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Psicologia ·

Ética Geral e Profissional

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Fundamentação da Metafísica dos Costumes Immanuel Kant Tradução de Antônio Pinto de Carvalho Companhia Editora Nacional PREFÁCIO A ANTIGA filosofia grega repartiase em três ciências a Física a Ética e a Lógica Esta divisão está inteiramente de acordo com a natureza das coisas nem temos que introduzirlhe qualquer espécie de aperfeiçoamento a não ser acrescentar o princípio em que ela se baseia para que desse modo possamos por um lado possuir a certeza de ela ser completa e por outro lado determinar com exatidão as subdivisões necessárias Todo conhecimento racional é ou material e referese a qualquer objeto ou formal e ocupase exclusivamente com a forma do entendimento e da razão um e outro em si mesmos considerados e com as regras universais do pensamento em geral sem distinção de objetos A filosofia formal denominase LÓGICA mas a filosofia material que trata de objetos determinados e das leis a que eles estão sujeitos dividese por sua vez em duas visto estas leis serem ou leis da natureza ou leis da liberdade A ciência das primeiras chamase FÍSICAa das segundas ÉTICA Aquela dáse também o nome de Filosofia da natureza ou Filosofia natural a esta o de Filosofia dos costumes A Lógica não pode comportar parte empírica ou seja parte na qual as leis universais e necessárias do pensamento estribem em princípios tomados da experiência de contrário não seria lógica isto é cânone do entendimento e da razão válido para todo pensamento e capaz de ser demonstrado Ao invés tanto a Filosofia natural como a Filosofia moral podem cada uma possuir uma parte empírica pois devem aplicar suas leis aquela à natureza como a objeto da experiência e esta à vontade humana enquanto afetada pela natureza leis no primeiro caso em conformidade com as quais tudo acontece leis no segundo caso de acordo com as quais tudo deve 388 acontecer tomando todavia em consideração as condições mercê das quais muitas vezes não acontece o que deveria acontecer Podese denominar empírica toda filosofia que se apóia em princípios da experiência e pura a que deriva suas doutrinas exclusivamente de princípios a priori Esta quando simplesmente formal chamase Lógica mas se for circunscrita a determinados objetos do entendimento recebe o nome de Metafísica Deste modo surge a idéia de uma dupla metafísica uma Metafísica da natureza e uma Metafísica dos costumes A Física terá pois além de sua parte empírica uma parte racional Outro tanto sucede com a Ética embora aqui a parte empírica possa denominarse particularmente Antropologia prática e a parte racional receber o nome de Moral Todas as indústrias mesteres e artes lucraram com a divisão do trabalho Devido a ela não é um só que faz todas as coisas mas cada qual se circunscreve àquela tarefa peculiar que por seu modo de execução se distingue sensivelmente das demais a fim de poder cumprila com o máximo de perfeição e de facilidade possível Onde os trabalhos não são assim divididos e discriminados e cada artista tem de realizar tudo por si as indústrias permanecem numa fase de grande barbárie Ora seria por certo questão digna de ser examinada perguntar se a filosofia pura não exige em todas as suas partes uni especialista que se lhe dedique exclusivamente e se para o conjunto desta indústria que é a ciência não seria preferível que os que estão habituados a apresentar conforme ao gosto do público o empírico imiscuído com o racional combinado em toda a sorte de proporções que eles próprios desconhecem que a si próprios se qualificam de autênticos pensadores ao mesmo tempo que apodam de visionários os que se ocupam da parte puramente racional se não seria preferível digo que esses tais fossem advertidos a que não se incumbissem simultaneamente de duas tarefas que devem ser desempenhadas de maneira inteiramente diferente cada uma das quais reclama sem dúvida talento particular e cuja reunião numa só pessoa conduz fatalmente a produzir obra imperfeita Limitome entanto aqui a perguntar se a natureza da ciência não exige que se separe sempre com sumo cuidado a parte empírica da parte racional que se faça preceder a Física propriamente dita empírica de uma Metafísica da natureza e a Antropologia prática de uma Metafísica dos costumes as quais Metafísicas deveriam ser cuidadosamente expurgadas de todo elemento 389 empírico com o intuito de saber tudo o que a razão pura pode fazer em ambos os casos e em que mananciais ela haure esta sua doutrinação a priori quer semelhante tarefa seja empreendida por todos os moralistas que não têm conto quer somente por alguns que para tal se sintam especialmente chamados Como aqui não tenho em vista senão propriamente a filosofia moral limito a estes termos a questão proposta não seria de suma necessidade elaborar de vez uma Filosofia moral pura completamente expurgada de tudo quanto é empírico e pertence à Antropologia Que tal filosofia deva existir resulta manifestamente da idéia comum do dever e das leis morais Devese concordar que uma lei para possuir valor moral isto é para fundamentar uma obrigação precisa de implicar em si uma absoluta necessidade requer além disso que o mandamento Não deves mentir não seja válido somente para os homens deixando a outros seres racionais a faculdade de não lhe ligarem importância O mesmo se diga das restantes morais propriamente ditas Por conseguinte o princípio da obrigação não deve ser aqui buscado na natureza do homem nem nas circunstâncias em que ele se encontra situado no mundo mas a priori só nos conceitos da razão pura e qualquer outra prescrição que estribe nos princípios da simples experiência mesmo que sob certos aspectos fosse prescrição universal por pouco que se apóie em razões empíricas nem que seja por um motivo apenas pode ser denominada regra prática nunca porém lei moral Pelo que em todo conhecimento prático não só as leis morais juntamente com seus princípios se distinguem essencialmente de tudo o que contém algum elemento empírico como também toda filosofia moral se apóia inteiramente em sua parte pura e aplicada ao homem não deduz coisa alguma do conhecimento do que este é Antropologia senão que lhe confere na medida em que ele é ser racional leis a priori Sem dúvida tais leis exigem uma faculdade de julgar aguçada pela experiência capaz de em parte discernir em que casos elas são aplicáveis e em parte procurarlhes acesso à vontade humana e influência para a prática porque o homem sujeito como se encontra a tantas inclinações possui decerto capacidade para conceber a idéia de uma razão pura prática mas não pode assim com facilidade Tornar essa idéia eficaz in concreto em seu procedimento 390 Uma Metafísica dos costumes é pois rigorosamente necessária não só por motivo de necessidade da especulação a fim de indagar a origem dos princípios práticos que existem a priori em nossa razão mas também porque a própria moralidade está sujeita a toda a espécie de perversões enquanto carecer deste fio condutor e desta norma suprema de sua exata apreciação Com efeito para que uma ação seja moralmente boa não basta que seja conforme com a lei moral é preciso além disso que seja praticada por causa da mesma lei moral de contrário aquela conformidade e apenas muito acidental e muito incerta visto como o princípio estranho à moral produzirá sem dúvida de quando em quando ações conformes com a lei mas muitas vezes também ações que lhe são contrárias Ora a lei moral em sua pureza e genuinidade e justamente é isto o que mais importa na prática não deve ser buscada senão numa Filosofia pura donde a necessidade de esta a Metafísica vir em primeiro lugar pois sem ela não pode haver filosofia moral Nem a filosofia que confunde princípios puros com princípios práticos merece o nome de filosofia pois esta distinguese do conhecimento racional comum precisamente por expor numa ciência à parte o que este conhecimento comum apreende apenas de modo confuso merece menos ainda o nome de filosofia moral porque justamente devido a tal confusão prejudica a pureza da moralidade e vai de encontro a seu próprio fim Não se pense todavia que o que se requer aqui se encontre já na propedêutica que o ilustre WOLFF antepõe à sua filosofia moral a saber na obra a que deu o título de Filosofia prática universal e que por conseguinte não há campo inteiramente novo que explorar Precisamente porque essa propedêutica devia ser uma filosofia prática universal considerou ela não uma vontade de qualquer espécie particular como seria por exemplo uma vontade determinada não por motivos empíricos mas só por princípios a priori e que pudesse ser denominada vontade pura mas o querer em geral com todas as ações e condições que lhe convém dentro deste significado geral distinguese pois da Metafísica dos costumes do mesmo modo que a Lógica geral se distingue da Filosofia transcendental a Lógica geral expõe as operações e regras do pensamento em geral ao passo que a Filosofia transcendental expõe unicamente as operações e regras particulares do pensamento puro ou seja do pensamento por meio do qual os objetos são conhecidos inteiramente a priori É que a Metafísica dos costumes deve indagar a idéia e os princípios de uma vontade pura possível e não as ações e condições do humano querer em geral as quais em sua maioria são tomadas da Psicologia O fato de na Filosofia prática geral se falar igualmente 391 embora sem razão de leis morais e de dever não constitui objeção contra o que afirmo Com efeito os autores dessa ciência permanecem fiéis neste ponto à idéia que dela formam não distinguem entre os princípios de determinação aqueles que como tais são representados absolutamente a priori pela só razão e são propriamente morais daqueles que são empíricos e que o entendimento erige em conceitos gerais por um simples confronto das experiências consideramnos ao invés sem atentarem na diferença de suas origens apenas segundo seu número maior ou menor pois os encaram como sendo todos da mesma espécie e formam assim seu conceito de obrigação Na verdade este conceito é tudo menos moral mas é o único que se pode esperar de uma filosofia que sobre a origem de todos os conceitos práticos possíveis não decide de maneira nenhuma se se produzem a priori ou só a posteriori Ora propondome publicar um dia uma Metafísica dos costumes façoa preceder deste opúsculo que lhe serve de fundamentação Decerto não há um rigor outro fundamento em que da possa assentar de não seja a Crítica de uma razão pura prática do mesmo modo que para fundamentar a Metafísica se requer a Crítica da razão pura especulativa por mim já publicada Mas em parte a primeira destas Críticas não é de tão extrema necessidade como a segunda porque em matéria moral a razão humana mesmo entre o comum dos mortais pode ser facilmente levada a alto grau de exatidão e de perfeição ao passo que no seu uso teorético mas puro da é totalmente dialética e em parte no que concerne à Crítica de uma razão pura prática para que ela seja completa reputo imprescindível que se mostre ao mesmo tempo a unidade da razão prática e da razão especulativa num princípio comum pois que em última instância só pode haver uma e a mesma razão e só na aplicação desta há lugar para distinções Ora não me seria possível aqui realizar um trabalho tão esmiuçado e completo sem introduzir considerações de ordem inteiramente diferente e sem lançar a confusão no ânimo do leitor Por isso em vez de dar a este livrinho o título de Crítica da razão pura prática denomineio Fundamentação da Metafísica dos costumes Mas porque em terceiro lugar uma Metafísica dos costumes não obstante o que o título comporta de assustador pode entanto ser exposta em forma popular e adequada à inteligência do vulgo afiguraseme útil publicar à parte este trabalho preliminar no qual são assentes os fundamentos 392 para posteriormente não me ver obrigado a imiscuir sutilezas inevitáveis em semelhante matéria a doutrinas de mais fácil compreensão A presente Fundamentação não é mais do que a pesquisa e a determinação do princípio supremo da moralidade o bastante para constituir um todo completo separado e distinto de qualquer outra investigação moral Certamente minhas afirmações sobre tão momentoso problema e que até ao presente não foi tratado de modo satisfatório muito pelo contrário receberiam ampla e elucidativa confirmação se o princípio em questão fosse aplicado a todo o sistema mercê do poder de explicação suficiente que ele em tudo manifesta vime porém obrigado a renunciar a esta vantagem que no fundo estaria mais de acordo com o meu amor próprio do que com o interesse geral uma vez que a facilidade de aplicação de um princípio bem como sua aparente suficiência não fornecem prova absolutamente segura de sua exatidão antes pelo contrário suscitam em nós certa atitude de parcialidade capaz de nos induzir a não examinálo e apreciálo rigorosamente por si mesmo sem atender às conseqüências Segui neste opúsculo o método que penso ser o mais conveniente quando pretendemos elevarnos analiticamente do conhecimento vulgar à determinação do princípio supremo do mesmo e depois por caminho inverso tornar a descer sintèticamente do exame deste princípio e de suas origens ao conhecimento vulgar onde se verifica sua aplicação A divisão da obra é pois a seguinte 1 Primeira secção Passagem do conhecimento racional comum da moralidade ao conhecimento filosófico 2 Segunda secção Passagem da filosofia moral popular à Metafísica dos costumes 3 Terceira secção Último passo da Metafísica dos costumes à Crítica da razão pura prática PRIMEIRA SEÇÃO Passagem do conhecimento racional comum da moralidade ao conhecimento filosófico NÃO É POSSÍVEL conceber coisa alguma no mundo ou mesmo fora do mundo que sem restrição possa ser considerada boa a não ser uma só uma BOA VONTADE A inteligência o dom de apreender as semelhanças das coisas a faculdade de julgar e os demais talentos do espírito seja qual for o nome que se lhes dê ou a coragem a decisão a perseverança nos propósitos como qualidades do temperamento são sem dúvida sob múltiplos respeitos coisas boas e apetecíveis podem entanto estes dons da natureza tornarse extremamente maus e prejudiciais se não for boa vontade que deles deve servirse e cuja especial disposição se denomina caráter O mesmo se diga dos dons da fortuna O poder a riqueza a honra a própria saúde e o completo bemestar e satisfação do próprio estado em resumo o que se chama felicidade geram uma confiança em si mesmo que muitas vezes se converte em presunção quando falta a boa vontade para moderar e fazer convergir para fins universais tanto a imprudência que tais dons exercem sobre a alma como também o princípio da ação Isto sem contar que um espectador razoável e imparcial nunca lograria sentir satisfação em ver que tudo corre ininterruptamente segundo os desejos de uma pessoa que não ostenta nenhum vestígio de verdadeira boa vontade donde parece que a boa vontade constitui a condição indispensável para ser feliz Há certas qualidades favoráveis a esta boa vontade e que podem facilitar muito sua obra mas que não obstante 394 não possuem valor intrínseco absoluto antes pressupõem sempre uma boa vontade É esta uma condição que limita o alto apreço em que justificadamente as temos e que não permite reputálas incondicionalmente boas A moderação nos afetos e paixões o domínio de si e a calma reflexão não são apenas bons sob múltiplos aspectos mas parece constituírem até uma parte do valor intrínseco da pessoa falta contudo ainda muito para que sem restrição possam ser considerados bons a despeito do valor incondicionado que os antigos lhes atribuíam Sem os princípios de uma boa vontade podem tais qualidades tornarse extremamente más por exemplo o sangue frio de um celerado não só o torna muito mais perigoso como também a nossos olhos muito mais detestável do que o teríamos julgado sem ele A boa vontade é tal não por suas obras ou realizações não por sua aptidão para alcançariam fim proposto mas só pelo querer por outras palavras é boa em si e considerada em si mesma deve sem comparação ser apreciada em maior estima do que tudo quanto por meio dela poderia ser cumprido unicamente em favor de alguma inclinação ou se se prefere em favor da soma de todas as inclinações Mesmo quando por singular adversidade do destino ou por avara dotação de uma natureza madrasta essa vontade fosse completamente desprovida do poder de levar a bom termo seus propósitos admitindo até que seus esforços mais tenazes permanecessem estéreis na hipótese mesmo de que nada mais restasse do que a só boa vontade entendendo por esta não um mero desejo mas o apelo a todos os meios que estão ao nosso alcance ela nem por isso deixaria de refulgir como pedra preciosa dotada de brilho próprio como alguma coisa que em si possui valor A utilidade ou inutilidade em nada logra aumentar ou diminuir esse valor A utilidade seria por assim dizer apenas o engaste que faculta o manejo da jóia no uso corrente ou capaz de fazer convergir para si a atenção dos que não são suficientemente entendidos no assunto mas que nunca poderia tornála recomendável aos peritos nem determinarlhe o valor Há todavia nesta idéia do valor absoluto da simples vontade neste modo de a estimar prescindindo de qualquer critério de utilidade algo de tão estranho que a despeito do completo acordo existente entre ela e a razão comum pode todavia surgir uma suspeita quem sabe se na realidade não se alberga aqui no fundo senão uma vaporosa fantasmagoria e 395 se não será compreender falsamente a natureza em sua intenção de conferir à razão a direção de nossa vontade Pelo que propomonos examinar desde este ponto de vista a idéia do valor absoluto da pura vontade Na constituição natural de um ser organizado ou seja de um ser constituído em vista da vida assentamos como princípio fundamental que não existe órgão destinado a uma função que não seja igualmente o mais próprio e adaptado a essa função Ora se num ser prendado de razão e de vontade a natureza tivesse como fim peculiar a sua conservação o seu bemestar numa palavra a sua felicidade devemos confessar que ela teria tomado muito mal suas precauções escolhendo a razão desse ser como executora de sua intenção Todas as ações que um tal ser deve cumprir para realizar este fim bem como a regra completa de seu comportamento terlheiam sido indicadas com muito maior exatidão pelo instinto podendo desse modo aquele fim ter sido muito mais facilmente alcançado do que por meio da razão e se a uma tal criatura devesse ser concedida por acréscimo a razão esta não deveria servirlhe senão para refletir sobre as felizes disposições de sua natureza para as admirar para delas se regozijar e se mostrar grata à Causa benfazeja que não para submeter àquela fraca e ilusória direção sua potência apetitiva estragando assim os planos da natureza Numa palavra a natureza teria impedido que a razão se imiscuísse num uso prático e tivesse a presunção de com suas fracas luzes formular para si o plano da felicidade e os meios de a alcançar a natureza teria tomado sobre si a escolha não só dos fins como também dos meios e com sábia previdência os teria confiado ao instinto É fato que quanto mais uma razão cultivada se afadiga na busca dos prazeres da vida e da felicidade tanto mais o homem se afasta do verdadeiro contentamento donde acontece que para muitos e justamente para os mais experimentados no uso da razão se eles são bastante sinceros para o confessar surge um certo grau de mesologia ou por outras palavras de ódio da razão Feito o cômputo das vantagens que auferem não digo da descoberta de todas as artes que convergem no luxo vulgar mas também das ciências que no fim lhes aparecem como um luxo do entendimento verificam eles que as fadigas sofridas superam em muito a felicidade desfrutada 396 e por tal motivo comparandose com a categoria de homens inferiores que de preferência se deixam guiar pelo instinto nem concedem à razão senão diminuta influência sobre seu procedimento acabam por sentir mais inveja do que desprezo deles Importa além disso confessar que o juízo de tais homens que rebaixam muito e chegam a reduzir a nada as pomposas glorificações das vantagens que a razão nos deveria proporcionar relativamente à felicidade e contentamento da vida não provém de maneira nenhuma do mau humor ou da falta de agradecimento à bondade da Providência mas que no fundo deste juízo se alberga a idéia não expressa de que o fim de sua existência é de fato diferente e muito mais nobre que a este fim e não à felicidade a razão é peculiarmente destinada e que por conseguinte a ele como a condição suprema devem as mais das vezes submeterse as intenções particulares do homem Com efeito dado que a razão não é suficientemente capaz de guiar com segurança a vontade no concernente a seus objetos e satisfação de todas as nossas necessidades que ela em parte concorre para multiplicar e que um instinto natural inato a guiaria mais seguramente a esse fim atendendo entanto a que a razão nos foi outorgada como potência prática isto é como potência que deve exercer influência sobre a vontade é mister que sua verdadeira destinação seja produzir uma vontade boa não como meio para conseguir qualquer outro fim mas boa cm si mesma para o que a razão era absolutamente necessária uma vez que em tudo o mais a natureza na repartição de suas propriedades procedeu de acordo com fins determinados Esta vontade poderá não ser o único bem o bem integral deve porém ser necessariamente o bem supremo a condição donde dependem os restantes bens e até mesmo a aspiração à felicidade Neste caso é perfeitamente coadunável com a sabedoria da natureza o fato de a cultura da razão indispensável para obter o primeiro destes fins que é incondicionado limitar de muitos modos ao menos nesta vida a obtenção segundo que é sempre um fim condicionado ou seja a felicidade até ao ponto de reduzir a nada a sua realização Nisto a natureza não age contra toda finalidade pois a razão que reconhece que seu supremo destino prático consiste em criar uma boa vontade não pode encontrar o cumprimento deste propósito senão satisfação a ela adequada ou seja resultante da realização de um fim que só ela determina embora daí redunde algum prejuízo para os fins da inclinação A fim de elucidar o conceito de uma vontade 397 altamente estimável em si de uma vontade boa independentemente de qualquer intenção ulterior conceito já inerente a todo entendimento são e que precisa não tanto de ser ensinado quanto apenas de ser explicado a fim de elucidar este conceito que ocupa sempre o posto mais elevado na apreciação do valor completo de nossas ações e constitui a condição de tudo o mais examinaremos o conceito do DÊVER que contém o de uma boa vontade com certas restrições e certo e com certos entraves subjetivos mas que longe de o dissimularem e tornarem irreconhecível mais o salientam por contraste e o tornam mais esplendente Passo aqui em silêncio todas as ações geralmente havidas por contrárias ao dever