai meu Deus como é metida exclama Vera Irene percebe que Eulália se afastou um pouco para comprar pipoca com os netos Aproveita a chance para dizer Quero fazer uma surpresa para a Eulália Estou pensando em dar ao livro o título de A Língua de Eulália Afinal foi observando a variedade lingüística dela que me veio a idéia de estudar o assunto O que acham Que idéia mais linda tia comovese Vera Você realmente não existe E o título tem um detalhezinho lingüístico interessante ainda por cima revela Irene O nome Eulália em grego quer dizer a que fala bonito a que fala bem a que fala certo Não é uma delícia Eulália e os netos se aproximam para as despedidas Emília e Sílvia insistem para que todos vão visitálas em São Paulo As três entram no ônibus que não demora a partir Na plataforma da rodoviária Irene fica acenando com o envelope da editora na mão e um sorriso a iluminar seu rosto pág 208 MAIS DUAS PALAVRINHAS E SUGESTÕES DE LEITURA uitas das idéias apresentadas pela professora Irene neste livro fazem parte de um ramo da ciência da linguagem chamado Sociolingüística que estuda as correlações entre fenômeno lingüístico e fato social Aliás foi a leitura de um texto do sociolingüista norte americano William Labov que me inspirou a escrever este livro Em seu famoso artigo The Logic of Nonstandard English A lógica do inglês nãopadrão de 1969 Labov mostrou que o inglês nãopadrão dos Estados Unidos falado sobretudo pelos negros em seus guetos não era o inglês corrompido de uma raça inferior mas apenas um inglês diferente com uma lógica lingüística própria A canção Cuitelinho na doce interpretação de Nara Leão foi recolhida por Paulo Vanzolini e faz parte do CD Música Popular do CentroOeste Sudeste volume 4 da gravadora Marcus Pereira Os dados e estatísticas referentes a Os Lusíadas se encontram no índice analítico do vocabulário de Os Lusíadas de Antônio Geraldo da Cunha Rio de Janeiro Presença 2a edição 1980 e em Camões e a poesia brasileira de Gilberto Mendonça Teles Rio de Janeiro MECUFF FCRB 1973 O poema Malinculia de Antonino Sales me foi apresentado pela professora Maria da Piedade de Sá que também me chamou a atenção para o estudo de Manuel Said Ali sobre o pronome se Aproveito também para agradecer a leitura cuidadosa dos originais feita pelo professor Rodolfo Ilari que fez observações que me ajudaram a aprimorar a versão final do livro Quero agradecer também a Sonia Alexandre e a Júlia Francisca Bagno por tudo o que fizeram por este livro Esta nova edição contou com a leitura e os comentários aos novos capítulos da parte da professora Stella Maris BortoniRicardo a quem agradeço muito Foi ela aliás que me fez conhecer a Sociolingüística e me apaixonar por este campo de estudo Os M leitores interessados em se aprofundar nestas questões podem consultar com bom proveito as obras relacionadas a seguir pág 209 BECHARA Evanildo Ensino da gramática Opressão Liberdade São Paulo Ática 2ed 1986 Escrito por um dos nossos mais importantes gramáticos grande conhecedor da norma padrão este livro propõe um ensino de língua que torne o aluno um poliglota dentro de sua própria língua isto é capaz de usar as diversas variedades da língua de acordo com sua adequabilidade aos diferentes contextos de uso do idioma BORTONIRICARDO Stella Maris Problemas de comunicação interdialetal em Sociolingüística e ensino do vernáculo Revista Tempo Brasileiro Rio de Janeiro n 7879 1984 A professora Stella Maris Bortoni de quem tive a honra de ser aluno em Brasília é uma das principais sociolingüistas do Brasil Considero este artigo tão importante quanto o de Labov sobre o inglês nãopadrão por causa das questões políticas que ele suscita CARVALHO Marlene Guia prático do alfabetizador São Paulo Ática 1994 Este livro complementa o Guia