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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação CIP Câmara Brasileira do Livro SP Brasil Nitrini Sandra Literatura Comparada história teoria e crítica Sandra Nitrini São Paulo Editora da Universidade de São Paulo 1997 Acadêmica 16 Bibliografia ISBN 8531404223 1 Literatura comparada 2Literatura História e crítica I Título II Série 974806 CDD809 Índices para catálogo sistemático 1 Literatura comparada 809 Direitos reservados à Edusp Editora da Universidade de São Paulo Av Prof Luciano Gualberto Travessa J 374 6º andar Ed da Antiga Reitoria Cidade Universitária 05508900 São Paulo SP Brasil Fax 011 2116988 Tel 011 8138837 r 216 Printed in Brazil 1997 Foi feito o depósito legal CONCEITOS FUNDAMENTAIS Quidquid recipitur recipitur ad modum recipientis S TOMÁS PREÂMBULO Vimos o panorama da trajetória da literatura comparada consubstanciada sobretudo em três tendências a francesa a americana e a dos países do Leste europeu ou inserida em sua tradição teórica com premissas de ordem positivista fenomenológica da obra literária e de dialética entre a sociedade e a literatura respectivamente Ainda neste panorama tivemos a oportunidade de acompanhar discussões sobre a especificidade desta disciplina no campo dos estudos literários Questão essa ainda irresolvida em termos de um consenso geral Por mais amplo que se desenhe seu campo de estudos no entanto e por mais variadas que sejam as opiniões de especialistas sobre o objeto o método e a finalidade da literatura comparada uma questão medular congrega todas as discussões em torno do conceito 126 Literatura Comparada de influência Seja para afirmála seja para negála seja para transformála seja para substituíla por um novo conceito como o da intertextualidade seja para renovála dentro do contexto da teoria da estética da recepção Como indica o título deste capítulo serão tratados apenas alguns conceitos fundamentais problematizados no decorrer da história da teoria literária e no seu aproveitamento pela literatura comparada com o intuito de trazer a discussão travada em torno deles e de mostrar diferentes caminhos que foram e eventualmente poderão ser seguidos de acordo com a concepção teórica de cada estudioso Conceitos como paródia paráfrase plágio e outros de grande interesse para a literatura comparada não serão contemplados aqui tendo em vista que o objetivo desta parte não consiste em aprofundar toda a questão referente à imitação mas tãosomente em rastrear as distinções entre os conceitos de imitação é de influência tais como foram colocados em manuais de literatura comparada e em comunicações proferidas no âmbito dos congressos da Associação Internacional de Literatura Comparada Na esteira de tais conceitos aparece inevitavelmente o de originalidade Com este último encerrase o núcleo tradicional de conceitos da literatura comparada diretamente ligados à problemática da criação literária Também são direcionadas pelo olhar comparatista as apresentações neste capítulo das teorias da estética da recepção é da intertextualidade Não se encontrará aqui exposições destas teorias fundamentadas em ampla bibliografia mas sobretudo reproduções de posicionamentos de comparatistas quanto às suas contribuições para a renovação da literatura comparada na década de 1970 Cabe portanto ao leitor defrontarse com este capítulo como um espaço para esclarecimento de alguns conceitos e como um elo intermediário entre Percursos Históricos e Teóricos e Literatura Comparada no Brasil INFLUÊNCIA IMITAÇÃO E ORIGINALIDADE Dentre os estudiosos filiados à literatura comparada tradicional sobressaise Cionarescu pela clareza com que deslinda o emaranhado de conceitos como influência e imitação apesar de seu aspecto esquemático e conseqüentemente simplificador e polêmico Começarei expondo suas idéias1 O conceito de influência tem duas acepções diferentes A primeira a mais corrente é a que indica a soma de relações de contato de qualquer espécie que se pode estabelecer entre um emissor e um receptor O estudo da influência de Goethe na França por exemplo compreende um capítulo dedicado às traduções francesas de sua obra como outros sobre as imitações os contatos pessoais as críticas e os estudos publicados na França sobre o autor Nesse caso podese admitir que a influência de Goethe é o mesmo que o total das relações de contato que se pode assinalar entre Goethe e a literatura francesa A segunda acepção é de ordem qualitativa Influência é o resultado artístico autônomo de uma relação de contato2 entendendose por contato o conhecimento direto ou indireto de uma fonte por um autor A expressão resultado autônomo referese a uma obra literária produzida com a mesma independência e com os mesmos procedimentos difíceis de analisar mas fáceis de se reconhecer intuitivamente da obra literária em geral ostentando personalidade própria representando a arte literária e as demais características próprias de seu autor mas na qual se reconhecem ao mesmo tempo num grau que pode variar consideravelmente os indícios de contato entre seu autor e um outro ou vários outros Até certo ponto a influência pode confundirse com a imitação assim como em sua outra acepção confundiase em parte com a difusão Nesse caso o matiz que diferencia as duas noções é que a imitação referese a detalhes materiais como a traços de composição a episódios a procedimentos ou tropos bem determinados enquanto a influência denuncia a presença de uma transmissão menos material mais difícil de se apontar cujo resultado é uma modificação da forma mentis e da visão artística e ideológica do receptor 3 A imitação é um contato localizado é circunscrito enquanto a influência é uma aquisição fundamental que modifica a própria personalidade artisti 1 Cf Cionarescu 1964 e 1966 2 Cionarescu op cit 1964 p 92 3 Idem p 93 ca do escritor A influência distinguese da tradução que se identifica a si mesma e da imitação que se reconhece por um simples cotejo de textos Devemse assinalar aqui os riscos da excessiva simplifica ção de Cionarescu ao tratar de uma possível diferenciação entre os conceitos de imitação e influência no âmbito da literatura comparada sobretudo se tivermos em mente a história do conceito de imitação que ele próprio tem o cuidado de considerar embora também esquematicamente Cionarescu aponta quatro sentidos para imitação O primeiro se refere à mimesis imitação da natureza como fonte de arte Cabe aqui explicitar com a ajuda de Haskell M Block4 que imitação no sentido amplo de imitação da natureza referese ao padrão uniforme ou universal da experiência como norma de arte situandose na tradição platônica Esta imitação não é a representação de uma ação mas a idealização de uma experiência geral ou comum de acordo com a prática dos antigos e com a visão do escritor que é própria de seu tempo Assim concebida a imitação supõe seleção e transposição mais do que mera reprodução5 O segundo sentido vinculase à retórica do Renascimento que aconselhou a imitação dos grandes autores antigos de acordo com princípios e procedimentos que fazem quase sempre uma espécie de adaptação aos cânones e às formas e ao estado de espírito contemporâneos aos gêneros literários em vigor Esta segunda acepção entretanto não vigorou de modo tão límpido e tranquilo como nos faz crer a classificação de Cionarescu Convém não perdermos de vista a história do conceito de imitação e lembrarmos que no Renascimento ocorreu uma confusão entre poética e retórica confusão esta que perdurou nos séculos XVII e XVIII Os comentarores renascentistas comprometidos com a verdade literal a exortação moral e as necessidades de um público específico fundamentaramse sem rigor em Aristóteles Os cânones de verossimilhança e probabilidade ficaram sujeitos a reivindicações contemporâneas tendose apagado a distinção entre poética e história A noção de imitação de Platão como uma cópia literal da realidade externa levou os críticos renascentistas a darem mais importância ao objeto de imitação e ao grau de conformidade entre obra e modelo do que à estrutura artística da obra Deste modo a teoria de imitação de Platão como reflexo colidiu com a da Poética de Aristóteles nesse período em que o conceito de imitação foi usado para descrever a experiência literária Foi uma ironia que a noção literal de imitação conformidade entre a obra e o modelo tão combatida por Aristóteles em sua Poética tenha servido como uma importante fonte de deformação desse conceito durante e depois do Renascimento 6 De modo que a segunda acepção de imitação proposta por Cionarescu não reinou sozinha tendo de conviver com aquela que priorizava não a adaptação mas a conformidade entre a obra e o modelo o que veio a ser prejudicial para a concepção de imitação vinculada a uma experiência de criação literária O terceiro sentido de imitação ligase ao processo de adaptação renascentista que apresentava como resultado um produto literário uma obra escrita cujo título remete sempre ao de seu modelo É comum nos séculos XVI e XVII denominarse imitação não um princípio ou procedimento mas a obra literária que trai a presença destes A tragédia Iphigénie de Racine é uma imitação da tragédia de Eurípides O quarto sentido seria aquele utilizado pelo comparatismo e por meio do qual se verifica uma equivalência entre imitação e influência Provavelmente tal equivalência se explicaria como decorrência da própria concepção de imitação do início do século XVII quando a imitação livre constituía a emulação de grandes modelos do passado como instrumentos pelos quais o escritor podia mostrar sua originalidade Para estabelecer de modo prático a distinção entre influência imitação e tradução Cionarescu recorre aos cinco componentes da obra literária tema compreendido como matéria e organização da narração forma ou molde literário o gênero os recursos estilísti cos expressivos as idéias e sentimentos ligados à camada ideológica e finalmente a ressonância afetiva registro inconfundível da personalidade artística dos grandes escritores O fenômeno da influência limitase à absorção de um ou outro desses aspectos Quanto maior o número de elementos aproveitados da obra de um autor por outro tanto mais ele vaise aproximando da imitação da paráfrase até chegar à tradução quando todos os elementos são considerados Ainda dentro dos pressupostos da literatura comparada tradicional vale a pena trazer aqui o pensamento de Owen Aldridge sobre influência Não pelo teor de sua definição que se revela óbvia mas por sua funcionalidade para a compreensão de uma determinada obra Para Aldridge a influência se define como algo que existe na obra de um autor que não poderia ter existido se ele não tivesse lido a obra de um autor que o precedeu7 Quando semelhanças entre dois autores são suficientemente claras para serem discernidas o historiador literário encontrase diante de material legitimado para seu uso Influência não é algo que se revela no singular na maneira concreta mas deve ser buscada em diferentes manifestações O interesse de Aldridge pela influência é que ela ajuda a expor por que um escritor exprime um pensamento ou um sentimento daquele modo determinado Compreender uma fonte mostra o processo de composição e ilumina o pensamento de um autor Segundo este autor podemos analisar uma passagem altamente poética em Shakespeare e elucidar os valores estéticos que aí encontramos mas não podemos estar seguros de que Shakespeare passou pelo mesmo processo estético e emocional na criação da obra que passamos na nossa experiência de sua interpretação Mas se nós conhecemos que certas passagens de A Tempestade são paráfrases de Montaigne então ficamos sabendo algo concreto sobre o pensamento de Shakespeare e seu processo de composição Apontar influências sobre um autor é certamente enfatizar antecedentes criativos da obra de arte e considerála um produto humano não um objeto vazio Na discussão sobre o conceito de influência nos anos 60 quando já se tinha deflagrado a polêmica entre escola francesa e escola americana de literatura comparada Guillén propõese a encontrar o lugar correto das influências dentro das coordenadas vigentes dos estudos comparatistas agora não mais dominados pela mentalidade genética do século XIX mas caracterizado por campos de estrutura de pensamento8 Guillén trabalha com duas acepções de influência como parte reconhecível e significativa da gênese de uma obra literária e como presença na obra de convenções técnicas pertencendo ao equipamento do escritor e às tradicionais possibilidades de seu meio A primeira acepção trata da relação entre a obra e a experiência do escritor de modo que cada fonte é uma fonte vivida Ela recobre condições genuinamente genéticas Influências desde que desenvolvidas estritamente no nível criativo são experiências individuais de uma natureza particular porque representam uma espécie de intrusão no ser do escritor ou uma modificação A alteração que elas trazem tem um efeito indispensável sobre os estágios subseqüentes da gênese da obra Nesse sentido são forças que se introduzem a si mesmas no processo de criação élans e incitações que acarretam o movimento genético mais além e permitem que o artista prossiga sua elaboração do segundo mundo da literatura As influências tornam o poema possível e são transcendidas por ele seu efeito desaparece freqüentemente na extensão da consciência do escritor Essas incitações genéticas fazem parte da experiência psíquica do escritor As colocações de Guillén que estabelece a distinção entre duas acepções de influência uma delas diretamente relacionada ao ato criador justificam uma interrupção no acompanhamento de suas idéias para dar lugar ao pensamento de um importante poeta moderno Paul Valéry o qual em vários de seus escritos sobretudo naqueles situados entre 1924 e 1927 pronunciouse sobre esse conceito Ao empregar a admirável imagem do leão que é feito de carneiro assimilado9 mais do que lançar uma nova fórmula para uma 7 Aldridge 1963 p 144 8 Ver os capítulos La Hora Francesa Guillén 1985 De Influencias y Convenciones Guillén 1989 e The Aesthetics of Influence in Comparative Literature Guillén 1959 9 Ver Tel Quel em Valéry 1960 vol 2 p 478 velha noção Paul Valéry renovou o próprio conceito de influência literária revertendo quase completamente o sistema de valores10 Os problemas de empréstimo considerados até então por um grande número de estudiosos dependência de um autor em relação a outro não aparecem mais como uma imitação mas ao contrário como fonte de originalidade isto é como a intrusão do novo na criação No entanto ele tinha plena consciência do caráter problemático deste conceito Tanto o papel da influência no ato criador quanto o grau de imprecisão deste conceito aparecem formulados em sua Carta sobre Mallarmé endereçada a Jean Royére Nesta Carta Valéry defende a tese de que este famoso poeta simbolista desenvolve em si algumas das qualidades dos poetas românticos e de Baudelaire11 chegando a elaborar não apenas uma poética específica como também criar uma doutrina e colocar novos problemas prodigiosamente estranhos aos próprios modos de sentir e de pensar de seus pais e irmãos em poesia12 Vale a pena tomarmos conhecimento direto da formulação do próprio Valéry sobre a problemática da influência que funcionou como uma espécie de preâmbulo à sua tese sobre a obra de Mallarmé Não há palavra que venha mais facilmente nem com mais frequência sob a pluma da crítica que a palavra influência e não há de modo algum noção mais vaga entre as vagas noções que compõem o armamento ilusório da estética Nada entretanto no exame de nossas produções que interesse mais filosoficamente o intelecto e deva excitarlo mais à análise que esta modificação progressiva de um espírito pela obra de um outro Ocorre que a obra de um recebe no ser do outro um valor totalmente singular engendrando conseqüências atuantes impossíveis de serem previstas13 e com frequência impossíveis de serem desvendadas Sabemos por outro lado que esta atividade derivada é essencial à produção em todos os gêneros14 Numa tentativa de sistematizar o pensamento de Paul Valéry sobre a questão da influência já se detectaram em seus escritos quatro categorias a influência recebida que consiste no contato misterioso de dois espíritos ou na dívida de um autor para com outro isto é a influência propriamente dita que ocupa o centro dos estudos comparatistas e que ele chamou de modificação progressiva de um espírito pela obra de um outro a influência exercida sobre a posteridade que determina em grande parte o valor da própria obra emissora a influência que o autor exerce sobre si mesmo e finalmente a influência por reação ou seja a recusa da influência15 Dessas quatro categorias a que mais nos interessa é a primeira por suas implicações com o ato criador O problema da influência para Valéry reduzse ao estudo de uma misteriosa afinidade espiritual entre dois espíritos ou temperamentos O essencial desta relação é o caráter emocional Ele próprio fazia questão de sublinhar que este misterioso processo de influência não se limita a simples modificações intelectuais De modo que para ele o estudo de influências é a pesquisa de semelhanças escondidas de parentescos secretos entre duas visões de mundo Para fisgar as semelhanças escondidas nas obras que estuda Paul Valéry abandona o método objetivo de pesquisa de filiações e de causalidade e recorre à psicologia Fazer psicologia autêntica significa sempre tomar consciência de si mesmo Observou o mecanismo da influência a partir da estranha transformação que o encontro com Mallarmé provocou nele Ao descrevêlo emprega a expressão teve o choque utilizada várias vezes em seus escritos16 e aqui recuperada no contexto de sua Carta sobre Mallarmé Ainda na idade bastante tenra de vinte anos e no ponto crítico de uma estranha e profunda transformação intelectual sofri o choque da obra de Mallarmé conheci a surpresa o instantâneo escândalo íntimo não só o fascínio como também a ruptura dos laços com meus ídolos desta idade Sentime tornarme fanático experimentei o progresso fulgurante de uma decisiva conquista espiritual17 10 Cf Pistorius 1966 11 Ver Lettre sur Mallarmé em Valéry op cit 1960 vol 1 p 635 12 Idem Ibidem 13 Neste exato momento em nota Valéry afirma Eis por que a influência distinguese bastante da imitação 14 Ver Lettre sur Mallarmé em Valéry op cit 1960 p 634 15 Cf Pistorius op cit 16 Como bem nos lembra Georges Pistorius em sua comunicação Pistorius op cit 17 Valéry op cit 1960 vol 1 p 637 O mecanismo de influência ocorre em dois planos paralelos Primeiro o choque recebido faz o autor influenciado voltarse para a própria personalidade Em seguida provoca também a ruptura de seus liames com ídolos dos quais se nutrira até então Este duplo movimento revela um traço paradoxal na concepção de influência valéryana De um lado o escritor mais profundamente influenciado poderia ser o mais original De outro a influência mais estimulante é a que leva o escritor a rejeitar uma influência O escritor se libera de uma influência por outra No cerne da concepção de influência de Valéry existe a convicção de que o escritor atinge sua identidade valendose dos exemplos dos outros e também de que ele tem necessidade de se distinguir dos outros de qualquer maneira A influência recebida não minimiza em nada a originalidade que no fundo é uma das formas de influência Ainda em sua Carta sobre Mallarmé referindose à originalidade Valéry afirma Dizemos que um autor é original quando ignoramos transformações ocultas que modificaram os outros nele queremos dizer que a dependência daquilo que faz em relação àquilo que foi feito é excessivamente complexa e irregular 18 Na verdade o que conta é o grau de assimilação tão bem expresso na sua famosa e já citada imagem do leão que é feito de carneiro assimilado Aliás esta imagem situase num contexto semântico em que toda a problemática da influência e originalidade confundese com o ato de ingerir e digerir enfim de nutrirse Nada mais original nada mais próprio do que nutrirse dos outros Mas é preciso digerilos O leão é feito de carneiro assimilado19 A originalidade é pois um caso de assimilação caso de estômago segundo expressão do próprio Valéry20 A qualidade da diges 18 Idem p 635 grifos do autor 19 Ver Tel Quel em Valéry op cit 1960 vol 2 p 478 20 Cabe chamar a atenção para o fato de que André Gide também se vale de um termo ligado ao campo semântico do estômago para tratar do problema da influência Referindose às influências que recebera ao longo de sua vida afirma Já exprimi mais de uma vez tão da substância dos outros é que define os limites entre a originalidade e o plágio Plagiário é aquele que digeriu mal a substância dos outros torna seus pedaços reconhecíveis A originalidade caso de estômago Não há escritores origináis pois aqueles que merecem este nome são desconhecidos e mesmo irreconhecíveis Mas existem aqueles que aparentam sêlo21 Fica portanto claro que para Valéry o ato de criação descarta a idéia de originalidade no sentido absoluto de origem primeira supondo ao contrário um perfeito sistema de digestão que garante uma impecável assimilação da substância dos outros Com o intuito de se reforçar a concepção deste poeta francês que alia a idéia de originalidade à de imitação no processo criador incluise aqui mais uma citação de suas frases curtas e lapidares que compõem sua poética O desejo de originalidade é o pai de todos os empréstimos de todas as imitações22 Ao ato de criação opõese o do plágio cujo sistema falho de digestão desencadeia um mimetismo extrínseco deixando visíveis os pedaços da substância dos outros A originalidade é assegurada também pela escolha feita pelo autor exposto a uma influência A maior originalidade é garantida quando uma obra age sobre o escritor não por todas as suas qualidades mas apenas por algumas delas No entanto o apoio vindo de fora a um escritor é independente da qualidade do modelo Uma obra secundária e mesmo medíocre pode esclarecer o escritor no caminho a ser trilhado e conduzlo à própria identidade Valéry chegou a confessar que uma vez reconheceu seu caminho lendo o folhetinista Adolphe Brisson23 minha opinião sobre as influências citas estrangeiras Penso que um cérebro bem francês é feito para suportálas todas Tudo isto depende bem entendido do poder de digestão do cérebro O meu tinha digerido pedregulhos Gide apud Bos 1929 p 69 grifos meus 21 Ver Autres Rhumbs em Valéry op cit 1960 vol 2 p 677 22 Valéry 1974 23 Ver Variété em Valéry op cit 1960 vol 1 p 1493 Para explicar o mecanismo psicológico da influência Valéry recorre a um dos conceitoschave de seu método crítico o orgulho que também poderia ser um descontentamento permanente consigo mesmo Referindose a Baudelaire Valéry afirma que nos domínios da criação que são também os domínios do orgulho a necessidade de se distinguir é indissociável da própria existência24 Ainda segundo Valéry o problema de Baudelaire consistia em ser um grande poeta mas não ser nem Lamartine nem Hugo nem Musset25 Recusar uma influência é um meio oculto de sofrêla A originalidade de Baudelaire proviria assim de sua nítida oposição ao sistema romântico Baudelaire escreve em seu projeto de prefácio às Flores do Mal Poetas ilustres partilhavam há muito as mais floridas províncias do domínio poético etc Farei pois outra coisa26 Em suma ele foi levado coagido pelo estado de sua alma e por circunstâncias a oporse cada vez mais nitidamente ao sistema ou à ausência de sistema que chamamos de Romantismo27 Portanto no caso de Baudelaire cruzamse dois fatores que de acordo com a visão de Valéry explicam também os mecanismos de influência no processo de criação o orgulho e a própria recusa de uma influência O que aqui foi exposto sobre o conceito de influência diretamente relacionado ao ato criador na visão de Paul Valéry está circunscrito de qualquer modo à relação de impacto entre dois escritores e portanto diferenciase da primeira acepção de Guillén que trata da relação entre a obra e a experiência do escritor no sentido amplo de vida humana e literária Antes de retomarmos as idéias deste comparatista convém esclarecer que Paul Valéry não reduz o fenômeno da criação artística aos mecanismos de influência Para ele a influência sob seus múltiplos aspectos é a condição necessária mas não suficiente para a criação28 24 Ver Situation de Baudelaire em Valéry op cit 1960 vol 1 p 600 25 Idem ibidem 26 Idem ibidem grifos do autor 27 Idem ibidem 28 Cf Laurette 1966 p 1048 e Pistorius op cit p 1042 Guillén foi o único estudioso de literatura comparada pelo menos dentre aqueles arrolados no âmbito deste livro que procurou estabelecer a distinção entre influência relacionada estritamente à criação e influência como conceito operacional da teoria literária Referindose ao conceito de influência da escola francesa baseado na idéia de transmissão vale dizer uma influência conduz para a presença de uma determinada obra elementos de algum modo comparáveis com outros encontrado em outra obra Guillén mostra que há aí uma premissa com a qual ele não concorda influências e paralelismos são indivisíveis Para Guillén incitações genéticas constituem parte da experiência psíquica do escritor enquanto similaridades textuais pertencem à realidade da literatura Daí sua convicção compartilhada por vários outros comparatistas de que uma influência não precisa adotar a forma reconhecível de um paralelismo assim como nem todo paralelismo procede de uma influência Para ele um estudo de influência quando completamente perseguido contém duas fases muito diferentes O primeiro passo consiste na interpretação de fenômenos genéticos O segundo passo é textual e comparativo mas inteiramente dependente do primeiro para sua significação Deste modo seu método propõe primeiro apurar se uma influência ocorre e avaliar a relevância ou função genética Daí se pensaria em considerar o resultado objetivo que pode ter sido o produto da influência e definir a ulterior função textual Sua proposta metodológica é perfeitamente coerente com sua visada teórica a respeito da influência No entanto sua operacionalidade pode ser questionada na medida em que o estudioso entrar num terreno extremamente escorregadio ao se dispor a realizar uma tarefa praticamente impossível qual seja a de verificar se uma influência realmente ocorreu e avaliar seu papel na gênese de uma obra literária Cláudio Guillén chama a atenção para dois outros conceitos fundamentais da teoria literária convenção e tradição que devem ser instrumentalizados pela literatura comparada Tais conceitos dão conta da inserção da obra no contexto mais amplo da literatura e permitem também o estudo do diálogo entre obras autores e literaturas Convenções e tradições são sistemas cujo principal fator unificante é o costume aceito Tradições constituem convenções que supõem ou conotam sequências temporais Tanto num caso como no outro o que está em jogo é o uso coletivo e não o impacto singular ou a forma concreta de um processo de transformação histórica Uma constelação de convenções determina o meio de expressão de uma geração literária o repertório de possibilidades que um escritor compartilha com seus rivais vivos As tradições supõem o conhecimento por parte dos escritores de seus antepassados Tais coordenadas não apenas regulam a composição de uma obra como também se fazem presentes no processo de leitura Enquanto as convenções são extensas as influências genéticas e individuais são intensas As influências mais significativas costumam ser relações diretas entre dois autores e não associações ou parentescos remotos Mallarmé e Rimbaud foram um alimento essencial para o jovem André Breton Mas se um romance recente nos lembra Homero estamos às voltas com um conjunto comum de premissas e tradições culturais mais do que um tête à tête de uma influência É insuficiente afirmar que Virgílio influíu Dante independentemente de outros fatores quando tantos outros elementos sustentaram essa relação e o fundamental encontrase no funcionamento de um campo total a autoridade e a continuidade de uma tradição Impõese reconhecer que o que se imita é a obra singular não a tradição Mas muitas obras literárias encarnam tradições condensam e vitalizam sistemas de convenções e simbolizam outras obras Por outro lado quando as influências se estendem e se amalgamam quando compõem premissas comuns ou usos o ar coletivo que os escritores de certa época respiram assimilamse ao que chamamos convenção Em outras palavras as convenções literárias constituem não somente ferramentas técnicas como também campos mais vastos ou sistemas que derivam de influências prévias singulares e genéticas Para Cláudio Guillén as influências literárias poderão continuar desempenhando um papel importante nos estudos comparativos desde que de modo adequado e conveniente De um lado as convenções podem trazer uma certa iluminação ou compreensão dos processos criadores e genéticos De outro uma influência pode sem dúvida contribuir para uma análise crítica As convenções e tradições descortinam amplas perspectivas mais facilmente que as influências e nos mostram configurações sincrônicas e diacrônicas da literatura ao passo que as influências não organizam o caos dos fatos literários particulares de uma maneira tão útil No entanto mediante o exame intenso de contatos não mediatizados entre autor e autor ou entre obra e obra elas permitem o acesso