se bem que deste ou daquele ponto de vista possam ser úteis pois nelas não se põe a questão de saber se podem ser praticadas por dever uma vez que estão em contradição com ele Deixo também de lado as ações que são realmente conformes com o dever para as quais entanto os homens não sentem inclinação imediata mas que apesar disso executam sob o impulso de outra tendência porque em tal caso é fácil distinguir se a ação conforme com o dever foi realizada por dever ou por cálculo interesseiro Muito mais difícil é notar esta distinção quando sendo a ação conforme com o dever o sujeito sente para com ela uma inclinação imediata Por exemplo é manifestamente conforme com o dever que o comerciante não peça um preço demasiado elevado a um comprador inexperiente e mesmo quando o comércio é intenso o comerciante hábil não procede desse modo mantém pelo contrário um preço fixo igual para todos de sorte que uma criança lhe pode comprar uma coisa pelo mesmo preço que qualquer outro cliente As pessoas são pois servidas lealmente mas isso não basta para crer que o negociante procedeu assim por dever ou por princípios de probidade moviao o interesse e não se pode supor neste caso que ele tivesse além disso uma inclinação imediata para com seus clientes que o induzisse a fazer por amor preços mais convenientes a um do que a outro Eis aí uma ação cumprida não por dever nem por inclinação imediata mas tão somente por cálculo interesseiro Pelo contrário conservar a própria vida é um dever e é além disso uma coisa para a qual todos sentimos inclinação imediata Justamente por isso a solicitude muitas vezes angustiante que a maior parte dos homens demonstra pela vida é destituída de todo valor intrínseco e a máxima que 398 exprime tal solicitude não tem nenhum valor moral De fato eles conservam a vida conformemente ao dever mas não por dever Ao invés se contrariedades ou uma dor sem esperança tiraram a um homem todo o prazer da vida se o infeliz de ânimo forte se sente mais enojado de sua sorte que descoroçoado ou abatido se deseja a morte e no entanto conserva a vida sem a amar não por inclinação ou temor mas por dever então sua máxima comporta valor moral Ser benfazejo quando se pode é um dever contudo há certas almas tão propensas à simpatia que sem motivo de vaidade ou de interesse experimentam viva satisfação em difundir em volta de si a alegria e se comprazem em ver os outros felizes na medida em que isso é obra delas Mas afirmo que em tal caso semelhante ação por conforme ao dever e por amável que seja não possui valor moral verdadeiro é simplesmente concomitante com outras inclinações por exemplo com o amor da glória o qual quando tem em vista um objeto em harmonia com o interesse público e com o dever com o que por conseguinte é honroso merece louvor e estímulo mas não merece respeito pois à máxima da ação falta o valor moral que só está presente quando as ações são praticadas não por inclinação por dever Imaginemos pois a alma deste filantropo anuviada por um daqueles desgostos pessoais que sufocam toda simpatia para com a sorte alheia que ele tenha ainda a possibilidade de minorar os males de outros desgraçados sem que todavia se sinta comovido com os sofrimentos deles por se encontrar demasiado absorvido pelos seus próprios e que nestas condições sem ser induzido por nenhuma inclinação se arranca a essa extrema insensibilidade e age não por inclinação mas só por dever só nesse caso seu ato possui verdadeiro valor moral Mais ainda Se a natureza houvesse deposto no coração deste ou daquele pequena dose de inclinação para a simpatia se um tal homem aliás honesto fosse de temperamento frio e indiferente para com os sofrimentos alheios talvez porque sendo prendado de especial dom de resistência e de paciente energia contra os sofrimentos próprios supõe igualmente nos outros ou deles exige qualidades idênticas se a natureza não tivesse particularmente formado este homem que na verdade não seria a sua pior obra para dele fazer um filantropo não encontraria ele em si estofo com que se atribuir um valor muito superior ao de um homem de temperamento naturalmente benévolo Por certo quê sim E justamente aqui transparece o valor moral incontestavelmente mais elevado de seu 399 caráter resultante de ele praticar o bem não por inclinação mas por dever assegurar a própria felicidade é um dever ao menos indireto porque o não estar satisfeito com o seu estado o viver oprimido por inumeráveis preocupações e no meio de necessidades não preenchidas pode muito facilmente converterse em grande tentação de infringir seus deveres Mas uma vez mais independentemente do dever todos os homens possuem dentro em si uma inclinação muito forte e muito profunda para a felicidade pois que justamente nesta idéia de felicidade se unem todas as suas tendências Simplesmente o preceito que nos manda buscar a felicidade apresenta muitas vezes caráter tal que prejudica algumas de nossas inclinações de sorte que não é possível ao homem formar idéia nítida e bem definida do complexo de satisfação de seus desejos a que dá o nome de felicidade Não há pois motivo para ficar surpreendido de queuma só inclinação determinada quanto ao prazer que promete e quanto à época em que poderá ser satisfeita seja capaz de sobrepujar uma idéia vaga Por exemplo um gotoso preferirá saborear um acepipe de seu agrado não se lhe dando de sofrer as conseqüências porque segundo seus cálculos ao menos nesta circunstância acha preferível não se privar de um prazer atual pela esperança acaso infundada de uma felicidade associada à saúde Mas também neste caso se a saúde para ele ao menos não fosse coisa a que devesse outorgar lugar preponderante em seus cálculos permaneceria ainda de pé neste como nos demais casos uma lei a saber a lei que manda trabalhar pela própria felicidade não por inclinação por inclinação mas por dever Só então seu comportamento possui autêntico valor moral Assim devem sem dúvida ser compreendidos também os passos da Escritura onde se ordena amar o próximo e ate os inimigos Com efeito o amor como inclinação não pode ser comandado mas praticar o bem por dever quando nenhuma inclinação a isso nos incita ou quando uma aversão natural e invencível se opõe eis um amor prático e não patológico que reside na vontade e não na tendência da sensibilidade nos princípios da ação e não numa compaixão emoliente Ora é este único amor que pode ser comandado Venhamos à segunda proposição Uma ação cumprida por dever tira seu valor moral não do fim que por ela deve ser alcançado mas da máxima que a determina Este valor 400 não depende portanto da realidade do objeto da ação mas unicamente do princípio do querer segundo o qual a ação foi produzida sem tomar em conta nenhum dos objetos da faculdade apetitiva De tudo quanto precede seguese que os fins que podemos ter em nossas ações bem como os efeitos daí resultantes considerados como fins e molas da vontade não podem comunicar às ações nenhum valor moral absoluto Onde pode pois residir esse valor se não deve encontrarse na relação da vontade com os resultados esperados destas ações Em nenhuma outra parte é possível encontrálo senão no principio da vontade abstraindo dos fins que podem ser realizados por meio de uma tal ação De fato a vontade situada entre seu princípio a priori que é formal e seu móbil a posteriori que é material está como que na bifurcação de dois caminhos e como é necessário que alguma coisa a determine será determinada pelo princípio formal do querer em geral sempre que a ação se pratique por dever pois lhe é retirado todo princípio material Quanto à terceira proposição conseqüência das duas precedentes eis como a formulo o dever é a necessidade de cumprir uma ação pelo respeito à lei Para o objeto concebido como efeito da ação que me proponho posso verdadeiramente sentir inclinação nunca porém respeito precisamente porque ele é simples efeito e não a atividade de uma vontade Do mesmo modo não posso ter respeito a uma inclinação em geral seja ela minha ou de outrem quando muito posso aprovála no primeiro caso no segundo caso talvez até amála isto é considerála como favorável a meu interesse Só o que está ligado à minha vontade unicamente como princípio e nunca como efeito o que não serve a minha inclinação mas a domina e ao menos a exclui totalmente da avaliação no ato de decidir por conseguinte a simples lei por si mesma é que pode ser objeto de respeito e portanto ordem para mim Ora se uma ação cumprida por dever elimina completamente a influência da inclinação e com ela todo objeto da vontade nada resta capaz de determinar a mesma vontade a não ser objetivamente a lei e subjetivamente um puro respeito a esta lei prática portanto a máxima de obedecer a essa lei embora com dano de todas as minhas inclinações Portanto o valor moral da ação não reside no 401 efeito que dela se espera como nem em qualquer princípio da ação que precise de tirar seu móbil deste efeito esperado Com efeito todos estes resultados contentamento de seu estado e até mesmo contribuição para a felicidade alheia poderiam provir de outras causas não é necessária para isso a vontade de um ser raciona muito embora somente nesta se possa encontrar o supremo bem o bem incondicionado Por isso a representação da lei cm si mesma que seguramente só tem lugar num ser racional com a condição de ser esta representação e não o resultado esperado o princípio determinado da vontade eis o que só é capaz de constituir o bem tão excelente que denominamos moral o qual já se encontra presente na pessoa que age segundo essa idéia mas que não deve ser esperado somente do efeito de sua ação Máxima é o princípio subjetivo do querer o princípio objetivo isto é o princípio capaz de servir também subjetivamente de principio pratico para todos os seres racionais se a razão tivesse pleno poder sobre a faculdade apetitiva é a lei prática 58 Poderiam objetarme que servindome do termo respeito tento apenas refugiarme num sentimento obscuro em vez de aclarar a questão por meio de um conceito da razão Mas conquanto o respeito seja um sentimento não é todavia sentimento proveniente de influência estranha mas sim pelo contrário sentimento espontaneamente produzido por um conceito da razão e por isso mesmo especificamente distinto dos sentimentos da primeira espécie referentes à inclinação ou ao temor O que reconheço imediatamente como lei para mim reconheçoo com um sentimento de respeito que exprime simplesmente a consciência que tenho da subordinação de minha vontade a uma lei sem intromissão de outras influências em minha sensibilidade A determinação imediata da vontade pela lei e a consciência que tenho dessa determinação chamase respeito de sorte que este deve ser considerado não como causa da lei mas como efeito da mesma sobre o sujeito Em rigor de expressão o respeito é a representação de um valor que vai de encontro ao meu amor próprio Conseguintemente é alguma coisa que não é considerada nem como objeto de inclinação nem como de temor se bem que apresente alguma analogia com ambos ao mesmo tempo O objeto do respeito é pois simplesmente a lei lei que nos impomos a nós mesmos mas que no entanto é necessária em si Enquanto lei estamoslhes sujeitos sem consultar nosso amor próprio enquanto imposta por nós a nós mesmos é conseqüência de nossa vontade Do primeiro ponto de vista oferece analogia com o temor do segundo ponto de vista tem analogia com a inclinação O respeito que se sente para com uma pessoa na realidade não 6 mais do que o respeito da lei da honestidade etc de que essa pessoa nos dá exemplo Do mesmo modo que consideramos um dever cultivar nossos talentos assim também vemos numa pessoa prendada de talentos como que o exemplo de uma lei que ordena que nos exercitemos cm nos assemelharnos nela nisto eis o que constitui o nosso respeito Tudo quanto se designa interesse moral consiste unicamente no respeito da lei 402 Mas que lei pode ser esta cuja representação sem qualquer espécie de consideração pelo efeito que dela se espera deve determinar a vontade para que esta possa ser denominada boa absolutamente e sem restrição Após ter despojado a vontade de todos os impulsos capazes de nela serem suscitados pela idéia dos resultados provenientes da observância de uma lei nada mais resta do que a conformidade universal das ações a uma lei em geral que deva servirlhe de princípio noutros termos devo portarme sempre de modo que eu possa também querer que minha máxima se torne em lei universal A simples conformidade com a lei em geral sem tomar por base uma determinada lei para certas ações é a que serve aqui de princípio à vontade e por conseguinte deve igualmente servirlhe de princípio se o dever não é ilusão vã e conceito quimérico O bomsenso vulgar no exercício de seu juízo prático concorda plenamente com o princípio exposto e nunca o perde de vista Tomemos por exemplo a questão seguinte sermeá lícito em meio de graves apuros fazer uma promessa com intenção de a não observar Não oferece dificuldade distinguir os dois sentidos que a questão pode comportar consoante se deseja saber se é prudente ou se é conforme ao dever fazer uma promessa falsa Sem dúvida que muitas vezes pode ser prudente mas é claro que não basta safarme mercê deste expediente de um embaraço presente devo ainda examinar com cuidado se dessa mentira não me redundarão no futuro aborrecimentos muito mais graves do que aqueles de que me liberto neste momento e como a despeito de toda minha sagacidade não são fáceis de prever as conseqüências de meu ato devo recear que a perda de confiança por parte de ou trem me acarrete maiores prejuízos que todo o mal que neste momento penso evitar Agirei pois mais sensatamente portando me nesta ocorrência em conformidade com uma máxima universal e procurando criar o hábito de nada prometer sem intenção de cumprir Mas depressa se me afigura evidente que tal máxima estriba sempre no temor das conseqüências Ora uma coisa é ser sincero por dever e outra coisa ser sincero pôr temos das conseqüências desagradáveis no primeiro caso o conceito da ação em si mesma contém já uma lei para mim mas no segundo caso preciso antes de mais nada tentar descobrir alhures quais as conseqüências que se seguirão à minha ação Porque se me desvio do princípio do dever cometo decerto uma ação má mas se abandono minha máxima de prudência posso em certos casos auferir daí grandes 403 vantagens embora na verdade seja mais seguro aterme a ela Afinal de contas no concernente à resposta a esta questão se uma promessa mentirosa é conforme ao dever o meio mais rápido e infalível de me informar consiste em perguntar a mim mesmo ficaria eu satisfeito se minha máxima tirarme de dificuldades por meio de uma promessa enganadora devesse valer como lei universal tanto para mim como para os outros Poderei dizer a mim mesmo pode cada homem fazer uma promessa falsa quando se encontra em dificuldades das quais não logra safarse de outra maneira Deste modo depressa me convenço que posso bem querer a mentira mas não posso de maneira nenhuma querer uma lei que mande mentir pois como conseqüência de tal lei não mais haveria qualquer espécie de promessa porque seria de fato inútil manifestar minha vontade a respeito de minhas ações futuras a outras pessoas que não acreditariam nessa declaração ou que se acreditassem à toa me retribuiriam depois na mesma moeda de sorte que minha máxima tão logo fosse arvorada em lei universal necessariamente se destruiria a si mesma Portanto não preciso de possuir grande perspicácia para saber o que devo fazer a fim de que minha vontade seja moralmente boa Mesmo que me faleça a experiência das coisas do mundo e me sinta incapaz de enfrentar todos os acontecimentos que nele se produzem basta que a mim próprio pergunte Podes querer que também tua máxima se converta em lei universal Se isso não for possível deve a máxima ser rejeitada não precisamente por causa de algum dano que daí possa resultar para ti ou também pára outros mas porque ela não pode ser admitida como princípio de uma possível legislação universal Com efeito a razão me constrange a um respeito imediato para com essa legislação e se de momento não enxergo ainda qual seja o fundamento de tal respeito o que pode ser objeto de pesquisa por parte do filósofo ao menos compreendo bem que se trata aqui de apreciar um valor que sobrepuja o valor de tudo o que é exaltado pela inclinação e que a necessidade em que me encontro de agir por puro respeito à lei prática constitui o que se denomina dever perante o qual qualquer outro motivo deve ceder visto ele ser a condição de uma vontade boa em si cujo valor está acima de tudo Por esta forma no conhecimento moral da razão humana comum chegamos àquilo que é o princípio da mesma princípio que por certo ela não concebe assim separado numa forma universal mas que no entanto sempre tem diante 404 dos olhos e do qual se serve como de regra de seu juízo Muito fácil seria mostrar aqui como com este compasso na mão a razão possui em todos os casos supervenientes plena competência para distinguir o que é bom e o que é mau o que é conforme e o que é contrário ao dever bastando que sem nada lhe ensinarem de novo e aplicando apenas o método de SÓCRATES a tornem simplesmente atenta a seu próprio princípio mostrandolhe como não precisa de ciência nem de filosofia para saber como é que uma pessoa se deve portar para ser honesta e boa e até sábia e virtuosa Já desde o inicio se podia supor que o conhecimento daquilo que a todo homem compete fazer e por conseguinte também saber é propriedade de todos os seres humanos por vulgares que sejam A este propósito não pode deixar de causar admiração o fato de na inteligência comum da humanidade a faculdade de julgar em matéria prática prevalecer grandemente sobre a faculdade de julgar em matéria teorética Nesta última quando a razão comum ousa afastase das leis da experiência e das percepções dos sentidos ela cai em manifestos absurdos e contradições consigo mesma cai pelo menos num caos de incertezas de obscuridades e de inconseqüências Pelo contrário em matéria prática a faculdade de julgar começa justamente a mostrar suas vantagens quando a inteligência comum exclui das leis práticas todos os impulsos sensíveis Ela tornase então sutil quer queira chicanar com a sua consciência ou com outras opiniões relativas àquilo que deve ser considerado honesto quer pretenda para sua própria instrução determinar exatamente o valor das ações e o que é sumamente importante pode ela neste último caso esperar ser bem sucedida na tarefa de determinar o valor das ações tão bem quanto qualquer filósofo mais ainda pode proceder com maior segurança do que este porque o filósofo não dispondo de outros princípios diferentes dos dela pode deixarse enredar facilmente por uma série de considerações estranhas ao assunto que o desviam do reto caminho Não seria portanto mais sensato aterse nas questões morais ao juízo da razão comum e não recorrer à filosofia senão para expor quando muito o sistema da moralidade de maneira mais completa e mais compreensiva para apresentar as regras que lhe dizem respeito de maneira mais cômoda para o uso e mais ainda para a discussão nunca porém para privar a inteligência humana mesmo do ponto de vista prático de sua ditosa simplicidade nem para fazer que ela enverede com o auxílio da filosofia por um novo caminho de investigação e de instrução Esplêndida coisa é a inocência mas é para lamentar que ela não saiba preservarse e que se deixe seduzir com tanta facilidade Pelo quea sabedoria que aliás consiste mais na conduta do que no saber precisa também da ciência não para dela tirar ensinamentos senão para garantir a suas prescrições influência e estabilidade O homem sente em seu foro íntimo potente força de oposição a todos os preceitos do dever que a razão lhe apresenta como altamente dignos de respeito e esta força é constituída por suas necessidades e inclinações cuja satisfação completa se compendia naquilo a que dá o nome de felicidade Ora a razão enuncia seus preceitos sem condescender com as inclinações sem nunca ceder por conseguinte com uma espécie de desdém e sem consideração de espécie alguma por aquelas pretensões tão impetuosas e por isso mesmo aparentemente tão legítimas que não consentem em se deixar suprimir por nenhum preceito Daqui procede uma Dialética natural ou seja uma tendência para sofisticar contra aquelas severas leis do dever e pôr em dúvida a validade ou ao menos a pureza e o rigor das mesmas bem como para tentar adaptálas o mais possível a nossos desejos e inclinações por outras palavras para corrompêlas cm sua essência e destituílas de toda dignidade coisa que a razão prática vulgar não pode por forma alguma aprovar Assim a razão humana comum é impelida não por necessidade de especulação necessidade que ela não sente enquanto se contenta cm ser apenas a sã razão mas por motivos práticos a sair de sua esfera e a dar um passo no campo de uma filosofia prática para recolher informações exalas e explicações claras acerca da origem do seu princípio e da definição precisa do mesmo em oposição às máximas que estribam nas necessidades e inclinações Por este meio espera ela poder safarse da dificuldade em presença de pretensões opostas e não correr o risco de perder em conseqüência dos equívocos em que facilmente poderia incorrer todos os genuínos princípios morais Deste modo se desenvolve insensivelmente no uso prático da razão comum quando esta é cultivada uma Dialética que a constringe a buscar auxílio na filosofia tal como lhe acontece no uso teórico e assim tanto no primeiro caso como no segundo ela não pode encontrar repouso senão numa crítica completa da nossa razão SEGUNDA SECÇÃO Passagem da filosofia moral popular à metafísica dos costumes SE ATÉ AQUI derivamos do uso comum de nossa razão prática o conceito do dever nem por isso devemos concluir que o tratamos como sendo um conceito empírico Ao invés se voltarmos a atenção para a experiência do comportamento positivo e negativo dos homens deparamos com contínuas e segundo se nos afigura justas queixas sobre nossa impossibilidade de aduzir exemplos certos que nos permitam julgar se houve a intenção de agir por puro dever Muitas ações podem ser conformes àquilo que o dever prescrevessem que por isso desapareça a dúvida de que tenham sido realmente cumpridas por dever e por conseguinte de que possuam valor moral Eis por que houve em todos os tempos filósofos que negaram absolutamente a realidade desta intenção às ações humanas e que as atribuíram todas a um amorpróprio mais ou menos apurado Não punham eles em dúvida a exatidão do conceito de moralidade Pelo contrário lamentavam grandemente a fraqueza e impureza da natureza humana a qual se por um lado é suficientemente nobre para tomar como regra de conduta uma idéia tão digna de respeito por outro lado é demasiado fraca para a seguir e que além disso se utiliza da razão que deveria ditarlhe leis apenas para favorecer o interesse das inclinações quer escolhendo uma entre as demais quer ao sumo conciliandoas entre si da melhor