teórico do alfabetizador da profa Miriam Lemle citado mais adiante CASTILHO Ataliba T A língua falada e o ensino de português São Paulo Contexto 1998 Escrito por aquele que é sem dúvida o nome mais importante hoje nos estudos do português do Brasil este livro traz propostas práticas para a abordagem dos fenômenos da língua falada em sala de aula fenômenos que sempre foram desprezados pelo ensino tradicional que só se concentrava na língua escrita literária clássica CUNHA Celso Língua portuguesa e realidade brasileira Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1968 Leitura obrigatória para todos os brasileiros escrito por um dos nossos mais importantes filólogos este livro já se tornou um clássico Embora em suas gramáticas Celso Cunha conserve uma atitude basicamente tradicionalista em seus textos teóricos ele se mostra muito mais aberto às novas idéias lingüísticas pág 210 Língua nação e alienação Rio de Janeiro Nova Fronteira 1981 Contém um importante artigo chamado Política e cultura do idioma FARACO Carlos Alberto Escrita e alfabetização São Paulo Contexto 1992 Trata das dificuldades ortográficas do domínio da linguagem escrita e das variedades dialetais em relação à alfabetização GERALDI J Wanderley org O texto na sala de aula São Paulo Ática 2a ed 1999 Coletânea de textos de vários autores sobre os problemas de ensino de redação leitura e gramática Destaque especial para os textos do próprio Geraldi e de Sírio Possenti GNERRE Maurizzio Linguagem escrita e poder São Paulo Martins Fontes 1985 É o livro que mais se aproxima das minhas posições pessoais sobre a questão social da linguagem Escrito num estilo direto e franco sem papas na língua pondo o dedo em muitas feridas HAUY Amini Boainain Da necessidade de uma gramáticapadrão da língua portuguesa 4ed São Paulo Ática 1994 Mostrando as deficiências das atuais definições de conceitos na gramática normativa a autora propõe uma revisão e uma reelaboração da gramática do portuguêspadrão HOUAISS Antônio O português no Brasil Rio de Janeiro Unibrade 1985 Retraça a história da língua portuguesa no Brasil sua situação atual bem como a importância do português no cenário mundial das línguas ILARI Rodolfo A lingüística e o ensino da língua portuguesa 2ed São Paulo Martins Fontes 1986 Mais um livro que se aproxima bastante dos nossos próprios pontos de vista O autor mostra o perigo que o ensino da Lingüística representa para os valores conceitos e preconceitos há muito arraigados na teoria e na prática dos nossos cursos de Letras pág 211 KOCH Ingedore V A interação pela linguagem São Paulo Contexto 1997 Dispensa comentários todos os livros da professora Ingedore Koch merecem ser lidos com atenção LEMLE Miriam Guia teórico do alfabetizador 5ed São Paulo Ática 1991 Livro extremamente agradável de leitura muito acessível que apresenta aos professores de classes de alfabetização os fundamentos teóricos de que precisam para compreender os fatos da língua com que lidam no diaadia Pode ser complementado com o Guia prático do alfabetizador de Marlene Carvalho já citado LUFT Celso Pedro Língua e liberdade 3ed São Paulo Ática 1994 O autor mostra como a nossa tradição de ensino da língua portuguesa é repressiva autoritária valendose muitas vezes de regras irrelevantes e até contraditórias Propõe uma reformulação do ensino capaz de despertar o espírito crítico do aluno NEVES Maria Helena de Moura Gramática na escola São Paulo Contexto 1990 Fundamental para conhecermos a visão que os próprios professores do ensino público têm da importância da gramática e do ensino da língua e das dificuldades de desempenhar sua tarefa O livro critica a orientação atual do ensino da língua baseado em critérios formais e propõe uma nova orientação a funcionalista NOSELLA Maria de