com maior rigor do que poderiam as convenções ou tradições ao processo complexo da criação artística Atrelado aos conceitos de influência e imitação encontramos o de originalidade como aliás já pudemos verificar quando nos detivemos um pouco nas idéias de Paul Valéry sobre a influência Cabe focalizarmos este conceito tão problemático quanto os anteriores agora na perspectiva da teoria da literatura comparada como uma tentativa de esclarecimento O conceito de originalidade faz parte de um ideário ligado ao comparatismo tradicional tendo sido objeto de especial atenção no IV Congresso da Associação Internacional de Literatura Comparada realizado em Friburgo em 1964 e dedicado aos termos e noções literárias imitação influência e originalidade Das comunicações então apresentadas seguiremos de perto Originalité29 de Odette de Mourgues e Loriginel et loriginal Nuance linguistique distance poétique de Anna Balakian30 A primeira nos interessa sobretudo por sua perspectiva histórica embora esboçada rapidamente a segunda por sua perspectiva mais teórica e sua tentativa de classificação O ponto de partida de ambas é o estudo do significado da palavra original Apoiandose no dicionário Littré Odette de Mourgues lembra que a palavra original apresenta dois sentidos O primeiro equivale a imaginado sem modelo aplicandose à originalidade absoluta isto é à criação a partir do nada O segundo significa que tem sua marca própria remetendo à idéia de uma originalidade relativa A validade desta acepção é confirmada pela história literária O termo original com o sentido de uma originalidade relativa que é o atual começou a ser usado no século XVII No entanto os escritores do século XVI sem disporem do termo já tinham uma certa noção do que era a originalidade literária Para exprimila serviamse de um outro termo o de simplicidade naïveté A idéia de 29 Mourgues 1966 30 Balakian 1966 simplicidade de natural significava entre outras coisas que o poeta devia ser fiel à própria natureza Naquela época a imitação constituía um princípio artístico mas o escritor não devia imitar servilmente não devia sacrificar sua própria individualidade ao contrário devia impregnar a obra com sua marca própria Essa espécie de originalidade que vigora também no século XVII apresenta duas características muito importantes Uma está ligada à idéia de inspiração segundo a qual a ação de escrever se desenrola sob os ditames dos poderes divinos No século XVI verificase uma reverência quase mística com relação aos momentos privilegiados durante os quais num impulso de imaginação vão cristalizarse numa ordem satisfatória palavras que até então se cruzavam confusamente A autora insiste neste ponto porque lhe parece interessante notar que desde o século XVI a idéia de originalidade revelase intimamente ligada à de um elemento pessoal indefinível e irredutível A segunda característica dessa espécie de originalidade é que ela implica uma submissão com relação à época e ao lugar nos quais vive o escritor A marca própria está ligada indissoluvelmente a uma consciência aguda de certos aspectos individuais de sua nacionalidade e de seu século Essas duas características constituem elementos essenciais segundo Odette de Mourgues quando se trata de analisar a originalidade de um escritor Com o romantismo a idéia de originalidade foi adquirindo um caráter cada vez mais individualista Nos séculos XIX e XX verificase a tendência em se ver na marca própria o reflexo não somente do esforço criador pessoal do poeta mas de toda a sua personalidade individual Quanto mais for ele mesmo tanto mais será original Na busca incessante de sua individualidade ele se oporá à sociedade de seu país e de sua época Como sabemos isso não passa de uma ilusão romântica pois o escritor do século XIX ou XX sofre as influencias do meio e do tempo tanto quanto o do século XVI ou XVII Mas a grande diferença e também a causa de muita confusão é que no romantismo valorizase extremamente o termo original certamente por causa do cultivo do indivíduo Os temas literários românticos comportam entre outros o problema do indivíduo e o da sociedade O espírito da época estimula o escritor a ter idéias individuais sobre a vida a ter uma mensagem pessoal para esclarecer os homens Como conseqüência disso procurase também criar obras artísticas com características singulares O cultivo do individualismo que aliás não tem nada de original pois é comum a toda uma época dá a impressão de que a obra literária não tem vínculos com a tradição ela é totalmente nova seu tema e sua técnica brotam do mundo interior do artista Tal concepção no entanto revelase totalmente equivocada abrindo brecha para uma visão subjetiva do conceito de originalidade criando falsa ilusão tanto no escritor que se julga diferente quanto no leitor que apreciará a qualidade de uma obra em razão de seu aparente traço inusitado e individual Odette de Mourgues elege a concepção do século XVI de originalidade como a mais adequada A originalidade que percebemos numa obra literária ou seja sua marca própria não é outra coisa senão o gênio criador que levou um escritor a escolher um assunto modificar uma técnica etc nas suas relações complicadas e variáveis com a tradição com as influências específicas que agiram sobre ele e com o gosto de sua época É muito importante considerar com algum cuidado as relações entre os dois elementos da originalidade relativa o esforço criador e o condicionamento da época Com relação a Anna Balakian ela parte da duplicidade terminológica da língua francesa inexistente na portuguesa que lhe permite fazer a distinção entre original relativo à origem originel e original remetendo à novidade original O original novidade dotado de espírito crítico sabe decifrar e aperfeiçoar o que os outros descobriram A palavra perfeição que se encontra no cume dos valores críticos contém de um lado a idéia de transcendência do já conhecido de outro ressalta a noção de monotonia e esterilidade Um significado ou outro vai depender do lado por onde se sobe a montanha A originalidade existe ou não de acordo com o lado escolhido Mme de Staël via no aperfeiçoamento da linguagem e do gosto do classicismo francês a esterilidade que ameaça nossa literatura e considerava os alemães e Chateaubriand iluminadores do exército do espírito humano Portanto ela teria apreciado a qualidade original no sentido relativo à origem O original ligado à origem é um ser iluminado que abre caminho é um peregrino destinado a ganhar na história literária o lu gar de precursor De modo geral lança problemas sem dar respostas Anna Balakian cita Apollinaire como um exemplo recente deste tipo de original Anunciando o espírito novo em seu artigo Lesprit nouveau et les poètes que apareceu na revista Mercure de France em 1121918 o escritor francês não realizou a nova forma da expressão poética Afinal quem escreveu Le bateau ivre cinematográfico foi Rimbaud Ao se estabelecer a distinção entre o original ligado à origem e o original ligado ao novo a originalidade deixa de ser um raio ou uma illuminação transformandose numa metamorfose ou alquimia O original novidade não anuncia sua originalidade O processo de configuração da obra é mais sutil e complexo O espírito original achase abafado por uma convenção na fonte da qual havia um original origem cujos imitadores produziram a convenção O original novidade consegue quebrar a convenção inspirandose nela A partir desta formulação Anna Balakian propõe quatro meios de ruptura o desvio ou a deformação da convenção a reversibilidade a sátira da convenção e o aperfeiçoamento de uma técnica que situa uma idéia já conhecida num clima linguístico propício A literatura de inspiração clássica constitui a ilustração mais feliz da transformação da matéria emprestada por meio de desvios os verdadeiros índices de sua originalidade As maiores obrasprimas da literatura européia não são originais origem tendose inspirado em fontes que outras antes delas já tinham encontrado Tais obrasprimas são os exemplos mais bem realizados dessa espécie de modificação Um caso particular é destacado a correspondência entre o céu e a terra no soneto Correspondances de Baudelaire Esta noção intimamente ligada à religião swedenborgiana tornouse a base filosófica das contemplações românticas Blake Wordsworth Novalis alguns poemas de Victor Hugo Se o poema de Baudelaire se tivesse detido no primeiro quarteto ou se o poeta tivesse simplesmente ilustrado a correspondência entre o céu e a terra no restante do poema Baudelaire não passaria de um exímio imitador apesar de sua perfeição Mas o resto do soneto transforma o preceito conhecido por meio de uma deformação sutil que descreve não a correspondência entre o céu e a terra mas a das coisas puramente corporais no mundo unicamente material assinalando não a dualidade do universo mas a unidade da terra e sugerindo uma orientação poética totalmente nova Algumas vezes o desvio é produzido por um espírito de combate à tradição levando a uma reversibilidade total do tema original É o caso de escritores modernos que tomam emprestados títulos clássicos para dizer o contrário Édipo de Gide Anfitrião de Giraudoux As Moscas de Sartre e Sísifo de Camus Este último valese do símbolo de dor e opressão e o transforma em felicidade estóica A originalidade de Camus é lançar um desafio ao original e produzir por uma antítese categórica o símbolo da revolta contra a convenção Esta espécie de originalidade querida é mais precária que os desvios sutis e não produz uma nova convenção A reversibilidade é uma forma de originalidade mas parece menos capaz de iniciar sua própria convenção e produzir imitadores A terceira forma de originalidade é a sátira do tema conhecido Menos radical que a reversibilidade a sátira se inspira mais no clima social do que numa filosofia de revolta pessoal Para Anna Balakian um dos exemplos mais brilhantes é o da relação entre Lolita de Nabokov e Les infortunes de la vertu de Sade Nesta última obra o tema da juventude e da inocência pervertidas pela corrupção dos ricos e as hipocrisias da sociedade explica a infelicidade de Sofia que ainda criança é violentada por um homem de uma certa idade que a maltrata e em seguida livrase dela como se fosse um objeto Nabokov usa o mesmo tema e com ele faz em Lolita uma sátira da sociedade americana do culto do sexo que ele observa nos Estados Unidos uma sátira sobre a independência dos jovens e sobre sua decadência voluntária Neste caso não se trata nem de um desvio do tema nem de uma antítese de indignação mas de um exagero grosseiro que marca o tom o clima de uma nova época e dá a impressão de uma profunda originalidade Finalmente Anna Balakian se detém na originalidade que provém da técnica Para demonstrar a qualidade revolucionária de seu simbolismo Mallarmé escolhe um símbolo dos mais comuns de seu tempo o fauno A originalidade de Mallarmé não consiste em fazer um fauno diferente ou instrumento de revolta ou sátira Seu fauno é o que há de mais banal É o fauno convencional sensual pagão semideus semianimal falando a língua dos humanos No entanto o poeta francês faz dele um veículo para demonstrar a verdadeira técnica da composição simbolista cria a forma que convém à junção do sonho e da vigília a estrutura musical dos temas e variações a sincronização da língua que se torna música não por suas sonoridades mas como expressão do pensamento abstrato insólito metafórico mais que ideológico Nesse nível se situa uma extrema originalidade no coração do tema mais banal assinala a autora31 No final de sua comunicação Anna Balakian critica o fato de os estudos comparatistas estarem ainda muito voltados para as descobertas das origens dando portanto continuidade a um debate que já se tinha instalado na década de 1950 Detentora de um ideário poético que absorve os conceitos de fonte influência e originalidade ela clama por estudos comparatistas que ultrapassem o momento das descobertas das origens Tendo encontrado a fonte o erudito não deveria ir mais longe32 Que o leitor não se assuste O ir mais longe referese aqui ao estudo concreto da obra literária A fortuna de um escritor ilumina o caráter de sua obra e nisso se encontrariam as vantagens dos estudos de doxologia Por outro lado os estudos de influências deveriam enriquecer a apreciação do crítico não sobre aquele que brilha mas sobre aquele que recebe o brilho Terá sido ele tomado invadido por esta influência Ou a transcendeu produziu a alquimia da convenção e tornouse por isso mesmo o iniciador de uma nova convenção33 Com essas críticas e indagações Anna Balakian fazendo eco às vozes de outros comparatistas partidários de uma poética que inclui esses conceitos tradicionais revelase lúcida quanto aos riscos diante de estudos que se limitam às localizações das origens caindo numa erudição estéril além de se mostrar partidária da análise concreta da obra literária para se verificar como se deu a alquimia da convenção ou em termos mais modernos como se deu a absorção e a transformação dos elementos recebidos34 31 Idem p 1268 32 Idem p 1269 33 Idem ibidem 34 Nessa linha de estudiosos tradicionais que se empenham em renovar a literatura comparada merecem ser lembrados Álvaro Manuel Machado e DanielHenri Pageaux Ambos estimulam o estudo das fontes e influências dentro de uma perspectiva de análise tex tual Reconhecem que durante muito tempo em nome da assimilação a fonte foi considerada uma simples pista encontrada no texto O investigador transformavase em detetive e o único interesse da investigação transformada em inquérito policial era o de identificar por baixo de várias máscaras ou disfarces um corpo estranho o texto que tinha sido utilizado para a elaboração de um outro texto Todavia ele nada serve identificar uma fonte num determinado texto se não se fizer ao mesmo tempo uma análise tex qual que permita compreender de que maneira se construiu a organização do texto e a própria função da fonte nesse texto Em outras palavras quanto mais a análise textual é aprofundada mais a problemática das fontes deverá chamar a atenção do investigador 35 Bloom 1991 36 Idem 1995 Conceitos Fundamentais 145 Com exceção de Paul Valéry que foi convocado nesta parte para que fossem expostas suas idéias sobre a relação entre influência e originalidade na qualidade de poeta que reflete sobre o ato de criação os autores cujas visões sobre este núcleo central de conceitos tradicionais acabaram de ser expostas não chegam a formular teorias sobre tais questões A partir de certas reflexões propõem uma sistematização com o intuito de esclarecêlas de situálas historicamente e de mostrar sua funcionalidade nos estudos de literatura comparada numa época marcada por um debate sobre a literatura comparada tradicional Este não é caso de Harold Bloom que se propõe a apresentar uma teoria da poesia baseada na idéia da angústia da influência em seu polêmico livro The Anxiety of Influence35 publicado em 1973 Segundo Bloom defensor do cânone universal o mecanismo de influência fazse absolutamente necessário para se atingir e reagirrig a originalidade dentro da riqueza da tradição literária ocidental36 Esses dois lados da mesma moeda influência e originalidade são repensados por esse crítico americano num contexto de estudos literários impregnado por teorias marcadas pela idéia de morte do sujeito Nesse sentido suas formulações podem ser lidas como manifestação de resistência às novas postulações e em contrapartida como reiteração da visão humanista que vinha sendo cada vez mais descartada nas recentes teorias da época Ao procurar restabelecer o autor a vontade e o poder de imaginação como elementos fundamentais da criação poética a proposta humanista de Bloom no entanto não se limita a uma ingênua re ciências humanas marcadas pelas teorias de Marx Freud e do pósestruturalismo acaba por sofrer também suas contaminações Tratase enfim de um humanismo que se fundamenta em sua fé afirmativa em meio a um racionalismo desacreditado e um ceticismo intolerável37 Defensor ainda da idéia de autonomia do estético para Bloom a crítica pautada por esta concepção considera também a soberania da alma solitária o leitor não como uma pessoa na sociedade mas como o eu profundo nossa interioridade última38 Em A Angústia da Influência Harold Bloom defende a tese de que a história da poesia se confunde com a das influências poéticas pois os poetas fortes fazem a história deslendose uns aos outros de maneira a abrir um espaço próprio de fabulação39 Dois conceitos fundamentais aparecem nessa formulação poeta forte e desleitura Bloom só se interessa por poetas fortes isto é aquelas grandes figuras que combatem seus precursores também poetas fortes até a morte No pólo oposto achamse os poetas fracos cuja imaginação capaz se apropria de tudo para si40 não se aventurando no embate que se concretiza por meio da desleitura A grande literatura é um permanente reescrever ou revisar Portanto os poetas fortes criam a partir de uma desleitura de outros vale dizer a partir de um processo que envolve várias modalidades de apropriação com o intuito de se circunscrever um espaço imaginativo peculiar a cada um Estando a criação diretamente relacionada à apropriação nada mais natural que o surgimento de imensas angústias de débito41 para o criador forte O próprio ato de negar a influência como ocorre com muitos poetas constitui a ilustração de um dos modos em que a influência poética se expressa como variedade da melancolia ou do princípio da angústia42 37 Cf Eagleton 1994 p 198 38 Idem p 19 39 Bloom op cit 1991 p 33 40 Idem ibidem 41 Idem ibidem 42 Idem p 35 Bloom assinala ainda que a influência poética não acarreta necessariamente a diminuição da originalidade Por sua vez esta não é sinônimo de grande valor Impõese ainda relevar que Bloom desvincula a teoria das profundezas da influência poética do estudo das fontes da história das idéias e dos padrões de figuração Para ele a transmissão de imagens e idéias entre um poeta mais velho e outro mais novo simplesmente acontece43 Se tal transmissão vier a ser um motivo de angústia para o poeta efebo é simplesmente uma questão de temperamento e circunstância bom material para os caçadores de fontes primárias e biógrafos44 Para ele idéias e imagens não constituem um atributo exclusivo da poesia pertencendo à discursividade e à história45 Nesse sentido achase distante da formulação desta problemática nos termos propostos pela literatura comparada tradicional Embora reconheça que mesmo os poetas mais fortes estão sujeitos a outras influências que não a poética46 Bloom considera a influência poética ou a desapropriação necessariamente o estudo do ciclo vital de poetacomopoeta47 Os nomes de Nietzsche e Freud são mencionados pelo próprio Bloom como influências primárias sobre sua teoria No entanto este crítico americano faz questão de assinalar sua atitude revisionista no aproveitamento dessas contribuições Sua teoria não acoberta a idéia de Nietzsche na esteira de Vico sobre o papel crucial da prioridade divinatória para todo poeta forte48 Rejeita ainda a idéia otimista de Freud segundo a qual é possível chegarse a uma substituição feliz uma segunda chance que nos salvará da busca repetitiva por nossas primeiras ligações49 Para Bloom os poetas fortes não aceitam qualquer substituição e lutam até o fim pela primeira chance e só por ela50 Enfim a base da teoria da angústia da influência incide na tese de que a relação entre os poetas fortes é conflituosa Travase 43 Idem p 108 44 Idem ibidem 45 Idem ibidem 46 Idem p 41 47 Idem p 36 48 Idem p 37 49 Idem ibidem 50 Idem ibidem entre eles uma verdadeira luta como poderosos opostos51 num contínuo processo de desleitura isto é de correção criativa concretizado por meio de movimentos revisionários os quais teriam a mesma função nas relações intrapoéticas que os mecanismos de defesa em nossa vida psíquica52 Embora esses movimentos revisionários possam ser múltiplos Bloom enumera apenas seis deles nomeados por termos clássicos para ilustrar como um poeta forte se desvia de outro clinamen tessera kenosis demonização askesis e apophlirates Clinamen conceito central para a elaboração de uma teoria da influência corresponde à desleitura ou desapropriação poética propriamente dita A origem desta palavra achase em Lucrécio que a utiliza no sentido de desvio dos átomos indicando a possibilidade de qualquer mudança no universo Um poeta forte executa um clinamen com o poema de seu precursor quando ao lêlo desvíase dele O ato de desviarse do poema precursor equivale a uma leitura corretiva cujo resultado aparece no seu próprio poema sugerindo que o poema precursor fora acuado até certo ponto mas deveria então terse desviado precisamente na direção em que se move o novo poema53 Justamente na parte dedicada a este fundamental ato de desleitura para sua teoria Bloom detémse com mais vagar no conceito de influência Segundo ele a angústia da influência decorre da categoria cartesiana da extensão que aliás está na raiz do dualismo moderno do abismo sem fundo que se abre entre nós e o objeto54 De um lado a mente como intenção e de outro o mundo exterior da extensão A partir desta dicotomia a mente aprenderá como nunca aprendeu o que é o seu isolamento55 Não há mais lugar para o conceito primevo de influência ligado a seu significado etimológico de influxo e seu senso primordial de uma emanação ou força se espalhando das estrelas sobre a terra56 Em conseqüência não há mais lugar para se pensar em termos de relações de filiação e de fraternidade entre os poetas A partir do momento em que se acredita na existência de dois mundos separados um deles um imenso mecanismo numérico se estendendo no espaço e o outro constituído pela substância pensante inextensa57 o poeta passará a localizar suas angústias no continuum que se estende para trás e sua visão do Outro será amplificada na proporção em que se dispõe o Outro num ponto qualquer do passado58 A angústia da influência instaurarse sobretudo com a paixão pósiluminista pelo Sublime e pelo Gênio concretizandose no sentimento espantoso torturante arrebatador da presença de outros poetas nas profundezas do solipsista quase perfeito ou o poeta forte em potencial59 Enfim as ânsias mais profundas do poeta forte são vivenciadas através da experiência de outros eus60 Neste contexto de pensamento explicase o lugar do clinamen para a teoria da angústia da influência pois ao separar cada poeta de seu precursor liberao do mundo da uniformidade fundado na idéia de que a identidade entre o passado e o presente confundese com a identidade essencial de todo objeto Ora este mundo da uniformidade representa o espaço da morte para o poeta forte pósiluminista Ao separar o poeta novo de seu precursor mediante o revisionismo criativo o clinamen salva o primeiro lançandoo no universo da descontinuidade sem o qual a poesia não pode sobreviver de acordo com a visão moderna isto é com a visão pósiluminista Tessera indica o movimento revisionário consubstanciado numa complementação antitética o poeta efebo preserva os termos do poemaantecedente mas altera seu significado como se o precur 51 Idem p 40 52 Idem p 125 53 Idem p 43 54 Idem p 71 55 Idem p 72 sor não tivesse ido longe o bastante61 Esta palavra é empregada no sentido em que o era nos antigos mistérios religiosos onde a reunião de dois pedaços quebrados de cerâmica servia como sinal de reconhecimento entre os iniciados62 embora Bloom também se refira ao uso que Lacan faz dela A palavra vem de Lacan cuja própria leitura revisionária de Freud poderia servir como exemplo de tessera No Discours de Rome de 1953 Lacan cita um comentário de Mallarmé que compara o uso comum da linguagem ao câmbio de uma moeda cujo verso e reverso não mostram senão figuras apagadas e que circulará em silêncio de mão em mão Aplicando a imagem de Mallarmé ao discurso do analisando por mais reduzido que seja Lacan afirma essa metáfora é o suficiente para nos fazer recordar que a Palavra mesmo quando já quase completamente desgastada preserva ainda seu valor de tessera63 Em Bloom o significado do termo tessera injetado pela idéia de sinal de reconhecimento conforme a tradição dos antigos mistérios religiosos remete à tentativa da parte do efebo de se persuadir a si mesmo e de nos persuadir que a Palavra do precursor já estaria inteiramente desgastada se não redimida pela mais ampla e revigorada Palavra do novo poeta64 O crítico americano referese a Stevens cuja obra é marcada por muitas tesserae A relação deste poeta com os precursores românticos americanos fazse por meio da complementação antitética Na última versão de The Sleepers Whitman identifica a noite com a mãe O poema de Stevens The Owl in the Sarcophagus pode ser lido como uma tessera em relação a The Sleepers pois onde Whitman identifica a noite e a mãe com a boa morte Stevens estabelece uma identidade entre a boa morte e uma visão maternal mais ampla oposta à noite ao conter toda a evidência memorável da mutabilidade de tudo o que já vimos em nosso longo dia muito embora transforme essa percepção em conhecimento65 61 Idem p 43 62 Idem p 103 63 Idem ibidem 64 Idem ibidem 65 Idem p 104 Kenosis marca uma descontinuidade com relação ao precursor Essa palavra foi utilizada por São Paulo para descrever o processo de humilização de Cristo quando passou da esfera divina para a humana Neste ato revisionário ocorre no poema novo um esvaziamento ou vazante com relação ao precursor66 ou seja uma descontinuidade que no fundo é liberadora possibilita um tipo de poema que jamais existiria se o poeta novo repetisse a qualidade divina de seu precursor Por outro lado o efebo ao anular a força do precursor no seu próprio poema acaba também por isolar sua identidade com relação à postura do precursor e o salva portanto de uma transformação em tabu em e para si mesmo67 ou seja ele também não é tão absoluto quanto possa parecer O próprio Bloom reconhece que a kenosis é um ato revisionário mais ambivalente do que o clinamen ou a tessera68 transportando a regiões mais profundas do significado antitético69 Por isso enquanto o clinamen e a tessera apresentam perspectivas operacionais podendo ser úteis para alinhar ou desalinha determinados elementos em poemas diversos70 a kenosis mostrase mais aplicável a poetas do que poemas71 Demonização equivale à desleitura direcionada para o ContraSublime próprio marcando sua reação ao Sublime do poetapai Demonização vem da palavra daimon que de acordo com a tradição neoplatônica em geral designa um ente intermediário entre o divino e o humano incorporandose ao adepto para ajudálo O poeta forte erigese pela força demoníaca a qual distribui nossas fortunas e divide nossos talentos oferecendo uma compensação por tudo que tira de nós72 A relação do poeta forte com o daimon não é passi 66 Idem p 125 67 Idem ibidem 68 Idem p 127 69 Idem ibidem 70 Idem ibidem 71 Idem ibidem 72 Idem p 138 va isto é ele nunca é possuído por um demônio Tornandose forte ele próprio é um demônio Deixará de sêlo caso venha a se enfraquecer de novo O processo de demonização do poeta forte consubstanciase num ContraSublime cuja função sugere a relativa fraqueza do precursor Demonizado o efebo seu precursor é necessariamente humanizado e um novo Atlântico surge como uma inundação da essência transformada do novo poeta73 Enfim o movimento revisionário da demonização pode ser considerado com uma batalha entre Orgulho e Orgulho74 na qual vence pelo menos temporariamente a força do novo Como ocorre esta batalha O poeta posterior percebe que aquilo que considerava uma potência no poemaascendente75 não é exclusividade deste mas pertence a uma extensão ôntica imediatamente além do precursor76 A partir disso faz uma leitura extremamente generalizada do poemaanterior desprezando todos os aspectos peculiares do trabalho do poetapai Bloom referese a Shelley como poeta consciente de que estava sujeito a precursores responsáveis entre os quais Rousseau pela criação do Espírito da Época Para Shelley os poetas tanto quanto os filósofos pintores escultores e músicos são em um certo sentido os criadores e em outro as criações de sua época77 Este poeta inglês tornase forte em oposição a Wordsworth a partir de Alastor Segundo Bloom a desleitura de Shelley se dá através de uma nova forma de busca e de escape um movimento ascendente no qual todavia o Espírito se vê lançado para fora e para baixo A demonização de Shelley foi sempre um esvanecerse para cima e mais do que qualquer outro poeta mais mesmo do que um Rilke Shelley nos obriga a vêlo na companhia dos anjos parceiros demoníacos nesta sua busca de totalidade78 73 Idem p 139 74 Idem ibidem 75 Idem p 44 76 Idem ibidem 77 Apud Bloom op cit 1991 p 142 78 Idem p 143 Askesis é sublimação poética uma forma de purgação cujo objetivo imediato é chegar a um estado de isolamento Este termo que remete a ascese é encontrado com freqüência entre os xamanitas présocráticos como Empédocles A askesis iniciase nas alturas do ContraSublime Se não passar pela purgação e pelo solipsismo o poeta forte corre o risco de se transformar numa estátua de vento exceto se capaz de ferirse a si mesmo mas sem contribuir para um esvaziamento ainda maior de sua própria inspiração79 Neste processo de desleitura a defesa eficaz contra a angústia da influência decorre de uma diminuição de uma parcela das virtudes humanas e imaginativas do poeta novo o que lhe permite se separar dos outros inclusive