maneira possível De fato é absolutamente impossível estabelecer 407 mediante a experiência com plena certeza um só caso em que a máxima de uma ação aliás conforme ao dever estribe na Representação do dever Na verdade acontece por vezes que malgrado o mais escrupuloso exame de nós próprios não encontramos absolutamente motivo que fora do princípio moral do dever tenha sido capaz de nos incitar à prática desta ou daquela boa ação deste ou daquele grande sacrifício mas daqui não se pode com certeza concluir que um secreto impulso do amorpróprio sob a simples miragem da idéia do dever não tenha sido a verdadeira causa determinante da vontade Na verdade de bom grado nos lisonjeamos atribuindonos falsamente um princípio de determinação mais nobre de fato porém nunca podemos nem mesmo mediante o mais rigoroso exame penetrar inteiramente em nossos mais secretos impulsos Ora quando se trata de valor moral o que importa não são as ações exteriores que se vêem mas os princípios internos da ação que se não vêem Àqueles que zombam de toda moral como de quimera da imaginação humana que por presunção a si mesma se exalta não se pode prestar serviço mais conforme a seus desejos do que concederlhes que os conceitos do dever bem como por comodidade se crê facilmente serem todos os outros conceitos devem ser derivados exclusivamente da experiência pois assim se lhes prepara um triunfo seguro Por amor da humanidade concedo que a maior parte das nossas ações seja conforme ao dever mas examinando de mais perto o móbil e fim delas esbarramos por toda a parte com o Eu querido que termina sempre por levar a melhor Sobre este Eu e não sobre o rígido comando do dever que as mais das vezes exigiria a abnegação de nós próprios se fundamenta o impulso donde tais ações promanam Sem ser precisamente inimigo da virtude basta observar com sangue frio e não confundir o bem com o vivo desejo de o ver realizado para que em certas circunstâncias principalmente em idade já avançada e quando se tem a faculdade de julgar por um lado amadurecida pela experiência e por outro lado aguçada pela observação duvidemos de que realmente se possa encontrar no mundo alguma virtude verdadeira Por conseguinte para nos preservar da falência total de nossas idéias sobre o dever bem como para manter na alma um respeito bem fundado da lei que o prescreve nenhuma outra coisa existe a não ser a convicção clara de que mesmo quando nunca houvessem sido praticadas ações derivadas de fontes tão puras o que importa não é saber se este ou aquele ato se verificou mas sim que a razão por si mesma e independentemente 408 de todos os fenômenos ordena o que eleve acontecer e que conseqüentemente ações de que o mundo até hoje nunca talvez tenha oferecido exemplo e cuja possibilidade de execução poderia ser posta fortemente em dúvida por aquele mesmo que tudo fundamenta sobre a experiência são prescritas sem remissão alguma pela razão Por exemplo a pura lealdade na amizade embora até ao presente não tenha existido nenhum amigo leal e imposta a todo homem essencialmentepelo fato de tal dever estar implicadocomo dever em geral anteriormente a toda experiência na idéia de uma razão que determina a vontade segundo princípios a priori Acrescentese que a não ser que se conteste ao conceito moral toda verdade e toda relação com qualquer objeto possível não se pode desconhecer que a lei moral possua um significado a tal ponto extenso que deva ser válida não só para os homens mas para todos os seres racionais em geral e isto não só debaixo de condições contingentes e com exceções mas de maneira absolutamente necessária assim sendo manifesto que nenhuma experiência pode levar à conclusão da simples possibilidade de tais leis apodícticas Pois com que direito poderemos converter em objeto de respeito ilimitado em prescrição universal para toda natureza racional o que talvez não vale senão para as condições contingentes da humanidade E como é que as leis de determinação de nossa vontade deveriam ser tomadas como leis de determinação da vontade do ser racional em geral e apenas nessa qualidade como leis igualmente aplicáveis à nossa própria vontade se elas fossem puramente empíricas e não derivassem sua origem completamente a priori de uma razão pura mais pratica Além disso não se poderia prestar pior serviço à moralidade do que fazêla derivar de exemplos Porque todo exemplo que me seja proposto deve primeiramente ser julgado segundo os princípios da moralidade para se poder saber se merece servir de exemplo original isto é de modelo mas não pode por forma alguma fornecer por si só e primariamente o conceito de moralidade Mesmo o Justo do Evangelho deve ser primeiramente confrontado com o nosso ideal de perfeição moral para que possa ser reconhecido como tal por isso ele diz de si mesmo Por que me chamais bom a mim que vedes Ninguém é bom o protótipo do bem senão 409 Deus a quem não vedes Mas donde nos advém o conceito de Deus considerado como supremo bem Unicamente da idéia que a razão traça a priori da perdição moral e que ela liga indissoluvelmente ao conceito de uma vontade livre Em matéria moral não tem cabimento a imitação e os exemplos servem apenas de estímulo isto é põem fora de dúvida a possibilidade daquilo que a lei impõe tornam evidente aquilo que a lei prática exprime de modo mais geral mas nunca logram autorizar que ponhamos de parte o seu verdadeiro original que reside na razão e que regulemos por eles o nosso procedimento Portanto se não há nenhum autêntico princípio supremo de moralidade que não deva apoiarse unicamente na razão pura independentemente de toda experiência penso não ser sequer necessário perguntar se vale a pena expor estes conceitos sob forma universal in abstracto tais como existem a priori juntamente com os princípios que lhes dizem respeito dado que o conhecimento propriamente dito deve distinguirse do conhecimento vulgar e denominarse filosófico Mas em nossos dias talvez seja necessário pôr esta questão Com efeito se se procedesse a uma votação para averiguar qual deva ser preferido se o conhecimento racional puro isento de todo elemento empírico e portanto a metafísica dos costumes ou se a filosofia prática popular depressa se descobriria para que lado pende a balança De fato é muito louvável este processo de descer aos conceitos populares contanto que primeiro nós tenhamos elevado aos princípios da razão pura de modo que o espírito quede plenamente satisfeito Proceder deste modo equivale a fundamentar a doutrina dos costumes sobre uma metafísica e depois de esta ter sido firmada em base sólida a tornála acessível a todos por meio da vulgarização Mas seria extremamente absurdo aquiescer com este processo de agir desde as primeiras investigações das quais depende a exatidão dos princípios Tal maneira de proceder jamais poderia pretender para si o mérito extremamente raro de uma verdadeira vulgarização filosófica porque de fato não é difícil fazerse compreender do comum dos homens quando para isso se renuncia a toda profundidade de pensamento mas redundaria em fastidiosa mescla de observações a trouxemouxe amontoadas e de princípios de uma razão só a meias raciocinante na qual somente cérebros vazios se repastam porque apesar de tudo há aí alguma coisa de útil para os batepapos de todos os dias mas os espíritos clarividentes só encontram aí confusão e insatisfeitos sem saberem que partido tomar desviam a 410 atenção Quanto aos filósofos que não se deixam iludir por aparências enganosas esses não desfrutam de grande aceitação sempre que se propõem suspender por um tempo a pretensa vulgarização a fim de poderem com direito tornarse populares só depois de haverem obtido conhecimentos bem definidos Basta examinar ao de leve as obras de moral compostas em conformidade com aquele gosto preferido para nelas se encontrar ora a idéia do destino peculiar da natureza humana de quando em quando aparece também a idéia de uma natureza racional em geral ora a perfeição ora a felicidade aqui o sentimento moral ali o temor de Deus um pouco disto e também um pouco daquilo em maravilhosa confusão sem que ao espírito ocorra perguntar se é propriamente no conhecimento da humana natureza que decerto não pode provir senão da experiência que se devem procurar os princípios da moralidade Se assim não for se estes princípios devem ser encontrados completamente a priori independentemente de toda matéria empírica e só nos puros conceitos da razão e em nenhuma outra parte mesmo assim a ninguém ocorre a idéia de isolar completamente esta investigação para considerála como pura filosofia prática ou se é lícito empregar um nome tão suspeito como Metafísica dos costumes como nem a idéia de desenvolvêla até ser cabalmente perfeita e de exortar o público ávido de vulgarização que contemporize até a empresa ser levada a bom termo Do mesmo modo que se distingue a matemática pura da matemática aplicada e a lógica pura da lógica aplicada também se quisermos é possível distinguir a filosofia pura dos costumes Metafísica da filosofia dos costumes aplicada á natureza humana Toda esta terminologia nos mostra imediata mente que os princípios morais não devem ser fundados sobre as propriedades da natureza humana mas devem existir por si mesmos a priorie que de tais princípios é que devem ser derivadas regras práticas válidas para toda natureza racional e portanto também para a natureza humana Ora uma tal metafísica dos costumes completamente isolada não imiscuída de antropologia nem de teologia nem de física ou de hiperfísica menos ainda de quaisquer qualidades ocultas que se poderiam denominar hipofísicas não é apenas o indispensável substrato de toda teoria dos deveres claramente definida mas é igualmente um desiderato da mais alta importância para o cumprimento efetivo de suas prescrições Com eleito a representação do dever e em geral da lei moral quando é pura ou seja não mesclada de acréscimos estranhos de impulsos sensíveis exerce sobre o coração humano por via da só razão a qual então pela primeira vez se dá conta de que pode ser prática por si mesma uma influência muito mais eficaz do que a de todos os outros 411 impulsos que se podem invocar no domínio da experiência de sorte que a razão cônscia de sua dignidade despreza esses impulsos e pouco a pouco se torna capaz de os dominar Ao invés uma doutrina moral bastarda e confusa formada de impulsos derivados de sentimentos e de inclinações e ao mesmo tempo de conceitos da razão torna necessariamente o espírito hesitante entre motivos de ação irredutíveis a qualquer princípio e que só por acaso podem guiar ao bem mas muitas vezes também podem conduzir ao mal Tenho uma carta do falecido Sulzer 81 na qual me pergunta por que motivo as doutrinas da virtude por mais convincentes que possam ser para a razão possuem tão pouca eficácia Adiei a resposta para que esta pudesse sair completa A resposta é só uma a saber aqueles mesmos que ensinam tais doutrinas não reconduziram seus princípios ao estado de pureza e querendo procedei demasiado bem enquanto procuram principalmente motivos que incitem ao bem moral a fim de tornarem o remédio mais enérgico o estragam Consoante o mostra a mais comezinha observação se se apresentar um ato de probidade imune de iodo fim interessado neste mundo ou no outro praticado por um Animo corajoso no meio das maiores tentações provocadas pela miséria ou pelo atrativo de certas vantagens ele deixa atrás de si e eclipsa qualquer outro ato análogo que também só em mínima escala haja sido causado por um impulso estranho ele eleva a alma e excita o desejo de proceder do mesmo modo Até mesmo crianças de meia idade experimentam esta impressão o penso que nunca os deveres lhes deviam ser expostos senão desta maneira De quanto precede ressalta que todos os conceitos morais têm sua sede e origem completamente a priori na razão na razão humana mais comum tanto quanto na razão que se eleva ao alto grau de especulação que eles não podem ser abstraídos de nenhum conhecimento empírico e por conseguinte puramente contingente que a pureza de sua origem é justamente o que os torna dignos de servirem de princípios práticos supremos que quanto mais se lhes acrescenta de empírico tanto mais diminui sua verdadeira influência e o valor absoluto das ações que não é só exigência da mais premente necessidade do ponto de vista teórico em que se trata tãosomente de especulação mas que é ainda da maior importância prática criar estes conceitos e estas leis tirandoos da razão pura sem mescla de qualquer espécie e mais ainda determinar o âmbito de todos estes conhecimentos racionais práticos ou puros isto é determinar todo o poder da razão pura prática abstendose contudo na medida em que a filosofia especulativa o permita e mesmo por vezes encontre necessário de fazer depender tais princípios da natureza especial da razão humana mas antes já 412 que as leis morais devem ser válidas para todo ser racional em geral deduzindoas do conceito universal de um ser racional em geral Deste modo toda a moral que em sua aplicação à humanidade precisa da antropologia será exposta independentemente desta última ciência como filosofia pura isto é como metafísica e isto de modo completo o que é fácil de fazer neste gênero de conhecimento inteiramente separado E convém ter presente que sem estar de posse desta metafísica é trabalho inútil não digo o determinar exatamente por meio do juízo especulativo o elemento moral do dever em tudo o que é conforme ao dever mas que é impossível em tudo o que concerne puramente ao uso comum e prático e particularmente à instrução moral fundamentar a moralidade sobre seus verdadeiros princípios produzir mediante ela sentimentos morais puros e infundilos nas almas para que daí redunde o maior bem no mundo Ora para progredir neste trabalho avançando por gradações naturais não simplesmente do juízo moral comum aqui muito apreciável ao juízo filosófico como já foi indicado mas de uma filosofia popular que não vai mais além do que ela pode alcançar as apalpadelas por meio de exemplos até à metafísica que não se deixa deter por nenhuma influência empírica e que devendo medir todo o domínio do conhecimento racional desta espécie se ergue em todo caso até à região das Idéias onde os próprios exemplos nos abandonam importa seguir e expor claramente a potência prática da razão partindo das suas regras universais de determinação até ao ponto em que dela brota o conceito do dever Todas as coisas na natureza operam segundo leis Apenas um ser racional possui a faculdade de agir segundo a representação das leis isto é segundo princípios ou por outras palavras só ele possui uma vontade E uma vez que para das leis derivar as ações é necessária a razão a vontade outra coisa não é senão a razão prática Quando num ser a razão determina infalivelmente a vontade as ações deste ser que são Reconhecidas objetivamente necessárias são necessárias também subjetivamente quer dizer que então a vontade é uma faculdade de escolher somente aquilo que a razão independentemente de toda inclinação reconhece como praticamente necessário isto é como bom Mas se a razão não determina suficientemente por si só a vontade se esta é ainda subordinada 413 a condições subjetivas ou a certos impulsos que nem sempre concordam com as condições objetivas numa palavra se a vontade não é cm si completamente conforme à razão como acontece realmente com os homens então as ações reconhecidas necessárias objetivamente são subjetivamente contingentes e a determinação de uma tal vontade conformemente a leis objetivas é uma coação por outras palavras a relação das leis objetivas com uma vontade não completamente boa é representada como sendo a determinação da vontade de um ser racional por meio de princípios da razão aos quais entanto aquela vontade mercê de sua natureza não é necessariamente dócil A representação de um princípio objetivo na medida em que coage a vontade denominase mandamento da razão e a fórmula do mandamento chamase IMPERATIVO Todos os imperativos são expressos pelo verbo dever e indicam por esse modo a relação entre uma lei objetiva da razão e uma vontade que por sua constituição subjetiva não é necessariamente determinada por essa lei uma coação Declaram eles que seria bom fazer tal coisa ou absterse dela mas declaramno a uma vontade que nem sempre faz uma coisa porque lhe é apresentada como boa para ser feita Portanto praticamente é bom o que determina a vontade por meio de representações da razão isto é não em virtude de causas subjetivas mas objetivamente quer dizer por meio de princípios que são válidos para todo ser racional enquanto tal O bem prático é pois distinto do agradável isto é do que exerce influxo sobre a vontade unicamente por meio da sensação por causas puramente subjetivas válidas apenas para a sensibilidade deste e daquele e não como princípio da razão válido para todos Uma vontade perfeitamente boa estaria pois tão 414 sujeita ao império de leis objetivas leis do bem quanto uma vontade imperfeita mas nem por isso poderia ser representada como coagida a ações conformes à lei porque mercê de sua constituição subjetiva ela só pode ser determinada pela representação do bem Eis por que não há imperativo válido para a vontade divina e em geral para uma vontade santa o dever não tem aqui cabimento porque o querer já por si é necessariamente concorde com a lei Por isso os imperativos são apenas fórmulas que exprimem a relação entre as leis objetivas do querer em geral e a imperfeição subjetiva da vontade deste ou daquele ser racional por exemplo da vontade humana A dependência da faculdade apetitiva a respeito de sensações denominase inclinação e por conseguinte esta é sempre prova de uma necessidade A dependência de uma vontade capaz de ser determinada de modo contingente pelos princípios da razão chamase interesse O interesse encontrase pois tão somente numa vontade dependente a qual não é por si mesma sempre conforme à razão na vontade divina é impossível conceber qualquer interesse Mas também a vontade humana pode tomar interesse por uma coisa sem por isso agir por interesse A primeira expressão significa o interesse prático pela ação a segunda o interesse patológico pelo objeto da ação A primeira indica apenas a dependência da vontade a respeito dos princípios da razão em si mesma a segunda a dependência da vontade a respeito dos princípios da razão posta ao serviço da inclinação no qual caso a razão ministra somente a regra prática para poder satisfazer as necessidades da inclinação No primeiro caso interessame a ação no segundo interessame o objeto da ação na medida em que me é agradável Na Primeira Secção verificamos que numa ação executada por dever importa considerar não o interesse pelo objeto mas unicamente o Interesse pela própria ação e seu princípio racional a lei Ora todos os Imperativos preceituam ou hipoteticamente ou categoricamente Os imperativos hipotéticos representam a necessidade de uma ação possível como meio para alcançar alguma outra coisa que se pretende ou que pelo menos é possível que se pretenda O imperativo categórico seria aquele que representa uma ação como necessária por si mesma sem relação com nenhum outro escopo como objetivamente necessária Dado que toda lei prática representa uma ação possível como boa é conseguintemente como necessária para um sujeito capaz de ser determinado praticamente pela razão todos os imperativos são fórmulas pelas quais é determinada a ação que segundo os princípios de uma vontade de qualquer modo boa é necessária Ora quando a ação não é boa senão como meio de obter alguma outra coisa o imperativo é hipotético mas quando a ação é representada como boa em si e portanto como necessária numa vontade conforme em si mesma a razão considerada como princípio do querer então o imperativo é categórico O imperativo indica pois qual ação para mim possível I seria boa e representa a regra prática em relação com uma vontade que não executa imediatamente urna ação porque é boa em parte porque o sujeito não sabe sempre se ela é boa e em parte porque mesmo que o soubesse suas máximas poderiam não obstante ser contrárias aos princípios objetivos de uma razão prática 415 O imperativo hipotético significa portanto apenas que a ação é boa com relação a um escopo possível ou real No primeiro caso é um princípio PROBLEMÀTICAMENTE prático no segundo caso é um princípio ASSERTORICAMENTE prático Pelo contrário o imperativo categórico que declara a ação como objetivamente necessária por si mesma sem relação com algum fim isto é sem qualquer outro fim tem o valor de princípio APODÍCTICAMENTE prático Podemos imaginar que tudo quanto é possível apenas pelas forças de algum ser racional é também um escopo possível para qualquer vontade por isso os princípios da ação enquanto esta é representada como necessária para a aquisição de algum fim possível susceptível de ser por ela realizado são de fato infinitos em número Todas as ciências têm uma parte prática constante de problemas que supõem que qualquer fim é possível para nós e de imperativos que indicam como tais fins podem ser alcançados Estes imperativos podem por isso chamarse em geral imperativos da HABILIDADE Não se trata neste caso de saber se o escopo é racional e bom mas só de saber o que se deve fazer para o alcançar As prescrições que um médico segue para curar radicalmente o seu enfermo e as do envenenador para o matar seguramente têm igual valor na medida em que umas e outras servem para realizar perfeitamente o escopo que se tem em vista Como nos primeiros anos da juventude ignoramos as surpresas que a vida nos reserva no porvir os pais empenhamse principalmente em que os filhos aprendam quantidade de coisas diversas e cuidam em que eles se tornem hábeis no uso dos meios necessários para alcançarem toda sorte de fins desejáveis São eles incapazes de saber se algum desses fins virá a ser mais tarde realmente desejado por seus filhos mas ê possível que isso aconteça um dia e esta preocupação é tão grave que eles comumente se descuidam de formar e corrigir o juízo dos filhos acerca do valor das coisas que estes poderiam proporse como fins Há todavia um escopo que se pode supor real para todos os seres racionais na medida em que os imperativos se aplicam a estes seres considerados como dependentes portanto um escopo que eles não só podem proporse mas do qual se pode certamente admitir que todos o propõem a si efetivamente em virtude de uma necessidade natural e este escopo é a felicidade O imperativo categórico que apresenta a necessidade prática da ação como meio para alcançar a felicidade é ASSERTÓRIO Não podemos apresentálo simplesmente tomo indispensável à realização de um fim incerto puramente possível mas de um fim que se pode seguramente e a priori supor em todos os homens porque faz parte da natureza 416 deles Pode darse o nome de prudência com a condição de tomar este vocábulo em seu mais estrito significado à habilidade em escolher os meios que nos proporcionam maior bemestar Sendo assim o imperativo que se refere à escolha dos meios capazes de assegurar nossa