Lourdes As belas mentiras São Paulo Moraes 1979 A autora analisa livros didáticos de língua portuguesa e mostra de que maneira eles tentam reproduzir a ideologia das classes dominantes preparando os alunos das classes dominadas a preservar os valores da elite e a ocupar papéis subalternos na sociedade ORLANDI Eni Pulcinelli org Política lingüística na América Latina Campinas Pontes 1988 Coletânea de ensaios de estudiosos brasileiros e latinoamericanos acerca dos problemas pág 212 políticos e culturais que envolvem as questões lingüísticas em diversos países do continente PEREZ José Roberto Rus Lição de português tradição e modernidade no livro escolar CampinasSão Paulo UnicampCortez 1991 Estudo da teoria que subjaz nos livros didáticos de língua portuguesa e literatura brasileira Importante análise do papel político econômico e educacional dos manuais escolares PERINI Mário A Para uma nova gramática do português 2ed São Paulo Ática 1985 O autor mostra as inconsistências das definições e conceitos da gramática tradicional e propõe uma nova abordagem baseada nos avanços da pesquisa lingüística atual Sofrendo a gramática São Paulo Ática 1997 Neste livro que reúne textos curtos mas bastante incisivos o autor prossegue suas análises sobre as incongruências do ensino tradicional da gramática a matéria que ninguém nunca aprende PINTO Edith Pimentel A língua escrita no Brasil São Paulo Ática 1986 Interessante discussão sobre o verdadeiro status da língua portuguesa do Brasil baseada na história da língua e na sua diferenciação desde que chegou ao nosso país O português popular escrito São Paulo Contexto 1990 Prosseguindo os estudos do livro anterior este trabalho da autora analisa a língua portuguesa nãopadrão do Brasil na sua forma escrita POSSENTI Sírio Por que não ensinar gramática na escola Campinas Mercado de LetrasALB 1996 Um livro que como diz o próprio autor é primo deste A Língua de Eulália Em linguagem clara e com argumentos muito bem defendidos o autor analisa os diferentes conceitos inclusive os políticos pág 213 e ideológicos contidos no termo gramática e sugere as bases em que realmente deve se estabelecer o ensino de língua na escola PRETI Dino Sociolingüística os níveis da fala 7ed São Paulo Edusp 1994 Boa introdução para quem deseja se aventurar no terreno da Sociolingüística RAMOS Jânia O espaço da oralidade em sala de aula São Paulo Martins Fontes 1997 Como abordar a língua falada na escola A autora dá sugestões práticas de exercícios e atividades que podem valorizar a linguagem oral sempre tão desprezada pelo ensino tradicional SILVA Myrian Barbosa da Leitura ortografia e fonologia 2ed São Paulo Ática 1993 Estudo sobre a problemática relação entre língua falada e língua escrita entre realidade fonética e ensino da ortografia O prefácio de Miriam Lemle é muito importante para os pontos de vista que defendemos aqui SILVA Rosa Virgínia Mattos e Tradição gramatical e gramática tradicional 2ed São Paulo Contexto 1994 A autora nos leva até as origens da tradição gramatical na Antiguidade clássica e na Idade Média e nos mostra como muitos desses conceitos antigos ainda estão vigentes na gramática que se ensina hoje em dia Contradições no ensino de português São Paulo Contexto 1997 Mais um excelente trabalho da profa Rosa Virgínia discutindo desta vez o problemático conceito de norma e suas implicações para o ensino O último capítulo resume importantes pesquisas sobre o português do Brasil mostrando a distância que existe entre a língua realmente usada no país e aquela que a escola insiste em continuar ensinando SILVA NETO Serafim da Introdução ao estudo da língua portuguesa no Brasil 5ed Rio de Janeiro Presença 1986 Escrito em pág 214 1950 este livro foi pioneiro na tentativa de analisar a língua