de seu precursor Este movimento de redução atinge também as realidades de outros eus e de tudo o que é externo incluindose a do poeta precursor de modo que o poemaascendente também deve sofrer uma askesis Este processo cessa no momento que surge um novo estilo de severidade cuja ênfase retórica pode ser decifrada como um outro nível de solipsismo80 A tese de Bloom é de que neste ato revisionário purificador O poeta forte só tem consciência de si mesmo e daquele Outro que deve afinal destruir seu precursor81 A askesis é enfim um embate propriamente dito uma lutaatéamorte com os mortos82 da qual não escapa nenhum poeta forte pósiluminista cujo objeto de desejo é estarconsigo e só consigo83 Já houve no entanto uma era durante a qual os poetas se moviam na direção de uma partilha comum84 pois não sofriam da angústia da influência Nesta era marcada pela matriz das influências generosas85 a relação entre os poetas caracterizavase por um fluxo contínuo de contribuições como se pode verificar na linhagem 79 Idem p 162 80 Idem ibidem 81 Idem ibidem 82 Idem ibidem 83 Idem ibidem 84 Idem p163 85 Idem ibidem de poetas que vai de Homero a Shakespeare Desta tradição Bloom cita como exemplar a relação de Dante com seu precursor Virgílio a qual supostamente provocava apenas amor e um incentivo de rivalidade no efebo mas angústia nunca86 Depois do iluminismo não há mais lugar para a matriz das influências generosas Em Wordsworth Keats Browning Whitman Yeats e Stevens representativos poetas modernos a askesis é necessariamente uma razão revisionária que se projeta por fim às bordas do solipsismo87 Apophrades ou o retorno dos mortos é o último movimento revisionista descrito por Bloom Com este termo indicavamse na Antigüidade os dias infaustos dias de másorte nos quais os mortos de Atenas voltavam às casas onde haviam vivido Fenômeno similar atinge poetas maduros que são especialmente vulneráveis ao retorno de poetas fortes em seus poemas O núcleo central deste movimento revisionário achase no modo como os poetas fortes voltam Caso retornem intactos esse retorno empobrecerá os poetas mais novos88 Ocorrendo o retorno dessa maneira os poetas posteriores se forem lembrados o serão como fracos isto é como tendo desaparecido na pobreza numa carência imaginativa que não foram eles mesmos capazes de suprir89 Mas com os poetas fortes esta desleitura corretiva purifica até mesmo este derradeiro influxo Em sua fase final o poeta mais recente mergulhado no solipsismo sustenta seu próprio poema de tal forma aberto à obra do precursor que inicialmente poderíamos pensar terse completado a volta ao círculo nos transportando de volta aos dias sufocantes de seu aprendizado antes que sua força tivesse começado a se fazer sentir nas razões revisionárias90 86 Idem ibidem 87 Idem p164 88 Idem p183 89 Idem ibidem 90 Idem p 45 Os poetas mortos voltam mas voltam com as cores e as vozes dos poetas posteriores pelo menos em alguns momentos o que constitui um convincente testemunho da persistência dos poetas novos garantindolhes a qualificação de poetas fortes Desse fenômeno decorre o efeito estranhíssimo segundo o qual o sucesso do novo poema é creditado ao fato de o segundo poeta ter escrito a obra característica de seu precursor Para tornar mais clara a descrição deste último movimento revisionário nada melhor do que nos valermos das próprias palavras de Bloom a esse respeito Yeats e Stevens os poetas mais fortes de nosso século e Browning e Dickison da segunda metade do século XIX nos dão exemplos vívidos desta que é a mais arguciosa de todas as razões revisionárias Porque todos eles alcançam um estilo que captura e estranhamente retém prioridade sobre os precursores de tal forma que a tirania do tempo é quase sobrepujada e é possível creer por alguns momentos surpreendentes que estão eles mesmos sendo imitados por seus ancestrais91 O próprio Bloom faz questão de marcar a diferença entre a apophrades e a noção irônica de Borges de que o artista cria seu precursor assim como por exemplo o Kafka de Borges cria o Browning de Borges92 O crítico americano considerase mais drástico de acordo com seu último movimento revisionário o precursor achase colocado na obra do poeta posterior a ponto de determinadas passagens em sua própria obra parecerem não como presságios do advento do efebo mas sim conseqüentes e em débito com este e mesmo necessariamente diminuídas pelo esplendor maior do novo poeta93 Uma vez expostas as linhas principais do pensamento de Harold Bloom em A Angústia da Influência cabem aqui algumas considerações sobre a recepção deste livro e sobre seu lugar num estudo de literatura comparada Constatase opinião unânime sobre seu caráter polêmico instigante e ambicioso Apesar de seu subtítulo este livro tem mais o 91 Idem p 183 92 Idem ibidem 93 Idem ibidem perfil de um longo ensaio fundado numa vigorosa reflexão sobre os modos de desapropriação entre os poemas com momentâneas incursões de cunho teórico O discurso crítico de Harold Bloom é marcado por um estilo metafórico aproximando seu livro de uma crítica criativa e distanciandoo dos parâmetros dos estudos voltados para teorização Aliás para ele a própria crítica é uma forma de poesia assim como os poemas constituem críticas literárias implícitas de outros poemas Por sua vez a possibilidade de êxito de uma leitura crítica reside não em seu valor de verdade mas na força retórica do próprio crítico O distanciamento do paradigma de livro teórico começa pela própria natureza do corpus de A Angústia da Influência limitado à poesia angloamericana pósiluminista Tal objeto revelase por demais restrito para a construção de uma teoria abrangente Embora sem desconsiderar o traço heurístico dos seis movimentos revisionários sistematizados por Bloom é de assinalar que nem ele próprio no âmbito deste livro ou de outros posteriores procurou aplicálos operacionalmente na leitura de poemas individuais ou no estudo de uma obra poética completa94 Além disso a sua própria concepção de crítica e conseqüente dicção de seu livro como afirmei acima revelamse incompatíveis com uma teoria que propicie sugestões metodológicas a serem aplicadas como modelos em outros discursos críticos Dentre os comentaristas que se pronunciaram com restrições às colocações de Harold Bloom interessanos de modo particular a opinião de Cláudio Guillén não só por se tratar de um comparatista cuja voz temse feito presente com freqüência ao longo de nosso percurso pela história e problemas da literatura comparada mas por ter participado diretamente de discussões sobre o conceito de influência no âmbito restrito da literatura comparada Para este comparatista a teoria da angústia da influência pouco ou nada tem a contribuir para o estudo comparativo de poesia95 Ao cair no biografismo psicologizando a intertextualidade Bloom tornase vítima da mesma armadilha que aprisionou os comparatistas tradicionais a das conjecturas sobre as relações psíquicas entre os 94 Cf Nestrowski 1991 pp 1920 95 Guillén 1985 p 376 escritores Neste sentido ele reabre o caminho das ambigüidades do velho conceito de influência indo em direção contrária ao promissor trânsito da influência à intertextualidade96 na medida em que o intertexto referese a algo que aparece na obra e não a um amplo processo genético que relegava o resultado isto é o texto a um segundo plano Esta posição de Guillén pode levar o leitor a pensar que ele é um entusiasta da instrumentalização do conceito de intertextualidade pela literatura comparada Não é bem assim Este estudioso também apresenta suas restrições a essa teoria se considerada no espaço específico da literatura comparada Mas tal questão será vista em momento oportuno O que interessa aqui é a teoria de Bloom De fato sua visada deixa relegados os aspectos formais dos po emas o que se justifica plenamente seu propósito central é elaborar uma teoria das profundezas da influência poética Independentemente do caráter polêmico de sua teoria independentemente também da ausência de perspectivas de seu aproveitamento metodológico há de se reconhecer que Bloom entra em cena em plena década de 1970 com uma copiosa e densa reflexão sobre a complicada problemática da criação literária envolvendo portanto questões que rodeiam alguns problemas centrais da literatura comparada Por outro lado sua teoria literária humanística serve de contraponto à despersonalização do processo criador tal como este é postulado pela teoria da intertextualidade de Julia Kristeva97 que será bem recebida por muitos comparatistas preocupados com a renovação da literatura comparada sobretudo a partir da década de 1970 como veremos a seguir Diante disso a presença de A Angústia da Influência tornase imprescindível em estudos de literatura comparada que tentam traçar um panorama de sua história incluindo os anos 70 do século XX INTERTEXTUALIDADE Dentro do contexto de renovação dos estudos de literatura comparada a partir da segunda metade do século XX a teoria da in 96 Idem p 378 97 Cf Carvalhal 1986 p 60 tertextualidade concebida por Julia Kristeva foi recebida por muitos comparatistas como um instrumento eficaz para injetar sangue novo no estudo dos conceitos de fonte e de influência A intertextualidade se insere numa teoria totalizante do texto englobando suas relações com o sujeito o inconsciente e a ideologia numa perspectiva semiótica Julia Kristeva98 identifica completamente sujeito e processo de significação Resolver o problema das relações entre texto e processos semióticos que aí se articulam é explicar como se constituiu o sujeito ou a sua ausência Aquilo que Kristeva designa como genotexto tornase o lugar teórico de uma espécie de fusão entre processos semióticos heterogêneos lugar de sua articulação e de sua passagem para o simbólico conforme nos esclarece sob forma de nota Laurent Jenny em seu conhecido artigo La stratégie de la forme99 Para chegar à elaboração do conceito de intertextualidade Kristeva apóiase em reflexões e proposições de Bakhtin apresentados em La poétique de Dostoievski100 Por isso seguiremos de perto a leitura que ela própria faz deste livro em Recherches pour une sémanalyse Essais 101 assinalando apenas os passos que a levam às suas formulações sobre a linguagem literária Antes porém cabe fazer uma breve apresentação de Bakhtin também na esteira de Kristeva para situálo no contexto da teoria literária Bakhtin foi um dos primeiros formalistas russos que procuraram substituir a segmentação estática dos textos por um modelo segundo o qual a estrutura literária se elabora a partir de uma relação com outra Isso só tornou possível graças à sua concepção de palavra literária entendendose por palavra a idéia de enunciado no âmbito de uma ciência da linguagem por ele chamada de translingüística Esse conceito ao lado de dois outros diálogo e ambivalência abriu caminho para se erigir a teoria da intertextualidade 98 Kristeva 1969 99 Jenny 1976 p 280 100 Bakhtin 1970 101 Kristeva op cit 1969 Ver particularmente Le mot le dialogue et le roman pp 143173 e Pour une sémiologie de paragrammes pp 174206 conjuntos sêmicos e das sequências poéticas o sujeito da escrita o destinatário e os textos exteriores três elementos em diálogo O estatuto da palavra definese horizontalmente a palavra no texto pertence simultaneamente ao sujeito da escrita e ao destinatário e verticalmente a palavra no texto está orientada para o corpus literário anterior ou sincrônico Bakhtin designa estes dois eixos como diálogo e ambivalência O diálogo designa a linguagem assumida como exercício pelo indivíduo Para que as relações de significação e de lógica objeto da lingüística sejam dialógicas elas devem tornarse discurso e obter um autor do enunciado Segundo Bakhtin que tinha saído de uma Rússia revolucionária preocupada com problemas sociais o diálogo não só é linguagem assumida pelo sujeito é também uma escritura na qual se lê o outro Nesse momento Kristeva ressalta que não se trata de nenhuma alusão à psicanálise Disso decorre que o dialogismo de Bakhtin concebe a escritura como subjetividade e comunicabilidade ou para melhor dizer com Kristeva como intertextualidade O termo ambivalência implica a inserção da história e da sociedade no texto e do texto na história Bakhtin considera a escritura leitura do corpus literário anterior o texto absorção e réplica a um outro texto No âmbito dessa conceituação começa a se desvanece a noção de pessoasujeito da escritura e a imporse a ambivalência da escritura Talvez convenha retomarmos a tipologia de palavra estabelecida por Bakhtin para melhor compreendermos a noção de ambivalência e acompanharmos a leitura de Kristeva até o momento em que ela desentranha o conceito de intertextualidade em La poétique de Dostoievski Palavra direta remete ao sujeito exprime a última instância significativa do sujeito do discurso no quadro de um contexto como enunciado do autor exprimindo a denotação Palavra objetal referese ao discurso direto das personagens Tem uma significação objetiva direta mas não se situa no mesmo nível que o do discurso do autor distanciandose deste É um enunciado estranho subordinado ao enunciado narrativo como objeto da compreensão do autor O enunciado do autor subordina o enunciado objetal a seu próprio objetivo sem introduzir nele uma outra significação Assim o enunciado objetal tornase objeto de um outro enunciado denotativo e não tem consciência disso A palavra objetal é pois unívoca como o enunciado denotativo Palavra ambivalente Neste caso o autor pode se servir da palavra de outrem para injetar um sentido novo conservando o sentido que o enunciado já tinha Disso resulta que o enunciado adquire duas significações tornase ambivalente Esta categoria de enunciados ambivalentes caracterizase pelo fato de que o autor explora a palavra de outrem No universo discursivo do livro o destinatário está incluído apenas como propriamente discurso Fundese portanto com aquele outro discurso livro em relação ao qual o escritor escreve seu próprio texto de modo que o eixo horizontal sujeitodestinatário e o eixo vertical textocontexto coincidem para revelar um fato maior a palavra o texto é um cruzamento de palavras textos onde se lê pelo menos uma outra palavra texto Segundo Kristeva Bakhtin não distingue claramente esses dois eixos mas esta falta de rigor não minimiza uma importante descoberta para a teoria literária todo texto se constrói como mosaico de citações todo texto é absorção e transformação de um outro texto Em lugar da noção de intersubjetividade instalase o da intertextualidade e a linguagem poética lêse pelo menos como dupla102 Neste momento Kristeva elabora o já famoso conceito de intertextualidade A partir do diálogo e da ambivalência a linguagem poética no espaço interior do texto tanto quanto no espaço dos textos é um duplo Essa noção de duplo implica que a unidade mínima da linguagem poética é pelo menos dupla não no sentido da diade significantesignificado mas no sentido de uma e outra e faz pensar no funcionamento da linguagem poética como um modelo tabular em que cada unidade sempre dupla atua como um vértice multideterminado A noção de texto em Kristeva é ampla Tornase sinônimo de sistema de signos quer se trate de obras literárias de linguagens orais de sistemas simbólicos sociais ou inconscientes 102 Idem p 146 Propondose a uma revisão da concepção geral do texto literário e aceitando também os princípios enunciados por Saussure em seus Cahiers sur les anagrammes103 Kristeva apresenta em Pour une sémiologie des paragrammes104 uma concepção paragramática da linguagem poética que implica as seguintes teses A linguagem poética é a única infinidade do código O texto literário é um duplo escrituraleitura O texto literário é uma rede de conexões O texto literário se insere no conjunto dos textos é uma escrituraréplica de um outro outros textos Pelo seu modo de escrever lendo o corpus literário anterior ou sincrônico o autor vive na história e a sociedade se escreve no texto A ciência paragramática deve levar em conta uma ambivalência a linguagem poética é um diálogo de dois discursos Um texto estranho entra na rede da escritura que o absorve segundo leis específicas ainda a serem descobertas Assim no paragrama de um texto funcionam todos os textos do espaço lido pelo escritor Kristeva lembra a significação do verbo ler para os antigos Tal significação deve ser valorizada com vistas a uma compreensão da prática literária Ler era também recolher colher espiar reconhecer os traços tomar roubar Ler denota pois uma participação agressiva uma expropriação ativa do outro Escrever seria o ler convertido em produção indústria a escrituraleitura a escritura paragramática seria a aspiração de uma agressividade e de uma participação total105 A linguagem poética surge como um diálogo de textos Toda seqüência está duplamente orientada para o ato da reminiscência evocação de uma outra escrita e para o ato da somaçãot06 a transformação dessa escritura O livro remete a outros livros e pelo processo de somaçãos confere a esses livros um novo modo de ser elaborando assim a sua própria significação Nessa perspectiva o texto literário se apresenta como um sistema de conexões múltiplas que poderíamos descrever como uma estrutura de redes paragramáticas Kristeva chama de rede paragramática o modelo tabular não linear da elaboração da imagem literária em outros termos o grafismo dinâmico e espacial que designa a plurideterminação do sentido na linguagem poética Essas colocações de Kristeva deram origem a várias elaborações do conceito de intertextualidade no âmbito dos estudos literários e da poética literária Opondose a qualquer interpretação redutora diz a autora O termo intertextualidade designa esta transposição de um ou vários sistemas de signos num outro mas já que este termo foi freqüentemente entendido no sentido banal de crítica das fontes de um texto preferimos o de transposição que tem a vantagem de precisar que a passagem de um sistema significante a um outro exige uma nova articulação da temática existencial da posição enunciativa e denotativa107 Uma das reelaborações mais interessantes do conceito de intertextualidade é a de Laurent Jenny em La stratégie de la forme aliás já referido no início deste item Esse estudioso contesta a afirmação de Kristeva segundo a qual intertextualidade no sentido estrito não tem relação com a crítica das fontes Para Laurent Jenny a intertextualidade não é uma adição confusa e misteriosa de influências mas o trabalho de transformação e assimilação de vários textos operado por um texto centralizador que mantém o comando do sentido108 Destaquemos os três pontos essenciais nessa definição O reconhecimento da presença de outros textos em toda e qualquer obra literária 107 Kristeva op cit 1974 p 60 108 Jenny op cit p 262 O trabalho de modificação que os textos estranhos sofrem ao serem assimilados O sentido unificador que deve ter o intertexto entendido como texto absorvendo uma multiplicidade de textos mas ficando unificado por um sentido Há portanto três elementos em jogo o intertexto o novo texto o enunciado estranho que foi incorporado e o texto de onde este último foi extraído E há dois tipos de relações a considerar na problemática intertextual as relações que ligam o texto de origem ao elemento que foi retirado mas já agora modificado no novo contexto e as relações que unem este elemento transformado ao novo texto ao texto que o assimilou Assim a análise de uma obra literária buscará inicialmente avaliar as semelhanças que persistem entre o enunciado transformador e o seu lugar de origem e em segundo lugar ver de que modo o intertexto absorveu o material do qual se apropriou A noção de intertextualidade coloca imediatamente um delicado problema de identificação A partir de que momento podese falar da presença de um texto em outro em termos de intertextualidade Laurent Jenny propõese a falar de intertextualidade somente quando se puder localizar num texto elementos estruturados anteriormente a ele alem dos lexemas mas em qualquer nível de estruturação Distinguirseá este fenômeno da presença num texto de uma simples alusão ou reminiscência isto é cada vez que há empréstimo de uma unidade textual de seu contexto inserida tal qual num novo sintagma a título de elemento paradigmático A intertextualidade introduz um novo modo de leitura que solapa a linearidade do texto Cada referência textual é o lugar que oferece uma alternativa seguir a leitura encarandoa como um fragmento qualquer que faz parte da sintagmática do texto ou então voltar ao texto de origem operando uma espécie de amnésia isto é uma invocação voluntária do passado em que a referência intertextual aparece como elemento paradigmático deslocado e provindo de uma sintagmática esquecida Estes dois processos operando simultaneamente semeiam o texto com bifurcações que ampliam o seu espaço semântico Quaisquer que sejam os textos assimilados o estatuto do discurso intertextual é comparável ao de um superdiscurso uma vez que seus constituintes não são mais palavras mas fragmentos textuais o jáfalado o jáorganizado O textooriginário está virtualmente presente portador de seu sentido sem que se tenha necessidade de enunciálo Isso confere ao intertexto uma riqueza uma densidade excepcional Por outro lado ainda segundo Laurent Jenny o texto citado é desprovido de sua função denotativa Atua exclusivamente na esfera da conotação Cláudio Guillén reconhece o benefício considerável da teoria da intertextualidade para o comparatismo O intertexto referese a algo que aparece na obra que está nela e não a um amplo processo genético cujo centro de interesse localizavase sobretudo no trânsito relegando a um segundo plano tanto a origem quanto o resultado O conceito de influência tendia a individualizar a obra literária sem nenhuma eficácia O conceito de intertexto leva em consideração a sociabilidade da escritura literária cuja individualidade se realiza até certo ponto no cruzamento particular de escrituras prévias Guillén chama a atenção entretanto para o caráter autoritário e monolítico do pronunciamento de Kristeva e de Barthes Este aceitando as idéias de Kristeva esclarece que o intertexto nada tem a ver com a velha noção de fonte ou influência Todo texto é um intertexto outros textos estão presentes nele em níveis variáveis sob formas mais ou menos reconhecíveis os textos da cultura anterior e os da cultura circunstante todo texto é um tecido novo de citações acabadas Passam no texto redistribuidos nele pedaços de códigos formulas modelos rítmicos fragmentos de linguagens sociais etc pois sempre há linguagens antes do texto e ao redor dele A intertextualidade condição de qualquer texto qualquer que ele seja não se reduz evidentemente a um problema de fontes ou de influências o intertexto é um campo geral de fórmulas anônimas cuja origem é raramente localizável de citações inconscientes ou automáticas feitas sem aspas Barthes fala de um tecido de citações Para Guillén é evidente que as alusões de um texto a outro nem sempre são explícitas sobretudo se pensarmos que o aludido muitas vezes não é uma frase uma expressão uma fórmula ou um tópico mas uma estrutura verbal uma forma poética ou narrativa ou um paradigma genérico Barthes parece ter presentes mais as convenções anônimas e automatizadas Nesse sentido pouco adiantaria a intertextualidade para o comparatismo O caráter vago e ilimitado de dados que caracterizam os estudos de fontes e influências volta se a intertextualidade significa o anonimato e a generalidade Assim segundo o comparatista espanhol tal conceito se revela inoperante para a percepção de um fenômeno cuja relevância é indiscutível na literatura a individualidade Ainda segundo Guillén a idéia de intertextualidade se reduz mais a uma concepção geral de signo a uma teoria do texto do que a um método para a investigação sobre as relações existentes entre as diferentes obras Seria mais uma teoria que nos abre o caminho para a leitura mas que não nos oferece diretamente caminho Em outras palavras não resolve o método da literatura comparada O comparatista espanhol exagera ao fazer semelhante afirmação além de empobrecer a teoria da intertextualidade fixandose no comentário de duas citações retiradas de seus contextos e sem maiores explicações para contextualizálas Tal teoria não foi construída para resolver o método da literatura comparada mas indiscutivelmente a partir dela decorreram novas elaborações direcionadas inclusive para uma metodologia da literatura comparada como aquela proposta por Laurent Jenny cuja leitura é obrigatória para qualquer estudiosos de literatura comparada em nossos dias sobretudo se seu interesse for direcionado para o estudo da relação entre obras literárias isto é para uma poética comparativa Além disso o fim último da análise intertextual da obra literária é verificar de que modo o intertexto absorveu o material do qual se apropriou e não se deter nas semelhanças entre o enunciado transformador e o seu lugar de origem Nesse sentido ao contrário do que afirma Cláudio Guillén a teoria da intertextualidade mostrase operatória para a percepção da singularidade de uma obra literária Reconhecer a contribuição da teoria da intertextualidade para os estudos de literatura comparada não significa ignorar seus limites que numa certa medida coincidem com os da influência Leituras interessantes e esclarecedoras de obras literárias podem ser feitas levandose em consideração a intertextualidade explícita Em contrapartida a intertextualidade implícita revelase tão problemática e delicada quanto o conceito de influência Se de um lado é difícil delimitarse o que vem de uma relação direta ou indireta de um autor com outro o que vem pelo movimento e época literária o que vem pelos pressupostos culturais comuns e o que é motivado pela situação sócioeconômica e política de outro é dificílimo localizar a intertextualidade implícita para se avaliar o processo de absorção e transformação operado pelo texto receptor e se ler a obra levandose em consideração esse fenômeno Enfim intertextualidade e influência constituem conceitos que funcionam bem operacionalmente para se lidar com manifestações explícitas mas sua instrumentalização para se analisarem ocorrências implícitas dificilmente apresenta resultados satisfatórios pois estas dependem muito da erudição do leitor Tanto a influência quanto a intertextualidade defrontamse com problemas ligados à criação literária A primeira canaliza sua atenção para os sujeitos criadores situandose num espaço teórico no qual o homem ainda se mantém e garante por meio de sua produção literária e de seu contato com a de outros a continuidade da literatura Ao focalizar sua atenção para os textos os objetos criados a teoria da intertextualidade situase em termos teóricos num pólo oposto inserindose no contexto da visão desconstrutivista marcada entre outras idéias pela morte do sujeito Como decorrência de seus pressupostos teóricos o conceito de influência permite que se instrumentalize a idéia de modelo ao passo que o de intertextualidade a derruba pois está inserido na concepção de literatura como um vasto sistema de trocas onde a questão da propriedade e da originalidade se relativizam e a questão da verdade se torna impertinente DA INFLUÊNCIA À RECEPÇÃO A absorção do termo recepção diretamente relacionado à estética da recepção pelos comparatistas no começo da década de 1970 obedece a uma tendência da história da literatura comparada como disciplina universitária de definirse em relação aos métodos críticos que ocupam a cena dos estudos literários há aproximadamente um século Nos anos 60 a Universidade de Constança reuniu filólogos que tomando posição perante a crise das disciplinas filológicas e diretamente interessados na revisão da autoimagem da teoria da ciência fundaram o primeiro departamento de Ciência da Literatura na Alemanha Este grupo de estudiosos dentre os quais destacamse Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser voltouse para o estudo da estética da recepção e do efeito com o intuito de renovar os estudos literários e superar os impasses da história positivista os impasses da interpretação que apenas servia a si mesma ou a uma metafísica da écriture e os impasses da literatura comparada que tomava a comparação como um fim em si A partir de então colocase a possibilidade de o conceito de recepção vir a substituir os de influência e fortuna englobandoos numa perspectiva mais vasta Não se trata evidentemente de uma apropriação artificial O fenômeno da recepção encontrase no âmago dos estudos de literatura comparada Esta trabalha correntemente com as noções de emissor e receptor às quais se juntam as de transmissor e mediador Como já foi visto na primeira parte deste livro Paul Van Tieghem em La littérature comparée estabelece a ligação entre literatura comparada e estudo das influências O item que tem por título As Influências Nacionais Antigas e Estrangeiras e Modernas é seguido de um outro Sucessos e Influências Globais no qual o autor propõe o termo doxologia para os estudos sobre o sucesso ou a fortuna de um escritor no estrangeiro com o intuito de distinguilos do estudo das influências Fortuna sucesso fonte e influência constituem termos aplicados com frequência sem rigor para designar as pegadas que um escritor deixa atrás de si Vale a pena retomálos aqui para reiterar a explicitação de seus conteúdos Fortuna é o