felicidade pessoal isto é a prescrição da prudência é sempre hipotético a ação é ordenada não de modo absoluto mas só como meio de alcançar outro escopo A palavra prudência é tomada em duplo sentido no primeiro sentido designa a prudência nas relações que lemos com o mundo no segundo sentido a prudência pessoal A primeira indica a habilidade que um homem possui de aluar sobre outros para deles se servir em benefício de seus fins A segunda é a sagacidade em fazer convergir estes fins para sua vantagem pessoal e estávelA esta última se reduz propriamente o valor da primeira e daquele que é prudente no primeiro sentido não o sendo no segundo com melhor razão se diria pie é engenhoso e astuto mas em suma imprudente Enfim há um imperativo que sem assentar como condição fundamental a obtenção de um escopo ordena imediatamente este procedimento Tal imperativo é CATEGÓRICO Diz respeito não à matéria da ação nem às conseqüências que dela possam redundar mas à forma e ao princípio donde ela resulta donde o que no ato há de essencialmente bom consiste na intenção sejam quais forem as conseqüências A este imperativo pode darse o nome de IMPERATIVO DA MORALIDADE O ato de querer segundo estas três espécies de princípios é ainda claramente especificado pela diferença que existe no gênero de coação por eles exercida sobre a vontade Para tornar sensível esta diferença penso não haver maneira mais apropriada de os designar em sua ordem do que dizendo tais princípios são ou regras da habilidade ou conselhos da prudência ou ordenações leis da moralidade De fato só a lei implica em si o conceito de necessidade incondicionada verdadeiramente objetiva e conseqüentemente válida para todos e as ordenações são leis a que é mister obedecer isto é devem ser seguidas mesmo quando contrariam a inclinação Os conselhos implicam sem dúvida uma necessidade mas uma necessidade só válida sob uma condição subjetiva contingente consoante este ou aquele homem considera esta ou aquela coisa como parte de sua felicidade ao invés o imperativo categórico não é limitado por nenhuma condição e como é absolutamente embora praticamente necessário pode propriamente ser denominado prescrição Aos imperativos da primeira espécie podemos ainda dar o nome de técnicos 417 referentes à arte aos da segunda espécie o de pragmáticos referentes ao bemestar aos da terceira espécie o de morais referentes ao livre comportamento em geral isto é aos costumes Pareceme que o significado próprio da palavra pragmático pode ser exatamente determinado deste modo Com efeito chamamse pragmáticas as sanções que não derivam propriamente do direito dos Estados como leis necessárias mas sim da solicitude pelo bemestar geral Uma história è composta pragmaticamente quando nos torna prudentes isto é quando ensina à sociedade hodierna os meios de cuidarem de seus interesses melhor ou pelo menos tão bem como a sociedade de outros tempos Apresentase aqui a questão como são possíveis todos estes imperativos Esta questão visa a indagar a maneira de imaginar não o cumprimento da ação que o imperativo ordena mas tãosomente a coação da vontade que o imperativo exprime na tarefa que propõe Como seja possível um imperativo da habilidade é coisa que decerto não requer peculiar explicação Quem quer o fim quer também na medida em que a razão tem influxo decisivo sobre suas ações os meios indispensàvelmente necessários de o alcançar e que estão em seu poder Esta proposição é no que respeita ao querer analítica porque o ato de querer um objeto efeito de minha atividade supõe já a minha causalidade como causalidade de uma causa agente isto é o uso dos meios e o imperativo extrai do conceito da volição de um fim a idéia das ações necessárias para chegar a esse fim sem dúvida para determinar os meios aptos para alcançar um escopo prefixado são absolutamente exigidas proposições sintéticas mas estas referemse ao princípio de realização não do ato da vontade mas do objeto Que para dividir segundo um princípio certo uma linha reta em duas partes iguais eu deva traçar desde as extremidades desta linha dois arcos de círculo a matemática o ensina unicamente por meio de proposições sintéticas mas que sabendo que por este processo só se obtém o objeto proposto eu querendo plenamente o efeito deva querer igualmente a ação por ele exigida é uma proposição analítica pois que representarme uma coisa como um efeito que eu posso produzir de certo modo e representarme a mim mesmo em relação a esse efeito como agindo do mesmo modo é de fato uma e a mesma coisa Os imperativos da prudência concordariam plenamente com os da habilidade e seriam igualmente analíticos sei fosse fácil dar um conceito determinado da felicidade Pois tanto aqui como ali se poderia dizer que quem quer o fim quer também necessariamente segundo a razão os 418 meios indispensáveis para o obter que estejam ao seu alcance Mas por desgraça o conceito da felicidade é conceito tão indeterminado que não obstante o desejo de todo homem de ser feliz ninguém todavia consegue dizer em termos precisos e coerentes o que verdadeiramente deseja e quer A razão disso é que os elementos que integram o conceito da felicidade são todos quantos empíricos isto é devem ser extraídos da experiência e não obstante a idéia da felicidade implica a idéia de um todo absoluto um máximo de bemestar no meu estado presente e em toda minha condição futura Ora é impossível que um ser embora imensamente perspicaz e ao mesmo tempo potentíssimo mas finito faça uma idéia determinada daquilo que verdadeiramente quer Quer ele riqueza Que de preocupações invejas ciladas não vai atrair sobre si Quer maior soma de conhecimentos e de ilustração Talvez isso lhe aumente o poder de penetração e a perspicácia do olhar lhe revele de maneira ainda mais terrível os males que por ora lhe estão ocultos e que não podem ser evitados ou incremente a exigência de seus desejos que muito a custo consegue satisfazer Quer vida longa E quem lhe afiança que ela não se converteria em longo sofrimento Quer ao menos a saúde Mas quantas vezes a indisposição do corpo impediu excessos em que uma perfeita saúde o teria feito cair E assim por diante Em suma ele é incapaz de determinar com plena certeza segundo qualquer princípio o que o tornará verdadeiramente feliz pois para tal precisaria de ser onisciente Portanto para ser feliz não é possível agir segundo princípios determinados mas apenas segundo conselhos empíricos que recomendam por exemplo um regime dietético a economia a delicadeza a reserva etc coisas estas que de acordo com os ensinamentos da experiência contribuem em tese grandemente para o bemestar Donde se segue que os imperativos da prudência rigorosamente falando não podem ordenar coisa alguma isto é não podem apresentar ações de maneira objetiva como praticamente necessárias É mister considerálos antes como conselhos consilia do que como preceitos praecepta da razão O problema de determinar de maneira certa e geral quais as ações capazes de favorecer a felicidade de um ser racional é problema de fato insolúvel e por conseguinte relativamente a ele não há imperativo capaz de ordenar no sentido rigoroso da palavra que se faça aquilo que dá a felicidade porque a felicidade é um ideal não da razão mas da imaginação fundado unicamente 419 sobre princípios empíricos dos quais em vão se espera que possam determinar uma ação um modo de agir por meio do qual se alcance a totalidade de uma série de conseqüências verdadeiramente infinita Este imperativo da prudência mesmo admitindo que os meios de chegar à felicidade se possam fixar com certeza seria em todo caso apenas uma proposição prática analítica pois se distingue do imperativo da habilidade só porque para este último o fim é simplesmente possível ao passo que para aquele é dado efetivamente mas como ambos prescrevem unicamente os meios para alcançar aquilo que se supõe que queremos como fim o imperativo que ordena àquele que quer o fim que queira também os meios é nos dois casos analítico Acerca de um imperativo deste gênero não subsiste pois dificuldade Pelo contrário a possibilidade do imperativo da moralidade é sem dúvida a única questão que precisa de ser solucionada porque tal imperativo não é absolutamente hipotético e por isso sua necessidade objetivamente representada não pode apoiarse em nenhuma suposição como sucede nos imperativos hipotéticos Só que não se deve aqui perder nunca de vista que não é possível decidir por meio de algum exemplo e portanto empiricamente se na realidade há algum imperativo deste gênero convém não esquecer que todos os imperativos que parecem ser categóricos podem ser imperativos hipotéticos disfarçados Quando por exemplo se diz não deves fazer falsas promessas e se supõe que a necessidade desta proibição não é simples conselho que se deva seguir a fim de evitar algum mal não é conselho que se reduza mais ou menos a dizer não deves fazer falsas promessas para não perderes o crédito no caso em que se viesse a apurar a verdade mas antes se assevere que uma ação deste gênero deve ser considerada em si mesma como má de modo que o imperativo que a proíbe seja categórico todavia não se pode afirmar com certeza em nenhum exemplo que a vontade não é determinada por nenhum outro impulso embora o pareça mas unicamente pela lei Com efeito é sempre possível que o temor da vergonha e acaso também uma vaga apreensão de outros perigos exerça influência secreta sobre a vontade Como provar mediante a experiência a nãoexistência de uma causa desde que essa experiência não ensina mais do que nossa impossibilidade de distinguir aquela causa Neste caso o pretenso imperativo moral que como tal parece categórico e incondicionado não seria na realidade senão um preceito pragmático que faz convergir nossa atenção sobre o nosso interesse e unicamente nos ensina a tomálo em consideração Devemos pois examinar inteiramente a priori a possibilidade de um imperativo categórico visto aqui não nos ser concedida a vantagem de encontrar este imperativo 420 realizado na experiência de sorte que não tenhamos de examinar a possibilidade d ele senão para o explicar e não para o estabelecer Entretanto de momento importa preliminarmente admitir que só o imperativo categórico tem o valor de LEI prática ao passo que os demais imperativos em conjunto podem bem ser denominados princípios mas não leis da vontade Com efeito o que é simplesmente necessário fazer para alcançar um fim almejado pode em si ser considerado como contingente 109 nós poderemos sempre ser libertos das prescrições renunciando ao fim ao invés o preceito incondicionado não entrega por forma alguma ao beneplácito da vontade a faculdade de optar pelo contrário portanto só ele implica em si aquela necessidade que reclamamos para a lei Em segundo lugar no que concerne a este imperativo categórico ou a esta lei da moralidade a causa da dificuldade de apreender a sua possibilidade é também assaz considerável Este imperativo é uma proposição prática sintética a priori e visto haver tamanha dificuldade no conhecimento teórico para compreender a possibilidade de proposições deste gênero é fácil presumir que no conhecimento prático a dificuldade não será menor Para resolver esta questão importa antes de mais nada verificar se não seria possível que o conceito simples de imperativo categórico fornecesse também a fórmula do mesmo fórmula que contivesse a proposição que só pode ser um imperativo categórico pois a questão de saber como seja possível um tal mandamento absoluto mesmo quando lhe conhecemos a fórmula exigirá ainda de nossa parte um esforço peculiar e difícil do qual trataremos na derradeira Secção desta obra Eu sem pressupor condições derivadas de qualquer inclinação ligo o ato a vontade ligoo a priori portanto necessariamente embora só objetivamente ou seja tomando como ponto de partida a idéia de uma razão dotada de plenos poderes sobre todas as causas subjetivas de determinação Esta é pois uma proposição prática que não deriva analiticamente o fato de querer uma ação de um outro querer já pressuposto porque não temos uma vontade tão perfeita mas que o liga imediatamente ao conceito da vontade de um ser racional como algo que nele não está contido Quando imagino um imperativo hipotético em geral não sei com antecedência o que ele conterá enquanto não me for dada a condição do mesmo Mas se imagino um imperativo categórico sei imediatamente o seu conteúdo Não contendo o imperativo além da lei senão a necessidade de a máxima se conformar à lei e não contendo esta 421 lei nenhuma condição a que esteja sujeita nada mais resta que a universalidade de uma lei em geral à que a máxima da ação deve ser conforme e é só esta conformidade que o imperativo apresenta propriamente como necessária O imperativo categórico é pois um só e precisamente este Procede apenas segundo aquela máxima em virtude da qual podes querer ao mesmo tempo que ela se tome em lei universal A máxima é o princípio subjetivo da ação e imporia distinguila do principio objetivo isto é da lei prática A máxima contém a regra prática que determina a razão segundo as condições do sujeito em muitos casos segundo a sua ignorância ou também segundo suas inclinações e deste modo é o principio fundamental segundo o qual o sujeito age a lei pelo contrário é o princípio objetivo válido para todo ser racional o princípio segundo o qual ele deve agir ou seja um imperativo Ora se deste só imperativo podem ser derivados como de seu princípio todos os imperativos do dever embora deixamos de lado a questão de saber se aquilo a que se dá o nome de dever não é no fundo um conceito oco poderemos todavia ao menos mostrar o que entendemos por isso e o que este conceito pretende significar Uma vez que a universalidade da lei segundo a qual se produzem efeitos constitui o que propriamente se chama natureza no sentido mais geral quanto à forma isto é constitui a existência dos objetos enquanto determinada por leis universais o imperativo universal do dever pode ainda ser expresso nos termos seguintes Procede como se a máxima de tua ação devesse ser erigida por tua vontade em LEI UNIVERSAL DA NATUREZA Enumeremos agora alguns deveres de acordo com a divisão ordinária dos deveres em deveres para conosco e deveres para com os outros em deveres perfeitos e deveres imperfeitos Convém observar que me reservo tratar da divisão dos deveres numa futura Metafísica cios costumes pelo que a divisão agora proposta obedece apenas a um critério de comodidade para classificação dos exemplos que apresento Aliás por dever perfeito emendo aqui o dever que não admite exceções em favor da inclinarão assimsendo admito não só deveres perfeitos exteriores mas também deveres perfeitos interiores o que está em contradição com a terminologia empregada nas escolas não é porém meu intento justificar aqui Cita concepção pois pouco se me dá que ela seja admitida ou não 114 1 Um homem por uma série de males que o levaram ao 422 desespero sente grande nojo de viver muito embora mantenha o suficiente domínio de si para se perguntar se o atentar contra a própria vida não constitui uma violação do dever para consigo mesmo Procura então averiguar se a máxima de sua ação pode converterse em lei universal da natureza Sua máxima seria esta por amor de mim mesmo estabeleço o princípio de poder abreviar minha existência se vir que prolongandoa tenho mais males que temer do que satisfações que esperar dela A questão agora está apenas em saber se tal princípio do amor de si pode ser erigido em lei universal da natureza Mas imediatamente se vê que uma natureza cuja lei fosse destruir a vida em virtude justamente daquele sentimento que tem por função peculiar estimular a conservação da vida estaria em contradição consigo mesma e não poderia subsistir como natureza Conseguintemente esta máxima não pode por forma alguma ocupar o posto de lei universal da natureza e por tal motivo é inteiramente contrária ao princípio supremo de todo dever 2 Outro homem é impelido pela necessidade a pedir dinheiro emprestado Sabe que não poderá restituílo mas sabe igualmente que nada lhe será emprestado se não tomar o sério compromisso de satisfazer a dívida dentro de determinado prazo Sente vontade de fazer essa promessa mas tem ainda bastante consciência para a si mesmo perguntar se não será proibido e contrário ao dever tentar safarse da necessidade por meio de tal expediente Supondo que tome esta decisão a máxima de sua ação significaria isto quando penso estar falto de dinheiro peço emprestado prometendo restituílo embora saiba que nunca o farei Ora é bem possível que este princípio do amor de si ou da utilidade própria se prenda com todo o meu bemestar futuro mas de momento a questão consiste em saber se isso é justo Transformo pois a exigência do amor de si em lei universal e ponho a questão seguinte que sucederia se minha máxima se convertesse em lei universal Ora imediatamente vejo que ela nunca poderia valer como lei universal da natureza e estar de acordo consigo mesma mas que deveria necessariamente contradizerse Admitir como lei universal que todo homem que julgue encontrarse em necessidade possa prometer o que lhe vem à mente com o propósito de não cumprir equivaleria a tornar impossível toda promessa e inatingível o fim que com ela se pretende alcançar pois ninguém acreditaria mais naquilo que se lhe promete e todos se ririam de semelhantes declarações como de fingimentos vãos 3 Um terceiro sentese dotado de aptidões que devidamente cultivadas poderiam fazer dele um homem útil sob múltiplos aspectos Mas encontrandose bem instalado423 na vida prefere entregarse a uma existência de prazer do que esforçarse por ampliar e aperfeiçoar suas boas disposições naturais Contudo ele pergunta a si mesmo se a sua máxima descurar os dons naturais além de concordar com sua tendência para o prazer concorda também com o que se chama o dever Ora ele vê bem que sem dúvida uma natureza que tivesse uma lei universal deste gênero poderia subsistir mesmo que o homem como o indígena insular do Mar do Sul deixasse enferrujar seus talentos e não pensasse senão em aplicar sua vida ao ócio ao prazer à propagação da espécie numa palavra ao gozo mas ele não pode absolutamente QUERER que isto se converta em lei universal da natureza ou que seja inato em nós como instinto natural Como ser racional ele quer necessariamente que todas as suas faculdades atinjam seu pleno desenvolvimento visto que lhe são de utilidade e lhe foram dadas para toda espécie de fins possíveis 4 Enfim um quarto homem a quem tudo corre pelo melhor vendo que outros seus semelhantes a quem poderia ajudar se encontram a braços com graves dificuldades raciocina da seguinte forma E a mim que se me dá Cada qual seja feliz consoante ao céu apraz ou de acordo com suas próprias posses não lhe subtrairei a mínima porção do que ele possui nem sequer tenho inveja dele só que não me empenharei em contribuir de qualquer maneira para o seu bemestar ou para auxiliálo em sua necessidade Se tal modo de pensar se convertesse em lei universal da natureza a espécie humana continuaria sem dúvida subsistindo e na verdade em melhores condições do que quando alguém fala constantemente de simpatia e de benevolência e se afadiga em praticar ocasionalmente estas virtudes mas logo em seguida desde que se lhe oferece ocasião de ludibriar trafica o direito dos homens ou os prejudica de qualquer outra maneira Embora seja possível existir uma lei universal da natureza conforme àquela máxima é todavia impossível QUERER que tal princípio seja universalmente válido como lei da natureza Com efeito uma vontade que tomasse tal decisão a si mesma se contradiria uma vez que apesar de tudo podem apresentarse casos em que se tenha necessidade do amor e da simpatia dos outros e então em virtude desta lei oriunda de nossa vontade ficaríamos privados de toda esperança de obter a assistência que desejaríamos Estes são alguns dos inúmeros deveres reais ou ao menos por nós tidos como tais cuja dedução a partir do único 424 princípio por nós aduzido salta manifestamente aos olhos É mister que possamos querer que uma máxima de nossa ação se torne em lei universal este o cânone de apreciação moral de nossa ação em geral Ações há de tal natureza que a máxima das mesmas nem sequer pode ser concebida sem contradição como lei universal da natureza estamos portanto muito longe de querer desejar que ela deva tornarse tal Noutras e certo não se encontra essa possibilidade interna sendo todavia impossível querer que a máxima delas obtenha a universalidade de uma lei da natureza porque tal vontade a si mesma se contradiria Facilmente se vê que a máxima das primeiras é contrária ao dever estrito ou rígido rigoroso ao passo que a máxima das segundas só é contrária ao dever em sentido lato meritório Assim sendo todos os deveres no que tange ao gênero de obrigação que impõem não ao objeto das ações que determinam aparecem plenamente graças a estes exemplos como sendo redutíveis ao princípio único por nós emitido Examinando agora atentamente o que em nós ocorre todas as vezes que transgredimos um dever verificamos que não queremos realmente que a nossa máxima se converta em lei universal pois isso é impossível pelo contrário a máxima oposta deve continuar sendo universalmente uma lei só que tomamos a liberdade de só por esta vez abrir uma exceção em nosso favor a fim de satisfazermos nossa inclinação Por conseguinte se considerarmos tudo debaixo de um único e mesmo ponto de vista isto é do ponto de vista da razão encontraremos uma contradição em nossa própria vontade pois queremos que certo princípio seja necessário objetivamente como lei universal e que no entanto não tenha valor universal subjetivamente mas admita exceções Mas se considerarmos nossa ação do ponto de vista de uma vontade plenamente conforme à razão e em seguida do ponto de vista de uma vontade influenciada pela inclinação então não encontramos realmente nenhuma contradição senão antes uma resistência da inclinação às prescrições da razão antagonismus pela qual a universalidade do princípio universalitas é convertida em simples generalidade generalitas de sorte que o princípio prático da razão e a máxima deverão encontrarse a meio caminho Ora conquanto este compromisso não possa ser justificado quando julgamos imparcialmente contudo ele mostra que reconhecemos realmente a validade do imperativo categórico e que não obstante todo o respeito que temos pelo mesmo nos permitimos algumas exceções ao que parece sem importância e que nos são impostas por uma espécie de coação Pensamos deste modo ter conseguido ao menos 425 provar que se o dever é um conceito que tem um significado e que contem uma legislação real para nossas ações esta legislação deve ser expressa apenas em imperativos categóricos e de maneira nenhuma em imperativos hipotéticos ao mesmo tempo e isto já é importante expusemos claramente e numa fórmula que o determina em todas as suas aplicações o conteúdo do imperativo categórico que deve encerrar o princípio de todos os deveres se é que há deveres em