portuguesa do Brasil suas características peculiares sua história Leitura fundamental embora tenha de ser feita sempre com um olhar crítico pois o autor em certos momentos ainda se baseia em alguns conceitos tradicionais já considerados ultrapassados pela Lingüística atual SOARES Magda Linguagem e escola uma perspectiva social 10 ed São Paulo Ática 1993 Leitura imprescindível para todas as pessoas que têm um mínimo interesse nos problemas da Educação que como enfatiza a autora não são problemas meramente pedagógicos mas problemas políticos SOUZA Álvaro José de Geografia lingüística dominação e liberdade São Paulo Contexto 1990 O autor estuda a imposição de línguas oficiais e a conseqüente marginalização das línguas nãopadrão a fala como ato político e a dominação exercida por meio da linguagem TARALLO Fernando A pesquisa sociolingüística São Paulo Ática 1985 Oportuna introdução aos métodos e técnicas da Sociolingüística escrita em linguagem clara e acessível TFOUNI Leda Verdiani AAdultos não alfabetizados o avesso do avesso Campinas Pontes 1988 Livro bastante técnico mas muito importante para a compreensão dos problemas relativos aos conceitos de escrita alfabetização e letramento Entre outras coisas a autora desmente o mito de que pessoas não alfabetizadas são incapazes de raciocínio lógico pág 215 EEssttaa oobbrraa ffooii ddiiggiittaalliizzaaddaa ee rreevviissaaddaa ppeelloo ggrruuppoo D Diiggiittaall SSoouurrccee ppaarraa pprrooppoorrcciioonnaarr ddee m maanneeiirraa ttoottaallm meennttee ggrraattuuiittaa oo bbeenneeffíícciioo ddee ssuuaa lleeiittuurraa ààqquueelleess qquuee nnããoo ppooddeem m ccoom mpprráállaa oouu ààqquueelleess qquuee nneecceessssiittaam m ddee m meeiiooss eelleettrrôônniiccooss ppaarraa lleerr D Deessssaa ffoorrm maa aa vveennddaa ddeessttee eebbooookk oouu aattéé m meessm moo aa ssuuaa ttrrooccaa ppoorr qquuaallqquueerr ccoonnttrraapprreessttaaççããoo éé ttoottaallm meennttee ccoonnddeennáávveell eem m qquuaallqquueerr cciirrccuunnssttâânncciiaa AA ggeenneerroossiiddaaddee ee aa hhuum miillddaaddee éé aa m maarrccaa ddaa ddiissttrriibbuuiiççããoo ppoorrttaannttoo ddiissttrriibbuuaa eessttee lliivvrroo lliivvrreem meennttee AAppóóss ssuuaa lleeiittuurraa ccoonnssiiddeerree sseerriiaam meennttee aa ppoossssiibbiilliiddaaddee ddee aaddqquuiirriirr oo oorriiggiinnaall ppooiiss aassssiim m vvooccêê eessttaarráá iinncceennttiivvaannddoo oo aauuttoorr ee aa ppuubblliiccaaççããoo ddee nnoovvaass oobbrraass SSee qquuiisseerr oouuttrrooss ttííttuullooss nnooss pprrooccuurree hhttttppggrroouuppssggoooogglleeccoom mggrroouuppVViicciiaaddoosseem mLLiivvrrooss sseerráá uum m pprraazzeerr rreecceebbêêlloo eem m nnoossssoo ggrruuppoo hhttttppggrroouuppssggoooogglleeccoom mggrroouuppVViicciiaaddoosseem mLLiivvrrooss hhttttppggrroouuppssggoooogglleeccoom mggrroouuppddiiggiittaallssoouurrccee Impressão e acabamento GRÁFICA PAYM Tel 011 43923344 A Língua de Eulália Novela Sociolinguística A língua de Eulália é antes de tudo uma ponte sempre reivindicada mas até então não construída entre o saber acadêmico quase esotérico nas ciências linguísticas e o cidadão comum que tem o direito de conhecer mais sobre sua língua seus usos sua história sua dimensão como instrumento identitário E Marcos Bagno constrói a ponte sem trivializar a informação científica Stella Maris BortoniRicardo PhD University of Lancaster O autor faz um terno circunscrito à academia aos especialistas passar pela esfera dos mortais dos nãoiniciados de tal forma que conseguiu prender até a atenção do leitor não muito familiarizado com o assunto Sérgio Smira professor de Português e escritor O Estado de S Paulo 16 de fevereiro de 1998 O autor busca derrubar o preconceito linguístico na alfabetização Revista Nova Escola março de 1998