conjunto dos testemunhos que manifestam as qualidades de uma obra Inclui as noções de sucesso e influência Sucesso é um conceito de ordem quantitativa indica o número de edições traduções adaptações objetos que se inspiraram na obra e leitores que a leram O estudo do sucesso constitui um dos ramos da sociologia dos fatos literários A este conceito opõese o de influência de ordem qualitativa que se circunscreve no âmbito de um mecanismo sutil e misterioso através do qual uma obra contribui para o nascimento de outra A influência está internamente relacionada ao leitor ativo no qual ela vai fecundar a imaginação criadora O sucesso dá conta de leitores passivos O conceito de fonte associase intimamente ao de influência Ambos dizem respeito aos mecanismos da criação literária e funcionam como conceitos operatórios na literatura comparada tradicional voltada para o estudo das relações entre uma obra e seus modelos Fonte e influência constituem duas faces de um mesmo problema o que as diferencia é a linha de direção de emissor a receptor A busca da influência conduz do emissor ao receptor privilegiando o pólo ativo da ação de influir A pesquisa das fontes faz o caminho inverso remonta do receptor ao emissor Deste modo acentua o pólo passivo da ação de influir Na bibliografia crítica de literatura comparada tradicional o número de estudos sobre influências ultrapassa de muito o de estudos sobre fontes Na opinião de Brunel Pichois e Rousseau isso se deve ao fato de que a influência segue canais facilmente observáveis traduções adaptações enquanto a peregrinação às fontes é uma aventura na obscuridade dos possíveis Talvez estes comparatistas tenham razão quanto aos caminhos metodológicos que operaciona Iizaram tais conceitos mas não quanto à sua essência Localizar fontes é tão problemático quanto localizar influências a não ser quando são explícitas O estudo da fortuna fonte sucesso e influência faz parte do domínio da recepção literária mas não se encontra no centro da estética da recepção Ao contrário esta teoria vai colocar em xeque os referidos conceitos instrumentalizados pela história e comparatismo tradicionais abrindo uma perspectiva diferente de pesquisa Os estudos de recepção procuram destacar a atividade daquele que recebe mais do que a atividade potential do objeto recebido de modo que a relação obraleitor passa a constituir um caráter fundamental do fato literário Para se compreender as diferenças de perspectivas impõese expor embora de modo sucinto algumas informações básicas sobre a estética da recepção Considerando que a estética da recepção não é homogênea havendo divergências entre seus teóricos considerando que não cabe apresentála aqui em todas as suas dimensões considerando que o interesse é mostrar como ela foi vista como possibilidade de renovação para a literatura comparada e finalmente considerando que Hans Robert Jauss é reconhecido como o teórico que melhor formulou o conceito da estética da recepção serão retomados aqui os aspectos fundamentais desta teoria a partir de sua exposição Estética da Recepção e Comunicação Literária apresentada no IX Congresso da Associação Internacional de Literatura Comparada117 Como já foi exposto a estética da recepção surgiu nos anos 60 num contexto marcado pelo questionamento do paradigma dominante do estruturalismo de tendência aistórica e acabou se transformando numa teoria da comunicação literária O objeto de suas pesquisas é a história literária definida como um processo que envolve três actantes o autor a obra e o público Tratase de um processo dialético no qual o movimento entre produção e recepção passa sempre pela comunicação literária Daí o fato de a noção de recepção ter um duplo sentido acolhida ou apropriação e troca ou intercâmbio Por outro lado a noção de estética não se refere nem a uma consciência do Belo nem à antiga questão sobre a essência da arte mas procura apreender algo sobre a arte por meio da experiência da própria arte pelo estudo histórico da prática estética que graças às atividades produtoras receptoras e comunicativas está na base de todas as manifestações da arte Recepção como noção estética abrange um duplo sentido passivo e ativo ao mesmo tempo Definese como um ato de face dupla que compreende simultaneamente o efeito produzido pela obra e a maneira como esta é recebida pelo público Este ou o destinatário podem reagir de vários modos consumir simplesmente a obra ou criticála admirála ou recusála deleitarse com sua forma interpretar seu conteúdo assumir uma interpretação reconhecida ou tentar apresentar uma nova Finalmente o destinatário pode responder a uma obra produzindo ele próprio uma outra E assim se realiza o circuito comunicativo literário o produtor é também um receptor quando começa a escrever Por meio dessas diversas atividades o sentido de uma obra está sempre se renovando como resultado do horizonte de expectativas Para melhor sublinhar a complexidade de uma tal óptica Jauss introduziu o conceito de horizonte de expectativas que vem desempenhar um papel metodológico essencial ele abarca os pressupostos sob os quais um leitor recebe uma obra Devese distinguir o horizonte de expectativas intraliterário implícito na obra com o qual se entende a précompreensão dos gêneros e a contraposição da linguagem poética e prática e um horizonte de expectativas extraliterário que é dado pelo mundo vital prático do leitor individual ou dos es tratos de leitores118 A reconstrução desses horizontes de expectativas pode dar resposta segundo Jauss à pergunta sobre como foi recebida pelo público uma obra literária por que ela foi entendida numa determinada época de tal modo e em outra de outro Da recepção diferente de um texto literário por leitores contemporâneos e por leitores historicamente sucessivos se depreende o potencial de sentido da obra Com isso Jauss se previne de uma concepção extremamente subjetivista e relativista na medida em que cada tipo de interpretação do texto se legitima por disposições históricas sociais literárias estéticas e 117 Jauss 1981 118 Costa Lima 1979 p 50 pessoais da recepção Somente sob esta premissa se podem descrever objetivamente as recepções e a investigação da recepção terá sentido Contra uma tradição de pesquisas históricas fundamentadas num ideário poético que contempla as noções de fortuna influência sucesso etc a estética da recepção restitui ao leitor seu papel ativo na concretização sucessiva do sentido das obras ao longo da história Por outro lado sublinha Jauss que a estética da recepção não deveria ser confundida com uma sociologia histórica do público voltada apenas para a mudança de seu gosto de seus interesses e de suas ideologias Opondose a estes dois métodos que reduzem a história literária a causalidades unilaterais a estética da recepção mantém uma concepção dialética a história das interpretações de uma obra de arte é uma troca de experiências ou um diálogo um jogo de perguntas e respostas Convém lembrar aqui que Jauss para elaborar suas reflexões apóiase em parte na teoria da estrutura da obra literária de Roman Ingarden cuja perspectiva central é a de que uma obra é inacabada e ela só se manifesta plenamente por meio da interação textoleitor Também contra a tendência predominante das teorias formalistas dos anos 60 cujos métodos descritivos descartavam a interpretação a estética da recepção faz uma profissão de fé hermenêutica situandose no campo das ciências do sentido Contudo não abandona as conquistas da aproximação estruturalista e longe está de seu projeto dedicarse a uma exegese imanente para atingir uma pretensa objetividade A interpretação exige que o intérprete procure controlar sua aproximação subjetiva reconhecendo o horizonte limitado de sua posição histórica Esta teoria retomou os argumentos da filosofia hermenêutica de Gadamer o qual criticava nos anos 60 o objetivismo da exegese reinante no ensino literário e denunciava as ilusões do historicismo que preconizando a volta às fontes e a fidelidade ao texto levava o intérprete a ignorar os limites de seu horizonte histórico a desprezar o que ele devia à história da recepção de seu texto crendo que uma relação pura e imediata com o texto garantia a posse de seu sentido verdadeiro Além disso a recepção estética ainda inspirandose na hermenêutica de Gadamer procurou desenvolver os três momentos da interpretação compreensão interpretação e aplicação incluídos nos modelos da teologia e da jurisprudência Ambas nunca perderam de vista que no seio da compreensão ocorre uma aplicação à situação presente do intérprete do texto que está sendo compreendido De modo que o ato de compreender se completa para o teólogo na pregação e para o jurisconsulto na sentença A significação de um texto de jurisprudência ou de um texto teológico não se esgota na visada histórica a significação de uma lei deve concretizarse na sua aplicação a cada caso novo um texto religioso deve ser compreendido como mensagem de salvação de acordo com cada situação concreta Inserindose nessa linha hermenêutica para realizar seu trabalho concreto de interpretação a estética da recepção reconhece a aplicação como parte integrante de qualquer compreensão e localiza na experiência estética a unidade dos três momentos do ato hermenêutico Sumariados alguns pontos fundamentais da estética da recepção tal como é formulada por Jauss cabe agora destacar as colocações deste teórico sobre os estudos de literatura comparada Segundo ele a chance particular para a renovação dos estudos de literatura comparada se situaria na reconciliação entre o conhecimento histórico e as necessidades de uma comunicação literária Tendo sido fundada com o objetivo de compensar o isolamento das literaturas nacionais a literatura comparada apresenta dificuldade em reconhecer o interesse legítimo de colocar o problema da comunicação literária graças ao fato de ela haver tido relações estreitas durante muito tempo com a metodologia positivista com a história das idéias ou com formalismo A partir da definição de literatura comparada de JeanMarie Carré como o estudo das relações espirituais internacionais das relações de fato Jauss sublinha que a experiência vivida da comunicação literária permanece oculta sob uma rede de fatos literários e se desconhece que sempre existe por detrás das relações objetivas ou espirituais sujeitos agentes que por meio da recepção da interpretação da seleção e da reprodução da literatura anterior realizam um intercâmbio literário119 Os comparatistas dos anos 70 para escaparem de uma comparação voltada para si mesma teriam muito a aprender tanto com os 119 Iidem p 19 humanistas quanto com os filósofos do século XVIII para os quais a comparação em história literária tem necessidade de um tertium comparationis vale dizer de uma norma teórica Esta é a opinião expressa de Jauss Tal norma não decorre imediatamente do objeto da comparação Ela provém da précompreensão de um interesse oculto ou inconsciente do intérprete devendo este explicitálo com o auxílio de sua reflexão hermenêutica e introduzilo conscientemente no ato da comparação se quiser que sua análise se fundamente numa questão reconhecida e não num preconceito120 Para os humanistas tanto quanto para os filósofos do século XVIII a interpretação das culturas antiga e moderna constituía um meio de formular e descrever um ideal para a sociedade presente e futura Assim para citar apenas dois dentre os vários exemplos arrolados por Jauss em Paralléle des Anciens et des Modernes 16881697 Charles Perrault queria pôr à prova o progresso do século de Luís XIV sob as normas de perfeição da cultura antiga e acabou apesar de sua primeira intenção por reconhecer a qualidade incomparável dos dois mundos históricos e Lhistoire de lAntiquité 1764 concebida como uma antítese das Belas Artes dos Modernos Winckelmann não devia somente fazer aparecer por meio de seu desenvolvimento entre os Antigos a idéia do Belo a única digna de ser imitada mas também devia colocar diante dos olhos de seus contemporâneos mediante novas interpretações do Alto Estilo e do Belo Estilo uma utopia estética de uma vida boa em comunidade Cotejados com estes antecedentes e outros as finalidades e projetos da disciplina que se quer comparatista parecem ou pelo menos pareciam a Jauss em 1979 muito modestos Até mesmo o projeto da Associação Internacional de Literatura Comparada então em curso de uma História Comparada das Literaturas de Línguas Européias corria o risco diante da falta de uma finalidade que ultrapassasse a comparação metodológica de erigir um museu imaginário da literatura universal Apesar de Jauss colocar como uma tarefa difícil a possibilidade de a literatura comparada ultrapassar os meros limites da comparação metodológica houve por parte dos comparatistas um olhar atento para a estética da recepção e o reconhecimento de sua contribuição para a renovação desse campo de estudos literários Tanto é que o próprio Jauss teve oportunidade de dialogar com os comparatistas no âmbito do IX Congresso da Associação Internacional de Literatura Comparada e antes disso em 1976 uma das grandes sessões do VIII Congresso realizado em Budapeste foi consagrada à Comunicação Literária e Recepção durante a qual a estética da recepção foi amplamente debatida Desde então a recepção no dizer de Yves Chevrel adquire direito de cidadania entre os grandes conceitos objetos de pesquisa comparatista e passa a constituir temas de livros de literatura comparada como ocorre com Précis de littérature comparée121 O que não significa necessariamente uma adesão total aos pontos fundamentais da estética da recepção Para Manfred Gsteiger122 a teoria da estética da recepção coloca à disposição dos comparatistas um certo número de conceitos que lhes dá a possibilidade de ultrapassar a visão tradicional das relações das influências e dos sucessos em outros termos de sair das trilhas de um positivismo causal e final sem no entanto cair na voga das comparações puras que correm o risco de significar tudo e nada ao mesmo tempo Ao fazer uma súmula da história da literatura comparada Gsteiger mostra as consequências da adoção do formalismo para a literatura comparada o esfacelamento de seu quadro teórico A partir de então o comparatismo definese pela afirmação de um caráter plural que pode ter seus méritos mas que não se revela com condições de fundar uma teoria mostrando claramente que a época em que se podia falar rigorosamente de um método específico já passou A contribuição da estética da recepção para o estudo comparatista situase pois em meio ao questionamento ao positivismo da escola francesa graças ao impacto do formalismo na primeira metade deste século e à confirmação sociológica dos estudos literários objeto de discussão durante o VI Congresso da Associação Internacional de 120 Idem ibidem 121 Brunel Chevrel 1989 122 Gsteiger 1980 Literatura Comparada realizado em Bordeaux em 1970 Nessa ocasião abriuse a possibilidade de se reconhecer a obra literária na sua especificidade sem se renunciar a colocála no seu quadro histórico e social reconciliandose assim uma aproximação completa simultaneamente intrínseca e extrínseca123 Dentro desse contexto a estética da recepção oferece instrumentos mais afinados e complexos para a literatura comparada continuar desenvolvendo seus estudos de recepção que num certo sentido não ignoravam o papel fundamental do leitor e do público Para estabelecer um elo entre os estudos de recepção da literatura comparada e a estética da recepção da Escola de Constança Gsteiger vai buscar nos textos de alguns pioneiros afirmações nas quais se possa vislumbrar a importância concedida ao elemento receptor como é o caso destas palavras de Baldensperger em seu livro La littérature création succes durée publicado em 1913 A literatura tal qual é produzida pelos artistas que a alimentam ou tal qual é acolhida pelo público que a aceita não é inteiramente uma única e mesma coisa e em qualquer ação há dois termos o agente de influência e o sujeito receptor e este é em suma mais importante que o primeiro124 Ao se referir a Baldensperger e a outros pioneiros do comparatis mo tradicional Gsteiger apresentaos como antecessores dos teóricos da estética da recepção por eles desconhecidos ou ignorados intencionalmente mas faz questão de dizer que tais pioneiros não deram o passo decisivo para articular claramente um método baseado na idéia da relação binária entre obra e autor mensagem e receptor Cumpre dizer que não deram o passo decisivo e nem poderiam têlo feito pois não dispunham ainda dos instrumentos teóricos que permitiram aos estudiosos da Escola de Constança avançar nas suas reflexões e propostas Os teóricos da estética da recepção descreveram de um modo muito mais completo os problemas colocados por aquela relação e deram um passo a mais ao incorporarem o nível de interpretação procurando assim afinar seus métodos Como se pode observar a comunicação de Gsteiger aponta para a possibilidade de a estética da recepção contribuir para um refinamento dos estudos de recepção na literatura comparada mas não vai além no sentido de indicar de modo concreto a renovação de seus instrumentos teóricos É verdade que se trata de um texto apresentado em 1976 quando a estética da recepção era relativamente recente e as reflexões sobre um possível aproveitamento desta teoria pela literatura comparada estavam começando a engatinhar O mesmo não se pode dizer com relação ao capítulo Les études de réception de autoria de Yves Chevrel em Précis de littérature comparée125 publicado em 1989 A fase da primeira infância passara há muito tempo e apesar de a recepção ter adquirido direito de cidadania entre os grandes conceitos de literatura comparada o que se observa é que os modelos de estudo de recepção arrolados e apresentados confirmam a linha da literatura comparada tradicional De um lado Yves Chevrel não escapa da tendência dos comparatistas em geral de mostrar com insistência que a literatura comparada tradicional já dispunha de uma linha bem desenvolvida de estudos de recepção embora o termo recepção não tivesse uma longa tradição neste domínio dos estudos literários De outro o aproveitamento da estética da recepção para a renovação da literatura comparada é colocado de modo muito tímido Vale a pena acompanharmos de perto seu pensamento e seus argumentos a este respeito Yves Chevrel retoma a definição de horizonte de expectativa tal como é formulada por Jauss como sistema de referências objetivamente formulável que para cada obra no momento da história em que aparece resulta de três fatores principais a experiência prévia que o público tem do gênero ao qual ela pertence a forma e a temática de obras anteriores cujo conhecimento ela pressupõe e a oposição entre linguagem poética e linguagem prática mundo imaginário e realidade cotidiana126 Desta definição são pontuados dois elementos a ênfase no enraizamento histórico da recepção de qualquer obra literária por meio da referência ao gênero e às obras anteriores e a idéia cara aos 123 Idem ibidem 124 Baldensperger apud Gsteiger op cit 1980 125 Brunel Chevrel op cit 126 Jauss apud Brunel Chevrel op cit p 200 retirada da edição francesa Pour une esthétique de la réception Paris Gallimard 1978 p 49 formalistas russos da especificidade da linguagem literária e de seu desvio em relação a um uso normal da língua Quanto ao primeiro elemento destacado Yves Chevrel reconhece a dificuldade de se estabelecerem critérios que permitiriam definir um horizonte de expectativa válido para qualquer momento da história cultural de um país ou a grade teórica correria o risco de ser demasiado complicada ou ao contrário teria as malhas muito grossas e reteria apenas o acessório Chevrel concorda também com Jauss quanto à inscrição num gênero desempenhar seu papel no momento em que se admite a codificação literária em gêneros e subgêneros tais como comédia tragédia tragicomédia pastoral etc A recepção de Shakespeare na França explicase por esta grade responsável pela incerteza quanto à classificação de suas peças e conseqüentemente por sua rejeição ou pelo menos por uma atitude de desconfiança por parte de seus leitores espectadores críticos e adaptadores A este exemplo Chevrel contrapõe um outro para mostrar os limites do conceito de horizonte de expectativa No século XX verificase um esgarçamento da noção de gênero novelas contos romances short stories etc acabam reunindose em conjuntos como narrativastextos Entretanto isto não impede que uma parte importante da produção literária contemporânea continue a referirse implícita ou explicitamente a obras anteriores e gêneros em desuso É o caso de Dom João ou O Amor da Geometria de Max Frisch que só é legível se for inserido na linha dos grandes modelos o Burlador de Tirso de Molina e Don Juan de Molière Quanto ao segundo elemento isto é à diferença entre o uso literário e o uso prático da língua Yves Chevrel afirma que em certos casos ela pode revelarse inoperante Para ilustrar esta afirmação ele se vale de dois exemplos Muitos críticos alemães dentre os quais muitos favoráveis a Zola acusam este escritor de situarse fora da literatura na medida em que ele não atende as três noçõeschave de uma concepção idealista da literatura humor transfiguração do real e reconciliação Em outros termos para eles no fundo o romancista francês faz um uso nãoliterário dos meios que a língua coloca à sua disposição Os romances de Zola entretanto se apresentam como ficção Para sublinhar que a fronteira entre a linguagem poética e a linguagem prática é variável podendo desafiar a perspicácia do receptor Chevrel referese ao caso de leitores que acreditavam na autenticidade das cartas publicadas sob o título de Julie ou la nouvelle Héloïse de Rousseau Em vista disso os elementos considerados por Jauss devem ser utilizados com precaução Nesse caso específico não se pode deixar de assinalar a fragilidade do argumento de Yves Chevrel Uma vez que este estudioso francês filiase à linha que considera a especificidade dos estudos comparatistas de recepção os quais não se podem servir dos mesmos meios utilizados para se falar de uma obra inserida na tradição cultural do público ao qual ela se dirige ele propõe um aproveitamento metodológico do conceito de horizonte de expectativa para este fim No caso específico de uma obra estrangeira que venha perturbar um sistema literário em cujo horizonte de expectativa ela não se situe o que importa do ponto de vista metodológico é explorar ao máximo o caráter revelador que ela possa ter nem que seja por meio de mecanismos de defesa que possa suscitar Em outras palavras um bom método para reconstruir o horizonte de expectativa do público é medir o grau de atenção que este dispensa às obras estrangeiras Para explicitar melhor seu pensamento Yves Chevrel inverte a fórmula que subjaz numa afirmação de Gustave Lanson feita em 1917 segundo a qual o sucesso de uma literatura estrangeira era sinal de uma fraqueza nacional os franceses liam Ossian porque tinham apenas Bernis ou liam Byron porque tinham apenas Parny Inversamente perguntase o comparatista francês contemporâneo se não é por que os franceses conhecem Tolstoi ou Dos Passos que também podem ler Roger Martin du Gard ou Jean Paul Sartre Não param por aí as considerações de Yves Chevrel sobre o horizonte de expectativa Ele retoma os dois tipos de horizonte de expectativa do público e da obra O do público constitui uma grade hermenêutica freqüentemente implícita que orienta a tomada de contato com a obra estrangeira Cada leitor tem seu passado próprio com suas experiências estéticas anteriores No entanto ele não escapa a uma certa homogeneização de visão decorrente da tradição cultural na qual se insere A escola e a universidade devem ser levadas particularmente em conta no processo de formação de horizontes de expectativas Um universitário francês não germanista que tivesse à sua disposição apenas a grade tragédia de Racine e fosse ler Pentesiléas de Kleist poderia decepcionarse chocarse ou entusiasmarse com a peça do autor alemão em virtude dessa grade O horizonte de expectativa da obra por sua vez confundese com o do leitor implícito O primeiro responsável por este horizonte de expectativa é o autor que define explicitamente o público visado ou a maneira de ler sua obra ou ambos ao mesmo tempo No entanto o texto publicado escapa às intenções explícitas de seu autor e a crítica universitária ou não encarregase de dizer incessantemente como se pode como se deve ler um texto de modo que o horizonte de expectativa nunca será completamente decifrado Para Yves Chevrel é mais fácil delinear o horizonte de expectativa de uma obra que o de um público por isso ele critica o fato de Jauss escamotear esta questão Para reconstituir o horizonte de expectativa dos leitores de Dom Quixote Jacques le fataliste e Madame Bovary ele parte das próprias obras Estas por sua vez expõem explicitamente ou não seus modelos e contramodelos e não os dos leitores ou os do público O comparatista francês não considera este um bom método porque desliza do leitor implícito ao leitor real Por isso ele propõe a combinação dos estudos quantitativos completamente descarta dos teóricos da estética da recepção e das análises qualitativas Assim as conclusões de La crise littéraire à lépoque du naturalisme Roman théâtre et politique127 de Christophe Charles publicado pela Pens em 1979 poderão servir de excelente suporte para um estudo singular O autor mostra que a crise de superprodução que afeta o mercado literário na França no fim do século XIX deve ser analisada e modulada em razão dos grandes gêneros Os jovens interessamse sucessivamente pelo romance pela poesia e pelo teatro Tal constatação baseada em estatísticas permite seguir o deslocamento do interesse do público cada vez mais ávido por romances até 1884 por coletâneas de poesias até 1890 e por teatro a partir dessa data Estes fatos apresentam de modo esquemático os grandes contornos de um horizonte de expectativa e podem estar na retaguarda de uma análise qualitativa como por exemplo a da recepção de Casa de Boneca de Ibsen Esta peça foi montada em Paris em 1894 num momento em que o gosto pelo teatro era muito vivo Entretanto isso não lhe garante uma recepção favorável Muitas críticas da época mostram que ela fugia ao horizonte de expectativa de um público dividido entre o vaudeville bem realizado e a atração pelo teatro simbolista Como se pode depreender Yves Chevrel canaliza mais sua atenção sobre os problemas da contribuição metodológica da noção de horizonte de expectativa para a recepção que poderia enquadrarse nos estudos de fortuna e sucesso da literatura comparada tradicional ou em termos de uma tipologia da recepção da obra literária em recepção passiva constituída pela ampla massa de leitores e recepção produtora consubstanciada na crítica no comentário no ensaio em cartas e outros documentos que entram no circuito da comunicação de uma obra literária É deixada de lado a recepção produtora intimamente relacionada ao ato criador por meio da qual escritores estimulados por obras literárias filosóficas psicológicas e plásticas criam uma nova obra de arte128 A recepção produtora encontra na influência seu par homólogo guardadas evidentemente as diferenças dos pressupostos das teorias nas quais tais noções se inserem E é este tipo de recepção que tem sido mais estudado não se diferenciando quanto a este aspecto da tendência da literatura comparada tradicional em privilegiar o estudo das influências Qual a contribuição da estética da recepção para a renovação dos estudos de influência Com seu objetivo de substituir a historiografia literária substancialista fundada no estudo da obra e do autor por uma historiografia voltada para o leitor a estética da recepção abre perspectivas para que a influência já não se explique mais causal e geneticamente de obra a obra de autor a autor de nação a nação mas como resultado complexo da recepção Tendo em vista as dificuldades da operacionalidade de uma das noções mais importantes desta teoria ou seja a reconstituição do horizonte de expectativa que atinge não só o leitor passivo e o leitor reprodutor mas também o leitor produtor podese dizer que ela pouco avançou em termos de contribuição metodológica para um 127 Christophe apud Brunel Chevrel op cit 128 Classificação de Link reproduzida e analisada em MoogGrünewald 1984 melhor desvendamento da relação entre autor obra e leitor no campo comparatista Nesse sentido o estudo de influência como recepção produtora não escapa das dificuldades próprias aos estudos de influência e intertextualidade implícitas LITERATURA COMPARADA NO BRASIL Como dizia Ruth Benedict não se deve montar um Frankenstein cultural feito de pedaços tomados isoladamente a culturas quaisquer Do mesmo modo não se pode por exemplo fazer literatura comparada tornando digamos a função do dinheiro em Machado de Assis em Dostoiévski e em Balzac e efetuar um confronto puro e simples pois seria produzir um Frankenstein crítico É preciso considerar a obra de Machado como um todo e ver de que maneira o dinheiro funciona nela Certamente funcionará de maneira diversa nas de Dostoiévski e Balzac vistas também como totalidades em que ele se insere Só a partir daí será possível proceder á comparação ANTONIO CANDIDO PANORAMA Os anos 80 foram decisivos para o estatuto institucional da literatura comparada no Brasil Em 1986 foi criada em Porto Alegre