geral Más não logramos ainda demonstrar a priori que um tal imperativo existe realmente que existe uma lei prática que comanda absolutamente por si mesma sem qualquer móbil que a solicite e que a obediência a esta lei é o dever Para chegarmos a tal resultado é da mais alta importância ter sempre presente esta advertência não se pense de maneira nenhuma em querer derivar da constituição peculiar da natureza humana a realidade deste princípio Com efeito sendo o dever uma necessidade prática incondicionada da ação deve ser válido para todos os seres racionais os únicos aos quais se pode aplicar absolutamente um imperativo e só por isso ele é também uma lei para todas as vontades humanas Pelo contrário tudo o que deriva da disposição natural própria da humanidade de certos sentimentos e de certas tendências e até mesmo se fosse possível tudo o que deriva de uma direção especial peculiar à razão humana e não devesse necessariamente valer para a vontade de todo ser racional tudo isso pode bem fornecer uma máxima para nosso uso nunca porém uma lei um princípio subjetivo que somos talvez levados a seguir por inclinação e tendência não porém um princípio objetivo segundo o qual estivéssemos obrigados a agir mesmo de encontro a todas as tendências inclinações e disposições de nossa natureza Tão certo isto é que a sublimidade e a dignidade intrínseca da prescrição expressa num dever tanto mais avultam quanto menos os motivos subjetivos o favorecem ou antes quanto mais lhe são contrários sem que por isso a coação imposta pela lei seja enfraquecida nalguma coisa ou privada de alguma parcela de sua validade Como se vê a filosofia encontrase aqui colocada em situação crítica precisa ela de conquistar uma posição firme e estável sem todavia lobrigar nem no céu nem sobre a terra ponto de apoio a que se aterre Necessita de demonstrar aqui sua pureza arvorandose em guardiã de suas próprias leis em vez de se apresentar como arauto daquelas que lhe são sugeridas por um senso inato ou por não sei que natureza tutelar Sem dúvida estas em seu conjunto valem mais do 426 que nada nunca porém podem subministrar princípios como os ditados pela razão aos quais a origem plena e inteiramente a priori afiança esta autoridade imperativa não esperando coisa alguma da inclinação do homem mas tudo da supremacia da lei e do respeito que lhe é devido de contrário condenando o homem a desprezarse e a sentir horror de si mesmo Portanto todo elemento empírico não só é impróprio para servir de auxiliar ao princípio da moralidade mas é também prejudicial no mais alto grau à pureza dos costumes nos quais o valor próprio incomparavelmente superior a tudode uma vontade absolutamente boa consiste precisamente em que o princípio da ação é independente de toda influência exercida por princípios contingentes os únicos que a experiência pode fornecer Contra estas fraquezas ou melhor contra este baixo modo de pensar que induz a procurar o princípio moral no meio de impulsos e leis empíricas todas as advertências que fizermos são poucas porque a razão quando cansada de boamente repousa sobre esta almofada e deixandose embalar em seu sonho de doces ilusões as quais todavia a fazem abraçar em vez de Juno uma nuvem substitui a moral por um monstro bastardo formado pela reunião artificial de membros heterogêneos monstro que se assemelha a tudo quanto se quiser exceto à virtude para aquele que uma vez a tenha encarado em sua verdadeira forma A questão que se põe é pois a seguinte será uma lei necessária para todos os seres racionais julgar sempre suas ações segundo máximas tais que possam eles mesmos querer erigilas em leis universais Se tal lei existe ela deve antes de tudo estar ligada inteiramente a priori ao conceito da vontade de um ser racional em geral Mas para descobrir esta conexão é mister por mais que isso custe dar um passo à frente em direção à Metafísica embora num de seus domínios distinto da filosofia especulativa numa 427 palavra em direção à Metafísica dos costumes Numa filosofia prática onde se trata de estabelecer não princípios do que acontece mas leis daquilo que deve acontecer mesmo que isso nunca venha a acontecer ou seja das leis objetivas práticas não há de fato necessidade de investigar os motivos pelos quais uma coisa agrada ou desagrada ou em que é que o prazer da simples sensação se distingue do gosto ou se o gênero difere de uma satisfação universal da razão nem devemos perguntarnos qual a base em que repousa o sentimento do prazer e da pena e como deste sentimento se originam os desejos e as inclinações e como de tais desejos e inclinações derivam mediante a cooperação da razão as máximas tudo isto faz parte de uma ciência empírica da alma que deveria constituir a segunda parte de uma doutrina da natureza se se considera esta como filosofia da natureza enquanto fundada sobre leis empíricas Mas aqui tratase da lei objetiva prática conseqüentemente da relação de uma vontade consigo mesma enquanto determinada a agir unicamente pela razão no qual caso tudo quanto se refere de algum modo ao que é empírico desaparece por si mesmo uma vez que se a razãosó por si mesma determina o comportamento e é justamente disto que devemos agora determinar a possibilidade ela o deve fazer necessariamente a priori Encarar a virtude em sua verdadeira forma não é mais do que expor a moralidade isenta de toda mescla de elementos sensíveis e despojada de todo falso ornamento que lhe provenha do atrativo da recompensa ou do amor de si próprio Quanto ela obscurece tudo que parece ser sedutor para as inclinações pode cada qual facilmente verificálo servindose de sua razão desde que esta não seja de todo privada da faculdade de abstrair A vontade é concebida como faculdade de se determinar a si mesma a agir conformemente à representação de certas leis E tal faculdade só se pode encontrar num ser racional Ora o que serve à vontade de princípio subjetivo de determinação é o fim e se este é dado unicamente pela razão deve valer igualmente para todos os seres racionais O que ao invés contém simplesmente o princípio da possibilidade da ação de que o efeito é o fim chamase o meio O princípio subjetivo é o impulso o princípio objetivo do querer é o motivo daqui a diferença entre os fins subjetivos que se apoiam sobre impulsos e os fins objetivos que se referem a motivos válidos para todos os seres racionais Os princípios práticos são formais quando abstraem de todos os fins subjetivos são pelo contrário materiais quando supõem fins subjetivos e conseqüentemente certos impulsos Os fins que um ser racional se propõe a seu bel prazer como efeitos de sua ação fins materiais são todos apenas relativos pois somente a relação deles com a natureza especial da faculdade apetitiva do sujeito lhes confere o valor que possuem Por tal motivo estes fins não podem subministrar princípios universais para todos os seres racionais como nem princípios válidos e necessários para cada vontade ou por outras palavras não 428 podem subministrar leis práticas Pelo que todos estes fins relativos determinam apenas imperativos hipotéticos Supondo porém que existe alguma coisa cuja existência cm si mesma possua valor absoluto alguma coisa que como fim em si mesmo possa ser um princípio de leis determinadas então nisso e só nisso se poderá encontrar o princípio de um imperativo categórico possível isto é de uma lei prática Agora digo o homem e em geral todo ser racional existe como fim em si não apenas como meio do qual esta ou aquela vontade possa dispor a seu talento mas em todos os seus atos tanto nos que se referem a ele próprio como nos que se referem a outros seres racionais ele deve sempre ser considerado ao mesmo tempo como fim Todos os objetos das inclinações têm somente valor condicional pois que se as inclinações e as necessidades que delas derivam não existissem o objeto delas seria destituído de valor Mas as próprias inclinações como fontes das necessidades possuem tão reduzido valor absoluto que as torne desejáveis por si mesmas que o desejo universal de todos os seres racionais deveria consistir antes em se poderem libertar completamente delas Pelo que é sempre condicional o valor dos objetos que podemos conseguir por nossa atividade Os seres cuja existência não depende precisamente de nossa vontade mas da natureza quando são seres desprovidos de razão só possuem valor relativo valor de meios e por isso se chamam coisas Ao invés os seres racionais são chamados pessoas porque a natureza deles os designa já como fins em si mesmos isto é como alguma coisa que não pode ser usada unicamente como meio alguma coisa que conseqüentemente põe um limite em certo sentido a todo livre arbítrio e que é objeto de respeito Portanto os seres racionais não são fins simplesmente subjetivos cuja existência como efeito de nossa atividade tem valor para nós são fins objetivos isto é coisas cuja existência é um fim em si mesma e justamente um fim tal que não pode ser substituído por nenhum outro e ao serviço do qual os fins subjetivos deveriam pôrse simplesmente como meios visto como sem ele nada se pode encontrar dotado de valor absoluto Mas se todo valor fosse condicional e portanto contingente seria absolutamente impossível encontrar para a razão um princípio prático supremo Conseqüentemente se deve existir um princípio prático supremo e no referente à vontade humana um imperativo categórico é preciso que este seja tal que derive da representação daquilo que por ser fim cm si mesmo necessariamente é um fim para todos os homens um princípio objetivo 429 da vontade por esta forma poderá servir de lei prática universal O fundamento deste princípio é o seguinte A natureza racional existe como fim em si mesma O homem concebe deste modo necessariamente sua própria existência e neste sentido tal princípio é igualmente um princípio subjetivo da atividade humana Mas todos os outros seres racionais concebem de igual maneira sua existência em conseqüência do mesmo princípio racional que vale também para mim por conseguinte este princípio é ao mesmo tempo um princípio objetivo do qual como de um fundamento prático supremo devem poder derivarse todas as leis da vontade O imperativo prático será pois o seguinte Procede de maneira que trates a humanidade tanto na tua pessoa como na pessoa de todos os outros sempre ao mesmo tempo como fim e nunca como puro meio Vejamos se esta fórmula é realizável Limitemonos aos exemplos acima mencionados Esta proposição apresentoa como postulado As razões disso serão dadas na última secção Em primeiro lugar segundo o conceito do dever necessário para consigo mesmo aquele que cogita de se suicidar perguntarseá se o seu ato pode coexistir simultaneamente com a idéia da humanidade como fim em si mesma Se para escapar a uma situação difícil ele se destrói a si próprio servese de uma pessoa unicamente como de meio destinado a conservar ate ao fim da vida uma situação suportável Mas o homem não é uma coisa não e por conseguinte objeto para ser tratado unicamente como meio senão que pelo contrário deve ser considerado sempre em todos os seus atos como fim em si Portanto não posso dispor do homem em minha pessoa de maneira absoluta quer para o mutilar quer para o danificar ou matar Deixo aqui de lado uma determinação mais exata deste princípio como aliás conviria fazêlo para evitar qualquer equívoco no caso em que por exemplo se tratasse de deixar que me amputassem os membros para me salvar ou de arriscar a vida para a conservar tal determinação compete à moral propriamente dita Em segundo lugar no que concerne ao dever necessário ou dever estrito para com outrem aquele que tem a intenção de fazer aos outros uma falsa promessa vê imediatamente que pretende servirse de um outro homem simplesmente como de meio sem que este último contenha ao mesmo tempo o fim em si Com efeito o homem que eu mediante aquela 430 promessa pretendo fazer servir a meus propósitos não pode por forma alguma aderir ao meu modo de proceder com ele e deste modo conter em si mesmo o fim desta ação Mais claramente salta à vista a violação do princípio da humanidade em outros homens quando os exemplos são tomados de atentados contra a liberdade ou propriedade alheia Vêse então claramente como aquele que usurpa os direitos dos outros homens tem a intenção de servirse da pessoa de outrem unicamente como de meio sem considerar que os outros como seres racionais devem ser sempre considerados ao mesmo tempo como fins ou seja apenas como seres que devem poder conter também em si mesmos o fim desta mesma ação Não se pense que a fórmula comum quod tibi non vis fieri etc possa servir de regra ou de princípio Como ela deriva unicamente do princípio por nós assente embora com algumas restrições não pode ser lei universal porque não contém o princípio dos deveres para consigo mesmo como nem o dos deveres de caridade para com outrem visto que muitos consentiriam de bom grado em que os outros não fossem obrigados a lhes fazer bem contanto que eles possam ser dispensados de fazer bem a outrem nem enfim o princípio dos deveres estritos dos homem entre si porque segundo este princípio o criminoso poderia argumentar contra o juiz que o pune Em terceiro lugar no que se refere ao dever contingente meritório para consigo mesmo não basta que a ação não esteja em contradição com a humanidade em nossa pessoa como fim em si é mister além disso que esteja em acordo com ela Ora há na humanidade disposições para uma perfeição mais elevada que fazem parte dos fins que a natureza tem em mira relativamente à humanidade em nossa pessoa Descurar tais disposições poderia em rigor ser compatível com a conservação da humanidade como fim em si mas não com a consecução deste fim Em quarto lugar no concernente ao dever meritório para com outrem o fim natural comum a todos os homens é a sua própria felicidade Ora certamente que a humanidade poderia subsistir mesmo quando ninguém contribuísse em coisa alguma para a felicidade alheia abstendose entanto de prejudicar os outros deliberadamente isso seria tãosomente um acordo negativo não positivo com a humanidade como fim em si se cada qual não procurasse outrossim favorecer na medida de suas posses os fins dos outros Pois sendo o sujeito fim em si mesmo é mister que os seus fins sejam também tanto quanto possível meus fins se quero que a idéia de tal finalidade produza em mim toda eficácia Este princípio segundo o qual a humanidade e toda natureza racional em geral são consideradas como fins 431 em si condição suprema limitadora da liberdade de ação de todos os homens não deriva da experiência primeiramente por causa de sua universalidade porque se estende a todos os seres racionais em geral relativamente aos quais nenhuma experiência é bastante para determinar qualquer coisa em segundo lugar porque neste princípio a humanidade é representada não como fim puramente humano subjetivo isto é como objeto que na realidade por nós mesmos tomamos como sendo um fim mas como um fim objetivo o qual quaisquer que sejam os fins que nos proponhamos deve constituir na qualidade de lei a condição suprema restritiva de todos os fins subjetivos Ora tal princípio deriva necessariamente da razão pura É que o princípio de toda legislação prática reside objetivamente na regra e na forma da universalidade que segundo o primeiro princípio a torna capaz de ser uma lei que em rigor se poderia denominar lei da natureza e subjetivamente reside no fim Mas o sujeito de todos os fins de acordo com o segundo princípio é todo ser racional como fim em si donde resulta o terceiro princípio prático da vontade como condição suprema de seu acordo com a razão prática universal o mesmo é dizer a idéia da vontade de todo ser racional considerada como vontade promulgadora de uma legislação universal Segundo este princípio serão rejeitadas todas as máximas que não possam estar de acordo com a legislação universal própria da vontade A vontade não é pois exclusivamente subordinada à lei mas élhe subordinada de modo que deva ser considerada também como promulgadora da lei e justamente por tal motivo deve ser subordinada à lei da qual se pode considerar autora Os imperativos segundo as fórmulas por nós acima apresentadas tanto a que exige que as ações sejam conformes a leis universais como a uma ordem da natureza quanto aquela segundo a qual os seres racionais têm a prerrogativa universal de fins em si excluíam sem dúvida de sua autoridade soberana toda mescla de qualquer interesse a título de móbil precisamente por serem representados como categóricos mas não eram aceitos como categóricos senão porque precisávamos de admitilos como tais se quiséssemos explicar o conceito do dever Mas que haja proposições práticas que ordenam categoricamente é uma verdade que não podia demonstrarse desde o princípio como nem é possível que tal demonstração possa ser feita agora nesta Secção Entanto uma coisa não podia deixar de se fazer a saber que a renúncia a todo interesse no ato de querer por dever considerado como característica que distingue o imperativo categórico do imperativo hipotético fosse indicada ao mesmo tempo no próprio imperativo por meio de alguma determinação que lhe fosse inerente 432 e é justamente o que acontece nesta terceira fórmula do princípio isto é na idéia da vontade de todo ser racional considerada como vontade promulgadora de urna legislação universal De fato se concebemos uma tal vontade veremos que enquanto existe a possibilidade de uma vontade sujeita a leis estar ainda ligada a estas leis por um interesse todavia é impossível que uma vontade que seja suprema legisladora dependa neste sentido de um interesse qualquer pois uma vontade assim dependente precisaria de outra lei que adstringisse o interesse de seu amorpróprio à condição de ser capaz de valer como lei universal Pelo que o princípio segundo o qual toda vontade humana aparece como vontade que mediante suas máximas institui uma legislação universal se ostentasse consigo a prova de sua exatidão conviria perfeitamente ao imperativo categórico uma vez que precisamente por causa da idéia de uma legislação universal ele não se apóia cm nenhum interesse e por isso mesmo de todos os imperativos possíveis só ele pode ser incondicionado ou melhor ainda invertendo a proposição se há um imperativo categórico isto é uma lei válida para a vontade de todo ser racional ele pode apenas ordenar que procedemos sempre segundo a máxima de sua vontade isto é de uma vontade tal que possa ao mesmo tempo considerarse como objeto enquanto legisladora universal Só então o princípio prático é incondicionado do mesmo modo que o imperativo a que a vontade obedece visto não haver nenhum interesse sobre o qual possa fundamentarse Posso aqui ser dispensado de aduzir exemplos para esclarecimento deste princípio visto como os anteriormente aduzidos para explicar o imperativo categórico e suas íórmulas podem aqui ser empregados para o mesmo um Se considerarmos os esforços envidados até ao presente para descobrir o princípio da moral não devemos estranhar que todos necessariamente tenham falhado Viase que o homem estava ligado por seus deveres a leis mas não se refletia que ele só está sujeito à sua própria legislação e portanto a uma legislação universal e que não está obrigado a agir senão conformemente à sua vontade própria mas à sua vontade que por destino da natureza institui uma legislação universal Pois se o imaginássemos sujeito a uma lei qualquer que 433 ela fosse esta implicaria necessariamente cm si um interesse sob forma de atração ou de obrigação e nesse caso não derivaria enquanto lei da sua vontade e esta vontade seria coagida a agir em certo modo conformemente à lei mas por algum outro motivo Ora graças a esta conseqüência absolutamente inevitável todo esforço para encontrar um princípio supremo do dever era irremediavelmente perdido Nunca se descobria o dever mas sim a necessidade de agir por um certo interesse Que este interesse fosse pessoal ou estranho o imperativo apresentava então sempre necessariamente um caráter condicional e não podia valer como prescrição moral Chamarei pois a este princípio princípio da AUTONOMIA da vontade em oposição a qualquer outro princípio que por isso qualifico de HETERONÍMIA O conceito em virtude do qual todo ser racional deve considerarse como fundador de uma legislação universal por meio de todas as máximas de sua vontade de sorte que possa julgarse a si mesmo e a suas ações sob este ponto de vista conduznos a uma idéia muito fecunda que com ele se prende a saber à idéia de um reino dos fins Pela palavra reino entendo a união sistemática de diversos seres racionais por meio de leis comuns E como as leis determinam os fins quanto ao seu valor universal se se abstrai das diferenças pessoais existentes entre os seres racionais e também do conteúdo de seus fins particulares poderseá conceber um conjunto de todos os fins tanto dos seres racionais como fins em si como dos fins próprios que cada qual pode proporse um todo que forme uma união sistemática ou seja um reino dos fins possível segundo os princípios precedentemente enunciados Os seres racionais estão todos sujeitos à lei em virtude da qual cada um deles nunca deve tratarse a si e aos outros como puros meios mas sempre e simultaneamente como fins em si Daqui brota uma união sistemática de seres racionais por meio de leis objetivas comuns ou seja um reino o qual atendendo a que tais leis têm precisamente por escopo a relação mútua de todos estes seres como fins e como meios pode ser denominado reino dos fins o que na verdade é apenas um ideal Mas um ser racional pertence na qualidade de membro ao reino dos fins pois que muito embora ele aí promulgue leis universais no entanto está sujeito a essas leis Pertencelhe na qualidade de chefe enquanto como legislador não está sujeito a nenhuma vontade alheia O ser racional deve sempre considerarse como 434 legislador num reino dos fins possível pela liberdade da vontade quer ele nesse reino exista como membro quer como chefe Não pode todavia reivindicar a categoria de chefe unicamente pelas máximas de sua vontade só o poderá fazer se for um ser completamente independente sem necessidades de qualquer espécie e dotado de um poder de ação sem restrições adequado à sua vontade A moralidade consiste pois na relação de todas as ações com a legislação a qual e só ela possibilita um reino dos fins Esta legislação deve porém encontrarse em todo ser racional e deve poder emanar de sua vontade cujo princípio será o seguinte agir somente segundo uma máxima tal que possa ser erigida em lei universal tal por conseguinte que a vontade possa mercê de sua máxima considerarse como promulgadora ao mesmo tempo de uma legislação universal Mas se as máximas não são já por sua natureza necessariamente conformes a este princípio objetivo dos seres racionais considerados como autores de uma legislação universal a necessidade de agir segundo aquele princípio chamase coação prática isto é dever No reino dos fins o dever não compete ao chefe mas sim a cada membro e a todos em igual medida A necessidade prática de agir segundo este princípio ou seja o dever não repousa de fato sobre sentimentos impulsos e inclinações mas unicamente sobre a relação mútua dos seres racionais na qual relação a vontade de todo ser racional deve sempre ser considerada ao mesmo tempo como legisladora pois de outro modo não poderia ser concebida como fim cm si A razão refere assim toda máxima da vontade concebida como legisladora universal a toda outra vontade e também a toda ação que o homem ponha para consigo procede assim não tendo em vista qualquer outro motivo prático ou vantagem futura mas levada pela idéia da dignidade de um ser racional que não obedece a nenhuma outra lei que não seja ao mesmo tempo instituída por ele próprio No reino dos fins tudo tem um PREÇO ou uma DIGNIDADE Uma coisa que tem um preço pode ser substituída por qualquer outra coisa equivalente pelo contrário o que está acima de todo preço e por conseguinte o que não admite equivalente é o que tem uma dignidade Tudo o que se refere às inclinações e necessidades gerais do homem tem um preço de mercadoria o que embora não pressuponha uma necessidade é conforme a um certo gosto 435 isto é à satisfação que nos advém de um simples jogo mesmo destituído de finalidade de nossas faculdades intelectuais tem um preço de sentimento mas o que constitui a só condição capaz de fazer que alguma coisa seja um fim em si isso não tem apenas simples valor relativo isto é um preço mas sim um valor intrínseco uma dignidade Ora a moralidade é a única condição capaz de fazer que um ser racional seja um fim em si pois só mediante ela é possível ser um membro legislador no reino dos fins Pelo que a moralidade bem como a humanidade enquanto capaz de moralidade são as únicas coisas que possuem dignidade Habilidade e diligencia no trabalho têm um preço de mercadoria talento imaginação e bom humor têm um preço de sentimento pelo contrário fidelidade às promessas benevolência baseada em princípios não a benevolência instintiva têm um valor intrínseco A natureza e a arte não contêm nada que possa substituir estas qualidades se por acaso vierem a faltar porque o valor delas não provém dos efeitos delas resultantes nem das vantagens ou utilidade que trazem mas reside nas intenções isto é nas máximas da vontade sempre dispostas a se traduzirem em atos embora as conseqüências destes não sejam vantajosas Estas ações não precisam também de ser recomendadas por qualquer disposição ou inclinação subjetiva que nolas faça encarar com favor e prazer imediatos não precisam de nenhuma tendência e inclinação que nos incite imediatamente a cumprilas elas mostram a vontade que as executa como objeto de respeito imediato e só a razão é requerida para as impor à vontade e não para as obter desta por meio de lisonjas o que aliás em matéria de deveres seria uma contradição Esta estimação levanos a reconhecer o valor de tal maneira de pensar como uma dignidade e colocaa infinitamente acima de todo preço com o qual não pode ser nem avaliada nem confrontada sem que de algum modo se lese sua santidade Por conseguinte que coisa autoriza a intenção moralmente boa ou a virtude a ter tão altas pretensões Não é senão a faculdade que ela confere ao ser racional de participar na legislação universal e que por essa forma o torna capaz de ser membro de um possível reino dos fins mas a isto já ele estava destinado por sua própria natureza como fim em si e precisamente por isso como legislador no reino dos fins como livre em relação a todas as leis da natureza não obedecendo senão às que ele próprio promulga àquelas que conferem a suas máximas o caráter de legislação universal à qual ele 436 ao mesmo tempo se submete De fato nenhuma coisa possui valor a não ser o que lhe é assinado pela lei Mas a própria legislação que determina todos os valores deve ter justamente por isso uma dignidade isto é um valor incondicionado incomparável para o qual só o termo respeito fornece a expressão conveniente da estima que todo ser racional lhe deve tributar A autonomia é pois o princípio da dignidade da natureza humana bem como de toda natureza racional As três maneiras por nós indicadas de representar o princípio da moralidade não são no fundo senão outras tantas fórmulas de uma só e mesma lei fórmulas cada uma da quais contém cm si e por si mesma as outras duas Entretanto existe entre elas uma diferença que a falar verdade é antes subjetivamente que objetivamente prática isto é tal que serve para aproximar segundo uma certa analogia a idéia da razão e a intuição e por meio desta o sentimento Todas as máximas possuem 1 uma forma que consiste na universalidade no qual caso a fórmula do imperativo moral é a seguinte as máximas devem ser escolhidas como se devessem valer como leis universais da natureza 2 uma matéria ou seja um fim e eis então o enunciado da fórmula o ser racional sendo por sua natureza um fim e portanto um fim em si mesmo deve constituir para toda máxima uma condição que sirva de limitar todo fim puramente relativo e arbitrário 3 uma determinação completa de todas as máximas por meio desta nova fórmula a saber que todas as máximas oriundas de nossa própria legislação devem concorrer para um reino possível dos fins como para um reino da natureza O progresso aqui realizase de algum modo por meio das categorias indo da unidade da forma da vontade da universalidade da mesma à pluralidade da matéria dos objetos isto é dos fins e daqui à totalidade ou integralidade dos sistemas dos mesmos fins Mas tratandose de emitir um juízo moral é preferível proceder sempre segundo o método mais rigoroso e tomar por princípio a fórmula universal do imperativo 437 categórico Procede segundo a máxima que possa ao mesmo tempo erigirse em lei universal Contudo se ao mesmo tempo se pretende facultar à lei moral o acesso à alma importa fazer passar a mesma ação pelos três conceitos indicados e aproximála tanto quanto possível da intuição A teleologia considera a natureza como um reino dos fins a moral considera um reino possível dos fins como um reino da natureza Ali o reino dos fins ó uma idéia teórica destinada a explicar aquilo que 6 dado Aqui é uma idéia prática que serve para cumprir o que não foi dado mas que pode tornarse real pelo nosso modo de agir s isso de acordo com essa mesma idéia Podemos agora terminar por onde começamos a saber pelo conceito de uma vontade incondicionalmente boa É absolutamente boa a vontade que não pode ser má portanto aquela vontade cuja máxima quando convertida em lei universal não pode contra dizerse a si mesma Portanto sua lei suprema é o princípio seguinte procede sempre segundo uma máxima tal que possas querer ao mesmo tempo que ela seja arvorada em lei universal Esta é a única condição que faz que uma vontade nunca possa estar em contradição consigo mesma e um tal imperativo é categórico Uma vez que o caráter que a vontade possui de poder valer como lei universal para ações possíveis apresenta analogia com a conexão universal da existência das coisas segundo leis universais que é o elemento formal da natureza em geral o imperativo categórico pode ainda ser expresso da maneira seguinte Procede segundo máximas tais que possam ao mesmo tempo tomarse a si mesmas por objeto como leis universais da natureza Portanto fica assim estabelecida a fórmula de uma vontade absolutamente boa A natureza racional distinguese de todas as outras pelo fato de se propor a si mesma um fim Este fim seria a matéria de toda boa vontade Mas assim como na idéia de uma vontade absolutamente boa sem condições restritivas qual pode ser a aquisição deste ou daquele fim é mister abstrair de todo fim a obter o qual não poderia tornar boa uma vontade senão relativamente como é mister que o fim seja concebido aqui não como fim a realizar senão como fim existente por si portanto que seja concebido de maneira puramente negativa isto é como fim contra o qual nunca se deve agir que nunca deve ser considerado como simples meio mas sempre e ao mesmo tempo como fim em todo ato de querer Ora tal fim não pode ser senão o próprio sujeito de todos os fins possíveis porque este é ao mesmo tempo o sujeito de toda vontade absolutamente boa possível vontade esta que não pode sem contradição ser proposta a algum outro objeto O princípio procede para com todo ser racional para contigo e para com os outros de modo que ele tenha na tua 438 máxima o valor de fim em si é em suma idêntico ao princípio procede segundo uma máxima tal que contenha ao mesmo tempo em si a capacidade de valer universalmente para todo ser racional Com efeito dizer que no uso dos meios empregados em vista de um fim devo impor à minha máxima a condição limitativa de valer universalmente como lei para todo sujeito equivale a dizer isto que como fundamento básico de todas as máximas das ações se deve assentar que o sujeito dos fins ou seja o próprio ser racional nunca deve ser tratado como simples meio mas sim como condição limitativa suprema no uso de todos os meios o mesmo é dizer que deve sempre ser tratado como fim Ora daqui seguese indiscutivelmente que todo ser racional como fim em si deve poder relativamente a todas as leis a que ele possa estar sujeito considerarse ao mesmo tempo como legislador universal pois é precisamente esta capacidade de suas máximas para constituir uma legislação universal que o distingue como fim em si seguese além disso que a sua dignidade prerrogativa superior a todos os puros seres da natureza implica que ele deve considerar suas máximas sempre do seu próprio ponto de vista que é ao mesmo tempo o ponto de vista de todo ser racional considerado como legislador por isso também tais seres são chamados pessoas Deste modo se torna possível um mundo de seres racionais mundus intelligibilis considerado como um reino dos fins e isto mercê da legislação própria de todas as pessoas como membros Pelo que todo ser racional deve agir como se ele fosse sempre por suas máximas um membro legislador no reino universal dos fins O princípio formal destas máximas é Procede como se tua máxima devesse servir ao mesmo tempo de lei universal para todos os seres racionais Um reino dos fins não é possível senão por analogia como um reino da natureza mas o primeiro não se constitui senão segundo máximas isto é segundo regras que a nós mesmos nos impomos ao passo que o segundo se constitui apenas segundo leis de causas eficientes sujeitas a coação exterior Não obstante isto dáse igualmente o nome de reino da natureza ao conjunto da natureza considerado embora como máquina na medida em que se relaciona com seres racionais considerados como seus fins Ora tal reino dos fins seria efetivamente realizado por meio de máximas a norma das quais o imperativo categórico prescreve a todos os seres racionais como a condição de elas serem universalmente seguidas Mas conquanto o ser racional não possa esperar que todos os outros sigam fielmente esta máxima embora ele a observe pontualmente nem que o reino da natureza e sua constituição teleológica concorram com ele como com um membro digno de fazer parte da mesma para realizar um 439 reino dos fins por si mesmo possível ou por outras palavras favoreçam sua aspiração à felicidade todavia esta lei Procede segundo as máximas de um membro que institui uma legislação universal para um reino dos fins puramente possível mantém toda sua eficácia porque ordena de maneira categórica E nisto justamente consiste o paradoxo de que só a dignidade dá humanidade como natureza racional independentemente de qualquer fim ou vantagem a alcançar e portanto só o respeito por uma simples idéia deva servir de prescrição inflexível para a vontade e que esta independência da máxima relativamente a todo móbil constitua precisamente sua sublimidade e torne todo sujeito racional digno de ser membro legislador no reino dos fins porque de outro modo ele deveria ser representado tão somente como sujeito à lei natural de suas necessidades Embora também o reino da natureza do mesmo modo que o reino dos fins fossem concebidos como reunidos sob um chefe supremo de sorte que o segundo destes reinos não ficasse sendo apenas uma pura idéia mas adquirisse verdadeira realidade essa idéia lucraria decerto uma vantagem resultante do acréscimo de um forte impulso nunca porém um acréscimo de seu valor intrínseco pois não obstante isso seria necessário representar sempre esse legislador único e limitado como árbitro do valor de seres racionais que julga em conformidade com a conduta desinteressada que lhes é prescrita somente por esta idéia A essência das coisas não se modifica em conseqüência de suas relações externas e aquilo que abstraindo de tais relações basta para constituir por si o valor absoluto do homem é além disso a medida segundo a qual ele deve ser julgado por qualquer outro até mesmo pelo Ser supremo A moralidade é pois a relação das ações com a autonomia da vontade isto é com a legislação universal que as máximas da vontade devem tornar possível A ação capaz de subsistir com a autonomia da vontade é permitida a que não concorda com ela é proibida A vontade cujas máximas concordam necessariamente com as leis da autonomia é uma vontade santa isto é absolutamente boa A dependência de uma vontade não absolutamente boa a respeito dos princípios da autonomia a coação moral é a obrigação A obrigação não pode pois referirse por forma alguma a iam ente santo A necessidade objetiva de um ato em virtude da obrigação é o dever Por tudo quanto sumariamente fica exposto pode facilmente explicarse por que motivo acontece que embora sob o conceito do dever imaginemos uma submissão à lei 440 todavia nos representamos ao mesmo tempo uma certa sublimidade e uma dignidade como inerentes à pessoa cumpridora de todos os seus deveres Com efeito ela não é sublime enquanto sujeita à lei moral mas sim enquanto relativamente a esta lei ela é ao mesmo tempo legisladora e só por isso lhe é subordinada Também mostramos acima como nem o temor nem a inclinação mas somente o respeito da lei é o único móbil capaz de conferir valor moral à ação Nossa própria vontade supondo que não age senão sob a condição de uma legislação universal tornada possível por suas máximas esta vontade ideal que pode ser a nossa é o objeto próprio do respeito e a dignidade da humanidade consiste precisamente na aptidão que ela possui para estatuir leis universais embora com a condição de simultaneamente estar sujeita a esta legislação A autonomia da vontade como princípio supremo da moralidade A autonomia da vontade é a propriedade que a vontade possui de ser lei para si mesma independentemente da natureza dos objetos do querer O princípio da autonomia é pois escolher sempre de modo tal que as máximas de nossa escolha estejam compreendidas ao mesmo tempo como leis universais no ato de querer Que esta regra prática seja um imperativo isto é que a vontade de todo ser racional lhe esteja necessariamente ligada como a uma condição é coisa que não pode ser demonstrada pela pura análise dos conceitos implicados na vontade porque isso é uma proposição sintética seria mister ultrapassar o conhecimento dos objetos e entrar numa crítica do sujeito isto é da razão pura prática de fato esta proposição sintética que prescreve apodicticamente deve poder ser conhecida inteiramente a priori contudo tal tema mio pertence a esta Secção do livro Mas que o princípio em questão da autonomia seja o único princípio da moralidade explicase muito bem por meio de simples análise do conceito de moralidade Pois dessa maneira verificase que o princípio da moralidade deve ser um imperativo categórico e que este não prescreve nem mais nem menos do que a própria autonomia 441 A heteronímia da vontade como origem de todos os princípios ilegítimos da moralidade Quando a vontade busca a lei que deve determinála noutro lugar que não na aptidão de suas máximas para instituir uma legislação universal que dela proceda quando por conseguinte ultrapassandose busca esta lei na propriedade de algum de seus objetos o resultado disso é sempre uma heteronímia Neste caso a vontade não dá a si mesma a lei é o objeto que lha dá mercê de sua relação com a vontade Esta relação quer se apóie sobre a inclinação quer sobre as representações da razão não logra possibilitar senão imperativos hipotéticos devo fazer esta coisa porque quero alguma outra coisa Pelo contrário o imperativo moral por conseguinte categórico diz devo proceder deste ou daquele modo embora não queira nenhuma outra coisa Por exemplo segundo o primeiro imperativo diremos não devo mentir se quero continuar sendo tido como pessoa honrada de acordo com o segundo imperativo diremos não devo mentir embora da mentira não me advenha a menor ignomínia O imperativo categórico deve pois abstrair de todo objeto de maneira que este não exerça nenhum influxo sobre a vontade Em suma importa que a razão prática a vontade não se limite a administrar um interesse estranho mas que manifeste unicamente sua própria autoridade imperativa como legislação suprema Assim por exemplo devo procurar concorrer para a felicidade de outrem não como se eu estivesse de algum modo interessado em realizála quer por inclinação imediata quer indiretamente por causa de alguma satisfação suscitada pela razão mas tãosomente porque a máxima que exclui esta felicidade não pode estar compreendida num só e mesmo querer como lei universal Classificação de todos os princípios da moralidade que podem resultar do conceito fundamental da heteronímia tal como o definimos A razão humana aqui como em tudo o mais enquanto lhe faltou a Crítica tentou todas as falsas vias possíveis antes de conseguir encontrar a única verdadeira Todos os princípios que se podem admitir deste ponto de vista são ou empíricos ou racionais Os 442 primeiros derivados do princípio da felicidade fundamentamse no sentido físico ou moral os segundos derivados do princípio da perfeição baseiamse ou no conceito racional da perfeição considerada como efeito possível ou no conceito de uma perfeição existente por si a vontade de Deus considerada como causa determinante de nossa vontade Os princípios empíricos são sempre impróprios para servir de fundamento a leis morais Porque a universalidade com a qual estas devem valer para todos os seres racionais sem distinção a necessidade prática incondicionada que lhes é imposta desaparecem se o princípio das mesmas derivar da constituição peculiar da natureza humana ou das circunstâncias contingentes em que ela se encontra Contudo o princípio da felicidade pessoal é o mais reprovável não só por ser falso e porque a experiência contradiz a suposição de que o bemestar se regula sempre pelo bom comportamento não só também porque ele em nada contribui para a fundamentação da moralidade visto serem coisas inteiramente diferentes tornar um homem feliz e tornálo bom tornálo prudente e atento a seus interesses e tornálo virtuoso mas porque ele assenta como base da moralidade impulsos que antes a minam e lhe destroem toda grandeza com efeito incluem na mesma classe os impulsos que estimulam a virtude e os que impelem ao vício ensinam apenas a calcular melhor mas suprimem absolutamente a diferença específica existente entre uns e outros Pelo contrário o sentimento moral este suposto senso especial embora seja prova de superficialidade de ânimo o recorrer a ele visto como só os que são incapazes de pensar imaginam poder ajudarse do sentimento mesmo no que se refere unicamente a leis universais e apesar de os sentimentos que por natureza se distinguem uns dos outros por uma infinidade de graus não conseguirem apresentar uma medida imparcial do bem e do mal sem contar que quem julga movido pelo sentimento não pode julgar validamente para os outros o sentimento moral digo avizinhase mais da moralidade e da dignidade que lhe é própria porque rende à virtude a honra de lhe atribuir imediatamente a satisfação 443 que ela dá e o respeito que ela inspira e porque lhe não declara por assim dizer frente a frente que não é a sua beleza mas somente o interesse a única coisa que a ela nos prende Entre os princípios racionais da moralidade o conceito ontológico da perfeição embora oco indeterminado e conseguintemente inservível para o fim de descobrir no campo ilimitado da realidade possível o máximo de perfeição que nos convém e se bem que tratandose de distinguir especificamente de qualquer outra a realidade de que ora nos ocupamos ele seja irresistivelmente atraído a rodar num círculo vicioso mal podendo esquivarse a supor tàcitamente a moralidade que lhe cabe explicar este conceito ontológico vale todavia muito mais que o conceito teológico o qual deriva a moralidade a partir de uma vontade divina absolutamente perfeita não só porque não temos apesar de tudo a intuição da perfeição de Deus e porque não podemos derivála senão de nossos conceitos o principal dos quais é o da moralidade mas também porque se não procedermos deste modo para não nos expormos ao grosseiro círculo vicioso que de fato se produziria em nossa explicação o único conceito que nos restaria da divina vontade derivado dos atributos do amor da glória e da dominação e ligado às temerosas representações do poder e da ira assentaria necessariamente os fundamentos de um sistema de moral que seria precisamente o contrário da moralidade Mas se tivesse que optar entre o conceito do senso moral e o da perfeição em geral conceitos que ao menos não causam dano à moralidade embora sejam completamente impotentes para a apoiarem como princípios fundamentais decidirmeia em favor do último conceito porque este ao menos tira à sensibilidade a fim de o remeter para o tribunal da razão pura o trabalho de dirimir a questão e embora não decida coisa alguma todavia conserva sem a falsear a idéia indeterminada de uma vontade boa em si até que seja possível determinála de maneira mais precisa Penso que posso dispensarme de apresentar uma extensa refutação de todos estes sistemas Essa refutação é tão fácil é também segundo todas as probabilidades tão claramente apreendida por aqueles mesmos cuja profissão exige que se declarem em favor de alguma destas teorias porque os ouvintes não suportam de bom grado a interrupção de um juízo que seria tempo perdido insistir nisto Mas o que mais nos interessa aqui é saber que estes princípios não estabelecem nenhum outro fundamento primeiro à moralidade a não ser a heteronímia da vontade e é justamente por isso que eles devem necessariamente falhar o seu escopo Incluo o princípio do sentimento moral no princípio da felicidade porque todo interesse empírico ocasionado pelo prazer que uma coisa provoca quer isto aconteça imediatamente e sem qualquer consideração de vantagem quer aconteça devido a intuitos interesseiros promete contribuir para o bemestar Devemos outrossim incluir com Hutcheson o princípio da simpatia pela felicidade alheia neste mesmo princípio do senso moral admitido por ele 444 Todas as vezes que se pensa cm tomar como fundamento um objeto da vontade com o fim de prescrever a esta a regra que deve determinála a regra não é senão heteronímia o imperativo é condicionado nos termos