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação CIP Câmara Brasileira do Livro SP Brasil Nitrini Sandra Literatura Comparada história teoria e crítica Sandra Nitrini São Paulo Editora da Universidade de São Paulo 1997 Acadêmica 16 Bibliografia ISBN 8531404223 1 Literatura comparada 2Literatura História e crítica I Título II Série 974806 CDD809 Índices para catálogo sistemático 1 Literatura comparada 809 Direitos reservados à Edusp Editora da Universidade de São Paulo Av Prof Luciano Gualberto Travessa J 374 6º andar Ed da Antiga Reitoria Cidade Universitária 05508900 São Paulo SP Brasil Fax 011 2116988 Tel 011 8138837 r 216 Printed in Brazil 1997 Foi feito o depósito legal CONCEITOS FUNDAMENTAIS Quidquid recipitur recipitur ad modum recipientis S TOMÁS PREÂMBULO Vimos o panorama da trajetória da literatura comparada consubstanciada sobretudo em três tendências a francesa a americana e a dos países do Leste europeu ou inserida em sua tradição teórica com premissas de ordem positivista fenomenológica da obra literária e de dialética entre a sociedade e a literatura respectivamente Ainda neste panorama tivemos a oportunidade de acompanhar discussões sobre a especificidade desta disciplina no campo dos estudos literários Questão essa ainda irresolvida em termos de um consenso geral Por mais amplo que se desenhe seu campo de estudos no entanto e por mais variadas que sejam as opiniões de especialistas sobre o objeto o método e a finalidade da literatura comparada uma questão medular congrega todas as discussões em torno do conceito 126 Literatura Comparada de influência Seja para afirmála seja para negála seja para transformála seja para substituíla por um novo conceito como o da intertextualidade seja para renovála dentro do contexto da teoria da estética da recepção Como indica o título deste capítulo serão tratados apenas alguns conceitos fundamentais problematizados no decorrer da história da teoria literária e no seu aproveitamento pela literatura comparada com o intuito de trazer a discussão travada em torno deles e de mostrar diferentes caminhos que foram e eventualmente poderão ser seguidos de acordo com a concepção teórica de cada estudioso Conceitos como paródia paráfrase plágio e outros de grande interesse para a literatura comparada não serão contemplados aqui tendo em vista que o objetivo desta parte não consiste em aprofundar toda a questão referente à imitação mas tãosomente em rastrear as distinções entre os conceitos de imitação é de influência tais como foram colocados em manuais de literatura comparada e em comunicações proferidas no âmbito dos congressos da Associação Internacional de Literatura Comparada Na esteira de tais conceitos aparece inevitavelmente o de originalidade Com este último encerrase o núcleo tradicional de conceitos da literatura comparada diretamente ligados à problemática da criação literária Também são direcionadas pelo olhar comparatista as apresentações neste capítulo das teorias da estética da recepção é da intertextualidade Não se encontrará aqui exposições destas teorias fundamentadas em ampla bibliografia mas sobretudo reproduções de posicionamentos de comparatistas quanto às suas contribuições para a renovação da literatura comparada na década de 1970 Cabe portanto ao leitor defrontarse com este capítulo como um espaço para esclarecimento de alguns conceitos e como um elo intermediário entre Percursos Históricos e Teóricos e Literatura Comparada no Brasil INFLUÊNCIA IMITAÇÃO E ORIGINALIDADE Dentre os estudiosos filiados à literatura comparada tradicional sobressaise Cionarescu pela clareza com que deslinda o emaranhado de conceitos como influência e imitação apesar de seu aspecto esquemático e conseqüentemente simplificador e polêmico Começarei expondo suas idéias1 O conceito de influência tem duas acepções diferentes A primeira a mais corrente é a que indica a soma de relações de contato de qualquer espécie que se pode estabelecer entre um emissor e um receptor O estudo da influência de Goethe na França por exemplo compreende um capítulo dedicado às traduções francesas de sua obra como outros sobre as imitações os contatos pessoais as críticas e os estudos publicados na França sobre o autor Nesse caso podese admitir que a influência de Goethe é o mesmo que o total das relações de contato que se pode assinalar entre Goethe e a literatura francesa A segunda acepção é de ordem qualitativa Influência é o resultado artístico autônomo de uma relação de contato2 entendendose por contato o conhecimento direto ou indireto de uma fonte por um autor A expressão resultado autônomo referese a uma obra literária produzida com a mesma independência e com os mesmos procedimentos difíceis de analisar mas fáceis de se reconhecer intuitivamente da obra literária em geral ostentando personalidade própria representando a arte literária e as demais características próprias de seu autor mas na qual se reconhecem ao mesmo tempo num grau que pode variar consideravelmente os indícios de contato entre seu autor e um outro ou vários outros Até certo ponto a influência pode confundirse com a imitação assim como em sua outra acepção confundiase em parte com a difusão Nesse caso o matiz que diferencia as duas noções é que a imitação referese a detalhes materiais como a traços de composição a episódios a procedimentos ou tropos bem determinados enquanto a influência denuncia a presença de uma transmissão menos material mais difícil de se apontar cujo resultado é uma modificação da forma mentis e da visão artística e ideológica do receptor 3 A imitação é um contato localizado é circunscrito enquanto a influência é uma aquisição fundamental que modifica a própria personalidade artisti 1 Cf Cionarescu 1964 e 1966 2 Cionarescu op cit 1964 p 92 3 Idem p 93 ca do escritor A influência distinguese da tradução que se identifica a si mesma e da imitação que se reconhece por um simples cotejo de textos Devemse assinalar aqui os riscos da excessiva simplifica ção de Cionarescu ao tratar de uma possível diferenciação entre os conceitos de imitação e influência no âmbito da literatura comparada sobretudo se tivermos em mente a história do conceito de imitação que ele próprio tem o cuidado de considerar embora também esquematicamente Cionarescu aponta quatro sentidos para imitação O primeiro se refere à mimesis imitação da natureza como fonte de arte Cabe aqui explicitar com a ajuda de Haskell M Block4 que imitação no sentido amplo de imitação da natureza referese ao padrão uniforme ou universal da experiência como norma de arte situandose na tradição platônica Esta imitação não é a representação de uma ação mas a idealização de uma experiência geral ou comum de acordo com a prática dos antigos e com a visão do escritor que é própria de seu tempo Assim concebida a imitação supõe seleção e transposição mais do que mera reprodução5 O segundo sentido vinculase à retórica do Renascimento que aconselhou a imitação dos grandes autores antigos de acordo com princípios e procedimentos que fazem quase sempre uma espécie de adaptação aos cânones e às formas e ao estado de espírito contemporâneos aos gêneros literários em vigor Esta segunda acepção entretanto não vigorou de modo tão límpido e tranquilo como nos faz crer a classificação de Cionarescu Convém não perdermos de vista a história do conceito de imitação e lembrarmos que no Renascimento ocorreu uma confusão entre poética e retórica confusão esta que perdurou nos séculos XVII e XVIII Os comentarores renascentistas comprometidos com a verdade literal a exortação moral e as necessidades de um público específico fundamentaramse sem rigor em Aristóteles Os cânones de verossimilhança e probabilidade ficaram sujeitos a reivindicações contemporâneas tendose apagado a distinção entre poética e história A noção de imitação de Platão como uma cópia literal da realidade externa levou os críticos renascentistas a darem mais importância ao objeto de imitação e ao grau de conformidade entre obra e modelo do que à estrutura artística da obra Deste modo a teoria de imitação de Platão como reflexo colidiu com a da Poética de Aristóteles nesse período em que o conceito de imitação foi usado para descrever a experiência literária Foi uma ironia que a noção literal de imitação conformidade entre a obra e o modelo tão combatida por Aristóteles em sua Poética tenha servido como uma importante fonte de deformação desse conceito durante e depois do Renascimento 6 De modo que a segunda acepção de imitação proposta por Cionarescu não reinou sozinha tendo de conviver com aquela que priorizava não a adaptação mas a conformidade entre a obra e o modelo o que veio a ser prejudicial para a concepção de imitação vinculada a uma experiência de criação literária O terceiro sentido de imitação ligase ao processo de adaptação renascentista que apresentava como resultado um produto literário uma obra escrita cujo título remete sempre ao de seu modelo É comum nos séculos XVI e XVII denominarse imitação não um princípio ou procedimento mas a obra literária que trai a presença destes A tragédia Iphigénie de Racine é uma imitação da tragédia de Eurípides O quarto sentido seria aquele utilizado pelo comparatismo e por meio do qual se verifica uma equivalência entre imitação e influência Provavelmente tal equivalência se explicaria como decorrência da própria concepção de imitação do início do século XVII quando a imitação livre constituía a emulação de grandes modelos do passado como instrumentos pelos quais o escritor podia mostrar sua originalidade Para estabelecer de modo prático a distinção entre influência imitação e tradução Cionarescu recorre aos cinco componentes da obra literária tema compreendido como matéria e organização da narração forma ou molde literário o gênero os recursos estilísti cos expressivos as idéias e sentimentos ligados à camada ideológica e finalmente a ressonância afetiva registro inconfundível da personalidade artística dos grandes escritores O fenômeno da influência limitase à absorção de um ou outro desses aspectos Quanto maior o número de elementos aproveitados da obra de um autor por outro tanto mais ele vaise aproximando da imitação da paráfrase até chegar à tradução quando todos os elementos são considerados Ainda dentro dos pressupostos da literatura comparada tradicional vale a pena trazer aqui o pensamento de Owen Aldridge sobre influência Não pelo teor de sua definição que se revela óbvia mas por sua funcionalidade para a compreensão de uma determinada obra Para Aldridge a influência se define como algo que existe na obra de um autor que não poderia ter existido se ele não tivesse lido a obra de um autor que o precedeu7 Quando semelhanças entre dois autores são suficientemente claras para serem discernidas o historiador literário encontrase diante de material legitimado para seu uso Influência não é algo que se revela no singular na maneira concreta mas deve ser buscada em diferentes manifestações O interesse de Aldridge pela influência é que ela ajuda a expor por que um escritor exprime um pensamento ou um sentimento daquele modo determinado Compreender uma fonte mostra o processo de composição e ilumina o pensamento de um autor Segundo este autor podemos analisar uma passagem altamente poética em Shakespeare e elucidar os valores estéticos que aí encontramos mas não podemos estar seguros de que Shakespeare passou pelo mesmo processo estético e emocional na criação da obra que passamos na nossa experiência de sua interpretação Mas se nós conhecemos que certas passagens de A Tempestade são paráfrases de Montaigne então ficamos sabendo algo concreto sobre o pensamento de Shakespeare e seu processo de composição Apontar influências sobre um autor é certamente enfatizar antecedentes criativos da obra de arte e considerála um produto humano não um objeto vazio Na discussão sobre o conceito de influência nos anos 60 quando já se tinha deflagrado a polêmica entre escola francesa e escola americana de literatura comparada Guillén propõese a encontrar o lugar correto das influências dentro das coordenadas vigentes dos estudos comparatistas agora não mais dominados pela mentalidade genética do século XIX mas caracterizado por campos de estrutura de pensamento8 Guillén trabalha com duas acepções de influência como parte reconhecível e significativa da gênese de uma obra literária e como presença na obra de convenções técnicas pertencendo ao equipamento do escritor e às tradicionais possibilidades de seu meio A primeira acepção trata da relação entre a obra e a experiência do escritor de modo que cada fonte é uma fonte vivida Ela recobre condições genuinamente genéticas Influências desde que desenvolvidas estritamente no nível criativo são experiências individuais de uma natureza particular porque representam uma espécie de intrusão no ser do escritor ou uma modificação A alteração que elas trazem tem um efeito indispensável sobre os estágios subseqüentes da gênese da obra Nesse sentido são forças que se introduzem a si mesmas no processo de criação élans e incitações que acarretam o movimento genético mais além e permitem que o artista prossiga sua elaboração do segundo mundo da literatura As influências tornam o poema possível e são transcendidas por ele seu efeito desaparece freqüentemente na extensão da consciência do escritor Essas incitações genéticas fazem parte da experiência psíquica do escritor As colocações de Guillén que estabelece a distinção entre duas acepções de influência uma delas diretamente relacionada ao ato criador justificam uma interrupção no acompanhamento de suas idéias para dar lugar ao pensamento de um importante poeta moderno Paul Valéry o qual em vários de seus escritos sobretudo naqueles situados entre 1924 e 1927 pronunciouse sobre esse conceito Ao empregar a admirável imagem do leão que é feito de carneiro assimilado9 mais do que lançar uma nova fórmula para uma 7 Aldridge 1963 p 144 8 Ver os capítulos La Hora Francesa Guillén 1985 De Influencias y Convenciones Guillén 1989 e The Aesthetics of Influence in Comparative Literature Guillén 1959 9 Ver Tel Quel em Valéry 1960 vol 2 p 478 velha noção Paul Valéry renovou o próprio conceito de influência literária revertendo quase completamente o sistema de valores10 Os problemas de empréstimo considerados até então por um grande número de estudiosos dependência de um autor em relação a outro não aparecem mais como uma imitação mas ao contrário como fonte de originalidade isto é como a intrusão do novo na criação No entanto ele tinha plena consciência do caráter problemático deste conceito Tanto o papel da influência no ato criador quanto o grau de imprecisão deste conceito aparecem formulados em sua Carta sobre Mallarmé endereçada a Jean Royére Nesta Carta Valéry defende a tese de que este famoso poeta simbolista desenvolve em si algumas das qualidades dos poetas românticos e de Baudelaire11 chegando a elaborar não apenas uma poética específica como também criar uma doutrina e colocar novos problemas prodigiosamente estranhos aos próprios modos de sentir e de pensar de seus pais e irmãos em poesia12 Vale a pena tomarmos conhecimento direto da formulação do próprio Valéry sobre a problemática da influência que funcionou como uma espécie de preâmbulo à sua tese sobre a obra de Mallarmé Não há palavra que venha mais facilmente nem com mais frequência sob a pluma da crítica que a palavra influência e não há de modo algum noção mais vaga entre as vagas noções que compõem o armamento ilusório da estética Nada entretanto no exame de nossas produções que interesse mais filosoficamente o intelecto e deva excitarlo mais à análise que esta modificação progressiva de um espírito pela obra de um outro Ocorre que a obra de um recebe no ser do outro um valor totalmente singular engendrando conseqüências atuantes impossíveis de serem previstas13 e com frequência impossíveis de serem desvendadas Sabemos por outro lado que esta atividade derivada é essencial à produção em todos os gêneros14 Numa tentativa de sistematizar o pensamento de Paul Valéry sobre a questão da influência já se detectaram em seus escritos quatro categorias a influência recebida que consiste no contato misterioso de dois espíritos ou na dívida de um autor para com outro isto é a influência propriamente dita que ocupa o centro dos estudos comparatistas e que ele chamou de modificação progressiva de um espírito pela obra de um outro a influência exercida sobre a posteridade que determina em grande parte o valor da própria obra emissora a influência que o autor exerce sobre si mesmo e finalmente a influência por reação ou seja a recusa da influência15 Dessas quatro categorias a que mais nos interessa é a primeira por suas implicações com o ato criador O problema da influência para Valéry reduzse ao estudo de uma misteriosa afinidade espiritual entre dois espíritos ou temperamentos O essencial desta relação é o caráter emocional Ele próprio fazia questão de sublinhar que este misterioso processo de influência não se limita a simples modificações intelectuais De modo que para ele o estudo de influências é a pesquisa de semelhanças escondidas de parentescos secretos entre duas visões de mundo Para fisgar as semelhanças escondidas nas obras que estuda Paul Valéry abandona o método objetivo de pesquisa de filiações e de causalidade e recorre à psicologia Fazer psicologia autêntica significa sempre tomar consciência de si mesmo Observou o mecanismo da influência a partir da estranha transformação que o encontro com Mallarmé provocou nele Ao descrevêlo emprega a expressão teve o choque utilizada várias vezes em seus escritos16 e aqui recuperada no contexto de sua Carta sobre Mallarmé Ainda na idade bastante tenra de vinte anos e no ponto crítico de uma estranha e profunda transformação intelectual sofri o choque da obra de Mallarmé conheci a surpresa o instantâneo escândalo íntimo não só o fascínio como também a ruptura dos laços com meus ídolos desta idade Sentime tornarme fanático experimentei o progresso fulgurante de uma decisiva conquista espiritual17 10 Cf Pistorius 1966 11 Ver Lettre sur Mallarmé em Valéry op cit 1960 vol 1 p 635 12 Idem Ibidem 13 Neste exato momento em nota Valéry afirma Eis por que a influência distinguese bastante da imitação 14 Ver Lettre sur Mallarmé em Valéry op cit 1960 p 634 15 Cf Pistorius op cit 16 Como bem nos lembra Georges Pistorius em sua comunicação Pistorius op cit 17 Valéry op cit 1960 vol 1 p 637 O mecanismo de influência ocorre em dois planos paralelos Primeiro o choque recebido faz o autor influenciado voltarse para a própria personalidade Em seguida provoca também a ruptura de seus liames com ídolos dos quais se nutrira até então Este duplo movimento revela um traço paradoxal na concepção de influência valéryana De um lado o escritor mais profundamente influenciado poderia ser o mais original De outro a influência mais estimulante é a que leva o escritor a rejeitar uma influência O escritor se libera de uma influência por outra No cerne da concepção de influência de Valéry existe a convicção de que o escritor atinge sua identidade valendose dos exemplos dos outros e também de que ele tem necessidade de se distinguir dos outros de qualquer maneira A influência recebida não minimiza em nada a originalidade que no fundo é uma das formas de influência Ainda em sua Carta sobre Mallarmé referindose à originalidade Valéry afirma Dizemos que um autor é original quando ignoramos transformações ocultas que modificaram os outros nele queremos dizer que a dependência daquilo que faz em relação àquilo que foi feito é excessivamente complexa e irregular 18 Na verdade o que conta é o grau de assimilação tão bem expresso na sua famosa e já citada imagem do leão que é feito de carneiro assimilado Aliás esta imagem situase num contexto semântico em que toda a problemática da influência e originalidade confundese com o ato de ingerir e digerir enfim de nutrirse Nada mais original nada mais próprio do que nutrirse dos outros Mas é preciso digerilos O leão é feito de carneiro assimilado19 A originalidade é pois um caso de assimilação caso de estômago segundo expressão do próprio Valéry20 A qualidade da diges 18 Idem p 635 grifos do autor 19 Ver Tel Quel em Valéry op cit 1960 vol 2 p 478 20 Cabe chamar a atenção para o fato de que André Gide também se vale de um termo ligado ao campo semântico do estômago para tratar do problema da influência Referindose às influências que recebera ao longo de sua vida afirma Já exprimi mais de uma vez tão da substância dos outros é que define os limites entre a originalidade e o plágio Plagiário é aquele que digeriu mal a substância dos outros torna seus pedaços reconhecíveis A originalidade caso de estômago Não há escritores origináis pois aqueles que merecem este nome são desconhecidos e mesmo irreconhecíveis Mas existem aqueles que aparentam sêlo21 Fica portanto claro que para Valéry o ato de criação descarta a idéia de originalidade no sentido absoluto de origem primeira supondo ao contrário um perfeito sistema de digestão que garante uma impecável assimilação da substância dos outros Com o intuito de se reforçar a concepção deste poeta francês que alia a idéia de originalidade à de imitação no processo criador incluise aqui mais uma citação de suas frases curtas e lapidares que compõem sua poética O desejo de originalidade é o pai de todos os empréstimos de todas as imitações22 Ao ato de criação opõese o do plágio cujo sistema falho de digestão desencadeia um mimetismo extrínseco deixando visíveis os pedaços da substância dos outros A originalidade é assegurada também pela escolha feita pelo autor exposto a uma influência A maior originalidade é garantida quando uma obra age sobre o escritor não por todas as suas qualidades mas apenas por algumas delas No entanto o apoio vindo de fora a um escritor é independente da qualidade do modelo Uma obra secundária e mesmo medíocre pode esclarecer o escritor no caminho a ser trilhado e conduzlo à própria identidade Valéry chegou a confessar que uma vez reconheceu seu caminho lendo o folhetinista Adolphe Brisson23 minha opinião sobre as influências citas estrangeiras Penso que um cérebro bem francês é feito para suportálas todas Tudo isto depende bem entendido do poder de digestão do cérebro O meu tinha digerido pedregulhos Gide apud Bos 1929 p 69 grifos meus 21 Ver Autres Rhumbs em Valéry op cit 1960 vol 2 p 677 22 Valéry 1974 23 Ver Variété em Valéry op cit 1960 vol 1 p 1493 Para explicar o mecanismo psicológico da influência Valéry recorre a um dos conceitoschave de seu método crítico o orgulho que também poderia ser um descontentamento permanente consigo mesmo Referindose a Baudelaire Valéry afirma que nos domínios da criação que são também os domínios do orgulho a necessidade de se distinguir é indissociável da própria existência24 Ainda segundo Valéry o problema de Baudelaire consistia em ser um grande poeta mas não ser nem Lamartine nem Hugo nem Musset25 Recusar uma influência é um meio oculto de sofrêla A originalidade de Baudelaire proviria assim de sua nítida oposição ao sistema romântico Baudelaire escreve em seu projeto de prefácio às Flores do Mal Poetas ilustres partilhavam há muito as mais floridas províncias do domínio poético etc Farei pois outra coisa26 Em suma ele foi levado coagido pelo estado de sua alma e por circunstâncias a oporse cada vez mais nitidamente ao sistema ou à ausência de sistema que chamamos de Romantismo27 Portanto no caso de Baudelaire cruzamse dois fatores que de acordo com a visão de Valéry explicam também os mecanismos de influência no processo de criação o orgulho e a própria recusa de uma influência O que aqui foi exposto sobre o conceito de influência diretamente relacionado ao ato criador na visão de Paul Valéry está circunscrito de qualquer modo à relação de impacto entre dois escritores e portanto diferenciase da primeira acepção de Guillén que trata da relação entre a obra e a experiência do escritor no sentido amplo de vida humana e literária Antes de retomarmos as idéias deste comparatista convém esclarecer que Paul Valéry não reduz o fenômeno da criação artística aos mecanismos de influência Para ele a influência sob seus múltiplos aspectos é a condição necessária mas não suficiente para a criação28 24 Ver Situation de Baudelaire em Valéry op cit 1960 vol 1 p 600 25 Idem ibidem 26 Idem ibidem grifos do autor 27 Idem ibidem 28 Cf Laurette 1966 p 1048 e Pistorius op cit p 1042 Guillén foi o único estudioso de literatura comparada pelo menos dentre aqueles arrolados no âmbito deste livro que procurou estabelecer a distinção entre influência relacionada estritamente à criação e influência como conceito operacional da teoria literária Referindose ao conceito de influência da escola francesa baseado na idéia de transmissão vale dizer uma influência conduz para a presença de uma determinada obra elementos de algum modo comparáveis com outros encontrado em outra obra Guillén mostra que há aí uma premissa com a qual ele não concorda influências e paralelismos são indivisíveis Para Guillén incitações genéticas constituem parte da experiência psíquica do escritor enquanto similaridades textuais pertencem à realidade da literatura Daí sua convicção compartilhada por vários outros comparatistas de que uma influência não precisa adotar a forma reconhecível de um paralelismo assim como nem todo paralelismo procede de uma influência Para ele um estudo de influência quando completamente perseguido contém duas fases muito diferentes O primeiro passo consiste na interpretação de fenômenos genéticos O segundo passo é textual e comparativo mas inteiramente dependente do primeiro para sua significação Deste modo seu método propõe primeiro apurar se uma influência ocorre e avaliar a relevância ou função genética Daí se pensaria em considerar o resultado objetivo que pode ter sido o produto da influência e definir a ulterior função textual Sua proposta metodológica é perfeitamente coerente com sua visada teórica a respeito da influência No entanto sua operacionalidade pode ser questionada na medida em que o estudioso entrar num terreno extremamente escorregadio ao se dispor a realizar uma tarefa praticamente impossível qual seja a de verificar se uma influência realmente ocorreu e avaliar seu papel na gênese de uma obra literária Cláudio Guillén chama a atenção para dois outros conceitos fundamentais da teoria literária convenção e tradição que devem ser instrumentalizados pela literatura comparada Tais conceitos dão conta da inserção da obra no contexto mais amplo da literatura e permitem também o estudo do diálogo entre obras autores e literaturas Convenções e tradições são sistemas cujo principal fator unificante é o costume aceito Tradições constituem convenções que supõem ou conotam sequências temporais Tanto num caso como no outro o que está em jogo é o uso coletivo e não o impacto singular ou a forma concreta de um processo de transformação histórica Uma constelação de convenções determina o meio de expressão de uma geração literária o repertório de possibilidades que um escritor compartilha com seus rivais vivos As tradições supõem o conhecimento por parte dos escritores de seus antepassados Tais coordenadas não apenas regulam a composição de uma obra como também se fazem presentes no processo de leitura Enquanto as convenções são extensas as influências genéticas e individuais são intensas As influências mais significativas costumam ser relações diretas entre dois autores e não associações ou parentescos remotos Mallarmé e Rimbaud foram um alimento essencial para o jovem André Breton Mas se um romance recente nos lembra Homero estamos às voltas com um conjunto comum de premissas e tradições culturais mais do que um tête à tête de uma influência É insuficiente afirmar que Virgílio influíu Dante independentemente de outros fatores quando tantos outros elementos sustentaram essa relação e o fundamental encontrase no funcionamento de um campo total a autoridade e a continuidade de uma tradição Impõese reconhecer que o que se imita é a obra singular não a tradição Mas muitas obras literárias encarnam tradições condensam e vitalizam sistemas de convenções e simbolizam outras obras Por outro lado quando as influências se estendem e se amalgamam quando compõem premissas comuns ou usos o ar coletivo que os escritores de certa época respiram assimilamse ao que chamamos convenção Em outras palavras as convenções literárias constituem não somente ferramentas técnicas como também campos mais vastos ou sistemas que derivam de influências prévias singulares e genéticas Para Cláudio Guillén as influências literárias poderão continuar desempenhando um papel importante nos estudos comparativos desde que de modo adequado e conveniente De um lado as convenções podem trazer uma certa iluminação ou compreensão dos processos criadores e genéticos De outro uma influência pode sem dúvida contribuir para uma análise crítica As convenções e tradições descortinam amplas perspectivas mais facilmente que as influências e nos mostram configurações sincrônicas e diacrônicas da literatura ao passo que as influências não organizam o caos dos fatos literários particulares de uma maneira tão útil No entanto mediante o exame intenso de contatos não mediatizados entre autor e autor ou entre obra e obra elas permitem o acesso com maior rigor do que poderiam as convenções ou tradições ao processo complexo da criação artística Atrelado aos conceitos de influência e imitação encontramos o de originalidade como aliás já pudemos verificar quando nos detivemos um pouco nas idéias de Paul Valéry sobre a influência Cabe focalizarmos este conceito tão problemático quanto os anteriores agora na perspectiva da teoria da literatura comparada como uma tentativa de esclarecimento O conceito de originalidade faz parte de um ideário ligado ao comparatismo tradicional tendo sido objeto de especial atenção no IV Congresso da Associação Internacional de Literatura Comparada realizado em Friburgo em 1964 e dedicado aos termos e noções literárias imitação influência e originalidade Das comunicações então apresentadas seguiremos de perto Originalité29 de Odette de Mourgues e Loriginel et loriginal Nuance linguistique distance poétique de Anna Balakian30 A primeira nos interessa sobretudo por sua perspectiva histórica embora esboçada rapidamente a segunda por sua perspectiva mais teórica e sua tentativa de classificação O ponto de partida de ambas é o estudo do significado da palavra original Apoiandose no dicionário Littré Odette de Mourgues lembra que a palavra original apresenta dois sentidos O primeiro equivale a imaginado sem modelo aplicandose à originalidade absoluta isto é à criação a partir do nada O segundo significa que tem sua marca própria remetendo à idéia de uma originalidade relativa A validade desta acepção é confirmada pela história literária O termo original com o sentido de uma originalidade relativa que é o atual começou a ser usado no século XVII No entanto os escritores do século XVI sem disporem do termo já tinham uma certa noção do que era a originalidade literária Para exprimila serviamse de um outro termo o de simplicidade naïveté A idéia de 29 Mourgues 1966 30 Balakian 1966 simplicidade de natural significava entre outras coisas que o poeta devia ser fiel à própria natureza Naquela época a imitação constituía um princípio artístico mas o escritor não devia imitar servilmente não devia sacrificar sua própria individualidade ao contrário devia impregnar a obra com sua marca própria Essa espécie de originalidade que vigora também no século XVII apresenta duas características muito importantes Uma está ligada à idéia de inspiração segundo a qual a ação de escrever se desenrola sob os ditames dos poderes divinos No século XVI verificase uma reverência quase mística com relação aos momentos privilegiados durante os quais num impulso de imaginação vão cristalizarse numa ordem satisfatória palavras que até então se cruzavam confusamente A autora insiste neste ponto porque lhe parece interessante notar que desde o século XVI a idéia de originalidade revelase intimamente ligada à de um elemento pessoal indefinível e irredutível A segunda característica dessa espécie de originalidade é que ela implica uma submissão com relação à época e ao lugar nos quais vive o escritor A marca própria está ligada indissoluvelmente a uma consciência aguda de certos aspectos individuais de sua nacionalidade e de seu século Essas duas características constituem elementos essenciais segundo Odette de Mourgues quando se trata de analisar a originalidade de um escritor Com o romantismo a idéia de originalidade foi adquirindo um caráter cada vez mais individualista Nos séculos XIX e XX verificase a tendência em se ver na marca própria o reflexo não somente do esforço criador pessoal do poeta mas de toda a sua personalidade individual Quanto mais for ele mesmo tanto mais será original Na busca incessante de sua individualidade ele se oporá à sociedade de seu país e de sua época Como sabemos isso não passa de uma ilusão romântica pois o escritor do século XIX ou XX sofre as influencias do meio e do tempo tanto quanto o do século XVI ou XVII Mas a grande diferença e também a causa de muita confusão é que no romantismo valorizase extremamente o termo original certamente por causa do cultivo do indivíduo Os temas literários românticos comportam entre outros o problema do indivíduo e o da sociedade O espírito da época estimula o escritor a ter idéias individuais sobre a vida a ter uma mensagem pessoal para esclarecer os homens Como conseqüência disso procurase também criar obras artísticas com características singulares O cultivo do individualismo que aliás não tem nada de original pois é comum a toda uma época dá a impressão de que a obra literária não tem vínculos com a tradição ela é totalmente nova seu tema e sua técnica brotam do mundo interior do artista Tal concepção no entanto revelase totalmente equivocada abrindo brecha para uma visão subjetiva do conceito de originalidade criando falsa ilusão tanto no escritor que se julga diferente quanto no leitor que apreciará a qualidade de uma obra em razão de seu aparente traço inusitado e individual Odette de Mourgues elege a concepção do século XVI de originalidade como a mais adequada A originalidade que percebemos numa obra literária ou seja sua marca própria não é outra coisa senão o gênio criador que levou um escritor a escolher um assunto modificar uma técnica etc nas suas relações complicadas e variáveis com a tradição com as influências específicas que agiram sobre ele e com o gosto de sua época É muito importante considerar com algum cuidado as relações entre os dois elementos da originalidade relativa o esforço criador e o condicionamento da época Com relação a Anna Balakian ela parte da duplicidade terminológica da língua francesa inexistente na portuguesa que lhe permite fazer a distinção entre original relativo à origem originel e original remetendo à novidade original O original novidade dotado de espírito crítico sabe decifrar e aperfeiçoar o que os outros descobriram A palavra perfeição que se encontra no cume dos valores críticos contém de um lado a idéia de transcendência do já conhecido de outro ressalta a noção de monotonia e esterilidade Um significado ou outro vai depender do lado por onde se sobe a montanha A originalidade existe ou não de acordo com o lado escolhido Mme de Staël via no aperfeiçoamento da linguagem e do gosto do classicismo francês a esterilidade que ameaça nossa literatura e considerava os alemães e Chateaubriand iluminadores do exército do espírito humano Portanto ela teria apreciado a qualidade original no sentido relativo à origem O original ligado à origem é um ser iluminado que abre caminho é um peregrino destinado a ganhar na história literária o lu gar de precursor De modo geral lança problemas sem dar respostas Anna Balakian cita Apollinaire como um exemplo recente deste tipo de original Anunciando o espírito novo em seu artigo Lesprit nouveau et les poètes que apareceu na revista Mercure de France em 1121918 o escritor francês não realizou a nova forma da expressão poética Afinal quem escreveu Le bateau ivre cinematográfico foi Rimbaud Ao se estabelecer a distinção entre o original ligado à origem e o original ligado ao novo a originalidade deixa de ser um raio ou uma illuminação transformandose numa metamorfose ou alquimia O original novidade não anuncia sua originalidade O processo de configuração da obra é mais sutil e complexo O espírito original achase abafado por uma convenção na fonte da qual havia um original origem cujos imitadores produziram a convenção O original novidade consegue quebrar a convenção inspirandose nela A partir desta formulação Anna Balakian propõe quatro meios de ruptura o desvio ou a deformação da convenção a reversibilidade a sátira da convenção e o aperfeiçoamento de uma técnica que situa uma idéia já conhecida num clima linguístico propício A literatura de inspiração clássica constitui a ilustração mais feliz da transformação da matéria emprestada por meio de desvios os verdadeiros índices de sua originalidade As maiores obrasprimas da literatura européia não são originais origem tendose inspirado em fontes que outras antes delas já tinham encontrado Tais obrasprimas são os exemplos mais bem realizados dessa espécie de modificação Um caso particular é destacado a correspondência entre o céu e a terra no soneto Correspondances de Baudelaire Esta noção intimamente ligada à religião swedenborgiana tornouse a base filosófica das contemplações românticas Blake Wordsworth Novalis alguns poemas de Victor Hugo Se o poema de Baudelaire se tivesse detido no primeiro quarteto ou se o poeta tivesse simplesmente ilustrado a correspondência entre o céu e a terra no restante do poema Baudelaire não passaria de um exímio imitador apesar de sua perfeição Mas o resto do soneto transforma o preceito conhecido por meio de uma deformação sutil que descreve não a correspondência entre o céu e a terra mas a das coisas puramente corporais no mundo unicamente material assinalando não a dualidade do universo mas a unidade da terra e sugerindo uma orientação poética totalmente nova Algumas vezes o desvio é produzido por um espírito de combate à tradição levando a uma reversibilidade total do tema original É o caso de escritores modernos que tomam emprestados títulos clássicos para dizer o contrário Édipo de Gide Anfitrião de Giraudoux As Moscas de Sartre e Sísifo de Camus Este último valese do símbolo de dor e opressão e o transforma em felicidade estóica A originalidade de Camus é lançar um desafio ao original e produzir por uma antítese categórica o símbolo da revolta contra a convenção Esta espécie de originalidade querida é mais precária que os desvios sutis e não produz uma nova convenção A reversibilidade é uma forma de originalidade mas parece menos capaz de iniciar sua própria convenção e produzir imitadores A terceira forma de originalidade é a sátira do tema conhecido Menos radical que a reversibilidade a sátira se inspira mais no clima social do que numa filosofia de revolta pessoal Para Anna Balakian um dos exemplos mais brilhantes é o da relação entre Lolita de Nabokov e Les infortunes de la vertu de Sade Nesta última obra o tema da juventude e da inocência pervertidas pela corrupção dos ricos e as hipocrisias da sociedade explica a infelicidade de Sofia que ainda criança é violentada por um homem de uma certa idade que a maltrata e em seguida livrase dela como se fosse um objeto Nabokov usa o mesmo tema e com ele faz em Lolita uma sátira da sociedade americana do culto do sexo que ele observa nos Estados Unidos uma sátira sobre a independência dos jovens e sobre sua decadência voluntária Neste caso não se trata nem de um desvio do tema nem de uma antítese de indignação mas de um exagero grosseiro que marca o tom o clima de uma nova época e dá a impressão de uma profunda originalidade Finalmente Anna Balakian se detém na originalidade que provém da técnica Para demonstrar a qualidade revolucionária de seu simbolismo Mallarmé escolhe um símbolo dos mais comuns de seu tempo o fauno A originalidade de Mallarmé não consiste em fazer um fauno diferente ou instrumento de revolta ou sátira Seu fauno é o que há de mais banal É o fauno convencional sensual pagão semideus semianimal falando a língua dos humanos No entanto o poeta francês faz dele um veículo para demonstrar a verdadeira técnica da composição simbolista cria a forma que convém à junção do sonho e da vigília a estrutura musical dos temas e variações a sincronização da língua que se torna música não por suas sonoridades mas como expressão do pensamento abstrato insólito metafórico mais que ideológico Nesse nível se situa uma extrema originalidade no coração do tema mais banal assinala a autora31 No final de sua comunicação Anna Balakian critica o fato de os estudos comparatistas estarem ainda muito voltados para as descobertas das origens dando portanto continuidade a um debate que já se tinha instalado na década de 1950 Detentora de um ideário poético que absorve os conceitos de fonte influência e originalidade ela clama por estudos comparatistas que ultrapassem o momento das descobertas das origens Tendo encontrado a fonte o erudito não deveria ir mais longe32 Que o leitor não se assuste O ir mais longe referese aqui ao estudo concreto da obra literária A fortuna de um escritor ilumina o caráter de sua obra e nisso se encontrariam as vantagens dos estudos de doxologia Por outro lado os estudos de influências deveriam enriquecer a apreciação do crítico não sobre aquele que brilha mas sobre aquele que recebe o brilho Terá sido ele tomado invadido por esta influência Ou a transcendeu produziu a alquimia da convenção e tornouse por isso mesmo o iniciador de uma nova convenção33 Com essas críticas e indagações Anna Balakian fazendo eco às vozes de outros comparatistas partidários de uma poética que inclui esses conceitos tradicionais revelase lúcida quanto aos riscos diante de estudos que se limitam às localizações das origens caindo numa erudição estéril além de se mostrar partidária da análise concreta da obra literária para se verificar como se deu a alquimia da convenção ou em termos mais modernos como se deu a absorção e a transformação dos elementos recebidos34 31 Idem p 1268 32 Idem p 1269 33 Idem ibidem 34 Nessa linha de estudiosos tradicionais que se empenham em renovar a literatura comparada merecem ser lembrados Álvaro Manuel Machado e DanielHenri Pageaux Ambos estimulam o estudo das fontes e influências dentro de uma perspectiva de análise tex tual Reconhecem que durante muito tempo em nome da assimilação a fonte foi considerada uma simples pista encontrada no texto O investigador transformavase em detetive e o único interesse da investigação transformada em inquérito policial era o de identificar por baixo de várias máscaras ou disfarces um corpo estranho o texto que tinha sido utilizado para a elaboração de um outro texto Todavia ele nada serve identificar uma fonte num determinado texto se não se fizer ao mesmo tempo uma análise tex qual que permita compreender de que maneira se construiu a organização do texto e a própria função da fonte nesse texto Em outras palavras quanto mais a análise textual é aprofundada mais a problemática das fontes deverá chamar a atenção do investigador 35 Bloom 1991 36 Idem 1995 Conceitos Fundamentais 145 Com exceção de Paul Valéry que foi convocado nesta parte para que fossem expostas suas idéias sobre a relação entre influência e originalidade na qualidade de poeta que reflete sobre o ato de criação os autores cujas visões sobre este núcleo central de conceitos tradicionais acabaram de ser expostas não chegam a formular teorias sobre tais questões A partir de certas reflexões propõem uma sistematização com o intuito de esclarecêlas de situálas historicamente e de mostrar sua funcionalidade nos estudos de literatura comparada numa época marcada por um debate sobre a literatura comparada tradicional Este não é caso de Harold Bloom que se propõe a apresentar uma teoria da poesia baseada na idéia da angústia da influência em seu polêmico livro The Anxiety of Influence35 publicado em 1973 Segundo Bloom defensor do cânone universal o mecanismo de influência fazse absolutamente necessário para se atingir e reagirrig a originalidade dentro da riqueza da tradição literária ocidental36 Esses dois lados da mesma moeda influência e originalidade são repensados por esse crítico americano num contexto de estudos literários impregnado por teorias marcadas pela idéia de morte do sujeito Nesse sentido suas formulações podem ser lidas como manifestação de resistência às novas postulações e em contrapartida como reiteração da visão humanista que vinha sendo cada vez mais descartada nas recentes teorias da época Ao procurar restabelecer o autor a vontade e o poder de imaginação como elementos fundamentais da criação poética a proposta humanista de Bloom no entanto não se limita a uma ingênua re ciências humanas marcadas pelas teorias de Marx Freud e do pósestruturalismo acaba por sofrer também suas contaminações Tratase enfim de um humanismo que se fundamenta em sua fé afirmativa em meio a um racionalismo desacreditado e um ceticismo intolerável37 Defensor ainda da idéia de autonomia do estético para Bloom a crítica pautada por esta concepção considera também a soberania da alma solitária o leitor não como uma pessoa na sociedade mas como o eu profundo nossa interioridade última38 Em A Angústia da Influência Harold Bloom defende a tese de que a história da poesia se confunde com a das influências poéticas pois os poetas fortes fazem a história deslendose uns aos outros de maneira a abrir um espaço próprio de fabulação39 Dois conceitos fundamentais aparecem nessa formulação poeta forte e desleitura Bloom só se interessa por poetas fortes isto é aquelas grandes figuras que combatem seus precursores também poetas fortes até a morte No pólo oposto achamse os poetas fracos cuja imaginação capaz se apropria de tudo para si40 não se aventurando no embate que se concretiza por meio da desleitura A grande literatura é um permanente reescrever ou revisar Portanto os poetas fortes criam a partir de uma desleitura de outros vale dizer a partir de um processo que envolve várias modalidades de apropriação com o intuito de se circunscrever um espaço imaginativo peculiar a cada um Estando a criação diretamente relacionada à apropriação nada mais natural que o surgimento de imensas angústias de débito41 para o criador forte O próprio ato de negar a influência como ocorre com muitos poetas constitui a ilustração de um dos modos em que a influência poética se expressa como variedade da melancolia ou do princípio da angústia42 37 Cf Eagleton 1994 p 198 38 Idem p 19 39 Bloom op cit 1991 p 33 40 Idem ibidem 41 Idem ibidem 42 Idem p 35 Bloom assinala ainda que a influência poética não acarreta necessariamente a diminuição da originalidade Por sua vez esta não é sinônimo de grande valor Impõese ainda relevar que Bloom desvincula a teoria das profundezas da influência poética do estudo das fontes da história das idéias e dos padrões de figuração Para ele a transmissão de imagens e idéias entre um poeta mais velho e outro mais novo simplesmente acontece43 Se tal transmissão vier a ser um motivo de angústia para o poeta efebo é simplesmente uma questão de temperamento e circunstância bom material para os caçadores de fontes primárias e biógrafos44 Para ele idéias e imagens não constituem um atributo exclusivo da poesia pertencendo à discursividade e à história45 Nesse sentido achase distante da formulação desta problemática nos termos propostos pela literatura comparada tradicional Embora reconheça que mesmo os poetas mais fortes estão sujeitos a outras influências que não a poética46 Bloom considera a influência poética ou a desapropriação necessariamente o estudo do ciclo vital de poetacomopoeta47 Os nomes de Nietzsche e Freud são mencionados pelo próprio Bloom como influências primárias sobre sua teoria No entanto este crítico americano faz questão de assinalar sua atitude revisionista no aproveitamento dessas contribuições Sua teoria não acoberta a idéia de Nietzsche na esteira de Vico sobre o papel crucial da prioridade divinatória para todo poeta forte48 Rejeita ainda a idéia otimista de Freud segundo a qual é possível chegarse a uma substituição feliz uma segunda chance que nos salvará da busca repetitiva por nossas primeiras ligações49 Para Bloom os poetas fortes não aceitam qualquer substituição e lutam até o fim pela primeira chance e só por ela50 Enfim a base da teoria da angústia da influência incide na tese de que a relação entre os poetas fortes é conflituosa Travase 43 Idem p 108 44 Idem ibidem 45 Idem ibidem 46 Idem p 41 47 Idem p 36 48 Idem p 37 49 Idem ibidem 50 Idem ibidem entre eles uma verdadeira luta como poderosos opostos51 num contínuo processo de desleitura isto é de correção criativa concretizado por meio de movimentos revisionários os quais teriam a mesma função nas relações intrapoéticas que os mecanismos de defesa em nossa vida psíquica52 Embora esses movimentos revisionários possam ser múltiplos Bloom enumera apenas seis deles nomeados por termos clássicos para ilustrar como um poeta forte se desvia de outro clinamen tessera kenosis demonização askesis e apophlirates Clinamen conceito central para a elaboração de uma teoria da influência corresponde à desleitura ou desapropriação poética propriamente dita A origem desta palavra achase em Lucrécio que a utiliza no sentido de desvio dos átomos indicando a possibilidade de qualquer mudança no universo Um poeta forte executa um clinamen com o poema de seu precursor quando ao lêlo desvíase dele O ato de desviarse do poema precursor equivale a uma leitura corretiva cujo resultado aparece no seu próprio poema sugerindo que o poema precursor fora acuado até certo ponto mas deveria então terse desviado precisamente na direção em que se move o novo poema53 Justamente na parte dedicada a este fundamental ato de desleitura para sua teoria Bloom detémse com mais vagar no conceito de influência Segundo ele a angústia da influência decorre da categoria cartesiana da extensão que aliás está na raiz do dualismo moderno do abismo sem fundo que se abre entre nós e o objeto54 De um lado a mente como intenção e de outro o mundo exterior da extensão A partir desta dicotomia a mente aprenderá como nunca aprendeu o que é o seu isolamento55 Não há mais lugar para o conceito primevo de influência ligado a seu significado etimológico de influxo e seu senso primordial de uma emanação ou força se espalhando das estrelas sobre a terra56 Em conseqüência não há mais lugar para se pensar em termos de relações de filiação e de fraternidade entre os poetas A partir do momento em que se acredita na existência de dois mundos separados um deles um imenso mecanismo numérico se estendendo no espaço e o outro constituído pela substância pensante inextensa57 o poeta passará a localizar suas angústias no continuum que se estende para trás e sua visão do Outro será amplificada na proporção em que se dispõe o Outro num ponto qualquer do passado58 A angústia da influência instaurarse sobretudo com a paixão pósiluminista pelo Sublime e pelo Gênio concretizandose no sentimento espantoso torturante arrebatador da presença de outros poetas nas profundezas do solipsista quase perfeito ou o poeta forte em potencial59 Enfim as ânsias mais profundas do poeta forte são vivenciadas através da experiência de outros eus60 Neste contexto de pensamento explicase o lugar do clinamen para a teoria da angústia da influência pois ao separar cada poeta de seu precursor liberao do mundo da uniformidade fundado na idéia de que a identidade entre o passado e o presente confundese com a identidade essencial de todo objeto Ora este mundo da uniformidade representa o espaço da morte para o poeta forte pósiluminista Ao separar o poeta novo de seu precursor mediante o revisionismo criativo o clinamen salva o primeiro lançandoo no universo da descontinuidade sem o qual a poesia não pode sobreviver de acordo com a visão moderna isto é com a visão pósiluminista Tessera indica o movimento revisionário consubstanciado numa complementação antitética o poeta efebo preserva os termos do poemaantecedente mas altera seu significado como se o precur 51 Idem p 40 52 Idem p 125 53 Idem p 43 54 Idem p 71 55 Idem p 72 sor não tivesse ido longe o bastante61 Esta palavra é empregada no sentido em que o era nos antigos mistérios religiosos onde a reunião de dois pedaços quebrados de cerâmica servia como sinal de reconhecimento entre os iniciados62 embora Bloom também se refira ao uso que Lacan faz dela A palavra vem de Lacan cuja própria leitura revisionária de Freud poderia servir como exemplo de tessera No Discours de Rome de 1953 Lacan cita um comentário de Mallarmé que compara o uso comum da linguagem ao câmbio de uma moeda cujo verso e reverso não mostram senão figuras apagadas e que circulará em silêncio de mão em mão Aplicando a imagem de Mallarmé ao discurso do analisando por mais reduzido que seja Lacan afirma essa metáfora é o suficiente para nos fazer recordar que a Palavra mesmo quando já quase completamente desgastada preserva ainda seu valor de tessera63 Em Bloom o significado do termo tessera injetado pela idéia de sinal de reconhecimento conforme a tradição dos antigos mistérios religiosos remete à tentativa da parte do efebo de se persuadir a si mesmo e de nos persuadir que a Palavra do precursor já estaria inteiramente desgastada se não redimida pela mais ampla e revigorada Palavra do novo poeta64 O crítico americano referese a Stevens cuja obra é marcada por muitas tesserae A relação deste poeta com os precursores românticos americanos fazse por meio da complementação antitética Na última versão de The Sleepers Whitman identifica a noite com a mãe O poema de Stevens The Owl in the Sarcophagus pode ser lido como uma tessera em relação a The Sleepers pois onde Whitman identifica a noite e a mãe com a boa morte Stevens estabelece uma identidade entre a boa morte e uma visão maternal mais ampla oposta à noite ao conter toda a evidência memorável da mutabilidade de tudo o que já vimos em nosso longo dia muito embora transforme essa percepção em conhecimento65 61 Idem p 43 62 Idem p 103 63 Idem ibidem 64 Idem ibidem 65 Idem p 104 Kenosis marca uma descontinuidade com relação ao precursor Essa palavra foi utilizada por São Paulo para descrever o processo de humilização de Cristo quando passou da esfera divina para a humana Neste ato revisionário ocorre no poema novo um esvaziamento ou vazante com relação ao precursor66 ou seja uma descontinuidade que no fundo é liberadora possibilita um tipo de poema que jamais existiria se o poeta novo repetisse a qualidade divina de seu precursor Por outro lado o efebo ao anular a força do precursor no seu próprio poema acaba também por isolar sua identidade com relação à postura do precursor e o salva portanto de uma transformação em tabu em e para si mesmo67 ou seja ele também não é tão absoluto quanto possa parecer O próprio Bloom reconhece que a kenosis é um ato revisionário mais ambivalente do que o clinamen ou a tessera68 transportando a regiões mais profundas do significado antitético69 Por isso enquanto o clinamen e a tessera apresentam perspectivas operacionais podendo ser úteis para alinhar ou desalinha determinados elementos em poemas diversos70 a kenosis mostrase mais aplicável a poetas do que poemas71 Demonização equivale à desleitura direcionada para o ContraSublime próprio marcando sua reação ao Sublime do poetapai Demonização vem da palavra daimon que de acordo com a tradição neoplatônica em geral designa um ente intermediário entre o divino e o humano incorporandose ao adepto para ajudálo O poeta forte erigese pela força demoníaca a qual distribui nossas fortunas e divide nossos talentos oferecendo uma compensação por tudo que tira de nós72 A relação do poeta forte com o daimon não é passi 66 Idem p 125 67 Idem ibidem 68 Idem p 127 69 Idem ibidem 70 Idem ibidem 71 Idem ibidem 72 Idem p 138 va isto é ele nunca é possuído por um demônio Tornandose forte ele próprio é um demônio Deixará de sêlo caso venha a se enfraquecer de novo O processo de demonização do poeta forte consubstanciase num ContraSublime cuja função sugere a relativa fraqueza do precursor Demonizado o efebo seu precursor é necessariamente humanizado e um novo Atlântico surge como uma inundação da essência transformada do novo poeta73 Enfim o movimento revisionário da demonização pode ser considerado com uma batalha entre Orgulho e Orgulho74 na qual vence pelo menos temporariamente a força do novo Como ocorre esta batalha O poeta posterior percebe que aquilo que considerava uma potência no poemaascendente75 não é exclusividade deste mas pertence a uma extensão ôntica imediatamente além do precursor76 A partir disso faz uma leitura extremamente generalizada do poemaanterior desprezando todos os aspectos peculiares do trabalho do poetapai Bloom referese a Shelley como poeta consciente de que estava sujeito a precursores responsáveis entre os quais Rousseau pela criação do Espírito da Época Para Shelley os poetas tanto quanto os filósofos pintores escultores e músicos são em um certo sentido os criadores e em outro as criações de sua época77 Este poeta inglês tornase forte em oposição a Wordsworth a partir de Alastor Segundo Bloom a desleitura de Shelley se dá através de uma nova forma de busca e de escape um movimento ascendente no qual todavia o Espírito se vê lançado para fora e para baixo A demonização de Shelley foi sempre um esvanecerse para cima e mais do que qualquer outro poeta mais mesmo do que um Rilke Shelley nos obriga a vêlo na companhia dos anjos parceiros demoníacos nesta sua busca de totalidade78 73 Idem p 139 74 Idem ibidem 75 Idem p 44 76 Idem ibidem 77 Apud Bloom op cit 1991 p 142 78 Idem p 143 Askesis é sublimação poética uma forma de purgação cujo objetivo imediato é chegar a um estado de isolamento Este termo que remete a ascese é encontrado com freqüência entre os xamanitas présocráticos como Empédocles A askesis iniciase nas alturas do ContraSublime Se não passar pela purgação e pelo solipsismo o poeta forte corre o risco de se transformar numa estátua de vento exceto se capaz de ferirse a si mesmo mas sem contribuir para um esvaziamento ainda maior de sua própria inspiração79 Neste processo de desleitura a defesa eficaz contra a angústia da influência decorre de uma diminuição de uma parcela das virtudes humanas e imaginativas do poeta novo o que lhe permite se separar dos outros inclusive de seu precursor Este