seguintes se ou porque se quer este objeto devese proceder deste ou daquele modo por conseguinte este imperativo nunca pode comandar moralmente isto é categoricamente O objeto pode determinar a vontade ou por meio da inclinação como no princípio da nossa própria felicidade pessoal ou por meio da razão aplicada aos objetos possíveis de nossa vontade em geral como no princípio da perfeição em todo caso porém a vontade nunca se determina imediatamente a si própria por meio da representação da ação mas só pelo impulso que o efeito previsto da ação exerce sobre a vontade devo fazer esta coisa porque quero esta outra e aqui é ainda mister pôr como fundamento no sujeito que eu sou outra lei segundo a qual quero necessariamente esta outra coisa a qual lei por seu turno precisa de um imperativo que imponha a esta máxima um sentido definido Com efeito como o atrativo que a representação de um objeto realizável por nossas forças deve exercer sobre a vontade do sujeito de acordo com suas faculdades naturais faz parte da natureza do sujeito quer da sensibilidade da inclinação e do gosto quer do intelecto e da razão os quais segundo a peculiar constituição de sua natureza se aplicam a um objeto com prazer daí vem que seria propriamente a natureza quem daria a lei que como tal não só deve ser conhecida e demonstrada unicamente pela experiência e portanto contingente em si e inadequada para estatuir urna regra prática apodíctica tal como deve ser a regra moral mas que nunca é senão heteronímia da vontade A vontade neste caso nunca dá a si mesma a lei mas um impulso estranho lha fornece graças a uma especial constituição do sujeito que o dispõe a recebêla A vontade absolutamente boa cujo princípio deve ser um imperativo categórico será pois indeterminada a respeito de todos os objetos e não contém senão a forma do dever em geral e isto como autonomia quer dizer que a aptidão da máxima de toda boa vontade para se arvorar em lei universal é a única lei que a vontade de todo ser racional se impõe a si própria sem lhe acrescentar qualquer princípio oriundo da inclinação ou do interesse Como seja possível uma tal proposição prática sintética a priori e a razão de sua necessidade é problema cuja solução não mais se encontra dentro dos limites da Metafísica dos costumes Por isso não afirmamos aqui a verdade 445 desta proposição menos ainda alimentamos a pretensão de possuir uma prova dela Mostramos tãosomente por meio do desenvolvimento do conceito de moralidade universalmente aceito que uma autonomia da vontade lhe está inevitavelmente ligada ou antes que é o fundamento dele Portanto quem considera a moralidade como algo de real e não como idéia quimérica destituída de verdade deve admitir igualmente o princípio que nós lhe atribuímos Esta Segunda Secção foi pois como a Primeira puramente analítica Para demonstrar agora que a moralidade não é pura quimera asserto que se impõe de maneira inevitável admitindo que o imperativo categórico é verdadeiro bem como o é a autonomia da vontade e se ambos são absolutamente necessários como princípios a priori isso exige a possibilidade de um uso sintético da razão pura prática o que todavia não podemos agora tentar sem que primeiro instituamos uma Crítica desta mesma faculdade da razão Na última Secção exporemos os traços principais da mesma os bastantes para o nosso escopo 446 Passagem da Metafísica dos costumes à crítica da razão pura prática O conceito da liberdade é a chave da explicação da autonomia da vontade A VONTADE é uma espécie de causalidade dos seres viventes enquanto dotados de razão e a liberdade seria a propriedade que esta causalidade possuiria de poder agir independentemente de causas estranhas que a determinam assim como a necessidade natural é a propriedade que tem a causalidade de todos os seres desprovidos de razão de serem determinados a agir sob a influência de causas estranhas Esta definição de liberdade é negativa e por conseguinte não permite que lhe compreendamos a essência dela porém deriva um conceito positivo da liberdade muito mais rico e fecundo Dado que o conceito de causalidade implica em si o de leis segundo as quais alguma coisa que chamamos efeito deve ser produzida por alguma outra coisa que é a causa a liberdade embora não seja propriedade da vontade que se conforme com leis naturais nem por isso está fora de toda lei pelo contrário ela deve ser uma causalidade que age segundo leis imutáveis mas leis de peculiar espécie pois de outro modo uma vontade livre seria um absurdo A necessidade natural é uma heteronímia das causas eficientes porque todo efeito só é possível de acordo com esta lei que a causa eficiente seja determinada a agir por alguma coisa 447 estranha Em que pode pois consistir a liberdade da vontade senão numa autonomia ou seja na propriedade que o querer tem de ser para si mesmo sua lei Mas a proposição a vontade é em todas as suas ações lei para si mesma significa apenas o princípio de não agir senão de acordo com uma máxima tal que possa também tomarse como objeto a título de lei universal Ora esta é precisamente a fórmula do imperativo categórico bem como do princípio da moralidade por conseguinte uma vontade livre e uma vontade sujeita a leis morais são uma e a mesma coisa Suposta pois a liberdade da vontade basta analisarlhe o conceito para daí deduzir a moralidade e seu princípio Entanto este princípio é sempre uma proposição sintética uma vontade absolutamente boa é aquela cuja máxima pode sempre em si conter a lei universal que outra não é senão essa mesma máxima e é sintética porque pela análise do conceito de vontade absolutamente boa não se pode descobrir aquela propriedade da máxima Tais proposições sintéticas só são possíveis mediante a condição de as duas noções estarem ligadas uma à outra por uma terceira na qual ambas se encontrem O conceito positivo da liberdade subministra este terceiro termo que não pode ser como para as causas físicas a natureza do mundo sensível cujo conceito compreende o conceito de alguma coisa considerado como causa e o conceito de alguma outra coisa ao qual se refere a causa e que é considerado como efeito Mas que coisa seja este terceiro termo para o qual a liberdade nos remete e do qual temos uma idéia a priori não se pode ainda indicar aqui como nem mostrar de que maneira o conceito da liberdade se deduz da razão pura prática nem como é possível o imperativo categórico Tudo isto demanda ainda alguma preparação A liberdade deve ser suposta como propriedade da vontade de todos os seres racionais Não basta atribuir por qualquer motivo a liberdade à nossa vontade se não temos motivo suficiente para atribuíla igualmente a todos os seres racionais Uma vez que a moralidade não nos serve de lei senão enquanto somos seres racionais daí se segue que ela deve valer igualmente para todos os seres racionais e visto ela derivar exclusivamente da propriedade da liberdade é preciso também demonstrar a liberdade como propriedade da vontade de todos os seres racionais e 448 não basta aduzir como provas certas pretensas experiências da natureza humana o que aliás é absolutamente impossível pois que de possível só existe uma demonstração exclusivamente a priori mas é preciso demonstrála como pertencente em geral à atividade de seres racionais e dotados de vontade Portanto digo todo o ser que não pode agir de outra maneira senão sob a idéia da liberdade é por isso mesmo do ponto de vista prático realmente livre quer dizer que todas as leis inseparàvelmente associadas à liberdade valem para ele exatamente como se a sua vontade fosse também reconhecida livre em si mesma e por motivos válidos do ponto de vista da filosofia teorética E afirmo que a todo ser racional dotado de vontade devemos atribuir necessariamente também a idéia da liberdade mercê da qual somente ele pode agir Com efeito num tal ser concebemos uma razão que é prática ou seja dotada de causalidade em relação a seus objetos Ora é impossível conceber uma razão que plenamente consciente de ser autora de seus juízos recebe uma direção vinda de fora porque em tal caso o sujeito atribuiria não à razão mas a um incitamento a determinação de sua faculdade judicativa A razão deve considerarse como autora de seus princípios independentemente de qualquer influxo estranho conseqüentemente deve enquanto razão prática ou vontade de um ser racional considerarse como livre por outras palavras a vontade de um ser racional apenas pode ser uma vontade sua própria mediante a idéia da liberdade e além disso uma tal vontade deve ser do ponto de vista prático atribuída a todos os seres racionais Este método de não admitir a liberdade senão sob a forma de idéia posta pelos seres racionais como fundamento de suas ações basta para o fim que tenho em vista e eu adotoo para não ter de demonstrar também a liberdade do ponto de vista teorético Ainda que a demonstração teorética da liberdade ficasse incompleta devem valer para um ser que só pode agir sob a idéia de sua própria liberdade as mesmas leis que valeriam para um ser que fosse verdadeiramente livre Podemos pois libertarnos aqui do peso que onera a teoria Do interesse próprio das idéias da moralidade Em fim de contas reduzimos o conceito determinado da moralidade à idéia da liberdade contudo não foi possível 449 demonstrar esta como sendo algo de real em nós e na natureza humana Limitamonos a verificar que devemos supôla se queremos conceber um ser como racional e dotado da consciência de sua causalidade relativamente às suas ações ou seja como dotado de vontade e assim encontramos que precisamente pelo mesmo motivo devemos atribuir a todo ser dotado de razão e de vontade esta faculdade de determinarse a agir sob a idéia de sua liberdade Além disso vimos que da suposição desta idéia deriva igualmente a consciência de uma lei segundo a qual os princípios subjetivos da ação isto é as máximas devem ser sempre tais que possam valer também objetivamente ou seja universalmente como princípios e por conseguinte servir para uma legislação que embora emanada de nós seja legislação universal Mas por que devo eu submeterme a este princípio e isto na minha qualidade de ser racional em geral E por que devem igualmente submeterse a ele os demais seres dotados de razão Quero admitir que nenhum interesse me impele pois nesse caso não haveria nenhum imperativo categórico no entanto é preciso que eu aceite necessariamente um interesse e que veja como isto é possível porque este dever é propriamente um querer em todo ser racional com a condição ide que nele a razão seja prática sem impedimento mas para os seres que como nós são dotados de sensibilidade isto é de impulsos de outra espécie e nos quais não sucede sempre o que a razão sozinha faria por si esta necessidade da ação exprimese só pelo termo dever e a necessidade subjetiva distinguese da necessidade objetiva Parece portanto que nos contentamos com supor propriamente a lei moral isto é o próprio princípio da autonomia da vontade na idéia da liberdade sem podermos demonstrar a realidade e a necessidade objetiva deste princípio em si mesmo todavia mesmo assim teríamos ganho algo de muito importante por havermos determinado ao menos o verdadeiro princípio com maior exatidão do que se fez até ao presente mas em relação à sua validade e à necessidade prática de nos submetermos a ele não teríamos avançado muito Porque se nos perguntassem como é que a validade universal de nossa máxima como lei deve ser a condição restritiva de nossas ações e sobre que base fundamentamos o valor por nós atribuído a este modo de agir valor tão considerável que não pode ser superado por nenhum outro interesse como além disso acontece que só por tal forma o homem crê possuir o sentimento de seu valor pessoal em comparação do 450 qual a importância de um estado agradável ou desagradável deve ser tida por nula a estas perguntas não poderemos dar resposta satisfatória Sem dúvida afigurasenos bom poder interessarnos por uma qualidade pessoal da qual não depende de fato o interesse de nossa situação mas que nos torna capazes de participar numa condição feliz no caso em que esta fosse dispensada pela razão por outras palavras o simples fato de sermos dignos de felicidade embora não nos mova o desejo de nela participar pode interessar em si mesmo mas este juízo é na realidade apenas o efeito da importância já pressuposta nas leis morais enquanto por meio da idéia da liberdade nos despojamos de todo interesse empírico Mas que nos devamos despojar de tal interesse empírico isto é que nos devamos considerar como livres na ação e todavia reputarnos subordinados a certas leis no intuito de encontrar só em nossa pessoa um valor capaz de nos compensar da perda de tudo quanto confere valor à nossa condição como isto seja possível e por conseguinte donde provém que a lei moral obrigue é o que não podemos ainda compreender Devemos confessar com franqueza haver aqui uma espécie de círculo vicioso do qual segundo penso não há meio de sair Supomonos livres na ordem das causas eficientes a fim de nos imaginarmos na ordem dos fins sujeitos a leis morais e em seguida consideramonos sujeitos a estas leis por nos havermos atribuído a liberdade da vontade de fato a liberdade e a legislação própria da vontade exprimem ambas autonomia são pois conceitos recíprocos e justamente por tal motivo não se pode usar um para explicar o outro e dar razão dele ao sumo tudo quanto se pode fazer é do ponto de vista lógico reduzir a um conceito único as representações na aparência diversas de um só e mesmo objeto como se reduzem diversas frações de valor idêntico à expressão mais simples Restanos todavia uma saída ou seja procurar saber se quando nos imaginamos mercê da liberdade como causas eficientes a priori não nos situamos num ponto de vista diferente de quando nos representamos a nós mesmos segundo nossas ações como efeitos que estão patentes a nossos olhos Há que fazer uma observação sem que para isso sejam necessárias sutis reflexões por ela estar ao alcance da inteligência mais comum embora esta a faça a seu modo isto ê por um obscuro discernimento da faculdade judicativa que 451 ela denomina sentimento é que todas as representações que em nós se produzem independentemente de nossa vontade como as representações dos sentidos não nos fazem conhecer os objetos senão segundo o influxo que eles em nós exercem de sorte que ficamos ignorando o que eles possam ser em si mesmos conseqüentemente acontece que por meio de tais representações nós a despeito dos maiores esforços de atenção e de toda a clareza que o intelecto pode acrescentar não podemos obter senão o conhecimento dos fenômenos e nunca o das coisas em si Uma vez feita esta distinção e basta para isso a diferença já apontada entre as representações que nos vêm de fora nas quais permanecemos passivos e as que produzimos exclusivamente por nós próprios e nas quais manifestamos nossa atividade resulta naturalmente que devemos supor e admitir por detrás dos fenômenos alguma outra coisa que não é fenômeno quero dizer precisamente as coisas em si embora de boa mente concedamos que por nunca podermos conhecêlas de outro modo senão pela maneira como elas nos afetam nunca podemos avizinharnos delas o bastante para sabermos o que elas são em si mesmas 182 Daqui resulta necessariamente uma distinção um tanto grosseira é certo entre o mundo sensível e o mundo inteligível o primeiro dos quais pode também ser muito variado segundo a diferença de sensibilidade nos diversos espectadores ao passo que o segundo que serve de fundamento ao primeiro permanece sempre o mesmo O próprio homem segundo o conhecimento que tem de si pelo senso íntimo não pode gloriarse do conhecerse como é em si mesmo Com efeito como ele de nenhuma maneira se produz a si mesmo nem recebe o conceito que tem de si a priori mas empiricamente é natural que não possa igualmente adquirir conhecimento de si mesmo senão pelo senso íntimo isto é somente mediante a aparência fenomenal de sua natureza e pelo modo como sua consciência é afetada Ao mesmo tempo porém deve admitir necessariamente acima desta modalidade de seu próprio sujeito composto unicamente de fenômenos alguma outra coisa que lhe sirva de fundamento a saber o seu próprio Eu seja qual for a maneira como este possa ser constituído em si mesmo por conseguinte no concernente à simples percepção e à capacidade de receber as sensações deve ele considerarse como fazendo parte do mundo sensível ao passo que naquilo que pode ser atividade pura isso é naquilo que chega à consciência não por influxo exercido sobre os sentidos senão imediatamente deve considerarse como fazendo parte do mundo inteligível do qual todavia ele nada mais conhece O homem que reflete deve chegar à mesma conclusão 452 relativamente todas as coisas que se lhe possam apresentar é presumível até que a inteligência mais vulgar seja capaz de formular semelhante conclusão pois é notório ser ela muito inclinada a supor por detrás dos objetos dos sentidos alguma realidade invisível que age por si mesma Mas por outro lado ela corrompe esta tendência pelo fato de o intelecto se representar este invisível debaixo de uma forma sensível isto é querendo fazer dele um objeto de intuição e conseguintemente não tira daí nenhuma vantagem Mas o homem encontra realmente em si uma faculdade por meio da qual se distingue de todas as outras coisas sensíveis até mesmo de si próprio enquanto pode ser afetado por objetos e esta faculdade é a razão Esta como espontaneidade pura é ainda superior ao entendimento porque embora este seja também espontaneidade e não contenha só como a sensibilidade representações que brotam apenas sob a influência das coisas conseguintemente quando se é passivo todavia ele não pode tirar de sua atividade nenhuns outros conceitos a não ser os que servem unicamente para submeter o regras as representações sensíveis e desse modoas reunir numa consciência e sem este uso da sensibilidade ele nada poderia pensar ao invés a razão manifesta naquilo a que se dá o nome de idéias uma espontaneidade tão pura que por essa forma se alça muito acima de tudo quanto a sensibilidade lhe pode subministrar e manifesta sua principal função distinguindo um do outro o mundo sensível do mundo inteligível e marcando assim ao próprio entendimento os seus limites Por tal motivo um ser racional deve enquanto inteligência e portanto não por suas faculdades inferiores considerarse como pertencente não ao mundo sensível mas ao mundo inteligível tem por conseguinte dois pontos de vista desde os quais pode considerarse a si próprio e conhecer as leis do exercício de suas faculdades isto é de todas as suas ações de um lado enquanto pertencente ao mundo sensível ele está sujeito a leis da natureza heteronímia do outro lado enquanto pertencente ao mundo inteligível está sujeito a leis independentes da natureza não empíricas senão fundadas unicamente na razão Na qualidade de ser racional portanto pertencente ao mundo inteligível o homem não pode conceber a causalidade de sua própria vontade senão sob a idéia da liberdade pois a independência a respeito das causas determinantes do mundo sensível independência que a razão deve sempre atribuir a si é liberdade Com a idéia da liberdade está inseparavelmente unido o conceito de autonomia com este está unido o 453 princípio universal da moralidade que idealmente serve de fundamento a todas as ações dos seres racionais da mesma maneira que a lei da natureza serve de fundamento a todos os fenômenos Deste modo se desfaz a suspeita acima insinuada segundo a qual estaria contido secretamente um círculo vicioso na nossa maneira de concluir da liberdade para a autonomia e desta para a lei moral Com efeito podia julgarse que propúnhamos como fundamento a idéia da liberdade só tendo em mira a lei moral para em seguida concluir novamente a lei moral partindo da liberdade que por conseguinte não podíamos dar absolutamente nenhuma demonstração desta lei e que esta era apenas como que a imposição de um princípio que as almas bem pensantes de bom grado nos concederiam mas que nós nunca poderíamos estatuir como proposição demonstrável Agora vemos bem que quando nos consideramos como livres nos transportamos para o mundo inteligível como membros desse mundo e que reconhecemos a autonomia da vontade juntamente com a sua conseqüência a moralidade mas se nos imaginamos como sujeitos ao dever consideramonos como pertencentes a um tempo ao mundo sensível e ao mundo inteligível Como é possível um imperativo categórico O ser racional pertence como inteligência ao mundo inteligível e só enquanto causa eficiente pertencente a este mundo ele dá o nome de vontade à sua causalidade Por outro lado ele tem ainda consciência de si mesmo como fazendo parte cio mundo sensível no qual suas ações são consideradas como simples manifestações fenomenais dessa causalidade élhe todavia impossível compreender como são possíveis estas ações provenientes de uma causalidade que não conhecemos é pois forçado a encarar suas ações enquanto pertencentes ao mundo sensível como determinadas por outros fenômenos a saber por desejos e inclinações Se eu fosse membro unicamente do mundo inteligível minhas ações seriam perfeitamente conformes ao princípio da autonomia da vontade pura se eu fosse apenas parte do mundo sensível elas deveriam ser encaradas como inteiramente conformes à lei natural dos desejos e das inclinações e por conseguinte à heteronímia da natureza No primeiro caso as minhas ações estribariam no princípio supremo da moral no segundo caso no princípio da felicidade Mas dado que o mundo inteligível contém o fundamento do mundo sensível e conseqüentemente também das leis do mesmo e uma vez que relativamente à minha vontade que pertence inteiramente ao mundo inteligível ele é um princípio imediato de legislação e portanto deve 454 também ser pensado como tal eu como inteligível embora seja por outra parte um ser pertencente ao mundo sensível deverei reconhecer me sujeito à lei do primeiro isto é a razão que contém esta lei na idéia da liberdade e portanto sujeito igualmente à autonomia da vontade conseqüentemente deverei considerar as leis do mundo inteligível como imperativos para mim e como deveres as ações conformes a este princípio Deste modo são possíveis imperativos categóricos pelo motivo de a idéia da liberdade me fazer membro de um mundo inteligível Donde resulta que se eu fosse apenas isso todas as minhas ações seriam sempre conformes à autonomia da vontade como porém ao mesmo tempo me considero como membro do mundo sensível é preciso dizer que elas devem ser conformes este dever categórico representa uma proposição sintética a priori pois que a uma vontade influenciada por desejos sensíveis acresce ainda a idéia desta mesma vontade mas enquanto pertencente ao mundo inteligível ou seja pura e prática por si mesma a qual contém a condição suprema da primeira segundo a razão pouco mais ou menos do mesmo modo que às intuições do mundo sensível se acrescentam os conceitos do entendimento que por si mesmos nada mais significam do que a forma de uma lei em geral e que por isso tornam possíveis proposições sintéticas a priori sobre as quais repousa todo conhecimento de uma natureza O uso prático que os homens comumente fazem da razão confirma a exatidão desta dedução Não existe ninguém nem sequer o pior celerado contanto que esteja habituado a servirse da razão que ao lhe serem apresentados exemplos de lealdade nas intenções de perseverança na observância de máximas boas de simpatia e de benevolência universal tudo isto ligado ainda a grandes sacrifícios de vantagens e de bemestar não deseje sentirse também ele possuído de tais sentimentos Ele não pode sem dúvida e unicamente movido de suas inclinações e impulsos realizar este ideal em sua pessoa mas nem por isso deixa de sentir o profundo desejo de se libertar dessas inclinações que lhe são gravosas Mostra por essa forma que com uma vontade imune dos impulsos da sensibilidade ele se transporta com o pensamento a uma ordem de coisas inteiramente diversa daquela que constitui seus desejos no campo da sensibilidade pois que de tal aspiração não pode esperar nenhuma satisfação de seus apetites nem por conseguinte nenhum estado capaz de contentar alguma de suas inclinações reais ou imaginárias uma vez que por essa forma a própria idéia que lhe provoca o desejo perderia sua preeminência ele não pode esperar daí senão um maior valor intrínseco 455 de sua pessoa Ora ele crê ser essa pessoa melhor quando se situa no ponto de vista de membro do mundo inteligível para o qual o arrasta forçadamente a idéia da liberdade isto é a independência relativamente às causas determinantes do mundo sensível neste ponto de vista ele tem consciência de uma boa vontade que segundo sua própria confissão constitui a lei para a vontade má a que está sujeito enquanto membro do mundo sensível lei cuja autoridade ele reconhece embora a transgrida O dever moral é pois propriamente o querer necessário para todo membro de um mundo inteligível e deve ser concebido por este como dever apenas na medida em que ele se considera ao mesmo tempo como membro do mundo sensível Do extremo limite de toda filosofia prática Todos os homens se julgam livres em sua vontade Daí procedem todos os juízos sobre as ações declarando quais elas deveriam ter sido embora não tenham sido tais Todavia esta liberdade não é um conceito da experiência nem o pode ser porque este conceito permanece sempre embora a experiência mostre o contrário daquelas exigências que na suposição da liberdade são representadas como necessárias Por outro lado é igualmente necessário que tudo quanto sucede seja infalivelmente determinado segundo as leis da natureza e esta necessidade natural não é também um conceito da experiência precisamente por ser um conceito que implica em si o conceito de necessidade por conseguinte o de um conhecimento a priori Mas este conceito de uma natureza é confirmado pela experiência e deve ser inevitavelmente pressuposto se é que deve ser possível a experiência ou seja um conhecimento coerente dos objetos dos sentidos segundo leis universais Pelo que a liberdade é somente uma idéia da razão cuja realidade objetiva é cm si duvidosa ao passo que a natureza é um conceito do entendimento que prova e deve necessariamente provar sua realidade por meio de exemplos tomados da experiência É esta sem dúvida a origem de uma dialética da razão pois no concernente à vontade a liberdade que se lhe atribui parece estar em oposição com a necessidade dá natureza todavia embora a razão situada entre estas duas direções do ponto de vista especulativo encontre o caminho da necessidade natural mais desimpedido e mais praticável que o da liberdade todavia do ponto de vista prático a senda da 456 liberdade é a única onde seja possível lazer uso da razão em nosso comportamento daí o ser impossível tanto à mais sutil filosofia quanto à mais vulgar razão pôr em dúvida a liberdade por meio de sofismas Deve pois a razão admitir não ser possível encontrar nenhuma verdadeira contradição entre a liberdade e a necessidade natural das mesmas ações humanas porque não lhe é dado renunciar ao conceito de natureza como nem ao de liberdade Entretanto esta aparente contradição deve ser desfeita de modo convincente embora nunca se possa vir a compreender como seja possível a liberdade Com efeito se o conceito da liberdade fosse contraditório consigo ou com a idéia da natureza que é igualmente necessária deveria ela a liberdade ser sacrificada em proveito da necessidade natural Mas é impossível subtrairse a esta contradição se o sujeito que se supõe livre se concebesse a si mesmo quando se denomina livre no mesmo sentido ou precisamente na mesma relação em que ele se supõe relativamente à mesma ação sujeito à lei da natureza Ê pois uma tarefa a que a filosofia especulativa não pode subtrairse a de mostrar ao menos que aquilo que torna esta contradição ilusória é o fato de concebermos o homem quando qualificamos de livre num sentido diferente e sob uma relação diferente de quando o consideramos como sujeito enquanto parte da natureza às leis desta mesma natureza e que não só as duas relações podem acomodarse uma com a outra senão que devem outrossim ser pensadas no mesmo sujeito como necessariamente unidas pois de outro modo não se explicaria por que deveríamos sobrecarregar a razão com uma idéia que embora consinta sem contradição em se unir a outra suficientemente justificada nos envolve todavia num embaraço que entrava singularmente a razão em seu uso teorético Mas semelhante tarefa compete exclusivamente à filosofia especulativa a qual por essa forma deve abrir livre caminho à filosofia prática Não fica pois à mercê do filósofo o cuidado de suprimir ou deixar intacta esta aparente contradição porque neste último caso a teoria é sob este respeito um bonum vacans do qual o fatalista pode com direito apossarse dele expulsando toda moral como de uma pretensa propriedade que ela possui sem título Todavia não se pode ainda aqui dizer que comece o campo da filosofia prática Porque ela não é por forma alguma qualidade para dirimir o debate mas exige apenas da razão especulativa que ponha termo ao litígio em que ela se encontra envolvida em matéria teorética a fim de que 457 a razão prática possa gozar de repouso e segurança relativamente a intromissões externas que poderiam contestarlhe o terreno onde ela pretende estabelecerse Mas a pretensão legítima que tem a razão humana mesmo a mais comum à liberdade da vontade fundase na consciência e na pressuposição admitida da independência da razão a respeito de causas de determinação puramente subjetivas o conjunto das quais constitui o que pertence somente à sensação por conseqüência o que recebeu o nome gerai de sensibilidade O homem que de tal modo se considera como inteligência colocase por isso mesmo numa outra ordem de coisas e quando ele se concebe como inteligência dotada de vontade portanto de causalidade põese em relação com princípios determinantes de outra espécie inteiramente diferente do que quando se considera como um fenômeno do mundo sensível o que ele na verdade também é e submete a sua causalidade segundo uma determinação externa a leis da natureza Ora ele imediatamente dá conta que ambas as coisas podem e até devem darse ao mesmo tempo Pois que uma coisa na ordem dos fenômenos pertencente ao mundo sensível esteja sujeita a certas leis das quais é independente como coisa ou como ser em si mesmo não contem em si a mínima contradição que o próprio homem deva conceber se e representarse sob este duplo aspecto é exigência que se funda no que concerne ao primeiro ponto na consciência de si como objeto afetado pelos sentidos e no que respeita ao segundo ponto na consciência de si como inteligência isto é como ser independente no uso da razão das impressões sensíveis portanto como pertencente ao mundo inteligível Daqui deriva que o homem se atribui uma vontade que não consente em pôr no seu ativo coisa alguma do que pertença unicamente a seus desejos e inclinações e que ao invés concebe como possíveis para ela ou melhor como necessárias ações que não podem ser executadas senão mediante uma renúncia a todos os desejos e incitamentos sensíveis A causalidade de tais ações reside nele enquanto inteligência e nas leis dos efeitos e das ações que são conformes aos princípios de um mundo inteligível do qual mundo todavia ele nada mais sabe do que isto que nele só a razão e justamente a razão pura independente da sensibilidade institui a lei Além disso como só enquanto inteligência ele é o verdadeiro eu ao passo que enquanto homem ele é só fenômeno de si próprio estas leis endereçamse a ele imediatamente e categoricamente de sorte que tudo aquilo a que as inclinações e impulsos o incitam portanto toda a natureza do mundo 458 sensível não pode causar dano às leis da sua vontade considerada como inteligência Mais ainda ele não assume a responsabilidade destas inclinações e tendências nem as atribui ao seu verdadeiro eu ou seja à sua vontade só se considera responsável da complacência que poderia ter para com elas se porventura lhes concedesse alguma influência sobre suas máximas com prejuízo das leis racionais da vontade Introduzindose assim por meio do pensamento num mundo inteligível a razão prática não ultrapassa de fato seus limites só os ultrapassaria se quisesse entrando neste mundo intuirse sentirse nele Isso não passa de uma concepção negativa em relação ao mundo sensível o qual não dá leis à razão na determinação da vontade concepção que só num ponto é positiva a saber que esta liberdade como determinação negativa está ligada ao mesmo tempo a uma faculdade positiva e precisamente a uma causalidade da razão que denominamos vontade isto é à faculdade de agir de tal sorte que o princípio das ações seja conforme ao caráter essencial de uma causa racional ou seja à condição que a máxima erigida em lei seja universalmente válida Mas se a razão quisesse ainda derivar do mundo inteligível um objeto da vontade isto é um motivo ultrapassaria nesse caso seus limites e teria a ilusão de conhecer uma coisa da qual na realidade nada conhece Portanto o conceito de um mundo inteligível nada mais é que um ponto de vista que a razão se vê obrigada a aceitar fora dos fenômenos para se concebera si própria como prática o que não seria possível se as influências da sensibilidade fossem determinantes para o homem mas que todavia é necessário se é que não devemos contestarlhe a consciência de si mesmo como inteligência portanto como causa racional e atuante por meio da razão ou seja livre em suas operações Semelhante concepção implica a idéia de uma outra ordem e de uma outra legislação diferente da ordem e da legislação do mecanismo natural que se aplica ao mundo sensível e torna necessário o conceito de um mundo inteligível isto é o sistema total dos seres racionais como coisas em si mas sem a menor pretensão de ultrapassar aqui 0 pensamento daquilo que é simplesmente a condição formal do mesmo ou seja a universalidade da máxima da vontade como lei e portanto a autonomia desta faculdade autonomia que só pode existir com a liberdade da mesma ao passo que todas as leis que são determinadas por sua relação com um objeto dão uma heteronímia que só se encontra nas leis naturais e que só se pode referir ao mundo sensível A razão ultrapassaria todos os seus limites se pretendesse explicar como é que uma razão pura pode ser prática o 459 que equivaleria exatamente a explicar de que maneira a liberdade é possível De fato só podemos explicar aquilo que podemos reduzir a leis cujo objeto pode ser dado nalguma experiência possível Ora a liberdade é uma simples idéia cuja realidade não pode por forma alguma ser demonstrada por leis da natureza e portanto também em nenhuma experiência possível e que por isso mesmo que não se pode propor dela segundo qualquer analogia um exemplo nunca pode ser compreendida nem sequer só concebida Ela vale apenas como suposição necessária da razão num ser que julga ter consciência de possuir uma vontade ou seja uma faculdade muito diferente da simples faculdade apetitiva quero dizer uma faculdade de se determinar a agir como inteligência portanto segundo leis da razão independentemente dos instintos naturais Mas onde cessa uma determinação segundo as leis da natureza aí cessa também toda explicação e nada mais resta do que manterse na defensiva isto é refutar as objeções dos que pretendem haver penetrado mais profundamente na essência das coisas e que por tal motivo declaram ousadamente a liberdade impossível Apenas se lhes pode mostrar que a contradição que eles pretendera haver descoberto cm nada mais consiste senão em que para tornar a lei da natureza válida relativamente às ações humanas eles deveriam considerar necessariamente o homem como fenômeno quando agora se exige que eles devam concebêlo enquanto inteligência também como uma coisa em si continuam todavia a considerálo sempre ainda como fenômeno então sem dúvida o fato de subtrair a causalidade do homem isto é sua vontade às leis naturais do mundo sensível num só e mesmo sujeito constituiria uma contradição contudo esta contradição desapareceria se eles quisessem refletir e como seria de justiça reconhecer que por detrás dos fenômenos devem por certo existir embora ocultas as coisas em si as leis das quais não se pode pretender que sejam idênticas àquelas a que são sujeitas suas manifestações fenomenais A impossibilidade subjetiva de explicar a liberdade da 460 vontade é idêntica à impossibilidade de descobrir e de fazer compreender um interesse que o homem possa tomar pelas leis morais e não obstante é fato que o homem toma realmente interesse por elas o primeiro do qual é em nós aquilo a que chamamos sentimento moral sentimento que por alguns falsamente é dado como sendo o critério de nosso juízo moral quando na verdade deve ser antes considerado como o efeito subjetivo exercido pela lei sobre a vontade do qual só a razão subministra os princípios objetivos Para que um ser que é a um tempo racional e afetado pela sensibilidade queira o que só a razão prescreve como dever é preciso que a razão tenha a faculdade de lhe inspirar um sentimento de prazer ou de satisfação pelo cumprimento do dever e conseguintemente uma causalidade pela qual determine a sensibilidade conformemente a seus princípios É porém de fato impossível compreender isto é explicar a priori como um simples pensamento que em si não contém coisa alguma de sensível pode produzir um sentimento de prazer ou de repugnância pois isto é uma espécie peculiar de causalidade da qual nada podemos determinar absolutamente a priori mas para a qual só podemos consultar a experiência Mas como esta não pode oferecer nenhuma relação entre causa e efeito a não ser entre dois objetos da experiência e como aqui a razão pura unicamente por meio de idéias que não subministram objetos para a experiência deve ser a causa de um efeito que certamente se encontra na experiência por isso a nós homens e absolutamente impossível explicar como e por que a universalidade da máxima como lei e por conseguinte a moralidade nos interessa Certo é apenas isto que a moralidade não possui valor para nós pelo fato de interessar pois isto é heteronímia e dependência da razão prática a respeito da sensibilidade ou seja a respeito de um 461 sentimento assente como princípio no qual caso nunca poderia estabelecer uma legislação moral mas a moralidade apresenta interesse porque tem valor para nós enquanto homens porque deriva de nossa vontade concebida como inteligência portanto do nosso verdadeiro eu ora o que pertence ao puro fenômeno é necessariamente subordinado pela razão à natureza da coisa em si Interesse é aquilo pelo qual a razão se torna prática isto é se torna causa determinante da vontade Eis porque se diz apenas de um ser racional que ele toma interesse por qualquer coisa ao passo que os seres irracionais sentem somente impulsos sensíveis A razão toma interesse imediato pela ação só quando a validade universal da máxima desta ação é um princípio suficiente de determinação da vontade Só um interesse deste gênero é puro Mas se a razão não pode determinar a vontade senão por meio de algum outro objeto do desejo então ela não toma pela ação senão um interesse mediato e como a razão não pode descobrir por si só sem a experiência nem objetos da vontade nem um sentimento especial que sirva a esta de fundamento este último interesse não pode ser senão um interesse empírico nunca um puro interesse racional O interesse lógico da razão que a leva a aumentar seus conhecimentos nunca é imediato mas pressupõe fins aos quais se refere o uso desta faculdade 1 Portanto a questão como é possível um imperativo categórico só pode ser verdadeiramente respondida na medida em que seja possível indicar a única suposição donde depende a sua possibilidade ou seja a idéia da liberdade e em que se possa também enxergar a necessidade desta suposição o que é suficiente para o uso prático da razão isto é para nos convencermos da validade deste imperativo e conseguintemente também da lei moral Mas o que nenhuma razão humana logrará jamais descobrir é a maneira como tal suposição seja possível Supondo que a vontade de uma inteligência é livre seguese como conseqüência inevitável a autonomia da mesma como sendo a única condição formal mediante a qual ela pode ser determinada Pressupor esta liberdade da vontade sem cair em contradição com o princípio da necessidade natural da ligação dos fenômenos cio mundo sensível não é só absolutamente possível como a filosofia especulativa o pode mostrar mas é igualmente necessário para um ser racional que tem consciência de sua causalidade por meio da razão portanto de uma vontade distinta dos desejos de admitila praticamente isto é em idéia como condição de todas as suas ações voluntárias Como é que a razão pura sem outro impulso venha ele donde vier possa por si mesma ser prática por outras palavras como é que o simples princípio da validade universal de todas as suas máximas como leis o qual seria certamente a forma de uma razão pura prática sem matéria objeto alguma da vontade pela qual se possa antecipadamente tomar interesse possa por si mesmo subministrar um móbil de ação e suscitar um interesse capaz de ser denominado puramente moral ou por outras palavras como é que uma razão pura possa ser prática explicar isto é inteiramente impossível a qualquer razão humana e é baldado todo o trabalho despendido para encontrar uma elucidação É exatamente a mesma coisa que se eu procurasse descobrir como é possível a própria liberdade como causalidade 462 de uma vontade Com efeito aqui ponho de parte o princípio de explicação filosófica sem ter outro a que recorrer Poderia é certo aventurarme no mundo inteligível que todavia me resta no mundo das inteligências mas embora tenha dele uma idéia e bem fundada não tenho todavia o mínimo conhecimento do mesmo e nunca o poderei alcançar malgrado todos os esforços de minha razão natural Esta idéia significa apenas alguma coisa que continua subsistindo depois de eu ter excluído dos princípios de determinação de minha vontade tudo quanto pertence ao mundo sensível de maneira que restrinja simplesmente o princípio dos impulsos derivados do campo da sensibilidade limitando este campo e mostrando que ele não compreende em si o todo do todo e que fora dele muitas outras coisas ainda existem mas estas muitas coisas não as conheço Da razão pura que concebe este ideal não me resta após haver leito abstração de toda matéria isto é de todo conhecimento dos objetos senão a forma ou seja a lei prática da validade universal das máximas e em conformidade com esta a concepção da razão considerada em relação a um mundo inteligível puro como causa eficiente possível isto é como causa determinante da vontade o impulso deve aqui faltar completamente a não ser que esta idéia de um mundo inteligível não seja ela mesma o impulso ou a coisa pela qual a razão originariamente toma interesse mas explicar isto é justamente o problema que não logramos resolver Aqui está pois o limite extremo de toda investigação moral Determinálo é já de grande importância para que a razão por um lado não se embrenhe no mundo sensível com prejuízo da moralidade à cata do motivo supremo de determinação e de um interesse sem dúvida compreensível mas empírico e por outro lado não bata as asas em vão sem mudar de lugar neste espaço de conceitos transcendentes vazio para ela que se chama o mundo inteligível nem se perca no meio de quimeras Além disso a idéia de um mundo inteligível puro concebido como um todo formado por todas as inteligências de que nós mesmos como seres racionais fazemos parte conquanto por outro lado pertençamos ao mesmo tempo ao mundo sensível continua sendo sempre uma idéia utilizável e lícita cm benefício de uma crença racional se bem que todo saber se confine dentro dos limites deste mundo E mercê do magnífico ideal de um reino universal dos fins cm si dos seres racionais ao qual não podemos pertencer como membros senão tendo o cuidado de nos portar de acordo com as máximas da liberdade como se elas fossem leis da 463 natureza a idéia do mundo inteligível é capaz de produzir em nós vivo interesse pela lei moral Observação final O uso especulativo da razão relativamente à natureza conduz à absoluta necessidade de uma causa suprema do mundo o uso prático da razão relativamente à liberdade conduz também a uma necessidade absoluta mas que é só a necessidade das leis das ações de um ser racional como tal Ora é um principio essencial de todo uso da nossa razão estimular o conhecimento que ela nos dá até à consciência de sua necessidade pois sem isso não seria conhecimento da razão Mas a mesma razão está igualmente sujeita a uma restrição não menos essencial que consiste em a razão ser incapaz de perceber a necessidade daquilo que é e acontece e do que deve acontecer se não assenta como princípio uma condição sob a qual a coisa é acontece ou deve acontecer Deste modo porém mercê da constante busca da condição a razão não pode ver senão que sua satisfação é sempre adiada Pelo que ela busca sem descanso o necessário incondicionado e é obrigada a admitilo sem meio algum de o tornar inteligível a si sentindose já bastante feliz em só poder descobrir o conceito que se ajusta com esta suposição Não se deve portanto censurar a nossa dedução do princípio supremo da moralidade deveria antes criticarse a razão humana em geral por não lograrmos explicar uma lei prática incondicionada qual deve ser o imperativo categórico em sua necessidade absoluta Não nos podem pois censurar por não querermos fazer isto mediante uma condição ou seja mediante algum interesse estabelecido como princípio porque nesse caso não seria mais uma lei moral isto é uma lei suprema da liberdade Assim se não compreendemos verdadeiramente a necessidade prática incondicionada do imperativo moral compreendemos todavia a sua incompreensibilidade e é tudo quanto se pode exigir racionalmente de uma filosofia que se empenha por alcançar nos princípios os limites da razão humana