movimento de redução atinge também as realidades de outros eus e de tudo o que é externo incluindose a do poeta precursor de modo que o poemaascendente também deve sofrer uma askesis Este processo cessa no momento que surge um novo estilo de severidade cuja ênfase retórica pode ser decifrada como um outro nível de solipsismo80 A tese de Bloom é de que neste ato revisionário purificador O poeta forte só tem consciência de si mesmo e daquele Outro que deve afinal destruir seu precursor81 A askesis é enfim um embate propriamente dito uma lutaatéamorte com os mortos82 da qual não escapa nenhum poeta forte pósiluminista cujo objeto de desejo é estarconsigo e só consigo83 Já houve no entanto uma era durante a qual os poetas se moviam na direção de uma partilha comum84 pois não sofriam da angústia da influência Nesta era marcada pela matriz das influências generosas85 a relação entre os poetas caracterizavase por um fluxo contínuo de contribuições como se pode verificar na linhagem 79 Idem p 162 80 Idem ibidem 81 Idem ibidem 82 Idem ibidem 83 Idem ibidem 84 Idem p163 85 Idem ibidem de poetas que vai de Homero a Shakespeare Desta tradição Bloom cita como exemplar a relação de Dante com seu precursor Virgílio a qual supostamente provocava apenas amor e um incentivo de rivalidade no efebo mas angústia nunca86 Depois do iluminismo não há mais lugar para a matriz das influências generosas Em Wordsworth Keats Browning Whitman Yeats e Stevens representativos poetas modernos a askesis é necessariamente uma razão revisionária que se projeta por fim às bordas do solipsismo87 Apophrades ou o retorno dos mortos é o último movimento revisionista descrito por Bloom Com este termo indicavamse na Antigüidade os dias infaustos dias de másorte nos quais os mortos de Atenas voltavam às casas onde haviam vivido Fenômeno similar atinge poetas maduros que são especialmente vulneráveis ao retorno de poetas fortes em seus poemas O núcleo central deste movimento revisionário achase no modo como os poetas fortes voltam Caso retornem intactos esse retorno empobrecerá os poetas mais novos88 Ocorrendo o retorno dessa maneira os poetas posteriores se forem lembrados o serão como fracos isto é como tendo desaparecido na pobreza numa carência imaginativa que não foram eles mesmos capazes de suprir89 Mas com os poetas fortes esta desleitura corretiva purifica até mesmo este derradeiro influxo Em sua fase final o poeta mais recente mergulhado no solipsismo sustenta seu próprio poema de tal forma aberto à obra do precursor que inicialmente poderíamos pensar terse completado a volta ao círculo nos transportando de volta aos dias sufocantes de seu aprendizado antes que sua força tivesse começado a se fazer sentir nas razões revisionárias90 86 Idem ibidem 87 Idem p164 88 Idem p183 89 Idem ibidem 90 Idem p 45 Os poetas mortos voltam mas voltam com as cores e as vozes dos poetas posteriores pelo menos em alguns momentos o que constitui um convincente testemunho da persistência dos poetas novos garantindolhes a qualificação de poetas fortes Desse fenômeno decorre o efeito estranhíssimo segundo o qual o sucesso do novo poema é creditado ao fato de o segundo poeta ter escrito a obra característica de seu precursor Para tornar mais clara a descrição deste último movimento revisionário nada melhor do que nos valermos das próprias palavras de Bloom a esse respeito Yeats e Stevens os poetas mais fortes de nosso século e Browning e Dickison da segunda metade do século XIX nos dão exemplos vívidos desta que é a mais arguciosa de todas as razões revisionárias Porque todos eles alcançam um estilo que captura e estranhamente retém prioridade sobre os precursores de tal forma que a tirania do tempo é quase sobrepujada e é possível creer por alguns momentos surpreendentes que estão eles mesmos sendo imitados por seus ancestrais91 O próprio Bloom faz questão de marcar a diferença entre a apophrades e a noção irônica de Borges de que o artista cria seu precursor assim como por exemplo o Kafka de Borges cria o Browning de Borges92 O crítico americano considerase mais drástico de acordo com seu último movimento revisionário o precursor achase colocado na obra do poeta posterior a ponto de determinadas passagens em sua própria obra parecerem não como presságios do advento do efebo mas sim conseqüentes e em débito com este e mesmo necessariamente diminuídas pelo esplendor maior do novo poeta93 Uma vez expostas as linhas principais do pensamento de Harold Bloom em A Angústia da Influência cabem aqui algumas considerações sobre a recepção deste livro e sobre seu lugar num estudo de literatura comparada Constatase opinião unânime sobre seu caráter polêmico instigante e ambicioso Apesar de seu subtítulo este livro tem mais o 91 Idem p 183 92 Idem ibidem 93 Idem ibidem perfil de um longo ensaio fundado numa vigorosa reflexão sobre os modos de desapropriação entre os poemas com momentâneas incursões de cunho teórico O discurso crítico de Harold Bloom é marcado por um estilo metafórico aproximando seu livro de uma crítica criativa e distanciandoo dos parâmetros dos estudos voltados para teorização Aliás para ele a própria crítica é uma forma de poesia assim como os poemas constituem críticas literárias implícitas de outros poemas Por sua vez a possibilidade de êxito de uma leitura crítica reside não em seu valor de verdade mas na força retórica do próprio crítico O distanciamento do paradigma de livro teórico começa pela própria natureza do corpus de A Angústia da Influência limitado à poesia angloamericana pósiluminista Tal objeto revelase por demais restrito para a construção de uma teoria abrangente Embora sem desconsiderar o traço heurístico dos seis movimentos revisionários sistematizados por Bloom é de assinalar que nem ele próprio no âmbito deste livro ou de outros posteriores procurou aplicálos operacionalmente na leitura de poemas individuais ou no estudo de uma obra poética completa94 Além disso a sua própria concepção de crítica e conseqüente dicção de seu livro como afirmei acima revelamse incompatíveis com uma teoria que propicie sugestões metodológicas a serem aplicadas como modelos em outros discursos críticos Dentre os comentaristas que se pronunciaram com restrições às colocações de Harold Bloom interessanos de modo particular a opinião de Cláudio Guillén não só por se tratar de um comparatista cuja voz temse feito presente com freqüência ao longo de nosso percurso pela história e problemas da literatura comparada mas por ter participado diretamente de discussões sobre o conceito de influência no âmbito restrito da literatura comparada Para este comparatista a teoria da angústia da influência pouco ou nada tem a contribuir para o estudo comparativo de poesia95 Ao cair no biografismo psicologizando a intertextualidade Bloom tornase vítima da mesma armadilha que aprisionou os comparatistas tradicionais a das conjecturas sobre as relações psíquicas entre os 94 Cf Nestrowski 1991 pp 1920 95 Guillén 1985 p 376 escritores Neste sentido ele reabre o caminho das ambigüidades do velho conceito de influência indo em direção contrária ao promissor trânsito da influência à intertextualidade96 na medida em que o intertexto referese a algo que aparece na obra e não a um amplo processo genético que relegava o resultado isto é o texto a um segundo plano Esta posição de Guillén pode levar o leitor a pensar que ele é um entusiasta da instrumentalização do conceito de intertextualidade pela literatura comparada Não é bem assim Este estudioso também apresenta suas restrições a essa teoria se considerada no espaço específico da literatura comparada Mas tal questão será vista em momento oportuno O que interessa aqui é a teoria de Bloom De fato sua visada deixa relegados os aspectos formais dos po emas o que se justifica plenamente seu propósito central é elaborar uma teoria das profundezas da influência poética Independentemente do caráter polêmico de sua teoria independentemente também da ausência de perspectivas de seu aproveitamento metodológico há de se reconhecer que Bloom entra em cena em plena década de 1970 com uma copiosa e densa reflexão sobre a complicada problemática da criação literária envolvendo portanto questões que rodeiam alguns problemas centrais da literatura comparada Por outro lado sua teoria literária humanística serve de contraponto à despersonalização do processo criador tal como este é postulado pela teoria da intertextualidade de Julia Kristeva97 que será bem recebida por muitos comparatistas preocupados com a renovação da literatura comparada sobretudo a partir da década de 1970 como veremos a seguir Diante disso a presença de A Angústia da Influência tornase imprescindível em estudos de literatura comparada que tentam traçar um panorama de sua história incluindo os anos 70 do século XX INTERTEXTUALIDADE Dentro do contexto de renovação dos estudos de literatura comparada a partir da segunda metade do século XX a teoria da in 96 Idem p 378 97 Cf Carvalhal 1986 p 60 tertextualidade concebida por Julia Kristeva foi recebida por muitos comparatistas como um instrumento eficaz para injetar sangue novo no estudo dos conceitos de fonte e de influência A intertextualidade se insere numa teoria totalizante do texto englobando suas relações com o sujeito o inconsciente e a ideologia numa perspectiva semiótica Julia Kristeva98 identifica completamente sujeito e processo de significação Resolver o problema das relações entre texto e processos semióticos que aí se articulam é explicar como se constituiu o sujeito ou a sua ausência Aquilo que Kristeva designa como genotexto tornase o lugar teórico de uma espécie de fusão entre processos semióticos heterogêneos lugar de sua articulação e de sua passagem para o simbólico conforme nos esclarece sob forma de nota Laurent Jenny em seu conhecido artigo La stratégie de la forme99 Para chegar à elaboração do conceito de intertextualidade Kristeva apóiase em reflexões e proposições de Bakhtin apresentados em La poétique de Dostoievski100 Por isso seguiremos de perto a leitura que ela própria faz deste livro em Recherches pour une sémanalyse Essais 101 assinalando apenas os passos que a levam às suas formulações sobre a linguagem literária Antes porém cabe fazer uma breve apresentação de Bakhtin também na esteira de Kristeva para situálo no contexto da teoria literária Bakhtin foi um dos primeiros formalistas russos que procuraram substituir a segmentação estática dos textos por um modelo segundo o qual a estrutura literária se elabora a partir de uma relação com outra Isso só tornou possível graças à sua concepção de palavra literária entendendose por palavra a idéia de enunciado no âmbito de uma ciência da linguagem por ele chamada de translingüística Esse conceito ao lado de dois outros diálogo e ambivalência abriu caminho para se erigir a teoria da intertextualidade 98 Kristeva 1969 99 Jenny 1976 p 280 100 Bakhtin 1970 101 Kristeva op cit 1969 Ver particularmente Le mot le dialogue et le roman pp 143173 e Pour une sémiologie de paragrammes pp 174206 conjuntos sêmicos e das sequências poéticas o sujeito da escrita o destinatário e os textos exteriores três elementos em diálogo O estatuto da palavra definese horizontalmente a palavra no texto pertence simultaneamente ao sujeito da escrita e ao destinatário e verticalmente a palavra no texto está orientada para o corpus literário anterior ou sincrônico Bakhtin designa estes dois eixos como diálogo e ambivalência O diálogo designa a linguagem assumida como exercício pelo indivíduo Para que as relações de significação e de lógica objeto da lingüística sejam dialógicas elas devem tornarse discurso e obter um autor do enunciado Segundo Bakhtin que tinha saído de uma Rússia revolucionária preocupada com problemas sociais o diálogo não só é linguagem assumida pelo sujeito é também uma escritura na qual se lê o outro Nesse momento Kristeva ressalta que não se trata de nenhuma alusão à psicanálise Disso decorre que o dialogismo de Bakhtin concebe a escritura como subjetividade e comunicabilidade ou para melhor dizer com Kristeva como intertextualidade O termo ambivalência implica a inserção da história e da sociedade no texto e do texto na história Bakhtin considera a escritura leitura do corpus literário anterior o texto absorção e réplica a um outro texto No âmbito dessa conceituação começa a se desvanece a noção de pessoasujeito da escritura e a imporse a ambivalência da escritura Talvez convenha retomarmos a tipologia de palavra estabelecida por Bakhtin para melhor compreendermos a noção de ambivalência e acompanharmos a leitura de Kristeva até o momento em que ela desentranha o conceito de intertextualidade em La poétique de Dostoievski Palavra direta remete ao sujeito exprime a última instância significativa do sujeito do discurso no quadro de um contexto como enunciado do autor exprimindo a denotação Palavra objetal referese ao discurso direto das personagens Tem uma significação objetiva direta mas não se situa no mesmo nível que o do discurso do autor distanciandose deste É um enunciado estranho subordinado ao enunciado narrativo como objeto da compreensão do autor O enunciado do autor subordina o enunciado objetal a seu próprio objetivo sem introduzir nele uma outra significação Assim o enunciado objetal tornase objeto de um outro enunciado denotativo e não tem consciência disso A palavra objetal é pois unívoca como o enunciado denotativo Palavra ambivalente Neste caso o autor pode se servir da palavra de outrem para injetar um sentido novo conservando o sentido que o enunciado já tinha Disso resulta que o enunciado adquire duas significações tornase ambivalente Esta categoria de enunciados ambivalentes caracterizase pelo fato de que o autor explora a palavra de outrem No universo discursivo do livro o destinatário está incluído apenas como propriamente discurso Fundese portanto com aquele outro discurso livro em relação ao qual o escritor escreve seu próprio texto de modo que o eixo horizontal sujeitodestinatário e o eixo vertical textocontexto coincidem para revelar um fato maior a palavra o texto é um cruzamento de palavras textos onde se lê pelo menos uma outra palavra texto Segundo Kristeva Bakhtin não distingue claramente esses dois eixos mas esta falta de rigor não minimiza uma importante descoberta para a teoria literária todo texto se constrói como mosaico de citações todo texto é absorção e transformação de um outro texto Em lugar da noção de intersubjetividade instalase o da intertextualidade e a linguagem poética lêse pelo menos como dupla102 Neste momento Kristeva elabora o já famoso conceito de intertextualidade A partir do diálogo e da ambivalência a linguagem poética no espaço interior do texto tanto quanto no espaço dos textos é um duplo Essa noção de duplo implica que a unidade mínima da linguagem poética é pelo menos dupla não no sentido da diade significantesignificado mas no sentido de uma e outra e faz pensar no funcionamento da linguagem poética como um modelo tabular em que cada unidade sempre dupla atua como um vértice multideterminado A noção de texto em Kristeva é ampla Tornase sinônimo de sistema de signos quer se trate de obras literárias de linguagens orais de sistemas simbólicos sociais ou inconscientes 102 Idem p 146 Propondose a uma revisão da concepção geral do texto literário e aceitando também os princípios enunciados por Saussure em seus Cahiers sur les anagrammes103 Kristeva apresenta em Pour une sémiologie des paragrammes104 uma concepção paragramática da linguagem poética que implica as seguintes teses A linguagem poética é a única infinidade do código O texto literário é um duplo escrituraleitura O texto literário é uma rede de conexões O texto literário se insere no conjunto dos textos é uma escrituraréplica de um outro outros textos Pelo seu modo de escrever lendo o corpus literário anterior ou sincrônico o autor vive na história e a sociedade se escreve no texto A ciência paragramática deve levar em conta uma ambivalência a linguagem poética é um diálogo de dois discursos Um texto estranho entra na rede da escritura que o absorve segundo leis específicas ainda a serem descobertas Assim no paragrama de um texto funcionam todos os textos do espaço lido pelo escritor Kristeva lembra a significação do verbo ler para os antigos Tal significação deve ser valorizada com vistas a uma compreensão da prática literária Ler era também recolher colher espiar reconhecer os traços tomar roubar Ler denota pois uma participação agressiva uma expropriação ativa do outro Escrever seria o ler convertido em produção indústria a escrituraleitura a escritura paragramática seria a aspiração de uma agressividade e de uma participação total105 A linguagem poética surge como um diálogo de textos Toda seqüência está duplamente orientada para o ato da reminiscência evocação de uma outra escrita e para o ato da somaçãot06 a transformação dessa escritura O livro remete a outros livros e pelo processo de somaçãos confere a esses livros um novo modo de ser elaborando assim a sua própria significação Nessa perspectiva o texto literário se apresenta como um sistema de conexões múltiplas que poderíamos descrever como uma estrutura de redes paragramáticas Kristeva chama de rede paragramática o modelo tabular não linear da elaboração da imagem literária em outros termos o grafismo dinâmico e espacial que designa a plurideterminação do sentido na linguagem poética Essas colocações de Kristeva deram origem a várias elaborações do conceito de intertextualidade no âmbito dos estudos literários e da poética literária Opondose a qualquer interpretação redutora diz a autora O termo intertextualidade designa esta transposição de um ou vários sistemas de signos num outro mas já que este termo foi freqüentemente entendido no sentido banal de crítica das fontes de um texto preferimos o de transposição que tem a vantagem de precisar que a passagem de um sistema significante a um outro exige uma nova articulação da temática existencial da posição enunciativa e denotativa107 Uma das reelaborações mais interessantes do conceito de intertextualidade é a de Laurent Jenny em La stratégie de la forme aliás já referido no início deste item Esse estudioso contesta a afirmação de Kristeva segundo a qual intertextualidade no sentido estrito não tem relação com a crítica das fontes Para Laurent Jenny a intertextualidade não é uma adição confusa e misteriosa de influências mas o trabalho de transformação e assimilação de vários textos operado por um texto centralizador que mantém o comando do sentido108 Destaquemos os três pontos essenciais nessa definição O reconhecimento da presença de outros textos em toda e qualquer obra literária 107 Kristeva op cit 1974 p 60 108 Jenny op cit p 262 O trabalho de modificação que os textos estranhos sofrem ao serem assimilados O sentido unificador que deve ter o intertexto entendido como texto absorvendo uma multiplicidade de textos mas ficando unificado por um sentido Há portanto três elementos em jogo o intertexto o novo texto o enunciado estranho que foi incorporado e o texto de onde este último foi extraído E há dois tipos de relações a considerar na problemática intertextual as relações que ligam o texto de origem ao elemento que foi retirado mas já agora modificado no novo contexto e as relações que unem este elemento transformado ao novo texto ao texto que o assimilou Assim a análise de uma obra literária buscará inicialmente avaliar as semelhanças que persistem entre o enunciado transformador e o seu lugar de origem e em segundo lugar ver de que modo o intertexto absorveu o material do qual se apropriou A noção de intertextualidade coloca imediatamente um delicado problema de identificação A partir de que momento podese falar da presença de um texto em outro em termos de intertextualidade Laurent Jenny propõese a falar de intertextualidade somente quando se puder localizar num texto elementos estruturados anteriormente a ele alem dos lexemas mas em qualquer nível de estruturação Distinguirseá este fenômeno da presença num texto de uma simples alusão ou reminiscência isto é cada vez que há empréstimo de uma unidade textual de seu contexto inserida tal qual num novo sintagma a título de elemento paradigmático A intertextualidade introduz um novo modo de leitura que solapa a linearidade do texto Cada referência textual é o lugar que oferece uma alternativa seguir a leitura encarandoa como um fragmento qualquer que faz parte da sintagmática do texto ou então voltar ao texto de origem operando uma espécie de amnésia isto é uma invocação voluntária do passado em que a referência intertextual aparece como elemento paradigmático deslocado e provindo de uma sintagmática esquecida Estes dois processos operando simultaneamente semeiam o texto com bifurcações que ampliam o seu espaço semântico Quaisquer que sejam os textos assimilados o estatuto do discurso intertextual é comparável ao de um superdiscurso uma vez que seus constituintes não são mais palavras mas fragmentos textuais o jáfalado o jáorganizado O textooriginário está virtualmente presente portador de seu sentido sem que se tenha necessidade de enunciálo Isso confere ao intertexto uma riqueza uma densidade excepcional Por outro lado ainda segundo Laurent Jenny o texto citado é desprovido de sua função denotativa Atua exclusivamente na esfera da conotação Cláudio Guillén reconhece o benefício considerável da teoria da intertextualidade para o comparatismo O intertexto referese a algo que aparece na obra que está nela e não a um amplo processo genético cujo centro de interesse localizavase sobretudo no trânsito relegando a um segundo plano tanto a origem quanto o resultado O conceito de influência tendia a individualizar a obra literária sem nenhuma eficácia O conceito de intertexto leva em consideração a sociabilidade da escritura literária cuja individualidade se realiza até certo ponto no cruzamento particular de escrituras prévias Guillén chama a atenção entretanto para o caráter autoritário e monolítico do pronunciamento de Kristeva e de Barthes Este aceitando as idéias de Kristeva esclarece que o intertexto nada tem a ver com a velha noção de fonte ou influência Todo texto é um intertexto outros textos estão presentes nele em níveis variáveis sob formas mais ou menos reconhecíveis os textos da cultura anterior e os da cultura circunstante todo texto é um tecido novo de citações acabadas Passam no texto redistribuidos nele pedaços de códigos formulas modelos rítmicos fragmentos de linguagens sociais etc pois sempre há linguagens antes do texto e ao redor dele A intertextualidade condição de qualquer texto qualquer que ele seja não se reduz evidentemente a um problema de fontes ou de influências o intertexto é um campo geral de fórmulas anônimas cuja origem é raramente localizável de citações inconscientes ou automáticas feitas sem aspas Barthes fala de um tecido de citações Para Guillén é evidente que as alusões de um texto a outro nem sempre são explícitas sobretudo se pensarmos que o aludido muitas vezes não é uma frase uma expressão uma fórmula ou um tópico mas uma estrutura verbal uma forma poética ou narrativa ou um paradigma genérico Barthes parece ter presentes mais as convenções anônimas e automatizadas Nesse sentido pouco adiantaria a intertextualidade para o comparatismo O caráter vago e ilimitado de dados que caracterizam os estudos de fontes e influências volta se a intertextualidade significa o anonimato e a generalidade Assim segundo o comparatista espanhol tal conceito se revela inoperante para a percepção de um fenômeno cuja relevância é indiscutível na literatura a individualidade Ainda segundo Guillén a idéia de intertextualidade se reduz mais a uma concepção geral de signo a uma teoria do texto do que a um método para a investigação sobre as relações existentes entre as diferentes obras Seria mais uma teoria que nos abre o caminho para a leitura mas que não nos oferece diretamente caminho Em outras palavras não resolve o método da literatura comparada O comparatista espanhol exagera ao fazer semelhante afirmação além de empobrecer a teoria da intertextualidade fixandose no comentário de duas citações retiradas de seus contextos e sem maiores explicações para contextualizálas Tal teoria não foi construída para resolver o método da literatura comparada mas indiscutivelmente a partir dela decorreram novas elaborações direcionadas inclusive para uma metodologia da literatura comparada como aquela proposta por Laurent Jenny cuja leitura é obrigatória para qualquer estudiosos de literatura comparada em nossos dias sobretudo se seu interesse for direcionado para o estudo da relação entre obras literárias isto é para uma poética comparativa Além disso o fim último da análise intertextual da obra literária é verificar de que modo o intertexto absorveu o material do qual se apropriou e não se deter nas semelhanças entre o enunciado transformador e o seu lugar de origem Nesse sentido ao contrário do que afirma Cláudio Guillén a teoria da intertextualidade mostrase operatória para a percepção da singularidade de uma obra literária Reconhecer a contribuição da teoria da intertextualidade para os estudos de literatura comparada não significa ignorar seus limites que numa certa medida coincidem com os da influência Leituras interessantes e esclarecedoras de obras literárias podem ser feitas levandose em consideração a intertextualidade explícita Em contrapartida a intertextualidade implícita revelase tão problemática e delicada quanto o conceito de influência Se de um lado é difícil delimitarse o que vem de uma relação direta ou indireta de um autor com outro o que vem pelo movimento e época literária o que vem pelos pressupostos culturais comuns e o que é motivado pela situação sócioeconômica e política de outro é dificílimo localizar a intertextualidade implícita para se avaliar o processo de absorção e transformação operado pelo texto receptor e se ler a obra levandose em consideração esse fenômeno Enfim intertextualidade e influência constituem conceitos que funcionam bem operacionalmente para se lidar com manifestações explícitas mas sua instrumentalização para se analisarem ocorrências implícitas dificilmente apresenta resultados satisfatórios pois estas dependem muito da erudição do leitor Tanto a influência quanto a intertextualidade defrontamse com problemas ligados à criação literária A primeira canaliza sua atenção para os sujeitos criadores situandose num espaço teórico no qual o homem ainda se mantém e garante por meio de sua produção literária e de seu contato com a de outros a continuidade da literatura Ao focalizar sua atenção para os textos os objetos criados a teoria da intertextualidade situase em termos teóricos num pólo oposto inserindose no contexto da visão desconstrutivista marcada entre outras idéias pela morte do sujeito Como decorrência de seus pressupostos teóricos o conceito de influência permite que se instrumentalize a idéia de modelo ao passo que o de intertextualidade a derruba pois está inserido na concepção de literatura como um vasto sistema de trocas onde a questão da propriedade e da originalidade se relativizam e a questão da verdade se torna impertinente DA INFLUÊNCIA À RECEPÇÃO A absorção do termo recepção diretamente relacionado à estética da recepção pelos comparatistas no começo da década de 1970 obedece a uma tendência da história da literatura comparada como disciplina universitária de definirse em relação aos métodos críticos que ocupam a cena dos estudos literários há aproximadamente um século Nos anos 60 a Universidade de Constança reuniu filólogos que tomando posição perante a crise das disciplinas filológicas e diretamente interessados na revisão da autoimagem da teoria da ciência fundaram o primeiro departamento de Ciência da Literatura na Alemanha Este grupo de estudiosos dentre os quais destacamse Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser voltouse para o estudo da estética da recepção e do efeito com o intuito de renovar os estudos literários e superar os impasses da história positivista os impasses da interpretação que apenas servia a si mesma ou a uma metafísica da écriture e os impasses da literatura comparada que tomava a comparação como um fim em si A partir de então colocase a possibilidade de o conceito de recepção vir a substituir os de influência e fortuna englobandoos numa perspectiva mais vasta Não se trata evidentemente de uma apropriação artificial O fenômeno da recepção encontrase no âmago dos estudos de literatura comparada Esta trabalha correntemente com as noções de emissor e receptor às quais se juntam as de transmissor e mediador Como já foi visto na primeira parte deste livro Paul Van Tieghem em La littérature comparée estabelece a ligação entre literatura comparada e estudo das influências O item que tem por título As Influências Nacionais Antigas e Estrangeiras e Modernas é seguido de um outro Sucessos e Influências Globais no qual o autor propõe o termo doxologia para os estudos sobre o sucesso ou a fortuna de um escritor no estrangeiro com o intuito de distinguilos do estudo das influências Fortuna sucesso fonte e influência constituem termos aplicados com frequência sem rigor para designar as pegadas que um escritor deixa atrás de si Vale a pena retomálos aqui para reiterar a explicitação de seus conteúdos Fortuna é o conjunto dos testemunhos que manifestam as qualidades de uma obra Inclui as noções de sucesso e influência Sucesso é um conceito de ordem quantitativa indica o número de edições traduções adaptações objetos que se inspiraram na obra e leitores que a leram O estudo do sucesso constitui um dos ramos da sociologia dos fatos literários A este conceito opõese o de influência de ordem qualitativa que se circunscreve no âmbito de um mecanismo sutil e misterioso através do qual uma obra contribui para o nascimento de outra A influência está internamente relacionada ao leitor ativo no qual ela vai fecundar a imaginação criadora O sucesso dá conta de leitores passivos O conceito de fonte associase intimamente ao de influência Ambos dizem respeito aos mecanismos da criação literária e funcionam como conceitos operatórios na literatura comparada tradicional voltada para o estudo das relações entre uma obra e seus modelos Fonte e influência constituem duas faces de um mesmo problema o que as diferencia é a linha de direção de emissor a receptor A busca da influência conduz do emissor ao receptor privilegiando o pólo ativo da ação de influir A pesquisa das fontes faz o caminho inverso remonta do receptor ao emissor Deste modo acentua o pólo passivo da ação de influir Na bibliografia crítica de literatura comparada tradicional o número de estudos sobre influências ultrapassa de muito o de estudos sobre fontes Na opinião de Brunel Pichois e Rousseau isso se deve ao fato de que a influência segue canais facilmente observáveis traduções adaptações enquanto a peregrinação às fontes é uma aventura na obscuridade dos possíveis Talvez estes comparatistas tenham razão quanto aos caminhos metodológicos que operaciona Iizaram tais conceitos mas não quanto à sua essência Localizar fontes é tão problemático quanto localizar influências a não ser quando são explícitas O estudo da fortuna fonte sucesso e influência faz parte do domínio da recepção literária mas não se encontra no centro da estética da recepção Ao contrário esta teoria vai colocar em xeque os referidos conceitos instrumentalizados pela história e comparatismo tradicionais abrindo uma perspectiva diferente de pesquisa Os estudos de recepção procuram destacar a atividade daquele que recebe mais do que a atividade potential do objeto recebido de modo que a relação obraleitor passa a constituir um caráter fundamental do fato literário Para se compreender as diferenças de perspectivas impõese expor embora de modo sucinto algumas informações básicas sobre a estética da recepção Considerando que a estética da recepção não é homogênea havendo divergências entre seus teóricos considerando que não cabe apresentála aqui em todas as suas dimensões considerando que o interesse é mostrar como ela foi vista como possibilidade de renovação para a literatura comparada e finalmente considerando que Hans Robert Jauss é reconhecido como o teórico que melhor formulou o conceito da estética da recepção serão retomados aqui os aspectos fundamentais desta teoria a partir de sua exposição Estética da Recepção e Comunicação Literária apresentada no IX Congresso da Associação Internacional de Literatura Comparada117 Como já foi exposto a estética da recepção surgiu nos anos 60 num contexto marcado pelo questionamento do paradigma dominante do estruturalismo de tendência aistórica e acabou se transformando numa teoria da comunicação literária O objeto de suas pesquisas é a história literária definida como um processo que envolve três actantes o autor a obra e o público Tratase de um processo dialético no qual o movimento entre produção e recepção passa sempre pela comunicação literária Daí o fato de a noção de recepção ter um duplo sentido acolhida ou apropriação e troca ou intercâmbio Por outro lado a noção de estética não se refere nem a uma consciência do Belo nem à antiga questão sobre a essência da arte mas procura apreender algo sobre a arte por meio da experiência da própria arte pelo estudo histórico da prática estética que graças às atividades produtoras receptoras e comunicativas está na base de todas as manifestações da arte Recepção como noção estética abrange um duplo sentido passivo e ativo ao mesmo tempo Definese como um ato de face dupla que compreende simultaneamente o efeito produzido pela obra e a maneira como esta é recebida pelo público Este ou o destinatário podem reagir de vários modos consumir simplesmente a obra ou criticála admirála ou recusála deleitarse com sua forma interpretar seu conteúdo assumir uma interpretação reconhecida ou tentar apresentar uma nova Finalmente o destinatário pode responder a uma obra produzindo ele próprio uma outra E assim se realiza o circuito comunicativo literário o produtor é também um receptor quando começa a escrever Por meio dessas diversas atividades o sentido de uma obra está sempre se renovando como resultado do horizonte de expectativas Para melhor sublinhar a complexidade de uma tal óptica Jauss introduziu o conceito de horizonte de expectativas que vem desempenhar um papel metodológico essencial ele abarca os pressupostos sob os quais um leitor recebe uma obra Devese distinguir o horizonte de expectativas intraliterário implícito na obra com o qual se entende a précompreensão dos gêneros e a contraposição da linguagem poética e prática e um horizonte de expectativas extraliterário que é dado pelo mundo vital prático do leitor individual ou dos es tratos de leitores118 A reconstrução desses horizontes de expectativas pode dar resposta segundo Jauss à pergunta sobre como foi recebida pelo público uma obra literária por que ela foi entendida numa determinada época de tal modo e em outra de outro Da recepção diferente de um texto literário por leitores contemporâneos e por leitores historicamente sucessivos se depreende o potencial de sentido da obra Com isso Jauss se previne de uma concepção extremamente subjetivista e relativista na medida em que cada tipo de interpretação do texto se legitima por disposições históricas sociais literárias estéticas e 117 Jauss 1981 118 Costa Lima 1979 p 50 pessoais da recepção Somente sob esta premissa se podem descrever objetivamente as recepções e a investigação da recepção terá sentido Contra uma tradição de pesquisas históricas fundamentadas num ideário poético que contempla as noções de fortuna influência sucesso etc a estética da recepção restitui ao leitor seu papel ativo na concretização sucessiva do sentido das obras ao longo da história Por outro lado sublinha Jauss que a estética da recepção não deveria ser confundida com uma sociologia histórica do público voltada apenas para a mudança de seu gosto de seus interesses e de suas ideologias Opondose a estes dois métodos que reduzem a história literária a causalidades unilaterais a estética da recepção mantém uma concepção dialética a história das interpretações de uma obra de arte é uma troca de experiências ou um diálogo um jogo de perguntas e respostas Convém lembrar aqui que Jauss para elaborar suas reflexões apóiase em parte na teoria da estrutura da obra literária de Roman Ingarden cuja perspectiva central é a de que uma obra é inacabada e ela só se manifesta plenamente por meio da interação textoleitor Também contra a tendência predominante das teorias formalistas dos anos 60 cujos métodos descritivos descartavam a interpretação a estética da recepção faz uma profissão de fé hermenêutica situandose no campo das ciências do sentido Contudo não abandona as conquistas da aproximação estruturalista e longe está de seu projeto dedicarse a uma exegese imanente para atingir uma pretensa objetividade A interpretação exige que o intérprete procure controlar sua aproximação subjetiva reconhecendo o horizonte limitado de sua posição histórica Esta teoria retomou os argumentos da filosofia hermenêutica de Gadamer o qual criticava nos anos 60 o objetivismo da exegese reinante no ensino literário e denunciava as ilusões do historicismo que preconizando a volta às fontes e a fidelidade ao texto levava o intérprete a ignorar os limites de seu horizonte histórico a desprezar o que ele devia à história da recepção de seu texto crendo que uma relação pura e imediata com o texto garantia a posse de seu sentido verdadeiro Além disso a recepção estética ainda inspirandose na hermenêutica de Gadamer procurou desenvolver os três momentos da interpretação compreensão interpretação e aplicação incluídos nos modelos da teologia e da jurisprudência Ambas nunca perderam de vista que no seio da compreensão ocorre uma aplicação à situação presente do intérprete do texto que está sendo compreendido De modo que o ato de compreender se completa para o teólogo na pregação e para o jurisconsulto na sentença A significação de um texto de jurisprudência ou de um texto teológico não se esgota na visada histórica a significação de uma lei deve concretizarse na sua aplicação a cada caso novo um texto religioso deve ser compreendido como mensagem de salvação de acordo com cada situação concreta Inserindose nessa linha hermenêutica para realizar seu trabalho concreto de interpretação a estética da recepção reconhece a aplicação como parte integrante de qualquer compreensão e localiza na experiência estética a unidade dos três momentos do ato hermenêutico Sumariados alguns pontos fundamentais da estética da recepção tal como é formulada por Jauss cabe agora destacar as colocações deste teórico sobre os estudos de literatura comparada Segundo ele a chance particular para a renovação dos estudos de literatura comparada se situaria na reconciliação entre o conhecimento histórico e as necessidades de uma comunicação literária Tendo sido fundada com o objetivo de compensar o isolamento das literaturas nacionais a literatura comparada apresenta dificuldade em reconhecer o interesse legítimo de colocar o problema da comunicação literária graças ao fato de ela haver tido relações estreitas durante muito tempo com a metodologia positivista com a história das idéias ou com formalismo A partir da definição de literatura comparada de JeanMarie Carré como o estudo das relações espirituais internacionais das relações de fato Jauss sublinha que a experiência vivida da comunicação literária permanece oculta sob uma rede de fatos literários e se desconhece que sempre existe por detrás das relações objetivas ou espirituais sujeitos agentes que por meio da recepção da interpretação da seleção e da reprodução da literatura anterior realizam um intercâmbio literário119 Os comparatistas dos anos 70 para escaparem de uma comparação voltada para si mesma teriam muito a aprender tanto com os 119 Iidem p 19 humanistas quanto com os filósofos do século XVIII para os quais a comparação em história literária tem necessidade de um tertium comparationis vale dizer de uma norma teórica Esta é a opinião expressa de Jauss Tal norma não decorre imediatamente do objeto da comparação Ela provém da précompreensão de um interesse oculto ou inconsciente do intérprete devendo este explicitálo com o auxílio de sua reflexão hermenêutica e introduzilo conscientemente no ato da comparação se quiser que sua análise se fundamente numa questão reconhecida e não num preconceito120 Para os humanistas tanto quanto para os filósofos do século XVIII a interpretação das culturas antiga e moderna constituía um meio de formular e descrever um ideal para a sociedade presente e futura Assim para citar apenas dois dentre os vários exemplos arrolados por Jauss em Paralléle des Anciens et des Modernes 16881697 Charles Perrault queria pôr à prova o progresso do século de Luís XIV sob as normas de perfeição da cultura antiga e acabou apesar de sua primeira intenção por reconhecer a qualidade incomparável dos dois mundos históricos e Lhistoire de lAntiquité 1764 concebida como uma antítese das Belas Artes dos Modernos Winckelmann não devia somente fazer aparecer por meio de seu desenvolvimento entre os Antigos a idéia do Belo a única digna de ser imitada mas também devia colocar diante dos olhos de seus contemporâneos mediante novas interpretações do Alto Estilo e do Belo Estilo uma utopia estética de uma vida boa em comunidade Cotejados com estes antecedentes e outros as finalidades e projetos da disciplina que se quer comparatista parecem ou pelo menos pareciam a Jauss em 1979 muito modestos Até mesmo o projeto da Associação Internacional de Literatura Comparada então em curso de uma História Comparada das Literaturas de Línguas Européias corria o risco diante da falta de uma finalidade que ultrapassasse a comparação metodológica de erigir um museu imaginário da literatura universal Apesar de Jauss colocar como uma tarefa difícil a possibilidade de a literatura comparada ultrapassar os meros limites da comparação metodológica houve por parte dos comparatistas um olhar atento para a estética da recepção e o reconhecimento de sua contribuição para a renovação desse campo de estudos literários Tanto é que o próprio Jauss teve oportunidade de dialogar com os comparatistas no âmbito do IX Congresso da Associação Internacional de Literatura Comparada e antes disso em 1976 uma das grandes sessões do VIII Congresso realizado em Budapeste foi consagrada à Comunicação Literária e Recepção durante a qual a estética da recepção foi amplamente debatida Desde então a recepção no dizer de Yves Chevrel adquire direito de cidadania entre os grandes conceitos objetos de pesquisa comparatista e passa a constituir temas de livros de literatura comparada como ocorre com Précis de littérature comparée121 O que não significa necessariamente uma adesão total aos pontos fundamentais da estética da recepção Para Manfred Gsteiger122 a teoria da estética da recepção coloca à disposição dos comparatistas um certo número de conceitos que lhes dá a possibilidade de ultrapassar a visão tradicional das relações das influências e dos sucessos em outros termos de sair das trilhas de um positivismo causal e final sem no entanto cair na voga das comparações puras que correm o risco de significar tudo e nada ao mesmo tempo Ao fazer uma súmula da história da literatura comparada Gsteiger mostra as consequências da adoção do formalismo para a literatura comparada o esfacelamento de seu quadro teórico A partir de então o comparatismo definese pela afirmação de um caráter plural que pode ter seus méritos mas que não se revela com condições de fundar uma teoria mostrando claramente que a época em que se podia falar rigorosamente de um método específico já passou A contribuição da estética da recepção para o estudo comparatista situase pois em meio ao questionamento ao positivismo da escola francesa graças ao impacto do formalismo na primeira metade deste século e à confirmação sociológica dos estudos literários objeto de discussão durante o VI Congresso da Associação Internacional de 120 Idem ibidem 121 Brunel Chevrel 1989 122 Gsteiger 1980 Literatura Comparada realizado em Bordeaux em 1970 Nessa ocasião abriuse a possibilidade de se reconhecer a obra literária na sua especificidade sem se renunciar a colocála no seu quadro histórico e social reconciliandose assim uma aproximação completa simultaneamente intrínseca e extrínseca123 Dentro desse contexto a estética da recepção oferece instrumentos mais afinados e complexos para a literatura comparada continuar desenvolvendo seus estudos de recepção que num certo sentido não ignoravam o papel fundamental do leitor e do público Para estabelecer um elo entre os estudos de recepção da literatura comparada e a estética da recepção da Escola de Constança Gsteiger vai buscar nos textos de alguns pioneiros afirmações nas quais se possa vislumbrar a importância concedida ao elemento receptor como é o caso destas palavras de Baldensperger em seu livro La littérature création succes durée publicado em 1913 A literatura tal qual é produzida pelos artistas que a alimentam ou tal qual é acolhida pelo público que a aceita não é inteiramente uma única e mesma coisa e em qualquer ação há dois termos o agente de influência e o sujeito receptor e este é em suma mais importante que o primeiro124 Ao se referir a Baldensperger e a outros pioneiros do comparatis mo tradicional Gsteiger apresentaos como antecessores dos teóricos da estética da recepção por eles desconhecidos ou ignorados intencionalmente mas faz questão de dizer que tais pioneiros não deram o passo decisivo para articular claramente um método baseado na idéia da relação binária entre obra e autor mensagem e receptor Cumpre dizer que não deram o passo decisivo e nem poderiam têlo feito pois não dispunham ainda dos instrumentos teóricos que permitiram aos estudiosos da Escola de Constança avançar nas suas reflexões e propostas Os teóricos da estética da recepção descreveram de um modo muito mais completo os problemas colocados por aquela relação e deram um passo a mais ao incorporarem o nível de interpretação procurando assim afinar seus métodos Como se pode observar a comunicação de Gsteiger aponta para a possibilidade de a estética da recepção contribuir para um refinamento dos estudos de recepção na literatura comparada mas não vai além no sentido de indicar de modo concreto a renovação de seus instrumentos teóricos É verdade que se trata de um texto apresentado em 1976 quando a estética da recepção era relativamente recente e as reflexões sobre um possível aproveitamento desta teoria pela literatura comparada estavam começando a engatinhar O mesmo não se pode dizer com relação ao capítulo Les études de réception de autoria de Yves Chevrel em Précis de littérature comparée125 publicado em 1989 A fase da primeira infância passara há muito tempo e apesar de a recepção ter adquirido direito de cidadania entre os grandes conceitos de literatura comparada o que se observa é que os modelos de estudo de recepção arrolados e apresentados confirmam a linha da literatura comparada tradicional De um lado Yves Chevrel não escapa da tendência dos comparatistas em geral de mostrar com insistência que a literatura comparada tradicional já dispunha de uma linha bem desenvolvida de estudos de recepção embora o termo recepção não tivesse uma longa tradição neste domínio dos estudos literários De outro o aproveitamento da estética da recepção para a renovação da literatura comparada é colocado de modo muito tímido Vale a pena acompanharmos de perto seu pensamento e seus argumentos a este respeito Yves Chevrel retoma a definição de horizonte de expectativa tal como é formulada por Jauss como sistema de referências objetivamente formulável que para cada obra no momento da história em que aparece resulta de três fatores principais a experiência prévia que o público tem do gênero ao qual ela pertence a forma e a temática de obras anteriores cujo conhecimento ela pressupõe e a oposição entre linguagem poética e linguagem prática mundo imaginário e realidade cotidiana126 Desta definição são pontuados dois elementos a ênfase no enraizamento histórico da recepção de qualquer obra literária por meio da referência ao gênero e às obras anteriores e a idéia cara aos 123 Idem ibidem 124 Baldensperger apud Gsteiger op cit 1980 125 Brunel Chevrel op cit 126 Jauss apud Brunel Chevrel op cit p 200 retirada da edição francesa Pour une esthétique de la réception Paris Gallimard 1978 p 49 formalistas russos da especificidade da linguagem literária e de seu desvio em relação a um uso normal da língua Quanto ao primeiro elemento destacado Yves Chevrel reconhece a dificuldade de se estabelecerem critérios que permitiriam definir um horizonte de expectativa válido para qualquer momento da história cultural de um país ou a grade teórica correria o risco de ser demasiado complicada ou ao contrário teria as malhas muito grossas e reteria apenas o acessório Chevrel concorda também com Jauss quanto à inscrição num gênero desempenhar seu papel no momento em que se admite a codificação literária em gêneros e subgêneros tais como comédia tragédia tragicomédia pastoral etc A recepção de Shakespeare na França explicase por esta grade responsável pela incerteza quanto à classificação de suas peças e conseqüentemente por sua rejeição ou pelo menos por uma atitude de desconfiança por parte de seus leitores espectadores críticos e adaptadores A este exemplo Chevrel contrapõe um outro para mostrar os limites do conceito de horizonte de expectativa No século XX verificase um esgarçamento da noção de gênero novelas contos romances short stories etc acabam reunindose em conjuntos como narrativastextos Entretanto isto não impede que uma parte importante da produção literária contemporânea continue a referirse implícita ou explicitamente a obras anteriores e gêneros em desuso É o caso de Dom João ou O Amor da Geometria de Max Frisch que só é legível se for inserido na linha dos grandes modelos o Burlador de Tirso de Molina e Don Juan de Molière Quanto ao segundo elemento isto é à diferença entre o uso literário e o uso prático da língua Yves Chevrel afirma que em certos casos ela pode revelarse inoperante Para ilustrar esta afirmação ele se vale de dois exemplos Muitos críticos alemães dentre os quais muitos favoráveis a Zola acusam este escritor de situarse fora da literatura na medida em que ele não atende as três noçõeschave de uma concepção idealista da literatura humor transfiguração do real e reconciliação Em outros termos para eles no fundo o romancista francês faz um uso nãoliterário dos meios que a língua coloca à sua disposição Os romances de Zola entretanto se apresentam como ficção Para sublinhar que a fronteira entre a linguagem poética e a linguagem prática é variável podendo desafiar a perspicácia do receptor Chevrel referese ao caso de leitores que acreditavam na autenticidade das cartas publicadas sob o título de Julie ou la nouvelle Héloïse de Rousseau Em vista disso os elementos considerados por Jauss devem ser utilizados com precaução Nesse caso específico não se pode deixar de assinalar a fragilidade do argumento de Yves Chevrel Uma vez que este estudioso francês filiase à linha que considera a especificidade dos estudos comparatistas de recepção os quais não se podem servir dos mesmos meios utilizados para se falar de uma obra inserida na tradição cultural do público ao qual ela se dirige ele propõe um aproveitamento metodológico do conceito de horizonte de expectativa para este fim No caso específico de uma obra estrangeira que venha perturbar um sistema literário em cujo horizonte de expectativa ela não se situe o que importa do ponto de vista metodológico é explorar ao máximo o caráter revelador que ela possa ter nem que seja por meio de mecanismos de defesa que possa suscitar Em outras palavras um bom método para reconstruir o horizonte de expectativa do público é medir o grau de atenção que este dispensa às obras estrangeiras Para explicitar melhor seu pensamento Yves Chevrel inverte a fórmula que subjaz numa afirmação de Gustave Lanson feita em 1917 segundo a qual o sucesso de uma literatura estrangeira era sinal de uma fraqueza nacional os franceses liam Ossian porque tinham apenas Bernis ou liam Byron porque tinham apenas Parny Inversamente perguntase o comparatista francês contemporâneo se não é por que os franceses conhecem Tolstoi ou Dos Passos que também podem ler Roger Martin du Gard ou Jean Paul Sartre Não param por aí as considerações de Yves Chevrel sobre o horizonte de expectativa Ele retoma os dois tipos de horizonte de expectativa do público e da obra O do público constitui uma grade hermenêutica freqüentemente implícita que orienta a tomada de contato com a obra estrangeira Cada leitor tem seu passado próprio com suas experiências estéticas anteriores No entanto ele não escapa a uma certa homogeneização de visão decorrente da tradição cultural na qual se insere A escola e a universidade devem ser levadas particularmente em conta no processo de formação de horizontes de expectativas Um universitário francês não germanista que tivesse à sua disposição apenas a grade tragédia de Racine e fosse ler Pentesiléas de Kleist poderia decepcionarse chocarse ou entusiasmarse com a peça do autor alemão em virtude dessa grade O horizonte de expectativa da obra por sua vez confundese com o do leitor implícito O primeiro responsável por este horizonte de expectativa é o autor que define explicitamente o público visado ou a maneira de ler sua obra ou ambos ao mesmo tempo No entanto o texto publicado escapa às intenções explícitas de seu autor e a crítica universitária ou não encarregase de dizer incessantemente como se pode como se deve ler um texto de modo que o horizonte de expectativa nunca será completamente decifrado Para Yves Chevrel é mais fácil delinear o horizonte de expectativa de uma obra que o de um público por isso ele critica o fato de Jauss escamotear esta questão Para reconstituir o horizonte de expectativa dos leitores de Dom Quixote Jacques le fataliste e Madame Bovary ele parte das próprias obras Estas por sua vez expõem explicitamente ou não seus modelos e contramodelos e não os dos leitores ou os do público O comparatista francês não considera este um bom método porque desliza do leitor implícito ao leitor real Por isso ele propõe a combinação dos estudos quantitativos completamente descarta dos teóricos da estética da recepção e das análises qualitativas Assim as conclusões de La crise littéraire à lépoque du naturalisme Roman théâtre et politique127 de Christophe Charles publicado pela Pens em 1979 poderão servir de excelente suporte para um estudo singular O autor mostra que a crise de superprodução que afeta o mercado literário na França no fim do século XIX deve ser analisada e modulada em razão dos grandes gêneros Os jovens interessamse sucessivamente pelo romance pela poesia e pelo teatro Tal constatação baseada em estatísticas permite seguir o deslocamento do interesse do público cada vez mais ávido por romances até 1884 por coletâneas de poesias até 1890 e por teatro a partir dessa data Estes fatos apresentam de modo esquemático os grandes contornos de um horizonte de expectativa e podem estar na retaguarda de uma análise qualitativa como por exemplo a da recepção de Casa de Boneca de Ibsen Esta peça foi montada em Paris em 1894 num momento em que o gosto pelo teatro era muito vivo Entretanto isso não lhe garante uma recepção favorável Muitas críticas da época mostram que ela fugia ao horizonte de expectativa de um público dividido entre o vaudeville bem realizado e a atração pelo teatro simbolista Como se pode depreender Yves Chevrel canaliza mais sua atenção sobre os problemas da contribuição metodológica da noção de horizonte de expectativa para a recepção que poderia enquadrarse nos estudos de fortuna e sucesso da literatura comparada tradicional ou em termos de uma tipologia da recepção da obra literária em recepção passiva constituída pela ampla massa de leitores e recepção produtora consubstanciada na crítica no comentário no ensaio em cartas e outros documentos que entram no circuito da comunicação de uma obra literária É deixada de lado a recepção produtora intimamente relacionada ao ato criador por meio da qual escritores estimulados por obras literárias filosóficas psicológicas e plásticas criam uma nova obra de arte128 A recepção produtora encontra na influência seu par homólogo guardadas evidentemente as diferenças dos pressupostos das teorias nas quais tais noções se inserem E é este tipo de recepção que tem sido mais estudado não se diferenciando quanto a este aspecto da tendência da literatura comparada tradicional em privilegiar o estudo das influências Qual a contribuição da estética da recepção para a renovação dos estudos de influência Com seu objetivo de substituir a historiografia literária substancialista fundada no estudo da obra e do autor por uma historiografia voltada para o leitor a estética da recepção abre perspectivas para que a influência já não se explique mais causal e geneticamente de obra a obra de autor a autor de nação a nação mas como resultado complexo da recepção Tendo em vista as dificuldades da operacionalidade de uma das noções mais importantes desta teoria ou seja a reconstituição do horizonte de expectativa que atinge não só o leitor passivo e o leitor reprodutor mas também o leitor produtor podese dizer que ela pouco avançou em termos de contribuição metodológica para um 127 Christophe apud Brunel Chevrel op cit 128 Classificação de Link reproduzida e analisada em MoogGrünewald 1984 melhor desvendamento da relação entre autor obra e leitor no campo comparatista Nesse sentido o estudo de influência como recepção produtora não escapa das dificuldades próprias aos estudos de influência e intertextualidade implícitas LITERATURA COMPARADA NO BRASIL Como dizia Ruth Benedict não se deve montar um Frankenstein cultural feito de pedaços tomados isoladamente a culturas quaisquer Do mesmo modo não se pode por exemplo fazer literatura comparada tornando digamos a função do dinheiro em Machado de Assis em Dostoiévski e em Balzac e efetuar um confronto puro e simples pois seria produzir um Frankenstein crítico É preciso considerar a obra de Machado como um todo e ver de que maneira o dinheiro funciona nela Certamente funcionará de maneira diversa nas de Dostoiévski e Balzac vistas também como totalidades em que ele se insere Só a partir daí será possível proceder á comparação ANTONIO CANDIDO PANORAMA Os anos 80 foram decisivos para o estatuto institucional da literatura comparada no Brasil Em 1986 foi criada em Porto Alegre